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se encapsulado”, como denomina Hardin, e a expec- bém do que se denomina ‘sombra do futuro’”
tativa positiva que decorre do cálculo de custos e (1993a, pp. 194-195), quer dizer, da incerteza. O
benefícios entre atores maximizadores de utilidade. dilema pelo qual os atores, nas suas relações
Nessa linha claramente racionalista, pequenos gru- estratégicas de cooperação, fazem a opção ou
pos de atores consideram vantajoso o estabeleci- não por esta é compreendido por Axelrod num
mento de relações cooperativas se as interações jogo seqüencial chamado de reciprocidade espe-
cooperativas forem repetidas entre os atores e se cífica.1 A estratégia de reciprocidade específica
a informação a respeito do comportamento pas- usa a tática do “olho por olho”. Isso significa que
sado dos atores for completa. a um movimento cooperativo de um jogador A
Para Locke, ambas as correntes apresentam seguirá, em contrapartida, uma jogada cooperati-
três falhas básicas: 1) são estáticas, “porque assu- va por parte de um jogador B; a deserção de A
mem que padrões de associativismo e/ou de capi- será seguida pela deserção de B. No entanto, a
tal social – vistos por alguns como os pré-requisi- deserção pode criar incentivos para que outros
tos da confiança, fixos no tempo e no espaço” atores se sintam prejudicados, o que origina uma
(2001, p. 256); 2) a maior parte da literatura é pressão a favor da cooperação. Para Keohane,
mecanicista “por tratar os pré-requisitos da con-
fiança – sejam eles institucionais ou sociológicos – [...] a virtude adicional à reciprocidade específica
como variáveis homogêneas binárias [...] ou as pode criar incentivos para que interesses, que de
sociedades possuem as instituições ‘certas’ ou não outra maneira seriam passivos dentro de seus paí-
ses, se oponham a uma ação unilateral por parte
as possuem. Ou elas possuem um estoque sufi-
de seus próprios governos. Em 1984, por exemplo,
ciente de capital social ou uma quantidade insufi-
os granjeiros norte-americanos opuseram-se às
ciente dele” (Idem, p. 257); e 3) a literatura é cotas de aço se antecipando a represálias [exter-
“majoritariamente pessimista quanto às possibili- nas] contra suas exportações agrícolas (1993a, pp.
dades de se criar confiança no contexto onde as 197-198).
condições favoráveis e/ou pré-requisitos de que
eles supostamente dependem não estão dados” O autor, no entanto, não sugere que auto-
(Idem, p. 156). Pensando em um contexto domés- interesse e percepções de interesses comuns
tico, Richard Locke explora a questão da possibi- sejam incompatíveis. Como parte da literatura ins-
lidade de se criar confiança e de como fazê-lo titucionalista tem mostrado, ambas as motivações
(Idem, p. 25). são compatíveis, e o problema apresenta-se nas
Mas será possível pensar em termos de “capi- características conformadoras da anarquia interna-
tal social” e “geração de confiança” ao considerar cional, assim como nas restrições que esta impõe
ações coletivas que envolvem política externa entre para a cooperação (Balwin, 1993).
Estados? Caso afirmativo, como fazê-lo? Entende- Uma segunda perspectiva no âmbito da teoria
mos que, ao discutir temas como a “cooperação” e das relações internacionais próxima da categoria de
a “confiança” entre atores estatais em política inter- capital social tem sido desenvolvida pelo pensa-
nacional, embora não exista uma referência explí- mento pós-positivista da escola construtivista, espe-
cita, as teorias das relações internacionais apresen- cialmente nos trabalhos de Alexander Wendt (1992,
tam elementos de aproximação com a teoria do 1995). Para esse autor, as identidades, positivas ou
capital social. negativas, e/ou os interesses dos atores estatais são
A corrente neo-institcionalista, também uma construção, e, “se repetidas com freqüência,
baseada no trabalho de Axelrod (1984), tem na essas operações recíprocas” geram conceitos relati-
teoria da reciprocidade de Robert Keohane um de vamente estáveis de ajuda – “é essa interação recí-
seus principais expoentes. Segundo Keohane, proca que define nossas identidades e interesses”
que partiu da mesma lógica do auto-interesse (1992, p. 405). Contudo, tais identidades não são
como motivação primária para a cooperação estáticas, já que podem ser construídas e descons-
entre atores, Axelrod “demonstra que a racionali- truídas em novos movimentos interativos.
dade da cooperação depende não só dos ganhos No campo das correntes construtivistas, a “con-
imediatos esperados pelos jogadores, mas tam- fiança” é a base para a criação do que elas denomi-
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nam “comunidades pluralistas de segurança”, con- mento de ações individuais em ações coleti-
ceito inspirado nos trabalhos de Karl Deutsch e vas que geram redes de confiança recíproca,
outros (1957). O construtivismo tem definido as co- tendo um impacto não só na comunidade do
munidades de segurança como “uma região transna- agente, mas também para além das fronteiras
cional composta de estados soberanos, em que as da comunidade, posto que essas redes per-
sociedades mantêm expectativas cofiáveis de mu- mitem a construção de virtudes cívicas ou de
dança pacífica” (Adler e Barnet, 1998a, p. 30). É inte- uma cultura cívica.
ressante ressaltar que uma “comunidade de seguran-
ça” apresenta quatro características básicas que Finalmente, uma terceira perspectiva próxi-
também são parte do núcleo do conceito de “capital ma à teoria do capital social tem sido pensada
social”: como uma saída de meio termo entre as análises
positivistas (como as realistas) e as construtivistas.
1. Os atores compartem valores, identidades e Nessa categoria destaca-se o trabalho organizado
significados. por Goldstein e Keohane, Ideas and foreign poli-
2. A reciprocidade específica, uma característi- cy (1993), obra em que se pretende uma aproxi-
ca que implica algum grau de interesse de mação entre a conduta externa, movida pelas ou
longo prazo, assim como a geração de um relativa às idéias, e aquela movida por interesses
senso de responsabilidade e obrigação em e poder.2 Os autores, fazendo uma autocrítica em
comum – em outras palavras, valores, iden- nome do racionalismo, sobretudo do instituciona-
tidades e significados chegam a ser uma lismo neoliberal e do neo-realismo, reconhecem
“condição” de segurança nacional ou inter- as limitações das perspectivas teóricas racionalis-
nacional (Idem, 1998b). tas sobre o impacto das idéias nas políticas gover-
3. A construção de confiança mútua entre esta- namentais. Ao enfocar, principalmente, as variações
dos de uma região. Tal confiança alimenta dos constrangimentos exógenos (capacidades de
expectativas de solução de conflitos que poder) das unidades políticas, ponto comum a am-
descartam os recursos de poder baseados na bas às escolas, tanto o neo-realismo como o neoli-
força (ou do tipo power-based) – as frontei- beralismo cometem uma dupla falta – por um lado,
ras dessa região não coincidem necessaria- assumir que as preferências e as crenças são dadas
mente com as fronteiras geográficas, uma vez ou que podem ser remetidas à caixa preta do inte-
que a criação de valores, identidades e signi- resse nacional, por outro, relegar as idéias e as
ficados comuns leva à noção de regiões cog- crenças à qualidade de epifenômeno ou a um pa-
nitivas, ou seja, “o reconhecimento de que as pel periférico, em função do interesse dos atores.
comunidades se desenvolvem em torno de No campo dos trabalhos empíricos que tes-
redes, interações e encontros face a face, que tam, na arena internacional, a geração de capital
não dependem de habitar o mesmo espaço social, um dos pensadores mais marcantes do
geográfico, reconceitualiza a idéia comum de mainstream norte-americano das relações inter-
região” (Idem). Um exemplo notável de fron- nacionais, John Ikenberry (2002), tem trabalhado
teiras cognitivas é a aliança ocidental da com um argumento bem próximo dos estudos
Otan, como defendem autores como John seminais de Almond e Verba (1989) – os quais
Gerard Ruggie (1998). apontam que uma das fontes da perdurabilidade
4. As comunidades de segurança mesmo que da hegemonia norte-americana teria ligação com
baseadas na confiança entre parceiros esta- o fato de os Estados Unidos terem gerado, duran-
tais numa determinada região geografica- te os anos do pós-Guerra Fria, uma cultura cívica
mente contígua ou cognitiva não são incom- transnacional baseada em duas fontes. A primeira
patíveis com a realização do auto-interesse reside no fato de que seu poder tem sido mais
dos atores. Em outras palavras, o conceito aceitável para o restante do mundo porque seu
de comunidade de segurança opera na mes- projeto é congruente com as forças mais profun-
ma lógica descrita por Putnam (1993) para o das da modernização. A sincronia entre o estabe-
capital social, ou seja, a partir do envolvi- lecimento dos Estados Unidos como uma super-
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potência liberal e global e os imperativos mais definir tal ordem: (1) identidades e valores em
amplos da modernização no mundo criaram um comum; (2) política e economia em base transna-
vínculo funcional entre este país e o restante do cional e interdependência cultural; e (3) gover-
mundo. A promoção do fordismo, da força de tra- nança institucionalizada.
balho educada, de fluxos de informação e tecno- Não pretendemos fazer uma opção exclusiva
logia e de progressivos e mais especializados siste- por nenhuma destas três perspectivas – neo-insti-
mas sociais e industriais de organização são tucionalismo de Keohane; construtivismo; e idéias
congruentes entre o modelo oferecido pelos norte- somadas a interesses –, mas aproveitar alguns ele-
americanos e as demandas modernizantes tanto de mentos que parecem eficientes para compreender
aliados, como não-aliados. A segunda fonte diz e explicar os fatos analisados. O objetivo é inves-
respeito à existência de um modelo de identidade tigar os efeitos das idéias democráticas e da demo-
política norte-americana baseado num nacionalis- cratização na formação de confiança entre países
mo cívico e multiculturalista, o que parece ser de sul-americanos e o Brasil e como essas idéias
grande importância. Com efeito, os Estados Unidos influenciaram a geração de movimentos coopera-
praticariam um nacionalismo cívico e não um tivos recíprocos e de imagens positivas do poder
nacionalismo étnico. de vizinhos sul-americanos sobre a política exter-
Numa sociedade multicultural a identidade na brasileira. Sustentamos o argumento de que o
do grupo é subordinada a regras de direitos e a discurso democrático foi condição primária para a
um credo de obrigações políticas; em outras pala- criação de confiança – a despeito do estoque de
vras, raça, religião, língua ou etnicidade não são capital social negativo acumulado nos governos
relevantes para definir os direitos do cidadão nem militares que precederam à redemocratização bra-
para definir sua inclusão no sistema político nor- sileira e apesar do “interesse encapsulado” implí-
te-americano. Assim, tal sistema rejeita a noção de cito nas metas de política externa. Para investigar
cidadania ligada à idéia de que direitos e partici- o efeito das idéias democráticas e da democratiza-
pação sejam vinculados à etnicidade. Isso suscita ção como meio da política externa brasileira de
duas implicações importantes: 1) o modelo de criar confiança com vizinhos sul-americanos aten-
nacionalismo cívico estimula a projeção dos Esta- taremos para cinco categorias: (1) identidades
dos Unidos como projeto de sociedade a ser compartilhadas; (2) auto-interesse ou interesses
almejado, inclusive como modelo de organização encapsulados; (3) idéias compartilhadas; (4) histó-
no mundo pós-Estados; 2) tal modelo tende a criar rico de reciprocidade específica positiva; e (5) ins-
uma fonte de identidade e cooperação com outros titucionalização de normas de autogovernança,
Estados ocidentais, uma vez que no senso comum como confiança, transparência e monitoramento.
haveria um favorecimento à coesão e à coopera- Este estudo é dividido em quatro partes: na
ção. Como o nacionalismo cívico está enraizado primeira seção mapeamos as condições que per-
em ideais democráticos e regras de direito com- mitiram a formação das preferências pela agenda
partilhadas, ele fornece uma importante via de democrática como um meio de política externa;
hegemonia branda. O caráter multicultural da iden- na segunda, estudamos as interações seqüenciais
tidade política norte-americana tende a reforçar o entre o Brasil e a Venezuela e o impacto de idéias
internacionalismo, isto é, uma visão liberal cosmo- democráticas e dos interesses como instrumentos
polita e pluralista, o que se traduziria na criação de de política externa para gerar capital social e con-
uma identidade que tende a apoiar o instrumental fiança; na terceira, repetimos o mesmo procedi-
na construção do multilateralismo internacional em mento para testar como é possível gerar capital
bases mais pluralistas. social e confiança em matéria de segurança e desar-
A visão de Ikenberry está muito próxima da mamento, tomando como base analítica o histórico
de Thomas Risse(2002), segundo a qual existe de reciprocidades entre o Brasil e a Argentina nos
uma comunidade de segurança ocidental liberal últimos trinta anos; finalmente, fazemos um balan-
comandada pelos Estados Unidos – base da ço mostrando algumas limitações para a política
ordem estável contemporânea e da unipolariada- externa brasileira na geração de capital social posi-
de norte-americana. Três características poderiam tivo na América do Sul.
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mente, como aquele do período da Guerra Fria, nismos normativos que prevêem a suspensão do
valia a definição de Carl Schmitt (1992) de que a sistema interamericano em países onde exista que-
relação básica da política é a dicotomia amigo-ini- bra da ordem constitucional e institucional demo-
migo. Contudo, na perspectiva analítica, com a glo- crática. A resolução 1080 foi aplicada durante a
balização unidimensional da política na base da década de 1990 no caso de quatro Estados mem-
crença no valor universal da democracia ocidental, bros: Haiti (1991), Peru (1992), República Domini-
um dos campos da metáfora política de Schmitt (o cana (1994) e Paraguai (1996), havendo ainda um
inimigo) tende a desaparecer. pedido de aplicação no caso das eleições peruanas
Mesmo com a crítica a esse tipo de pensa- de 2000, no regime de Alberto Fujimori. Passo mais
mento – desconfiava-se que fosse uma justificativa decisivo ainda foi a aprovação da Carta Democrática
ideológica para preparar a ação do hegemon no pelos países do continente, em setembro de 2001.
pós-Guerra Fria (cf. Amorim, 1994b, pp. 133-134) – Além disso, os países sul-americanos haviam
não houve dúvida de que a variação dos cons- reafirmado o “compromisso democrático” nas duas
traints valorativos sistêmicos (mudança de duas experiências integracionistas da região. No caso dos
alternativas doutrinárias para uma só) agiram como países do Mercosul, o sistema de cláusulas demo-
uma baliza cognitiva, na medida em que fornecia cráticas foi formalizado pelo Protocolo de Ushuaia,
aos decision makers internos parâmetros para son- de julho de 1998, e no caso da Comunidade Andina
dar qual era o grau de manobra disponível para (CAN), pelo Protocolo Adicional ao Acordo de
uma potência média como o Brasil, caso tentasse Cartagena sobre “O Compromisso da Comunidade
uma ação menos padronizada internacionalmente Andina com a Democracia”.5
do ponto de vista ideológico. A evidência dos A terceira e última condição sistêmica refere-
fatos levou, assim, em início dos anos de 1990, a se à aceitação normativa da idéia de democracia
que o discurso diplomático constatasse “o amplo como “valor universal dominante” que ajudou a
consenso em torno da superioridade da democra- estabelecer entre as elites brasileiras o consenso
cia representativa” (Amorim, 1994a, p. 24, grifos em torno dos vínculos causais entre identidade
nossos). democrática, poder regional e desenvolvimento.6
A segunda condição diz respeito à preferên- Essa percepção é consistente com a hipótese de
cia pela democracia como instrumento de política que as relações causais entre idéias e fatos “deri-
externa, que também foi influenciada por proces- vam sua autoridade do consenso de elites reco-
sos estruturais operados no sistema interamericano nhecidas” (Goldstein e Keohane, 1993). Tal mapa
desde a segunda metade dos anos de 1980 e, prin- cognitivo foi percebido (e reconhecido) pelas eli-
cipalmente, pela geração de um sistema normativo tes brasileiras em coerência com a tradição de
de cláusulas democráticas na Organização dos autonomia do país (qualquer que for o qualifica-
Estados Americanos (OEA).4 Nessa direção, alguns tivo aplicado a essa autonomia) e politicamente
estudos vêm apontando o surgimento, no sistema mais viável que aquele explicitado durante os
interamericano, de um regime internacional demo- anos do governo Collor de Mello (o chamado
crático que guia as expectativas e cria incentivos paradigma modernização pela dependência), que
de cooperação para os atores (Goldberg, 2001) e supunha uma volta ao paradigma americanista e
de um conceito de defesa coletiva da democracia um certo grau de alienação da soberania nacional
(Farer, 1996). A institucionalização dessas duas (cf. Soares de Lima, 1994).
noções teóricas iniciou-se em meados da década Dessa maneira, a sustentação da democracia
de 1980, quando o Protocolo de Cartagena das como mapa do caminho já aparecia, em início dos
Índias introduziu, como novos objetivos da OEA, a anos de 1990, fortemente ligada à crença de que
promoção e a consolidação da democracia no con- era muito importante reconhecer a “interdepen-
tinente, respeitando o princípio da não-intervenção. dência complexa” entre idéias e interesses. Essa
Um passo firme foi dado em 1991, no chamado interdependência sugeria uma releitura da hipóte-
Compromisso de Santiago do Chile, que produziu a se dos “3D” do embaixador Araújo Castro – idéia
Declaração de Defesa Coletiva da Democracia e a formulada em meados dos anos de 1960, em que
Resolução 1080 ou “cláusula democrática” – meca- a missão das Nações Unidas, e do Brasil nesta
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organização, passava pela realização de três condições nas quais deu-se a formação das prefe-
metas: desarmamento, desenvolvimento e desco- rências por uma agenda democrática como meio
lonização. Nas palavras de formuladores de políti- de política, resta saber como foi operacionalizado
ca externa contemporânea, a atualização da tese o discurso democrático na geração de capital, con-
dos “3D” enfatiza os conceitos de democracia, fiança e melhoria da imagem entre vizinhos sul-
desenvolvimento e desarmamento, “com seus des- americanos. Os casos das relações diplomáticas
dobramentos nas áreas de Direitos Humanos, com a Venezuela e com a Argentina (neste último
Meio Ambiente e da Segurança Internacional” em torno de políticas de segurança e desarma-
(Amorim, 1994a, p. 21). Foram essas idéias e valo- mento) servirão para ilustrar adequadamente essa
res que forneceram aos formuladores de política questão.
externa as coordenadas regulatórias do mapa para
a inserção do Brasil no mundo das polaridades
indefinidas que se abria com o fim da Guerra Fria. Relações Brasil-Venezuela:
Esses três fatores sistêmicos forneceram uma das imagens negativas à
explicação eficiente das motivações agregadas em cooperação estratégica
torno da idéia de democracia como meio de ação
política externa e dos cursos de ação a serem O caso da Venezuela é significativo, por várias
desenvolvidos. Serviram também como argumen- razões, para mostrar como se pode construir capi-
tos explicativos da escolha feita. A política exter- tal social positivo entre atores estatais onde ele não
na é uma das dimensões políticas nas quais é pre- existe. O Brasil comparte com a Venezuela, frontei-
ciso, com mais freqüência, explicar as razões da ras da ordem de 2.199km. Alguns autores (Cervo,
escolha. 2002; Visentini, 1995; Ramos, 1995) defendem que
talvez a relação bilateral mais sólida que o Brasil
De fato, pela sua própria natureza, a política exter- mantém hoje com seus vizinhos sul-americanos seja
na se sustenta, talvez mais do que outras políticas com esse país. Porém, durante os governos milita-
de Estado, em procedimentos explicativos já que res a Venezuela, como de resto quase todos os vizi-
vive também de atitudes simbólicas que buscam nhos sul-americanos, abrigavam identidades negati-
exprimir ideologicamente a globalidade dos inte- vas sobre o Brasil. Lembremos que a literatura
resses nacionais (Fonseca, 1998, p. 267). geopolítica e militar de intelectuais como Couto e
Silva (1967), Terezinha de Castro (1976) e Correa
Assim, a idéia de que existiam certos cons- Rocha (1965), assim como “O desastrado discurso
traints valorativos universais que agiam como feito por Richard Nixon em 1971 na Venezuela, afir-
marcos regulatórios de um novo mainstream de mando que para onde o Brasil se inclinasse o resto
relações internacionais serviu como metodologia do continente faria o mesmo” (Shiguenoli, 1999, p.
explicativa da prioridade dada ao curso de ação 85) haviam feito estragos na imagem e na percep-
em face da “globalidade dos interesses nacionais”. ção que uma boa parte dos países sul-americanos
Qual é a influência do tipo de ação que pri- tinham do Brasil, atribuindo-se ao Itamarati motiva-
vilegia idéias democráticas – no sentido de atingir ções subimperialistas e expansionistas baseadas em
outras metas, tais como confiança em relação a política de poder. No caso da Venezuela, um destes
seus vizinhos – e imagem positiva regional? A atua- autores (Correa Rocha, 1965) chegou a conceber a
ção da política externa gera imagens ambíguas hipótese pela qual o Brasil teria fixado sua frontei-
quanto às motivações brasileiras regionais, porque ra norte pelo Mar Caribe, objetivo para o qual o
algumas identidades negativas do passado conti- autor propõe uma divisão pela metade das Guianas
nuam a prevalecer. No entanto, o marco democrá- com a Venezuela. Na verdade esse tipo de propos-
tico em que se sustenta a ação política externa tem ta em vez de agradar a Venezuela alimentava mais
operado como um importante instrumento para temores do que confiança nas elites deste país.
desconstruir o estoque de capital social negativo Além das desconfianças geopolíticas exis-
preexistente até a chegada dos governos democrá- tiam também causas políticas. Não é de hoje que
ticos em meados da década de 1980. Mapeadas as os governos venezuelanos tentam usar o petróleo
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como recurso para alimentar uma pretensa lideran- proposta venezuelana, qual seja, a criação de uma
ça regional em áreas da América Latina, como nos multinacional latino-americana do petróleo, a
países andinos, na América Central e no Caribe. Petrolatina. Também não é de hoje que a diplo-
Essa pretensão era já muito marcante durante o pri- macia venezuelana sustenta esse objetivo.7 O Brasil
meiro governo do social-democrata Carlos Andrés assinou em Caracas, em 1981, em conjunto com a
Pérez (1974-1979), período em que os preços do Venezuela e o México, um protocolo para dar iní-
petróleo atingiram altas cotações mundiais. O cha- cio a essa idéia. Embora o projeto da Petrolatina
mado “milagre brasileiro”, junto com a política permanecesse engavetado nos cofres das chance-
pragmática externa do governo Geisel de diversi- larias desses países até ser resgatado pela adminis-
ficar relações comerciais e políticas independen- tração Chávez, o gesto diplomático brasileiro foi
temente da natureza ideológica dos países, tam- um importante passo para começar a mudar a
bém era motivo de desconfiança por parte das identidade negativa do Brasil subimperialista
elites venezuelanas, que anteviam disputas com o perante seu vizinho venezuelano. Em outras pala-
Brasil pela liderança nessas regiões. Finalmente, vras, as ações de reciprocidade específica nesta
entre as motivações políticas, ao contrário do pro- primeira fase fizeram-se na base da tolerância e
jeto de autonomia política do governo brasileiro do estímulo de interesses regionais, especialmen-
diante dos Estados Unidos (ou autonomia pela te do apoio do Brasil a projetos regionais vene-
distancia, como se denominou o paradigma que zuelanos baseados no seu poderio petrolífero.
orientou a política externa brasileira desde inícios Também esse tipo de reciprocidade reforçava, no
dos anos de 1970 até finais da década seguinte), plano dos atores sociais, os empresários, já que a
a política externa venezuelana, durante quase aproximação entre ambos os países procurava
todo o século XX, sempre definiu como estratégi- criar condições para o desenvolvimento de proje-
ca a parceria política com os Estados Unidos. tos empresariais destinados a “robustecer o
Como foi possível transformar relações de núcleo central das economias nacionais” (Cervo,
desconfiança em relações de confiança em que 2001, p. 9).
pese esse enfoque acumulado de capital social Com a redemocratização brasileira iniciada no
negativo na época da redemocratização? A recons- governo de José Sarney, uma nova idéia toma
trução do processo histórico de reciprocidade corpo, a de que a inserção mundial competitiva só
específica positiva permitirá compreender como seria possível por meio da integração regional sul-
isso foi possível. Naquele quadro de desconfian- americana. Isso supunha que os países sul-ameri-
ças e imagens negativas, o Brasil tentou uma pri- canos deixassem de pensar em seus modelos de
meira ação cooperativa com a Venezuela ao apoiar desenvolvimento como passíveis de serem atingi-
a política petrolífera de preços altos, que reforça- dos na visão nacional-desenvolvimentista, de “vol-
va o discurso da diplomacia venezuelana de valo- tados para dentro”, para coordenar ações coletivas
rizar as matérias-primas do Terceiro Mundo. Em e cooperativas regionais. Um mapeamento do dis-
compensação, a esse primeiro movimento coope- curso diplomático de decision makers de política
rativo a Venezuela acertou com o Brasil convênios externa desde o governo Sarney permite conferir
de cooperação em abril de 1978 nos ramos do uma constante: a percepção da América do Sul
petróleo, da petroquímica, da mineração e da como prioridade da política externa brasileira (cf.
siderurgia e, nesse mesmo ano, aceitou que a exis- Cardoso, 1993, p. 6; Amorim, 1994a, p. 16; Lafer,
tência de acordos regionais como o Pacto Andino, 2001b, p. 2; Silva, 2003, ou nas palavras de Lafer, a
de natureza econômica, não eram incompatíveis percepção de uma “força profunda da política
com acordos de cunho político sobre a adminis- externa brasileira” (2001b, p. 2). A construção desse
tração de recursos naturais, criando-se, assim, con- significado permitiu que alguns autores afirmassem
dições para a assinatura do Tratado de Coopera- que ao longo de sua história o Brasil foi desenvol-
ção Amazônica, de iniciativa brasileira. vendo a dupla identidade de país em desenvolvi-
O jogo seqüencial de ações cooperativas e mento e país sul-americano. “Mas a verdade é que
de reciprocidade manteve-se nos anos de 1980, foi preciso que essa dupla identidade, hoje tão
respondendo o Brasil positivamente a uma velha óbvia, fosse sendo construída no discurso e na
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auto-imagem dos brasileiros ao longo do século ção e não pela distância – os “temas globais” que
XX” (Lamazier, 2001, p. 51). Assim, no discurso da se inseriram, em novos termos, na agenda inter-
política externa brasileira contemporânea, sobretu- nacional pós-guerra fria (Lafer, 2001b. p. 2).
do com a defecção da tão próxima política externa
mexicana, hoje em dia, do Nafta e dos Estados O mais importante a destacar é que nesta
Unidos, houve um esforço sistemático dos gover- fase se consegue desconstruir a primeira das iden-
nos brasileiros, desde Itamar Franco, “em redefinir tidades negativas que mais criavam obstáculos
a cooperação regional em termos de América do para uma ação cooperativa entre a Venezuela e o
Sul antes que [em termos] de uma identidade Brasil, a saber, a de que o Brasil seria um país
Latino-americana ” (Hurrel, 1998, p. 257). com motivações subimperialistas. “A imagem de
A partir do governo Sarney, passa-se a explo- um Brasil expansionista, hegemônico e domina-
rar fortemente o caminho integracionista sul-ameri- dor modificou-se drasticamente e as expectativas
cano, tendo sido definida a Venezuela pela frontei- positivas afloraram” (Cervo, 2001 p. 9).
ra norte e a Argentina pela fronteira sul como as Porém, ainda restava desconstruir mais duas
duas relações estratégicas a serem cultivadas para imagens: primeiro, a de que a liderança venezue-
atingir esse objetivo. Instâncias de comportamento lana no processo de integração regional andino
confiável começaram a ser seladas quando o presi- era incompatível com a liderança regional integra-
dente Sarney conseguiu promover a idéia entre cionista sul-americana promovida pelo Brasil; e,
seus pares venezuelanos de que o pathway inte- segundo, a idéia de que as metas de política exter-
gracionista era o melhor caminho para atingir três na venezuelana eram mais compatíveis com uma
objetivos: desenvolvimento nacional, defesa da política de aliança estratégica com os Estados Uni-
democracia e inserção competitiva internacional. dos do que com o Brasil, que ocupava um lugar
Ainda durante o governo Sarney, o governo brasilei- periférico no olhar das elites venezuelanas. Esses
ro assinou, em 1996, os Protocolos de Cooperação dois objetivos foram trabalhados intensamente
com a Argentina de Raul Alfonsin (1984-1988), e, durante toda a década de 1990 pela política exter-
com a Venezuela, durante o governo do social- na brasileira, desde o segundo governo do demo-
democrata Jaime Lusinchi (1984-1988), o Protocolo crata-cristão Rafael Caldera e na administração
de Caracas, em 1987, a partir dos quais se preten- Hugo Chávez. Observemos, então, como se deu
dia fazer deslanchar os processos integracionistas esse processo diplomático.
na América do Sul. Durante a administração de Itamar Franco
O reforço normativo que serviu como mapa no Brasil e de Rafael Caldera na Venezuela fir-
cognitivo da estratégia brasileira de aproximação maram-se algumas das bases que compatibiliza-
com vizinhos como Argentina e Venezuela foi o riam o projeto brasileiro de integração sul-ameri-
argumento de formuladores de política externa dos cana com o projeto de integração sub-regional
anos de 1990, segundo o qual o Brasil estava poli- andino e de desenvolvimento nacional venezue-
ticamente amadurecido para evoluir das “clássicas lano. Esse projeto tinha por base três eixos de
fronteiras [para] modernas fronteiras de coopera- ação: desenvolver ações de integração fronteiriça
ção” (Lafer, 2001b, p. 2).8 Destaca-se no conceito e energética; desenvolver os fluxos bilaterais de
de “fronteiras de cooperação” primeiramente a comércio; e finalmente, investimento entre ambos
mudança nas formas de produção e representação os países, com proveito para os setores empresa-
do significado do espaço brasileiro como algo não riais e criação de uma zona de livre comércio sul-
só instrumental, mas também substantivo em face americana.
dos interesses regionais de integração regional. O primeiro eixo – integração de fronteiras –
Em segundo, o conceito é consistente com a cren- teve início com o reforço de políticas de povoa-
ça nos mento em estados como Amazonas e Roraima, do
lado brasileiro, e estados como Amazonas, Delta
[...] investimentos no soft power da credibilidade Amacuro e Bolívar, do lado venezuelano. Em
realizados pelo país no correr da década de 90, ambos os lados das fronteiras comuns, os dois paí-
ao tratar de maneira construtiva – pela participa- ses desenvolveram políticas recíprocas e comple-
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
mentares. À iniciativa brasileira do Programa Calha inclui o aumento do fluxo de comércio, investi-
Norte, a Venezuela responderia, em meados dos mentos no setor petroquímico, compra e venda de
anos de 1990, com o programa Prodesur. Ambos tecnologias e outros tópicos. Porém,
tinham objetivos em comum, tais como a melho-
ria da qualidade de vida das populações locais, a O acordo guarda-chuva tem outras implicações e
proteção do meio ambiente e o desenvolvimento derivações. O Brasil, via BNDES, deverá aumentar
da potencialidade econômica das regiões fronteiri- sua presença como acionista da Corporação Andina
ças. Um empreendimento cooperativo de grande de Fomento (CAF), banco de desenvolvimento dos
países andinos, e chegar a 20% de participação no
envergadura na integração física foi realizado no
principal agente de investimento do Hemisfério Sul.
segundo mandato do presidente Fernando Henri-
Total do desembolso brasileiro: US$ 400 milhões
que Cardoso. Ainda, foi reinaugurada a rodovia BR-
em dois anos. Cada país-membro da CAF pode
174, cujo trecho Manaus-Santa Helena de Uairén financiar até quatro vezes o seu aporte para aplica-
(primeira cidade fronteiriça venezuelana), liga o ções no próprio país. No caso, US$ 1,6 bilhão. Se
Brasil a Caracas. A Venezuela já havia feito sua for projeto binacional, a aplicação pode multiplicar-
parte inaugurando a BV-8, pela qual se fornece se por oito – ou US$ 3,2 bilhões. Ao governo a CAF
energia elétrica a Boa Vista, advinda das usinas do faz chegar sua intenção de investir US$ 25 bilhões
Rio Caroní venezuelano. Os interesses do Brasil em toda a região nos próximos quatro anos” (Carta
neste mecanismo de integração física são eviden- Capital, 2003, p. 32).
tes: inserção de produtos no mercado venezuelano
e de escoamento de produtos brasileiros pelos por- O terceiro eixo – criação de uma zona de
tos caribenhos da Venezuela, como La Guaira e livre comércio sul-americana – atingiu dinamismo
Puerto Cabello, localizados ao norte deste país. De acentuado, sobretudo a partir da administração
outra parte, desenvolveu-se uma política de inte- Hugo Chávez, tendo como resultado um aumen-
gração energética bastante assertiva nas relações to sem precedentes da confiança entre esses dois
entre a Venezuela e o Brasil. As estatais de eletrici- países, além de operar um câmbio substancial
dade – Eletrobras do Brasil e Edelca da Venezuela sobre as alianças estratégicas tradicionais da
– vêm aproveitando o fato de a Venezuela ter algu- Venezuela em política externa. O Brasil seria um
mas de suas principais usinas hidrelétricas instala- dos países que passaria a ocupar um lugar estraté-
das na região sul – na fronteira com o Brasil – para, gico nas relações externas da Venezuela. Lembre-
desta maneira, poder abastecer de energia os esta- mos que desde o século XIX as desconfianças em
dos brasileiros dessa região, como Roraima, relação à política externa do Brasil sempre foram
Amazonas e Amapá. uma espécie de constante. O próprio Bolívar,
Quanto ao segundo eixo – fluxos bilaterais de naquele século, não incluiu o Brasil nos seus pro-
comércio –, desde 1995 a promoção dos fluxos jetos da Gran Colômbia. E com o início da fase
comerciais e de investimento e as compras de petrolífera nos anos de 1920, a prioridade em
petróleo da Venezuela vêm aumentando significa- política externa – para a Venezuela – sempre
tivamente, já superando, hoje, a Argentina entre os foram os Estados Unidos.
fornecedores latino-americanos. Os fluxos comer- Assim, uma das mudanças mais significativas
cias incrementaram-se entre 1988 e 1995 a uma taxa nas relações de cooperação Brasil-Venezuela tem
promédio interanual de 8,2%, registrando-se uma a ver com o lugar do Brasil na política externa
taxa interanual positiva para a Venezuela de 27,4% venezuelana: o país passou a ocupar um lugar
e, portanto, uma balança comercial positiva para estratégico no planejamento da política externa
este país (Cisneros et al., 1998, p. 9. Em contrapar- venezuelana. Essa inflexão foi operada na base
tida, faz parte da estratégia venezuelana atrair o das possibilidades que os projetos de integração
Brasil como sócio de investimentos na Corporação sul-americana ofereciam para a Venezuela. Em
Andina de Fomento (órgão financiador da Comu- que pese desconfianças iniciais de que uma apro-
nidade Andina de Nações). Nesse sentido, a Vene- ximação mais estreita com o Mercosul veria diluí-
zuela e o Brasil assinaram, durante o primeiro ano das as tentativas integracionistas da região andina,
do governo Lula, um acordo guarda-chuva que o Brasil conseguiu atrair a Venezuela para seus
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 73
projetos sul-americanos e com isso conseguiu uma como condicionante da interdependência global;
redefinição positiva nos planos da política externa d) a prévia integração da América do Sul como
venezuelana. condicionante da integração hemisférica; e) a per-
A diplomacia comercial venezuelana, seguin- cepção da nocividade da Alca, caso se estabeleça
sem os condicionantes anteriores e sem a recipro-
do uma política de continuidade iniciada na
cidade comercial efetiva; f) reservas ante o aspec-
segunda gestão de Rafael Caldera (1994-1998), des-
to militar do Plano Colômbia; g) o repúdio a qual-
locou seu interesse integracionista para a “fachada quer presença militar norte-americana e a seus
amazônica”, especialmente no que se refere ao vôos na Amazônia; h) a decisão de não privatizar
aprofundamento de seus vínculos comerciais, ener- o setor petrolífero (2001 p. 19).
géticos e políticos com o Brasil e com o Mercosul.
“Registre-se que o ex-Presidente Fernando Henri- Ressalta também Cervo que durante as admi-
que Cardoso acolheu e deu seguimento ao desejo nistrações Caldera, Chávez e Cardoso, de 1994 ao
de Chávez de mudar o olhar da elite venezuelana: presente, “o empenho pessoal dos chefes de
mirar o Cruzeiro do Sul e não a Estrela Polar” (Car- Estado foi o motor principal da cooperação que
ta Capital, 2003).9 engrandeceu nas esferas da ação política e eco-
Atualmente, o relacionamento entre Venezue- nômica” (2001, p. 21).
la e Brasil é favorecido pelo entusiasmo da admi- Um fato que sem dúvida reforçou o estoque
nistração Chávez de integrar o Mercosul com a de capital social acumulado entre ambos os países
Comunidade Andina, como reconhece abertamen- foi a atitude do Brasil na crise política venezuelana
te um documento oficial da chancelaria venezuela- durante os anos da administração Chávez, especial-
na, “especialmente pela significação estratégica do mente com a condenação do breve golpe de Estado
Brasil e pelas aspirações nacionais [da Venezuela] que derrubou Hugo Chávez em abril de 2002 (ainda
de ingressar no Mercosul” (Ministério de Relacio- no governo Fernando Henrique Cardoso). A pro-
nes Exteriores de Venezuela, 2005). Nesse sentido, posta do simbólico Grupo de Amigos da Venezuela,
seguindo a seqüência inaugurada por Bolívia e sob a iniciativa do governo, Lula buscava resguardar
Peru, a Venezuela transformou-se, durante a última uma política de Estado que tinha sido construída ao
Reunião de Cúpula do Mercosul (julho de 2004), longo de mais de duas décadas e na qual a política
no terceiro país da Comunidade Andina de Nações externa brasileira foi capaz de transformar três iden-
(CAN) a ser admitido como membro associado ao tidades negativas enraizadas na percepção das eli-
Mercosul. A opção preferencial da Venezuela pelo tes venezuelanas (expansionismo, desconfiança
Brasil foi muito bem resumida numa frase de con- diante dos planos de integração brasileira e uma
teúdo simbólico relevante do presidente venezue- visão periférica do Brasil na política externa vene-
lano, em que afirma: “os bons negócios a gente zuelana) em empreendimentos concretos e positi-
reserva para os amigos. O nosso amigo é o Brasil” vos de confiança nesses três aspectos.
(Carta Capital, 2003, p. 30). O caso venezuelano mostra que é possível
Comentando estas amplas coincidências construir estoques de confiança entre atores esta-
entre ambos países, Amado Luiz Cervo, resumiu tais em áreas nas quais ainda não existam. No
assim o relacionamento diplomático: entanto, o Brasil ter priorizado o processo de inte-
gração no Cone Sul na década de 1990 e o fato
Com efeito, em que pesem diferenças de estilo na de que as relações entre o Brasil e a Venezuela já
ação externa, nenhum outro país da América do Sul eram bastante cooperativas até o final da década de
apresenta relativamente ao Brasil, no início do
1980 tornaram os dois países convergentes a partir
milênio, tantas variáveis comuns na sua visão do
do governo de Rafael Caldera (1994-1998) e mais
mundo e em sua estratégia externa quanto a
plenamente a partir do governo de Hugo Chávez,
Venezuela. A convergência se estabelece em torno
dos seguintes parâmetros: a) o conceito de globa- empossado em 1999. Como foi possível que atin-
lização assimétrica como correção ao conceito de gissem esse ponto de cooperação, levando em
globalização benéfica; b) o conceito político e conta que, até o final dos anos de 1970, prevale-
estratégico da América do Sul; c) o reforço do ciam fortes percepções de desconfiança? Preten-
núcleo central robusto da economia nacional demos analisar esse resultado a partir de três ele-
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61
mentos: identidade, interesses encapsulados e por Ramos “é possível afirmar que a nova integra-
idéias compartilhadas. ção entre o Brasil e a Venezuela guarda em si duas
Quanto à identidade, deve ser destacado que mensagens: uma selecionada e uma secundária”
a diplomacia brasileira compreendeu bem, na sua (1995, pp. 103 e 105). Na mensagem selecionada
estratégia de aproximação com a Venezuela, os “o interesse venezuelano aparece com a possibili-
elementos que definem a identidade da política dade de se solucionar crises econômicas internas
externa venezuelana e a necessidade de tornar e de se diminuir a dependência e a dívida exter-
congruente essa identidade com a sua própria. Foi na” (Idem, ibidem). Na opção secundária, a inte-
isso que permitiu uma seqüência de movimentos gração venezuelana com o Brasil “reveste-se de
cooperativos que não foram, em nenhum momen- potencialidades desagregadoras, restos do reflexo
to, incompatíveis com os “interesses encapsulados”. do que teria representado o Brasil para as nações
Mas os estudiosos da política externa da Venezuela vizinhas durante determinados momentos da his-
destacam que ao longo dos últimos cinqüenta anos tória latino-americana: um país com pretensões
dois foram os elementos que caracterizaram a iden- hegemônicas” (Idem, ibidem). Em reciprocidade,
tidade da política externa venezuelana: a inserção como afirmado por um estudioso da história cul-
petrolífera internacional do país e a defesa da tural brasileira, a Venezuela responderia positiva-
democracia (Romero, 2002; Villa, 2004). mente “às aspirações legítimas do Brasil em ocu-
O Brasil conseguiu conciliar de maneira efi- par posição de influência no âmbito internacional
caz sua identidade de país em desenvolvimento e dadas as suas dimensões” (Mendible, 1995).
sul-americano com sua compreensão de que, Quanto às idéias compartilhadas, as estreitas
para a Venezuela, em qualquer tempo seria vital a relações bilaterais construídas entre a Venezuela e
defesa de uma política elevada dos preços de o Brasil durante a década de 1990 tiveram como
petróleo em razão de sua dependência fiscal a ponto de interseção a visão recíproca de a que
esse recurso. Foi assim que procedeu a diploma- estabilidade institucional democrática é “condição
cia brasileira em finais da década de 1970, o que essencial para o fortalecimento da integração
se manteve no governo de Chávez, que fez da regional” (“Comunicado de Brasília”, 2000, p. 128).
recuperação dos preços internacionais do petró- Essa visão é compatível com a segunda caracterís-
leo sua principal meta externa. Em contrapartida, tica da identidade da política externa venezuelana
o Brasil conseguiu obter importantes vantagens – defesa da democracia. Assim, os interesses foram
em termos de integração física, energética, comer- acompanhados por idéias compartilhadas, especifi-
cial e em termos de investimentos. Na administra- camente sobre a democratização do poder. Nesse
ção Chávez, a balança comercial, que era negativa sentido, a idéia do fortalecimento das instituições
em relação ao Brasil até finais da década de 1990, democráticas procura o duplo objetivo de um ins-
transformou-se em positiva, e empresas brasilei- titutional building democrático doméstico e de
ras, como as de cerveja e empreiteiras, fazem hoje um institutional building democrático regional.
investimentos importantes na Venezuela. Esse Um fator que reforçou a formação das con-
argumento demonstra que a confiança gerada pela vergências entre o Brasil e a Venezuela como
reciprocidade específica e positiva não é isenta da recurso de política externa foi o argumento da
procura de interesses que levem a ganhos mútuos. democratização do sistema internacional tão recor-
Em relação aos interesses encapsulados, é rente desde o final dos governos militares, o que
possível creditar o aumento da confiança da Vene- coincidia com os desejos de democratização inter-
zuela, com o Brasil e com o Mercosul, a compor- na. Consistente com sua identidade de país demo-
tamentos estratégicos “encapsulados”: a Venezuela crático, a Venezuela desde os anos de 1960 prega-
fez da diversificação das exportações em propor- va a doutrina Betancourt11 de não reconhecimento
ções equilibradas para diferentes mercados uma de governos autoritários, mas de governos eleitos
estratégia adequada, na medida em que tornou o mediante normas constitucionais e pela vontade
país menos dependente de um único mercado e, popular. Por outro lado, a democratização no
portanto, menos vulnerável às contingências de Brasil foi calibrada por decisores da política exter-
mercado dos Estados Unidos.10. Como sustentado na e por suas elites como um elemento domésti-
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 75
lo XX, atingindo o clímax nos governos militares da entre os dois parceiros regionais nem sempre invia-
década de 1960 e 1970. O Brasil e a Argentina dis- bilizou pontos de cooperação; além disso, um míni-
putam influência regional desde sua consolidação mo histórico de confiança foi emergindo, tendo
como Estados autônomos. A linguagem da balança como ponto de partida a fase final dos governos
de poder prevaleceu em disputas sobre territórios militares. Em 1979, Brasil, Argentina e Paraguai assi-
de 1825 até 1828 e na disputa pela influência sobre naram um acordo que finalizou mais de trinta anos
o nascente Estado do Uruguai de 1840 a 1950. O de disputa sobre a construção da usina de Itaipu.
Brasil ajudara na derrocada do ditador argentino Antes, em 1978, a Argentina e o Brasil tinham dado
Rosas em 1952 e, durante os anos do Barão do Rio mostras de cooperação militar ao disporem suas
Branco no comando do Ministério de Relações armadas à realização de exercícios conjuntos numa
Exteriores no Brasil, houve vários momentos de operação conhecida pelo nome de “Fraterno”.
tensão por causa do aumento do arsenal de armas Dando seqüência ao jogo cooperativo, em maio de
adquiridas por ambos os países. As percepções e 1980, o general Figueiredo visitou a Argentina,
as rivalidades foram alimentadas ainda mais duran- sendo o primeiro presidente a fazê-lo desde 1935.
te a Guerra do Chaco (1932-1935) pelas descon- Nesse encontro assinaram acordos sobre produção
fianças brasileiras sobre o papel argentino nesse conjunta de armamentos, além de cooperação e
conflito. Ainda, durante os anos dos governos mili- transferência de materiais nucleares. Em agosto
tares as desconfianças em torno das intenções geo- desse mesmo ano, o presidente militar argentino
políticas do Brasil em relação à Argentina chega- Jorge Videla retornou o gesto diplomático de
ram ao paroxismo com o projeto da construção da Figueiredo ao visitar Brasília. Nessa ocasião, sete
Usina do Itaipu no final dos anos de 1980.13 O acordos e protocolos nucleares foram assinados. A
resultado foi a construção de acervos de imagens cooperação foi ampliada em 1981, com a assinatu-
fortemente negativas entre ambos os países, nos ra de acordos adicionais entre a agência brasileira
quais se embutem plenas desconfianças sobre as (Nuclebrás) e a agência argentina nuclear (Narc).
intenções geopolíticas recíprocas. Outro passo significativo de aproximação deu-se
Apesar das imagens negativas e das descon- certamente durante a Guerra das Malvinas, quando
fianças sobre as intenções regionais brasileiras, o Brasil apoiou as reivindicações argentinas, inclu-
quando se observam os campos em que tem exis- sive fornecendo aviões durante o desenvolvimento
tido mais convergência nos últimos vinte anos, é do conflito bélico entre a Argentina e a Inglaterra.
surpreendente apontar que, no início do novo milê- Essa primeira fase de aproximação foi
nio, a maior cooperação entre esses países residem importante porque permitiu aos decisions makers
em matérias como desarmamento nuclear e coope- perceberem qual era o limite do conflito entre
ração militar. O caso das relações entre o Brasil e a ambos os países e que a concorrência regional na
Argentina sobre as políticas nucleares questionam a Bacia do Prata, embora historicamente legítima,
assertiva neo-realista de que os Estados não renun- era compatível com a cooperação em temas sen-
ciam nunca às capacidades militares ofensivas síveis como segurança e desenvolvimento de
(Mearsheimer, 2001). Vale lembrar “que a política armamento nuclear. De sua parte, o governo bra-
nuclear de cada país tinha por inspiração a conso- sileiro percebeu que as imagens geradas por sua
lidação do poder de cada um e o conseqüente intelligentzia geopolítica nos anos do regime
aumento de sua segurança” (Vargas, 1997, p. 45). militar tinham sido contraproducentes, pois gera-
Como foi possível transformar a linguagem e o his- vam temores e desconfianças com seu principal
tórico de relações que tanto frisaram o poder regio- concorrente sul-americano, e que era necessário,
nal militar no sentido de gerar capital social e con- portanto, desconstruir tal imaginário: “Falar da
fiança entre dois países no que diz respeito a temas emergência do Brasil como uma grande potência
tão sensíveis e perpassados historicamente pela e da geopolítica de Golbery havia servido para
construção de identidades negativas e pressupos- aumentar os temores hispano-americanos” (Hurrel,
tos de intenções geopolíticas? 1998, p. 237).
Como argumento inicial pode-se sustentar Nos anos da redemocratização, com os gover-
que a existência de imagens externas negativas nos de Alfonsin e Sarney, as interações cooperativas
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 77
relevantes à cooperação, já que vez por outra são tava outro lugar que não a fronteira sul com a
recuperados de seus acervos e mobilizados como Argentina. Nesse aspecto, a Argentina fez um mo-
recursos de política externa. vimento seqüencial de reciprocidade em relação
Todavia, em que pesem as diferenças nas ao Brasil, abandonando a concepção geopolítica
políticas externas do Brasil e da Argentina duran- de “fronteiras vazias”, pela qual políticas de po-
te a era Menem, a idéia de integração regional, voamento, de valorização econômica e de cons-
com pressupostos democráticos, pode ter sido um trução de infra-estrutura para transporte rodoviá-
poderoso ponto focal para objetivos cooperativos rio foram descuidadas nas fronteiras com o Brasil,
em comum e que permitiu a continuidade e o como parte dos temores à geopolítica de expan-
aprofundamento de empreendimentos cooperati- são brasileira. Hoje, tal política foi revista pela
vos em áreas sensíveis como segurança e desar- Argentina em conseqüência do processo de inte-
mamento. Assim, durante o governo Collor (1990- gração física estimulada pelo Mercosul.
1991), esses dois países assinaram, em 1990, a Acentuando as dinâmicas cooperativas, que
Declaração de Guadalajara, ou Declaração sobre tiveram como marco os tratados do Mercosul, im-
Uso Exclusivamente Pacífico de Energia Nuclear. plementaram-se as chamadas Medidas de Incre-
Essa declaração estabeleceu as bases para a cria- mento de Confiança (MIC). Tais medidas englobam
ção da Agência Brasileira-Argentina de Contabi- simpósios entre os Estados maiores das forças ar-
lidade e Controle (ABACC). Os dois países avan- madas de ambos os países, os exercícios conjuntos
çariam um pouco mais nos compromissos de não entre as armadas dos países do Mercosul, a imple-
proliferação ao assinarem um acordo mais amplo, mentação do Programa de Cooperação e Integra-
em dezembro de 1991, o Acordo Quadripartite, ção Aeronáutica Argentino-Brasileiro e o Programa
entre Brasil, Argentina e a Agência Internacional de de Co-Desenvolvimento do avião CBA-123 entre a
Energia Atômica (AIEA) e a ABACC, para a criação empresa aérea brasileira Embraer e a argentina
de um sistema de monitoramento e salvaguarda Fama (Giaccone, 1994). A assinatura, em abril de
nucleares. Juntamente com os esforços de institu- 1996, de um acordo mais amplo sobre cooperação
cionalização do Mercosul pelo Tratado de nuclear e pesquisa espacial, assim como a assinatu-
Assunção de 1991, ainda durante o Collor o Brasil ra do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP)
deu um passo importante para esse incremento de pelo Brasil em 1988 (a Argentina já havia assinado
confiança quando encerrou suas pretensões de esse tratado em 1995) completam a escalada coo-
desenvolver armas nucleares, simbolizando essa perativa em termos de segurança e controle de
opção estratégica na clausura do campo de testes armamentos.
da Serra do Cachimbo. Esses acordos firmaram as Como essa projeção positiva poderia ser
bases para a completa implementação do Tratado de explicada a partir de uma perspectiva de capital
Tlatelolco, de controle de armas nucleares no conti- social? A nosso ver, três fatores são cruciais a esse
nente americano, assim como para o Acordo de respeito: 1) o papel das idéias compartilhadas e
Mendoça de setembro de 1991, do qual participou do auto-interesse; 2) o histórico de reciprocidade
também o Chile, incluindo o controle de armas quí- específica positiva; e, 3) a criação de normas de
micas e biológicas. transparência e monitoramento, que geraram um
Ainda na década de 1990, aprofundaram-se sistema de princípios de autogovernança e con-
as ações em matéria de segurança e desarma- fiança, institucionalizados em mecanismos de con-
mento, aumentando os níveis de confiança entre fidence buiding.
Brasil e Argentina, além de sinalizar uma diminui- O primeiro fator sugere o impacto da visão
ção das suspeitas que, em matéria de geopolítica, compartilhada da democracia como valor global
haviam alimentado ambos os países durante o entre a Argentina e o Brasil. Nesse nível sistêmi-
regime militar. Em meados dessa década, o Brasil co, as visões brasileira e argentina eram consisten-
deslocou contingentes completos de tropas da tes com a de suas elites governantes. Como trans-
fronteira sul em direção à fronteira norte na parece o discurso diplomático de um de seus
Amazônia num claro sinal de que para as elites formuladores, essas coincidências são plenamente
militares e políticas brasileiras a ameaça represen- coerentes com “os valores que se difundem e se
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 79
rência ideológica com os valores políticos ociden- significa que devamos ter como pressuposto a
tais e certa margem de autonomia ante os Estados existência de condições para a sua geração. Esse
Unidos, ao mesmo tempo em que sinalizava para parece ser o maior ponto de vulnerabilidade na
os vizinhos sul-americanos a mesma possibilidade política externa brasileira, que tem por base a con-
de escolha sem que houvesse uma idéia rígida de solidação institucional democrática na América do
democracia globalizada, como sugerem os teóri- Sul. A fragilidade da implementação de uma agen-
cos do “fim das ideologias”. Em segundo lugar, da democrática no continente, visando a fortalecer
possibilitou esclarecer, para as elites brasileiras, a o projeto de integração regional e a confiança
natureza política das condições político-institucio- mútua, não decorre tanto de sua capacidade de
nais nas quais é possível procurar interesses polí- ação e iniciativa política – esta, existe de fato,
ticos e econômicos regionais de maneira mais efi- como mostraram as atuações da política externa
ciente, e a um só tempo ser ideologicamente desde o golpe de Fujimori no Peru, em 1992, até
coerente com a normatividade liberal global, isto as crises políticas na Bolívia em 2003 e 2005. A
é, sem grandes lacunas entre a economia liberal e principal limitação parece recair sobre as condi-
a natureza do sistema político doméstico.18 ções políticas em que se desenvolvem as demo-
cracias regionais ou democracias delegativas,
como tem sido chamada por alguns autores.19 O
Considerações finais baixo grau da continuidade e da institucionaliza-
ção das chamadas regras do jogo em vários países
O que têm em comum os casos estudados? da região, em especial no conjunto dos países da
Compartem a importância do reconhecimento de Comunidade Andina, impossibilita um mínimo de
que o auto-interesse é compatível com a satisfação congruência entre a racionalidade formal (expri-
recíproca, o que sugere que a construção de capi- mida juridicamente em constituições, cláusulas ou
tal social entre Estados é mais do que um jogo ra- decretos) e a prática efetiva da democracia.
cionalista de soma-zero, permitindo, por sua vez, a Também as identidades negativas do passa-
desconstrução de imagens negativas. Outro ponto do são um grande obstáculo à implementação de
comum constitui um aspecto significativo ignorado uma agenda democrática para a América do Sul.
pelas teorias de relações internacionais means- Em que pesem os esforços brasileiros por melho-
tream: a geração de confiança entre atores estatais rar sua imagem, e mesmo sustentando a necessi-
é possível a despeito da natureza anárquica do sis- dade do princípio de não intervenção, exemplos
tema internacional. E, finalmente, os casos analisa- mais recentes, como o caso boliviano,20 mostram
dos mostram que há duas condições para gerar a que as elites desses países continuam muito sen-
confiança: 1) histórico de reciprocidade positiva; e síveis a discursos e imagens do passado sobre as
2) compartilhamento de visões de mundo normati- intenções expansionistas do Brasil. Em outras
vas cooperativas, pois, caso contrário, na hipótese palavras, o discurso da democratização da região
da partilha de visões negativas, a geração de con- e da estabilidade das regras constitucionais veicu-
fiança seria uma meta muito difícil de ser atingida. lado pela política externa brasileira ainda não
Entre as visões normativas compartilhadas nos dois resolve satisfatoriamente o problema das inten-
casos, a possibilidade da agenda democrática como ções reais da política externa brasileira nas per-
recurso de política externa configurou-se como a cepções de alguns de seus vizinhos.
principal alternativa. Nesse ponto, o discurso de- Também é verdade que não é suficiente
mocrático da política externa brasileira tem sido o que o caminho democrático esteja institucionali-
mais importante recurso para a transformação das zado em cada país. Um importante requisito é
desconfianças em confiança dos países sul-ameri- que as metas prescritas devem contar com “a
canos em relação ao Brasil. existência de um conjunto de crenças comparti-
É viável pensar a agenda democrática em lhadas” (Goldstein e Keohane, 1993) sobre as
termos de geração de capital social positivo? A qualidades sem par do mapa que serve de guia
afirmação de vantagens na implementação de às ações.21 Essas crenças podem estar emergindo,
uma agenda democrática na América do Sul não porém temos elementos empíricos para sustentar
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA 83
tal hipótese? Em primeiro lugar, as relações bila- recurso de poder soft na América do Sul, uma vez
terais cooperativas com a Venezuela, que datam que a região é definida como um dos elementos
de bem antes da chegada de Chávez ao poder, formadores da identidade externa brasileira. Certa-
mostram que é possível construir uma relação de mente, a tradição normativa, independentemente
confiança se as relações cooperativas tiverem de ser o certificado de “grociano” o mais adequado
continuidade em ações concretas. Em segundo, a para expressar o conteúdo doutrinário pelo qual se
ação coletiva sugere um mínimo de esforço de baliza a ação externa, tem sido aproveitada bastan-
coordenação. Nesse sentido, no que diz respeito te bem para desenvolver esse papel. O apelo à tra-
ao Brasil, se as cúpulas sugerem algum tipo de dição normativa ou doutrinária grociana cumpre
ação coletiva substantiva, a Reunião de razoavelmente a função de satisfazer o público
Presidentes da América do Sul de setembro de interno, caso a opinião pública não compreenda
2000, realizada em Brasília, destacou a democra- qual é o lugar do interesse nacional na ação exter-
cia representativa como “fundamento da legitimi- na em curso, como é comum acontecer no exercí-
dade dos sistemas políticos” e uma interconexão cio de agendas externas baseadas em princípios.
entre “paz, estabilidade e desenvolvimento da Também as razões explicitadas pela matriz norma-
região” (“Comunicado de Brasília”, 2000, p. 128). tiva satisfazem um público externo, que aceita com
Embora possamos reconhecer que tais parâ- menos resistência a idéia da exportação da estabili-
metros empíricos sejam ainda uma evidência fraca dade democrática como um bem público regional,
para responder ao problema da ação coletiva em contraste com a do imperialismo brasileiro, cuja
baseada em idéias compartilhadas, existe pelo imagem esteve tão enraizada nos vizinhos sul-ame-
menos um elemento importante a ser destacado: ricanos durante quase todo o regime militar.
“a teoria das relações internacionais sugere ser Uma vantagem considerável dos formulado-
necessário um acordo básico entre atores para res da política externa brasileira para os objetivos
levar uma política à frente ou existência de um da consolidação da agenda democrática é a bem-
ator com suficiente capacidade de alavancagem” sucedida transição democrática no país, que teve
(Vigevani, 2000, p. 3). A maior capacidade do seu ponto alto na passagem do governo de
Brasil em termos regionais não é só um dado geo- Fernando Henrique Cardoso para o de Luis Inácio
gráfico, é também um dado político. Daí sua Lula da Silva. Essa exitosa transição pode ser ope-
maior capacidade de alavancar visões de mundo racionalizada como recurso de ação externa, isto
que, de outra maneira, seriam percebidas pelos é, como modelo a ser seguido por alguns países
atores regionais como um bem público regional da região e que certamente aumenta a potenciali-
em construção, capaz de gerar confiança entre dade de credibilidade sobre suas intenções não
Estados na base de expectativas recíprocas sobre predatórias, mas sim benéficas da política externa
as vantagens da democratização regional como brasileira.
elemento-chave do relacionamento diplomático.
No entanto, deve-se ter cautela quanto a hipó-
teses que tratem a precondição democrática como
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o objetivo final da política externa brasileira na
região sul-americana. Talvez a melhor síntese dessa
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hipótese de ameaça de ruptura da ordem demo- 16 A nosso ver, Oliveiros Ferreira tem razão quando
crática na América do Sul”. afirma que “essa [relação entre liderança e hege-
monia] possivelmente nem acadêmica seja; diplo-
6 Segundo pesquisa do Núcleo de Pesquisas de
maticamente coloca os governos vizinhos em situa-
Relações Internacionais da USP (Nupri), que trata
ção embaraçosa, pois devem chamar seus PhD
da percepção das elites brasileiras sobre o Mercosul
para lhes explicarem qual é a diferença entre um
e sobre a política externa brasileira, mais de 57%
país considerar-se líder (“alguma liderança”) mas
das elites acreditam que “a atuação externa do não querer que o vejam como pretendendo ser
Brasil [especialmente na América do Sul] visa garan- hegemônico. Gramsci talvez sirva como tema de
tir a prosperidade interna” (Albuquerque, 1997). teses acadêmicas, mas não seguramente para
7 A administração Chávez tem retomado a idéia com cimentar ações diplomáticas” (2001, p. 39).
o nome de Petrosul. 17 A perspectiva de liberalismo qualificado adotada
8 O conceito de “fronteiras de cooperação” é atri- significa que tanto os valores como a organização
buído por Celso Lafer ao embaixador Luiz Felipe institucional de sociedades democráticas não preci-
de Seixas Correia. sam se ajustar rigidamente ao modelo dos Estados
Unidos ou da Europa Ocidental. Existem variações
9 Segundo a fonte, até 2002 a Venezuela representa- possíveis de organização institucional que expres-
va US$ 1,5 bilhão (ou seja 6% do comércio vene- sam gradações de funcionamento da democracia
zuelano), muito pouco comparado com a liberal em correspondência com as especificidades
Argentina, com quem mantém um volume de negó- nacionais ou regionais.
cios de US$ 9 bilhões (Carta Capital, 2003, p. 30).
18 De acordo com a pesquisa do Núcleo de Pesquisas
10 Por outro lado, tendo em conta a possibilidade em Relações Internacionais da USP (Nupri), o pen-
desse interesse, é possível interpretar dessa manei- samento das elites consultadas é de que a lideran-
ra a intensa atividade diplomática que vem ocor- ça regional é plenamente congruente com a convi-
rendo desde de 2001 em relação à China, que vência pacífica com seus vizinhos sul-americanos.
incluiu a reciprocidade de visitas de Chávez e Jian Se 92,3% das elites enxergam o Brasil como uma
Zeming, assim como a assinatura de um “Plano liderança regional, quase o mesmo percentual
estratégico energético China-Venezuela, 2001-2011 (91,6%) acredita que o país “busca cooperar para
para o fornecimento de energia a esse país e com uma convivência pacífica” (Albuquerque, 1997).
vistas a incursionar no restante do mercado asiáti-
19 Guillermo O’Donnell denominou “democracia
co” (cf. Ministerio de Relaciones Exteriores, 2002).
delegativa” aquela que corresponde a um modelo
11 Assim chamada em referência a seu formulador, mais realista de democracia: baixa definição e ins-
Rómulo Betancourt, primeiro presidente da era titucionalização das práticas democráticas e pouca
democrática venezuelana, iniciada em 1959. transparência no exercício das regras do jogo elei-
toral. Outro elemento notável desse arranjo
12 Essa imagem do Brasil é bastante incompatível democrático é o mito de que o presidente, uma
com o pensamento das elites brasileiras. De acor- vez eleito pela maioria, pode agir de qualquer
do com a pesquisa do Núcleo de Estudos em maneira, bastando para isso invocar e relembrar o
Relações Internacionais da USP (Nupri), 91% das percentual de votos que recebera. Também fazem
elites entrevistadas discordaram da afirmação de parte desse modelo real a ausência de um meca-
que o “Brasil pretende exercer hegemonia” na nismo vertical e horizontal (entre os poderes públi-
América do Sul. (Albuquerque, 1997). cos) de accountability e a definição unilateral da
13 Na visão conspiratória de militares argentinos não agenda por parte do presidente da República e
era incomum escutar que os brasileiros estavam seus principais assessores, sem levar em conta a
construindo a usina com propósitos de no futuro voz de grupos de interesses e de outros segmentos
usá-la, muito provavelmente, como uma bomba de públicos, como partidos e o Congresso. Além dis-
água (cf. Shiguenoli, 1999). so, temos as constantes acusações trocadas entre o
presidente e o Congresso sobre quem é responsá-
14 Ver páginas iniciais deste artigo. vel por determinada crise. O produto da soma des-
15 O conceito de autogovernança e monitoramento é ses elementos políticos é uma imensa solidão no
de Locke (2003, p. 261). poder por parte do presidente da República, o
que pode se transformar em vazio de poder,
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