dias. Eu ainda não passo de uma criança assustada sem saber no que acreditar além do sentimento sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Pouco ouço a respeito das razões que a teriam levado àquele ato. Levantei. É quase de manhã mas não há indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e dos indecisos passos no corredor. Terá ela voltado às aulas, imagino. Provavelmente já tenha algum trabalho de tradução. Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão torna-se mais vívida e suportável embora não menos densa, porque é aí que estamos, quando a realidade se destaca do pavor. As flores lentamente tornam-se visíveis, o aroma delas a atmosfera respirada. São as flores que ladeavam o caminho pelo qual passáramos naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu respondo com um sorriso indulgente. Demorei? A mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a não ser pelas veiazinhas azuis.
Imerso no mesmo silêncio com
que com ela sonhara, agora porém continua ali, filha de meu sonho e a mais pulsante parte da vigília. Uma fronteira sem o menor sentido. O saber de Ana era o meu. O que adquirira ao longo da vida, me passava. A divisão entre nossos apartamentos perdera igualmente a razão de ser quando voltamos da caminhada, quase ao meio-dia. Um brilho inexorável dos corpos sob as camisas finas.
Sua biografia está em seus
lábios, a suscetibilidade na ponta de sua língua e o universo recluso no corpo de seus dedos, entre palavras cuidadosamente inauditas. Como esperar que a luz seja estável em seu movimento, se você num momento vai ao encontro dela e noutro retira-se no sentido contrário? E todavia é o mesmo movimento e a mesma luz. Porque a luz não depende dessa sucção ou desse polimento.
Posso por isso decifrar o
mistério desse muro erguido do nada, sei o segredo, está aqui, na magia de nosso contato, mas justamente por isso estou inquieto com a forma como o contorno de Ana se torna fosco e a aura das flores imerge num denso nevoeiro. Ela se evade e eu não consigo pensar o que devo nem dizer a palavra. Ana, flor de luz pela qual reduzi minha vida a uma escravidão, não pode partir assim e me deixar órfão outra vez.
Mas caso o faça, pergunta-me em
meio à sua energia que me acelera, ainda assim insistirei nesse pensamento que foi nosso? Ana, Ana, ouvi minha alma lacerada na despedida. O universo do espaço e tempo deformáveis se expandia em busca ou talvez em fuga da noite, que se transformaria em realidade no apartamento vizinho.
De joelhos deveria estar eu, Ana,
santa, pura, inocente. Esses dedos deveriam ser os meus, a retirar santidade do ícone. Essa boca deveria ser a minha, a buscar as gotas entre os bancos do templo espargida. E engolir o poder eterno desse desvio para o azul.
Um olho mágico cruel. Seus pais
chegaram agora da rua. Continuam naturalmente arrasados. Quem dera eu lhe pudesse dar algum consolo desse que ela própria me deu. Soube que havia muitos amigos na igreja mas nunca onde foram jogadas as cinzas. Também, não faria a menor diferença.
Depois Da Despedida
Lentamente. Os movimentos não
devem denunciá-la. Olhos grandes, atentos: uma coruja num momento e uma aranha no seguinte. Entrou no prédio. A necessidade é mais convicta que a coragem. Experimenta a porta. Dentro do quarto. O bonito banheiro ainda bagunçado. Precisava mesmo desse banho. Um luzeiro se torna visível sob o chuveiro em pequeninos pontos brilhantes. Ah. O tempo é breve mas pode ser longo na privação. O círculo arde dourado no horizonte aonde ela precisa se caminhar. Sonhos contém não raro anelos alheios. Todo mundo conhece o que passou apenas até certo ponto de segurança. Inconscientemente decerto vigia pois suas lembranças. Um olhar atento e perplexo. Não sabe o que esperar dessa cidade. Não sabe o que esperar do mundo. A luz se retirou antes do combinado com os ramos e jardins. Mas as folhas sabem como reagir, uma translúcida, outra gotejante. Sentada assim, desenha um sonho em roupas leves com uma mochila azul serena como aqueles que se resignam, desenhando no ar um esboço de ânimo.
Um vento de gotículas geladas sobre
a face desperta do desejo. Não há novidade alguma no toque ou como escorre. O esboço do medo é também conhecido. Não pode teme- lo, tem de aceitá-lo como a chuva, a rua, o amor que partiu e o que jamais chegou. Que céu é esse, enfim o paraíso da melancolia? Não ouve as vozes daquela distância, mas as sabe. De todos os lados a oprimem, fecham-se sobre ela. Esse vento sombrio a manipulam da mesmíssima forma que modifica os recortes das árvores. Uma ave. Um homem limpando calado a vidraça. Um motor ao longe. Balança as pernas no abismo, dos sons impessoais não tenho medo. As luzes destacam-se na noite que resiste, nas janelas, nos postes, nos cafés, resistentes. De olhos fechados a escuridão é outra e outra as luzes, entretanto mantém o fôlego dela, porque a alma das coisas depende sempre de cada alma em particular e as reações nucleares universais se interligam inevitavelmente com a leveza da vida ao nosso redor. Sim, esse tanto de ar ela o inspirou. Era bom ter relevância num espaço infinito, embora também assustador.
A cidade mais e mais e define. Essa é
a rua em que o encontrou. Quando passaram diante daquela casa ela pensou que ele a fosse beijar. Naquele café falaram de si mesmos e houve a fagulha, semelhante a um fósforo que se acende sem qualquer atrito, no calor de um outro. Ela definitivamente acreditou. Alguma coisa aconteceu. Coisas pequenas determinam os acontecimentos, as grandiosas não passam jamais de teorias. Um pequeno sorriso mostrou a atração que ele sentiu, um olhar delicado insinuou que era mais que isso, o toque dos lábios selou o futuro. Não fazia parte do futuro entrar sorrateiramente na casa dele para tomar um banho e dormir um pouco. Quando se inclina parece estar escutando a mesma voz das promessas. Bobagem. É só um pardal na areia, que à noite saberá para onde ir. Ela não, ali está, plantada, como uma estátua que ganha de Deus súbitos sopros de vida. De Deus, gostaria de pensar. Mas não faz a menor idéia. Sabe que é vida ainda, que quando ele disse adeus feriu seu coração, mas não de morte, e que toda a treva que se fez não tocou a menor partícula das luzes exteriores. Mais não sabe. Por favor, Senhor, mostra-me um caminho. Dá um significado para o canto da existência. Ou pelo menos, a certeza da próxima refeição e um teto à noite sob o qual eu possa voltar a sonhar.
O sonho
Pode-se dizer que Juliana é feliz,
feliz como não se costuma ser nessa idade. Dezessete anos. Antes do amanhecer está pronta para mais um dia a partir do jardim de sua casa – um cotidiano, se sempre igual, jamais monótono: fala com as flores, sorrindo sempre; caminha entre as árvores do quintal; sonha desperta, lembrando os sonhos que a noite e o sono lhe trouxeram. O sonho. Na verdade o mesmo, pontualmente apresentado assim que adormece e, quando acorda, mantendo-se a força que a conduz durante o dia. Na escola, próximo o crepúsculo, esqueceu de todo a mesquinhez humana e já não liga para a frivolidade social que suportou no trabalho pela manhã. No ônibus de volta para casa, passando pela janela o brilho dos vidros nos prédios, prepara o espírito em oração, grata por estar às portas daquele outro mundo que se abririam após o jantar. Seus pais se preocupam com ela, pobrezinha, seus pais se preocupam. – Estou bem, queridos. Sou tão feliz... Mas não a escutam, entranhados de normalidade. Uma moça sadia precisa ter amigos e sair à noite nos finais de semana e se divertir e ter um namorado. Um namorado. Um rapaz de boa família. Um bom partido. Logo o casamento, os netos. Nada disso faz sentido para ela mas sim o vestir da camisola, deitar-se e adormecer. Seus olhos se fecham e eis que se abrem. Feições sobre o travesseiro abrandadas. As gargantas levam ao túnel de pedra no fim do qual dos passos se aproxima a luz. A bem- aventurança de uma outra era, silenciosa cúmplice do encontro à beira do lago cristalino. Ele– o rapaz do olhar perfeito – a espera todas as noites (ali dia esplendoroso), longínquas agora, estagnadas no quarto onde ela adormeceu. A terra do sonho, a terra da vida, onde anjos a deixavam e retornavam às estrelas. Silêncio. Os olhares se cumprimentam, regozijantes de ternura. A luz refulge na relva, as mãos se encontram, eloqüentes; a brisa sussurra entre as flores. A mulher grita.O que? Não foi trabalhar? Larga o fone e corre ao quarto da filha. O corpo quieto ainda ocupa a cama, o dia alto entra pelas frestas da cortina. Nos lábios de Juliana, um sorriso. Ó meu Deus! Por quê? Por quê? Minha filhinha, minha filhinha querida, tão cheia de vida!... Por quê? Por que, meu Deus? Chorai sim vós que tendes por santuário o razoável e por afeto o sangue e sãs as virtudes transitórias. Ele aproxima-se e toca-lhe o rosto. Você veio. Enfim. Como foi difícil suportar a espera! Eram seus os traços de meu reflexo nas nascentes. Perdoe-me: temi que se integrasse e não viesse mais. Talvez tudo (temi tantas vezes) – disse ela – não passasse de um sonho que a morte dissiparia. Tudo não passou de um sonho que a morte dissipou. A música do regato soa qual oboé. s olhos carregam um brilho transcendental de dimensões. Sentem o calor um do outro e o peso desse abraço. Tudo não passou de um sonho: agora estão livres para sempre. Geraçõe A outra
Um balneário. Num verão de
minha juventude, ali conheci Milena. Espraiada ao sol. Me detive toda a manhã na sua contemplação, agora estou confiante para a abordagem que procuro equilibrar entre a malicia e a delicadeza, julgando que as mulheres são fascinadas por extremos opostos convivendo num mesmo homem. Era um anjo, Milena. Encantadora à primeira vista, sedutora, digna de amor ao falar – e assim me senti feliz de ter aceito o convite de meu primo, que normalmente deveria recusar, para passar o verão naquela praia. Milena me enfeitiçara. A principio queria estar a seu lado à noite; logo, pelo resto de meus dias. Em redor dela muitos rapazes, alguns esperando uma chance, a maioria simplesmente, através do olhar, gozando de seu corpo. Mantenho uma distância calculada. Porque seus amigos estavam distanciados dela pela própria proximidade, afastados de seu amor pela amizade. Em vantagem, olho-a de longe. Quando em vez, seu olhar se cruza com o meu. As primeiras noites. Pensando nela. O contorno de luz a delineia num talhe de mar. Para sempre hei de lembrar, no melhor recôndito de mim, nosso primeiro contato. Sua meiguice irá se render à luxúria, a sinceridade da resistência contra os humores primaveris sob o sol. Há reflexos de crepúsculo no oceano quando lhe declaro o meu amor. Era tudo o que desejei embora nem o soubesse. Eu decidira passar o resto de minhas férias na praia, caótica exceto presença de Milena, quando ela foi acometida de uma doença rara. Mal o soube, soube também que a família a levara para os Estados Unidos a fim de que se tratasse. Nas sombras que se fizeram, minha vida perdeu a razão de ser. Seis meses no Exterior e, apesar da debilidade física, sua lucidez não foi alterada. Nos correspondemos com cartas diárias. Ela escrevia de um modo objetivo, lógico, duro, terno. Parecia muitas vezes estar me preparando para o pior, talvez a si mesma. Mas era sempre elegante e engraçada. Pensei que aquelas cartas eram como a festa da preparação de um túmulo. Milagrosamente porém, começa a se recuperar. Suas cartas seguintes ao diagnóstico que a colocava fora de perigo são a brisa alegre que sopra a poeira da morbidez, embora eu até já estivesse acostumado e deva dizer que aquele raio de otimismo tinha um quê constrangedor. Tudo está enfim em seus devidos lugares, a não ser por alguns trechos grosseiros nas últimas mensagens que recebi, aqui pornográficos, ali blasfemos. Algumas vezes pensei que mal a conhecia e não fazia sentido cotejar esses textos com as lembranças, pois essas eram minhas e aqueles sim eram ela. Voltou. A alegria de vê-la saudável será transtornada quando nos amarmos após o retorno. Está estranhamente agressiva, provoca sangue e gritos de dor. Não gosto disso, amor. – E do que você gosta? À pergunta, sucede-se uma série inimaginável de jeitos. Em seus olhos não mais reconheço os olhos de Milena. Não cheguei a pensar que jamais olhara tão atentamente assim para seus olhos para chegar a reconhece-los ou não. A noite passou. A luz que incidia pela janela do quarto iluminava minha Milena. Um pesadelo, pensei. Minha imaginação. Talvez algum tipo de síndrome. Um especialista dirá. Isso pensei na aurora. Mas ao quando fizemos amor como sempre outrora, esqueci tal desígnio.
Dias depois. Os pais dela em
minha porta. Não está aqui? Procuramos por todos os lugares em que costumava ir. Encontrei-a num barzinho saindo pela porta dos fundos com dois rapazinhos, uns dez anos mais novos que ela. Mas perdi-a e só tornei a saber dela na portaria de um hotel. Havia subido para o quarto com os meninos. Que quarto? 15, senhor. – E você permitiu? Pensei que eram irmãos, disse-me o porteiro, e ela é maior de idade. Ela não estava com eles quando em seguida desceram. A cara deles... Antes de subir, liguei para os pais. A porta estava entreaberta. Ela sorria e não acordou quando a tomei nos braços. Em casa, depositei-a em minha cama. Ela continuava sorrindo, um sono solto e suava. Nada parecia errada, exceto talvez pelo ar demasiado cansado, como alguém que lutou ao longo de horas contra um adversário mais forte. Sentei-me na poltrona a seu lado e acabei adormecendo também. Acordei assustado. Ela me sacudia. Seu rosto exaurido possuía a pureza dos anjos. Ela não se lembrava do que aconteceu, pelo menos nada falou a respeito, e não me atrevi a contar. Ela não acreditaria. Durante segundos eternos agonizei a seu lado. Anoiteceu e a cidade parece distante lá embaixo. Pedi que os pais dela passassem aqui, devem estar chegando. Silêncio. A mariposa bate na lâmpada. Milena, liberta, está despertando do novo sono. Tem um sorriso nos lábios.
Feixes de luz sempre voltam ao lugar
de origem
A voz mais e mais baixa. Os passos
mais lentos. Um ser que se define. O rosto na vidraça do café tem ainda a expressão de quem sonha. O que a senhorita deseja? Agora, na luz do vidro, cabelos muito negros. Brilham. Ela olha a garçonete com respostas que não pode lhe dar. Logo a xícara aquecerá as mãos em concha. Depois o pescoço que se estica e pende, o olhar é ansioso outra vez. Bom assim. Melhor que o vazio da falsa serenidade. Mas ao outro vazio, na entrada, segue-se a lembrança e seus olhos não estão mais ali. Bibelôs na cabeceira onde devia haver um relógio. Melhor assim. Bons tempos. Quando as coisas retornam ao lugar a que se adequaram? Ou jamais? Pelo menos jamais como um dia de infância. Então jamais. Pois se o tempo não volta, feixes de luz que se reencontram.
Não sabe de que valerá abonar-se
com isso – a cabeceira perdida no tempo. Nem precisa. Nunca precisou de motivo para qualquer coisa. Então, deixa a menininha no passado, deixa-a lá e aparece diante de seu armário, falando ao celular, a outra mão pelos cabides. Rosas a maioria. Ama a beleza simples de um toque de mocinha no quarto, a nuance adolescente que ela hoje desconhece. Felicidade é uma meta legítima de vida? E o que era aquele êxtase da menina? Enfim, ei-la aqui, diante das roupas, combinando a saída. Diante do espelho cujo papel no dia seguinte será feito pela vidraça do café. Ela. Refletida. Com o mesmo significado de todo reflexo, reproduzir sem ser. O armário que se fecha, o reflexo desaparecido. Quando muito, um vestido escolhido. O rapaz era apenas a companhia para a saída. Nada sabe dele nem haverá de querer saber amanhã. Viva quanto viver, sempre será assim? A voz ainda possuía quando o encontrou alguma firmeza, chegou a dar uma corridinha quando o viu ali parado. Nu trecho do caminho para casa, um local mais escondido, e ele dá vazão ao desejo. Embora mútuo, a impressão seria de que ele de algum modo a ofendeu. Mas não. Ainda quis conversar um pouco, falar sobre os motivos dela, aquela que não tinha motivos. Ela nem imaginaria um rapaz tão bondoso. Por isso chorou. Outra caminhada solitária passando por casais apaixonados, outro café abrindo ou que ainda não fechou, pensando no amor de sua vida. No parque
As aves cujo canto lembra um
mantra são as de que Carolin mais gosta. Como o Bem-te-vi. Elas lhe evocam concentração, disciplina, paciência – virtudes que, tão dispersa, persegue. Essa que chilreia agora ela não conhece, mas assim que ouviu não gostou. Uma sonoridade sinuosa, sofisticada, em busca de novas oitavas, procura seu máximo e não usufrui do que seu mínimo já conseguiu. Só partilha uma glória infrutífera. Sabe que sua veleidade não muda o mundo, mas sente que precisa assim se posicionar. O mundo está tão errado porque todos são iguais, gostam do que é facilmente apreciável, do que exige pouco do próprio gosto. Está com Elisuki, sempre está com ela, porque de algum mundo há um outro mundo quando estão juntas, há uma aspiração de vida melhor e mais árdua. O sol se põe no céu próximo, onde é impedido o acesso da normalidade, das pessoas sensatas, dos diplomas formidáveis, da multidão que venera mais que o amor o que se tem a dizer sobre o amor e mais que a sabedoria o currículo. Azar deles, pensa Carolin. Elisuki hoje está calada, não quer mais falar sobre esse assunto desgastante. Ademais, não tem mais certeza de quem é o azar. Pois apesar de inóspito, em meio a festas e confraternizações que dividem tempo e espaço com o a violência e o crime, onde talvez seja ilusório pensar em coisas eternas e integras, aí estão eles por toda a parte, todos fazendo planos e se dando bem, e esse que hoje desponta não haverá de querer mudar tal panorama.
Está esfriando. Você vai para casa?
Elisuki calada hoje. Será um anjo nos céus, pois se aqui já é. Ela sorri em resposta ao olhar amoroso da amiga. E quando voltar ali depois ou aos domingos, Carolin sempre há de lembrar esse sorriso, que queria dizer que sim iria para casa, ao lar escondido atrás das árvores e do alto de sua janela, ao que ela responde com firmeza que são o lar um das outra. Suplica. Não me abandone. No canto dos pássaros um presságio. Pobrezinha. Não, isso não. Não é pela piedade de ninguém. Valerá talvez a pena seguir o caminho, sinuoso como este, em que também o fim não se vislumbra. E é verdade, ser amada assim tem um peso. Mas não tem certeza de nada. Não irá decidir agora, mas apenas manter esse contato com o verde até a saída. Há de pensar em alguma coisa. Carolin fez um sinal de cabeça e sorriu também. Tinha algumas idéias. E afinal, de um modo ou de outro todas as coisas hão de passar um dia. Sim. Todas as coisas passarão.
[Contos] Projeto 17
Conforme a voz, estão descendo. Vão
aterrissar. Permita-me que eu te ajude, diz a aeromoça. Um sorriso. Afinal não está tão só. Ah, solidão... Uma amiga de infância. Velava por ela todo o tempo. Em todos os lugares, inclusive nas nove horas ao longo de toda a viagem. Quanto a ele, chegara à cidade no dia anterior. Não falava o idioma local, portanto podia se dar ao luxo de enfim parar de estudar. Trabalharia, como sempre sonhou, ajudaria o pai. Sobre a bicicleta, sente grande alegria entre as árvores do parque. A humanidade não poderia ser assim feliz? Ela estava inquieta. Um amigo lhe dissera que a tranqüilidade já contém um pouco de felicidade, esse tanto ela não usufrui. Ao telefone, manuseia sua agenda, ansiosa. Quando da primeira estada, uma amiga. Uma amiga recente. As almas afins, dizem, têm um diferente destino. No começo do inverno, na longas noites de sua procura, lá está ele, ao gélido luar, perguntando e correndo ao pensar tê-la visto, o clamor de quem canta uma canção primordial.
Quem está entre um lugar e outro,
sem convicção de como coisas se constroem e cristalizam, sozinho, sem esse amparo geralmente falso que são os outros, ao encontrar o próprio espírito na parceria da amizade. De onde menos se espera aparece a paz; está aqui, agora, num teto sobre sua cabeça, na esperança de uma cidade nova: o hoje sendo também amanhã finalmente. A tranqüilidade... Também pode ser infelicidade ao permitir que não estejamos prontos para o inesperado. Eis aqui, os murros na porta da amiga, o namorado violento, a progressão das batidas repercutindo no coração. Esconda- se, diz a amiga, e ela o faz, atrás do horror de testemunha.
O rapaz está deslumbrado com o
prédio do tio. Da vidraça do andar dá para ver toda a cidade, ou quase, não há nada semelhante em sua vila. Acho que a tal sala onde guardam as bicicletas é por aqui, pensa ele, enquanto imagina quanto o tio pagará de aluguel ali. Nesses passos escuta os gritos, os mesmos que a recém-chegada escuta, no closet. Se outros no andar estavam ouvindo, fingiram que não. Um longo percurso até mesmo ele perceber de onde vinham os gritos e quando se aproxima o casal está saindo, o namorado levará a jovem para o carro, onde entre ameaças e juras de amor, chegarão numa joalheria. Chocado e sem ação ele percebe. Ainda há alguém no apartamento. Está chorando. Como soube? Precisava saber alguma coisa naquela cidade, era seu jeito de seguir vivendo. Curioso, alguns diziam. Ele preferia pensar que para se agir no mundo é preciso estar atento, mas não agiu quando viu a jovem visivelmente oprimida, quase arrastada para o elevador. Agora tem outra chance. Ela escuta as batidas e instintivamente se apavora, mas logo entende que é outra pessoa. Desculpe, ele diz quando ela abre, mas é que lhe pareceu haver alguém ali chorando, disse isso percebendo que naturalmente ela mesma. O que aconteceu?
Por fim, após usufruir cada detalhe
da dicção da moça, cujas entonações parecem anjos, sabe que ela acabara de chegar, que veio para a casa da amiga, que fazia um treinamento numa empresa de aviação, e mal chegara o namorado apareceu, sabe, justamente quando ela estava me contando que precisava descobrir um meio de se livrar dele para voltar a viver. Ela disse isso sem perceber que falava de si mesma, mas num sentido inverso, precisava encontrar alguém com quem partilhar a vida, se sentia insuportavelmente sozinha. Caso tivesse dito ele teria entendido, pois sentia o mesmo, e mais que isso, acreditava que esse acréscimo de um ser feminino ao homem, justando-se a ele como uma parte de si mesmo, consolida uma sabedoria que, como diria o pai dele, só os deuses possuem, ou talvez nem mesmo os deuses. O que farão agora? O elevador para no andar de cima. Um toque de campainha. Amor, esqueci a chave! Não, dois, três toques. Mas no segundo eles já não escutam. N ãotinhamais comonaadolescê coisaemrisco. S perduram.Desli interlocutora. Os alcance. M ase O amor
Desde o dia em que a conheci,
nada mais foi como antes; todas as coisas renasceram após sua presença em minha vida, emprestando luz de seu olhar a cada nuance do que me cercava. Era musicista. Soube-o quando voltávamos de nossa primeira aula de dublagem. Convidou-me para entrar na casa de seus pais, após termos travado um pequeno contato através de um motivo qualquer durante o percurso do ônibus, do estúdio a nosso bairro. Estamos sentados longe durante a explanação do professor, o que nos induzirá a comentar a aula, falar um pouco de cinema e da arte em geral – mas o que realmente me levou ao curso foi o desemprego. Esqueci. Contemplo- a, recortada pelos cenários à janela. Seu rosto se destaca como a flor no terreno baldio. As mãos muito alvas contrastam com o sol , os pés nas sandálias são suaves serranias enevoadas. Chama-se Vera. Acontece alguma coisa além dela em minha vida? Quero estar em seu quarto e descobrir os seus segredos. Uma perspectiva essencial quase dolorosa de mim se apossa. Um pouco além da porta já se vê as cenas que não podem ser entendidas na tarde fresca. Não sei o que é vida e o que desejo. Sei que esse sol é o sol de um sonho antigo. A fachada do prédio em frente é amarela. Essas linhas são os raios inclinados, a luz viaja desde muito longe e choca-se com o cimento. O jardim se faz limítrofe de dois eus.. Não que isso seja novidade. Na verdade é quase um clichê. Não, nada mais é como antes, jamais vi uma tarde sob essa luz rósea fulgindo do arvoredo. Ou essas frestas atravessadas que pulsam e erguem a imensa barra de ouro. A umidade da grama está me falando alguma coisa. Diz respeito a mudança. Beleza. Ah! Quando uma parede deixa de separar e passa a ser a referência de uma união. Caminhamos, entrando, e nossos passos ecoam no vestíbulo espelhado. Porque há renascimento, são tantas essas partem de mim morrendo em Vera quando me pergunta o que eu faço. Eu lhe digo. Sou escritor. Como não subsisto de minha escrita, nesse momento a verdade e a mentira se abraçam. Assim eu a abracei com meus olhos, com intensidade tal que a sinto estremecer. Está agora de costas para mim, à janela, e ali bate o meu coração. Estou ligado à realidade por meio de seu corpo e apenas dele. As vozes... De onde? Se indagar de mim mesmo, direi que seus pais não estão em casa, que são empregados na cozinha. Seu quarto: diáfano como ela mesma, azulado pelo filtro de cetim. Ao lado da janela, esperando um ser cansado como eu, uma cadeira de balanço de alguma madeira nobre e diante dela, na mesinha sobre o tripé, duas xícaras de chá e um bule sobre a toalhinha branca. Um vaso de flores multicoloridas. Cenário de amor para um coração de inocência com o de Vera, e um outro, de desamores, como o meu. Caminhando próxima, marcando suavemente o tapete com doces círculos, adiantou-se até o peitoril onde findam os taques revestidos e os músculos das pernas se colocam-se em descanso. Gostaria de falar com você, mas não sei como começar e nem sei se falar seja preciso. Estar entre aquelas paredes era ter entrado num templo. A cada momento, a cada movimento, a posse física, enquanto desejo, cede a uma emoção mais sutil, estética, espiritual. Meu mundo paira nessa aura. Tocar em seus objetos é estar certo de que a amo tanto. Talvez ela já tenha compreendido, é possível até a recíproca? Ser sim, num nível correspondente, está claro, porque não sou venerável. Ela sim. Vira-se para a mim, aproximando-me um pouco, e seu perfume impregnou minha contemplação. Sim, estou aqui. Apalpo o violão sobre a cama, encostado à parede. A viração vespertina tremula o cetim. Será feliz? As maiores questões da vida e do universo estão contidas na resposta. Pega o violão e experimenta as cordas. Sou feliz quando toco, diz, ao ler meus pensamentos. Tom-tomtom. Lagrimosa... O réquiem é um hino à vida. Quero ajoelhar-me diante dela, abraçar seus joelhos, remido na passagem de mundos. Beijar-lhe os pés, os dedos gordinhos, passar a lenta língua ao longo de suas pernas, beijar-la toda, no meio dos seios, no meio do ventre, em todos os lugares. Olhando-a vejo o infinito; ouvindo-a, escuto a eternidade. Nessa dimensão, eu posso. Ela geme no mesmo compasso do coro superposto ao oficium de Preisner, que sabia tudo acerca da unidade de duas vidas. Uma aqui, olhe. Estimulo-a com o nylon da própria meia. Sua mão sobre meu braço, dedos também gordinhos, vermelhos. Seu sorriso pranteia por nosso serôdio encontro, vivificado por esse hausto comum do inefável provindo. Em Vera eu tocava a tarde encravada no milagre. Distraída pelos sons que executa, permite-me contempla-la com dedos incansáveis nas aureolas curtidas. Esse colo tão branco... Meu êxtase será teu também. Disse-me que era uma família de artistas, um pintor, um escritor, a mãe pianista. Saberão eles algo dessa perfeita destreza? Aproxime-se, Vera, deixe-se. Não encontrará o essencial em uma biblioteca. Talvez nem na perfeição desses dedos que acariciam Mozart. Mas aqui há alguma coisa além, seios cuja engenhosa redondeza o próprio Deus será incapaz de reproduzir, tremores de vestido à mesma aragem nas cortinas, o limite do tecido na coxa levemente pressionada onde repousa o instrumento. Tom-tomtom. A virginal melodia da apetência. Não falaremos jamais sobre essas coisas, não falaremos. Jamais. Não seremos francos nessas horas em que coxas devolverem a lâmpadas do quarto. Palavras não terão lugar ali. Do lado de lá da cortina, o que se vê é ainda Vera, distraída com a música, concentrada na música, de perfil, inclinada para o lado. A seus pés, venero-a com minha língua e com meus dedos. Solfejos se agravam pelo roseiral íngreme e a proximidade sugerida é a do próprio Deus. Não sei se em algum momento falei sobre meu amor, se me declarei. Não sei. Talvez não pois o som da sua voz enche o quarto, multiplicando-se pelas paredes, permeando todos os objetos em que meus olhos pousavam. Seu canto: meu fértil silêncio. Subia oitavas, salmões e a preservação da espécie, a perpetuação. Não sei se em algum momento pelo olhar me disse de seu amor, em alguma das passagens de voz para instrumento, mas certamente pousou os olhos nos meus uma única vez, quando o som da rua invadiu o quarto violentamente e eu acabara de descer uma das alças do vestido e libertar a rígida revelação rendilhada. Eu havia chegado então à janela, àquele aquele caos urbano é dedicado o cântico para os mortos. Taran-taran-taran-taranlaacrimosa... Da posição no parapeito dava para ver a rua e Vera; nossos olhares enfim se cruzaram numa região de pactos silenciosos e desejos sublimados. Ela sorriu em meio ao denso nevoeiro carbônico. Devolvi o sorriso. Não. Não suportei a luz de seu olhar e desviei o meu para a azáfama lá embaixo. O que acontecerá? Mulheres aproveitam a temperatura em declínio para sair às compras , matizam as ruas de creme e cinza e azul-escuro. As que voltam, de braços cruzados e ombros encolhidos, lamentam não terem previsto o frio, em pensamentos de lã, saias refinadas de gabardine e novas blusas de elegância mais espessa. Nas galerias, há frutas chamando aos sucos e a uma graça ainda maior., se magreza for graça, se Vera não for graciosa. Mas seu corpo permanece em flor diante de mim, delicioso e desejável, como no ônibus, como sempre. As últimas nuvens brancas de um céu róseo caminhavam lá no jardim sobre a grama úmida. Estarei ali em seguida, penso ao olhar as lojas. E de fato, eis-me na galeria. Ao lado da loja de roupas, bares e farmácias; diante da livraria seringas descartáveis e parado à porta do cinema o amante cujo nome a mulher lá dentro se esqueceu. Mas na loja de discos cheias de rostos por nada célebres, eram evidentes os sinais do silêncio, porque Vera ainda cantava a meu lado. Chamado pelo contraste, estou decidido a declarar a sinceridade de meus sentimentos mas, antes que possa começar a faze-lo, ela me pergunta se quero tomar um lanche. Não posso senão aceitar. Dirige-se então à porta do quarto e me pede que espere. Irá à cozinha um minuto. Pelos instantes que estou sozinho nesse santuário, sentado à beira da cama onde ela estava sentada, seu perfume exala promessas de futuro onde meus dedos escorridos terão fundamental papel na procura e seu lacrimante gozo acompanhará os movimentos do tempo, e seu sorriso agradecido será o êxtase das formas ainda ocultas, como de seu comportamento exterior deduzi a grandeza de sua alma. Porém quando volta e de novo fixo meus olhos nos dela, percebo que havia chorado. Pede-me que vá, por favor, buscar café e pão, era logo ali em frente, se eu pudesse lhe fazer essa gentileza. Mas do que está falando? O que eu não faria por ela? Deixou-me na porta. O ar me preenche e volta ao hall. O elevador atendeu o movimento do dedo como um animal se ergue a um chamado e a respiração e os cabos se misturam nas indagações, Deus, sobreviverei a tanta volúpia? É esse silêncio quem diz: o desejo pode flutuar serenamente pelas pausas; apenas na obscuridade a noite no final do corredor surge como luz. Logo a rua ia buscar meus novos caminhos, e o réquiem se converteu de fato nos sons do trânsito e nos gritos dos camelôs. Como se despertasse de um sonho sereno, mesmo triste, me mantive em paz e pensei que talvez o amor seja a parceria, a harmonia, o estar ao lado, em silêncio, e o sexo apenas o horário de almoço da empresa mútua mais que objetivos carnais e menos que ideais românticos. Na flama vermelha atravesso o imenso mundo que reflete em meus olhos um temível encanto. Dói. Tudo bem, é dor diferente, fere com um sentido preciso, sem esse jeito calmamente inútil das coisas do cotidiano normal e sem perigos. Ah, jovem mulher adorável!... Mesmo ainda escravo de uma insegurança mórbida, tão sutil, eu aprendia que o pior medo é o temor do medo em si, que o medo em si não é senão a matéria prima de uma doce e longa canção. A balconista e uma sofreada emoção. Quase uma menina, de tranças, consiste numa evidente saudade, almoços de domingo com família reunida, ah sim, eu vivi esse tipo de coisa também. Mas que amor é esse meu? Anseio não discernido. Os prédios em chama dourada espelham a rua em que a noite se avizinha. Duvido que essa expressão seja de quem esteja percebendo meus dilemas, mas melhor seguir adiante, é sempre melhor seguir adiante, essa fraqueza chega às vezes a dar idéia de desmaio. Deseja alguma coisa? Peço os pães e o queijo. Trabalhadeira, admiro moças assim. Mas Vera, a quem amo, o que faz além de estudar e tocar? Assim devem se perder as questões sem saída, no aroma de um pão quente à luz do total da despesa. De volta, meus cabelos se agitam nas vitrines molhadas de crepúsculo. Nos cartazes de filmes, nos livros, nas flores da praça, impregna-se a primeira estrela, cuja majestade solitária povoa uma folha caída na calçada. Na sala, a mesa está posta. Lá está Vera, sentada em sua tristeza, em meio às belezas de que não pode fugir. A respiração aparece suave no decote, os olhos têm um brilho de que jamais me esquecerei. Olham-me entrar como combinado, sem bater, como se aquilo mais que um pequenino acordo, fosse um hábito. Estará comigo pelo resto da vida o juízo desse olhar. Me dará a motivação para levantar todos os dias. E será por meio desse olhar o sinal. Dir-me-á que já não tem motivos para chorar. Pedirá que eu fique. O sofá junto à janela será um local propício. Tudo se afastou com seu vestidinho, esse novo mundo chega com seios nas minhas mãos. Enquanto somos servidos pela governanta, suas pernas abraçam minha cintura. Ela fala algo sobre o mercado de dublagem, deve ser alguma coisa sábia, mas não ouço porque está sobre mim e há mãos vitoriosas no elástico, e há limites e divisas, sombras e coxas e cabelos em meus dedos, e o calor embriagante de um abraço íntimo. Mas os dedos que em mim se cravam de súbito aparecem num gesto amplo na nuvem do café. Unhas retas e inocentes. A dublagem exige mais do artista do que a maioria das artes, toda a expressão só tem a voz para se expressar, não há gesto, não há cor, palavra aqui só a que servirá de meio, nenhum espaço para as notas musicais. Respondi que infelizmente, como ela mesma testemunhara, o professor não parecia nem um pouco insatisfeito com seu anonimato muito bem pago, e afinal não era o que nós próprios buscamos? Mal acabei de falar, pensei que tinha sido grosseiro. Nunca sei o que fazer nessas horas. Tentar consertar pode ser sempre pior. É verdade, diz ela. Tantos seriados e tantos canais de filmes na TV paga tornaram a dublagem um requisito para o dinheiro que move a mídia. O dinheiro. Não há arte na mídia, não mais, estou certo, é o que ela tristemente está dizendo. Estalar crocante na boca, queijo com gosto de infância. Tudo de algum modo tem esse sabor. Pode ser a inocência resgatada. Mas realmente não creio nisso. Por um momento parece que ela está na dificuldade que é falar de uma coisa pensando em outra, e em que estará pensando? É que não existem mais arte nos dias que correm, apenas o negócio da arte. Bem, não é uma questão nova. De fato, ratificou após passar o guardanapo, não existia mais o valor puramente subjetivo do exercício artístico, o que há é quanto pode render essa concepção. Veja Van Gogh. Atingiu o ápice do reconhecimento hoje, morto, e a tragédia da morte junta-se aos requisitos do reconhecimento. Por outro lado, digo, com a tecnologia, quem precisa de reconhecimento hoje? Exceto quem queira viver da arte, mas aí é mais ou menos a mesma deturpação material, porque a arte tem de ser uma motivação de subsistência em si, à parte da questão financeira. É uma pena, diz ela, gostaria que não seja uma regra sem exceção. Eu lhe mostraria o meu amor e as criações que dele haveriam de provir. Mais tarde saberei que ela havia chorado por causa do filhote de pastor belga que ganhara em seu aniversário – era o tema da conversa dos empregados quando entramos , como iria ela reagir– e eu deveria ficar sem saber sua reação diante da declaração de meu amor porque duas semanas mais tarde ela conseguirá uma bolsa para estudar música em Milão e eu não mais a verei. Quando soube da noticia nos estúdios, fulminado pela fecundidade irracional provocada por notícias importantes e inesperadas, saí da sala e tomei o mesmo ônibus onde meu amor encontrou campo para se desenvolver ao sairmos juntos e termos passado aquele tempo a seu lado no primeiro dia. Quando cheguei a seu edifício, chegou também o silêncio quando tanto tinha a lhe dizer após ela ter me beijado no elevador. Até quarta, então, disse ao sair. Lembrando essa imagem desesperadora, sufocado e infeliz, trazida por passos muito suaves Vera veio se pôr a meu lado. Atrás dela, os empregados levavam as malas. Eu te amo, eu disse enfim. Sua expressão de surpresa devia-se, tenho certeza, não ao conteúdo de minhas palavras, mas estar eu ali para dize-las. Ela tardou alguns instantes antes de responder. Então me espere. Senti de novo os seus lábios e dessa vez a trouxe para junto da grandeza de minha paixão. Alguém a chamou atrás de nós, do lado de fora do prédio. –Tenho de ir – disse ela. – Você vai me esperar? Duas lágrimas rondaram meus olhos ameaçadoramente nos momentos em que olhei o homem que ousara pronunciar com desembaraço o nome com que somente eu deveria privar tal intimidade. Era seu pai. Respondi sua pergunta com um beijo ambíguo entre o azul de seus olhos, também prestes a molharem-se, Um pastor belga está ganindo de dor. Voltei-me a dei com a luz forte do dia se irradiando por tudo. A opressão natural perante tanta luminosidade na rua dá lugar a um elemento de paz, desejo de vida, restituído a meu mundo desde que aquela jovem emprestou a luz de seu olhar a cada nuança que me cercava. Todas as coisas renasceram e meu desemprego passou a ser um problema que pedia solução rápida e conciliação com o exercício da escrita – não motivo de uma depressão fatal. Meus conhecidos acharão minha mudança inacreditável. Nem eles nem eu mesmo podiam imaginar o que seria a minha existência. Uma grandiosa obra, deveras.
Projeto 21 Rival de si mesmo
Projeto 22 Estava escuro Projeto 23 O homem da linha Projeto 24 Esperanças Conformeavoz aeromoça. Um infância. Velav horasaolongo