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A morte

Ana saiu do hospital faz sete


dias. Eu ainda não passo de uma
criança assustada sem saber no que
acreditar além do sentimento
sobrenatural que nutro por ela. Que
alívio ter ela sobrevivido. Dizem que
foi um milagre. Pouco ouço a
respeito das razões que a teriam
levado àquele ato. Levantei. É quase
de manhã mas não há indício exceto
talvez pelo eco do copo na pia e dos
indecisos passos no corredor. Terá
ela voltado às aulas, imagino.
Provavelmente já tenha algum
trabalho de tradução. Ouvi o meu
nome. Saio e a escuridão torna-se
mais vívida e suportável embora não
menos densa, porque é aí que
estamos, quando a realidade se
destaca do pavor. As flores
lentamente tornam-se visíveis, o
aroma delas a atmosfera respirada.
São as flores que ladeavam o
caminho pelo qual passáramos
naquele primeiro dia. Ela pergunta e
eu respondo com um sorriso
indulgente. Demorei? A mão toca
meu ombro, suave, fria e branca, a
não ser pelas veiazinhas azuis.

Imerso no mesmo silêncio com


que com ela sonhara, agora porém
continua ali, filha de meu sonho e a
mais pulsante parte da vigília. Uma
fronteira sem o menor sentido. O
saber de Ana era o meu. O que
adquirira ao longo da vida, me
passava. A divisão entre nossos
apartamentos perdera igualmente a
razão de ser quando voltamos da
caminhada, quase ao meio-dia. Um
brilho inexorável dos corpos sob as
camisas finas.

Sua biografia está em seus


lábios, a suscetibilidade na ponta de
sua língua e o universo recluso no
corpo de seus dedos, entre palavras
cuidadosamente inauditas. Como
esperar que a luz seja estável em
seu movimento, se você num
momento vai ao encontro dela e
noutro retira-se no sentido
contrário? E todavia é o mesmo
movimento e a mesma luz. Porque a
luz não depende dessa sucção ou
desse polimento.

Posso por isso decifrar o


mistério desse muro erguido do
nada, sei o segredo, está aqui, na
magia de nosso contato, mas
justamente por isso estou inquieto
com a forma como o contorno de Ana
se torna fosco e a aura das flores
imerge num denso nevoeiro. Ela se
evade e eu não consigo pensar o que
devo nem dizer a palavra. Ana, flor
de luz pela qual reduzi minha vida a
uma escravidão, não pode partir
assim e me deixar órfão outra vez.

Mas caso o faça, pergunta-me em


meio à sua energia que me acelera,
ainda assim insistirei nesse
pensamento que foi nosso? Ana, Ana,
ouvi minha alma lacerada na
despedida. O universo do espaço e
tempo deformáveis se expandia em
busca ou talvez em fuga da noite,
que se transformaria em realidade
no apartamento vizinho.

De joelhos deveria estar eu, Ana,


santa, pura, inocente. Esses dedos
deveriam ser os meus, a retirar
santidade do ícone. Essa boca
deveria ser a minha, a buscar as
gotas entre os bancos do templo
espargida. E engolir o poder eterno
desse desvio para o azul.

Um olho mágico cruel. Seus pais


chegaram agora da rua. Continuam
naturalmente arrasados. Quem dera
eu lhe pudesse dar algum consolo
desse que ela própria me deu. Soube
que havia muitos amigos na igreja
mas nunca onde foram jogadas as
cinzas. Também, não faria a menor
diferença.

Depois Da Despedida

Lentamente. Os movimentos não


devem denunciá-la. Olhos grandes,
atentos: uma coruja num momento e
uma aranha no seguinte. Entrou no
prédio. A necessidade é mais
convicta que a coragem.
Experimenta a porta. Dentro do
quarto. O bonito banheiro ainda
bagunçado. Precisava mesmo desse
banho. Um luzeiro se torna visível
sob o chuveiro em pequeninos
pontos brilhantes. Ah. O tempo é
breve mas pode ser longo na
privação. O círculo arde dourado no
horizonte aonde ela precisa se
caminhar. Sonhos contém não raro
anelos alheios. Todo mundo conhece
o que passou apenas até certo ponto
de segurança. Inconscientemente
decerto vigia pois suas lembranças.
Um olhar atento e perplexo. Não
sabe o que esperar dessa cidade.
Não sabe o que esperar do mundo. A
luz se retirou antes do combinado
com os ramos e jardins. Mas as
folhas sabem como reagir, uma
translúcida, outra gotejante.
Sentada assim, desenha um sonho
em roupas leves com uma mochila
azul serena como aqueles que se
resignam, desenhando no ar um
esboço de ânimo.

Um vento de gotículas geladas sobre


a face desperta do desejo. Não há
novidade alguma no toque ou como
escorre. O esboço do medo é
também conhecido. Não pode teme-
lo, tem de aceitá-lo como a chuva, a
rua, o amor que partiu e o que
jamais chegou.
Que céu é esse, enfim o paraíso da
melancolia? Não ouve as vozes
daquela distância, mas as sabe. De
todos os lados a oprimem, fecham-se
sobre ela. Esse vento sombrio a
manipulam da mesmíssima forma
que modifica os recortes das
árvores. Uma ave. Um homem
limpando calado a vidraça. Um motor
ao longe. Balança as pernas no
abismo, dos sons impessoais não
tenho medo. As luzes destacam-se
na noite que resiste, nas janelas, nos
postes, nos cafés, resistentes. De
olhos fechados a escuridão é outra e
outra as luzes, entretanto mantém o
fôlego dela, porque a alma das
coisas depende sempre de cada alma
em particular e as reações nucleares
universais se interligam
inevitavelmente com a leveza da
vida ao nosso redor. Sim, esse tanto
de ar ela o inspirou. Era bom ter
relevância num espaço infinito,
embora também assustador.

A cidade mais e mais e define. Essa é


a rua em que o encontrou. Quando
passaram diante daquela casa ela
pensou que ele a fosse beijar.
Naquele café falaram de si mesmos e
houve a fagulha, semelhante a um
fósforo que se acende sem qualquer
atrito, no calor de um outro. Ela
definitivamente acreditou. Alguma
coisa aconteceu. Coisas pequenas
determinam os acontecimentos, as
grandiosas não passam jamais de
teorias. Um pequeno sorriso mostrou
a atração que ele sentiu, um olhar
delicado insinuou que era mais que
isso, o toque dos lábios selou o
futuro. Não fazia parte do futuro
entrar sorrateiramente na casa dele
para tomar um banho e dormir um
pouco. Quando se inclina parece
estar escutando a mesma voz das
promessas. Bobagem. É só um pardal
na areia, que à noite saberá para
onde ir. Ela não, ali está, plantada,
como uma estátua que ganha de
Deus súbitos sopros de vida. De
Deus, gostaria de pensar. Mas não
faz a menor idéia. Sabe que é vida
ainda, que quando ele disse adeus
feriu seu coração, mas não de morte,
e que toda a treva que se fez não
tocou a menor partícula das luzes
exteriores. Mais não sabe. Por favor,
Senhor, mostra-me um caminho. Dá
um significado para o canto da
existência. Ou pelo menos, a certeza
da próxima refeição e um teto à
noite sob o qual eu possa voltar a
sonhar.

O sonho

Pode-se dizer que Juliana é feliz,


feliz como não se costuma ser nessa
idade. Dezessete anos. Antes do
amanhecer está pronta para mais um
dia a partir do jardim de sua casa –
um cotidiano, se sempre igual,
jamais monótono: fala com as flores,
sorrindo sempre; caminha entre as
árvores do quintal; sonha desperta,
lembrando os sonhos que a noite e o
sono lhe trouxeram. O sonho. Na
verdade o mesmo, pontualmente
apresentado assim que adormece e,
quando acorda, mantendo-se a força
que a conduz durante o dia.
Na escola, próximo o crepúsculo,
esqueceu de todo a mesquinhez
humana e já não liga para a
frivolidade social que suportou no
trabalho pela manhã. No ônibus de
volta para casa, passando pela
janela o brilho dos vidros nos
prédios, prepara o espírito em
oração, grata por estar às portas
daquele outro mundo que se
abririam após o jantar.
Seus pais se preocupam com ela,
pobrezinha, seus pais se preocupam.
– Estou bem, queridos. Sou tão
feliz...
Mas não a escutam, entranhados
de normalidade. Uma moça sadia
precisa ter amigos e sair à noite nos
finais de semana e se divertir e ter
um namorado. Um namorado. Um
rapaz de boa família. Um bom
partido. Logo o casamento, os netos.
Nada disso faz sentido para ela mas
sim o vestir da camisola, deitar-se e
adormecer.
Seus olhos se fecham e eis que se
abrem. Feições sobre o travesseiro
abrandadas. As gargantas levam ao
túnel de pedra no fim do qual dos
passos se aproxima a luz. A bem-
aventurança de uma outra era,
silenciosa cúmplice do encontro à
beira do lago cristalino. Ele– o rapaz
do olhar perfeito – a espera todas as
noites (ali dia esplendoroso),
longínquas agora, estagnadas no
quarto onde ela adormeceu. A terra
do sonho, a terra da vida, onde anjos
a deixavam e retornavam às
estrelas.
Silêncio. Os olhares se
cumprimentam, regozijantes de
ternura. A luz refulge na relva, as
mãos se encontram, eloqüentes; a
brisa sussurra entre as flores.
A mulher grita.O que? Não foi
trabalhar? Larga o fone e corre ao
quarto da filha. O corpo quieto ainda
ocupa a cama, o dia alto entra pelas
frestas da cortina. Nos lábios de
Juliana, um sorriso. Ó meu Deus! Por
quê? Por quê? Minha filhinha, minha
filhinha querida, tão cheia de vida!...
Por quê? Por que, meu Deus? Chorai
sim vós que tendes por santuário o
razoável e por afeto o sangue e sãs
as virtudes transitórias.
Ele aproxima-se e toca-lhe o
rosto. Você veio. Enfim. Como foi
difícil suportar a espera! Eram seus
os traços de meu reflexo nas
nascentes. Perdoe-me: temi que se
integrasse e não viesse mais.
Talvez tudo (temi tantas vezes) –
disse ela – não passasse de um
sonho que a morte dissiparia.
Tudo não passou de um sonho
que a morte dissipou. A música do
regato soa qual oboé. s olhos
carregam um brilho transcendental
de dimensões. Sentem o calor um do
outro e o peso desse abraço. Tudo
não passou de um sonho: agora
estão livres para sempre.
Geraçõe
A outra

Um balneário. Num verão de


minha juventude, ali conheci Milena.
Espraiada ao sol. Me detive toda a
manhã na sua contemplação, agora
estou confiante para a abordagem
que procuro equilibrar entre a
malicia e a delicadeza, julgando que
as mulheres são fascinadas por
extremos opostos convivendo num
mesmo homem. Era um anjo, Milena.
Encantadora à primeira vista,
sedutora, digna de amor ao falar – e
assim me senti feliz de ter aceito o
convite de meu primo, que
normalmente deveria recusar, para
passar o verão naquela praia. Milena
me enfeitiçara. A principio queria
estar a seu lado à noite; logo, pelo
resto de meus dias.
Em redor dela muitos rapazes,
alguns esperando uma chance, a
maioria simplesmente, através do
olhar, gozando de seu corpo.
Mantenho uma distância calculada.
Porque seus amigos estavam
distanciados dela pela própria
proximidade, afastados de seu amor
pela amizade. Em vantagem, olho-a
de longe. Quando em vez, seu olhar
se cruza com o meu. As primeiras
noites. Pensando nela. O contorno de
luz a delineia num talhe de mar. Para
sempre hei de lembrar, no melhor
recôndito de mim, nosso primeiro
contato. Sua meiguice irá se render à
luxúria, a sinceridade da resistência
contra os humores primaveris sob o
sol. Há reflexos de crepúsculo no
oceano quando lhe declaro o meu
amor.
Era tudo o que desejei embora
nem o soubesse.
Eu decidira passar o resto de
minhas férias na praia, caótica
exceto presença de Milena, quando
ela foi acometida de uma doença
rara. Mal o soube, soube também
que a família a levara para os
Estados Unidos a fim de que se
tratasse. Nas sombras que se
fizeram, minha vida perdeu a razão
de ser.
Seis meses no Exterior e, apesar
da debilidade física, sua lucidez não
foi alterada. Nos correspondemos
com cartas diárias. Ela escrevia de
um modo objetivo, lógico, duro,
terno. Parecia muitas vezes estar me
preparando para o pior, talvez a si
mesma. Mas era sempre elegante e
engraçada. Pensei que aquelas
cartas eram como a festa da
preparação de um túmulo.
Milagrosamente porém, começa a
se recuperar. Suas cartas seguintes
ao diagnóstico que a colocava fora
de perigo são a brisa alegre que
sopra a poeira da morbidez, embora
eu até já estivesse acostumado e
deva dizer que aquele raio de
otimismo tinha um quê
constrangedor. Tudo está enfim em
seus devidos lugares, a não ser por
alguns trechos grosseiros nas
últimas mensagens que recebi, aqui
pornográficos, ali blasfemos.
Algumas vezes pensei que mal a
conhecia e não fazia sentido cotejar
esses textos com as lembranças,
pois essas eram minhas e aqueles
sim eram ela.
Voltou.
A alegria de vê-la saudável será
transtornada quando nos amarmos
após o retorno. Está estranhamente
agressiva, provoca sangue e gritos
de dor. Não gosto disso, amor.
– E do que você gosta?
À pergunta, sucede-se uma série
inimaginável de jeitos. Em seus olhos
não mais reconheço os olhos de
Milena. Não cheguei a pensar que
jamais olhara tão atentamente assim
para seus olhos para chegar a
reconhece-los ou não.
A noite passou. A luz que incidia
pela janela do quarto iluminava
minha Milena.
Um pesadelo, pensei. Minha
imaginação. Talvez algum tipo de
síndrome. Um especialista dirá. Isso
pensei na aurora. Mas ao quando
fizemos amor como sempre outrora,
esqueci tal desígnio.

Dias depois. Os pais dela em


minha porta. Não está aqui?
Procuramos por todos os lugares em
que costumava ir. Encontrei-a num
barzinho saindo pela porta dos
fundos com dois rapazinhos, uns dez
anos mais novos que ela. Mas perdi-a
e só tornei a saber dela na portaria
de um hotel. Havia subido para o
quarto com os meninos. Que quarto?
15, senhor.
– E você permitiu?
Pensei que eram irmãos, disse-me
o porteiro, e ela é maior de idade.
Ela não estava com eles quando
em seguida desceram. A cara deles...
Antes de subir, liguei para os
pais. A porta estava entreaberta. Ela
sorria e não acordou quando a tomei
nos braços.
Em casa, depositei-a em minha
cama. Ela continuava sorrindo, um
sono solto e suava. Nada parecia
errada, exceto talvez pelo ar
demasiado cansado, como alguém
que lutou ao longo de horas contra
um adversário mais forte. Sentei-me
na poltrona a seu lado e acabei
adormecendo também.
Acordei assustado. Ela me
sacudia. Seu rosto exaurido possuía
a pureza dos anjos. Ela não se
lembrava do que aconteceu, pelo
menos nada falou a respeito, e não
me atrevi a contar. Ela não
acreditaria.
Durante segundos eternos
agonizei a seu lado. Anoiteceu e a
cidade parece distante lá embaixo.
Pedi que os pais dela passassem
aqui, devem estar chegando.
Silêncio.
A mariposa bate na lâmpada.
Milena, liberta, está despertando do
novo sono.
Tem um sorriso nos lábios.

Feixes de luz sempre voltam ao lugar


de origem

A voz mais e mais baixa. Os passos


mais lentos. Um ser que se define. O
rosto na vidraça do café tem ainda a
expressão de quem sonha. O que a
senhorita deseja? Agora, na luz do
vidro, cabelos muito negros. Brilham.
Ela olha a garçonete com respostas
que não pode lhe dar. Logo a xícara
aquecerá as mãos em concha. Depois
o pescoço que se estica e pende, o
olhar é ansioso outra vez. Bom
assim. Melhor que o vazio da falsa
serenidade. Mas ao outro vazio, na
entrada, segue-se a lembrança e
seus olhos não estão mais ali.
Bibelôs na cabeceira onde devia
haver um relógio. Melhor assim.
Bons tempos. Quando as coisas
retornam ao lugar a que se
adequaram? Ou jamais? Pelo menos
jamais como um dia de infância.
Então jamais. Pois se o tempo não
volta, feixes de luz que se
reencontram.

Não sabe de que valerá abonar-se


com isso – a cabeceira perdida no
tempo. Nem precisa. Nunca precisou
de motivo para qualquer coisa.
Então, deixa a menininha no
passado, deixa-a lá e aparece diante
de seu armário, falando ao celular, a
outra mão pelos cabides. Rosas a
maioria. Ama a beleza simples de um
toque de mocinha no quarto, a
nuance adolescente que ela hoje
desconhece. Felicidade é uma meta
legítima de vida? E o que era aquele
êxtase da menina? Enfim, ei-la aqui,
diante das roupas, combinando a
saída. Diante do espelho cujo papel
no dia seguinte será feito pela
vidraça do café. Ela. Refletida. Com o
mesmo significado de todo reflexo,
reproduzir sem ser.
O armário que se fecha, o reflexo
desaparecido. Quando muito, um
vestido escolhido. O rapaz era
apenas a companhia para a saída.
Nada sabe dele nem haverá de
querer saber amanhã. Viva quanto
viver, sempre será assim? A voz
ainda possuía quando o encontrou
alguma firmeza, chegou a dar uma
corridinha quando o viu ali parado.
Nu trecho do caminho para casa, um
local mais escondido, e ele dá vazão
ao desejo. Embora mútuo, a
impressão seria de que ele de algum
modo a ofendeu. Mas não. Ainda quis
conversar um pouco, falar sobre os
motivos dela, aquela que não tinha
motivos. Ela nem imaginaria um
rapaz tão bondoso. Por isso chorou.
Outra caminhada solitária passando
por casais apaixonados, outro café
abrindo ou que ainda não fechou,
pensando no amor de sua vida.
No parque

As aves cujo canto lembra um


mantra são as de que Carolin mais
gosta. Como o Bem-te-vi. Elas lhe
evocam concentração, disciplina,
paciência – virtudes que, tão
dispersa, persegue. Essa que chilreia
agora ela não conhece, mas assim
que ouviu não gostou. Uma
sonoridade sinuosa, sofisticada, em
busca de novas oitavas, procura seu
máximo e não usufrui do que seu
mínimo já conseguiu. Só partilha
uma glória infrutífera. Sabe que sua
veleidade não muda o mundo, mas
sente que precisa assim se
posicionar. O mundo está tão errado
porque todos são iguais, gostam do
que é facilmente apreciável, do que
exige pouco do próprio gosto. Está
com Elisuki, sempre está com ela,
porque de algum mundo há um outro
mundo quando estão juntas, há uma
aspiração de vida melhor e mais
árdua.
O sol se põe no céu próximo, onde é
impedido o acesso da normalidade,
das pessoas sensatas, dos diplomas
formidáveis, da multidão que venera
mais que o amor o que se tem a dizer
sobre o amor e mais que a sabedoria
o currículo. Azar deles, pensa
Carolin. Elisuki hoje está calada, não
quer mais falar sobre esse assunto
desgastante. Ademais, não tem mais
certeza de quem é o azar. Pois
apesar de inóspito, em meio a festas
e confraternizações que dividem
tempo e espaço com o a violência e o
crime, onde talvez seja ilusório
pensar em coisas eternas e integras,
aí estão eles por toda a parte, todos
fazendo planos e se dando bem, e
esse que hoje desponta não haverá
de querer mudar tal panorama.

Está esfriando. Você vai para casa?


Elisuki calada hoje. Será um anjo nos
céus, pois se aqui já é. Ela sorri em
resposta ao olhar amoroso da amiga.
E quando voltar ali depois ou aos
domingos, Carolin sempre há de
lembrar esse sorriso, que queria
dizer que sim iria para casa, ao lar
escondido atrás das árvores e do
alto de sua janela, ao que ela
responde com firmeza que são o lar
um das outra. Suplica. Não me
abandone. No canto dos pássaros um
presságio. Pobrezinha. Não, isso não.
Não é pela piedade de ninguém.
Valerá talvez a pena seguir o
caminho, sinuoso como este, em que
também o fim não se vislumbra. E é
verdade, ser amada assim tem um
peso. Mas não tem certeza de nada.
Não irá decidir agora, mas apenas
manter esse contato com o verde até
a saída. Há de pensar em alguma
coisa. Carolin fez um sinal de cabeça
e sorriu também. Tinha algumas
idéias. E afinal, de um modo ou de
outro todas as coisas hão de passar
um dia. Sim. Todas as coisas
passarão.

[Contos] Projeto 17

Conforme a voz, estão descendo. Vão


aterrissar. Permita-me que eu te
ajude, diz a aeromoça. Um sorriso.
Afinal não está tão só. Ah, solidão...
Uma amiga de infância. Velava por
ela todo o tempo. Em todos os
lugares, inclusive nas nove horas ao
longo de toda a viagem. Quanto a
ele, chegara à cidade no dia anterior.
Não falava o idioma local, portanto
podia se dar ao luxo de enfim parar
de estudar. Trabalharia, como
sempre sonhou, ajudaria o pai. Sobre
a bicicleta, sente grande alegria
entre as árvores do parque. A
humanidade não poderia ser assim
feliz? Ela estava inquieta. Um amigo
lhe dissera que a tranqüilidade já
contém um pouco de felicidade, esse
tanto ela não usufrui. Ao telefone,
manuseia sua agenda, ansiosa.
Quando da primeira estada, uma
amiga. Uma amiga recente. As almas
afins, dizem, têm um diferente
destino. No começo do inverno, na
longas noites de sua procura, lá está
ele, ao gélido luar, perguntando e
correndo ao pensar tê-la visto, o
clamor de quem canta uma canção
primordial.

Quem está entre um lugar e outro,


sem convicção de como coisas se
constroem e cristalizam, sozinho,
sem esse amparo geralmente falso
que são os outros, ao encontrar o
próprio espírito na parceria da
amizade. De onde menos se espera
aparece a paz; está aqui, agora, num
teto sobre sua cabeça, na esperança
de uma cidade nova: o hoje sendo
também amanhã finalmente. A
tranqüilidade... Também pode ser
infelicidade ao permitir que não
estejamos prontos para o
inesperado. Eis aqui, os murros na
porta da amiga, o namorado
violento, a progressão das batidas
repercutindo no coração. Esconda-
se, diz a amiga, e ela o faz, atrás do
horror de testemunha.

O rapaz está deslumbrado com o


prédio do tio. Da vidraça do andar dá
para ver toda a cidade, ou quase,
não há nada semelhante em sua vila.
Acho que a tal sala onde guardam as
bicicletas é por aqui, pensa ele,
enquanto imagina quanto o tio
pagará de aluguel ali. Nesses passos
escuta os gritos, os mesmos que a
recém-chegada escuta, no closet. Se
outros no andar estavam ouvindo,
fingiram que não.
Um longo percurso até mesmo ele
perceber de onde vinham os gritos e
quando se aproxima o casal está
saindo, o namorado levará a jovem
para o carro, onde entre ameaças e
juras de amor, chegarão numa
joalheria. Chocado e sem ação ele
percebe. Ainda há alguém no
apartamento. Está chorando. Como
soube? Precisava saber alguma coisa
naquela cidade, era seu jeito de
seguir vivendo. Curioso, alguns
diziam. Ele preferia pensar que para
se agir no mundo é preciso estar
atento, mas não agiu quando viu a
jovem visivelmente oprimida, quase
arrastada para o elevador. Agora
tem outra chance. Ela escuta as
batidas e instintivamente se
apavora, mas logo entende que é
outra pessoa. Desculpe, ele diz
quando ela abre, mas é que lhe
pareceu haver alguém ali chorando,
disse isso percebendo que
naturalmente ela mesma. O que
aconteceu?

Por fim, após usufruir cada detalhe


da dicção da moça, cujas entonações
parecem anjos, sabe que ela acabara
de chegar, que veio para a casa da
amiga, que fazia um treinamento
numa empresa de aviação, e mal
chegara o namorado apareceu, sabe,
justamente quando ela estava me
contando que precisava descobrir um
meio de se livrar dele para voltar a
viver. Ela disse isso sem perceber
que falava de si mesma, mas num
sentido inverso, precisava encontrar
alguém com quem partilhar a vida,
se sentia insuportavelmente sozinha.
Caso tivesse dito ele teria entendido,
pois sentia o mesmo, e mais que
isso, acreditava que esse acréscimo
de um ser feminino ao homem,
justando-se a ele como uma parte de
si mesmo, consolida uma sabedoria
que, como diria o pai dele, só os
deuses possuem, ou talvez nem
mesmo os deuses. O que farão
agora? O elevador para no andar de
cima. Um toque de campainha.
Amor, esqueci a chave! Não, dois,
três toques. Mas no segundo eles já
não escutam.
N ãotinhamais
comonaadolescê
coisaemrisco. S
perduram.Desli
interlocutora. Os
alcance. M ase
O amor

Desde o dia em que a conheci,


nada mais foi como antes; todas as
coisas renasceram após sua
presença em minha vida,
emprestando luz de seu olhar a cada
nuance do que me cercava. Era
musicista. Soube-o quando
voltávamos de nossa primeira aula
de dublagem. Convidou-me para
entrar na casa de seus pais, após
termos travado um pequeno contato
através de um motivo qualquer
durante o percurso do ônibus, do
estúdio a nosso bairro. Estamos
sentados longe durante a explanação
do professor, o que nos induzirá a
comentar a aula, falar um pouco de
cinema e da arte em geral – mas o
que realmente me levou ao curso foi
o desemprego. Esqueci. Contemplo-
a, recortada pelos cenários à janela.
Seu rosto se destaca como a flor
no terreno baldio. As mãos muito
alvas contrastam com o sol , os pés
nas sandálias são suaves serranias
enevoadas. Chama-se Vera. Acontece
alguma coisa além dela em minha
vida? Quero estar em seu quarto e
descobrir os seus segredos. Uma
perspectiva essencial quase dolorosa
de mim se apossa. Um pouco além da
porta já se vê as cenas que não
podem ser entendidas na tarde
fresca. Não sei o que é vida e o que
desejo. Sei que esse sol é o sol de
um sonho antigo. A fachada do
prédio em frente é amarela. Essas
linhas são os raios inclinados, a luz
viaja desde muito longe e choca-se
com o cimento.
O jardim se faz limítrofe de dois
eus.. Não que isso seja novidade. Na
verdade é quase um clichê. Não,
nada mais é como antes, jamais vi
uma tarde sob essa luz rósea
fulgindo do arvoredo. Ou essas
frestas atravessadas que pulsam e
erguem a imensa barra de ouro. A
umidade da grama está me falando
alguma coisa. Diz respeito a
mudança. Beleza. Ah! Quando uma
parede deixa de separar e passa a
ser a referência de uma união.
Caminhamos, entrando, e nossos
passos ecoam no vestíbulo
espelhado. Porque há renascimento,
são tantas essas partem de mim
morrendo em Vera quando me
pergunta o que eu faço. Eu lhe digo.
Sou escritor. Como não subsisto de
minha escrita, nesse momento a
verdade e a mentira se abraçam.
Assim eu a abracei com meus
olhos, com intensidade tal que a
sinto estremecer. Está agora de
costas para mim, à janela, e ali bate
o meu coração. Estou ligado à
realidade por meio de seu corpo e
apenas dele. As vozes... De onde?
Se indagar de mim mesmo, direi que
seus pais não estão em casa, que são
empregados na cozinha. Seu quarto:
diáfano como ela mesma, azulado
pelo filtro de cetim. Ao lado da
janela, esperando um ser cansado
como eu, uma cadeira de balanço de
alguma madeira nobre e diante dela,
na mesinha sobre o tripé, duas
xícaras de chá e um bule sobre a
toalhinha branca. Um vaso de flores
multicoloridas. Cenário de amor para
um coração de inocência com o de
Vera, e um outro, de desamores,
como o meu. Caminhando próxima,
marcando suavemente o tapete com
doces círculos, adiantou-se até o
peitoril onde findam os taques
revestidos e os músculos das pernas
se colocam-se em descanso. Gostaria
de falar com você, mas não sei como
começar e nem sei se falar seja
preciso.
Estar entre aquelas paredes era
ter entrado num templo. A cada
momento, a cada movimento, a
posse física, enquanto desejo, cede a
uma emoção mais sutil, estética,
espiritual. Meu mundo paira nessa
aura. Tocar em seus objetos é estar
certo de que a amo tanto. Talvez ela
já tenha compreendido, é possível
até a recíproca? Ser sim, num nível
correspondente, está claro, porque
não sou venerável. Ela sim. Vira-se
para a mim, aproximando-me um
pouco, e seu perfume impregnou
minha contemplação. Sim, estou
aqui. Apalpo o violão sobre a cama,
encostado à parede. A viração
vespertina tremula o cetim. Será
feliz? As maiores questões da vida e
do universo estão contidas na
resposta.
Pega o violão e experimenta as
cordas. Sou feliz quando toco, diz, ao
ler meus pensamentos. Tom-tomtom.
Lagrimosa... O réquiem é um hino à
vida. Quero ajoelhar-me diante dela,
abraçar seus joelhos, remido na
passagem de mundos. Beijar-lhe os
pés, os dedos gordinhos, passar a
lenta língua ao longo de suas pernas,
beijar-la toda, no meio dos seios, no
meio do ventre, em todos os lugares.
Olhando-a vejo o infinito; ouvindo-a,
escuto a eternidade. Nessa
dimensão, eu posso. Ela geme no
mesmo compasso do coro superposto
ao oficium de Preisner, que sabia
tudo acerca da unidade de duas
vidas. Uma aqui, olhe. Estimulo-a
com o nylon da própria meia. Sua
mão sobre meu braço, dedos
também gordinhos, vermelhos. Seu
sorriso pranteia por nosso serôdio
encontro, vivificado por esse hausto
comum do inefável provindo. Em
Vera eu tocava a tarde encravada no
milagre.
Distraída pelos sons que executa,
permite-me contempla-la com dedos
incansáveis nas aureolas curtidas.
Esse colo tão branco... Meu êxtase
será teu também. Disse-me que era
uma família de artistas, um pintor,
um escritor, a mãe pianista. Saberão
eles algo dessa perfeita destreza?
Aproxime-se, Vera, deixe-se. Não
encontrará o essencial em uma
biblioteca. Talvez nem na perfeição
desses dedos que acariciam Mozart.
Mas aqui há alguma coisa além,
seios cuja engenhosa redondeza o
próprio Deus será incapaz de
reproduzir, tremores de vestido à
mesma aragem nas cortinas, o limite
do tecido na coxa levemente
pressionada onde repousa o
instrumento. Tom-tomtom. A virginal
melodia da apetência. Não falaremos
jamais sobre essas coisas, não
falaremos. Jamais. Não seremos
francos nessas horas em que coxas
devolverem a lâmpadas do quarto.
Palavras não terão lugar ali.
Do lado de lá da cortina, o que se
vê é ainda Vera, distraída com a
música, concentrada na música, de
perfil, inclinada para o lado. A seus
pés, venero-a com minha língua e
com meus dedos. Solfejos se
agravam pelo roseiral íngreme e a
proximidade sugerida é a do próprio
Deus. Não sei se em algum momento
falei sobre meu amor, se me
declarei. Não sei. Talvez não pois o
som da sua voz enche o quarto,
multiplicando-se pelas paredes,
permeando todos os objetos em que
meus olhos pousavam. Seu canto:
meu fértil silêncio. Subia oitavas,
salmões e a preservação da espécie,
a perpetuação. Não sei se em algum
momento pelo olhar me disse de seu
amor, em alguma das passagens de
voz para instrumento, mas
certamente pousou os olhos nos
meus uma única vez, quando o som
da rua invadiu o quarto
violentamente e eu acabara de
descer uma das alças do vestido e
libertar a rígida revelação
rendilhada. Eu havia chegado então
à janela, àquele aquele caos urbano
é dedicado o cântico para os mortos.
Taran-taran-taran-taranlaacrimosa...
Da posição no parapeito dava
para ver a rua e Vera; nossos
olhares enfim se cruzaram numa
região de pactos silenciosos e
desejos sublimados. Ela sorriu em
meio ao denso nevoeiro carbônico.
Devolvi o sorriso. Não. Não suportei
a luz de seu olhar e desviei o meu
para a azáfama lá embaixo. O que
acontecerá? Mulheres aproveitam a
temperatura em declínio para sair
às compras , matizam as ruas de
creme e cinza e azul-escuro. As que
voltam, de braços cruzados e ombros
encolhidos, lamentam não terem
previsto o frio, em pensamentos de
lã, saias refinadas de gabardine e
novas blusas de elegância mais
espessa. Nas galerias, há frutas
chamando aos sucos e a uma graça
ainda maior., se magreza for graça,
se Vera não for graciosa. Mas seu
corpo permanece em flor diante de
mim, delicioso e desejável, como no
ônibus, como sempre. As últimas
nuvens brancas de um céu róseo
caminhavam lá no jardim sobre a
grama úmida. Estarei ali em
seguida, penso ao olhar as lojas. E
de fato, eis-me na galeria.
Ao lado da loja de roupas, bares e
farmácias; diante da livraria
seringas descartáveis e parado à
porta do cinema o amante cujo nome
a mulher lá dentro se esqueceu. Mas
na loja de discos cheias de rostos por
nada célebres, eram evidentes os
sinais do silêncio, porque Vera ainda
cantava a meu lado. Chamado pelo
contraste, estou decidido a declarar
a sinceridade de meus sentimentos
mas, antes que possa começar a
faze-lo, ela me pergunta se quero
tomar um lanche. Não posso senão
aceitar. Dirige-se então à porta do
quarto e me pede que espere. Irá à
cozinha um minuto.
Pelos instantes que estou sozinho
nesse santuário, sentado à beira da
cama onde ela estava sentada, seu
perfume exala promessas de futuro
onde meus dedos escorridos terão
fundamental papel na procura e seu
lacrimante gozo acompanhará os
movimentos do tempo, e seu sorriso
agradecido será o êxtase das formas
ainda ocultas, como de seu
comportamento exterior deduzi a
grandeza de sua alma. Porém
quando volta e de novo fixo meus
olhos nos dela, percebo que havia
chorado. Pede-me que vá, por favor,
buscar café e pão, era logo ali em
frente, se eu pudesse lhe fazer essa
gentileza. Mas do que está falando?
O que eu não faria por ela?
Deixou-me na porta. O ar me
preenche e volta ao hall. O elevador
atendeu o movimento do dedo como
um animal se ergue a um chamado e
a respiração e os cabos se misturam
nas indagações, Deus, sobreviverei a
tanta volúpia? É esse silêncio quem
diz: o desejo pode flutuar
serenamente pelas pausas; apenas
na obscuridade a noite no final do
corredor surge como luz. Logo a rua
ia buscar meus novos caminhos, e o
réquiem se converteu de fato nos
sons do trânsito e nos gritos dos
camelôs. Como se despertasse de um
sonho sereno, mesmo triste, me
mantive em paz e pensei que talvez
o amor seja a parceria, a harmonia,
o estar ao lado, em silêncio, e o sexo
apenas o horário de almoço da
empresa mútua mais que objetivos
carnais e menos que ideais
românticos.
Na flama vermelha atravesso o
imenso mundo que reflete em meus
olhos um temível encanto. Dói. Tudo
bem, é dor diferente, fere com um
sentido preciso, sem esse jeito
calmamente inútil das coisas do
cotidiano normal e sem perigos. Ah,
jovem mulher adorável!... Mesmo
ainda escravo de uma insegurança
mórbida, tão sutil, eu aprendia que o
pior medo é o temor do medo em si,
que o medo em si não é senão a
matéria prima de uma doce e longa
canção.
A balconista e uma sofreada
emoção. Quase uma menina, de
tranças, consiste numa evidente
saudade, almoços de domingo com
família reunida, ah sim, eu vivi esse
tipo de coisa também. Mas que amor
é esse meu? Anseio não discernido.
Os prédios em chama dourada
espelham a rua em que a noite se
avizinha. Duvido que essa expressão
seja de quem esteja percebendo
meus dilemas, mas melhor seguir
adiante, é sempre melhor seguir
adiante, essa fraqueza chega às
vezes a dar idéia de desmaio. Deseja
alguma coisa? Peço os pães e o
queijo. Trabalhadeira, admiro moças
assim. Mas Vera, a quem amo, o que
faz além de estudar e tocar? Assim
devem se perder as questões sem
saída, no aroma de um pão quente à
luz do total da despesa.
De volta, meus cabelos se agitam
nas vitrines molhadas de crepúsculo.
Nos cartazes de filmes, nos livros,
nas flores da praça, impregna-se a
primeira estrela, cuja majestade
solitária povoa uma folha caída na
calçada. Na sala, a mesa está posta.
Lá está Vera, sentada em sua
tristeza, em meio às belezas de que
não pode fugir. A respiração aparece
suave no decote, os olhos têm um
brilho de que jamais me esquecerei.
Olham-me entrar como combinado,
sem bater, como se aquilo mais que
um pequenino acordo, fosse um
hábito. Estará comigo pelo resto da
vida o juízo desse olhar. Me dará a
motivação para levantar todos os
dias. E será por meio desse olhar o
sinal. Dir-me-á que já não tem
motivos para chorar. Pedirá que eu
fique.
O sofá junto à janela será um
local propício. Tudo se afastou com
seu vestidinho, esse novo mundo
chega com seios nas minhas mãos.
Enquanto somos servidos pela
governanta, suas pernas abraçam
minha cintura. Ela fala algo sobre o
mercado de dublagem, deve ser
alguma coisa sábia, mas não ouço
porque está sobre mim e há mãos
vitoriosas no elástico, e há limites e
divisas, sombras e coxas e cabelos
em meus dedos, e o calor
embriagante de um abraço íntimo.
Mas os dedos que em mim se cravam
de súbito aparecem num gesto
amplo na nuvem do café. Unhas
retas e inocentes.
A dublagem exige mais do artista
do que a maioria das artes, toda a
expressão só tem a voz para se
expressar, não há gesto, não há cor,
palavra aqui só a que servirá de
meio, nenhum espaço para as notas
musicais. Respondi que infelizmente,
como ela mesma testemunhara, o
professor não parecia nem um pouco
insatisfeito com seu anonimato
muito bem pago, e afinal não era o
que nós próprios buscamos? Mal
acabei de falar, pensei que tinha sido
grosseiro. Nunca sei o que fazer
nessas horas. Tentar consertar pode
ser sempre pior. É verdade, diz ela.
Tantos seriados e tantos canais de
filmes na TV paga tornaram a
dublagem um requisito para o
dinheiro que move a mídia. O
dinheiro. Não há arte na mídia, não
mais, estou certo, é o que ela
tristemente está dizendo.
Estalar crocante na boca, queijo
com gosto de infância. Tudo de
algum modo tem esse sabor. Pode
ser a inocência resgatada. Mas
realmente não creio nisso. Por um
momento parece que ela está na
dificuldade que é falar de uma coisa
pensando em outra, e em que estará
pensando? É que não existem mais
arte nos dias que correm, apenas o
negócio da arte. Bem, não é uma
questão nova. De fato, ratificou após
passar o guardanapo, não existia
mais o valor puramente subjetivo do
exercício artístico, o que há é quanto
pode render essa concepção. Veja
Van Gogh. Atingiu o ápice do
reconhecimento hoje, morto, e a
tragédia da morte junta-se aos
requisitos do reconhecimento. Por
outro lado, digo, com a tecnologia,
quem precisa de reconhecimento
hoje? Exceto quem queira viver da
arte, mas aí é mais ou menos a
mesma deturpação material, porque
a arte tem de ser uma motivação de
subsistência em si, à parte da
questão financeira. É uma pena, diz
ela, gostaria que não seja uma regra
sem exceção. Eu lhe mostraria o meu
amor e as criações que dele
haveriam de provir.
Mais tarde saberei que ela havia
chorado por causa do filhote de
pastor belga que ganhara em seu
aniversário – era o tema da conversa
dos empregados quando entramos ,
como iria ela reagir– e eu deveria
ficar sem saber sua reação diante da
declaração de meu amor porque
duas semanas mais tarde ela
conseguirá uma bolsa para estudar
música em Milão e eu não mais a
verei. Quando soube da noticia nos
estúdios, fulminado pela
fecundidade irracional provocada por
notícias importantes e inesperadas,
saí da sala e tomei o mesmo ônibus
onde meu amor encontrou campo
para se desenvolver ao sairmos
juntos e termos passado aquele
tempo a seu lado no primeiro dia.
Quando cheguei a seu edifício,
chegou também o silêncio quando
tanto tinha a lhe dizer após ela ter
me beijado no elevador. Até quarta,
então, disse ao sair. Lembrando essa
imagem desesperadora, sufocado e
infeliz, trazida por passos muito
suaves Vera veio se pôr a meu lado.
Atrás dela, os empregados levavam
as malas. Eu te amo, eu disse enfim.
Sua expressão de surpresa devia-se,
tenho certeza, não ao conteúdo de
minhas palavras, mas estar eu ali
para dize-las. Ela tardou alguns
instantes antes de responder. Então
me espere. Senti de novo os seus
lábios e dessa vez a trouxe para
junto da grandeza de minha paixão.
Alguém a chamou atrás de nós,
do lado de fora do prédio.
–Tenho de ir – disse ela. – Você vai
me esperar?
Duas lágrimas rondaram meus
olhos ameaçadoramente nos
momentos em que olhei o homem
que ousara pronunciar com
desembaraço o nome com que
somente eu deveria privar tal
intimidade. Era seu pai. Respondi
sua pergunta com um beijo ambíguo
entre o azul de seus olhos, também
prestes a molharem-se, Um pastor
belga está ganindo de dor.
Voltei-me a dei com a luz forte do
dia se irradiando por tudo. A
opressão natural perante tanta
luminosidade na rua dá lugar a um
elemento de paz, desejo de vida,
restituído a meu mundo desde que
aquela jovem emprestou a luz de seu
olhar a cada nuança que me cercava.
Todas as coisas renasceram e meu
desemprego passou a ser um
problema que pedia solução rápida e
conciliação com o exercício da
escrita – não motivo de uma
depressão fatal. Meus conhecidos
acharão minha mudança
inacreditável. Nem eles nem eu
mesmo podiam imaginar o que seria
a minha existência. Uma grandiosa
obra, deveras.

Projeto 21 Rival de si mesmo


Projeto 22 Estava escuro
Projeto 23 O homem da linha
Projeto 24 Esperanças
Conformeavoz
aeromoça. Um
infância. Velav
horasaolongo

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