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As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado Suely Maria Ribeiro Leal © contexto no qual se manifestam as mudancas estruturais no Estado e na sociedade brasileira nas tltimas décadas esta diretamente relacionado com as transformacées na dinamica da acumulagao capi- talista. Os movimentos que caracterizam esse processo, ja retratados por autores como David Harvey (2011), Francois Chesnais (2010), Saskia Sassen (2010), dentre outros, séo marcados pela crise econémica e financeira em nivel mundial, trazendo entre as consequéncias a rees- truturacao produtiva e o rearranjo no formato organizacional dos atores econémicos. A crise mencionada e a faléncia das politicas neoliberais refletem-se sobre as cidades e reduzem a capacidade de financiamento do Estado, 0 que fortalece o papel do mercado e dos investimentos privados e cria um novo ciclo de acumulacao urbana. A formacao de corporacées e fusdes como parte do formato organi- zacional das empresas privadas representa uma estratégia capitalista antiga, j4 mencionada por Karl Marx em sua obra O Capital, na qual ele afirma ser essa uma forma cldssica utilizada pelos capitalistas visando fortalecer sua capacidade concorrencial e de monopélio de mercado, bem como de se contrapor aos instrumentos de regulagao criados pelo Estado para mediar os conflitos de interesses presentes entre as fragdes capitalistas e dessas com a sociedade. Embora Marx se tenha anteci- pado nas suas previsdes ao observar a necessidade de centralizagao e concentragao do capital, o contexto da atual conjuntura econémica e os avangos tecnolégicos favoreceram o surgimento de formatos de corpo- ragdes bem mais eficazes & aco do mercado. Por meio da lideranga do mercado financeiro, foram sendo ampliadas as redes informacionais (CASTELLS, 2000) que agilizaram sobremaneira a circulagao do dinheiro e a consequente realizado do lucro e da mais-valia. Esses fatores também exigiram das demais fragdes capitalistas um esforgo no sentido de ultrapassar 0 modo classico de concorréncia para um efetivo papel ly Maria Ribeiro Leal 162 de monopélio, nao mais por meio de fusdes tradicionais mas por inter- médio de sistemas de governanga corporativa. Esses sistemas correspondem a mudangas internas e externas na forma de administrar as empresas. Do ponto de vista endégeno, os processos se relacionam a normas, instrumentos juridicos, politicas de recursos humanos e a criacdo de instituigdes que objetivam agilizar as relagdes entre os atores envolvidos na corporacao. Exteriormente, as organizacdes corporativas envolvem acionistas, clientes, credores, fornecedores e toda uma gama de stakeholders, que passam a integrar as empresas e fortalecem a sua capacidade de exercicio de monopélio. ] a governanga corporativa trata das maneiras pelas quais os fornecedores de recursos as corporagdes se asseguram que irao obter retorno de seus investimentos [...]. Nessa perspectiva, no que se refere a iniciativa privada, a principal preocupagao de governos e legisladores deve ser promover ambientes econémico e institucional adequados a esses investimentos. (SHLEIFER; VISHNY, 1997, p. 737 apud FONTES FILHO, 2008). © que tem sido observado no comportamento recente do mercado imobilidrio brasileiro séo associagdes, fusdes e sociedades anénimas que passam a ser criadas com outros ramos do mercado capitalista, tais como o capital financeiro, industrial, comercial e de servicos. Para cada Master Project 6 possivel a criagdo de sociedades de acionistas que permitem aumentar e garantir os investimentos e a realizagao mais répida do lucro. Essas associagées, via de regra, tem duragao propor- cional ao tempo do investimento, cessando quando da conclusao das obras e, por vezes, até o término das vendas. Advogamos que esses formatos de corporagées neoliberais, que se sustentam mediante as articulagdes dos agentes econémicos entre si, tém levado ao crescimento da importancia do poder de monopélio sobre 0 espaco urbano, retraindo a capacidade de gestdo e de governabilidade do Estado. No caso brasileiro, enquanto tradicionalmente vigora uma gover- nanga do tipo classico na qual a articulagdo dos atores econdmicos com © Estado se da por meio das elites politicas, que mantém padrées de governanga de forma patrimonialista e clientelista, no formato corpora- tivo a associagdo entre as fragdes das elites e o Estado vem-se proces- sando nas formas de gestao compartilhada (parcerias). (LEAL, 2011). Neste artigo, procuraremos evidenciar de que forma o poder das corporacées imobilidrias vem afetando a producao do espaco da metré- pole do Recife e retraindo o papel do planejamento no territério das cidades e nos mecanismos institucionais democraticos. A ‘Des’governanga estatal e a governanca corporativa Como dito anteriormente, o fortalecimento das corporagées globais tem funcionado como uma das estratégias do capital com vista ao moni- toramento de novas competéncias, tecnologias e lideranga de mercado, mobilizando capacidades e oportunidades, visando ao pioneirismo em produtos e servigos, operacionalizagao com base na flexibilidade e eficiéncia produtiva, financeira e organizacional. No caso brasileiro, se visto sob a dtica do mercado imobilidrio, esse movimento tem-se evidenciado na crescente privatizagao e na ampliagao. da capacidade de lobby dos agentes econémicos, bem como na dimi- nuigdo dos espagos institucionais democraticos, nos quais os arranjos de governanga deveriam firmar-se, como meio de barrar os avangos do capital e suas consequéncias danosas para as nossas cidades. © que se visualiza 6 uma corrente inversa na qual ha uma baixa efetividade dos mecanismos institucionais de gestao democratica e uma fragilizacao do sistema de planejamento urbano, frente as praticas de governanca corporativa efetuadas pelo mercado. E preciso, no entanto, ir mais fundo quanto as razdes que levam os instrumentos de planeja- mento, como planos diretores e canais participativos, a exemplo dos conselhos e conferéncias, a perder sua efetividade, no caso do municipio do Recife. Esse fato corresponde, sobretudo, aos formatos das engenha- rias dos governos municipais, sempre atrelados as oscilagdes poli- ticas e partidarias e as posturas adotadas com respeito aos arranjos institucionais que configuram os sistemas de gestao e governanga do proprio governo. A ética do empresariamento das cidades brasileiras, adotada pela maior parte dos gestores, nao tem sido apenas induzida por razées de natureza ex6gena, a exemplo da Copa 2014, mas é parte das propostas de planejamento e gestao dos préprios governos locais, quando visam atrair investimentos para as acdes de caraéter estruturador. da governanga do mercado As veias abertas do planejamento urbano e a avalai 163 Suely Maria Ribeiro Leal 164 Nesse sentido, as intervengdes de grande impacto nas metrépoles, na pratica conduzidas por articulagdes de governanca do tipo corpora- tivo, passaram a ser assim bem-vindas ao receitudrio empreendedor dos governos, apesar das resisténcias demonstradas pela sociedade civil A presenga desses megaempreendimentos. A revelia do papel de coibig&o exercido pelos instrumentos de regu- lado urbanistica em vigor sobre projetos de impacto para a cidade, sua aco nao tem sido suficientemente forte para impedir que a forca do mercado supere a fragilidade do planejamento das cidades. Dentre as consequéncias mais visiveis desse processo podem ser enumeradas: + Ofortalecimento e o crescimento vertiginoso da acumulagao urbana nas cidades brasileiras; + A intensificagéo das agdes dos agentes imobilirios a revelia do planejamento estatal; + Acrescente privatizago do Estado no contexto dos megaprojetos e dos megaeventos urbanos. Os Master Projects e Novos Ares do Desenvolvimentismo na Regiao Metropolitana do Recife Assiste-se hoje a uma verdadeira corrida pelos grandes investi- mentos em projetos urbanos associados a preparagdo das cidades para a recepcao de megaeventos, com destaque para a Copa do Mundo de 2014, que envolveu 12 cidades brasileiras, e os Jogos Olimpicos de 2016, que ocorrerao no Rio de Janeiro (VAINER; NOVAIS; OLIVEIRA, 2012) (Figura 1). Figura 1: Projetos de Arenas para a Copa do Mundo de 2014 Fonte: Midea (2014). Dentre os exemplos de Master Project estao as Cidades e os Bairros Planejados que tém emergido como uma inovagao no produto imobilidrio, difundindo-se nas areas periurbanas das metrépoles. Nesse contexto, intervengdes fisicas de grande impacto, sustentadas por vultosos investimentos ptiblicos e privados, associadas a construgaéo de uma imagem atrativa da cidade para o mercado global, caracterizam um modelo de desenvolvimento apoiado no que David Harvey denomina empreendedorismo urbano. 0 ciclo recente de empresariamento pelo qual passa a Regido Metropolitana do Recife pode ser atribuido ao crescimento econdmico e aos novos ares de desenvolvimentismo que vém atravessando 0 estado de Pernambuco e alguns municipios metropolitanos. Despontam dentre esses: |pojuca e Cabo de Santo Agostinho, em fungao do Complexo Portudrio de SUAPE e da instalagao da Refinaria Abreu e Lima, que atrairam grandes investimentos industriais e imobilidrios para a regido; Camaragibe e Sao Lourengo da Mata, sedes da Cidade da Copa e da Arena Pernambuco, respectivamente; Jaboatdo do Guararapes, local de expansao natural de Recife; e Goiana, localizado fora da Regiao Metropolitana do Recife (RMR), onde est4 sendo instalado um parque industrial de grande porte (Figura 2). As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado 165 ‘Suely Maria Ribeiro Leal B 3 Figura 2: Regidio Metropolitana do Recife e os Polos de dinamizagao econémica GOIANA RECIFE Fonte: Mello (2014). Embora entre 2013 e 2014 tenha havido uma retracao no mercado imobiliério em Pernambuco, empreendimentos de grande vulto vém sendo projetados ao longo dos Ultimos anos, sendo a maior parte deles oriundos de futuros langamentos a serem realizados por grandes empresas imobilidrias em associagao do tipo corporativo. Exemplos desses tipos de empreendimentos sao os chamados Master Projects de “Cidades Planejadas”, previstos para serem implan- tados em localidades onde estao sendo instalados complexos industriais de grande porte (Figura 3). Figura 3: Empreendimentos de Cidades Planejadas em PE e Sistema de Consorciamento Corporativo entre Grupos de Empreendedores CAVALCANTE PETRIBU, CL. ATLANTICA EMPREENDIMENTOS, MOURA GOIANA E QUEIROZ GALVAO MOURA DUBEUX E CONES.A. CABO DE SANTO AGOSTINHO CONVIDA sUAPE (CYRELA BRAZIL REALTY E ‘QUEIROZ GALVAO RIO AVE EMPREENDIMENTOS FMSA (formada por A.B. Corte INVESTIMENTO SERA Real, Romarco, casa Grande ‘ANUNCIADO HOJE ‘Engenharia, Consulte Engenharia e MASF) AWM ENGENHARIA, SAO CIDADE NOVvA* 1PoJUCA SEM NOME DEFINIDO CABO DE SANTO AGOSTINHO. CAMARAGIBE NORTHVILLE BENTO INCORPORAGOES E GoIANA CA3 CONSTRUTORA ODEBRECHT PARTICIPAGOES E CIDADE DA copa? INVESTIMENTOS SAO LOURENCO DA MATA "ALPHAVILLE ALPHAVILLE PERNAMBUCO? pecenyOLVIMENTO URBANO JABOATAO DOS GUARARAPES SEM NOME DEFINIDO? PERNAMBUCO CONSTRUTORA SAO LOURENCO DA MATA 1Nome preliminar 2 Complexosjé.anunciados FONTE: Jornal do Commercio Fonte: NUGEPP, 2012. Esse modelo tem atraido os grandes grupos do mercado imobilidrio brasileiro, como meio de acelerar o circuito de venda de seus produtos e viabilizar lucros em grandes empreendimentos utilizando 0 marketing das cidades verdes e integradas por infraestruturas e servigos por meio de tecnologias. Os conceitos de “Cidades Planejadas e Inteligentes” representam nomenclatura bastante familiar de experimentos que vém sendo reali- Zados em cidades europeias, americanas, japonesas, dentre outras, e, em geral, se articulam a dois vetores principiais: 0 uso da tecnologia aliado @ sustentabilidade ambiental, ou seja, uma “Cidade Inteligente” aliaria, em tese, capacidade tecnolégica, de modo a difundir aos cidadaos informagdes e servigos para todos os setores urbanos e sustentabilidade ambiental por intermédio do uso de energias limpas e renovaveis. Os slogans “Cidades Planejadas” e “Cidades Inteligentes” tém servido como marketing para parte das grandes empresas para venderem inova- gdes no produto imobilidrio, sendo também marcos de um novo formato de “Convengao Urbana” (ABRAMO, 1995) e de Governanga Corporativa. As inovagées na tipologia e morfologia dessas “Cidades Plane- jadas” sdo megaempreendimentos em dreas loteadas e reservadas para a construgdo de cidades dentro de cidades, reunindo em um sé As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado 167 Suely Maria Ribeiro Leal 168 local: shoppings, hotéis, hospitais, escolas, iméveis residenciais, lojas comerciais, etc. Apesar do discurso da sustentabilidade ambiental, as vinculagdes desses empreendimentos com a fisionomia da paisagem urbana e da cultura local sao restritas, evidenciando-se como “quistos” dentro de um espago urbano despreparado para recebé-los. Como fraturas ou fractais, podem ser identificados com 0 que David Harvey (2005) conceitua como modelo de flexibilizagdo do espaco, dentro de uma geografia desigual e fragmentada. O planejamento, a gestao e a regulacdo por parte do poder publico, bem como o controle social sobre esses territérios tornam-se prementes, de modo a evitar o adensamento em excesso dos nticleos urbanos, e os impactos negativos, como a favelizagdo e a degradacdo socioambiental dos municipios. Nesse contexto, deve-se fortalecer o planejamento e a governanga democratica na qual todos os atores integrantes dos inte- Tesses em jogo possam exercer a fungdo de articulagdo entre o Estado, a sociedade civil e o mercado. Desse modo, as formas de governanca corporativa que permeiam o sistema de gestdo, incorporagao e inves- timentos desses projetos, embora se caracterizem pela inovacao na medida em que congregam diversas empresas em torno dos empreendi- mentos, naéo devem sobrepor-se ao papel do Estado nas esferas federal, estadual e municipal, nem levar a fragilizagao do papel do planejamento € da gestao governamental. Em Pernambuco, alguns desses empreendimentos estéo sendo projetados para ocupar dreas rurais pertencentes a antigas usinas ou engenhos de cana-de-acucar, induzindo a valorizacéo da renda fundiaria tural. Essas areas, atingidas durante longo tempo pela crise acucareira, so de propriedade de grupos oligarquicos que estao se consorciando com empresas imobilidrias pertencentes a grupos locais e nacionais, tendo sido 0 uso do solo transformado em alta rentabilidade no mercado. Aassociagao entre capital fundidrio rural, capital industrial e capital financeiro, transmutando-se em capital imobiliario, é uma das caracteris- ticas do tipo de acumulago urbana recente na Regio Metropolitana do Recife (Figura 4). Queremos alertar para o grau de complexidade dos processos de gestdo e governanca, ptiblicos ou privados, desses grandes empreendi- mentos que irao afetar diretamente o cotidiano da populagao dos muni- cipios que sofrerao intervengées, sob 0 ponto de vista do transito, da mobilidade urbana, da seguranga, da satide, da educacao, da habitagao, do meio ambiente e do planejamento e gestao urbana (Figuras 5 e 6). Figura 4: Mapa de Localizagao do Projeto Cidade Nova a ser implantada na Usina Trapiche Fonte: Memorial Descritivo do Projeto Cidade Nova Fonte: Multiconsultoria, 2011. Figura 5: Maquete Gréfica de Projeto “Convida Suape” aser implantado no Municipio do Cabo "Fonte: Grupo (2012). {As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado B & 3 ‘Suely Maria Ribeiro Leal & 3 Figura 6: Master Plan da Cidade da Copa, a ser implantada no entorno da Arena Pernambuco Fonte: Marques (2012) Outra tipologia de empreendimento diz respeito as infraestruturas de mobilidade urbana, dentre as quais a Via Mangue, obra de grande porte executada na cidade do Recife, objetivando melhorar o transito na zonal sul e servir de apoio 4 Copa 2014. A via em dois sentidos margeia o Parque dos Manguezais. Sua execugaéo ampliou, ainda mais, a atuagao do mercado imobilidrio nos bairros de Boa Viagem e Pina, cujo crescimento se apoiou no marketing de maior fluidez no transito, amenidades fisicas e novas paisagens garantidas pela proximidade com o Parque (Figura 7). A instalagao da Arena Pernambuco contou ainda com um conjunto de obras: corredores exclusivos de 6nibus (BRT), além da expansao do metr6. O BRT do Corredor Caxanga - Leste/Oeste, tinico executado até o momento, possui 12,5 km de extensao e liga as zonas leste e oeste do Recife, com a capacidade para transportar 126 mil passageiros. O Projeto incluiu a construgao de trés elevados, um tGnel e um viaduto e teve um custo de R$ 74 milhGes, sendo o contrato ptiblico realizado pelo governo de Pernambuco, cabendo a execugao ao Consércio Mendes Jtinior Servix* (Figura 8). Figura 7: Projeto da Via Mangue, com via elevada margeando Area de reserva de mangue Fonte: Recife (s.d.). Figura 8: Maquete Gréfica de Projeto BRT Corredor Leste Oeste Fonte: Recife (2011). +0 BRT, principal aposta de mobilidade na Copa, funcionou com limitagdes na maioria das cidades-sede em decorréncia de atrasos nas obras. O Recife nao conseguiu, ainda, operar 100% da capacidade dos corredores, dois meses apés o fim do mundial” (PASSOS, 2014). As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado a7. Suely Maria Ribeiro Leal 472 Dentre os projetos associados @ Via Mangue destaca-se a cons- trugdo do Shopping Rio Mar situado no Bairro do Pina. Esse empreen- dimento também favoreceu a instalagéo no seu entorno de iméveis comerciais e residenciais explorados pelas grandes construtoras locais. Pertencente ao Grupo JCPM, que atua nos setores de Comunicacao, Shopping Centers e Imobilidrio, neste tltimo esta associado a empresas. do ramo em varias partes do pais (Figura 9). Figura 9: Shopping Riomar - empreendimento privado de grande porte préximo a Via Mangue Fonte: Riomar (s.d.) Outro empreendimento de grande impacto para cidade é 0 Projeto Novo Recife, a ser localizado no Cais José Estelita, nas proximidades do Centro Historico do Recife, estando prevista para 0 mesmo a cons- trugao de 12 torres, entre 20 e 40 pavimentos. De responsabilidade do Consércio Novo Recife, constituido pelas construtoras Queiroz Galvao, Moura Dubeux, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos, esse projeto tem uma gestao baseada em um modelo caracteristico de gover- nanga corporativa. Recebeu o apoio da administragdo municipal que permitiu o seu licenciamento, e do Governo do Estado, sem que houvesse restrigdes a implantagao do mesmo nos moldes propostos pela iniciativa privada. Trata-se de um tipico exemplo de penetracao dos interesses econdmicos no seio do estado, 0 que provoca rupturas reais no sistema de planejamento e gestdo da cidade (Figura 10). Figura 10: Maquete Grafica do Projeto Novo Recife, exemplo de especulagao Fonte: Cavalcanti (2012). Ressalte-se que a execugao do projeto vem encontrando barreiras e forte resisténcia de setores da sociedade civil no sentido de impedir a sua construgao nos moldes propostos. A polémica instaurada nas instancias de gestao e controle social, a exemplo do Conselho em Desen- volvimento Urbano, consolidou-se com a mobilizagao, por meio das redes iais, que culminou com a ocupagao da drea pelo chamado movimento “Ocupe Estelita”. Essa ocupagao recebeu o apoio de organizagdes de classe e houve reagées de solidariedade de diversos setores, incluindo 0 embargo da obra pelo IPHAN. A forca adquirida pelas pressdes do movi- mento resultou na abertura de um canal de negociacao com a Prefeitura do Recife, no sentido da revisao do projeto, processo esse que ainda se encontra em andamento (Figura 11). {As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado 173 Suely Maria Ribeiro Leal 8 x Fonte: Especulagao (2012) A Forca dos Agentes Econémicos e a Fragmentagao do Planejamento Democratico O conceito do “direito a cidade”, com referéncia 4 obra de Henri Lefebvre (2001), norteou reformas institucionais relevantes que atin- giram tanto o aparato legal, delimitador da politica urbana nacional, como a estrutura administrativa que orienta a implementagao das politicas publicas urbanas executadas pelos municipios. As conquistas alcangadas com a promulgagao, em 2001, do Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257) e com a criagao, em 2003, do Ministério das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades, sao reflexos dessa concepcao. Apesar dos avangos presentes nos sistemas de regulagao oriundos desses instrumentos, tais como planos diretores, conselhos e conferéncias nos niveis federal, estadual e municipal, a fungdo social da propriedade articulada aos processos de regularizagdo fundidria, a institucionali- zagao de zonas especiais de interesse social, etc., a pratica do plane- jamento urbano no Brasil vem-se mostrando inécua, estando sujeita a captura dos agentes hegeménicos dos capitais investidos na produgao do espago. Desse modo, hd uma forte ameaca A efetividade desses mecanismos, frente a forca que vém adquirindo os agentes econdmicos nos espacos institucionais de gestao democratica e na sua agao sobre 0 territério da cidade. A consequéncia direta desse processo de hegemonia dos agentes econdmicos é a fragmentacgao do planejamento democratico, demons- trado pela fragilidade da estrutura politico-institucional estatal e pelo desequilibrio de poder entre os agentes sociais na disputa pela apro- priagdo do espaco, o que evidencia uma governanca urbana inversa na regulacao do espaco. Nesse cenério, assiste-se, nas metrépoles brasileiras, a uma avalanche de megaprojetos que sao alavancados por uma série de instru- mentos e artificios utilizados pelas grandes empresas para fazer face & implantagao de Master Projects e as suas articulagdes com o Estado, visando viabilizar os seus investimentos. Como mencionamos, as estra- tégias mais comuns tém sido a associagaéo desses agentes na forma de governanca corporativa e as parcerias pUblico-privadas. Os sistemas de governanga que conformam o formato organizacional das empresas corporativas tém provocado a emergéncia de novos atores no contexto da disputa pelos interesses hegemonicos presentes no aparelho de Estado, favorecendo 0 monopélio sobre o espago das cidades (Figura 12). Figura 12: Sistema de governanca corporativa. ned ery Eien Peed Fonte: IBGC, s.d. {As veias abertas do planejamento urbano e a avalanche da governanga do mercado 175 Suely Maria Ribeiro Leal 176 Nesse sentido, a governanga corporativa contrapde-se a governanca democratica, levando a que a disputa pela hegemonia, que durante os anos 1980 e 1990 favorecia os interesses populares, passe a ampliar os interesses privados dentro do Estado. Essa fragilizagao do papel do Estado tem como consequéncia a frag- mentagdo do planejamento democratico e de seus instrumentos e meca- nismos de gestao, a exemplo dos planos diretores, que tém sido esvaziados na sua funcao de regulacao e controle do uso e ocupacao do solo urbano e dos mecanismos de participagdo e controle social, hoje ofuscados e mani- pulados pela presenga dos agentes do mercado imobilidrio. O palco e as arenas, onde se tém revelado a forca do lobby dos agentes imobilidrios e de suas representagdes politicas, sao justamente as esferas democraticas onde estao presentes as entidades de classe, da sociedade civil e dos movimentos populares. No caso das instancias de planejamento e gestao do municipio do Recife, pode-se afirmar estar havendo uma crise de legitimidade no governo local no que se refere ao seu papel de mediador dos conflitos de interesses entre 0 mercado e a sociedade civil, ocorrendo uma retragao nas suas fungées de formulagdio das estratégias de planejamento e desen- volvimento para a cidade. Essa constatagao é verdadeira, sobretudo em relagao ao papel do Conselho de Desenvolvimento Urbano, onde tem sido observada uma crescente influéncia das representagdes de classes vincu- ladas ao segmento do mercado imobilidrio local. E dentro deste Conselho, canal instituido para exercer um controle sobre a gestéo democratica da cidade, que vem ocorrendo a presenca dos representantes das constru- toras interessadas em derrotar os grupos que conformaram o movimento Ocupe Estelita, que lutam por um projeto menos impactante para a area do Cais José Estelita. Essas construtoras representam o Consércio Novo Recife e tem assento legitimo no forum do CDU por meio de sua entidade de classe, mas usam a forga do lobby para impor a cidade um projeto no qual os requisitos dos direitos urbanisticos nao sao respeitados, incluindo a democratizagao do espago em questao para uso coletivo. O processo decisério no espago dessa instancia de gestao, cuja atuagdo deveria ser pautada pelo exercicio democratico, tem sido marca- damente voltado para o empresariamento da cidade, por meio da apro- vagdo de Master Projects que subordinam a produgao do espago aos interesses hegeménicos do capital, como € 0 caso do Projeto Novo Recife. Como se nao bastasse, a ampliacdo do espaco de ingeréncia dos agentes econémicos vem sendo reforcada por uma crescente privati- zagao na esfera do Governo do Estado, retratada por uma verdadeira onda de parcerias ptiblico-privadas em intervengées voltadas para a expansao do crescimento nos polos de dinamizagao econémica. Essas parcerias s&o mais significativas no setor das infraestruturas vidrias e de mobilidade urbana, 0 que reforga a hegemonia dos grandes grupos empresariais e a crescente tendéncia ao fortalecimento das formas de governanga corporativa dos segmentos do mercado privado. As acGes desses atores nao sao norteadas por estratégias de plane- Jamento da ocupagao do territério, pautando-se pelo laissez-faire e pela fragmentacao das intervengées, de acordo com o “bem-querer” dos inte- resses do mercado sobre o espaco urbano. [..] na “parceria piiblico-privada” do estado neoliberal, o Estado e os interesses privados colaboram intimamente para coordenar suas atividades em torno do objetivo de aumentar a acumulagao de capital, o que leva a que os regulados comegam a escrever as regras da regulagao, enquanto o modo de tomada de decisao “ptiblico” se torna cada vez mais opaco (HARVEY, 2006, p. 27). Assim, podemos parodiar Harvey quando se reporta a face opaca do Estado no seu papel de regulacdo do espaco das cidades, ao assumir a fungio de reforgar as estratégias de acumulacao urbana do capital em detrimento do fortalecimento dos espagos e instrumentos democraticos que favoregam os interesses da sociedade. Conclusdes Gostariamos de concluir este artigo com algumas quest6es que norteiam as nossas preocupagées com respeito as tendéncias atuais do cendrio que se configura em nivel nacional e local, no qual crescem 08 indicios de oportunismo dos agentes econémicos para imporem seus interesses hegeménicos, ante a condigdo de financiadores do espaco urbano. Que consequéncias acarretarao sobre 0 empoderamento dos cidadaos e da construgao da cidadania? Comoa sociedade civil e os setores populares urbanos vém reagindo @ provavel acentuagdo da influéncia dos agentes econémicos nos processos de governanga das cidades? Até que ponto hé uma percepcaio de que os espacos institucionais democraticos vém sendo substituidos pelo comprometimento do Estado com os agentes econédmicos? Quais da governanga do mercado As veias abertas do planejamento urbano e a avalai 177 Suely Maria Ribeiro Leal 178 as repercussdes dessa retracao sobre o projeto democratico-popular? Quais os cenarios dos processos de governanga das corporagées capita- listas e como eles se refletirao sobre a acumulacao urbana das cidades? Esperamos que este trabalho tenha ajudado a refletir sobre essas questdes e contribua para subsidiar outros estudos, bem como aponte novas referéncias para pensar a acumulacdo urbana das nossas cidades. Referéncias ABRAMO, P. A regulagdio urbana e o regime urbano: a estrutura urbana, sua reprodutividade e 0 capital. Ensaios FEE, Porto Alegre, 1995. CASTELLS, M. A Sociedade em Redes. Sao Paulo: Paz e Terra, 2000. CAVALCANTI, E. Projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, é aprovado em reuniéo polémica. 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