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ARTE E ESTRUTURALISMO Embora Lévi-Strauss nao tenha dedicado um género de tratado exclusivo a arte, contudo esta, desde Tristes tropiques a La pensée sauvage e a imponente tetralogia Mythologiques, esta sempre presente de modo transversal em quaisquer dos seus livros; as conversagdes com Georges Charbonnier (1959) e Didier Eribon (1988) versam-na explicitamente em alguns capitulos; em Regarder, écouter, lire (1993)*, a arte é novamente tema predilecto. Além disso, uma notavel cultura estética percorre o obra do autor, que cedo se apaixonou pela misica, nfio deixando de recordar 0 culto que, desde a infaincia, rendia «aos altares do «deus Richard Wagner»!; poroutro lado, éem relagao.com o «pensamento selvagem»,nomeadamente com amitologia?, que a arte é especialmente versada, e, entre os varios géneros, ¢ a miisica que ¢ sobremodo considerada. ‘Sao as seguintes as siglas das obras de Lévi-Strauss, aqui mais utilizadas: AS. - Anthropologie Structurale, Patis, Pion, 1958; CC - Mythologiques, 1. 1, Le eru et le cuit, Patis, Plon, 1964; ECL - Com G. Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, Paris, Plon/Julliard, 1961; HN - Mythologiques, 1.4, L’homme nu, Paris, Plon, 1971; MS - Mito e significado (1978), tr. de A.M. Bessa, Lisboa, Ed. 70, 1979; PL ~ Com D. Eribon, De pres et de loin, Paris, Ed. Odile Jacob, 1988; PS - La pensée sauvage, Patis, Plon, 1962; REL ~ Regarder, écouter, lire, Paris, Plon, 1993. 1c, 2 2 Nao é, assim, por acaso, que 0 1° vol. dessa série — Le cru et le cuit —, se inicia com uma «aberturay, invocando sucessivamente o «tema das variagdes», a «sonatay, a «fuga» e a «cantata, lamente do Brasil); 0 2° vol. — Du miel aux cendres ise de mais 166 mitos, também da América do Sul; 0 3° — Lorigine des maniéres de table —, torna-se um género de vasta harmonia com a andlise de 175 novos mitos, agora da ‘América do Norte; € 0 quarto— L. ‘homme nu —, completa. todo na audigao dos timbres, com mais 285 mitos, também da América do Norte, atingindo-se, ento, um total magestaso de 813 mitos, sem falar des suas variantes, Revista Portuguesa de Filosofia, 50 (1994) 393-409 380 Revista Portuguesa de Filosofia 1, Mito e musica «Saber mitico» (e «saber discursivo») Os mitos revelam essencialmente duas caracteristicas fundamentais: sao respostas a questdes profundas — as mais graves e recénditas que os humanos experimentam (da sua origem, do seu destino, da génese césmica, do sentido da existéncia, doalém, dos poderes transcendentes); por outro lado, sfioo resultado de intuigdes singulares que desvendam conexées insuspeitadas entre realidadescom um significado metempirico. Embora aparentem uma reflexao analoga a filoséfica, eles so, no entanto, impessoais e milendrios. Ha, pois, uma diferenga consideravel entre o nicleo de saber manifestado pela actividade mitica e o do saber discursivo das sociedades ocidentais desenvolvidas; este, com efeito, caracteriza-se pela sua conceptualizagao abstractiva, com distingdes de perfis e dimensdes na complexidade e multivaléncia do objecto, tendendo paraa sua posse consciente e controlada pelo intelecto. O saber mitico, ao contrario, no se autopossui conceptualmente nem se autocontrola: oseu processoécomplexivo. Por outro lado, a atitude filoséfica, pelo modo como considera o objecto em totalidade ¢ ultimidade, aproxima-se da atitude mitica, distinguindo-se claramente do saber cientifico: a ciéncia manifesta um horizonte, mas nao 0 horizonte detodos oshorizontes. Contudo, no mito subsiste um saber essencial, de indole sapiencial, das conexées profundas das realidades e da existéncia, como o mostram a afinidade transgeografica e a constdncia estrutural dos mitos, Essa virtualidade sapiencial explica a origem do saber mitico: o homem nao se reduz a uma realidade césica, encerrada numa visdo unidimensional, mas inscreve-se num contexto de sentido transfenoménico. Os mitos dos «primitivos» constituem uma «metafisica antes da metafisica» — uma metafisica primeira —, como tentativa da exigéncia de inteligibilidade; a metafisica de hoje, com diz G. Gurdorf, deve ser compreendida como uma mitologia segunda 3. Também Paul Ricoeur situa a andlise dos mitos no horizonte da inteligibilidade; entretanto, confronta a andlise estrutural dos mitos com a via hermenéutica, «entendida como interpretagao filos6fica dos contetdos miticos, apreendidos no interior duma tradigdo viva e retomados numa reflexao e especulagéo actuais»4. Nesse sentido, indagando a compreensao do simbolo, na sua pluralidade de sentidos, afirma: «le symbole donne a penser»; escreve ainda: «ao cabo do meu estudo, mostrei que nao 3G. Gusdorf, Mythe et Métaphysique, Paris, Flammarion, 1953, pp. 244 ss. 4 P. Ricoeur, «Structure et herméneutiquen, Esprit, 31 (11) Novembro 1963, p. 596. 5 P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, t.2, Paris, Aubier-Montaigne, 1960, p. 13,327. Afirma Arte ¢ Estruturalismo 381 existia simbélica natural, que um simbolismo apenas funciona numa economia de pensamento, numa estrutura; eis porque nunca se poder fazer hermenéutica sem estruturalismon, Neste contexto, entende por simbolo as signifieagdes analégicas espontaneamente formadase imediatamente dadoras de sentido; ser simbolo ¢ reunir numa presenga fulgurante um complexo de intengdes significativas; o simbolo é 0 movimento do sentido primério que nos incita a participar no sentido latente e nos solidariza com o simbolizado, sem que, por outro lado, possamos dominar intelec- tualmentea semelhanga7. Assim, o mito transcende os recursos categoriais da lgica ocidental eos dum formalismo estrito; o que neste é esforgo simplificador, éno mito integracdo complexiva. O mito , pois, expresso plastica e estética, cifrada ¢ existencial desse sentido total do contexto; ele é uma forma do estar-no-mundo, uma busca ansiosa e profunda do sentido da existéncia e do universo. Oerro de muitas concepgdes sobre o mito é 0 de o suporem como um tipo de conhecimento vulgar ou meramente empirico; o mito nao é fantasia sem lei, mas manifestagao originaria e radical dos valores humanos: é conhecimento originario, € filosofia antes da filosofia; nao se situa a nivel do historicamente factual, mas da exemplaridade. Mito e filosofia so explicitagdes profundamente humanas, mas diversas dum mesmo dinamismo original; se a manifestacao diverge, a intengaio converge. O mito, comoregime de compromisso do homem na totalidade do real, isto 6 como «consciéncia original do ser», preserva uma eterna juventude do mundo. Opensamento mitico, porque intuigao do real, que nao é somente necessidade e determinismo, mas probabilidade, desequilibrio, possibilidade, dinamismo, é, portanto, dialéctico, vida, dissimetria, dialogo. O mito é, portanto, um elemento essencial da civilizagdo humana; longe de ser uma va efabulagio, é, ao contrario, umarealidade viva: a elando cessam os humanos de recorrer; nao ¢ mais visto como uma teoria abstracta ou como um desenvolvimento de imagens, mas como uma verdadeira codificagao da religiaio primitiva e da sabedoria pratica’. Compreende- -se, como escreveu Mircea Eliade, que, vivendoos mitos, saimosdo tempo profano, cronolgico, e penetramos num tempo qualitativamente diferente, um tempo «sagrado», ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperavel?. também noutro local: «ll faut penser non point derriére les symboles mais 4 partir des symboles, selon les symboles, que leur substance est indestructible, qurils constituent le fond révélant de la parole qui habite parmi les hommes; bref, le symbole donne a penser» («Herméneutique des symboles etréflexion philosophique»,em Archivio di Filosofia, «| problema della Demitizzazione», Pédua, CEDAM, 1961, p. 60. © P. Ricoeur, no debate com C. Lév Novembro 1963, p. 635. 7 P, Ricoeur, Finitude et culpabilité, op. cit. p. 22 ss. 8 Cf. M. Eliade, Aspects du mythe, Paris, Gallimard, 1963, p. 32. 9 Id., Le mythe de l'eternel retour, Paris, Gallimard, 1969, p. 30 ss. trauss, «Réponses a quelques questions», Esprit 382 Revista Portuguesa de Filosofia Efectivamente, os homens buscam um tipo de verdade que os integre numa inteligibilidade global da realidade: nao num tipo de verdade racionalista, mas na «verdade originaria do ser»; e, sendo o mito uma cifra da existéncia, nao refere o que aconteceu realmente, mas o que plenamente se manifestou. Do sentido (mito) ao som (misica) No entanto, com Lévi-Strauss, inspirando-se na metodologia da linguistica estrutural (Saussure, Trubetzkoy, Jakobson, etc.), n&o sto somente os sistemas de parentesco que se compreendem melhor, vistos segundo o modelo da linguagem como uma das modalidades de comunicabilidade através dos sistemas detrocase de reciprocidade; mas sdo também os sistemas de classificagao totémicos que obtém uma maiorinteligibilidade, pela andlise mediante sistemas de denominagao diferenciais (luz da fonologia); enfim, pela analise estrutural, Lévi-Strauss desenvolveu uma via original para a interpretagao dos mitos: a verdade nao resulta dos termos, por contetidos privilegiados, mas da relagdio entre os termos, que «consiste em relagdes logicas desprovidas de contetido, ou, mais exactamente, cujas propriedades invariantes esgotam o valor operatdrio, pois que relagdes comparaveis se podem estabelecer entre os elementos dum grande ntimero de conteiidos diferentes»!0, Alguns dos principio basicos que regem a anilise estrutural podem assim resumir-se: |) se os mitos tém um sentido, este nao procede de elementos isolados que entram na sua composigao, mas do modo como eles se encontram combinados; 2)0 mito, sendo da ordem da linguagem, esta, tal como ¢ utilizada no mito, manifesta propriedades especificas; 3) tais propriedades sé podem reconhecer-se acima do nivel habitual da expresso linguistica, isto é, sao de natureza mais complexaqueas queencontramos numaexpressao linguisticacomum! |, Duasconsequéncias decorrem, entio, que sao essenciais para a constituigao duma nova metodologia: 1) como todo 10 CC, 624, Neste aspecto, releva-se uma afinidade entre aanalise de Lévi-Strauss eada Kant: {rata-se mesmo duma transposigao da investigagao kantiana para 0 dominio antropolégico, com a diferenga de que em vez de utilizar a introspecgao ou de reflectir sobre o estado da ciénci sociedade particular em que o filésofo se encontra, se efectua uma pesquisa daquilo que pode haver ‘em comum entre a humanidade que nos aparece mais distante €0 modo como o nosso proprio espirito age; em suma, tenta-se desvelar propriedades fundamentals e condicionantes para todo o espirit qualquer que ele seja (cf. C Strauss, «Réponses a quelques questions», Esprit, 31 (11) Novembro 1963, p.630-631), Acerca da andlise estrutural dos mitos, tendo em conta as dualidades linguisticas © a significagao lévistraussiana do sistema mitico,cf.0 nosso trabalho Problemdtica do esiruturalismo. linguagem, esirutura, conhecimento, Lisboa, LN.1.C., 1988, pp. 151-221.Cf.tb. oartigo «Pregnancia legicados mitos:a viaoriginal de Lévi-Strauss», na Revista Portuguesa de Filosofia, 48 (4) Outubro- Dezembro 1992, pp. SI1-550. Was, 232. Arte e Estruturalismo 383 o ser linguistico, o mito é formado de unidades constitutivas; 2) estas implicam a presenga das que intervém normalmente na estrutura da lingua, isto é, dos fonemas, morfemasesemantemas. Dai que Lévi-Strauss denomine esses elementos especificos do mito, e que so os mais complexos de todos, de «grandes unidades constitutivas», ou mitemas, que nao sao assimilaveis nem aos fonemas nem aos morfemas nem aos semantemas, situando-se a um nivel mais elevado; caso contrario, © mito seria indistinto de qualquer outra forma de discurso. Ena transformagao do interesse etnografico em problema de interesse /égico ques situa 0 impulso vigoroso que Lévi-Strauss trouxe a concepgaio do nivel inconsciente que o espirito manifesta o seu funcionamento objectivo; certos animais ou outras espécies naturais, ou certos comportamentos, manifestam-se aptos para transcendercertas oposig6es: servem ent&o como personagens mitolégicas que se elaboram pelo jogo logico de operagées mentais. Se,na sua obra, o Autor havia efectuadoa transposigao, a nivel metodoldgico, da linguistica estrutural para o campo etnoldgico, a verdade é que com a misica 0 realizoucom maior pregndncia; neste sentido, a série tetralégica Mythologiques nao ésomente uma «suma tedrica, mesmo filoséfica», mas assemelha-se a uma «parada maravilhosa», homéloga a dum espectador tomado pelas potencialidades dum concerto ou duma épera, com uma «abertura» — que se inicia com Le Cru et le Cuit!2—e um «final» — que encerra L homme nu '3, Aqui, o recurso a misica é crescente; de notar, que, enquanto as estruturas linguisticas estio duplamente incarnadas no som e no sentido (por oposig&io com as estruturas puramente formais das matemiticas, libertas simultaneamente do som e do sentido), as estruturas musicais diriam respeito ao som menos o sentido eas estruturas miticas ao sentido menos o som, de modo que mito e misica nos oferecem dalgum modo «as imagens devolvidas uma da outray. Lévi-Strauss esclarece, porém, que nao existe a este 12 4 propésito da equivaléncia entre estruturas miticas ¢ musicais, praticadas em Le cru et le cuit, refere mais tarde Lévi-Strauss: «Quando escrevia Le erw et le cuit fiquei perplexo: uma transformagao mitica, que me parecia indubitavel, apresentava uma estrutura para a qual ndo encontrava um equivalente musical, Contudo, a hipétese inicial exigia que ela existisse. Submeti © problema a René Leibowitz (...). Respondeu-me que, do que conhecia, uma tal estrutura nunca tinha sido usada em musica, embora nada a isso se opusesse. Algumas semanas depois, trazia uma composi¢ao dedicada a minha mulher e a mim, que acabara de escrever, segundo as linhas que eu havia esbogado» (PL, 244). 13 Cf. C. Clément, «Le lieu de la musique», em R. Bellour/C, Clément (dir.), Claude Lévi- “Strauss, op. cit, p. 396. Lévi-Strauss esclarece noutro lugar: «Quando falo de mésica, devia, com certeza, qualificar o termo. A miisica que assumiu a fungao tradicional da mitologia nao & um determinado tipo de misica, mas a miisica tal como surgiu na civilizagdo ocidental, nos primeiros quartéis do século XVII, com Frescobaldi, enos primeiros anos do século XVIII, com Bach, musica que atingiu o seu maximo desenvolvimento com Mozart, Beethoven e Wagner, nos séculos XVII € XIX» (MS, 69). 384 Revista Portuguesa de Filosofia respeito um paralelismo estrito entre mito e musica, conseguindo esta tltima, ao menos no limite, libertar-se totalmente da linguagem: os sons propriamente musicais nao s4o os utilizados pela lingua, enquanto o sentido mitico exige sempre amediagaio duma lingua particular, para se expiicitar '4; pela musica se constata que mito se elevaa um determinado nivel que s6 pode ser inquirido acima do nivel habitual da expresso linguistica. Por outro lado, como Lévi-Strauss afirmou em emissao televisiva, a masica é verdadeiramente algo de universal, e tio mais universal que pensa nao haver sociedade que, duma ou de outra forma, nao possua a miisica como parte integrante da sua cultura; ela ¢, pois, um desses universais do comportamento humano!5, Mito e obra musical aparecem, pois, como «chefes de orquestra cujos ouvintes so os silenciosos executantes»!6, No seu ultimo livro, retomando o tema da arte, em especial a mi: afirma: «Duplo paradoxo. Em Franga, em pleno século XVIII, os principios s= bre os quais ‘Saussure fundarda linguistica estrutural sao claramente enunciados, masa propésito damisica, por um autor que dela fazia uma ideia andloga aquela que devemos hoje 4 fonologia; ¢ isso, apesar de ter a linguagem articulada e a musica como modos de expresso totalmente estranhos um ao outro». E continua, nestes termos: «A musica € feita de sons. Ora «um som musical nao tem consigo nenhuma significagao [...] Cada som é quase nulo, ndo tem nem sentido nem cardcter préprio; no que os sons se distinguem doselementos da fala que, nas palavras, nas silabas, mesmo nas letras, podem caracterizar-se como longas, breves, liquidas, etc., enquanto «o déeo réda escala no tém propriedades diferenciais ». O agrado da miisica depende, para cada som «intrinsecamente nulo », dos sons que o precedem e dos que o seguem»!7, Econclui: «Como se vé, a doutrina musical de Chabanon esta em avango sobre asua doutrina linguistica que nao ultrapassa o nivel fonético. Ideias linguisticas modernas tomam assim forma a partir de reflexes sobre a misica, nao sobre a lingua. Neste sentido, pode dizer-se que na historia das ideias, uma «sonologia» antecipa e prefigura a fonologia»!8. E, mais adiante: «Quando Chabanon, resumindo-se, '4 R. Court, «Musique, mythe, langage», Musique en Jeu, Paris, Scuil, (12) Outubro 1973, p. 47. CE. R. Jakobson, Seis ligdes sobre 0 som eo sentido, tr. de LM. Cintra, Lisboa, Moracs Editores, 1977, sbt. o “Prefiicio” de Lévi-Strauss, pp. 7-17. 5. “Musiques universelles”, Musique en Jew, op. elt. p. 103 e da estética musical em Lévi-Strauss, poderdo ler-se, entre outros: C. Deligge, “La musicologie devant le structuralisme”, L'Are, (26) 1965, pp. 45-52: Id., “Sur quelques motifs de ouverture aux Mythologiques”, b., pp. 69-76; Musi “Autour de Lévi (12) Outubro 1973 ( com artigos deJ-J. Ch, Boilés, eum debate televisivo com a participago de Claude Lévi-Strauss); ainda em H) responde no “Finale” a criticas formuladas por alguns musicélogos "7 REL, 95. Os italicos de Lévi-Strauss, entre aspas, sd citagdes que o Autor faz de Chabanon. 18 REL, 95-96. oautor Arte e Estruturalismo 385 escreve: «Sucessio, eis a melodia ; simultaneidade, eis a harmonia», antecipa e formula exactamente nos mesmos termos a relagao, fundamental para a andlise da linguagem, que Saussure estabelecera entre «eixo das sucessividades » e «eixo das simultaneidades»!9, 2. A arte ea ordem da metafora O objecto artistico como «modelo reduzido» Lévi-Strauss delimita 0 dominio especifico da arte, contrapondo-a quer a0 mito quer a ciéncia. O artista, «com meios artesanais, confecciona um objecto material que é ao mesmo tempo objecto de conhecimento». Do ponto de vista da prioridade da estrutura ou do acontecimento, a arte ocupa uma posigdo intermédia; enquanto a ciéncia perfaz acontecimentos com as suas estruturas, 0 mifo elabora estruturas a partir de acontecimentos, ea arte rene a ordem da estrutura ea ordem do acontecimento. O acto criador do mito € ainda simétrico e inverso do da origem da arte; nesta, parte-se dum conjunto formado por um ou varios objectos ou acontecimentos, a que se confere um caracter de totalidade pela estrutura comum; no mito, percorre-se a mesma via, mas num outro sentido: utiliza-se uma estrutura para produzir um objecto que configura um conjunto de acontecimentos, pois todo 0 mito narra uma historia. Aarte procede, pois, a partir dum conjunto (objecto+acontecimento) ¢ vai a descoberta da sua estrutura; 0 mito parte duma estrutura, por meio da qual empreende a construcdo dum conjunto (objecto+acontecimento). Deste modo, «a arte insere-se a meio caminho entre o conhecimento cientifico eo pensamentomitico ou magico»?0, Por outro lado, o pensamento mitico opera com signs, isto é, com unidades constitutivas cujas combinagdes possiveis sao limitadas, ¢ a ciéncia trabalhacom conceitos, isto é, com representagdes com uma capacidade referencial idealmente ilimitada, Qual é, porém, a natureza especifica desse objecto material, realizado pelo artista? E, antes de mais, e sobretudo, a de um modelo reduzido. As observagies sobre o «retrato de Isabel de Austria» (pintado por Clouet e exposto no Louvre) sao extensivas a qualquer objecto de arte; este, em geral, implica uma rentinciaa certas dimensdes do objecto, 0 artista produz um objecto que funciona como um saber. Naverdade, hd uma importante diferenga entre o conhecimento cientificoeo conhecimento estético; o objecto artistico partilha frequentemente danaturezaduma 19 REL, 101. 20 ps, 33. Cf. J.G. Merquior, ‘Strauss, Paris, P.U.P., 1977, pp. 29-40, Lesthétique de Lév as 386 Revista Portuguesa de Filosofia miniatura: é um modelo reduzido; especialmente no dominio da arte plastica, isso torna-se mais claro, onde, para melhor assegurar a representago, se renuncia a dimensées do real; assim, porexemplo, apinturaabstrai do volume, e tantoapintura como a escultura renunciam a dimenstio temporal do que é figurado. Uma obra literaria é também, dalgum modo, um «modelo reduzido»: se, na literatura dramatica, acenaé um género de theatrum mundi, aarte da narrativa manifesta-se como uma miniatura do universo; qualquer grande narrativa seapresentacomo um microcosmos; somente uma consideragao atomista poderia nao divisar em grandes obras de arte a sua peculiaridade de espelho simbélico dos sentimentos ou de diagrama de situagoes. Deste modo, se a actividade da ciéncia é da ordem metonimica, ada arte éda ordem da metéfora; referindo-se a interpretagdio do cabegdio de Isabel de Austria no quadro de Clouet, afirma: «(...) foi necessario proceder de maneira simétrica e inversa da que teria usado a ciéncia, se se tivesse proposto, como é sua fungao, produzir—em vez de reproduzir— nao s6 um novo ponto de rendaa substituir um ponto ja conhecido, mas também uma verdadeira renda em lugar duma renda figurada. A ciéncia teria trabalhado, com efeito, a escala real, mas por meio da invengao dum tear, ao passo que a arte trabatha a escala reduzida, tendo por fim uma imagem homdloga do objecto. A primeira tentativa é da ordem da metonimia, substitui um ser por outro ser, um efeito pela sua causa, ao passo que a segunda é da ordem da metafora»2!. Assim, se a ciéncia fabrica acontecimentos com as suas estruturas tedricas, se o mito elabora estruturas a partir dos acontecimentos, a arte retine a ordem da estrutura e a ordem do acontecimento. Aoriginalidade da estética estruturalista revela-se, contudo, enquanto invoca uma relagao entre a redugéio operada e a propria especificidade do conhecimento estético: «Ao invés do que se passa quando procuramos conhecer uma coisa ou um ser em tamanho real, no modelo reduzido o conhecimento do todo precede o das partes, E mesmo que isso seja uma ilusdo, a razio do proceso écriar ou manter essa ilusdo, que gratifica a inteligéncia ea sensibilidade com um prazer que, nessa tinica base, pode ser chamado estético»22. O conhecimento estético, porque se efectua por uma redugio, é uma espécie de inversio do processo de conhecimento. Além disso, 0 «modelo reduzido» é construido; isto significa que ele nao se reduz.a um simples chomélogo passivo» do objecto: «ele constitui uma verdadeira experiéncia sobre o objecto»23, O proprio espectador pode irmais longe,naemogao estética, queo seu criador: «Comoaescolha duma solugio arrasta uma modificagao do resultado a que teria conduzido uma outra solugao, é pois 0 quadro geral destas permutagdes que se acha virtuamente dado, ao mesmo tempo que a solugdo 21 PS, 36; 08 itélicos so nossos. 22° PS, 35; 23 ps, 35, Arte ¢ Estruturalismo 387 particular apresentada ao olhar do espectador, transformado por esse motivo—sem mesmo o saber —em agente. Pela simples contemplagao, o espectador é, se assim se pode dizer, enviado paraa posse de outras modalidades possiveis da mesma obra, das quais se sente confusamente criador, com mais justificagao do que o proprio criador, que as abandonou excluindo-as da sua criagao; e essas modalidades formam outras tantas perspectivas suplementares, abertas sobre a obra actualizaday?4. E. remata, acerca da natureza do modelo reduzido: «a virtualidade intrinseca do modelo reduzido é que compensa a reniincia a dimensdes sensiveis, pela aguisi¢do de dimensées inteligiveis »25. Esta concepgao activa da contemplacao da obra de arte é confirmada, alias, também pela psicologia da Gestalt ; segundo esta, qualquer configuragao visual ¢ dinamica, 0 ver & sempre uma percepgéio da acgéo26, Também «num quadro de Poussin nenhuma parteé igual ao todo, Cada uma é uma obra-primadomesmonivel que, considerada sozinha, oferece um interesse semelhante. O quadro aparece assim como uma organizagao no segundo grau de organizagdes ja presentes até nos detalhes. (...) A organizagao do todo transpde em maior escala a das partes, cada figura ¢ tao profundamente pensada como 0 conjunto. Nada de surpreendente que, nasua correspondéncia, Poussin siga o uso do tempo, medindo a dificuldade de cada obra pelo numero de figuras que ela contém: cada uma pde um problema do mesmo nivel que a totalidade do quadro»27. Por conseguinte, uma das caracteristicas mais relevantes na concepgao do «modelo reduzido» é colocar a obra no centro da reflexao; com efeito, se uma estética idealista se estabelece a partir da intuigdo criadora, em que a obra concreta figura como projecgao da faculdade do espirito, aestética estruturalista remete para aobra, enquanto sistema de signos: ela funda-se na actividade de significagaiocomo referéncia originaria ¢ original, porquanto remete imediatamente para os signos constitutivos da obra. A estética da significagao, no sentido estruturalista, substitui assim 0 conceito de sujeito— nogao privilegiada do idealismo— pela referéncia a obra enquanto sistema de signos. A questiio do figurativismo na arte Nacivilizagaio mecanica- nas «sociedades quentes», como so as nossas ~a especificidade daarte foi acompanhada porum enfraquecimento da fungao simbilica; 0s tempos modernos criaram formas de arte que se obstinam na reprodugao perfeita 24 PS, 36;0 itdlico é nosso. 25 PS, 36; 0 itélico & nosso. 26 Cf. J.G. Merquior, op. cit, pp. 29-30. 27 REL, 34. 388 Revista Portuguesa de Filosofia da aparéncia do modelo. Interrogando-se porque os primitivos nao seguiram a mesma via, Lévi-Strauss sugere que nao foi por insuficiéncia de meios, menos ainda poruma pretensa inabilidade técnica, mas pela sua concepedo peculiar do universo; ‘como observou recentemente, «apesar dos aperfeigoamentos técnicos, o aparelho fotografico permanece uma maquina grosseira comparada com a mao e 0 cérebro. As mais belas fotografias sao alias as dos primeiros tempos, quando a rusticidade dos meios obrigavao artista a investir a sua ciéncia, 0 seu tempo, a sua vontaden?8, Na verdade, a arte primitiva, seja a ceramica ou a tecelagem dos Incas, ou outras ilustragées — algumas disseminadas pela obra do Autor —, demonstram um dominio técnico extraordindrio, e contudo o seu estilo nao vai no sentido da intensificagao do figurativismo. A razao esta sobretudo em que esses povos consideramomundocomoalguma coisa de sobrenatural: os objectos so «irrepresentiveis por definigdion. Desse modo, «o modelo transcende sempre a sua imagem»29; se a arte dos primitivos nao é puramente figurativa, é que esta impregnada do sentimento da existéncia de um verdadeiro «excesso do objecto»30, Na arte moderna, admite-se com frequéncia «que podemos nao somente comunicar com 0 ser, mas apropriarmo-nos dele através da efigie»3!, Nesta «possessividade por relagaio com o objecto», que é uma espécie de «concupiscéncia méagica»32, Lévi-Strauss discerne uma dascaracteristicas da arte da nossa civilizagaio. Ora, é notério que o Autor julga negativamente quer 0 enfraquecimento do factor semantico na arte — minimizagao da significagao —, quer a sua especificag’o sociolégica—a individualizagao. Mas, para além desses aspectos, 0 Autor adverte do perigo do academismo, que primeiramente se manifestou como «academismo do significado», isto é, da imitagao dos médulos figurativos estabelecidos; se o impressionismo representou uma superagao «da visao do objecto através da escola», o cubismo veio, de certo modo, a encontrar a «verdade semantica da arte»34, No entanto, também 6 cubismo. nao venceu uma outra barreira, a auséncia da fungao colectiva da arte; mas esta 28 REL, 29) ECL, 30 Ect, 31 ECL 32 ECL, 69. 33 ECL, 77. 34 ECL, 80. Escreveu depois: «E verdade que o cubismo conseguiu representar, foi assim com Jakobson, uma via de acesso ao estruturalismo, Nao no que me diz respeito. Pondo no mesmo plano 6s efeitos de perspectiva ¢ as diferengas de iluminagdo ou os desniveis de valores, 0 cubismo transformou um modo tradicional de representagio. Mas, resumindo, nada mais fez que substituir ‘uma conversdo por outray (PL, 238). Arte e Estruturalismo 389 Ultima nao é, como as outras, apenas da ordem das superstruturas, é arrastada pela infra-estrutura social; para a superar, nao basta uma mera evolucdo formal: a arte nao o realiza somente por si. Por outro lado, a pintura moderna abstracta, meramente formal, cede muitas vezes a for¢a invencivel da individualizagao, deslizando para uma extraordinaria profusio de «maneiras», de «estilos»; se Lévi-Strauss designou a antiga tendéncia porum «academismo do significado», em que aarte havia perdido a sua vocagaio de significado em detrimento duma representagao convencional dos objectos, adverte que também pode recair-se actualmente num academismo do significante, num género de imitacdo dos estilos e das linguagens?5; este, oposto ao primeiro, procura manifestar a arte como linguagem, mas uma linguagem que nao é linguagem de ninguém, porventura linguagem de um sé individuo, ou até mesmo de diferentes linguagens coexistindo num mesmo individuo, onde, «e sociologicamente falando, os signos nao servem para a comunicagao no seio do grupo»36, E precisamente este novo academismo que esta na base das criticas dirigidas por Lévi-Strauss 4 pintura abstracta; segundo ele, a pintura nao figurativa adopta «maneiras» em busca de «temas»; cria, no fundo, «imitag6es realistas de modelos nao existentes». De qualquer modo, embora a posigao de Lévi-Strauss seja muito matizada, contudo ousou salientara indigéncia semantica dalguma produgao artisticadonosso tempo; nomeadamente, acerca da pintura nao figurativa e da musica concreta ¢ serial, afirma que aquela perde o poder de significar, renunciando ao primeiro nivel de articulagao e pretendendo que lhe basta o segundo para subsistir37. Linguagem e a «dupla articulagao» Aandlise da linguagem mostra que apenas se pode estabelecer um sistema de signos, isto é, falar com sentido, fazendo intervir os seus dois niveis de articulagao: CE. BCL, 80-81, 36 ECL, 94.0 Autor dira mesmo: «Paramim, 0 oficio de pintor consiste ndo numa reprodugao, mas numa recriagao do real. A exactido com que os pintores holandeses de naturezas mortas nos séculos XVI e XVII, por exemplo, se.aplicavam em mostrar a textura de um pedago de queijo, a transparéncia de um copo, a penuigem de um fruto, extrai o seu valor do facto de que se estabelece uma equivaléncia entre efeitos fisicos e as operagdes que o trabalho do pintor implica. Este oferece assim do mundo sensivel um substituto inteligivel. Ajuda-nos a compreendé-los por dentro» (PL, 239), 37 CC, 29, Esclarece acerca da arte moderna: «[aos pintores] pego que me mostrem a realidade ‘melhor do que eu 0 conseguiria por mim mesmo, que me ajudem a compreender o que me comove no espectaculo do mundo, que assistam as minhas faculdades de sentir e conhecer. Ou ent fagam- me aceder a essa ordem sobrerreal de um mundo que foi real mas que no existe mais. Também escrevi um texto cheio de admiragao sobre Max Emst, 0 que mostra que nao tenho precone contra a pintura modema» (PL, 239-240). 390 Revista Portuguesa de Filosofia um cultural (consciente), queéodas palavras (monemas), 0 outro natural (inconsciente) queéodos sons (fonemas); escolher um sem 0 outro écairno idealismo (formalismo).. Por outras palavras, na linguagem articulada, a primeira articulagdo partilha do léxico e diz respeito as palavras — as «unidades significativas» duma lingua; a segunda, partilha dos fonemas, que, tomados isoladamente, nada significam —as «unidades distintivas»—, mas necessirios paraconstituir osmonemas, jé significantes. E, enquantoas “unidades significativas (os monemas) duma lingua so em niimero ilimitado, operando a um nivel consciente e cultural, as «unidades distintivas» (fonemas) s4o em niimero limitado (20 a 30), situando-se a um nivel inconsciente e natural. A teoria da dupla articulagao possibilita assim discernir as linguagens que tém um sistema — um cédigo —, das linguagens que o nao possuem; somente ha maneira de estabelecer um sistema de signos, isto é, um sistema com poder de significagdo, fazendo intervir as duas articulagdes: uma cultural e consciente, a outra natural e inconsciente. E, deste modo, Lévi-Strauss critica as tendéncias artisticas que nao se fundam numa dupla articulagao; e, quanto a miisica conereta eserial, diz nomeadamente: “seja qual for o abismo de desinteligéncia que separa a misica concreta da masica serial, a questiio que se pie é saber se, concentrando-se uma sobre a matéria ea outra sobre a forma, nao cedem ambas a utopia do século, que consiste em construir um sistema de signos num iinico nivel de articulagao”38, A arte, como qualquer tipo de linguagem votada a significagao, patenteia uma aspiragao da natureza a cultura, isto é, do objecto para o signo, mas exprimindo depois também um trajecto da cultura para a natureza (pelo que interessa particularmente a antropologia). A pintura, como a misica, funda-se na dupla articulagao da linguagem, pela qual se opera essa passagem: na pintura, 0 primeiro nivel é natural (formas e cores), o segundo ¢ cultural (significagao); na misica, 0 primeiro nivel é cultural (sons musicais da pauta), o segundo é natural (propriedades fisicas dos sons e ritmos orgénicos). Ha linguagem, ¢ logo significagao, como salientamos, quando se esta perante um sistema com dois niveis de articulagao; as fungdes respectivas das duas articulagdes nao podem definir-se no abstracto: os elementos promovidos a uma fungao significante duma nova ordem, pela segunda articulagao, devem conter as propriedades requeridas, em ordem a significagao; isto apenas ¢ possivel porque esses elementos so, nao extraidos da natureza, mas organizados em sistema desde oprimeironivel dearticulagao*9. E Lévi-Strauss queafirma: «A misicapercorreum trajecto exactamente inverso: porque a cultura ja lhe era presente, mas sob forma sensivel, antes de, por meio da natureza, a organizar intelectualmente»; com efeito, 38 cc, 42. 39 Cf. CC, 32-33. Arte ¢ Estruturalismo 391 «na estrutura hierarquizada da escala, a musica encontra o seu primeiro nivel de articulago»49. Mesmo os planos interno e externo, no caso da misica, so mais complexos; assim, o plano cultural, formado pela escala dos intervalos e pelas. relagdes hierarquicas entre as notas, manifesta uma descontinuidade cultural, isto é, adossons musicais, que constituem, em si mesmos, objectos integralmente culturais; de modo simétrico, o plano natural, de ordem cerebral, reforga-se naturalmente com 08 ritmos organicos. Consequentemente, na miisica, a mediagdo entre natureza ¢ cultura, que se realiza em qualquer linguagem, torna-se uma hipermediagao; quer do lado da natureza quer do da cultura, a musica ousa ir mais longe que as outras artes. Explica-se, pois, o poder extraordinario que a musica encerra: agir simultaneamente noespirito e nos sentidos, desencadear ao mesmo tempo ideias e emogoes, fundi-las numa corrente em que cessam de existir umas ao lado das outras#!. Entao,amtisica conduz de modo eminente a significacao e esta é vivida pelo homem como uma expresso privilegiada da natureza. A misica mostra o individuo no seu enraizamento natural, a mitologia o seu enraizamento social, servindo-se, para 0 conseguir, dessas «méquinas culturais extraordinariamente subtis que s&o os instrumentos de miisica e os esquemas miticos». Como escreveu R. Court, cenquanto Nietzsche se inclinava para o mito a fim de denunciara perversio do chomem tedrico» e recusarassim o imperialismodo intelecto, Lévi-Strauss, ao contrario, pensa que o saber cientifico, esse «modo de conhecimento cuja absoluta superioridade nao se poderia contestar», dilatando-se progressivamente, poderd absorver o que até ai parecia irracional como 0 mito»42. Na miisica, 0 desdobramento dos meios pelos instrumentos e pelo canto, reproduz, pela sua unio, a dualidade da natureza e da cultura: com efeito, o canto difere da linguagem falada enquanto exige a participagao integral docorpo, mas dum modo estritamente disciplinado pelas regras dum estilo vocal; mas, para além dos mitos serem muitas vezes cantados, a sua recitagao é também acompanhada geralmente duma disciplina corporal (interdigao de dormitar, de estar sentado, etc.). Isto equivale a dizer que, no seio da cultura, o canto difere da linguagem falada como acultura difere da natureza; cantado ou no, o discurso sagrado do mito opde-se do mesmo modo ao discurso profano; igualmente se compara frequentemente o canto € os instrumentos da musica as mascaras: so os equivalentes, no plano actistico, daquilo que so as mascaras no plano plastico. Também, deste pontode vista, mtisica e mitologia (enquanto ilustrada pelas méscaras), encontram-se simbolicamente proximas'3, 40 cq 30, 41 CEC, 35-36. 42 R. Court, op. cit, p. 53. A alusiio da ultima proposigio entre aspas, refere-se a HIN, 569. 43 CfCC, 36-37. Cf. tb. La voie des masques, ed. rev. ¢ aum., Paris, Plon, 1979. 392 Revista Portuguesa de Filosofia Todavia, constata-se que, no caso da musica, ¢ tal como nos mitos, os dois niveis de articulagao estao numa relagao de inversao por relagaio com a linguagem articulada — a que Lévi-Strauss havia numa primeira fase atribuido referéncia primordial. Na musica, como dissemos, o primeiro nivel é cultural e significativo (sonsmusicaisda pauta), o segundo ésignificativo ede ordem natural (propriedades psicofisicas dos sons e ritmos organicos). Com efeito, como observa o Autor, mito e misica operam a partir dum duplo continuo: um externo, cuja matéria é constituida, num caso pelas ocorréncias historicas, ou tidas como tais, formando uma série teoricamente ilimitada, donde cada sociedade elabora os seus mitos; no outro caso, pela série igualmente ilimitada dos sons fisicamente realizaveis, onde cada sistema musical vai haurira sua escala. O segundo continuo é de ordem interna e tem o seu fundamento no tempo psicofisiolégico do auditor, cujos factores sio assaz complexos — periodicidade das ondas cerebrais e dos ritmos organicos, capacidade de meméria e poder de atengdo. A misica dirige-se também ao «tempo fisiol6gico»,e mesmo «visceral», que a mitologia nao ignora, pois uma histéria bem contada pode tornar-se palpitante», sem que a sua fungao seja ai to essencial como em misica: «O contraponto atribui aos ritmos cardiaco e respiratério o lugar duma parte muda»; contudo, esta «parte muda» é bem primordial. Desse modo, Lévi- Strauss explica o que entende por «tempo visceral»; como dissemos, amusica opera por meio de duas grelhas: uma fisiolégica, portanto natural, porquanto resulta do momento musical explorar os ritmos orgdnicos, tornando pertinentes as descontinuidades que de outro modo ficariam em estado latente, ecomo que perdidas na duracao. A outra grelha ¢ cultural: consiste numa escala de sons musicais, em que o numero ¢ os desniveis variam segundo as culturas. Este sistema de intervalos fornece & misica um primeiro nivel de articulagao, em fungao, nao das alturas relativas (que resultam das propriedades sensiveis de cada som), mas das relagdes hierarquicas que aparecem entre as notas da pauta. A missaio do compositor é precisamente alterar essa descontinuidade, sem revogar o seu principio. No caso do mito, apreende-se a razdo da situagao paradoxal, relativa & conexao irracional que prevalece entre as circunstancias da sua criagaio, que sto colectivas, ¢ o regime individual de vivéncia. Na verdade, os mitos nao tém autor; apartir do momentoem que sao percebidos como mitos, existem ja incarnados numa tradigdo: quando um mito € contado, vive-se uma mensagem que nao vem de parte nenhuma. Compreende-se, pois, que a unidade do mito seja projectada de modo virtual: para além da percepgdio consciente do ouvinte, a energia que irradia ser consumida pelo trabalho de reorganizagao inconsciente, por ele previamente desencadeado. A misica pée um problema mais complexo, pois ignora-se tudo acerca das condigdes mentais da criagaio musical; ela implica propriedades duma natureza particular, situadas sem dividaa um nivel muito profundo. A musicaé uma linguagem por meio da qual sao elaboradas mensagens, susceptiveis de serem Arte e Estruturalismo 393 compreendidas pela imensa maioria, enquanto somentealgunsaselaboram; e, entre todas as linguagens, esta faz do seu criador «um ser semelhante aos deuses» e da misica o «supremo mistério das ciéncias do homem»»'4, 3. O estruturalismo— légica da percepeio estética Tanto a musica como a mitologia «confrontam o homem com objectos virtuais, de que somente a sombra é actual, com aproximagGes conscientes (uma partitura musical e um mito nao podem ser outra coisa) de verdades inelutavelmente inconscientes e que hes sao consecutivas»4®; este texto, como outros que citamos, exprimem a trajectoria do estruturalismo, ao mesmo tempo que indicam o seu objectivo: «o que é posto em causa pela misica e pela mitologia no espirito de quem as escuta, stio esiruturas mentais comuns» *, ‘A linguagem musical foi a forma artistica que tomou, na economia da obra lévistraussiana, o lugar de maior relevo apés o modelo da linguagem articulada, sendo mesmo a via por exceléncia da andlise estrutural. A este propésito escreveu: «Se devemos reconhecer em Wagner o pai irrecusavel da anilise estrutural dos mitos, é certamente revelador que essa andlise tenha sido primeiramente feita na misicay. Esta passagem mostra que, por relagao com a linguagem, a misica revela oaspecto do som ja presente na linguagem, enquantoa mitologia manifesta o aspecto do sentido, isto é, do significado, também implicado pela linguagem47; musica mitologia aparecem como «duas irmas geradas pela linguagem». F tal como uma partitura de orquestra s6 tem sentido lidanao somente segundo adiacronia (pagina apos pagina, da esquerda para adireita), mastambém conforme A sincronia (de cima para baixo mas conjuntamente), também os mitos nada significam por si isoladamente, mas apenas encaixados em conjuntos de mitos, em. sucessivos acordes, isto ¢, por «feixes de relagées» — por mitemas 48; nao propriamente segundo a melodia (notas musicais em sucesso), mas segundo a harmonia (notas emitidas em conjunto). Ora também o que singulariza uma andlise 40 ChiCG 26, 45 CC, 25-26 46 CC, 35;0 itilico é nosso. 47 Cf MS, 75. 48 Cf. AS, cap. IX [“La structure des mythes”], pp. 227-255; ef. tb. 0 nosso trabalho Problematica do estruturalismo, op. cit., pp. 159-197. Na sua diltima obra, apresenta mesmo Rameau como predecessor da anilise estrutural: «A teoria dos acordes de Rameau precede a andlise estrutural. Aplicando, sem aindaa formular, anogo de transformagio, Rameau dividiu por trés ou quatro 0 ntimero dos acordes reconhecidos pelos miisicos do seu tempo. Demonstrou que a partir do acorde do tom maior, se podia engendrar todos 394 Revista Portuguesa de Filosofia estrutural é fazer uma pesquisa dos diversos elementos dum sistema, a partir das suas relagdes de diferenca e oposigéo (nao analisar os termos mas as relagdes entre os termos), ¢ dai remontar «arquitectura do espirito humano», para apreender sistema das leis inconscientes determinantes. Mito e misica tém uma outra propriedade em comum: so «maquinas de suprimiro tempo», que o Autor caracteriza assim: «Por debaixo dos sons e ritmos, amiisica actua sobre um terreno bruto, que é 0 tempo fisiolégico do auditor; tempo irremediavelmente diacrénico pois que irreversivel, ede que ela todavia transmuda © segmento que foi consagrado em escuté-la numa totalidade sincrénica e fechada sobre si mesma. A audigao da obra musical, devido 4 sua organizagao interna, imobilizou pois 0 tempo que passa; como uma toalha levantada pelo vento, ela recuperou-o e dobrou-o. De modo que escutandoa misica ¢ enquanto a escutamos, acedemosaumaespécie de eternidade»; jé antes haviaafirmado que «tudo se passa como se a miisica e a mitologia apenas tivessem necessidade do tempo para Ihe infligirum desmentido». E caracteriza assim 0 prazer estético, provocado pela misica: «O prazer estético ¢ feito dessa multiddio de emoges e de pausas, de expectativas frustadas e recompensadas para além da expectativa, resultado dos desafios da obra»; e ainda, confrontando a experiéncia da pesquisa estruturalista com a da emogao musical, escreve: tanto a musica como 0 mito produzem os seus efeitos «através do ouvinte € por ele»; num ¢ noutro caso, observa-se a mesma inversao da relagao entre 0 emissor eo receptor, visto que é, afinal, o segundo que se descobre significado pela mensagem do primeiro; amisica vive-se em mim, escuto-me através dela: «0 mito a obra musical aparecem assim como chefes de orquesta cujos ouvintes sdo os silenciosos executantes»50, De facto, Lévi-Strauss tende a alcangar um género de conhecimento «artistico» do inconsciente, 0 conhecimento do «todo» antes das «partes»; 0 inconsciente é, no estruturalismo, um tipo peculiar de objecto de arte, um«todo», cuja indagacdio arrasta oprazerestético a partir da sua percepgaio em pesquisas dos sistemas, pela inquirigao das respectivas estruturas (modelos reduzidos). Se o conhecimento do inconsciente, segundo 0 estruturalismo, culmina na fruigao da inteligibilidade sob a forma de emogao estética, entao o estruturalismo comega como ciéncia (por uma preservante investigagao em ordem a apreender as estruturas), isto ¢, segundo um processo metonimico, ¢ vem a eclodir num processo metaférico, como o que efectua a arte. 68 outros como outras tantas inversdes do primeiro. A anilise estrutural segue a mesma via quando reduz 0 niimero das regras de casamento ou o dos mitos: reconduz varias regras, ou mitos, a um mesmo tipo de troca matrimonial, ou a uma mesma armadura mitica, diferentemente transformadas” (REL, 43; 49) CC, 24, Arte e Estruturalismo 395 Ora, esse é também o escopo do estruturalismo: a andlise estrutural procura adesvelar no mito um objecto duma esséncia particular produzida precisamente pela unio que se opera na narrativa mitica do sensivel (pois que, apesar de tudo, o mito conta uma historia) e duma mensagem inteligivel, que pode tomar a forma duma equagao matematica»; e, entao, acrescenta: «E, finalmente, 0 que chamamos o sentimento, a emogio, nao sero sempre isso? (...) Os mitos, e sera talvez a sua propriedade mais essencial, sdio objectos belos e queemocionam»S!. Tal comoaarte, também o estruturalismo pretende revelar a estrutura real, mas latente, do objecto, para a tornar inteligivel. Método estrutural e miisica convergem entre sino modo como expressam as relagées entre natureza e cultura — tema predilecto de Lévi-Strauss; a andlise estrutural, ao analisar signos (que realizam a unio entre o sensivel eo inteligivel), remonta a estrutura comum do espirito e da natureza — ao inconsciente estrutural; deste modo, a musica representa mesmo, nao apenas o ideal, como 0 escopo do estruturalismo. Inteligibilidade estrutural e estética estao, pois, intimamente ligadas: como dissemos, 0 «modelo reduzido» nao é um homélogo passivo do objecto; é também reconhecendo o inteligivel pelo modelo, que o espirito experimenta uma, espécie de prazer estético: testemunha uma légica da percepgao estética; mas ¢ esse © projecto do estruturalismo: 0 conhecimento do todo, por meio do modelo, homélogo activo do objecto — que implica uma experiéncia sobre o objecto. ACILIO DA SILVA ESTANQUEIRO ROCHA Universidade do Minho 50 CC, 24. SUG LE| 1968, p. 36. ‘Como escreveu recentemente, «0 Belo nao se reduz a simples percepgao de relagdes, porque isso € verdadeiro acerca de qualquer objecto. Num objecto belo, essas relagdes estilo elas mesmas cm relago, o que the confere uma maior densidade.(..) Tais telagdes multiplicadas no seio da obra de arte, em detrimento das que ela mantém com o resto, elevam-na a um maior poder. Que essas, relagdes estejam em relagio entre si faz dela uma entidade que existe em si mesma ¢ por si mesma, Como o disse definitivamente Kant: finalidade (interna) sem fim (externo); noutros termos, um objecto absoluto» (REL, 79-80). trauss, “La grande aventure de l’ethnologie”, Le Nouvel Observateur, 17 Janeiro

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