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O Brasil é longe daqui: a nacionalidade

brasileira e os escritos amazônicos de Euclides da


Cunha

Cássio Melo – Professor do Curso de História da UFAC

O texto que ora iniciamos, apresenta objetivos por demais tímidos. Temos em mente
ponderar alguns aspectos da obra À margem da história, de Euclides da Cunha publicada
postumamente no ano de 1909, situando-a no contexto da construção da nacionalidade brasileira
na virada do século XIX para o XX.
É mister ressaltar que a tarefa que nos propomos é bastante arriscada, dada a importância
histórica e social do autor do grande clássico da literatura brasileira, Os sertões. Esse risco advém
do fato de que a obra e a biografia do autor em questão são alvo de disputa entre vários lugares
autorizados de memória, cada qual empenhado em evidenciar sua interpretação acerca do autor. E
são vários esses locais que disputam a memória do autor, seja a Academia Brasileira de Letras,
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as várias sociedades Euclidianas espalhadas por
todo o país e, como não poderia deixar de ser, o espaço acadêmico.
Essas disputas, no ano que corre, ficam ainda mais acirradas, pois se comemora o
centenário da morte de Euclides da Cunha ocorrida no dia 15 de agosto de 1909. De modo que
nesse ano foram publicadas dezenas de livros, artigos, revistas comemorativas, cujo tema é
Euclides da Cunha e sua obra. E, o que fazemos na noite de hoje faz parte desse espetáculo de
fortalecimento e disputa da obra de Euclides da Cunha.
Tendo isso mente, o risco de se enveredar pelos caminhos labirínticos do anacronismo
também é bastante grande. Não se pode perder de vista a premissa de que autor e obra devem
ser lidos e interpretados no contexto histórico e social do qual faziam parte. Euclides da Cunha
estava inserido num debate intelectual que dominava os homens das letras na virada do século
XIX. Debate esse, em que a questão racial da população brasileira era pedra angular no que se
referia à construção da nacionalidade brasileira. Euclides da Cunha, assim como Sílvio Romero,
Lima Barreto e tantos outros, construíram modelos interpretativos para a história nacional, e tais
modelos se guiavam pela definição de quem era o brasileiro, principalmente sob a ótica da
etnologia. A grande questão para esses homens era: como desenvolver uma nação formada a
2

partir da mistura de raças cruzadas? Pergunta essa que se arrastou desde a segunda metade do
século XIX até o final da Primeira República. Para Euclides da Cunha, a questão racial não era a
única face desse debate, o desconhecimento da geografia do Brasil e por conseqüência a não
incorporação de boa parte do território brasileiro ao desenvolvimento que ele considerava
importante, foi uma questão nevrálgica na sua obra, não apenas em Os sertões, mas também nos
seus escritos amazônicos. Para Euclides da Cunha, nós brasileiros não conhecemos nossa terra,
vagueamos num exílio subjetivo e estamos alheios a notícias desta terra. Quanto á questão da
importância do domínio da geografia do território nacional, acompanhemos algumas passagens
do artigo “Plano de uma Cruzada”, o qual foi publicada na obra Contrastes e confrontos, de 1907.

O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo-lo de bom grado pela civilização mirrada que
nos acotovela na rua do Ouvidor.
Deslumbrados pelo litoral opulento e pelas miragens de uma civilização que recebemos
emalada dentro dos transatlânticos, esquecemo-nos do interior amplíssimo onde se
desata a base física real da nossa nacionalidade1.

Levado a termo tal posicionamento, podemos afirmar que o Brasil do começo do século
XX ainda se encontra preso em torno da geografia de nossa independência litorânea. Uma
independência planeada entre as elites cariocas e o herdeiro do trono bragantino, evitando-se
assim que o Brasil se desmembrasse em várias repúblicas e garantindo a unidade do estado
nacional brasileiro. Mesmo com a unidade territorial garantida no século XIX, o Brasil fora do
litoral continuava excluído, até mesmo da própria história, a qual já começara a ser tecida dentro
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. No dizer de Ilmar Rohloff de
Mattos, trata-se da nossa historiografia saquarema, que relega ao esquecimento todos aqueles que
nasceram fora do eixo centro-sul brasileiro.
A par disso, podemos refletir acerca da importância da obra de Euclides da Cunha, pois
ele demonstrou como era precária a nossa pretensa unidade territorial projetada pelo estado
imperial do século XIX, e também trouxe à tona questões que os brasileiros em geral não queriam
tomar nota, a exemplo do Brasil insulado habitado pelos caboclos nordestinos. Questão essa
trabalhada pelo autor na sua obra mais conhecida, Os Sertões.

1
CUNHA, Euclides da. Contrastes e Confrontos. Disponível em: [http://www.euclides.site.br.com/downloads/
euclides/euclides_contrastes.pdf]. Acessado em: 10/08/2009, p. 29-33.
3

A outra parte da obra de Euclides da Cunha, menos conhecida e pouco estudada e que
guarda perspectivas semelhantes com Os Sertões, no que toca ao processo de domínio do
território brasileiro por meio do conhecimento geográfico, são seus escritos sobre a Amazônia.
Euclides da Cunha escreveu artigos sobre a Amazônia antes mesmo de conhecê-la in situ.
No ano de 1904 publicou três artigos no jornal o Estado de São Paulo e um para o jornal O Paiz
do Rio de Janeiro, cujo tema se referia à definição das fronteiras entre Brasil e Peru; tais artigos
foram posteriormente publicados na obra Contrastes e Confrontos.
O leitor que ora nos acompanha, deve estar se indagando acerca das nossas referências aos
primeiros escritos amazônicos, se o foco principal da fala é a obra À Margem da História. Para
não restar desconfianças, esclareçamos essa questão.
Um método que consideramos interessante na análise de À margem da História é o
cotejamento desse trabalho com as outras obras sobre a Amazônia, a exemplo do Relatório da
Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus Contrastes e confrontos,
de 1906; o artigo Entre os seringais, de 1906; os livros Contrastes e Confrontos e Perus versus
Bolívia, ambos de 1907.
Na montagem de À margem da história, Euclides da Cunha evitou incluir textos
anteriores a sua viagem pela Amazônia (dezembro de 1904 a janeiro de 1906), textos esses que
apareceram em Contrastes e Confrontos. Também exclui o Relatório da Comissão Mista
Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus , publicado em 1906 pela Imprensa
Nacional no Rio de Janeiro; como também seu artigo Entre os seringais, publicado na revista
Kosmos do Rio de Janeiro, em 1906.
No ano de 1904, Euclides da Cunha estava famoso, porém desempregado. Depois de
demitir-se do cargo de engenheiro da Superintendência de obras públicas de São Paulo, teve uma
curta passagem na Comissão de Saneamento de Santos. Pleiteando um cargo em comissão no
Itamaraty, através de negociação envolvendo o diplomata e acadêmico Oliveira Lima e o crítico
literário e também acadêmico José Veríssimo, Euclides da Cunha dispôs-se a seguir para o Mato
Grosso, Acre ou para o Alto Juruá.2 De modo que, Euclides da Cunha foi nomeado chefe da
Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, que tinha por meta resolver a contendas
dos limites entre os dois países.

2
SANTANA, José Carlos Barreto de. Euclides da Cunha e a Amazônia: visão mediada pela ciência. Hist. cienc.
saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, 2009 . Disponível em [http://www.scielo.br/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S0104-59702000000500008&lng=en&nrm=isso]. Acessado em 01 de Novembro 2009.
4

Já desde 1896, os caucheiros peruanos haviam atravessado o rio Javari, limite entre o
Brasil e o Peru estabelecido desde meados do século XIX, e se mantinham nos vales do Juruá e
Purus, garantidos por tropas peruanas. O tratado de Petrópolis, assinado entre Brasil e Bolívia em
17 de novembro de 1903, pelo qual a Bolívia cedia ao Brasil o território do Acre em troca de
compensações territoriais e financeiras, desagradara bastante o Peru, pois esta nação possuía
pendências de limites na região Amazônica com a Bolívia, o Brasil e a Colômbia. E, em
dezembro de 1904 partiu para Manaus, local aonde se iniciou sua viagem e retornou apenas em
dezembro de 1905.
A partir de agora voltemos nossas vistas para a obra À margem da história.
A primeira parte do livro, intitulada “Terra sem História (Amazônia)”, é composta de sete
artigos em figuram dois personagens principais: a natureza e o homem.
Comecemos então a tratar da protagonista dessa trama, a natureza. A grandiosidade e
beleza da Amazônia prefigurada nas várias leituras de Euclides da Cunha acerca da região,
causam-lhe um terrível desapontamento. Para ele, devido ao excesso de horizontalidade das
paisagens do rio Amazonas, “em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia
inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem fins daqueles horizontes
vazios e indefinidos como os dos mares”.3 É como se a grandiosidade da natureza limitasse a
curiosidade e a criatividade humana.
Ele avança neste raciocínio ao afirmar que o homem nestas paragens é um intruso
impertinente; chegou num momento em que a natureza ainda não havia concluído seu
desenvolvimento e encontrou tudo em plena desordem. É um tipo de natureza que Euclides não
aceita, seja em relação aos cursos tortuosos dos rios da planície amazônica, seja em relação à
expansão e inflexão do volume das águas desses mesmos rios a cada seis meses. Irônica e
angustiantemente Euclides da Cunha observa: “Depois de uma única enchente se desmancham os
trabalhos de um hidrógrafo”.4
A definição do autor é de que se trata de uma beleza imperfeita e inconclusa dentro da
cadeia do processo evolutivo; como se um homem contemplasse ali a natureza de idades remotas.
“A Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo [...] tem tudo e falta-lhe tudo”.
A literatura científica da Amazônica segundo o autor, apesar de ampla, é preciosa e
desconexa, assim como a geografia física dessa região. Todos aqueles que formularam
3
CUNHA, E. À margem da história. 5ª ed. Porto: Livraria Lello & Irmão, 1941, p. 6.
4
Idem, p. 7.
5

monografias acerca da Amazônia em sua maioria caíram no gosto do maravilhoso e suas


produções pouco criteriosas foram enredadas pela grandiosidade da natureza. Isso nos remete a
recorrentes descrições e análises por demais hiperbólicas. Desde o período colonial a “Amazônia
selvagem teve o dom de impressionar a civilização distante”, ela foi palco sucessivas vezes de
tentativas abortadas de colonização; a Amazônia permanece na sua mesmice inaturável.
Partindo das premissas do determinismo geográfico do qual estava imbuído, Euclides
interpreta a história do meio natural como forma de explicar a própria dos homens. Ao adentrar a
paisagem amazônica, de súbito, o intriga a grandeza do Rio Amazonas, e começa a tecer alguns
comentários acerca da função histórica dos rios, vistos por ele como agentes remodeladores dos
acidentes naturais. Além disso, alguns rios ao longo de desenvolvimento da natureza dissolvem
continentes, mudam países, reconstituem territórios. “Ao passo que no Amazonas ocorre o
contrário. O que nele se destaca é sua função destruidora exclusiva”. O seu enorme volume de
água está destruindo a terra, dada a enorme quantidade de detritos e areias que suas águas
barrentas transportam. O Amazonas é o menos brasileiro dos rios, é um estranho adversário,
arrebata o autor. Ele está criando uma terra sem pátria distante das paragens do território
brasileiro, suas águas barrentas conduzem a uma “viajem incógnita de um território em marcha,
mudando-se pelos tempos adiante” as superfícies nas quais atravessa, tornando-as cada vez
menores. 5
O rio Amazonas possui uma incessante capacidade de destruir e reconstruir suas margens,
mantendo sua calha em constante modificação. Euclides lembra que suas curvas infindáveis,
desesperadoramente enleadas, recordam o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar
horizontes, volvendo-se a todos os rumos. O Amazonas é um artista de um quadro indefinido.
“Tal é o rio; tal, a sua história: revolta, desordenada e incompleta”. Os homens que habitam essa
região parecem seguir o mesmo caminho que seus rios; vivem a esmo, em constante mudança,
sua fixação é efêmera “à medida que o chão lhes foge roído das correntezas”.6
Euclides da Cunha lança mão de comentários pouco lisonjeiros para se referir à sociedade
da Amazônia, vejamos alguns exemplos: trata-se de uma sociedade indisciplinada; portadora de
uma indiferença pecaminosa dos atributos superiores; a natureza é uma adversária do homem; a
volubilidade do rio contagia o homem.

5
Ibidem, p. 11-14.
6
Ibidem, p.17-8.
6

Diante dessa natureza pouco heterogênea, o homem a povoou pelo nomadismo. As


palavras do autor são mais esclarecedoras na compreensão dessa afirmativa:
Os cenários, invariáveis no espaço, transmudam-se no tempo. Diante do homem
errante, a natureza é estável; e aos olhos do homem sedentário que planeie submetê-la à
estabilidade das culturas, aparece espantosamente revolta e volúvel surpreendendo-o,
assaltando-o por vezes, quase sempre espantando-o e espavorindo-o. A adaptação
exercita-se pelo nomadismo. Daí, em grande parte, a paralisia,completa das gentes que
ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril.7

Ao contrário do sertão nordestino que criou as condições para a fixação do homem e


permitindo que ali se forjasse uma raça mestiça original, na Amazônia o homem ainda não
dominou a natureza, ele ali está numa completa agitação que nos termos do autor é “tumultuária e
estéril”.
Interessante é notar que quatro anos antes da publicação de À margem da história,
Euclides da Cunha já começara a escrever artigos sobre a Amazônia antes de visitá-la, e o
contraste das impressões antes e depois da ida é bem evidente. Os artigos Conflito inevitável,
Contra os caucheiros e Entre o Madeira e o Javari, os quais tratam sobre o problema das
fronteiras entre o Brasil e o Peru, são todos de 1904 e foram publicados no Jornal O Estado S.
Paulo e posteriormente incorporados ao livro Contrastes e Confrontos. Em tais textos, Euclides
da Cunha analisa a Amazônia positivamente, e narra sua incorporação como fator preponderante
para a afirmação da nossa nacionalidade.
No artigo Conflito inevitável Euclides demonstra o quão é importante para o Peru o
domínio da região amazônica disputada junto ao Brasil. O sugere que a solução para o Peru está
no vingar e transpor a cordilheira; apesar da geografia política do Peru ter se feito no litoral, ali a
natureza é inóspita. Para Euclides, o oceano pacífico, “ainda que se rasgue o canal de Nicarágua,
parece que pouco influirá no progresso do Peru. O seu verdadeiro mar é o Atlântico; a sua saída
obrigatória o Purus”.8
Para o autor, a natureza exuberante e rica do Peru na sua região oriental (amazônica) foi
pouco explorada e desenvolvida em detrimento da baixa capacidade para tal da população de
autóctones que habita-a. Por outro lado, o contraste se faz presente com o litoral, habitado por
“descendentes diretos dos conquistadores”, todavia a natureza ali fornece pouco ao homem.
Nessa tira litorânea, a sociedade não se irmana à terra, pois
7
Ibidem, p. 21.
8
CUNHA, Euclides da. Contrastes e Confrontos. Disponível em: [http://www.euclides.site.br.com/downloads/
euclides/euclides_contrastes.pdf]. Acessado em: 10/08/2009, p.48.
7

no ocidente as praias e vales areentos, mal revestidos de uma flora tolhiça onde
rebrilham os cristais nitrosos e se derrama em largas superfícies a lava endurecida, vão
pouco e pouco molificando o temperamento dos descendentes diretos dos
conquistadores.9

Eis a forma como Euclides da Cunha resume as tentativas do Peru em realizar incursões
no território do Alto Juruá:
acredita-se quase que as incursões peruanas, neste momento exercitadas nas fronteiras
remotas do Alto Juruá, se traduzam como uma retirada, uma tendência para abandonar a
estreita e alongada região onde uma nacionalidade, cujos antecedentes étnicos
prefiguram mais elevados destinos, jaz bloqueada entre o maior dos mares e a maior das
cordilheiras, sobre um solo batido pelo desequilíbrio dos agentes físicos e em contacto
com um passado que tanto tem influído na sua desfortuna.10

Observa-se assim, como sua pena está carregada de tintas do evolucionismo social,
hierarquizando o nível de desenvolvimento das sociedades a partir de critérios culturais, vistos
sob o prisma do desenvolvimento da sociedade européia ocidental. A despeito disso, o autor não
desconsidera a questão mesológica na análise das sociedades humanas, ou seja, deve-se observar
como o meio e sua história natural interferiram na transformação do homem.
Para o Peru, sua entrada na Amazônia seria um rush salvador às cabeceiras do Purus e ao
Brasil cabe encontrar uma solução para repelir a presença peruana naquela região. E Euclides da
Cunha, distante das soluções militaristas, propõe uma saída que se interliga ao seu projeto
nacionalista, qual seja:
as forças para repelir a invasão já ali se acham, destras e aclimadas, nas tropas
irregulares do Acre, constituídas pelos destemerosos sertanejos dos Estados do norte,
que há vinte anos estão transfigurando a Amazônia. E confiados naqueles minúsculos
titãs de envergadura de aço enrijada na têmpera das soalheiras calcinantes, a um tempo
bravos e joviais, afeitos às deliberações de uma tática estonteadora, que improvisam nos
combates com a mesma espontaneidade com que lhes saltam das bocas as rimas
ressoantes dos folguedos – poderemos permanecer tranqüilos.11

No artigo Entre o Madeira e o Javari, o otimismo do autor com incorporação da região


amazônica é ainda mais latente, vejamos:

Por uma circunstância realmente interessante, os ianques, depois de estacionarem largos


anos diante das Rochosas, saltaram-nas, vivamente atraídos pelas minas descobertas na
9
Idem, p.47.
10
Ibidem, p.46.
11
Ibidem, p. 51-2.
8

Califórnia, precisamente no momento em que nos avantajávamos até ao Acre. O


paralelismo. das datas é perfeito. No mesmo ano de 1869, em que nos prendíamos por
uma companhia fluvial àquelas esquecidas fronteiras, eles se ligavam ao Pacifico pela
linha férrea do Missouri, audaciosamente locada nas cordilheiras e nos desertos.
Emparelhamo-nos, neste episódio da vida nacional, com a grande república. O nosso
caso é idêntico, ou mais sério. As novas circunscrições do alto Purus, do alto Juruá e do
Acre devem refletir a ação persistente do governo em um trabalho de incorporação que,
na ordem prática, exige desde já a facilidade das comunicações e a aliança das idéias,
de pronto transmitidas e traçadas. na inervação vibrante dos telégrafos.12

Podemos notar que nesta fase inicial da produção de seus escritos sobre a Amazônia,
Euclides da Cunha tenta fundir sua literatura dos sertões e a Amazônia numa única síntese. O
nordeste brasileiro e a Amazônia apesar se apresentarem como dois elementos geograficamente
antagônicos, se complementam na literatura histórica de Euclides da Cunha. Se ainda não é
possível livrar o Nordeste do seu martírio provocado pelas secas, a bem aquilatada raça de
caboclos tem a capacidade de povoar uma região que se deseja dominar, a Amazônia.
Todavia, ao ver com seus próprios olhos as condições que os sertanejos migrantes para a
região amazônica se encontram, sua análise se transmudará. Euclides da Cunha depois de expor o
escorchante regime escravocrata a que está submetido o intrépido sertanejo, faz uma alerta
quanto à urgência de medidas que salvem essa sociedade obscura e abandonada dos seringais.
Em tom inflamado, aponta a necessidade de leis do trabalho que premiem o esforço daqueles que
ali estão e impeça o excesso de desmandos a que estão submetidos esses brasileiros esquecidos.
Além disso, e acreditamos que seja o ponto alto da crítica do autor no capítulo “Impressões
gerais”, ele clama por uma fórmula que possibilite ao homem da Amazônia se “consorciar”
definitivamente à terra. Tal afirmação não é feita a esmo, lhe cabendo portanto um destinatário
preciso. Nos referimos aqui ao Brasil litorâneo entretido ante o consumo dos valores e bens de
uma sociedade estrangeira e que se nega a olhar para dentro de si mesmo; que se nega a olhar
para os seus sertões recônditos e suas florestas isoladas.
Ligado ao processo de domínio, incorporação e povoamento da Amazônia, Euclides da
Cunha em alguns momentos traça paralelos de tal fato com o expansionismo imperialista inglês e
Francês. Em Contrastes e Confrontos, o tema do imperialismo já fora abordado no artigo
“Transpondo o Himalaia”, o qual trata do domínio inglês na região do Tibet. Presença essa lida
como o avanço de uma civilização superior sobre uma sociedade aniquilada com inteligências
mortas; energias gastas com excesso de orações por parte dos lamas tibetanos.

12
Ibidem, p. 54.
9

Sob tal ótica, o moderno imperialismo expansionista é passível de ser absolvido pois é
realizado de maneira sistemática e metódica, ao qual cabe o papel de adaptar os novos colonos
ante o clima caluniador das regiões conquistadas; como também dominar as raças incompetentes,
atitude vista pelo autor como a redenção desses novos territórios.
Euclides da Cunha chama a atenção para o fato de que nas modernas nações imperialistas
européias, há todo um conjunto de regras, códigos pré-estabelecidos que objetivam “transplantar
integralmente a civilização para o seio adverso e rude dos territórios bárbaros”.13 Todavia, a
despeito dos grandes esforços despendidos, muitas dessas sociedades malogram, pois o viver
desses enviados do Estado se torna inaturável diante dos rígidos códigos de comportamento.
Ao revés de tal perspectiva, o povoamento da região do Acre foi realizado de maneira
tumultuária; uma emigração anárquica e violadora de qualquer princípio de aclimatação, na qual
faltou qualquer resguardo administrativo de uma migração segura. Nas palavras do autor: “O
povoamento do Acre é um caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso
progresso”.14 .
O fator que determinou o povoamento da região não foi o desenvolvimento do país, que
provoca a dilatação das populações “na marcha triunfante das raças”, a exemplo do que ocorreu
com a Inglaterra. No caso em questão, o povoamento foi causado pela escassez, pela fome, pela
fuga diante da miséria em que se encontravam as populações sertanejas, expulsas pelas secas
intermitentes que assolam o nordeste brasileiro. Tais palavras, ao ouvido contemporâneo não
soam de maneira agradável, e são ainda mais duras quando Euclides da Cunha define o tipo
humano que emigrou para a região:
[O povoamento] fez-se por uma seleção natural invertida: todos os fracos, todos os
inúteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos a esmo, como o rebotalho
das gentes, para o deserto.15

Tais tipos, banidos pela ação governamental para o Acre com intuito de desaparecerem,
pois já começavam a abarrotar os litorais nordestinos em função das grandes secas, não
desapareceram. Fizeram o contrário. Dilataram a pátria no extremo oeste da Amazônia, a que
Euclides se refere como “terra da promissão do Norte do Brasil”. Porém, tal povoamento ainda se
faz em completo relaxo e abandono, sem a mínima assistência oficial.

13
CUNHA, E. À margem... Op. cit., p.51-2.
14
Idem, p.54.
15
Ibidem.
10

Quanto às relações de trabalho ali desenvolvidas, o sertanejo será a peça motriz de uma
anomalia gerada pelo egoísmo humano, o trabalho nos seringais. Ele é o homem que segundo o
autor “trabalha para escravizar-se”.16 E, enfatiza as complicações daquele trabalho solitário e
torturante, o seringueiro se encontra numa prisão sem muros, em que dia após dia vão se
esvaindo sua inteligência e suas esperanças. Completa-se a este quadro lúgubre o problema da
alimentação, à base de conservas e caças.
Mas o maior de todos os problemas é o isolamento e o abandono desses profissionais
solitários. A extração do látex, requer um número pequeno de indivíduos que se encontram
grandemente dispersos entre os imensos seringais. Para o autor, tal povoamento é a conservação
do deserto, que impõe grandes desafios no fito de garantir condições de salubridade em tal
pavoroso regime de existência.
Apesar disso esse clima possui uma função superior. Ele seleciona os mais aptos e
condiciona o povoamento, a despeito de toda a indiferença dos poderes públicos, ele exerceu
uma preciosa função fiscalizadora. Ele além de fiscalizar, saneou e moralizou. Nas palavras de
Euclides da Cunha: “E chama-se insalubridade o que é um apuramento, a eliminação
generalizada dos incompetentes. Ao cabo verifica-se algumas vezes que não é o clima que é mau;
é o homem”.17 Vê-se dessa maneira que o trabalho nos seringais exerceu essa função de seleção
natural no povoamento do Acre.
Mantendo-se atento ao modo de vida do sertanejo na Amazônia, Euclides da Cunha no
artigo Judas Ahsverus, ao narrar o episódio do sábado de aleluia às margens do Purus e a forma
como o seringueiro comemora essa data, o autor não está apenas traçando uma análise
psicológica da identificação que há entre o seringueiro e o macabro boneco que representa a
figura de Judas. Boneco esse confeccionado pelo próprio seringueiro.
Podemos arriscar que há de certa maneira nessa narrativa catártica traços da própria
personalidade de Euclides e de sua vida conturbada. Se o seringueiro se utiliza das rajadas de
chumbo para vingar de si mesmo estropiando assim o corpo do maldito boneco, pela via escrita
Euclides da Cunha estabelece uma identificação entre a angústia e o sofrimento do sertanejo
isolado nos rincões amazônicos e a sua própria trajetória de vida.

16
Ibidem, p. 58.
17
Ibidem, p. 58.
11

Assentada em sólida pesquisa documental, a obra Ciência e Arte: Euclides da Cunha e as


Ciências Naturais de José Carlos Barreto Santana, pode nos auxiliar na compreensão da hipótese
acima citada. Euclides da Cunha em 1892 conclui seu curso de Engenharia Militar, como também
angaria o título de Bacharel em Matemática, Ciências Físicas e Naturais. A carreira militar não
apetecia em demasia os ânimos do escritor, e desde o início de suas atividades profissionais ele
sempre reclamara que a farda militar já lhe caía muito pesada, e almejava encontrar uma
atividade fixa que de acordo com as palavras de Barreto Santana:
pudesse [lhe] assegurar razoável estabilidade econômica e tranqüilidade para o
desenvolvimento de suas inquietações intelectuais, preocupação que aparece reiteradas
vezes em suas cartas.18

E tal atividade fixa estava bem definida nos planos de Euclides da Cunha. Desde a criação
da Escola Politécnica de São Paulo no ano de 1893, o jovem engenheiro civil acalentava o sonho
de integrar o quadro de professores dessa instituição, sonho esse nunca realizado. Dado os limites
da fala que desenvolvemos, não podemos explorar em demasia todas as idas e vindas dos
episódios que envolveram Euclides da Cunha nesse processo, mas algo é fato, todo esse processo
angustiava bastante o escritor. Nem mesmo depois de ter se tornado conhecido nacionalmente
após a publicação de Os Sertões em 1902, conseguiu se integrar à Escola Politécnica de São
Paulo.
O desejo de tornar menos áspera sua engenharia longe da estupidez dos empreiteiros que
o rodeavam, tinha lá seus motivos constantemente reafirmados pelo autor. Um deles era o fato de
não poder se dedicar integralmente às suas atividades intelectuais; como também as suas
constantes viagens compondo comissões de trabalho na área de Engenharia, pois não podia se
furtar aos seus encargos de pai de família; soma-se isso a não convivência rotineira entre os
homens que se dedicavam às atividades científicas no Brasil, os quais Euclides imaginava serem
seus pares. A partir desse pequeno quadro podemos vislumbrar as várias possibilidades que
representavam a realização desse sonho. Inclusive, em carta a Plínio Barreto no final de 1904
antes de embarcar para Manaus na missão de reconhecimento do Purus na Amazônia, ele ainda
não descartava a possibilidade de se integrar aos quadros da Escola Politécnica de São Paulo.

18
SANTANA, José Carlos Barreto. Ciência e Arte: Euclides da Cunha e as ciências naturais. São Paulo Hucitec;
Feira de Santana: UEFS, 2001, p. 52.
12

Não queremos com tal assertiva estabelecer uma relação de causa e efeito entre a vida
pessoal de Euclides da Cunha e sua escrita, todavia, são indícios que não podem ser
desconsiderados.
Euclides da Cunha concluiu seus estudos superiores entre os anos de 1889 e 1892 na
Escola Militar da Praia Vermelha e, segundo Barreto Santana, desde o último quartel do século
XIX essa instituição já estava aberta ao debate das principais doutrinas científicas da época, como
o evolucionismo, o positivismo e o determinismo. Em tal ambiente intelectual, os alunos
comungavam da idéia que por meio do conhecimento científico as nações poderiam atingir o
progresso.
Se Euclides da Cunha carregou durante longos anos a frustração de não ver concretizados
em toda sua plenitude seus anseios profissionais, essa frustração pode ser estendida para a jovem
república brasileira na qual ele depositava suas mais nobre e idealizadas esperanças. De tal sorte,
que sua literatura estava carregada de um pessimismo quanto ao futuro do país.
Nesse sentido, o seringueiro travestido em Judas, pode ser lido como um alterego às
avessas do próprio Euclides da Cunha. Era sob tal aspereza e miséria que ele lia o Brasil distante
da Rua do Ouvidor, era sob tal aspereza que em alguns momentos ele via a si mesmo.
Em À margem da história, apesar de suas frustrações quanto à beleza da Amazônia e o
modo terrível de vida do sertanejo para lá migrado, Euclides da Cunha ainda mantém sua
proposta acalentada em 1904, da integração da região como base da nacionalidade brasileira.
No capítulo, intitulado “Rios em Abandono”, após iniciar o leitor na estrutura geográfica
do Rio Purus, qual seja, sua grande navegabilidade tanto nas secas quanto nas cheias, Euclides da
Cunha chama a atenção para o descaso com que esse rio é tratado, desconsiderando-se assim sua
grande importância. Ele afirma:

De qualquer modo urge iniciar-se desde já modestíssimo, mas ininterrupto, passando de


governo a governo, numa tentativa persistente e inquebrantável, que seja uma espécie
de compromisso de honra com o futuro, um serviço organizado de melhoramentos,
pequeno embora em começo, mas crescente com os nosso recursos – que salve o
majestoso rio.19

E para concluir ele completa:

19
CUNHA, E. À margem... Op. cit., p.45.
13

O Purus é um enjeitado Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso, do qual ele será,


ao cabo, um dos maiores fatores, porque é pelo seu leito desmedido em fora que se
traça, nestes dias, umas das mais arrojadas linhas da nossa expansão histórica.20

Ao se referir aos percalços de uma viajem pelo interior do Juruá ou do Purus, o autor mais
uma vez lembra os problemas da Amazônia, trata-se de uma terra triste e desgraciosa, pelo
simples motivo de que é uma terra nova. Tal adjetivo faz referência ao grau de evolução dessa
região, que ainda é incipiente, falta-lhe a presença humana de maneira rígida e sedentária que
torne visíveis os “recortes artísticos do trabalho”.
O nivelamento da floresta é um fator que a torna por demais impenetrável, ocultando
assim sua própria grandeza. Para aqueles que a povoam, no caso presente o sertanejo nordestino,
não se pode considerar que a cultivem, são apenas domadores de uma natureza bravia: “estão
amansando o deserto”. E, graças ao organismo robusto e disciplinado aos revezes da natureza do
qual são dotados, tornam a empreitada possível.
Mas ponto alto do seu projeto nacionalista para a Amazônia é notado no capítulo
“Transcreana”, o último da primeira parte de À margem da história. Aqui nesse artigoEuclides da
Cunha é menos ácido com o funcionamento da natureza amazônica, e compreende o
funcionamento dos rios e seus excessivos volumes e amplitudes durantes as cheias. Afirma
Euclides que na região dos rios Juruá, Purus e Javary, o povoamento ajustou as margens dos rios
e “progrediu tão de improviso que terminou, em menos de cinqüenta anos, uma dilatação de
fronteiras”.21 O fato de o rio funcionar como estrada, plantação e moradia impôs uma
característica a tal tipo de povoamento: o nomadismo. E completa:
Restava [ao homem] o só esforço de colher à ourela das matas marginais as especiarias
valiosas; atestar com elas seus barcos primitivos e volver águas abaixo – dormindo em
cima da fortuna adquirida sem trabalho. 22

O homem nessas paragens não avança muito além dos limites do curso dos rios. Entre
curso de água e outro, a floresta é um isolador, ela divide, substitui a montanha que ali não
existe. Ela manteve isoladas as massas povoadoras que adentraram aquela região. Ao invés de
dominar a terra o homem escraviza-se ao rio, assim conclui o autor.
As condições desfavoráveis de comunicação entre os rios provocando esse isolamento
linear, foi corrigido pela ligação transversal dos seus vales, utilizando-se dos chamados

20
Idem, p. 46.
21
Ibidem, p.116.
22
Ibidem, p.116.
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“varadouros, que é a vereda atalhadora que vai por terra de uma vertente fluvial a outra”. 23
Euclides, mais uma vez chama a atenção dos Governos para obras de desenvolvimento. Aqui ele
se refere ao imenso trecho do varadouro retilíneo que liga Cruzeiro do Sul às sedes dos
departamentos do Purus e do Acre, que doravante necessita da urgentíssima construção de uma
via férrea; o autor tem a percepção de que a geografia amazônica é um obstáculo a tal
empreitada, mas cabe à engenharia vencê-lo. Outrossim, a função social da linha férrea acreana é
das mais importantes, a ela caberá distribuir o povoamento que já existe e se encontra
concentrado ao longo dos cursos dos rios. De tal modo que será possível locar, e aqui faço uso
das palavras de Euclides da Cunha:
com mais segurança os núcleos coloniais ou agrícolas e demarcando-se legalmente as
terras indivisas – à gerência mais pronta, mais desimpedida, mais firme, dos poderes
públicos, que hoje ali se triparte, desunida, cem sedes administrativas impostas
exclusivamente pelas vicissitudes geográficas.24

Aqui, a exemplo das propostas que fizera para mitigar os males da seca do árido sertão
nordestino, Euclides não está apenas propondo que os governos constituídos proporcionem por
meio dessa grandiosa obra a integração dos vários núcleos de povoamento das regiões do Purus,
do Juruá e do Acre, nos quais jazem esquecidos uma grande quantidade de brasileiros. Euclides
da Cunha, aqui se pronuncia como representante do Estado que o era também, propondo medidas
efetivas para que o Brasil se assenhore dessa região de limites ainda não estabelecidos. E, sob o
ponto de vista econômico a construção da ferrovia também se justifica, pois uma viagem de
Cruzeiro do Sul ao rio Acre que tinha a duração de um mês, poderia ser realizada em belas 36
horas numa velocidade média de 20 km/h. A safra da borracha agradeceria.
O traçado dessa via férrea corresponde grosso modo ao trecho da rodovia BR 364 que liga
a atual capital do estado do Acre, Rio Branco, à cidade de Cruzeiro do Sul, o qual até os dias
atuais se encontra inconcluso.

23
Ibidem, p.118.
24
Ibidem, p. 128.

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