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Descartes, entre Deus e o Diabo...

Breve consideração sobre a estratégia cartesiana para conquistar a certeza da ciência nas
Meditationes
Juan Adolfo Bonaccini1

Muita gente conhece os textos de Descartes, pelo menos os mais lidos, o Discours de la
Méthode, as Meditationes de prima philosophia, os Principia philosophiae,as Regulae ad
directionem ingenii. Mas poucas vezes se atenta para o fato de que um homem de ciência
como Descartes esteja preocupado em erigir uma metafísica e fundamentá-la de modo
último como a base necessária de todas as ciências. Ignora-se por que um cientista como
Descartes crê ser imperioso demonstrar a existência de Deus, a distinção essencial entre
corpo (divisível) e a alma (indivisível) e a possibilidade real de um conhecimento certo e
indubitável acerca dos corpos e suas relações essenciais. Dois problemas, relacionados
entre si, são responsáveis por essa preocupação de Descartes: a condenação e subseqüente
retratação de Galileu, que despertou o horror cartesiano perante o risco de ser condenado
pela Inquisição e pela Ortodoxia da Igreja2, e o desafio cético, em voga depois da tradução
de Sexto Empírico por Henri Estienne e sua conhecida reapropriação por Montaigne e
Charron3. Por um lado, Descartes precisa mostrar que não é um herege e que a ciência que
está a construir é compatível com os dogmas da Igreja; e mais, que essa ciência deve ser
fundada metafisicamente em tais dogmas4. Com isso ele atinge tanto a ortodoxia
tradicional, que renega e persegue a nova ciência (por ser incompatível com os dogmas da
Igreja), como o fideísmo que se utiliza do arsenal cético, ora para atacar a revolução
científica moderna, ora para atacar a Reforma, ora para defendê-la5. Por outro, Descartes
precisa refutar os céticos, neopirrônicos ou não, que defendem a impossibilidade do
conhecimento indubitável na ciência humana6.

Assim, do lado fideísta, ao erguer a tese de que nada pode ser conhecido, porque não pode
ser demonstrado com certeza, e por isso a revelação é a única certeza que podemos aceitar,
o desafio cartesiano é duplo: primeiro, mostrar com argumentos racionais que podemos
conhecer com certeza, e segundo que esta certeza não só não é incompatível com os
dogmas da revelação, mas ainda se funda racionalmente sobre alguns deles (por exemplo, a
existência de um criador perfeito, do livre arbítrio no homem, da alma imaterial, etc.). Do
outro lado cético que Descartes enfrenta, trata-se de utilizar e inclusive aprimorar as armas
dos céticos. Trata-se de enfrentá-los e vencê-los na arena de sua própria suspeição. O
famoso método da dúvida funciona como o fio condutor através do qual Descartes conduz o
leitor à certeza da verdade, quer este seja cético acerca da possibilidade de um
conhecimento (metafísico ou matemático) indubitável e infalível na esfera humana, quer
seja cético acerca do alcance do conhecimento sensível dos corpos físicos e de suas
relações entre si.

Por isso o ponto de partida somente pode ser uma dúvida que abarque a falta de certeza
tanto do conhecimento sensível quanto do racional, a qual se concretiza na hipótese de uma
ignorância e uma incerteza absolutas, grau zero de certeza e conhecimento, plasmada na
suposição de um gênio maligno que me engana o tempo todo (Primeira Meditação, § 12).
A passagem da suspensão do juízo acerca de crenças sobre a existência e as propriedades
dos objetos de nossas idéias sensíveis e sobre a evidência das naturezas simples que são
objeto das matemáticas (através do argumento do sonho e da hipótese do Deus enganador,
respectivamente), para a certeza absoluta acerca da existência de um Deus que não nos
engana e valida nossas crenças na evidência infalível das matemáticas e na existência dos
corpos e das suas propriedades fora das nossas idéias (bem como na existência de uma alma
diferente de nosso corpo), ocorre por ocasião de uma hipótese extremamente sugestiva.
Esta, por um lado, tem por função fazer com que eu me lembre, para não incorrer em erro,
de que não devo confiar cegamente nos sentidos (visto que eles não me permitem
determinar se estou acordado ou dormindo quando penso que vejo coisas fora de mim),
nem na razão (porque se Deus me enganasse 2 mais 2 poderia não ser igual a 4; e mesmo
que eu não acreditasse em Deus, deveria admitir que minha natureza deve-se a uma ou mais
causas menos perfeitas do que Deus seria, se Ele existisse, e nesse caso seria assaz provável
que me enganasse, pois quanto menos perfeita fosse a causa da minha existência, maior
seria a possibilidade de que eu me enganasse!). A hipótese serve fundamentalmente como
uma estratégia para conquistar algum conhecimento, se por ventura isto for possível, ou ao
menos para que tome ciência da minha absoluta ignorância, entregando os pontos ao
ceticismo: a idéia é que partindo da hipótese da incerteza absoluta (na medida em que
existiria não um Deus, mas o Diabo, a saber, um malin génie responsável pela minha
existência e pelo meu modo falível de ser, o qual faria uso de todo o seu poder e de toda a
sua indústria para que eu me enganasse, mesmo nas coisas que acredito serem mais
indubitáveis e evidentes), talvez eu possa conquistar alguma certeza: basta para tanto que
pelo menos algo possa resistir ao teste da dúvida em que o demônio me faz afundar. Basta
que eu possa experimentar algo acerca do qual o gênio maldoso não possa me enganar,
mesmo utilizando toda a sua indústria e todo seu poder. Se isso for possível, terei uma
primeira certeza inabalável, como que a pedra fundamental de um possível edifício de
conhecimentos.

Agora bem, geralmente se admite que a preocupação de Descartes não é tanto pôr em
dúvida o poder da razão como reafirmá-lo, e que como bom racionalista só está preocupado
em questionar o conhecimento sensível7. As coisas não são bem assim, porque se o fossem
não se explicaria por que Descartes não parou de duvidar no momento em que as naturezas
simples resistem ao argumento do sonho, que justamente por isso não atinge a evidência
das matemáticas. É verdade que o modelo de conhecimento científico e de certeza que
Descartes tem em mente é racional, e que é por excelência o conhecimento matemático. E é
também verdade que a certeza do conhecimento sensível se funda metafisicamente em
Deus, mas epistemologicamente na geometria, não sendo, portanto, tão certo quanto o
racional. Todavia, se Descartes chega a questionar o critério epistêmico da evidência
matemática, e justamente através de uma opinião acerca da onipotência divina, é porque
põe também em dúvida o conhecimento racional. E por quê? Por que Descartes, que é um
homem de ciência, um físico e um matemático, duvidaria do poder da razão? A resposta
não pode ser simples. É preciso compreender o contexto da discussão para entender a
eficácia e o lugar das alegações cartesianas.

Num sentido geral, se Descartes leva a sério o desafio cético, pode dizer-se grosso modo
que deve seguir à risca sua estratégia de vencer os céticos com as próprias armas. Se os
céticos questionam o poder da razão tanto quanto o poder dos sentidos, para poder
demonstrar a possibilidade de um conhecimento racional é preciso refutar o argumento
cético contra a possibilidade de um conhecimento racional. Para refutá-la, porém, é preciso
apresentá-la, saber qual o seu ponto alto e qual o seu ponto fraco. Assim, Descartes
reconstrói o argumento cético e finge defendê-lo para depois poder refutá-lo. Mas aí é que
está o quid: por que reconstruí-lo tal como o reconstrói na Primeira Meditação? Por que
duvidar do poder da razão humana a partir de uma dúvida sobre a evidência das naturezas
simples que são objetos das ciências de coisas simples como a geometria e a aritmética? Eis
em todo caso uma boa questão.

A resposta tem a ver com algo apontado no início: Descartes precisa demonstrar que a sua
ciência é a de um bom cristão; que ainda que concorde em parte com a nova ciência em
ascenso (copêrnico-galileana) não se trata de uma heresia. Duvidar do poder da razão, de
um lado, implica reconhecer com a Igreja (ou admitir reconhecer em princípio, ex
hypothesis) que o poder da razão humana não é ilimitado, que ela é falível; que ela no fim
de contas não pode dispensar o auxílio divino. Que a matemática não veio substituir a
Providência! Mas, curiosamente, Descartes faz isto, de início, com um argumento muito
forte, que retira da própria Igreja, e que reenvia uma objeção aos teólogos do círculo de
Mersenne: se Descartes duvida do poder da razão, pondo em questão a evidência
matemática, o caso é que somente faz isso apelando para uma conseqüência direta de um
atributo divino. Se Deus tudo pode, o que me impede de pensar que ele possa estar a me
enganar? Com isso, se bem que reconstrua a seu modo uma dúvida acerca do conhecimento
racional, como os céticos, à medida que se apóia numa formulação teológica opta por dar-
lhe uma vertente fideísta: ao duvidar da certeza das matemáticas põe em suspenso a um só
tempo o conhecimento racional, como o ceticismo tradicional, e concorda com a Igreja
sobre o caráter falível da nossa razão, fingindo opor-se à moderna tese da matematização
do universo. O seu fim, porém, é justamente a fundamentação metafísica do projeto
moderno desta matematização, a justificação de sua física e de sua geometria8.

A estratégia tem em vista,como foi dito, demonstrar contra os céticos que existe um mundo
externo de corpos extensos e em movimento regidos por leis matemáticas, e que existe uma
ciência humana capaz de conhecê-los com sucesso; e contra a Igreja que se utiliza do
arsenal cético para negar e atacar a ciência moderna, Descartes argumenta que uma ciência
destes corpos, ainda que fundada na razão, não é uma heresia; porque a razão retira a sua
garantia de legitimidade precisamente do auxilio divino. Como?

A resposta a esta questão exigiria uma análise detalhada das Meditações, e de outros
aspectos da obra matemática e científica de Descartes. Aqui, porém, devido ao espaço e ao
caráter desta minha apresentação oral, não menos do que à circunstância que nos reúne e ao
caráter plural do auditório, não se pode realizar esta tarefa. O que eu então posso fazer é
esquematizar com grandes pinceladas o quadro da estratégia argumentativa de Descartes
em seu caminho para a certeza, ou seja, explicar os passos que vão da posição
metodológica da incerteza na aplicação do método da dúvida até a demonstração de tudo
que tinha sido posto em dúvida a partir da primeira certeza conquistada por resistir à
dúvida. É o que faço brevemente a seguir, para concluir mostrando como Descartes finge
metodologicamente sucumbir à incerteza demoníaca para chegar à Ciência através de Deus.

Após culminar a Primeira Meditação, Descartes não deixou mais nada em pé. Duvidou do
conhecimento racional pondo em questão a minha evidência de que 2 mais 2 é igual a 4, se
Deus me engana, ou se sou falível por natureza, e duvidou do conhecimento sensível pondo
em questão o estatuto ontológico dos corpos e de seus atributos através da constatação de
que não tenho como saber se sonho ou durmo quando os vejo. A hipótese do gênio maligno
reforçou a dúvida fazendo com que eu me lembre da dubitabilidade de todas as minhas
crenças. Na Segunda Meditação, Descartes começa então por relembrar tudo que pôs em
dúvida e refletir se há algo que seja certo. Aí percebe que para duvidar, pensa, e que para
que o gênio maligno o engane, é preciso que pense. Mas como para pensar é preciso existir,
é preciso que seja indubitável que ele exista: se ele não existisse, o gênio não poderia
enganá-lo. Afinal, como poderia enganar alguém que sequer é algo ou alguém, que não
existe? Impossível até para o gênio. Logo, eu sou, eu existo, diz Descartes nas Meditações.
Ou: Penso, logo existo, segundo a famosa e incompreendida frase do Discurso do Método.
Com isso conquista uma certeza inabalável, porque é indubitável, mas que ainda não é uma
verdade, porque ainda não se demonstrou que a verdade é possível, nem que pode ser
identificada à certeza, uma vez que a hipótese do gênio maligno pôs em questão toda
certeza e, portanto, toda vez que eu parar de pensar em que se penso é preciso que exista, e
que se me engano penso, e por isso se o gênio me engana é porque existo, toda vez que —
por exemplo — eu me esquecer disso e me entregar ao devaneio de qualquer pensamento,
como que tenho calor ou frio, que é meio-dia, que minha perna dói ou que está chovendo, o
gênio maligno ainda pode estar a me enganar e eu não tenho como saber se o que penso é
certo ou não, se os objetos das minhas idéias existem fora delas ou não etc. Portanto, essa
primeira certeza é muito tênue, tanto que alguns comentadores a chamam de "persuasão",
mas dela Descartes pode não obstante extrair algumas conclusões9.

A primeira é que observando minha única certeza eu posso refletir sobre suas propriedades
essenciais e aventurar uma análise de minha essência, uma classificação do que pertence a
meu espírito e do que a ele não pertence. Posto que no Cogito — Eu sou, eu existo -
conquistei a certeza de minha existência, mas ainda não a certeza sobre minha essência: eu,
que sou, ainda não sei o que sou; não até descobrir, depois, analisando o Cogito, que sou
uma coisa pensante, uma coisa que pensa, i.e. que afirma, que nega, que duvida, etc. Daí
por que não é tão fácil conhecer o meu corpo como o meu espírito, por que imediatamente
sei com clareza e distinção quais os atributos da minha essência pensante, mas não acontece
isso com o meu corpo, mergulhado na incerteza desde o argumento do sonho, o qual foi
reforçado com a hipótese do gênio maligno que sempre me engana.

A segunda é que observando minha única certeza eu posso refletir sobre suas propriedades
essenciais e aventurar uma definição provisória das condições de toda certeza. Daí posso
extrair uma regra geral. Essa regra consistirá na clareza e na distinção que eu observo em
minha certeza de que se o gênio me engana eu existo. Contudo, como minha certeza só vale
enquanto nela penso atualmente, ela não pode ser considerada verdadeira. Assim a regra
dela extraída só será validada ao provar que a certeza do Cogito é verdadeira, e não uma
mera certeza subjetiva (i. é, que só vale enquanto a penso atualmente). Assim, para que essa
regra geral da certeza se torne uma regra geral da verdade é preciso demonstrar a realidade
objetiva das idéias claras e distintas, quer dizer, demonstrar que os objetos aos quais elas se
referem existem verdadeiramente. O que redunda em eliminar a hipótese do gênio maligno
que me engana e rui os alicerces objetivos de minhas idéias10.

De modo que o problema maior que Descartes enfrentará a partir da Terceira Meditação é o
de eliminar a hipótese da incerteza absoluta, a saber, a hipótese do gênio maligno; e o único
modo de fazê-lo será demonstrando que não existe; que bem antes existe um Deus, Ser
Perfeito, que por isso mesmo não pode me enganar, porque o erro e o engano maculariam
sua perfeição. Na Quarta Descartes irá então demonstrar que esse Deus não pode ser causa
de meus erros nem de meus enganos, os quais são antes provocados pela minha finitude, a
saber, pelo conflito gerado entre a ambição infinita de minha vontade de conhecer e o limite
cognitivo do meu entendimento, fazendo com que em meus juízos afirme (ou negue) mais
do que posso conhecer.

A Terceira Meditação, porém, mediante uma análise das representações tinha chegado ao
fato de que somente proposições ou juízos são passíveis de verdade ou falsidade, e
portanto, se o gênio maligno me engana só poderá fazê-lo toda vez que afirmo (ou nego)
uma proposição como verdadeira ou falsa, e não enquanto tenho uma mera idéia, uma
volição, um sentimento, ou imagino qualquer coisa. Dentre os juízos, Descartes mostra que
aqueles nos quais parece que me engano com mais facilidade são os que se referem e
parecem corresponder às coisas que penso como objetos extramentais de minhas idéias
sensíveis. De fato, conforme a Primeira Meditação, o argumento do sonho não me permite
decidir com certeza se existem os objetos das minhas idéias sensíveis para além das
mesmas (já quanto à incerteza das idéias matemáticas, a sua recuperação, prévia
demonstração da existência de um Deus Bom e Veraz nas Meditações Terceira e Quinta, só
ocorrerá nesta última). Mas a demonstração da existência de Deus na primeira parte da
prova da Terceira Meditação diz respeito à prova da objetividade. Pela primeira vez, tendo
demonstrado que a única causa da minha idéia de Deus como um ser infinito, dotado de
infinitas perfeições, só pode ser a existência objetiva de Deus, dado que eu, finito, não
poderia ser a causa dessa idéia (em virtude do princípio segundo o qual o efeito não pode
conter mais realidade do que a causa); pela primeira vez, assim, fica demonstrada a
realidade objetiva de uma idéia clara e distinta — da idéia clara e distinta do infinito. E com
isso a regra geral da certeza deduzida do Cogito torna-se, agora sim, pelo menos neste caso,
a regra geral da verdade.

No entanto, as idéias sensíveis de corpos e suas propriedades não se apresentam com


clareza e distinção. E a segunda parte da prova da existência de Deus na Terceira
Meditação11 (que para alguns é uma outra prova)12, só vem reforçar a primeira parte: se
Deus não fosse causa da minha idéia Dele, o problema não seria apenas não poder explicar
o fato da minha idéia de infinito (malgrado a objeção de Hobbes!), o problema é ter de
admitir uma outra causa que não Ele, a saber, uma causa finita e imperfeita para minha
existência. Assim as duas partes da prova da existência de Deus nesta Meditação nada
resolvem além da preparação para a validação da regra da verdade, uma vez que eliminam a
hipótese de um Deus que pudesse me enganar, a saber, de um gênio maligno, demoníaco,
que teria me criado para se divertir com meus erros13. Mas com isso ainda nada se resolve
da dúvida acerca da existência dos corpos extensos e de suas propriedades enquanto objetos
de minhas idéias sensíveis, nem tampouco acerca da dúvida que recai sobre as entidades
matemáticas, ambas objeto das Meditações Quinta e Sexta.

Todavia, se a Quarta Meditação explica que o erro não se deve a Deus, como foi anunciado
acima, mas ao homem, o que é uma conseqüência da demonstração da existência de Deus,
ela acaba por levar a cabo de maneira explícita aquilo que a Meditação Terceira fizera de
modo implícito, a saber, a validação da regra geral da verdade: porque Deus não é
responsável pelo erro, mas nós, e porque ele é o modelo de toda clareza e de toda distinção,
é que a regra da certeza se torna de fato regra de verdade. "Toda vez que retenho minha
vontade nos limites de meu conhecimento, de tal modo que ela não formule um juízo senão
a respeito das coisas que lhe são clara e distintamente representadas pelo entendimento, não
pode ocorrer que eu me engane; porque toda concepção clara e distinta (...) deve ter
necessariamente Deus como seu Autor" (Quarta Meditação, § 16).

Feito isso é que Descartes se propõe no início da Quinta Meditação aplicar a regra
recentemente conquistada para "desembaraçar-se de todas as dúvidas" e ver se não é
possível conhecer nada de certo no tocante às coisas materiais" (Quinta Meditação, § 1º).
Só que antes disso, diz, é preciso validar aquelas idéias que se encontram no nosso
pensamento, notadamente as idéias matemáticas. Examinando as idéias claras e distintas de
essências (naturezas simples, na Primeira Meditação) Descartes chega a examinar e validar
a verdade das essências matemáticas. Este é talvez o lugar mais importante da metafísica
cartesiana, porque é aqui que vai ser demonstrada a objetividade de uma ciência
matemática acerca dos corpos, independentemente da existência destes.

Se o gênio maligno não me engana, porque não existe, e se existe um Deus que garante a
verdade do meu critério de certeza (enquanto clareza e distinção), então não posso duvidar
das verdades matemáticas quando penso nelas, porque elas me aparecem com uma clareza e
uma distinção inquestionáveis. Além disso, enquanto idéias claras e distintas que são
verdadeiras, elas devem corresponder a algo objetivo. Dessa lógica é que parte a prova da
existência de Deus nesta Meditação: se toda idéia clara e distinta não é apenas certa, mas
também verdadeira, porque corresponde a algo objetivo, então posso derivar disso uma
outra prova da existência de Deus. A Sua idéia clara e distinta me obriga a reconhecer que
"tudo quanto reconheço pertencer clara e distintamente a esta coisa pertence-lhe de fato"
(Quinta Meditação, §7), e, portanto, que existe. Porque a existência de Deus apresenta-se ao
meu espírito, ao refletir sobre sua essência, como algo tão certo quanto a essência das
verdades matemáticas. E, mais ainda, porque a essência da primeira garante na ordem do
ser (não na do conhecer) essência das segundas.

Esta prova, fundada na reflexão sobre a essência de Deus, garante a constância do


resultado: essências são eternas, e assim a esta prova nos oferece a certeza de que Deus
existe eternamente como nosso modelo de certeza e garante da verdade. "E assim
reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciência dependem tão-só do
conhecimento do verdadeiro Deus" (Quinta Meditação, §15)14. Desse modo, esta Meditação
abre o caminho para que se recupere a certeza acerca "das coisas que pertencem à natureza
corpórea, na medida em que ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras..."
(Ibidem). A Sexta Meditação, assim, vai poder encerrar o círculo do retorno e revalidação
de todos os conhecimentos que tinham sido postos em dúvida na Primeira.

As coisas sensíveis pensadas como correlato extramental de nossas idéias de corpos e de


suas propriedades vão ser demonstradas como existentes a partir do fato de que são
possíveis enquanto objeto das demonstrações geométricas, o conteúdo das matemáticas
puras (Sexta Meditação, §1º). A análise da imaginação e sua distinção essencial do intelecto
traçam o caminho pelo qual a existência das coisas materiais será provada primeiro como
provável, mas no fim como algo acerca do qual não temos razão para duvidar, considerando
que Deus não nos engana. A virtude de imaginar, dirá agora Descartes, parece depender
não do meu espírito, mas do meu corpo; e assim as coisas que eu me represento como
corpos parece que as represento enquanto se referem a algo em mim, o meu corpo. Isso leva
Descartes a uma análise retroativa da sensação, uma recapitulação de tudo que tinha sido
posto em dúvida referente aos sentidos. Essa análise leva-o a admitir que, se Deus não me
engana, os corpos existem e provocam minhas sensações. Afora isso, a natureza nos ensina
que temos um corpo, ao qual nossa alma está intimamente ligada (ainda que de modo
inexplicável). Certas sensações e sentimentos que nos aparecem como percepções confusas,
são-no justamente por dependerem da união entre o corpo e a alma. Se, contudo, disso não
se segue que minhas percepções sensíveis deixem de ser confusas, e possam por isso
mesmo não corresponder em princípio exatamente àquilo que os objetos são, pelo menos é
certo que possuem todas as propriedades extensas, i.e. geométricas, que eu compreendo
com clareza e distinção15. Assim algumas das essências matemáticas recuperadas na
meditação anterior (extensão, figura, posição, etc.) vão coincidir com as essências (suas
propriedades imutáveis) das coisas sensíveis. O ponto alto desta Meditação consiste nisso: a
fundamentação metafísica da física cartesiana. Porque assim é possível uma ciência das
coisas sensíveis, na medida em que possuem propriedades matemáticas e qualidades
quantificáveis.

De resto, o problema do erro, já tratado na Meditação Quarta, surge agora do ponto de vista
de nossos juízos errôneos sobre os objetos do mundo sensível (consistindo mais uma vez
em inocentar Deus do problema). Mesmo que Deus seja bom e não me engane, a minha
natureza é falível.

No fim, a partir da clara distinção entre imaginação e intelecto recentemente conquistada,


retoma o problema da distinção entre o corpo e a alma, que tinha sido garantida
parcialmente com a conquista da terceira certeza no fim da Segunda Meditação, e agora vai
ser encarado para demonstrar que tenho razões para acreditar que minha alma é totalmente
diferente do meu corpo (o que permite deduzir que ela não se decompõe), mas não obstante
está de fato e de modo inexplicável intimamente ligada a ele.

Juan Adolfo Bonaccini

Notas

1 Professor do Departamento de Filosofia e Vice-Coordenador do Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da UFRN.

2 Stephen Gaukroger, Descartes: uma biografia intelectual, Rio de Janeiro,


EDUERJ/Contraponto, 1999, pp. 358-359.

3 Friedo Ricken, Antike Skeptiker, Muenchen, Beck, 1994, pp. 9-10.

4 De acordo com a conhecida distinção entre a ordem do conhecer e a ordem do ser, cabe
lembrar que é o Deus bom e veraz que é o fundamento de todo conhecer na ordem do ser,
muito embora isto precise ser demonstrado partindo de um princípio indubitável — eu sou,
eu existo —, imune ao desafio cético, na ordem do conhecer, num procedimento mais ou
menos análogo ao da geometria, onde se demonstram passo a passo teoremas a partir de
axiomas evidentes.

5 Sobre o fideísmo veja-se Richard Popkin, História do ceticismo de Erasmo a Spinoza,


Rio de Janeiro, Fco. Alves, 2000, pp. 19ss. Cf. Denis Rosenfield, Descartes e as peripécias
da razão, São Paulo, Iluminuras, 1996, pp. 44ss.

6 Ibidem, pp. 271ss, 301ss.

7 Harry Frankfurt, Demons, Dreamers and Madmen, Indianapolis, New York, Bobs-
Merrill, 1970, pp. 61ss. Apud Plínio J. Smith (Ceticismo filosófico, Curitiba, EDUFPR,
2000, pp. 114-115), quem, como nós, também parece sustentar que Descartes questiona não
só o conhecimento sensível, mas também o racional.

8 Iván Darío Arango, "Descartes y la invención del sujeto", pp.47ss, in: Estudios de
Filosofía (Medellín, Colombia) nº 12 (1995) : 47-64. Cf. John Cottingham, A filosofia de
Descartes, Lisboa, Ed. 70, 1989, p. 114.

9 Cf. Raul Landim "Pode o Cogito ser posto em questão?", in: Discurso, São Paulo, 24
(1994), pp. 9-30.

10 Daqui parte a famosa objeção acerca do círculo cartesiano. O problema surge porque eu
extraio a regra geral da análise do Cogito (da proposição: eu sou, eu existo), mas como este
não é uma verdade, pois só é certo enquanto penso nele, a própria regra geral não pode ser
verdadeira, ainda, a não ser momentaneamente, como o Cogito, e só poderá ser validada ao
refutar a hipótese do gênio maligno e provar a existência de um Deus bom e veraz. Mas eis
que o problema aparece, porque todos os passos que me levam a esta prova de Deus e de
sua garantia da verdade são feitos com base na suposição da validade da regra geral. Numa
palavra: provo que Deus existe com base na regra geral de que só é verdadeiro o que é claro
e distinto, mas a demonstração de que só é verdadeiro o que é claro e distinto se funda na
demonstração de que Deus existe, e é bom e veraz! Sobre isso veja-se: Landim, op. cit., pp.
21ss; Geneviève Rodis-Lewis, Descartes e o Racionalismo, Porto, Rés, s/d, pp. 47-51; John
Cottingham, op. cit., pp. 97ss., e Dicionário Descartes, pp. 34-5; Jean-Marie Beyssade,
"Sobre o círculo cartesiano", in: Analytica 2, 1 (1997), pp. 11-36. Vide também Edson
Andrade, "O problema da circularidade na fundamentação da ciência das Meditações
Metafísicas de Descartes", in: Princípios, Natal, 9 (2001), pp. 18-36.

11 Vide a Carta a Mesland de 2 de maio de 1644. Apud Michelle Beyssade, Descartes,


Lisboa, ed. 70, 1991, pp. 87-88.

12 Por exemplo, para os editores que fizeram as notas explicativas da tradução brasileira
da Meditações (Coleção Os Pensadores, 2ªedição, São Paulo, Abril, 1979, pp.pp. 99ss).

13 Cumpre notar que na Primeira Meditação a Hipótese de um Deus Enganador e de um


Gênio Maligno não podem ser identificadas. A primeira serve para questionar a evidência
das matemáticas perante um homem que crê em Deus, mas é insuficiente para convencer
um ateu que se deus é todo-poderoso ele pode me enganar! (Daí a necessidade do
argumento da falibilidade a partir da causa imperfeita de minha natureza no § 10 da
Primeira Meditação). Com a hipótese do gênio maligno tudo é posto em questão, pois ele
reforça a dúvida acerca da existência de corpos sensíveis e suas propriedades para além dos
meus pensamentos ao mesmo tempo em que generaliza a dúvida para todos os referentes de
nossos pensamentos, colocando em dúvida inclusive a evidências e a certeza das
matemáticas, tanto para um crente como para um ateu. Na Terceira Meditação, porém,
Descartes parece identificar ambas as hipóteses, tanto no começo (§§ 4-5) como no fim (§§
39-40), talvez pelo fato de que a prova da existência de um Deus Bom e Veraz (que só se
completa nos §§30-41) refute de uma vez ambas as hipóteses, a de um Deus Enganador e a
de um Demônio (o malin génie); ou talvez porque um Deus Enganador só pode ser um
demônio.

14 Daqui arranca o problema de saber como é que um ateu pode ser um bom geômetra. A
resposta de Descartes é mais ou menos a seguinte: ele pode aprender Geometria e fazer
demonstrações corretas, mas sem saber por quê.

15 Cf. Descartes, Princípios de Filosofia, II 4-5.

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