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LIGAÇÕES PERIGOSAS

CHODERLOS DE LACLOS

TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES


TEXTO INTEGRAL: EDITORES ASSOCIADOS
TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM

http:// groups.google.com/group/digitalsource
PREFÁCIO DO REDATOR

Esta obra, ou antes, esta coleção, que o público achará talvez


ainda volumosa em demasia, não contém, todavia mais do que um
pequeno número das cartas* que compunham a totalidade da
correspondência de onde foi extraída. Encarregado de pô-la em ordem
pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia terem a intenção
de publicá-la, pedi apenas, como prêmio dos meus cuidados, a
permissão de suprimir tudo o que me parecesse inútil; e de fato
conservei apenas as cartas que me pareceram necessárias, quer para
a compreensão dos acontecimentos, quer para o desenvolvimento dos
caracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor por
ordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu próprio quase
sempre segui a das datas, e, enfim, algumas notas curtas e raras, e que,
na sua maior parte não têm outro objetivo senão o de indicar a origem
de algumas citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer,
ter-se-á inteiramente idéia da parte que tive nesta obra. A minha missão
não ia mais longe.
Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas
relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se encontrarão
muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar diversas cartas
demasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, e
quase sem transição, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros.
Este trabalho, que não foi aceito, não seria bastante sem dúvida para
dar mérito à obra, mas ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos.
Foi-me objetado que eram as próprias cartas que se pretendia.
...dar a conhecer, e não apenas uma obra feita segundo as cartas; que
seria tanto contra a verossimilhança como contra a verdade que, de
oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência, todas
escrevessem com igual pureza. E à minha réplica de que, longe disso,
não havia, pelo contrário, nenhuma que não tivesse cometido erros
graves, foi-me respondido que todo o leitor razoável esperaria
seguramente encontrar erros numa coleção de cartas de alguns
particulares, visto que em todas as que se têm publicado de diferentes
autores estimados, e mesmo de alguns acadêmicos, não se encontrava
nenhuma totalmente ao abrigo desta censura. Estas razões não me
persuadiram e achei-as, como as acho ainda, mais fáceis de dar que
de receber; mas não me competia mandar, e submeti-me. Somente me
reservei o direito de protestar e de declarar que não era essa a minha
opinião; o que faço neste momento.
Quanto ao mérito que esta obra possa ter, talvez me não caiba
explicá-lo, pois a minha opinião não deve nem pode ter influência sobre
*Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas que
intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí, se
encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro da
minha parte, e do qual não se deverá tirar qualquer conclusão. (N. do A.)
a de ninguém. Entretanto, todos os que, antes de começar uma leitura,
ficam satisfeitos por saber aproximadamente com o que podem contar,
esses, dizia eu que continuem, os outros farão melhor em passar
imediatamente para a obra em si; sabem já o que lhes basta.
O que posso dizer antes do mais é que se a minha intenção foi,
como reconheço, der a conhecer estas cartas, estou, todavia muito
longe de esperar daí um êxito: e que não se tome esta sinceridade da
minha parte pela modéstia fingida de um autor; pois declaro com a
mesma franqueza que, se esta coleção não me tivesse parecido digna
de ser oferecida ao público, eu não me teria ocupado dela. Tratemos
de conciliar esta aparente contradição.
O mérito de uma obra compõe-se da sua utilidade ou do
agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando disso é
suscetível; mas o êxito, que não prova sempre o mérito, deve-se
frequentemente mais à escolha do assunto que à sua execução, ao
conjunto dos motivos que apresenta do que à maneira como eles são
tratados. Ora contendo esta coleção, como o seu título anuncia, as
cartas de toda uma sociedade, reina nela uma diversidade de interesse
que enfraquece o do leitor.
Além disso, sendo quase todos os sentimentos que aí se
exprimem fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar um
interesse que não seja o de curiosidade sempre muito abaixo do de
sentimento, e que, sobretudo, conduz menos à indulgência e deixa
tanto mais a perceber as faltas que se encontram nos pormenores,
quanto estes se opõem constantemente ao desejo que unicamente se
quer satisfazer.
Estes defeitos são talvez resgatados, em parte, por uma
qualidade que do mesmo modo tem origem na natureza da obra; é a
variedade dos estilos; mérito que um autor atinge dificilmente, mas que
se apresentava aqui por si próprio, e que ao menos exclui o
aborrecimento da uniformidade.
Algumas pessoas poderão ainda esperar encontrar para seu
proveito um número assaz grande de observações, ou novas ou pouco
conhecidas, e que se encontram dispersas nestas cartas. E nisso se
resume, segundo creio, tudo que se pode esperar como motivos de
agrado, usando, aliás, de um juízo extremamente favorável.
A utilidade da obra, que porventura será ainda mais contestada,
parece-me, todavia fácil de estabelecer. Julgo pelo menos que é
prestar um serviço aos costumes divulgar os meios que empregam os
que os têm maus para corromper os que os têm bons, e creio que estas
cartas poderão concorrer eficazmente para esse fim. Encontrar-se-á
também nelas a prova e o exemplo de duas verdades importantes que
dir-se-ia serem desconhecidas, tão pouco elas são praticadas: a
primeira, que toda a mulher que consente em receber no seu meio um
homem sem moral acaba por se tornar a sua vítima; a outra, que é pelo
menos imprudente toda a mãe que admita que outra pessoa além dela
tenha a confiança de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo
poderiam também aprender aqui que a amizade que as pessoas de
maus costumes parecem dedicar-lhes tão facilmente não é mais que
uma perigosa cilada, tão fatal à sua felicidade como à sua virtude.
Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso, que anda
sempre tão perto da medida justa; e, longe de aconselhar esta leitura à
mocidade, parece-me mais importante afastar dela todas as deste
gênero. A época em que tal leitura pode deixar de ser perigosa e
tornar-se útil parece-me ter sido bem escolhida, para o seu sexo, por
uma boa mãe não apenas inteligente, mas de inteligência bem
guiada. "Julgo", me dizia ela, depois de ter lido o manuscrito desta
correspondência, "que prestarei um bom serviço a minha filha, dando-
lhe este livro no dia do seu casamento." Se todas as mães de família
pensarem isto da obra, felicitar-me-ei eternamente por tê-la publicado.
Mas, partindo ainda desta suposição favorável, afigura-se-me
sempre que esta coleção deve agradar a pouca gente. Os homens e
as mulheres de costumes depravados terão interesse em denegrir uma
obra que pode ser-lhes prejudicial; e como não lhes falta astúcia, talvez
se lembrem de pôr do seu lado os rigoristas, alarmados pelo quadro de
maus costumes que não houve receio de apresentar-lhes. Os que se
julgam espíritos fortes não terão qualquer interesse por uma mulher
devota, que por isso mesmo será para eles uma mulher sem
importância, enquanto que os devotos ficarão descontentes por verem
sucumbir a virtude, queixando-se do fraco poder com que é mostrada
a religião.
Por sua vez, as pessoas de gosto delicado hão-de enfastiar-se
com o estilo demasiado simples e defeituoso de algumas destas cartas,
enquanto que o comum dos leitores, seduzido pela idéia de que tudo o
que é impresso é o fruto de um trabalho, julgará ver em algumas outras
a maneira dificilmente conseguida de um autor que se mostra por
detrás da personagem que fala a seu mandado.
Enfim, talvez venha a dizer-se, na generalidade, que cada coisa
não vale senão no lugar onde está colocada; e que, se ordinariamente
o estilo demasiado castigado dos autores tira de fato toda a graça às
cartas de sociedade, as negligências destas se tornam verdadeiros
erros e as tornam insuportáveis, uma vez entregues à publicação.
Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem ter
fundamento; creio também que me seria impossível responder-lhes, e
mesmo sem ir além da extensão de um prefácio. Mas deve
compreender-se que, se me fosse necessário responder a tudo, seria isso
sinal de que a obra não responderia a nada; e que, se eu assim o
pensasse, teria suprimido ao mesmo tempo o prefácio e o livro.

PRIMEIRA PARTE
CARTA I

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY*

No convento das Usulinas de...

Bem vês, minha boa amiga, que cumpro a minha palavra, e que
as toucas e laços não ocupam todo o meu tempo; sempre me há de
ficar algum para ti. Mas olha que só hoje vi mais adereços do que nos
quatro anos que passamos juntas; e creio que a orgulhosa Tanvillel terá
maior aborrecimento com a minha primeira visita, em que eu conto
perguntar por ela, do que ela pensou que nos causaria todas as vezes
que vinha ver-nos em Fiorch.
A Mamã consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me
muito menos como pensionista do que noutro tempo.
Tenho uma criada de que disponho, e escrevo-te em uma
secretária muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar
tudo o que quiser. A Mamã disse-me que a verei todos os dias logo que
ela se levante; que bastará que eu esteja penteada para jantar, porque
estaremos sempre sós, e que então ela me dirá a hora em que devemos
juntar-nos à tarde. O resto do tempo está à minha disposição, e tenho a
minha harpa, o meu desenho e livros como no convento; só não estará
a madre Perpétua para ralhar comigo, e dependerá apenas de mim
estar sempre sem fazer nada: mas como não tenho a minha Sofia para
conversar e para rir, prefiro então ocupar-me dela.
Ainda não são cinco horas; não devo estar com a Mamã senão
às sete: ora aqui está um grande intervalo, para o caso em que tivesse
alguma coisa a dizer-te! Mas ainda não me falaram de nada; e sem os
preparativos que vejo fazer, e a quantidade de costureiras que vêm por
minha causa, julgaria que ninguém pensa em casar-me, e que é mais
um disparate da boa Josefina.
Mas a verdade é que a Mamã me disse tantas vezes que uma
menina deve ficar no convento até casar, que julgo que Josefina tem
razão, visto que ela me fez sair de lá.
Acaba de parar uma carruagem à porta, e a Mamã mandou-
me que fosse ter com ela imediatamente. Se fosse o senhor?
Ainda não estou vestida, a minha mão treme e o meu coração
bate.
Perguntei à criada de quarto se sabia quem estava com minha
mãe: "Ora", disse ela, "é o senhor C..." e ria. Oh! Creio que é ele. Voltarei
com certeza a contar-te o que se passou. O nome já eu sei. Não devo
*Pensionista do mesmo convento.
fazer esperar. Adeus, até daqui a um momento.
Como te vais rir da pobre Cecília! Oh! Como fiquei
envergonhada!
Mas tu terias caído como eu. Quando entrei nos aposentos da
Mamã, vi um senhor vestido de preto, de pé, por detrás dela.
Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me poder mexer do
meu lugar. Podes imaginar como eu o examinava!
"Senhora", disse ele a minha mãe, saudando-me, "trata-se na
verdade de uma menina encantadora, e sinto melhor do que nunca o
valor dos vossos obséquios". A estas palavras tão positivas tomou-me um
tal tremor que não me podia suster; deparei com uma poltrona e sentei-
me nela, toda vermelha e confusa.
Mal eu me tinha sentado, eis que o homem se lança a meus pés.
Então a tua pobre Cecília perdeu a cabeça; eu estava, como disse a
Mamã, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lançando um grito
agudíssimo;... Olha, como naquele dia do trovão.
A Mamã soltou uma gargalhada e disse-me: "Então, que tem?
Sente-se e dê o seu pé a esse senhor." Na verdade, minha querida
amiga, o senhor era um sapateiro. Não posso dizer-te como fiquei
envergonhada; por felicidade só ali estava a Mamã.
Julgo que, quando for casada, não voltarei a servir-me daquele
sapateiro.
Hás-de convir que já sei muitas coisas! Adeus. São perto de seis
horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me vestir.
Adeus, minha querida Sofia; gosto tanto de ti como quando estava no
convento.

P. S. - Não sei por quem enviar esta carta; por isso espero que Josefina
venha.

Paris, 3 de Agosto de 17* *.

CARTA II

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

No castelo de...

Volte meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode o
senhor fazer em casa de uma velha tia cujos bens lhe estão garantidos?
Parta imediatamente; é-me preciso aqui. Tive uma excelente idéia, e
desejo confiar-lhe a execução. Estas palavras deveriam bastar-lhe; e,
muito honrado pela minha escolha, devia vir, com solicitude, receber
de joelhos as minhas ordens.
Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que
deixou de aproveitá-las; e na alternativa de um ódio eterno ou de uma
excessiva indulgência, a sua felicidade quer que a minha bondade a
conduza. Desejo pois instruí-lo sobre os meus projetos: mas jure-me que
como fiel cavaleiro não correrá nenhuma aventura sem que esta seja
levada ao fim. Ela é digna de um herói: o senhor servirá o amor e a
vingança; será enfim uma astúcia a mais a pôr nas suas memórias: sim,
nas suas memórias, pois eu quero que elas sejam publicadas um dia,
encarrego-me de escrevê-las. Mas deixemos isso, e voltemos ao que me
preocupa.
Madame de Volanges vai casar a filha: é ainda um segredo;
mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela
escolheu para genro? O Conde de Gercourt. Quem diria que eu viria a
ser prima de Gercourt? Sinto-me possuída de tal furor!...
Pois bem! Não adivinhou ainda? Oh, inteligência lenta! Já lhe
perdoou, pois, a aventura da Intendente*? E eu, não tenho razões para
me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me acalmar, e a
esperança de me vingar lança a serenidade na minha alma.
Decerto já se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a
importância que Gercourt atribui à sua próxima conquista, e com a tola
presunção que o dispõe a crer que evitará a sorte inevitável.
Conhece as suas ridículas prevenções a favor das educações
claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridículo, em relação à
modéstia das louras. Eu apostaria, de fato, que, apesar das sessenta mil
libras de renda da pequena Volanges, ele nunca faria esse casamento
se ela fosse morena, ou se não tivesse estado no convento. Provemos-
lhe, pois que é apenas um tolo; com certeza há de sê-lo um dia, não é
isso que me preocupa: mas o agradável seria que ele começasse por
aí. Como nós nos divertiríamos no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois
ele há de gabar-se; e depois, se o Visconde chegar a instruir essa
rapariguinha, será preciso muito pouca sorte se o Gercourt não se tornar
como qualquer outro, a fábula de Paris.
Aliás, a heroína deste novo romance merece todos os seus
cuidados: é na verdade bonita; tem apenas quinze anos, é um botão
de rosa; acanhada, de fato, como já se não usa, e de modo nenhum
afetada: mas vós, os homens, não temeis isso; além do mais, é senhora
de certo olhar langoroso que na verdade promete muito. Acrescente a
tudo isto que sou eu que a recomendo: não tem mais que agradecer-
me e obedecer.
Receberá esta carta amanhã de manhã. Exijo que amanhã às
sete horas da tarde esteja em minha casa. Não receberei ninguém
*Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt tinha
deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado o
Visconde de Valmont, e que foi então que a Marquesa e o Visconde se ligaram um
ao outro. Como esta aventura é muito anterior aos acontecimentos de que tratam
estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondência que com ela se liga. (N.
do A.)
senão as oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse não tem cabeça
para tamanha empresa. Bem vê que o amor não me cega. Às oito
horas outorgo-lhe a liberdade, e as dez voltará para cear com o belo
objeto, pois a mãe e a filha ceiam sempre em minha casa. Adeus;
passa do meio-dia, em breve deixarei de me ocupar do Visconde.
Paris, 4 de Agosto de 17* *.

CARTA III

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ainda não sei nada, minha boa amiga. A Mamã tinha ontem
muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar, os
homens principalmente, aborreci-me muito. Toda a gente, homens e
mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se a falar ao
ouvido; e eu bem via que era de mim que falavam.
Isto fazia-me corar; era coisa em que eu não tinha mão.
Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para
as outras mulheres, elas não coravam; ou talvez fosse a pintura que não
me deixava ver o seu embaraço, pois deve ser muito difícil deixar de
corar quando um homem nos olha fixamente.
O que mais me inquietava era não saber o que pensavam a
meu respeito. Creio, no entanto ter ouvido duas ou três vezes a palavra
bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E isso deve ser
verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra é parente e
amiga de minha mãe.
Pareceu-me mesmo que de repente tinha sentido amizade por
mim.
Foi a única pessoa que falou comigo um pouco durante toda a
noite.
Amanhã ceamos em casa dela.
Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que
falava de mim, e que dizia a outro: "É preciso deixar amadurecer,
veremos este Inverno." Talvez seja esse que deve casar comigo; mas
sendo assim, não será antes de quatro meses! Bem desejaria saber de
que se trata.
Chegou agora Josefina, e diz-me que está com pressa. Mas
quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que essa
senhora tem razão!
Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da Mamã;
não sei como isso aconteceu, mas adormeci quase a seguir.
Acordou-me uma estrepitosa gargalhada. Não sei se riam de
mim, mas assim o creio. A Mamã permitiu que me retirasse, e com isso
deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze horas. Adeus,
minha querida Sofia; ama sempre muito a tua Cecília. Podes estar certa
de que a sociedade não é tão divertida como a imaginávamos.

Paris, 4 de Agosto de 17* *.


CARTA IV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Em Paris

As suas ordens são encantadoras; e a sua maneira de dá-las é


mais amável ainda. A minha amiga poderia fazer amar o despotismo.
Não é a primeira vez, como sabe, que eu lamento não ser já o
seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou, não recordo
nunca sem prazer o tempo em que me honrava com epítetos mais
doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merecê-los, e acabar por
dar, a seu lado, um exemplo de constância ao mundo. Mas outros
interesses mais altos nos chamam: conquistar é o nosso destino. É
preciso segui-lo. Talvez ao fim do caminho voltemos a encontrar-nos;
pois, seja dito sem que se zangue, minha bela Marquesa, a verdade é
que a senhora me segue com um passo pelo menos igual. E visto que,
separando-nos para a felicidade do mundo, cada um de nós prega por
seu lado a sua fé, parece-me que, nesta missão de amor, a minha
amiga faz mais prosélitos do que eu. Conheço o seu zelo, o seu ardente
fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras, a senhora seria
um dia a padroeira de alguma grande cidade, enquanto que o seu
amigo seria quando muito um santo de aldeia.
Admira-se desta linguagem, não é verdade? Mas há oito dias
que eu não ouço nem falo outra; e é para me aperfeiçoar nela que me
vejo forçado a desobedecer-lhe.
Não se zangue e ouça-me. Depositária de todos os segredos do
meu coração, vou confiar-lhe o maior projeto que jamais formei. Que
me propõe a minha amiga? Seduzir uma jovem que não viu nada, que
não conhece nada; que, por assim dizer, me seria entregue sem defesa;
que com certeza se embriagará com uma primeira homenagem, e que
será levada mais pela curiosidade do que pelo amor. Há vinte homens
que nessa empresa seriam tão bem sucedidos como eu. Já não
acontece o mesmo com a empresa que me preocupa; o seu êxito
valer-me-á tanto prazer como glória. O amor que prepara a minha
coroa hesita ele próprio entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirá
para honrar o meu triunfo. Até a minha boa amiga será tomada de um
santo respeito, e dirá com entusiasmo: "É este o homem segundo o meu
coração."
A minha amiga conhece a mulher do Presidente Tourvel, a sua
devoção, o seu amor conjugal, os seus princípios austeros.
Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim
que eu pretendo atingir:
Et si de l'obtenir ce n'emporte le prix,
J'aurais du moins !honneur de l'avoir entrepris.*
É permitido citar maus versos, quando são de um grande poeta.
Como deve saber, o Presidente de Tourvel está em Borgonha,
seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro mais
importante). A sua inconsolável metade deve passar aqui todo o tempo
desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas visitas aos pobres da
região, orações de manhã e à noite, passeios solitários, piedosas
conversas com a minha velha tia, e uma vez por outra um triste jogo de
whist, deviam ser as suas únicas distrações. Estou-lhe preparando outras
mais eficazes.
O meu anjo bom conduziu-me aqui para a sua felicidade e para
minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia sacrificar
em consideração aos respeitos familiares que são de uso. Como eu
seria castigado se me obrigassem a voltar a Paris!
Felizmente são precisas quatro pessoas para jogar o whist; e
como não há aqui mais ninguém além do prior do lugar, a minha
eterna tia instou muito comigo para que eu lhe sacrificasse alguns dias.
Já adivinhou que acedi. Não imagina os mimos que ela me prodigaliza
desde esse instante, e principalmente como ela está impressionada por
me ver assistir regularmente às suas orações e à missa. Nem por sombras
lhe passa pela cabeça qual a divindade que eu ali vou adorar.
E aqui estou eu, há quatro dias, entregue a uma paixão forte: A
minha amiga sabe com que força eu sei desejar, e como os obstáculos
pesam pouco para mim; mas o que ignora é quanto a solidão vem
reforçar o ardor dos desejos. Apenas uma idéia me ocupa; penso nela
de dia, sonho com ela de noite. É-me absolutamente necessário possuir
essa mulher, para me salvar do ridículo de estar apaixonado por ela;
pois aonde não conduz um desejo contrariado? Ó delicioso prazer! Eu
te imploro para a minha felicidade, mas principalmente para o meu
descanso.
Como nós os homens somos felizes por as mulheres se
defenderem tão mal! Sem isso, seríamos junto delas apenas tímidos
escravos.
Neste momento sinto-me possuído de reconhecimento pelas
mulheres fáceis, o que, naturalmente, me conduz a seus pés. Ante eles
me ajoelho para obter o meu perdão, e nessa postura termino esta
longa carta.
*E se eu não conseguir o prémio obter, Terei ao menos a honra de o haver tentado. La
Fontaine. (N. do A.)

Adeus, minha amiga: longe de mim qualquer reserva.

Do castelo de..., 5 de Agosto de 17 * *.

CARTA V
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Sabe, Visconde, que a sua carta é de uma insolência rara, e que


eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente que
o Visconde perdeu a cabeça e só isso o salvou da minha indignação.
Amiga generosa e sensível, esqueço a injúria que me dirige para me
ocupar apenas do perigo que corre; e embora seja muito aborrecido
raciocinar, cedo à necessidade que tem neste momento dos meus
raciocínios.
O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo
capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe desejar
senão o que crê não poder obter. Que tem pois essa mulher? Traços
regulares, se quiser, mas nenhuma expressão; sofrível de corpo, mas sem
graça; vestida sempre de modo que faz rir! Com os seus molhos de
lacinhos no pescoço e o corpete que lhe chega ao queixo! Digo-lho
como amiga, não lhe seria preciso ter duas mulheres como aquela para
perder toda a minha consideração. Lembre-se do dia da festa de
caridade em Saint-Roch, em que o Visconde tanto me agradeceu por
eu lhe ter proporcionado tal espetáculo. Parece que ainda a estou
vendo, dando a mão àquele trangalhadanças de cabelos compridos,
pronta a cair a cada passo, tendo sempre o cesto de quatro varas em
cima da cabeça de alguém, e corando cada vez que a
cumprimentavam. Quem lhe diria então que chegaria a desejar essa
mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar a si.
Prometo-lhe guardar segredo.
E depois, veja a série de coisas desagradáveis que o esperam!
Que rival terá a combater? Um marido! Não se sente humilhado
só ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E mesmo no
caso de triunfar, que pequena glória o espera! Digo-lhe mais: não conte
tirar dali nenhum prazer. É isso possível com as mulheres recatadas?
Quero dizer com as que o são de, boa fé: reservadas até no meio do
prazer, não podem oferecer senão meios gozos. O abandono inteiro de
si mesma, o delírio da volúpia em que o prazer se depura pelo seu
excesso, estas vantagens do amor não são conhecidas por tais
mulheres. Aqui lho profetizo: na mais feliz das suposições, a sua
Presidente julgará ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu
marido, e na intimidade conjugal, mesmo a mais terna, há sempre dois.
Neste caso é muito pior ainda; essa virtuosa senhora é devota, e
a sua devoção é das que condenam a uma eterna infância. É possível
que o Visconde venha a saltar o obstáculo, mas não se gabe de vir a
destruí-lo: vencedor do amor de Deus, não o será do medo do Diabo; e
quando, tendo a sua amante nos braços, tivesse conhecido mais cedo
essa mulher, é possível que fizesse dela qualquer coisa; mas tem já vinte
e dois anos e há cerca de dois que é casada. Creia-me, Visconde,
quando uma mulher se encondeu a tal ponto, é preciso abandoná-la à
sua sorte; nunca há de passar de uma espécie.
No entanto, é por esse belo objeto que o Visconde recusa
obedecer-me; que se enterra no túmulo de sua tia, e que renuncia à
aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe honrarias.
Por que fatalidade será que Gercourt tem sempre qualquer vantagem
sobre o Visconde? Falo-lhe sem má disposição, acredite: mas,neste
momento,estou tentada a crer que o senhor não merece a sua
reputação; estou tentada principalmente a retirar-lhe a minha
confiança. Nunca poderei acostumar-me a dizer os meus segredos ao
amante de Madame de Tourvel.
Saiba no entanto que a pequena Volanges já fez andar uma
cabeça à roda.O jovem Danceny está louco por ela; e na verdade ela
canta melhor do que é dado a uma pensionista de convento.
É quase certo que ensaiam muitos duetos e ia jurar que de bom
grado ela se prestaria ao uníssono; mas este Danceny é uma criança
que perderá o seu tempo em galanteios sem chegar a nada de
positivo. Pelo seu lado a pequenota é bastante arisca; e, seja o que for
que aconteça, sempre há de ser menos divertido do que se o Visconde
se resolvesse a intervir. Por isso estou aborrecida e com certeza o
Cavaleiro ouvirá ralhar à sua chegada.
Eu aconselho-o a ser submisso, pois neste momento não me
custaria nada romper com ele. Estou certa de que, se eu tivesse a boa
lembrança de o deixar neste momento, ele ficaria cheio de desespero;
e nada me diverte tanto como um desespero amoroso.
Chamar-me-ia pérfida, e essa palavra sempre me deu prazer;
depois da palavra "cruel", é a mais doce para os ouvidos de uma
mulher, e a que dá mais trabalho a merecer. Falando sério vou ocupar-
me deste rompimento. Aqui está um acontecimento de que o Visconde
será o causador! Ponho-o sobre a sua consciência.
Adeus. Recomende-me às orações da sua Presidente.

Paris, 7 de Agosto de 17* *.

CARTA VI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pois certo não existir mulher alguma que não abuse do


ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas vezes
chamei indulgente amiga, deixou enfim de o ser, e não receia atacar-
me no objeto das minhas afeições! Com que traços ousou pintar
Madame de Tourvel!...
Que homem não teria pagado com a vida essa insolente
audácia? Que outra mulher que não fosse a Marquesa teria podido
enunciá-la sem suscitar da minha parte uma pequena vingança? Por
favor, não me submeta a tão rudes provas; não garanto que as possa
suportar. Em nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se
quiser dizer mal dela. Não sabe que só a volúpia tem o direito de
dissipar a cegueira do amor?
Mas que digo eu? Acaso Madame de Tourvel tem necessidade
de ilusão? Não; para ser adorável basta-lhe ser ela própria.
Censura-a a Marquesa por se vestir mal; estou de acordo: todos
os vestuários a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. É no
abandono do trajo caseiro que ela é verdadeiramente encantadora.
Graças aos calores opressivos que sofremos, um simples roupão
de pano deixa-me ver as suas formas redondas e flexíveis.
Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus olhares
furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe já as linhas sedutoras. O seu
rosto, diz a Marquesa, não tem nenhuma expressão.
E que poderia exprimir, nos momentos em que nada lhe fala ao
coração? Não, sem dúvida, ela não tem, como as presumidas mulheres
do nosso meio, aquele olhar mentiroso que nos seduz algumas vezes e
nos engana sempre. Não sabe cobrir o vazio de uma frase com um
sorriso estudado; e embora tenha os mais belos dentes do mundo, não
costuma rir senão do que a diverte. No entanto é preciso ver como, nos
jogos engraçados, ela oferece a imagem de uma alegria ingênua e
franca!
Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu
olhar anuncia o contentamento puro e a bondade compadecida!
É preciso ver, principalmente à menor palavra de elogio ou de
afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embaraço de
uma modéstia que não é fingida. Modesta e devota, é-o sem dúvida,
mas daí a julgá-la fria e inanimada!... O que penso dela é bem
diferente. Que extraordinária sensibilidade não deve ter para beneficiar
com ela o marido, e para amar sempre um ser sempre ausente! Que
prova mais forte se pode desejar? Todavia, consegui descobrir mais
uma.
Quando há dias saímos a passear, arranjei as coisas de maneira
que nos foi necessário transpor um barranco; e, embora muito lesta,
Madame de Tourvel é ainda mais tímida. É fácil de ver que uma mulher
virtuosa tem sempre receio de saltar o barranco.
Foi-lhe necessário confiar-se à minha pessoa. Tive nos meus
braços essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a passagem da
minha velha tia tinham feito rir às gargalhadas a jovial devota: mas, no
momento em que a agarrei, por um movimento propositadamente
desastrado, os nossos braços enlaçaram-se mutuamente. Apertei o seu
seio contra o meu; e, nesse curto intervalo, senti o seu coração bater
mais rápido. O rosto coloriu-se-lhe de uma adorável vermelhidão, e no
seu pudibundo embaraço pude ver que o seu coração tinha palpitado
de amor e não de receio. Entretanto minha tia enganou-se – como a
minha amiga - e disse: "A criança teve medo"; mas a encantadora
ingenuidade da criança não lhe permitiu a mentira, e fez que ela
respondesse singelamente: Oh! Não, mas.... Esta simples palavra
esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperança substitui a
cruel inquietação. Possuirei esta mulher; hei-de arrebatá-la ao marido,
que a profana: ousarei roubá-la ao próprio Deus que ela adora. Que
delícia ser alternadamente o objeto e o vingador dos seus remorsos!
Longe de mim a idéia de destruir os preconceitos que a rodeiam!
Servirão para aumentar a minha felicidade e a minha glória. Que creia
na virtude, mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem
sem poder evitá-las; e que, agitada de mil terrores, ela não possa
esquecê-los, vencê-los senão nos meus braços.
Consentirei então que ela me diga: "Adoro-te" ; ela só, entre
todas as mulheres, será digna de pronunciar essa palavra. Eu serei,
verdadeiramente, o Deus que ela prefere.
Falemos de boa fé: nas nossas combinações tão frias como
fáceis, aquilo a que chamamos felicidade é apenas prazer. Poderei
confessar-lho?
Pensava eu que o meu coração estava gasto, e, encontrando
em mim apenas os sentidos, lastimava a minha velhice prematura.
Madame de Tourvel restituiu-me as encantadoras ilusões da juventude.
Junto dela, não tenho necessidade de prazer para ser feliz. A única
coisa que me mete medo é o tempo que me vai tomar esta aventura;
pois não ouso deixar nada ao acaso. Muito embora me lembrem as
minhas audácias bem sucedidas, não posso resolver-me a pô-las em
prática.
Para que eu seja verdadeiramente feliz; é preciso que ela se dê;
e não é pequena empresa.
Estou certo de que a Marquesa admiraria a minha prudência.
Ainda não pronunciei a palavra amor; mas já chegamos às
palavras confiança e interesse. Para a enganar o menos possível, e
principalmente para prevenir o efeito das murmurações que poderiam
chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu próprio, como acusando-me,
alguns dos meus defeitos mais conhecidos.
A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz
sermões. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda o que
lhe virá a custar tal tentativa. Está longe de pensar que defendendo,
como ela diz, as infortunadas que eu levei à perdição, advoga de
antemão a sua própria causa. Esta idéia veio-me ontem no meio de
uma das suas prédicas, e eu não pude recusar-me ao prazer de a
interromper, para lhe afirmar que falava como um profeta. Adeus,
minha bela amiga. Bem vê que não estou perdido sem recurso.

P. S . - A propósito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero? Em


boa verdade, a Marquesa é uma pessoa cem vezes pior do que eu, e
sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-próprio.

Do Castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.


CARTA VII

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Se nada te disse do meu casamento, é porque não estou mais


adiantada do que no primeiro dia. Acostumo-me a não pensar nisso e
sinto-me muito bem no meu gênero de vida. Estudo muito canto e
harpa; parece-me que gosto mais desses estudos desde que não tenho
professor, ou antes, desde que tenho um professor melhor. O Cavaleiro
Danceny, aquele senhor de que falei, e com quem cantei em casa de
Madame de Merteuil, tem a bondade de vir aqui todos os dias, e de
cantar comigo horas inteiras.
É extremamente amável. Canta como um anjo, e compõe
lindas músicas para as quais escreve também as palavras. É pena que
ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se casasse, a mulher
seria muito feliz... É cativante a doçura do seu trato. Diz coisas sem ar de
galanteio, e no entanto tudo o que ele diz agrada. Conversa muito
comigo, sobre a música e sobre outras coisas; mas sabe insinuar nas
suas críticas tanto interesse e animação, que é impossível não lhe
agradecer. Simplesmente, quando olha para nós, tem o ar de dizer
qualquer coisa que nos prende. Além de tudo isto, é muito paciente.
Ontem, por exemplo, tinha sido convidado para um grande concerto;
preferiu ficar todo o serão comigo e com a Mamã. Isto deu-me muito
prazer, pois, quando ele não está, ninguém fala comigo e aborreço-me;
ao passo que quando ele está presente, cantamos em conjunto e
conversamos. Tem sempre alguma coisa para me dizer. Ele e Madame
de Merteuil são as duas únicas pessoas amáveis que encontrei. Mas
tenho de dizer-te adeus, minha querida amiga: prometi que teria hoje
estudada uma arieta de acompanhamento muito difícil, e não quero
faltar à minha palavra.
Vou lançar-me ao estudo até que ele venha.

7 de Agosto de 17 * *.

CARTA VIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ninguém pode ser mais sensível do que eu, senhora, à confiança


que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu pelo futuro
casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a minha alma lhe
desejo uma felicidade da qual não duvido que ela seja digna, e para a
qual contribuirá sem dúvida a prudência de que tendes dado prova.
Não conheço o senhor Conde de Gercourt; mas, honrado com a vossa
escolha, só posso ter dele uma idéia muito lisonjeira. Limito-me, senhora,
a desejar para esse casamento um resultado tão feliz como o do meu,
que é igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior
reconhecimento.
Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa da que
conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser também a
mais feliz das mães!
Sinto-me verdadeiramente penalizada por não poder oferecer-
vos de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar
conhecimento com Mademoiselle de Volanges tão cedo como
desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades
verdadeiramente maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade
terna de uma irmã. Rogo-vos, senhora, que lhe façais este pedido da
minha parte, esperando estar à altura de merecê-la.
Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausência do
Senhor de Tourvel. Serve-me esse tempo para gozar e aproveitar da
companhia de Madame de Rosemonde. Esta senhora mantém sempre
o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva toda a sua
memória e animação. Só o seu corpo tem oitenta e quatro anos; o
espírito tem apenas vinte.
O nosso isolamento é alegrado por seu sobrinho, o Visconde de
Valmont, que teve a bondade de nos sacrificar alguns dias.
Conhecia-o apenas pela sua reputação, a qual me não fazia
desejar conhecê-lo melhor; mas parece-me que vale mais do que ela.
Aqui, onde turbilhão do mundo não o prejudica, diz coisas razoáveis
com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que tem praticado
com uma candura rara. Fala-me sempre com muita confiança e eu
prego-lhe os meus sermões com muita severidade.
Vós, que o conheceis, devereis convir que seria uma bela
conversão a fazer: mas eu não tenho dúvidas de que, apesar das suas
promessas, oito dias de Paris lhe façam esquecer todas as minhas
prédicas. A sua estada aqui será pelo menos um intervalo na sua
conduta habitual: e eu creio que, atendendo à sua maneira de viver, o
que ele pode fazer de melhor é não fazer nada. Sabendo que estou
ocupada a escrevermos, encarregou-me de vos apresentar as suas
homenagens respeitosas. Aceitai também as minhas com a bondade
que vos conheço, e não duvideis nunca dos sentimentos sinceros com
que tenho a honra de ser, etc.

Do castelo de..., 9 de Agosto de 17 * *.

CARTA IX

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL


Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da
amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais em
tudo que me diz respeito. Não é para esclarecer esse ponto, que espero
esteja assente para sempre entre nós, que respondo à vossa resposta:
mas julgo que não poderei dispensar-me de conversar convosco a
respeito do Visconde de Valmont.
Confesso que não esperava vir a encontrar o nome desse senhor
nas vossas cartas. De fato, que pode haver de comum entre vós e ele?
Vê-se bem que não conheceis esse homem; pois onde poderíeis ter
aprendido a fazer idéia do que é a alma dum libertino? Falais-me da
sua rara candura.
Ah, sim: a candura de Valmont deve ser de fato muito rara. Ele é
ainda mais falso e perigoso do que amável e sedutor, e nunca, desde
que atingiu a idade viril, nunca deu um passo ou disse uma palavra sem
ter um projeto, e nunca teve um projeto que não fosse criminoso ou
desonesto.
Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis que, entre as
virtudes que me empenho em adquirir, a indulgência não é daquelas
que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse arrastado por paixões
ardentes; se, como tantos outros, ele tivesse sido seduzido pelos erros da
juventude, embora censurasse a sua conduta, eu lamentaria a sua
pessoa, e esperaria, em silêncio, a hora em que um regresso feliz o
fizesse reconquistar a estima das pessoas honestas. Mas Valmont não é
capaz de tal: o seu comportamento é o resultado dos seus princípios.
Sabe fazer o cálculo do que um homem pode permitir-se de horrores
sem se comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por
vítimas as mulheres. Não perderei tempo a contar as que ele seduziu;
mas quantas delas lançou na perdição?
Essas escandalosas aventuras não chegaram ao vosso
conhecimento, na vida recatada e simples que tendes levado. Poderia
contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos olhos, puros
como a vossa alma, seriam conspurcados por semelhantes quadros.
Estou certa de que Valmont não será para vós um perigo, e por isso não
tendes necessidade de semelhantes armas para vos defenderdes. A
única coisa que tenho a dizer-vos é que, de todas as mulheres que ele
distinguiu, com êxito ou não, nenhuma deixou de ter motivo de queixa.
Só a Marquesa de Merteuil faz exceção a esta regra geral; só ela soube
resistir-lhe e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento da
vida da Marquesa é o que mais a honra a meus olhos: chega para
justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconseqüências
que haveria a censurar-lhe quando do princípio da sua viuvez.
Seja como for, minha boa amiga, o que a idade, a experiência e
principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, é que na
sociedade se começa a notar a ausência de Valmont; e que, caso se
venha a saber que ele ficou algum tempo como terceiro entre sua tia e
vós, a vossa reputação ficará entre as mãos dele.
E esta será a maior desgraça que pode acontecer a uma
mulher.
Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o não retenha por
mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que não deveis hesitar em
ceder-lhe o lugar. Mas por que há de ele ficar aí?
Que faz ele no campo? Se tivésseis alguém a espiar os seus
passos, estou certa de que descobriríeis que ele apenas escolheu um
asilo mais cômodo, para algumas negras ações que pensa praticar por
esses lugares. Mas, na impossibilidade de remediar o mal, contentamo-
nos em preservar-nos dele.
Adeus, minha boa amiga. O casamento de minha filha está um
pouco retardado. O Conde de Gercourt, que esperávamos de um dia
para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento vai para a
Córsega; e, como há ainda alguma agitação devido à guerra, ser-lhe-á
impossível ausentar-se antes do Inverno. Isso contraria-me; mas autoriza-
me a esperar que teremos o prazer de vos ver na boda, e aborrecia-me
que tal acontecimento não tivesse a vossa presença. Adeus; estou,
para além das convenções e sem reserva, inteiramente ao vosso dispor.

P. S . - Lembranças minhas para Madame de Rosemonde, a quem


aprecio tanto como ela merece.

1 de Agosto de 17* *.

CARTA X

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Está amuado comigo, Visconde? Ou dar-se-á o caso que tenha


morrido? Ou, o que se pareceria muito com isso, não vive senão para a
sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as ilusões da juventude,
dentro em pouco o fará reviver também os ridículos preconceitos dessa
idade. Eis o Visconde tímido e escravo; o que vale tanto como estar
apaixonado. Renunciou às suas felizes temeridades. Ei-lo pois a
conduzir-se sem princípios, deixando tudo ao acaso, ou antes, ao
capricho. Não lhe ocorreu que o amor é, como a medicina, somente a
arte de ajudar a Natureza? Bem vê que estou a batê-lo com as suas
armas; mas não me sinto orgulhosa por isso, pois é bater num homem
caído.
É preciso que ela se dê, diz-me o Visconde; oh !, sem dúvida, é
preciso. Ela há de entregar-se como as outras, com a diferença de que
o fará de má vontade. Mas, para que ela acabe por se entregar, o
verdadeiro meio é começar por obrigá-la. A que ponto esta ridícula
distinção é um verdadeiro despropósito do amor! Eu digo do amor:
porque o Visconde está apaixonado.
Falar-lhe de maneira diferente seria traí-lo; seria esconder-lhe a
sua doença. Diga-me, pois, ó langoroso amante, julga ter violado as
mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma mulher tenha de
se entregar, por muito apressada que esteja, ainda lhe é preciso um
pretexto; e haverá algum mais cômodo para nós do que aquele que
nos dá a aparência de ceder à força?
Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam é
um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem
embora com rapidez; que não nos põe nunca naquela penosa
confusão de termos nós próprias um desacerto de que ao contrário
devíamos aproveitar; que sabe manter o ar de violência até nas coisas
que concedemos, e lisonjear com habilidade as nossas duas paixões
favoritas, a glória da defesa e o prazer da derrota. Convenho que esse
talento, mais raro do que se supõe, me deu sempre prazer, mesmo
quando não chegou a seduzir-me, e que algumas vezes me aconteceu
render-me unicamente como recompensa. Tal como nos nossos antigos
torneios, a Beleza dava o prémio do valor e da destreza.
Mas o senhor, o senhor que já não é o mesmo, conduz-se como
se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando é que viaja por
pequenas jornadas e por amigo, quando se quer chegar, empregam-se
cavalos de posta e toma-se a estrada principal!
Mas deixemos esse assunto, que me aborrece tanto mais quanto
me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes do que
o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. Já reparou que há
mais de quinze dias que esta ridícula aventura o preocupa, e que
abandonou todo o convívio?
A propósito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que
mandam regularmente saber notícias dos seus amigos doentes, mas
que nunca esperam pela resposta. No final da sua última carta,
perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. Não respondi, e o
Visconde não se inquietou mais por isso. Esqueceu porventura que o
amante é seu amigo nato? Mas tranquilize-se, não morre; ou, se tivesse
morrido, seria por excesso de alegria.
Aquele pobre Cavaleiro, como ele é terno! como ele é feito
para o amor! como ele sabe sentir vivamente! Isto põe-me a cabeça à
roda.
Falando sério, a felicidade perfeita que ele encontra em ser
amado por mim liga-me verdadeiramente a ele.
No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o
rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me
ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando mo
anunciaram. Fosse capricho ou raciocínio, nunca ele me pareceu tão
bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava passar duas
horas comigo, antes que a minha porta se abrisse para toda a gente.
Disse-lhe que ia sair; perguntou-me aonde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele
insistiu. Onde o senhor não
estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou
petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma palavra,
seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente o
rompimento que eu projetava.
Admirada com o seu silêncio, lancei os olhos sobre ele sem outro
projeto, juro-lhe, que o de ver a expressão com que ficara. Tornei a ver
naquele rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e
terna, à qual o próprio Visconde tem de concordar que é difícil resistir. A
mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida pela segunda vez.
Desde esse momento, só me ocupei da maneira de evitar que ele
pudesse achar nas minhas palavras qualquer agravo. "Saio para tratar
de um assunto", disse-lhe eu com um ar um pouco mais doce, "e esse
assunto diz-lhe respeito; mas não me interrogue. Ceio em minha casa;
volte, e saberá de que se trata." Foi então que ele recuperou a palavra:
mas não lhe permiti que fizesse uso dela.
"Estou com muita pressa", continuei. "Deixe-me; até logo à noite." Beijou-
me a mão e saiu.
Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me
recompensar a mim própria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha
casinha, de cuja existência ele não suspeita. Chamo a minha fiel Vitória.
Veio-me a enxaqueca; deito-me para todos os meus criados; e, ficando
enfim só com a verdadeira, enquanto ela se vestia de lacaio, disfarcei-
me de criada de quarto. Em seguida ela mandou vir um fiacre à porta
do jardim, e partimos juntas.
Chegada àquele templo de amor, escolhi o roupão mais
galante.
É um vestuário delicioso, de minha invenção: não deixa ver
nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a sua
Presidente, quando o Visconde a tiver tornado digna de o usar.
Depois destes preparativos, enquanto Vitória se ocupava de
outros pormenores, li um capítulo do Sofá, uma carta de Heloisa e dois
contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons que eu queria
tomar. Entretanto o Cavaleiro chega à minha porta, com a pressa que
tem sempre. O porteiro não o deixa entrar, e diz-lhe que adoeci:
primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo tempo um bilhete meu, mas
não com a minha letra, segundo a minha regra de prudência. Ele abre-
o, e encontra escrito pela mão de Vitória: "Às nove em ponto, no
Boulevard, em frente dos cafés." Dirige-se para lá; e, ali, um pequeno
lacaio que ele não conhece, que ele julga pelo menos não conhecer,
pois é sempre Vitória, vem-lhe anunciar que é preciso mandar embora
a carruagem e segui-lo. Todas estas peripécias romanescas lhe
esquentavam a cabeça, e uma cabeça esquentada nada prejudica.
Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um
verdadeiro encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se
passeamos um momento no parque; depois encaminho-o para casa.
Ele vê primeiro dois talheres postos; depois uma cama feita.
Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu
esplendor.
Ali, metade por reflexão, metade por sentimento, passei os meus
braços em volta dele e deixei-me cair a seus pés: "Ó meu amigo!", disse-
lhe eu, "para poder preparar-te a surpresa deste momento, censuro-me
por te ter afligido com a aparência do meu mau humor; por ter um
instante velado o meu coração aos teus olhares. Perdoa-me os agravos;
quero expiá-los à força de amor." O Visconde julgará do efeito deste
discurso sentimental.
O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdão foi selado sobre
aquela otomana onde o Visconde e eu selamos tão alegremente e da
mesma maneira a nossa eterna separação.
Como tínhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha
resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso,
moderei os seus transportes, e a amável coqueteria veio substituir a
ternura. Julgo que nunca pus tanto empenho em agradar, e que nunca
estive tão satisfeita de mim própria. Depois da ceia, alternadamente
criança e razoável, folgazã e sensível, por vezes mesmo libertina,
aprouve-me considerá-lo como um sultão em meio do serralho, do qual
eu era de cada vez uma favorita diferente. Na verdade, ao passo que
ele repetia as suas homenagens, se elas eram sempre dirigidas à mesma
mulher, era sempre uma nova amante que as recebia.
Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele me
disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrário, tudo mostrava
que a necessidade era maior que o desejo. No momento em que
saíamos e por último adeus, tomei a chave daquele feliz refúgio, e
pondo-lha entre as mãos, disse: "É só para si que a tenho. É justo que
seja o seu dono. O sacrificador deve dispor do templo." Com esta
habilidade preveni as reflexões que ele poderia fazer sobre a
propriedade, sempre suspeita, duma casa pequena. Conheço-o
bastante para estar certa de que não se servirá dela senão para mim; e
se eu tivesse a fantasia de lá ir sem ele, sempre me restava outra chave.
Ele queria à viva força marcar data para lá voltarmos; mas eu amo-o
ainda demasiado para querer gastá-lo tão depressa. Só devemos
permitir-nos excessos com as pessoas que cedo queremos deixar.
Ele não o sabe; mas, felizmente para ele, eu sei-o por dois.
Reparo agora que são três da manhã, e que escrevi um volume,
quando formara o projeto de escrever apenas uma palavra.
Tal é o encanto da amizade confiante: é ela que faz que seja o
Visconde quem amo mais; mas, na verdade, o Cavaleiro é quem mais
me agrada.

12 de Agosto de 17* *.

CARTA XI
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por


felicidade, eu não encontrasse aqui mais motivos de tranqüilidade do
que os de temor que me ofereceis. Esse temível senhor de Valmont, que
deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter deposto as suas
armas mortíferas antes de entrar neste castelo.
Longe de vir aqui formar os seus projetos, nem mesmo trouxe
quaisquer pretensões; e a qualidade de homem amável, que até os
seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para não deixar
senão a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo que
produziu este milagre.
O que posso assegurar-vos é que, estando constantemente ao
pé de mim, parecendo mesmo que isso lhe agrada, não lhe escapou
ainda uma palavra que se pareça com o amor, nem uma dessas frases
que todos os homens se permitem, sem ter, como ele, o que é
necessário para as justificar.
Nunca ele obriga àquela reserva na qual hoje é obrigada a
manter-se toda a mulher que se respeita, para conter os homens que a
rodeiam. Sabe não abusar da animação que inspira. É talvez um pouco
pródigo em louvores; mas é com tanta delicadeza que o faz, que
obrigaria a própria modéstia a habituar-se ao elogio. Enfim, se eu tivesse
um irmão, desejaria que ele fosse tal como o senhor de Valmont se
mostra aqui. Talvez muitas mulheres desejassem da sua parte uma
galanteria mais marcada; e confesso que lhe estou infinitamente grata
por ele me julgar de uma forma que lhe permite não me confundir com
elas.
Este retrato difere muito sem dúvida do que me fizestes; e,
apesar disso, ambos podem estar parecidos, se fixarmos as épocas.
Ele próprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza
lhe terão atribuído alguns outros. Mas até agora encontrei poucos
homens que falassem de mulheres honestas com mais respeito, direi
quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vós mesma me fizeste saber que
ele não engana. A sua conduta em relação a Madame de Merteuil é
disso prova. Fala-nos muito dela; e é sempre com tantos elogios e
dando mostras de uma dedicação tão verdadeira, que cheguei a crer,
antes da recepção da vossa carta, que aquilo que ele chamava
amizade entre os dois fosse realmente amor. Acuso-me desse
julgamento temerário, o qual foi tanto mais errôneo quanto é certo que
ele mesmo tomou a seu cargo, por várias vezes, o cuidado de a
justificar. Confesso que tomei por delicadeza o que da sua parte era
sinceridade autêntica.
Não sei; mas parece-me que aquele que é capaz de uma
amizade tão contínua por uma mulher tão estimável, não é um libertino
sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento reto que ele
mantém aqui se deve a alguns projetos por estes lugares, conforme a
vossa suposição. É certo que por estas cercanias há algumas mulheres
interessantes; mas ele sai pouco, exceto de manhã, e então diz que vai
caçar. É verdade que raramente traz caça; mas assegura que é
desastrado nesse exercício.
Demais, o que ele faz lá por fora inquieta-me pouco; e se eu
desejasse sabê-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me
aproximasse da vossa opinião ou que vos conduzisse à minha.
Acerca da vossa proposta de trabalhar no sentido de abreviar o
tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me muito
difícil ousar pedir a sua tia que não tenha o sobrinho junto dela, tanto
mais que gosta muito dele. Prometo-vos, todavia, mas somente por
deferência e não por necessidade, aproveitar a primeira ocasião para
fazer esse pedido, quer a Madame de Rosemonde, quer a ele próprio.
Quanto a mim, o senhor de Tourvel é conhecedor do meu projeto de
ficar aqui até ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razão, da
ligeireza que me fizesse mudar de projeto.
São bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei
dever à verdade um testemunho favorável para o senhor de Valmont, e
do qual ele me parece ter grande necessidade junto de vós. Nem por
isso sou menos sensível à amizade que ditou os vossos conselhos. É a ela
que fico devendo também as vossas penhorantes informações sobre a
demora do casamento de vossa filha. Agradeço-vos muito
sinceramente: mas, embora me dê prazer a idéia de passar esses
momentos convosco, sacrificá-los-ia de bom grado ao desejo de saber
Mademoiselle de Volanges mais cedo feliz, se é que ela pode vir a sê-lo
mais do que junto de uma mãe tão digna de toda a sua ternura e do
seu respeito.
Partilho com ela os doces sentimentos que me prendem a vós, e
peço-vos que aceiteis a expressão deles com bondade.
Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17* *.

CARTA XII

CECÍLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

A Mamã está incomodada, minha senhora; não pode sair hoje,


e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo não terei a honra
de vos acompanhar à Ópera. Asseguro-vos que lamento bem mais não
estar convosco do que o espetáculo.
Peço-vos que acrediteis. Tenho por vós tanta amizade! Tereis a
bondade de dizer ao Cavaleiro Danceny que não tenho a coleção de
que ele me falou, e que se ma puder trazer amanhã me dará grande
prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-ão que não estamos; mas é a Mamã que
não quer receber ninguém. Espero que ela amanhã esteja melhor.
Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17 * *.

CARTA XIII

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do prazer


de a ver, bem como pelo motivo dessa privação. Espero que outra
ocasião se encontrará. Desempenhar-me-ei da sua comissão junto do
Cavaleiro Danceny, que certamente ficará muito aborrecido por saber
sua Mamã doente. Se ela amanhã me quiser receber, irei fazer-lhe
companhia. Faremos um ataque, ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche
ao piquet, e, além de lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por
acréscimo de prazer, o de a ouvirmos cantar com o seu amável mestre;
encarrego-me de lhe fazer o pedido. Se isso convier a sua Mamã e a si,
respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha linda; os
meus cumprimentos à minha querida Madame de Volanges.
Beijo-a muito ternamente.

13 de Agosto de 17* *.

CARTA XIV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ontem não te escrevi, minha querida Sofia; mas não foi o prazer
o motivo, posso jurar-te. A Mamã esteve doente, e não a deixei em
todo o dia.
À noite, quando me retirei, não tive cabeça para nada; e deitei-
me muito depressa, para ter a certeza de que o dia tinha acabado.
Nunca tinha passado nenhum tão comprido. Não é que eu não goste
da Mamã, mas não sei o que era. Devia ir à Ópera com Madame de
Merteuil; o Cavaleiro Danceny devia lá estar. Bem sabes que são as
duas de quem eu mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir
ter com eles, senti o coração apertado, contra minha vontade. Tudo
me aborrecia, e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente a
Mamã estava deitada, e não podia ver-me. Estou bem certa de que o
Cavaleiro Danceny também ficou aborrecido; mas deve ter-se distraído
com o espetáculo e com toda agente que o rodeava.
Foi muito diferente.
Por felicidade, a Mamã está hoje melhor, e Madame de Merteuil
virá com outra pessoa e com o Cavaleiro Danceny; mas chega sempre
muito tarde, Madame de Merteuil; e quando se esteve tanto tempo
sozinha, é muito aborrecido. São apenas onze horas. É verdade que
tenho de tocar harpa; e depois levarei algum tempo a vestir-me e a
arranjar-me, pois hoje quero estar muito bem penteada. Parece-me que
madre Perpétua tem razão e que uma pessoa se torna garrida quando
vive em sociedade.
Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de há alguns dias
para cá, e acho que não o sou tanto como pensava; e depois, junto de
mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame de Merteuil,
por exemplo: vejo bem que todos os homens a acham mais bonita do
que eu. Não me importo muito, porque ela é minha amiga. E além disso
ela afirma-me que o Cavaleiro Danceny me acha mais bonita do que
ela. É muito honesto da sua parte ter-mo dito! Até parece que estava
contente em mo dizer. Aí está uma coisa que eu não compreendo. É
porque ela gosta muito de mim! E ele!...
Oh!, foi uma coisa que me deu muito prazer! Por isso, até,me
parece que só de olhar para ele uma pessoa fica bonita. Eu estaria a
olhar sempre para ele, se não tivesse receio de encontrar os seus olhos:
pois, todas as vezes que tal me acontece, fico confusa, e parece que
me dá pena; mas isto nada quer dizer.
Adeus, minha querida amiga. Vou-me pôr diante do espelho.
Continuo a gostar de ti como sempre.

Paris, 14 de Agosto de 17 * *.

CARTA XV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É muito honesto da sua parte não me abandonar à minha triste


sorte.
A vida que levo aqui é realmente fatigante, pelo excesso de
repouso que me proporciona e pela sua insípida uniformidade.
Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador,
estive vinte vezes tentado a pretextar um negócio, voar a seus pés e
pedir-lhe, em meu favor, uma infidelidade ao seu Cavaleiro, que, no fim
de tudo, não merece a felicidade de que desfruta. Sabe a Marquesa
que me pôs ciumento dele? Por que me fala da eterna separação?
Renego esse juramento, pronunciado em delírio: não seríamos dignos
de o fazer, se fôssemos obrigados a mantê-lo. Ah! Que eu possa um dia
vingar-me nos seus braços do ciúme involuntário que me causou a
felicidade do Cavaleiro!
Estou indignado, confesso, só de pensar que esse homem, sem
raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se a seguir
totalmente o instinto do seu coração, encontra uma felicidade que eu
não atingirei nunca. Oh! Hei-de perturbá-la...
Prometa-me que serei eu a perturbá-la. A Marquesa mesmo não
se sente humilhada? Tem trabalho para o enganar, e ele é dos dois o
mais feliz.
Julga que o tem preso nas suas malhas!
É a Marquesa que o está nas dele. Enquanto vela pelos seus
prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se fosse sua
escrava?
Saiba-o, minha bela amiga, enquanto se divide entre vários, não
sinto o mínimo ciúme: não vejo então nos seus amantes senão os
sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos juntos, aquele
império onde eu reinei só. Mas que se entregue inteiramente a um
deles! Que exista outro homem tão feliz como eu! Não posso sofrê-lo;
não espere que eu o sofra. Ou readmita-me, ou pelo menos arranje
outro; e não queira trair, por um capricho exclusivo, a amizade
inviolável que nos juramos mutuamente.
É o momento, sem dúvida, de lhe confessar as minhas queixas
amorosas. Bem vê que me presto às suas idéias, e que confesso os meus
erros: Na verdade, se estar apaixonado é não poder viver sem possuir o
que se deseja, sacrificar a essa idéia o tempo, os prazeres; a vida, então
é certo que estou realmente apaixonado. Não estou mais avançado do
que estava.
Não teria mesmo mais nada a contar-lhe a esse respeito se não
fosse um acontecimento que me dá muito que pensar, e que não sei
ainda se deve inspirar-me receio ou esperança.
A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e
verdadeiro lacaio de comédia: e bem pode imaginar que entre as suas
atribuições cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e a de
perturbar as pessoas.
O patife é mais feliz do que eu: já conseguiu uma vitória. Acaba
de descobrir que Madame de Tourvel encarregou uma criatura sua de
tirar informações sobre a minha conduta, e mesmo de me seguir nos
meus passeios de manhã, até onde possa, sem que alguém se
aperceba. Que pretende esta mulher? Assim pois a mais modesta de
todas ousa arriscar-se a um ponto que nós mal ousaríamos permitir-nos!
De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta
astúcia feminina, ocupemo-nos do meio de a pôr ao nosso serviço.
Até agora esses passeios de que se suspeita não tinham
qualquer objetivo; é preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha
atenção, e vou findar para pensar nisso. Adeus minha bela amiga.

Sempre do Castelo de. . ., 15 de Agosto de 17 * *.


CARTA XVI

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ah, minha Sofia, tenho novidades a dar-te! Talvez não devesse


dizer: mas é preciso que eu fale nisto a alguém; é mais forte do que eu.
Esse Cavaleiro Danceny... Estou tão perturbada que não posso escrever.
Não sei por onde começar. Depois que te contei o lindo serão que
passei com ele e com Madame de Merteuil junto da Mamã, não voltei
a falar-te a seu respeito: é que eu não queria falar dele a ninguém; mas
era nele que eu pensava sempre. Depois, tinha-se tornado tão triste,
mas tão triste, tão triste, que me fazia pena. E quando eu lhe
perguntava porquê, dizia-me que não: mas eu bem via que sim. Enfim,
ontem ainda estava mais triste que de costume. Isso não impediu que
tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes; mas,
sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o coração.
Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha harpa no
estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me que tocasse ainda
naquela noite, logo que me encontrasse só. Eu não desconfiei de nada;
nem mesmo queria: mas ele pediu-me tanto, que lhe disse que sim. Ele
tinha as suas razões. Efetivamente, quando me retirei para o meu
quarto, e assim que a criada saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas
cordas uma carta, simplesmente dobrada, e não lacrada; era dele! Ah!
Se tu soubesses o que me diz! Depois de a ter lido senti tanto prazer que
nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e depois
fechei-a na minha secretária. Já a sabia de cor; e depois de deitada
repeti-a tantas vezes que nem pensava em dormir.
Assim que fechei os olhos vi-o ao pé de mim, dizendo-me tudo
quanto eu acabara de ler. Só adormeci muito tarde; e mal tinha
acordado (era ainda muito cedo), fui logo buscar a carta para a tornar
a ler à minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a como
se... Talvez seja mal feito beijar uma carta como esta, mas a verdade é
que não pude impedir-me de o fazer.
Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas também
muito embaraçada; pois é certo que não devo responder a esta carta.
Sei bem que isso não se deve fazer, no entanto ele pede-mo; e se eu
não responder, estou certa de que se vai pôr ainda mais triste. É uma
desgraça para ele!
Que me aconselhas tu? É claro que a este respeito não sabes
mais do que eu. Tenho muita vontade de falar nisto a Madame de
Merteuil, que é tão minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas não
quero fazer nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que
tenhamos bom coração! E depois proíbem-nos de seguir o que ele nos
inspira, quando se trata de um homem! Isto também não é justo.
Por acaso um homem não é o nosso próximo, como uma mulher
ou mais ainda? Pois enfim, não temos nós um pai, tal como uma mãe,
um irmão, tal como uma irmã? Além disso ainda fica o marido. Mas se
eu fosse fazer qualquer coisa que não fosse bem feita, talvez o próprio
senhor Danceny não ficasse com boa idéia a meu respeito! Oh! Isso
então era o que me faltava. Prefiro que fique triste. E depois, enfim,
estou sempre a tempo. Lá porque ele escreveu ontem, não sou
obrigada a escrever-lhe hoje.
Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem conto-
lhe tudo. Se fizer só o que ela me disser, nada terei a censurar-me.
Talvez ela me diga que lhe responda poucochinho, para que ele
não fique tão triste! Oh! Estou num momento muito difícil.
Adeus, minha boa amiga. Diz-me sempre o que pensas.

19 de Agosto de 17 * *.

*A carta em que se fala deste serão não foi encontrada. Devemos supor que
é o que Madame de Merteuil propõe no seu bilhete, e de que também se fala na
precedente carta de Cecília Volanges.

CARTA XVII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Antes de me entregar, Mademoiselle, àquilo que chamo o


prazer ou a necessidade de lhe escrever, começo por lhe suplicar que
me ouça. Sinto que, para ousar declarar-lhe os meus sentimentos, tenho
precisão de indulgência; se apenas tivesse de justificá-los, ela ser-me-ia
inútil. Que vou eu fazer, afinal, senão mostrar-lhe o meu íntimo? E que
tenho eu a dizer-lhe que os meus olhares, o meu embaraço, a minha
conduta e mesmo o meu silêncio lhe não tenham dito antes de mim?
Por que se havia pois de zangar por um sentimento que fez nascer?
Emanado de si, é sem dúvida digno de lhe ser oferecido; se é ardente
como a minha alma, é também puro como a sua. Seria um crime ter
sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores, as
suas graças fascinantes, essa comovente candura que acrescenta um
preço inestimável a qualidades já tão preciosas?
Não, sem dúvida. Mas, mesmo não se sendo culpado, pode ser-
se infeliz. E é a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a minha
homenagem. É a primeira que o meu coração até hoje a ofereceu. Se
a não tivesse visto eu seria ainda, não feliz, mas tranqüilo. Vi-a; o
repouso fugiu para longe de mim, e o meu coração está inquieto.
Admira-se da minha tristeza; pergunta-me a causa. Algumas vezes
julguei ver que ela a afligia.
Ah! Diga uma palavra, e a minha felicidade será obra sua. Mas,
antes de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser também o
cúmulo da minha tristeza. Seja pois o árbitro do meu destino. Por si vou
ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mãos mais queridas poderia eu
depositar um interesse maior?
Acabarei, como comecei, por implorar a sua indulgência.
Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me
responda.
Recusá-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu
coração é garantia de que em mim o respeito iguala o amor.

P. S. - Poderá servir-se, para me responder, do mesmo meio de que me


sirvo para fazer chegar esta carta às suas mãos; parece-me igualmente
seguro e cômodo.

18 de Agosto de 17* *.

CARTA XVIII

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Pois quê, Sofia! Tu censuras de antemão o que eu vou fazer!


Tinha já bastantes inquietações; vieste tu agora aumentá-las. É
claro, dizes tu, que não devo responder. Falas disto com todo o à-
vontade; mas a verdade é que não sabes ao certo do que se trata: não
estás aqui para ver.
Estou certa de que se estivesses no meu lugar, farias como eu.
Com certeza que, de maneira geral, não se deve responder; e tu bem
viste, pela minha carta de ontem, que eu própria não queria fazê-lo.
Mas é que não creio que alguém se tenha visto alguma vez na situação
em que me encontro.
E ainda ser obrigada a decidir-me sozinha! Madame de Merteuil,
que eu contava ver ontem à noite, não veio. Tudo conspira contra mim:
foi ela quem teve a culpa de eu o conhecer.
Foi quase sempre na presença dela que eu o vi, que lhe falei.
É claro que não lhe quero mal por isso: mas o que é certo é que
me abandona no momento mais difícil. Oh! Sou na verdade digna de
lástima!
Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava tão
perturbada que nem ousei olhá-lo. Ele não podia falar comigo, porque
a Mamã estava presente. Tinha quase a certeza de que ele se zangaria,
quando visse que eu não lhe tinha escrito. Eu não sabia o que havia de
fazer.
Um momento depois perguntou-me se eu queria que fosse
buscar a minha harpa. O coração batia-me tão fortemente que tudo
quanto pude fazer foi responder-lhe que sim. Quando ele voltou é que
foi pior. Só o olhei por um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim;
mas tinha um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto
dava-me muita pena. Pôs-se a afinar a harpa e, depois, quando ma
trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." Não disse mais do que essas
duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei completamente
transtornada. Pus-me logo a tocar sem saber bem o que fazia. A Mamã
perguntou-me se não cantávamos.
Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que não
tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei então nunca ter tido
voz.
Escolhi de propósito uma música que não sabia, pois estava
certa de que não poderia cantar nada, e assim daria a perceber que
havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita; e, logo que ouvi o
ruído de uma carruagem, deixei de cantar e pedi-lhe que fosse arrumar
a harpa. Tive muito medo que ele se fosse embora ao mesmo tempo;
mas voltou.
Enquanto a Mamã e a senhora que veio visitá-la conversavam
juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os seus olhos, e
foi-me impossível desviar os meus. Um momento depois vi as suas
lágrimas correram, e foi obrigado a voltar-se para não ser visto. Nesse
momento não tive mão em mim; senti que ia chorar também. Saí, e
imediatamente escrevi a lápis, num pedaço de papel: "Não esteja tão
triste, peço-lhe; prometo que lhe responderei." Com certeza não podes
dizer que haja algum mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o
papel nas cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei à sala.
Sentia-me mais tranqüila. Já me tardava que a senhora se fosse
embora. Felizmente; foi uma visita curta; deixou-nos pouco depois. Logo
que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha harpa, e pedi-lhe
que a fosse buscar. Vi bem, pelo seu aspecto, que não desconfiava de
nada. Mas quando voltou, oh!, como ele estava contente!
Ao pôr a harpa na minha frente, colocou-se de maneira que a
Mamã não podia vê-lo, e tomou-me a mão, que apertou... mas de uma
maneira!...
Foi apenas um momento; mas eu sou incapaz de te dizer o
prazer que isso me deu. No entanto, retirei a mão; por isso não tenho
nada a censurar-me.
Agora, minha boa amiga, bem vês que não posso dispensar-me
de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, não quero que volte a
estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se fosse alguma coisa de
mal, eu não a faria. Mas que mal pode haver em escrever,
principalmente quando é para impedir que alguém seja infeliz? O que
me aborrece é saber que não sou capaz de fazer uma carta bem feita.
Mas ele há de perceber que a culpa não é minha. E depois estou bem
certa de que só por ser minha lhe dará prazer.
Adeus, minha querida amiga. À medida que se aproxima o
momento de lhe escrever, o meu coração bate de uma maneira
inconcebível. No entanto é preciso, visto que o prometi. Adeus.

20 de Agosto de 17* *.

CARTA XIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Estava ontem tão triste, senhor, e isso causava-me tanta pena,


que não resisti a prometer-lhe que responderia à carta que me
escreveu. Não é que eu sinta hoje menos que não o devia fazer; mas,
como lhe prometi, não quero faltar à minha palavra, e isso deve provar-
lhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora que já sabe, espero que
não volte a pedir-me que lhe escreva mais. Espero também que não
diga a ninguém que lhe escrevi, porque com certeza me censuravam e
isso podia causar-me muitos desgostos. Espero principalmente que não
fique a fazer má idéia de mim, o que seria o maior desgosto que eu
podia ter.
Posso dar-lhe a certeza de que não teria essa complacência
para outro que não fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bondade de
não estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer que sinto
em o ver. Bem vê que lhe falo com toda a sinceridade.
Só peço que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe,
não torne a escrever-me.
Tenho a honra de ser, etc.

20 de Agosto de 17* *.

CARTA XX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Ah, tratante, faz-me festas porque receia a minha troça!


Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que
realmente é preciso que eu lhe desculpe a prudência do seu
procedimento em relação à sua Presidente. Não creio que o meu
Cavaleiro usasse de tanta indulgência como eu; seria homem para não
aprovar a renovação do nosso contrato e para não achar nada de
divertido na sua louca idéia. No entanto fez-me rir muito, e senti-me
verdadeiramente aborrecida de ser obrigada a rir tanto sozinha. Se o
Visconde estivesse próximo, não sei onde me poderia ter levado essa
alegria: mas tive tempo para refletir e armei-me de severidade. Não é o
caso de recusar para sempre; mas vou adiando, e tenho razão. Poria
nisso talvez vaidade, e, uma vez entrada no jogo, não se sabe onde se
vai parar.
Serei mulher para o prender de novo, para lhe fazer esquecer a
sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja que
escândalo!
Para evitar esse perigo, eis as minhas condições.
Assim que tenha possuído a sua devota e me possa fornecer
uma prova, venha, e serei sua. Mas não ignora que, nos negócios
importantes, não se recebem provas senão por escrito. Por esta
combinação, serei, por um lado, uma recompensa em vez de ser uma
consolação, e essa idéia agrada-me mais; por outro lado, o seu êxito
será mais excitante. Venha pois, venha o mais cedo possível trazer-me o
penhor do seu triunfo: semelhante aos nossos esforçados cavaleiros, que
vinham depor aos pés das suas damas os frutos brilhantes da vitória.
Seriamente, estou curiosa de saber o que pode escrever uma mulher
virtuosa depois de um tal momento, e que véu porá nas suas palavras,
depois de não ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde
cabe avaliar se eu me coloco num preço muito alto; mas previno-o de
que não farei qualquer abatimento... Até lá, meu caro Visconde,
achará bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que me divirta a
torná-lo feliz, apesar do pequeno desgosto que isso causa.
Entretanto, se os meus costumes não fossem tão regrados, creio
que teria, neste momento, um rival perigoso; é a pequena Volanges.
Estou louca por essa pequena; é uma verdadeira paixão.
Ou eu me engano, ou ela virá a ser uma das nossas mulheres da
moda. Vejo o seu coraçãozinho desenvolver-se, e é um espetáculo
encantador. É já com furor que ela ama o seu Danceny; mas por
enquanto não percebe destas coisas. Quanto a ele, embora muito
apaixonado, tem ainda a timidez da sua idade e não ousa ensinar-lhe
demasiado. Os dois permanecem em adoração na minha frente.
Principalmente a pequena tem grande desejo de me dizer o seu
segredo; desde há alguns dias, em particular, vejo-a verdadeiramente
sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia um grande serviço se a ajudasse
um pouco. Mas não esqueço que é uma criança, e não quero
comprometer-me. Danceny falou-me um pouco mais claramente, mas,
para ele, o meu partido está tomado, não quero ouvi-lo.
Quanto à pequena, sinto-me muitas vezes tentada a fazer dela
minha discípula; é um serviço que tenho vontade de prestar a Gercourt.
Ele dá-me tempo para isso, porque está na Córsega até ao mês de
Outubro.
Tenho em mente empregar todo esse tempo, de modo a
podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar da sua
inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a insolente
confiança desse homem, que ousa dormir tranqüilo, enquanto uma
mulher, que dele tem motivos de queixa, não se vingou ainda? Creia, se
a pequena estivesse aqui neste momento, nem eu sei o que lhe diria.
Adeus, Visconde; boa noite e bom êxito: mas, por Deus, veja se
avança. Pense que, se não possuir essa mulher, as outras terão
vergonha de terem sido possuídas.

20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um


grande passo, e que, se não me conduziu até ao fim, me fez pelo
menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio em
que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e embora
me tenha respondido o silêncio mais obstinado, obtive a resposta talvez
menos equívoca e mais lisonjeira; mas não antecipemos os
acontecimentos e voltemos mais atrás.
A Marquesa recorda-se que os meus passos eram espiados.
Pois bem! Decidi que esse meio escândalo servisse para a
edificação do público, e aqui está o que eu fiz. Encarreguei o meu
confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que tivesse
necessidade de auxílio.
Essa missão não era difícil de cumprir. Ontem de tarde, deu-me
ele a notícia de que hoje, de manhã, deviam ser penhorados os móveis
de uma família inteira que não podia pagar a derrama. Assegurei-me
de que nessa casa não havia nenhuma mulher ou rapariga cuja idade
pudesse tornar suspeita a minha ação; e, logo que fiquei bem
informado, declarei à ceia o meu projeto de ir à caça no dia seguinte.
Devo aqui fazer justiça à minha Presidente: sem dúvida teve ela alguns
remorsos das ordens que deu; e, não tendo força de vencer a sua
curiosidade, teve pelo menos a de contrariar o meu desejo.
Devia haver calor em excesso; arriscava-me a ficar doente; não
apanharia nenhuma caça e fatigar-me-ia em vão; e, durante este
diálogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria,
davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por boas as
suas más razões.
Como pode crer, eu não pensava em me render a tais razões, e
resisti do mesmo modo a uma pequena diatribe contra a caça e os
caçadores, e a uma pequena nuvem de mau humor que obscureceu,
durante todo o serão, esta figura celeste. Por um momento receei que
as suas ordens fossem anuladas e que a sua delicadeza acabasse por
me prejudicar.
Fiz um mau cálculo sobre a curiosidade duma mulher; por isso
me enganei. O meu criado tranquilizou-me nessa mesma noite, e deitei-
me satisfeito.
Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinqüenta
passos do castelo, vejo que o meu espião me segue. Entro no terreno
da caça e caminho através dos campos para a aldeia onde pretendia
dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, além do de obrigar a
correr o patife que me seguia, e que, não se atrevendo a deixar os
caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a toda a velocidade, um
espaço triplo do meu. De tanto o pôr à prova, eu próprio ia cheio de
calor, e sentei-me junto de uma árvore. Pois não teve ele a insolência
de deslizar para trás de uma moita, a menos de vinte passos de
distância, e de se sentar também? Por um momento estive tentado a
mandar-lhe um tiro, que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria
dado uma lição suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente
para ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo útil e mesmo
necessário aos meus projetos; esta reflexão salvou-o.
Entretanto chego à aldeia; vejo que há movimento; avanço;
interrogo; contam-me o que se passa. Chamo o cobrador; e, cedendo
à minha generosa compaixão, pago nobremente cinqüenta e seis
libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas à indigência e ao
desespero. Depois desta ação tão simples, não imagina o coro de
bênçãos que se ergueu à minha volta por parte dos assistentes! Que
lágrimas de reconhecimento corriam dos olhos do velho chefe daquela
família, e embelezavam a sua figura de patriarca, que um momento
antes a contração feroz do desespero tornava verdadeiramente
hedionda! Eu examinava o espetáculo e logo outro camponês mais
moço, conduzindo pela mão uma mulher e duas crianças, avança para
mim a passos precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos pés
desta imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a
família, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza; os
meus olhos tinham-se molhado de lágrimas, e senti em mim um
movimento involuntário, mas delicioso. Fiquei surpreendido do prazer
que se experimenta ao fazer-se bem; e estive tentado a crer que
aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas não têm tanto mérito
como geralmente se diz.
Fosse como fosse, achei que era justo pagar àquela pobre gente
o prazer que acabava de me dar. Tinha comigo dez luíses: dei-lhos.
Aqui recomeçaram os agradecimentos, mas já não tinham o mesmo
grau de patético: o necessário tinha produzido o grande, o verdadeiro
efeito; o resto era apenas uma simples expressão de reconhecimento e
de espanto por uma dádiva supérflua.
Entretanto, no meio das bênçãos tagarelas daquela família, eu
não deixava de me parecer um pouco com o herói de um drama, na
cena do desenlace. Calculará decerto que entre a multidão se
mantinha a pé firme o espião fiel. O meu fim fora atingido; separei-me
de todos, e voltei para o castelo. Deitados todos os cálculos, felicito-me
da minha invenção. Esta mulher vale bem, sem dúvida, que eu me dê a
tais cuidados; eles serão um dia os meus títulos junto dela; e tendo-lhe,
de algum modo, pago assim de antemão, terei o direito de dispor dela
segundo a minha fantasia, sem ter de me censurar.
Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu
favor, pedi àquela boa gente que rogasse a Deus pelo bom êxito dos
meus projetos. A Marquesa verá se os seus rogos não foram já em parte
atendidos... Mas anunciam-me que a ceia está servida e far-se-ia tarde
para mandar esta carta se eu não a fechasse ao retirar-me. Assim, o
resto no próximo número. Aborrece-me isso, pois o resto é o melhor.
Adeus, minha bela amiga.
Acaba de me roubar um momento do prazer de vê-la.

20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ficareis sem dúvida satisfeita, senhora, por conhecer um gesto


do senhor de Valmont, que contrasta em muito, parece-me, com todos
aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. É uma coisa tão penosa
pensar desfavoravelmente de quem quer que seja, tão aborrecido
encontrar apenas vícios naqueles que podem ter todas as qualidades
necessárias para fazer amar a virtude!
Enfim, gostais tanto de usar de indulgência que dar-vos motivo
para reparar um juízo demasiado rigoroso é decerto servir-vos.
O senhor de Valmont parece-me ter as condições necessárias
para esperar esse favor, direi quase justiça; e vou dizer-vos porque o
penso.
Esta manhã deu ele um daqueles passeios que poderiam levar a
supor qualquer projeto da sua parte nos arredores, conforme a idéia
que vos veio; idéia que me acuso de ter partilhado talvez com
demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo felizmente
para nós, pois isso nos salva de sermos injustas, um dos meus servidores
tinha de ir para os mesmos lados que ele; e foi por aí que a minha
curiosidade repreensível, mas feliz, foi satisfeita. Contou-nos o criado
que o senhor de Valmont, tendo encontrado na aldeia de... uma infeliz
família cujos móveis iam ser vendidos, por não poder pagar os impostos,
não somente se apressara a solver a dívida daquela pobre gente, mas
lhe dera até uma importância em dinheiro bastante considerável.
O meu criado foi testemunha daquela virtuosa ação, e mais me
contou que os camponeses, conversando entre si e com ele, haviam
dito que um criado que designaram, e que o meu julga ser o do senhor
de Valmont, tinha ontem ido tirar informações sobre quais os habitantes
da aldeia que poderiam estar necessitados de auxílio. Se isto é assim, se
não é unicamente uma compaixão passageira e que a ocasião
determina, então é o projeto formado de fazer bem; é a solicitude da
beneficência; é a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja
acaso ou projeto, é sempre uma ação honesta e louvável, e de que a
simples narração me enterneceu até às lágrimas. Acrescentarei ainda,
e sempre por justiça, que, quando lhe falei dessa ação, da qual ele não
dizia palavra, começou por se defender e mostrou atribuir-lhe tão
pouco valor que a sua modéstia lhe redobrava o mérito.
Dizei-me agora, minha respeitável amiga, se o senhor de
Valmont é na verdade um libertino sem remissão? Se ele é apenas isso e
procede assim, que ficará para as pessoas honestas?
Pois quê! Os maus partilhariam com os bons o prazer sagrado da
beneficência? Permitiria Deus que uma família virtuosa recebesse das
mãos dum celerado os socorros que teria de agradecer à sua divina
Providência?
E poderia ele sentir prazer em ouvir, de bocas puras, espalharem-
se bênçãos sobre um réprobo? Não.
Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, não são
eternos; e não posso pensar que quem faz o bem seja inimigo da
virtude. O senhor de Valmont é talvez um exemplo mais do perigo de
certas ligações. Detenho-me nesta idéia que me parece a melhor. Se,
por um lado, ela pode servir a justificá-lo no vosso espírito, por outro
torna cada vez mais preciosa a terna amizade que me liga a vós por
toda a vida.
Tenho a honra de ser, etc.

P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos, ver


também a honesta e infeliz família, e juntar os nossos socorros tardios
aos do senhor de Valmont. Levá-lo-emos conosco. Daremos ao menos
a essa boa gente o prazer de tornar a ver o seu benfeitor; é, creio eu,
tudo o que ele deixou para nós fazermos.

20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tínhamos ficado no meu regresso ao castelo: retomo a minha


narrativa.
Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei à sala,
onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta à
minha velha tia.
Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais doces ainda do
que o costume, e quase acariciantes, depressa me fizeram adivinhar
que o criado tinha já dado conta da sua missão.
De fato, a minha amável curiosa não pôde guardar por muito
tempo o segredo que me tinha roubado; e, sem receio de interromper
um venerável pastor cuja prédica no entanto se parecia com uma
homilia, disse: "Também tenho as minhas novidades a dar"; e
imediatamente contou a minha aventura com uma exatidão que fazia
honra à inteligência do seu historiador.
A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a minha
modéstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz, sem o
suspeitar, o elogio daquele que ama? Tomei pois o partido de a deixar
continuar. Dir-se-ia que ela pregava o panegírico de um santo. Durante
esse tempo eu observava, não sem esperança, tudo o que prometiam
ao amor os seus olhares cheios de animação, os seus gestos agora mais
livres, e principalmente aquele tom de voz que, pela sua alteração já
sensível, traía a emoção da sua alma. Logo que ela acabou de falar,
Madame de Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao pé de
mim; quero abraçá-lo." Imediatamente senti que a linda pregadora não
poderia defender-se de ser abraçada por sua voz. Quis fugir, entretanto;
mais depressa a atraí para os meus braços; e, longe de ter forças para
resistir, apenas lhe restavam as bastantes para se manter de pé. Quanto
mais observo esta mulher, mais ela me parece desejável. Apressando-se
a voltar para junto do tear, simulou, para os presentes, recomeçar a sua
tarefa; mas vi bem que a sua mão trêmula não lhe permitia continuá-la.
Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados que
eu tão piedosamente tinha socorrido; acompanhei-as.
Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de
reconhecimento e de louvores. O meu coração, impedido por uma
recordação deliciosa, apressa o momento do regresso ao castelo.
Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que de
costume, não dizia palavra. Eu pensava em encontrar os meios de
aproveitar o efeito que nela causara o acontecimento do dia, e por isso
mantinha igualmente silêncio. Só Madame de Rosemonde falava e
apenas obtinha de nós respostas curtas e raras. Era quase certo que a
estávamos aborrecendo: era precisamente o que eu desejava, e fui
bem sucedido. Ao descer da carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus
aposentos, e deixou-nos frente a frente, a minha bela e eu, numa sala
mal iluminada: obscuridade doce, que torna ousados os amores
tímidos.
Não tive o trabalho de orientar a conversação para o ponto em
que desejava conduzi-la. O fervor da amável pregadora serviu-me
melhor do que não o teria feito a minha habilidade.
"Quando se é digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo
sobre mim o seu doce olhar, "como se pode passar a vida praticando o
mal?" "Não mereço", respondi-lhe, "nem esse elogio, nem essa censura;
e não compreendo como, com a sua inteligência, não me adivinhou
ainda. Mesmo que a minha confiança viesse a prejudicar-me, a
senhora é demasiado digna dela para que eu pudesse recusá-la.
Encontrará a chave da minha conduta num temperamento
infelizmente fácil em demasia. Rodeado de indivíduos sem moral, dei-
me a imitar os seus vícios; talvez tenha posto algum amor-próprio em
ultrapassá-los. Da mesma forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo
das virtudes, e, embora sem esperança de poder igualá-la, procurarei
ao menos segui-la. Talvez o ato por que hoje me louva perdesse a seus
olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A minha
amiga bem vê quanto eu estava perto da verdade.) "Não é a mim",
continuei, "que esses infelizes devem o auxílio que lhes prestei. Onde
julga ver uma ação meritória, procurei eu apenas um meio de agradar.
Eu era apenas, é forçoso dizê-lo, o frágil emissário da divindade que
adoro." (Aqui ela quis interromper-me; mas eu não lhe dei tempo para
tal.) "Neste momento mesmo", acrescentei, "o meu segredo escapa-me
devido a uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para
mim uma felicidade oferecer às suas virtudes e aos seus encantos uma
homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de
enganar, quando tenho debaixo dos olhos o exemplo da candura, não
terei a censurar-me uma culposa dissimulação. Não creia que a ofendo
por uma criminosa esperança. Serei infeliz, bem sei; mas os meus
sofrimentos ser-me-ão caros; provar-me-ão o excesso do meu amor. É a
seus pés, é no seu seio que eu deporei as minhas mágoas. Aí
encontrarei forças para sofrer de novo; aí encontrarei a bondade
compadecida, e julgar-me-ei consolado, só porque me lastimou. Adoro-
a! Escute-me, lastime-me, socorra-me!".
Entretanto eu estava a seus pés, e apertava as suas mãos nas
minhas; ela, porém, desprendendo-as de repente, e cruzando-as sobre
os olhos com expressão de desespero, exclamou: "Ah, desventurada!"; e
desatou a chorar.
Por felicidade, eu a tal ponto me tinha abandonado à emoção
que chorei também; e, voltando a tomar-lhe as mãos, banhei-as de
lágrimas.
Esta precaução era muito necessária, pois ela estava tão
ocupada com a sua dor que não se teria apercebido da minha, se eu
não tivesse encontrado este meio de patenteá-la.
Além disso, aproveitei o momento para contemplar à minha
vontade aquele rosto encantador, embelezado ainda pelo poderoso
atrativo das lágrimas. Senti a cabeça quente, e estava tão pouco
senhor de mim que me senti tentado a aproveitar aquele momento.
Que fraqueza é esta nossa?! A que ponto nos dominam as
circunstâncias, se eu próprio, esquecendo os meus projetos, me arrisquei
a perder, por um triunfo prematuro, o encanto dos longos combates e
os pormenores de uma penosa derrota? Se, seduzido por um desejo de
homem moço, pensei expor o vencedor de Madame de Tourvel a não
recolher, como fruto dos seus trabalhos, senão a insípida vitória de
possuir mais uma mulher?!
Ah! Que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a força
de vencer, tenha a de resistir; que saboreie à vontade o sentimento da
sua fraqueza, e seja obrigada a confessar a sua derrota. Deixemos o
obscuro caçador furtivo matar o veado que surpreendeu numa cilada;
o verdadeiro caçador deve forçá-lo.
É sublime este projeto, não acha? Mas talvez neste momento eu
lamentasse não o ter seguido, se o acaso não viesse em socorro da
minha prudência.
Ouvimos ruído. Alguém vinha do salão. Madame de Tourvel,
horrorizada, levantou-se precipitadamente, agarrou um dos
candelabros e saiu. Tive de a deixar proceder. Era apenas um criado.
Logo que me assegurei disso, segui-a. Apenas eu tinha dado alguns
passos, fosse porque ela me reconhecesse, fosse por um sentimento de
vago terror, ouvi-a precipitar os passos e lançar-se, em vez de entrar, no
seu quarto, fechando a porta atrás de si. Fui junto da porta; mas a
chave estava do lado de dentro.
Tive o cuidado de não bater; seria fornecer-lhe a ocasião de
uma resistência demasiado fácil. Tive a feliz e simples idéia de tentar ver
através da fechadura, e vi de fato essa mulher adorável de joelhos,
banhada em lágrimas, rezando com fervor. Que Deus ousava ela
invocar? Existirá algum com poder bastante contra o amor? É em vão
que ela procura agora socorros estranhos; só eu decidirei da sua sorte.
Julgando ter já feito bastante para um só dia, retirei-me também
para o meu quarto e comecei a escrever esta carta. Esperava voltar a
vê-la à ceia; no entanto, ela mandou dizer que se sentira indisposta e se
tinha deitado. Madame de Rosemonde quis subir ao quarto dela, mas a
maliciosa doente pretextou uma dor de cabeça que não lhe permitia
ver ninguém.
Como facilmente imagina, depois da ceia pouco tempo
estivemos à mesa, e também eu tive a minha dor de cabeça. Fechado
no meu quarto, escrevi uma longa carta para me queixar de tal rigor, e
deitei-me, com o projeto de a entregar esta manhã. Dormi mal, como
poderá ver pela data desta carta. Levantei-me, e reli a minha epístola.
Verifiquei que nela eu me sujeitara a uma medíocre observação, que
mostrava mais ardor do que amor, e mais contrariedade do que tristeza.
É preciso refazê-la; mas necessitarei de estar mais calmo.
O dia começa a romper, e espero que a frescura que o
acompanha me trará o sono. Vou meter-me na cama; e, seja qual for o
império desta mulher, prometo-lhe não me ocupar dela a tal ponto que
não fique tempo para sonhar muito consigo. Adeus, minha bela amiga.

21 de Agosto de 17* * , 4 horas da manhã.

CARTA XXIV
O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ah! Por piedade, senhora, dignai-vos acalmar a perturbação da


minha alma; dignai-vos dizer-me o que devo esperar ou recear.
Colocado entre o excesso da felicidade e o do infortúnio, a
incerteza é um tormento cruel. Por que vos falei? Por que não pude eu
resistir ao encanto imperioso que vos entregava os meus pensamentos?
Contente de vos adorar em silêncio, eu gozava ao menos do amor que
sentia; e esse sentimento puro, que não era perturbado ainda pela
imagem da vossa dor, bastava para a minha felicidade. Mas essa fonte
de ventura transformou-se em fonte de desespero, desde que vi
correrem lágrimas dos vossos olhos; desde que ouvi aquele cruel ah,
desventurada!
Senhora, aquelas duas palavras ressoarão por muito tempo no
meu coração. Por que fatalidade o mais doce dos sentimentos não
pode inspirar-vos mais do que horror? Que receio é esse que sentis? Ah!
Não é o receio de partilhar tal sentimento: o vosso coração, que
conheci mal, não foi feito para o amor; o meu, que caluniais sem
cessar, é dos dois o único sensível. O vosso não tem piedade. Se assim
não fosse, não teríeis recusado uma palavra de consolação ao
desgraçado que vos contava os seus sofrimentos; não vos teríeis furtado
aos olhares de quem não tem outro prazer além de ver-vos; não vos
teríeis divertido cruelmente com a sua inquietação, anunciando-lhe que
estáveis doente sem lhe permitir que se informasse do vosso estado;
teríeis sentido que essa mesma noite, que para vós representava doze
horas de repouso, ia ser para ele século de dores.
Por onde mereci, dizei-me, esse rigor implacável? Não tenho
receio de tomar-vos por juiz: que fiz eu, além de ceder a um sentimento
involuntário, inspirado pela beleza e justificado pela virtude, sempre
contido pelo respeito, e cuja inocente confissão foi o efeito da
confiança e não da esperança?
Pois traireis essa confiança, que me pareceu vós mesma terdes
permitido, e à qual me entreguei sem reservas? Não, não posso
acreditá-lo; seria supor-vos capaz de malevolência, e o meu coração
revolta-se só com a idéia de vos achar em semelhante falta. Retiro as
minhas censuras: pude escrevê-las, mas não pensá-las. Ah! Deixai-me
supor-vos perfeita, é o único prazer que me resta. Provai-me que o sois
concedendo-me os vossos generosos cuidados. Que infeliz tereis já
socorrido que tivesse tanta necessidade deles como eu?
Não me abandoneis no delírio em que me lançastes! Concedei-
me a vossa razão, já que me roubastes a minha! Depois de me
haverdes corrigido, esclarecei-me para terminardes a vossa obra!
Não desejo iludir-vos: não conseguireis vencer o meu amor; mas
ensinar-me-eis a governá-lo: guiando os meus passos, ditando as minhas
palavras, salvar-me-eis ao menos da horrível desgraça de vos
desagradar.
Acima de tudo, dissipai este desesperador receio; dizei-me que
me perdoais, que me lamentais; dai-me a certeza da vossa indulgência!
É certo que nunca disporeis de tanta como eu desejaria que tivésseis;
mas reclamo aquela de que necessito. Podereis recusar-me?
Adeus, senhora. Recebei com bondade a homenagem dos
meus sentimentos; ela não impede a do meu respeito.

20 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aqui lhe apresento o boletim do dia de ontem.


As onze horas entrei nos aposentos de Madame de Rosemonde;
e, sob os seus auspícios, fui introduzido no quarto da doente fingida, que
permanecia deitada. Tinha os olhos muito pisados; espero que tenha
dormido tão mal como eu. Aproveitei um momento em que Madame
de Rosemonde se afastara para entregar a minha carta; recusou-se a
aceitá-la, mas deixei-a sobre a cama, e fui muito honestamente
aproximar a poltrona da minha velha tia, que queria estar junto da sua
querida filha; para evitar o escândalo, teve de guardá-la. Sem
convicção alguma, a doente disse que julgava ter um pouco de febre.
Madame de Rosemonde intimou-me a que lhe tomasse o pulso,
elogiando muito os meus conhecimentos de medicina.
A minha bela teve pois o duplo desgosto de ser obrigada a
estender-me o braço, e de sentir que a sua mentirola ia ser descoberta.
De fato, tomei a sua mão que apertei numa das minhas, enquanto que
com a outra percorria o seu braço fresco e redondo. A maliciosa pessoa
não respondeu a nada, o que me fez dizer ao retirar-me: "Não tem
sequer a mais ligeira perturbação." Calculei que os seus olhares deviam
ser severos, e para a castigar não os procurei.
Após um instante, disse que desejava levantar-se, e deixámo-la
só.
Apareceu ao jantar, que foi triste; anunciou que não sairia para
passear, o que era dizer-me que eu não teria ocasião de lhe falar. Senti
bem que era o momento de soltar um suspiro e lançar um olhar
doloroso. Ela esperava isso por certo, pois foi a única vez durante o dia
que consegui encontrar os seus olhos.
Apesar de toda a sua honestidade, tem os seus pequenos ardis
como qualquer outra. Encontrei o momento de lhe perguntar "se tinha a
bondade de me instruir sobre a minha sorte", e fiquei um pouco
admirado de a ouvir responder-me: "Sim, senhor, escrevi-lhe." Eu estava
muito apressado em receber a carta; mas fosse ainda por ardil,
desastramento ou timidez, ela só ma entregou à noite, no momento de
se retirar para o seu quarto.
Aqui lha envio, juntamente com o rascunho da minha; leia e
julgue: veja com que insigne falsidade ela afirma que não sente amor,
quando eu estou convencido do contrário. E há de queixar-se se eu a
enganar depois, quando ela não receia enganar-me antes! Minha bela
amiga, o homem mais avisado consegue apenas manter-se ao nível da
mulher mais verdadeira. Será pois preciso acreditar em todo este
contra-senso, e fatigar-me de desespero, porque apetece à senhora
simular rigor! Como é possível evitar vingarmo-nos de tais perfídias?...
Mas paciência...
Adeus. Tenho ainda muito para escrever.
A propósito, devolver-me-á a carta da desumana; pode dar-se o
caso que por diante ela pretenda dar valor a essas misérias, e é preciso
estar em regra.
Não lhe falo da pequena Volanges; falaremos disso noutro
dia.

Do castelo, 22 de Agosto de 17* *.

CARTA XXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Decerto, senhor, não viríeis a receber qualquer carta minha se a


minha tola conduta de ontem à noite não me obrigasse a entrar hoje
em explicações convosco. Sim, chorei, confesso-o: é possível também
que me tivessem escapado as duas palavras que citais com tanto
escrúpulo.
Lágrimas e palavras, tudo notastes; é preciso, pois, explicar-vos
tudo.
Habituada a inspirar apenas sentimentos honestos, a ouvir
apenas palavras que posso escutar sem corar, a gozar por
conseqüência de uma tranqüilidade que ouso dizer que mereço, não
sei dissimular nem combater as impressões que experimento. O espanto
e a confusão em que me lançou o vosso procedimento; não sei que
receio, inspirado por uma situação que não foi feita para mim; talvez a
idéia revoltante de me ver confundida com as mulheres que desprezais
e tratada tão ligeiramente como elas; todas estas causas reunidas
provocaram as minhas lágrimas e puderam fazer-me dizer, com razão
segundo penso, que era desventurada. Esta expressão, que achais
demasiado forte, seria certamente demasiado fraca se as minhas
lágrimas e as minhas palavras tivessem motivo diferente; se, em vez de
reprovar sentimentos que me ofendem, eu tivesse receio de os partilhar.
Não, senhor Visconde, não tenho esse receio; se o tivesse, eu
fugiria para cem léguas de distância. Iria chorar para um deserto a
desgraça de vos ter conhecido. Talvez mesmo, apesar da certeza em
que estou de nunca vos poder amar, talvez eu fizesse melhor em seguir
os conselhos dos meus amigos: não deixar que vos aproximásseis de
mim.
Supus, e é esse o meu único erro, supus que respeitaríeis uma
mulher honesta, que não pedia mais do que achar-vos igualmente
honesto e fazer-vos justiça; que já vos defendia, enquanto a ultrajáveis
com os vossos criminosos desejos. Bem se vê que não me conheceis;
não, senhor Visconde, não me conheceis.
Se me conhecêsseis não teríeis querido transformar em direitos os
vossos agravos: porque me dirigistes palavras que eu não devia ouvir,
não vos julgaríeis autorizado a escrever-me uma carta que eu não
devia ler. E pedis-me que guie os vossos passos, que dite as vossas
palavras! Pois bem, senhor, o silêncio e o esquecimento, eis os conselhos
que me apraz dar-vos, e que vos convém seguir: então tereis, na
verdade, direito à minha indulgência. E só de vós depende obterdes
mesmo o meu reconhecimento...
Mas não, não farei um pedido a quem não teve respeito por
mim; não darei mostras de confiança a quem abusou da minha
tranqüilidade. Sois vós quem me obriga a recear-vos, talvez a odiar-vos.
Eu não o desejava; queria ver em vós apenas o sobrinho da minha mais
respeitável amiga: opunha a voz da amizade à voz pública que vos
acusava. Vós destruístes tudo; e, já o prevejo, não fareis nada para
reparar o que destruístes.
Me ofendem, que a confissão deles me ultraja, e sobretudo que,
longe de poder um dia partilhá-los, me forçais a não tornar a ver-vos se
não vos impuserdes a tal respeito um silêncio que me parece ter o
direito de esperar, e mesmo de vos exigir. Junto a esta carta a que me
escrevestes e espero que fareis o favor de me devolver esta; ficaria
verdadeiramente desgostosa se ficasse algum vestígio de um
acontecimento que não deveria nunca ter-se produzido. Tenho a honra
de ser, etc.

21 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Meu Deus, como sois boa, senhora Marquesa! Como


compreendeste que me seria mais fácil escrever-nos do que falar-vos!
Na verdade, o que tenho a dizer-vos é muito difícil. Mas sois minha
amiga, não é verdade? Oh! Sim, minha boa amiga!
Vou fazer o possível por não ter medo; e, depois, tenho tanta
precisão de vós, dos vossos conselhos! Sinto-me muito triste, parece-me
que toda a gente adivinha o que eu penso; e principalmente quando
ele está presente, coro assim que alguém olha para mim. Ontem,
quando me vistes chorar, foi porque eu queria falar-vos e havia não sei
quê que me impedia; e quando me perguntastes o que eu tinha,
saltaram-me as lágrimas contra minha vontade. Não teria podido dizer
uma palavra. Se não fósseis vós, a Mamã saberia logo do que se
tratava, e que iria ser de mim? E no entanto é assim que eu passo a
minha vida, principalmente de há quatro dias para cá!
Foi nesse dia, senhora Marquesa, sim, sempre vos digo, foi nesse
dia que o senhor Cavaleiro Danceny me escreveu: oh!, posso dar-vos a
certeza de que quando encontrei a carta eu não sabia do que se
tratava; mas, para não mentir, não nego que senti muito prazer ao lê-la.
Podeis acreditar, gostaria mais de; ficar triste toda a vida, do que se ele
me não tivesse escrito.
Mas eu sabia bem que não devia dizer-lhe isso, e posso garantir-
vos que cheguei a dizer-lhe que tinha ficado zangada; mas ele disse
que era mais forte do que ele e eu acreditei; pois tinha resolvido não lhe
responder, e no entanto não pude deixar de o fazer. Oh!
Escrevi-lhe apenas uma vez, e mesmo isso foi em parte para lhe
dizer que não voltasse a escrever-me. Mas apesar disso ele continua; e
como eu não lhe respondo, vejo bem que ele está triste, e isso aflige-me
ainda mais. De maneira que não sei que fazer; nem o que resolver, e o
que é certo é que sou digna de lástima.
Dizei-me, peço-vos, senhora Marquesa, será mal feito responder-
lhe de tempos a tempos? Só até que ele compreenda que não deve
voltar a escrever-me, e ficarmos como dantes; pois, por meu lado, se
isto continua, não sei o que vai ser de mim. E estou bem certa de que se
eu não lhe respondo, isso nos fará sofrer aos dois.
Vou enviar-vos também a carta dele, ou uma cópia, e fareis o
vosso juízo; vereis que o que ele me pede não é nada de mal. Mas se
virdes que não é coisa que se deva fazer, prometo-vos que não
continuarei; entretanto, creio que pensareis como eu e que em tudo
isto não há nada de mal.
Enquanto aguardo o vosso parecer, permiti-me, senhora
Marquesa, que vos faça ainda uma pergunta: têm-me dito que é feio
amar alguém; mas porque? O que me leva a perguntar-vos isto é que o
Cavaleiro Danceny pretende que não é feio tal e que quase todas as
pessoas amam alguém; se é assim, não vejo porque serei a única a não
poder fazê-lo; ou será que só é feio para as meninas solteiras? Pois eu
tenho ouvido até à Mamã dizer que Madame D... amava o senhor M...;
e quando ela falava a esse respeito não parecia referir-se a uma coisa
má, mas no entanto tenho a certeza de que ela se zangaria comigo se
suspeitasse da minha amizade pelo senhor Danceny. A Mamã trata-me
sempre como se eu fosse uma criança e não me diz nada. Eu julgava,
quando ela me fez sair do convento, que era para me casar; mas agora
parece-me que não. Não é que eu tenha nisso interesse, asseguro-vos.
Mas, sendo tão amiga da Mamã, sabeis talvez o que há a esse respeito
e, se o souberdes, espero que mo direis.
Ora aqui está uma carta comprida, senhora Marquesa, mas,
como permitistes que eu vos escrevesse, aproveitei para vos dizer tudo
e conto com a vossa amizade.
Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 23 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Pois quê, Mademoiselle, continua a recusar responder-me!


Não há nada que a possa comover, e cada dia leva consigo a
esperança que trouxera! Se consente que subsista entre nós uma
amizade, que amizade é essa não bastante poderosa para a tornar
sensível à minha mágoa? Se a deixa fria e tranqüila, enquanto eu passo
pelos tormentos dum fogo que não posso extinguir?
Se, longe de lhe inspirar confiança, não chega sequer para fazer
nascer a sua piedade? Pois quê! O seu amigo sofre, e não faz nada
para o socorrer! Pede-lhe apenas uma palavra, e recusa-lha!
E quer que ele se contente com um sentimento tão fraco, e tem
até receio de lho confirmar!
Disse-me ontem que não desejaria ser ingrata. Ah!, creia-me,
Mademoiselle, querer pagar amor com amizade não é temer apenas a
ingratidão, é amedrontar-se só da idéia de parecer ingrata. Entretanto,
não ouso continuar a falar-lhe dum sentimento que não pode deixar de
a aborrecer, se não lhe interessa.
É preciso pelo menos encerrá-lo dentro de mim mesmo,
aguardando que possa um dia vencê-lo. Eu sinto quanto será penoso
esse trabalho; não dissimulo perante mim próprio que terei necessidade
de todas as minhas forças; tentarei todos os meios: existe um que será o
mais difícil para o meu coração, é o de repetir muitas vezes comigo
mesmo que o seu é insensível.
Terei de experimentar vê-la menos vezes, e penso já na maneira
de encontrar um pretexto plausível.
Pois quê! Terei de perder o doce hábito de a ver todos os dias!
Ah! Pelo menos não deixarei jamais de lamentá-lo. Uma perpétua
angústia será o preço do amor mais terno; assim o terá querido, e essa
será sua obra!
Jamais, sinto-o, tornarei a encontrar a felicidade que hoje perco;
só a Cecília era feita para o meu coração. Com que prazer farei o
juramento de não viver senão para si! Mas vejo bem que não quer
receber esse juramento.
O seu silêncio basta para me fazer compreender que o seu
coração não lhe diz nada em meu favor; é ao mesmo tempo a prova
mais segura da sua indiferença e a maneira mais cruel de ma anunciar.
Adeus, Mademoiselle.
Já não ouso esperar uma resposta; o amor tê-la-ia escrito com
solicitude, a amizade com prazer, a piedade mesmo com
complacência; mas a piedade, a amizade e o amor são igualmente
estranhos ao seu coração.

Paris, 23 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXIX

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Eu bem te tinha dito, Sofia, que havia casos em que se podia


escrever; e asseguro-te que me censuro muito por ter seguido o teu
conselho, que nos deu tanta mágoa, ao Cavaleiro Danceny e a mim. A
prova de que eu tinha razão é que Madame de Merteuil, que é uma
mulher que com certeza o sabe muito bem, acabou por pensar como
eu.
Confessei-lhe tudo. Primeiro ela disse-me o mesmo que tu; mas
quando eu lhe expliquei tudo, concordou que era muito diferente. Exige
somente que eu lhe mostre todas as minhas cartas e todas as do
Cavaleiro Danceny, a fim de estar certa de que eu não direi senão o
que for necessário.
Por isso, sinto-me agora tranqüila. Meu Deus, como eu gosto de
Madame de Merteuil! É tão boa! E olha que é uma senhora muito
respeitável. Por isso não há nada a dizer.
De que maneira vou escrever ao senhor Danceny e como ele
vai ficar contente! Vai ficar ainda mais contente do que ele pensa, pois
até aqui eu só lhe falava da minha amizade, e ele queria sempre que
eu dissesse o meu amor. Julgo que é a mesma coisa; mas enfim eu não
ousava, e ele teimava nesse ponto. Contei isso a Madame de Merteuil;
ela disse-me que eu tinha razão, e que não convinha falar de amor,
enquanto uma pessoa se pode impedir de o fazer. Ora eu tenho a
certeza de que não poderei impedir-me de o fazer por muito tempo; no
fim de contas é a mesma coisa, e isso agradar-lhe-á muito mais.
Madame de Merteuil disse-me também que ia emprestar-me
livros que falam de tudo isso, e que me ensinariam a conduzir-me, e
também a escrever melhor do que o faço; pois, como vês, ela diz-me
todos os meus defeitos, o que é uma prova de que é muito minha
amiga. Só me recomendou que não dissesse nada à Mamã a respeito
dos livros, porque podia parecer que ela julgava que a Mamã tinha
descuidado a minha educação e isso fazer com que ela se zangasse.
Oh ! Não lhe direi nada a tal respeito.
Acho no entanto muito extraordinário que uma senhora que
quase não é da minha família tenha mais cuidado comigo do que a
minha mãe!
Foi uma felicidade para mim tê-la conhecido!
Ela pediu também à Mamã que me deixasse ir com ela depois
de amanhã à Ópera, para o seu camarote; disse-me que estaríamos
sozinhas e que conversaríamos todo o tempo, sem receio de que
alguém nos ouvisse: prefiro isso muito mais a ouvir a ópera.
Conversaremos também a respeito do meu casamento, pois ela disse-
me que sempre era certo que eu ia casar-me; mas não pude saber
mais do que isso. Ora não é na verdade muito de admirar que a Mamã
não me tenha dito nada a tal respeito?
Adeus, minha Sofia; vou imediatamente escrever ao Cavaleiro
Danceny. Oh! Como eu estou contente!

24 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Enfim, senhor, consinto em escrever-lhe, para que esteja certo


da minha amizade, do meu amor, visto que, sem isso, se sentiria infeliz.
Diz o senhor que eu não tenho bom coração; garanto-lhe que se
engana e espero que de agora em diante não tenha dúvidas a esse
respeito. Se se sentia triste por eu não lhe escrever, julga que isso não
me fazia pena a mim também? Mas é que, por coisa nenhuma do
mundo, eu desejaria fazer qualquer coisa que me ficasse mal; e mesmo
não estaria tão certa do meu amor por si se não tivesse sentido mágoa
por não lhe escrever.
Mas a sua tristeza custava-me muito. Espero que daqui por
diante já a não sinta e que iremos ser muito felizes.
Conto ter o prazer de o ver esta noite e que virá tão cedo
quanto possível; nunca será tão cedo como eu desejo. A Mamã ceia
em casa, e creio que lhe dirá para ficar. Espero que não esteja
comprometido como anteontem. Era então muito agradável a ceia a
que ia assistir? O certo é que foi para lá muito cedo.
Mas enfim, não falemos disso: agora que já sabe que o amo,
espero que ficará junto de mim o mais tempo que possa. Pois eu não
estou contente senão quando está ao pé de mim, e desejaria que o
mesmo acontecesse com o senhor.
Aborrece-me muito que esteja ainda triste neste momento, mas
não é minha a culpa. Logo que chegue, pedirei para tocar harpa, a fim
de que receba a minha carta o mais cedo possível.
Não posso fazer mais do que isto.
Adeus. Amo-o muito, de todo o coração. Quanto mais lho digo,
mais me sinto satisfeita. Espero que o esteja também.

24 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Sim, sem dúvida, seremos felizes. A minha felicidade é certa,


porque sou amado por si; a sua não terá fim, se tiver de durar tanto
como o amor que me inspirou. Pois quê! Ama-me, e já não receia falar-
me do seu amor!
Quanto mais mo diz, mais se sente satisfeita! Depois de ler
aquele encantador amo-o, escrito pela sua mão, ouvi a sua linda boca
confessar-mo de novo. Vi fixarem-se em mim esses olhos encantadores
que a expressão de ternura embelezava ainda mais. Recebi a jura de
viver sempre para mim somente. Ah! Receba a minha de consagrar a
vida inteira à sua felicidade; receba-a, e pode estar certa de que não a
trairei nunca.
Que dia feliz passamos ontem! Ah! Por que é que Madame de
Merteuil não tem segredos para dizer todos os dias à sua Mamã? Por
que é necessário que a idéia do constrangimento que nos espera
venha misturar-se à lembrança deliciosa que me prende? Por que não
posso eu ter sempre segura essa linda mão que me escreveu amo-o?
Cobri-la de beijos, vingar-me assim da recusa de me conceder um favor
maior?
Diga-me, minha Cecília: quando a sua Mamã voltou para junto
de nós; quando fomos obrigados, pela sua presença, a não dirigirmos
um ao outro mais do que olhares indiferentes; quando não podia já
consolar-me, pela certeza do seu amor, da recusa de me dar provas
dele, não sentiu nenhum pesar? Não disse consigo mesma: "Um beijo tê-
lo-ia tornado mais feliz, e fui eu quem lhe roubou essa felicidade?"
Prometa-me, minha adorável amiga, que na primeira ocasião será
menos severa. Como auxílio dessa promessa, encontrarei coragem para
suportar as contrariedades que as circunstâncias nos preparam; e as
privações cruéis serão ao menos suavizadas pela certeza de que a
Cecília partilha comigo esse segredo.
Adeus, minha encantadora Cecília. Chegou a hora em que
devo dirigir-me a sua casa. Ser-me-ia impossível deixá-la, se não fosse
para a tornar a ver. Adeus, ó ente que tanto amo e a quem amarei
cada vez mais!

25 de Agosto de 17**.

CARTA XXXII

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

Desejais pois, senhora, que eu acredite na virtude do senhor de


Valmont? Confesso que não posso resolver-me a isso, e que farei tanto
esforço em supô-lo honesto, em face da única circunstância de que me
destes parte, como em julgar vicioso um homem de bem reconhecido
como tal, de quem tivesse chegado ao meu conhecimento uma falta.
A humanidade não é perfeita em nenhum gênero, nem no mal nem no
bem.
O celerado tem as suas virtudes, como o homem honesto tem as
suas fraquezas.
Esta verdade parece-me tanto mais necessária a ter presente
quanto é dela que depende a necessidade de indulgência para os
maus como para os bons; e é ela que preserva estes do orgulho, e salva
os outros do desânimo. Deveis sem dúvida achar que eu uso muito mal
neste momento daquela indulgência que preconizo; mas não vejo nela
senão uma fraqueza perigosa, se nos obrigar a tratar de igual modo o
vicioso e o homem de bem.
Não me permitirei perscrutar os motivos da ação do senhor de
Valmont; desejo acreditar que tais motivos são tão louváveis como a
própria ação. Mas, por isso, deixou ele de passar a sua vida a levar a
perturbação, a desonra e o escândalo ao seio das famílias? Escutai, se
o entendeis, a voz do infeliz que ele socorreu; mas que ela não vos prive
de ouvirdes os gritos das cem vítimas que ele imolou. Ainda que ele não
fosse, como dizeis, senão um exemplo do perigo de certas ligações,
deixaria por isso de ser ele próprio uma ligação perigosa? Podeis julgá-lo
suscetível de um resgate feliz?
Vamos mais longe: suponhamos que esse milagre se cumpriu.
Não ficaria ainda contra ele a opinião pública e não basta ela para
regular a vossa conduta? Só Deus pode absolver no instante do
arrependimento; Ele lê nos corações. Mas os homens não podem julgar
os pensamentos senão através dos atos; e nenhum de entre eles, depois
de ter perdido a estima dos outros homens, tem o direito de se queixar
da desconfiança necessária, que torna essa perda tão difícil de reparar.
Pensai sobretudo, minha jovem amiga, que, para perder essa
estima, basta algumas vezes parecer atribuir-lhe pouco valor; e não
chameis injustiça a essa severidade; pois, além de haver fundamento
para crer que não se renuncia a esse bem precioso quando se tem o
direito de o pretender, quem assim procede está na verdade mais
próximo de praticar o mal quando não é impedido por esse poderoso
freio. Esse seria, entretanto, o aspecto sob o qual vos deveria aparecer
uma ligação íntima com o senhor de Valmont, por muito inocente que
ela pudesse ser.
Amedrontada pelo calor com que o defendeis, apresso-me a
prevenir as objeções que antevejo. Citar-me-eis Madame de Merteuil, a
quem foi perdoada essa ligação; ides perguntar-me por que motivo o
recebo eu em minha casa; dir-me-eis que, longe de ser repelido pelas
pessoas honestas, ele é admitido, procurado mesmo pelo que se
chama a boa sociedade. Posso, segundo creio, responder a tudo.
Em primeiro lugar Madame de Merteuil, de fato uma pessoa
muito estimável, não tem talvez outro defeito além de depositar
demasiada confiança nas suas forças: é um guia muito hábil que se
compraz em conduzir um carro entre rochedos e precipícios e que só o
êxito justifica. É justo que a louvemos, mas seria imprudente segui-la. Ela
própria está de acordo e disso se acusa. À medida que os seus olhos se
foram abrindo, os seus princípios tornaram-se mais severos; e não tenho
receio de afirmar-vos que ela deve pensar como eu.
Quanto ao que me diz respeito, não me justificarei mais do que
aos outros. Sem dúvida, recebo o senhor de Valmont, que é recebido
em toda a parte; é uma inconseqüência mais a acrescentar a muitas
outras que governam a sociedade. Sabeis tão bem como eu que
passamos a vida a notá-las, a lamentá-las e a entregarmo-nos a elas. O
senhor de Valmont, com um bom nome, uma grande fortuna, muitas
qualidades amáveis, reconheceu muito cedo que, para dominar na
sociedade, basta saber manejar, com igual destreza, o louvor e o
ridículo. Ninguém como ele possui esse duplo talento: seduz com um e
faz-se temer com o outro. Ninguém o estima; mas todos o lisonjeiam. Tal
é a sua existência no meio de um mundo que, mais prudente que
corajoso, prefere poupá-lo a combatê-lo.
Mas nem a própria Madame de Merteuil, nem nenhuma outra
mulher, ousaria sem dúvida ir encerrar-se no campo, quase a sós com
semelhante homem. Estava reservado a mais ajuizada, à mais modesta
de todas as mulheres, dar o exemplo dessa inconseqüência; perdoai-
me esta palavra, que escapou à minha amizade. Minha boa amiga, é a
vossa própria honestidade que está a trair-vos, em virtude da segurança
que vos inspira.
Pensai entretanto que tereis por juízes, por um lado, pessoas
frívolas que não acreditarão numa virtude de que não encontram o
modelo à sua volta; e, por outro, pessoas malévolas, que fingirão não
acreditar em tal virtude, para vos castigarem de a possuirdes.
Considerai que estais fazendo, neste momento, o que alguns
homens não ousariam arriscar. De fato, entre as pessoas jovens, de
quem o senhor de Valmont se tornou em excesso o oráculo, vejo que as
mais prudentes receiam parecer ligadas demasiado intimamente com
ele; e vós não tendes qualquer receio!
Ah! Pensai, pensai muito nisto, sou eu que vos peço... Se as
minhas razões não forem suficientes para vos persuadir, cedei então à
minha amizade; é ela que me faz renovar as minhas instâncias, é a ela
que cabe justificá-las. Por certo a achareis severa eu desejo que ela
seja inútil; mas prefiro que tenhais antes de vos queixardes da vossa
solicitude do que da vossa negligência.

24 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Uma vez que receia ser bem sucedido, meu caro Visconde uma
vez que o seu projeto consiste em fornecer armas contra si próprio, e
que deseja menos triunfar do que combater, nada mais tenho a dizer-
lhe. A sua conduta é uma obra-prima de prudência. Seria uma obra-
prima de tolice na suposição contrária; e para lhe falar com franqueza,
receio que o Visconde se esteja a iludir.
O que eu lhe censuro não é o ter deixado de aproveitar o
momento.
Por um lado, não vejo muito claramente que ele se tivesse
apresentado; por outro, sei suficientemente, digam o que disserem, que
uma ocasião perdida se torna a encontrar, ao passo que não se
resgata nunca um passo precipitado.
Mas é de verdadeiro colegial o ter sido levado a escrever.
Desafio-o neste momento a prever onde isso o pode conduzir.
Porventura espera provar a essa mulher que deve entregar-se?
Afigura-se-me que nisso pode haver uma verdade de
sentimento, não de demonstração; e que, para a fazer reconhecer, é
preciso agir pelo enternecimento e não pelo raciocínio; mas de que lhe
servirá enternecer por meio de cartas, visto que o Visconde não estaria
lá para se aproveitar do momento? Mesmo que as suas belas frases
produzam a embriaguez do amor, pode o Visconde ter a pretensão de
que essa embriaguez seja bastante durável para que a reflexão não
venha a impedir-lhe a confissão?
Depois, pense em tudo o que é necessário para escrever uma
carta, em tudo o que se passa antes de a remeter; e veja-se, sobretudo
uma mulher de princípios, como a sua devota, pode querer por tanto
tempo o que ela procura não querer nunca. Esse procedimento pode
dar resultado com crianças, que, quando escrevem "eu amo", não
sabem que dizem "eu entrego-me". Mas a virtude raciocinadora de
Madame de Tourvel conhece muito bem, segundo creio, o valor das
palavras. Por isso, apesar da vantagem que o Visconde tomara sobre
ela na conversação que tiveram, ela venceu-o na carta que lhe
escreveu. E depois, sabe o que acontece? Só pelo motivo de se discutir,
não se deseja ceder força de procurar boas razões, acaba-se por
encontrá-las; dizem-se essas razões, e depois sente-se apego a elas, não
tanto porque são boas, como para não se desmentir.
Além do mais, uma observação que me admiro que o Visconde
não tenha feito, é que não há nada tão difícil em amor como escrever
o que se não sente. Quero dizer, escrever de maneira verossímil: não é
que as palavras usadas não sejam as mesmas; mas não são arranjadas
do mesmo modo, ou antes, são arranjadas, e isso basta. Releia a sua
carta: reina nela uma ordem que a cada frase o denuncia. Quero
acreditar que a sua Presidente não tem instrução bastante para disso se
aperceber: mas que importa? Nem por isso o efeito deixa de frustrar-se.
É este o defeito dos romances; o autor esforça-se em vão para elevar a
temperatura, e o leitor fica frio. Heloísa é o único que pode fazer
exceção; e apesar do talento do autor, esta observação levou-me
sempre a crer que o fundo era verdadeiro. Não é o mesmo quando se
fala. O hábito de trabalhar o seu órgão dá-lhe sensibilidade; a
facilidade das lágrimas aumenta o efeito: a expressão do desejo
confunde-se nos olhos com a ternura; enfim, o discurso menos seguido
conduz mais facilmente àquele ar de perturbação e de desordem que
é a verdadeira eloqüência do amor; e principalmente a presença do
objeto amado impede a reflexão e faz-nos desejar sermos vencidos.
Creia-me, Visconde: ser-lhe-á favorável não escrever mais:
aproveite essa pausa para reparar a sua falta e espere a ocasião de
falar. Sabe que essa mulher tem mais força do que supunha?
A sua defesa é boa; sem a extensão da sua carta e o pretexto
que ela lhe dá para voltar ao assunto na sua frase de reconhecimento,
de nenhum modo se teria traído.
O que me parece ainda que deve convencê-lo do triunfo, é que
ela emprega demasiadas forças ao mesmo tempo; prevejo que ela
acabará por as esgotar pela defesa da palavra e que nenhuma lhe
ficará para a do ato.
Devolvo-lhe as duas cartas, e, se for prudente, serão essas as
últimas até ao feliz momento. Se não fosse tão tarde falar-lhe-ia da
pequena Volanges, que avança bastante depressa, o que muito me
satisfaz. Creio que terminarei a minha tarefa antes do Visconde, e deve
sentir-se feliz por isso. Adeus por hoje.

24 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL


Fala maravilhosamente, minha boa amiga; mas para que se
fatiga tanto a provar aquilo que ninguém ignora? Para avançar
depressa no amor, vale mais falar do que escrever; a isto, creia, se
resume, a sua carta. Pois sim!
Mas são os elementos mais simples da arte de seduzir. Observarei
somente que a Marquesa abre apenas uma exceção a este princípio; e
que na verdade há duas. as crianças que seguem esse caminho por
timidez e se entregam por ignorância, devemos acrescentar as
mulheres espirituosas, que se deixam comprometer por amor-próprio, e
que se deixam cair na ratoeira por vaidade. Por exemplo; estou bem
certo de que a Condessa de B..., que respondeu sem dificuldade à
minha primeira carta, não tinha então mais amor por mim do que eu
por ela, e que viu apenas a ocasião de tratar um assunto que lhe faria
honra.
De qualquer modo, um advogado diria à minha boa amiga que
o princípio não se aplica à questão. De fato, a Marquesa supõe que eu
posso escolher entre escrever e falar, o que não é o caso. Desde a
história do dia 19, a minha desumana, que se mantém na defensiva,
tem evitado os encontros com uma habilidade que desarmou a minha.
A coisa chegou a tal ponto que, se isto continua, ela acabará por me
obrigar a ocupar-me seriamente dos meios de recuperar a vantagem
perdida; pois seguramente não quero ser vencido por ela em qualquer
campo. Mesmo as minhas cartas estão sendo motivo de uma pequena
guerra: não contente de lhes não responder, recusa recebê-las. Para
cada uma é necessário pôr em prática uma nova astúcia, que nem
sempre resulta.
Deve recordar-se do meio simples de que usei para lhe entregar
a primeira; a segunda não ofereceu maior dificuldade. Ela pedira-me
que lhe devolvesse a sua carta: dei-lhe a minha no lugar daquela, sem
que ela tivesse a menor suspeita. Mas, fosse pelo despeito de ter sido
apanhada, fosse por capricho, ou, enfim, por virtude, pois ela forçar-
me-á a crer nessa virtude, recusou-se teimosamente a receber a
terceira. Espero todavia que o embaraço em que acabará por a lançar
a obstinação nessa recusa lhe servirá de corretivo para o futuro.
Não me admirei muito por ela não querer receber a carta que
eu lhe oferecia com toda a simplicidade; seria já conceder qualquer
coisa, e eu estou na expectativa de uma defesa mais prolongada. Após
esta tentativa, que não passou de uma experiência passageira, pus um
sobrescrito na minha carta; e, aproveitando o momento da toalete,
quando Madame de Rosemonde e a criada de quarto estavam
presentes, enviei-lha pelo meu criado, com ordem de lhe dizer que era
o papel que ela me tinha pedido. Eu adivinhara que ela teria receio da
explicação escandalosa a que uma recusa obrigaria: com efeito
aceitou a carta; e o meu embaixador, que tinha ordem de observar o
seu rosto, e que tem boa vista, enxergou apenas uma leve vermelhidão
e mais embaraço do que cólera.
Felicitei-me pois por ela ter guardado a carta, a menos que
quisesse entregar-ma, o que só poderia fazer estando só comigo,
dando-me ocasião de lhe falar. Cerca de uma hora depois, um dos
seus criados entra-me no quarto e entrega-me, da parte da sua
senhora, um embrulho de forma diferente do meu, e em cujo sobrescrito
reconheci a letra tão desejada.
Abro-o precipitadamente...
Era a minha própria carta, por abrir, e apenas dobrada ao meio.
Suspeito que só o receio de que eu fosse menos escrupuloso do
que ela sobre o escândalo a levou a empregar esta astúcia diabólica.
A Marquesa conhece-me; não tenho necessidade de lhe
descrever a minha cólera. Foi-me preciso no entanto recuperar o
sangue-frio e procurar novos meios. Eis o único que encontrei.
Todos os dias alguém vai daqui buscar as cartas ao correio, que
fica a cerca de três quartos de légua; para este fim, servem-se de uma
caixa coberta pouco mais ou menos como um tronco, de que o chefe
do correio tem uma chave e Madame de Rosemonde outra.
Durante o dias as cartas são aí depositadas, a qualquer hora; à
noite levam-nas para o correio, e de manhã vão buscar as que
chegaram. Todos, mesmo os estranhos ao castelo, fazem esse serviço
igualmente. Não era a vez do meu criado; mas ele encarregou-se de lá
ir, com o pretexto de que tinha afazeres para aquele lado.
Entretanto escrevi a minha carta. Disfarcei a letra para o
endereço, e imitei muito bem, no sobrescrito, o carimbo de Dijon. Escolhi
esta cidade porque achei mais engraçado; visto que eu me
candidatava aos mesmos direitos que o marido, escrever do lugar onde
ele se encontra, e também porque a minha bela falava durante todo o
dia do desejo que tinha de receber cartas de Dijon. Pareceu-me justo
conceder-lhe esse prazer.
Tomadas estas precauções, era fácil fazer que esta carta se
juntasse às outras. Com este expediente tive ainda a vantagem de ser
testemunha da recepção, pois há aqui o uso de nos juntarmos para
almoçar e esperar a chegada das cartas antes de nos separarmos.
Chegaram enfim as cartas.
Madame de Rosemonde abriu a caixa. "De Dijon", disse ela,
dando a carta de Madame de Tourvel. "Não é a letra de meu marido",
replicou ela com voz inquieta, rompendo o lacre com vivacidade. O
primeiro olhar deu-lhe a saber de que se tratava; e houve tamanha
alteração no seu rosto, que Madame de Rosemonde, dando conta
disso, perguntou: "Que tem?"
Aproximei-me também, dizendo: "É assim tão terrível essa carta?"
A tímida devota não ousava levantar os olhos, não dizia palavra, e,
para disfarçar o seu embaraço, fingia percorrer a epístola, que ela não
estava em estado de ler. Eu gozava da sua perturbação, e não fiz
cerimônia em a aumentar: "O seu aspecto mais tranqüilo", acrescentei,
"faz esperar que essa carta lhe tenha causado mais surpresa do que
mágoa.” A cólera então inspirou-a melhor do que não o havia feito a
prudência. "Esta carta contém coisas que me ofendem", respondeu ela,
"e surpreendeu-me que alguém ousasse escrevê-las." "Quem foi então?",
interrompeu Madame de Rosemonde. "Não está assinada", respondeu
a bela encolerizada, "mas a carta e o seu autor inspiram-me igual
desprezo. Obsequeiam-me não me falando mais nisto". Dizendo estas
palavras, rasgou a audaciosa missiva, meteu os pedaços no bolso,
levantou-se e saiu.
Apesar da sua cólera, não deixou de receber a minha carta; e
eu confio bastante na sua curiosidade, que a obrigará a lê-la por
inteiro.
Os pormenores do dia levar-me-iam muito longe. Junto a esta
narrativa os rascunhos das minhas duas cartas: assim a Marquesa ficará
tão instruída como eu. Se quiser estar ao corrente da minha
correspondência, é preciso acostumar-se a decifrar as minhas minutas,
pois por nada no mundo eu devoraria o aborrecimento de ter de as
copiar. Adeus, minha bela amiga.

25 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXV

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

É preciso obedecer-vos, senhora, é preciso provar-vos que, no


meio dos agravos que vos comprazeis em atribuir-me, me resta ao
menos bastante delicadeza para não me permitir uma censura e
bastante coragem para me impor os mais dolorosos sacrifícios.
Ordenais-me o silêncio e o esquecimento! Pois bem! Forçarei o meu
amor a calar-se; e esquecerei, se for possível, a maneira cruel como o
acolhestes. Sem dúvida o desejo de vos agradar não dava tal direito, e
confesso ainda que a necessidade que tenho da vossa indulgência não
era um título para a obter.
Mas achais que o meu amor é um ultraje; esqueceis que se ele
pudesse ser um agravo, seríeis ao mesmo tempo a causa e a
justificação.
Esqueceis também que, acostumado a abrir-vos a minha alma,
mesmo quando essa confiança podia ser-me desvantajosa, já me não
era possível esconder-vos os sentimentos de que estou penetrado; e o
que foi a obra da minha boa fé, é por vós avaliado como o fruto da
audácia. Como preço por amor mais terno, mais respeitoso, mais
verdadeiro, expulsais-me para longe de vós. E, por fim, falais-me do
vosso ódio...
Que outro se não queixaria de ser tratado assim? Eu, contudo,
submeto-me: sofro tudo e não me lamento de nada; feris-me e eu
adoro-vos. O inconcebível domínio que tendes sobre mim torna-vos
senhora absoluta dos meus sentimentos; e se só o meu amor vos resiste,
se não o podeis destruir, é porque ele é a vossa obra e não a minha.
Não peço um regresso a um tratamento de que nunca pude
gozar.
Não espero mesmo aquela piedade que o interesse que
algumas vezes me testemunhastes podia fazer-me esperar. Mas creio,
confesso-o, poder reclamar a vossa justiça. Fizestes-me compreender,
senhora, que alguém procurou diminuir-me no vosso espírito. Se tivésseis
seguido o conselho dos vossos amigos, não teríeis deixado sequer que
me aproximasse: são os vossos próprios termos. Quais são pois esses
amigos oficiosos? Sem dúvida pessoas tão severas, e duma virtude tão
rígida, consentem em ser nomeadas; sem dúvida não quererão cobrir-
se de uma obscuridade que as confundiria com vis caluniadores; e não
ignorarei nem os seus nomes, nem as suas censuras. Pensai, senhora,
que tenho o direito de conhecer uns e outros, pois que me julgareis
segundo eles. Não se condena um criminoso sem se lhe dizer qual o seu
crime, sem lhe nomear os seus acusadores. Não peço outra graça, e
comprometo-me de antemão a justificar-me, a forçá-los a desdizerem-
se.
Se desprezei demasiado, talvez, os vãos clamores de um público
que tive em pequena conta, não acontece assim com a vossa estima:
e quando consagro a minha vida a merecê-la, não deixarei
impunemente que ma roubem. Ela tornar-se-me-á tanto mais preciosa,
quanto lhe deverei sem dúvida esta pergunta que temeis fazer-me, e
que me daria, como dizeis, direitos ao vosso reconhecimento. Ah! Longe
de o exigir, julgarei ficar-vos em dívida, se me concederdes a ocasião
de vos ser agradável. Começai pois por me fazer mais justiça, não me
deixando ignorar o que desejais de mim. Se eu pudesse adivinhá-lo,
evitar-vos-ia a pena de o dizer. Ao prazer de vos ver, acrescentai
felicidade de vos servir, e louvar-me-ei da vossa indulgência.
Que pode deter-vos? Não é, espero-o, o receio de uma recusa.
Sinto que não poderia perdoar-vos tal receio. Desejo, mais do que vós,
senhora, que ela deixe de me ser necessária: mas acostumado a julgar-
vos uma alma tão doce, é nessa carta que eu posso encontrar-vos tal
como quereis parecer. Quando formulo o voto de vos tornar sensível,
vejo nessa carta que, em vez de consentirdes em tal, mais depressa
fugiríeis para cem léguas de distância de mim; quando tudo aumenta e
justifica o meu amor, é ainda ela que me repete que o meu amor é
recebido como um ultraje; e quando, ao ver-vos, esse amor me parece
o bem supremo, tenho necessidade de ler essa carta, para sentir que
ele é apenas um horrível tormento. Concebei agora que a minha maior
felicidade estaria em poder entregar-vos essa carta fatal; pedir-ma
ainda seria autorizar-me a não acreditar no que ela contém; não
duvidareis, espero, da minha prontidão em devolvê-la.

21 de Agosto de 17 * *.
CARTA XXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

(carimbo de Dijon)

A vossa severidade aumenta dia a dia, senhora; e se me é


permitido dizê-lo, parece-me que receais menos ser injusta do que ser
indulgente.
Depois de me haverdes condenado sem me ouvir, deveis ter
sentido, de fato, que vos seria mais fácil não ler as minhas razões que
responder-lhes.
Recusais as minhas cartas com obstinação; devolveis-mas com
desprezo. Obrigais-me por fim a recorrer à astúcia, no próprio momento
em que o meu único fim é convencer-vos da minha boa fé. A
necessidade em que me pusestes de me defender bastará sem dúvida
para desculpar os meios que uso para tal fim. Convencido, aliás, pela
sinceridade dos meus sentimentos, que para os justificar a vossos olhos
me basta dá-los bem a conhecer, julguei poder permitir-me este ligeiro
desvio. Ouso crer também que mo perdoareis; e que pouco vos deverá
surpreender que o amor seja mais engenhoso a produzir-se do que a
indiferença a afastá-lo.
Permiti, pois, senhora, que o meu coração se vos descubra
inteiramente. Pertence-vos, é justo que o conheçais.
Ao chegar a casa de Madame de Rosemonde, eu estava muito
longe de prever a sorte que aí me esperava. Ignorava que estivésseis
aqui; e acrescentarei, com a sinceridade que me caracteriza, que,
ainda que o soubesse, a minha tranqüilidade não se perturbaria. Não
que a vossa beleza não me merecesse a justiça que é impossível
recusar-lhe; mas, acostumado a sentir apenas desejos, e a entregar-me
apenas àqueles que eram animados pela esperança, eu não conhecia
os tormentos do amor.
Fostes testemunha das instâncias de Madame de Rosemonde
para que eu me demorasse algum tempo. Tinha já passado um dia a
vosso lado; entretanto não me rendi, ou pelo menos julguei render-me
apenas ao prazer, tão natural e tão legítimo, de dedicar algumas
atenções a uma parenta respeitável. O gênero de vida que se levava
aqui era sem dúvida muito diferente daquele a que estava
acostumado. Nada me custou conformar-me a ele; e, sem procurar
penetrar a causa da mudança que se operava em mim, atribuí-a ainda
unicamente àquela felicidade de caráter de que julgo ter-vos falado.
Infelizmente (e por que é necessário que isto seja uma
infelicidade?), conhecendo-vos melhor, depressa reconheci que essa
figura encantadora, que simplesmente me havia impressionado, era o
menor dos vossos dotes; a vossa alma celestial surpreendeu, seduziu a
minha. Admirava a beleza; fiquei adorando a virtude.
Sem pretender obter-vos, preocupava-me em vos merecer.
Reclamando a vossa indulgência para o passado, ambicionava
a vossa aprovação para o futuro. Procurava-a nas vossas palavras,
espiava-a nos vossos olhares; nesses olhares donde partia um veneno
tanto mais perigoso quanto era derramado sem intenção e recebido
sem desconfiança.
Então conheci o amor. Mas como eu estava longe de me
lamentar! Decidido a sepultá-lo num eterno silêncio, entregava-me sem
receio e sem reserva a esse sentimento delicioso.
Cada dia aumentava o seu império. Depressa o prazer de vos
ver se transformou em necessidade. Se vos ausentáveis por um
momento, o meu coração sentia-se apertado de tristeza; e palpitava
de alegria, ao ruído que me anunciava o vosso regresso. Eu já não
existia senão por vós, e para vós.
Entretanto, é a vós mesmo que suplico uma resposta: porventura
na alegria dos jogos despreocupados, ou no interesse duma
conversação séria, me escapou uma palavra que pudesse trair o
segredo do meu coração?
Chegou enfim um dia em que devia começar o meu infortúnio;
e por uma inconcebível fatalidade, uma ação honesta devia marcar
esse começo. Sim, foi no meio dos infelizes que eu tinha socorrido, que
vós, senhora, entregando-vos a essa sensibilidade preciosa que
embeleza a própria beleza e aumenta o preço da virtude, acabastes
de desvairar um coração inebriado já por excesso de amor. Lembrais-
vos, talvez, da preocupação que se apoderou de mim no regresso! Ai
de mim! Procurava combater uma inclinação que eu sentia tornar-se
mais forte do que eu.
Foi depois de ter esgotado as minhas forças nesse combate
desigual, que um acaso, que eu não pudera prever, me fez encontrar a
sós convosco.
Sucumbi nesse momento, confesso-o. O meu coração
demasiado cheio não pôde reter as suas palavras e as suas lágrimas.
Mas é isso um crime? E se o é, não sofreu já castigo bastante pelos
tormentos horrorosos a que estou entregue?
Devorado por um amor sem esperança, imploro a vossa
piedade e encontro apenas o vosso ódio. Sem outra felicidade além de
ver-vos, os meus olhos procuram-vos para além da minha vontade, e
tremo de encontrar os vossos olhares. No estado cruel a que me
reduzistes, passo os dias a disfarçar as minhas penas e as noites a
entregar-me a elas; enquanto que vós, tranqüila e calma, não
conheceis esses tormentos senão para os causardes e aplaudir-vos
deles. Entretanto, sois vós que vos lamentais, e sou eu quem pede
perdão.
Aqui está, todavia, senhora, a narração fiel do que chamais os
meus agravos, e que talvez fosse mais justo chamar os meus infortúnios.
Um amor puro e sincero, um respeito que jamais se desmentiu, uma
submissão perfeita: tais são os sentimentos que me inspirastes. Não
recearia apresentar semelhante homenagem à própria divindade. Ó
vós, que sois a sua mais bela obra, imitai-a na sua indulgência! Pensai
nas minhas penas cruéis; pensai sobretudo que, colocado por vós entre
o desespero e a felicidade suprema, a primeira palavra que
pronunciardes decidirá para sempre da minha sorte.

23 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXVII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Submeto-me, senhora, aos conselhos que a vossa amizade me


dá.
Acostumada a tudo confiar nas vossas opiniões, creio
firmemente que elas se fundam sempre na razão. Confessarei mesmo
que o senhor de Valmont deve ser, na verdade, infinitamente perigoso,
se pode ao mesmo tempo fingir ser aquilo que parece aqui, e ficar tal
como o descreveis. De qualquer modo visto que o exigis, afastá-lo-ei de
mim; pelo menos farei para isso o que estiver ao meu alcance: pois,
muitas vezes, as coisas que no fundo deveriam ser as mais simples
tornam-se embaraçosas na prática.
Continua a parecer-me impraticável fazer esse pedido a sua tia;
seria igualmente descortês, para ela e para ele. Também não tomarei
sem alguma repugnância o partido de me afastar eu própria: pois além
das razões que vos comuniquei, relativas ao senhor de Tourvel, se a
minha partida viesse a contrariar o senhor de Valmont, como é possível,
não teria ele facilidade de me seguir a Paris? E o seu regresso, do qual
eu seria, ou de que ao menos pareceria ser o objeto, não se afiguraria
mais estranho do que um encontro no campo, em casa de uma pessoa
que se sabe ser sua parenta e minha amiga?
Não me resta pois outro recurso senão obter dele próprio que se
afaste. Sinto que esta proposta é difícil de fazer; entretanto, como me
parece que ele toma a peito provar-me que é na verdade mais
honesto do que o supõem, não desespero de o vir a conseguir. Não
sentirei mesmo qualquer embaraço em tentá-lo; e isso me dará ocasião
de ajuizar se, como ele diz muitas vezes, as mulheres honestas nunca
tiveram e não terão nunca motivo de queixa do seu procedimento. Se
ele se afastar como eu desejo, será de fato por respeito à minha
pessoa: pois não posso duvidar de que ele tivesse o projeto de passar
aqui uma grande parte do Outono. Se ele recusar aceder ao meu
pedido e se se obstinar em ficar, estarei a tempo de me afastar eu
própria, e prometo-vos que o farei.
Segundo creio, senhora, é tudo o que a vossa amizade exigia de
mim: apresso-me a dar-lhe satisfação, e a provar-vos que, apesar do
calor que porventura pus na defesa do senhor de Valmont, nem por isso
estou menos disposta, não somente a escutar, mas até a seguir os
conselhos dos meus amigos.
Tenho a honra de ser, etc.

25 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXVIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

O seu enorme pacote chega-me neste instante às mãos, meu


caro Visconde. Se a data está exata, deveria tê-lo recebido vinte e
quatro horas mais cedo; de qualquer modo, se tivesse tempo de o ler,
não teria já o de lhe responder. Prefiro pois acusar-lhe somente a
recepção, e conversaremos sobre outro assunto. Não é que eu tenha
alguma coisa a dizer-lhe a meu respeito; o Outono não deixa em Paris
quase nenhum homem que tenha figura humana. Por isso, há um mês
que me mantenho numa moderação desesperadora; e qualquer outro
que não fosse o meu Cavaleiro estaria fatigado das provas da minha
constância. Não tendo qualquer ocupação, distraio-me com a
pequena Volanges; e é dela que lhe quero falar.
Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo
encarregar-se dessa criança? É verdadeiramente deliciosa!
Não tem nem caráter nem princípios; imagine como a sua
convivência será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo
sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem
espírito e sem finura, ela tem todavia certa falsidade natural, se se pode
dizer assim, que algumas vezes a mim própria me espanta e de que ela
virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto oferece a imagem da
candura e da ingenuidade. Ela é naturalmente muito meiga, e isso
diverte-me algumas vezes. Aquela cabecita perturba-se com uma
facilidade incrível; e é nesses momentos tanto mais graciosa quanto é
certo que nada sabe, absolutamente nada, daquilo que tanto deseja
saber. Tem às vezes impaciências muito engraçadas; ri, atordoa-se,
chora, e depois pede-me que a ensine, com uma boa fé realmente
sedutora.
Na verdade, quase me sinto ciumenta daquele a quem esse
prazer está reservado.
Não sei se lhe mandei dizer que há quatro ou cinco dias tenho a
honra de ser a sua confidente. Imagina decerto que ao princípio afetei
severidade; mas logo percebi que ela julgava ter-me convencido com
as suas más razões, comecei a fingir que as aceitava por boas; e ela
está intimamente persuadida de que deve o êxito à sua eloqüência:
esta precaução era necessária para não me comprometer. Permiti-lhe
que escrevesse e que dissesse eu amo ; e nesse mesmo dia, sem que ela
o suspeitasse, proporcionei-lhe um encontro a sós com o seu Danceny.
Mas imagine que ele é tão tolo que ainda não conseguiu nem ao
menos um beijo. No entanto esse rapaz faz versos bem bonitos!
Meu Deus! Como são estúpidas as pessoas de talento! Esse é-o a
tal ponto que me embaraça; pois, enfim, a ele não posso eu conduzi-lo!
É neste momento que o Visconde me seria muito útil. Está ligado
com Danceny o bastante para obter as suas confidências, e se ele lhas
fizesse uma vez que fosse, iríamos a galope. Apresse-se por conseguinte
com a sua Presidente, pois, enfim, não quero que Gercourt se salve:
aliás, falei ontem dele à rapariguinha, e descrevi-o tão bem, que, ainda
que ela fosse sua mulher há dez anos, não o odiaria mais do que o ficou
odiando. No entanto, preguei-lhe muito acerca da fidelidade conjugal;
nada iguala a minha severidade sobre este ponto. Por esse meio,
restabeleço junto dela, por um lado, a minha reputação de virtude, que
demasiada condescendência poderia destruir; por outro, aumento nela
o ódio com que pretendo gratificar o marido. E, enfim, espero que,
fazendo-lhe crer que não lhe é permitido entregar-se ao amor senão
durante o pouco tempo que lhe resta de solteira, ela se decidirá mais
depressa a não perder nada.
Adeus, Visconde; vou para o meu quarto de vestir onde lerei o
seu volume.

27 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXIX

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Estou triste e inquieta, minha querida Sofia. Chorei quase toda a


noite. Não é que neste momento eu não seja muito feliz; mas prevejo
que isso não durará.
Estive ontem na Ópera com Madame de Merteuil; falamos lá do
meu casamento, e o que soube a esse respeito não foi bom.
É com o senhor Conde de Gercourt que eu devo casar, e deve
ser no mês de Outubro. É rico, é homem de qualidade, é coronel do
regimento de... Até aí tudo vai muito bem. Mas, primeiro, é velho:
imagina que tem pelo menos trinta e seis anos! E depois, Madame de
Merteuil diz que é triste e severo, e receia que eu não seja feliz com ele.
Vi mesmo que ela está certa disso e que não queria dizer-mo para não
me afligir. Durante toda a noite quase não falou de outra coisa senão
dos deveres das mulheres para com seus maridos: concorda que o
senhor de Gercourt não é nada amável e no entanto diz que é preciso
que eu o ame. Pois não me disse também que, uma vez casada, eu
devia deixar de amar o Cavaleiro Danceny? Como se isso fosse possível!
Oh, podes ter a certeza de que o amarei sempre. Bem vês, gostava
mais de não me casar. Esse senhor de Gercourt que se arranje, eu não o
fui procurar. Ele está agora na Córsega, muito longe daqui; desejaria
que lá ficasse dez anos. Se eu não tivesse medo de voltar para o
convento, diria à Mamã que não quero aquele marido; mas seria pior
ainda. Estou muito aborrecida. Sinto que nunca amei tanto o senhor
Danceny como agora; e quando penso que não me resta mais do que
um mês para ser como sou, vêem-me as lágrimas aos olhos
imediatamente. Não encontro consolação a não ser na amizade de
Madame de Merteuil. Tem tão bom coração! Partilha as minhas tristezas
como eu própria.
E é tão amável que, quando estou com ela, quase nem penso
em tais tristezas. Além disso é-me muito útil: pois o pouco que sei, foi ela
quem mo ensinou. E é tão boa, que eu digo-lhe tudo quanto penso,
sem me sentir nada envergonhada. Quando acha que não está bem,
ralha-me algumas vezes; mas é muito brandamente, e depois eu
abraço-a de todo o coração, até ver que ela não está zangada. Ao
menos essa, posso-a amar quanto me apetece, sem que nisso haja mal
algum, o que me dá muito prazer.
Entretanto combinamos que eu não daria a perceber diante das
outras pessoas que gosto dela como gosto, principalmente diante da
Mamã, para que não desconfie nada a respeito do Cavaleiro Danceny.
Posso garantir-te que se eu pudesse viver sempre como vivo agora,
creio que seria muito feliz. A minha única pena é aquele feio senhor de
Gercourt!... Mas não quero falar-te mais dele, pois acabaria por ficar
triste. Em vez disso, vou escrever ao Cavaleiro Danceny; só lhe falarei do
meu amor e não das minhas tristezas, pois não quero que se aflija.
Adeus, minha boa amiga. Bem vês que não tens razão de te
queixar, e que o meu prazer é estar ocupada, como tu dizes, pois nem
por isso me falta o tempo para ser tua amiga e te escrever.

27 de Agosto de 17 * *.

CARTA XL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pouco para a minha desumana não responder às minhas


cartas e recusar-se a recebê-las; quer-me privar de a ver e exige que eu
me afaste. O que surpreenderá mais ainda a minha boa amiga, é que
eu me submeta a tamanho rigor. Bem sei que vai censurar-me.
Entretanto, julguei não dever perder a ocasião de deixar que me
dessem uma ordem: persuadido, por um lado, de que quem manda se
compromete; e, por outro, de que a autoridade ilusória que nós
simulamos deixar tomarem as mulheres é uma das ciladas que elas
evitam mais dificilmente. Além disto, a habilidade que esta soube pôr
em evitar encontrar-se comigo a sós colocava-me numa situação
perigosa, da qual julguei dever sair custasse o que custasse; pois
estando continuamente junto dela, sem poder ocupá-la do meu amor,
havia lugar para o receio de que ela viesse a acostumar-se de me ver,
por fim, sem se perturbar; e é esta uma disposição da qual a Marquesa
sabe bem como é difícil sair.
Adivinha, aliás, que eu não me submeti sem condições. Tive
mesmo o cuidado de pôr uma impossível de conceder; tanto para ficar
sempre senhor de manter a minha palavra, ou de faltar a ela, como
para poder iniciar uma discussão, ou verbal ou por escrito, num
momento em que a minha bela está satisfeita comigo, ou tem
necessidade de que eu o esteja dela; sem contar que eu seria bem
desastrado se não encontrasse meio de me compensar da minha
desistência a esta pretensão, por insustentável que ela seja.
Depois de lhe ter exposto as minhas razões neste longo
preâmbulo, começo a história destes dois últimos dias. Juntarei como
peças justificativas a carta da minha bela e a minha resposta.
A Marquesa há de convir que poucos historiadores haverá tão
exatos como eu.
Recorda-se do efeito que fez anteontem de manhã a minha
carta de Dijon; o resto do dia foi muito tempestuoso. A linda hipócrita
chegou só à hora de jantar e anunciou uma forte enxaqueca; pretexto
com que quis encobrir um dos violentos acessos de mau humor que
uma mulher pode ter.
O seu rosto estava verdadeiramente alterado; a expressão de
doçura que lhe conheço transformara-se num ar de rebeldia que lhe
dava uma nova beleza. Prometo a mim próprio fazer uso mais tarde
desta descoberta: substituir algumas vezes a amante terna pela amante
rebelde.
Previ que o resto da tarde seria triste; e para me poupar o
aborrecimento, pretextei cartas a escrever e retirei-me para o meu
quarto.
Voltei ao salão pelas seis horas; Madame de Rosemonde propôs
que passeássemos, o que foi aceite. Mas no momento de subir para a
carruagem, a pretendida doente, por malícia infernal, pretextou por sua
vez, e talvez para se vingar da minha ausência, um redobramento de
dores, e obrigou-me a suportar sem piedade a companhia da minha
velha parenta.
Não sei se as imprecações que dirigi contra esse demônio
feminino foram exaltadas, mas encontrámo-la deitada no regresso.
No dia seguinte ao almoço, não era a mesma mulher. Voltara a
doçura natural, e tive razão para me julgar perdoado. Acabáramos
apenas de almoçar, quando a doce criatura se levantou com ar
dolente e se dirigiu ao parque; segui-a, como pode crer.
"Donde pode nascer esse desejo de passear?", perguntei-lhe ao
abordá-la. "Escrevi muito esta manhã", respondeu-me ela, "e tenho a
cabeça um pouco cansada". "Não serei eu bastante feliz", tornei, "para
ter de me censurar desse cansaço?". "Escrevi-vos", respondeu ela ainda,
"mas hesito em dar-vos a minha carta. Essa carta contém um pedido, e
não me acostumastes a esperar resposta favorável". "Ah! Juro que se
me for possível..." "Nada há mais fácil", interrompeu ela, "e embora
pudésseis talvez conceder-mo como justiça, consinto em obtê-lo como
graça". Dizendo estas palavras, apresentou-me a sua carta; ao recebê-
la, tomei-lhe também a mão, que ela retirou, mas sem cólera, e com
mais embaraço do que vivacidade. "Está mais calor do que eu
supunha", disse ela; "tenho de voltar para casa.”
E retomou o caminho do castelo. Foram vãos os meus esforços
para persuadi-la a continuar o seu passeio, e foi-me preciso recordar-
me de que podíamos ser vistos, para que nesse sentido empregasse
apenas a minha eloqüência. Ela voltou sem proferir uma palavra e vi
claramente que esse fingido passeio não tivera outro fim além do de
me entregar a carta. Ao regressar, ela subiu para o seu quarto e eu
retirei-me para o meu, a fim de ler a epístola, que a Marquesa fará bem
em ler também, assim como a minha resposta, antes de ir mais longe...

CARTA XLI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

A vossa conduta para comigo, senhor, faz crer que procuráveis


apenas aumentar, dia a dia, as razões de queixa que eu tinha contra
vós.
Essa obstinação em querer continuar a falar-me,
incessantemente, de um sentimento que eu não quero nem devo
escutar; o abuso que não temestes fazer da minha boa fé, ou da minha
timidez, para me enviardes as vossas cartas; o meio, sobretudo, ouso
dizer pouco delicado, de que vos servistes de uma surpresa que podia
comprometer-me*; tudo deveria dar lugar da minha parte a censuras
tão vivas como justamente merecidas.
*Ver Carta XXXV
Entretanto, em vez de voltar a falar desses agravos, limito-me a
fazer-vos um pedido simples como justo; e se o obtiver de vós, consinto
em que tudo seja esquecido.
Vós mesmo me dissestes, senhor, que eu não devia recear uma
recusa; e ainda que, por uma inconseqüência que vos é peculiar, essa
mesma frase fosse seguida da única recusa que podíeis fazer-me,
desejo crer que por isso não deixareis de manter essa palavra
formalmente dada há poucos dias.
Desejo pois que tenhais a bondade de vos afastardes de mim;
de deixar este castelo, onde uma permanência mais longa por vossa
parte não poderia deixar de me expor ainda mais ao julgamento de um
público sempre pronto a pensar mal dos outros, e que vós não tendes
senão acostumado demais a fixar os olhos sobre as mulheres que vos
admitem na sua sociedade.
Informada já, há muito tempo, desse perigo pelos meus amigos,
negligenciei, combati mesmo a opinião deles enquanto a vossa
conduta a meu respeito me levou a crer que não me tínheis querido
confundir com a multidão de mulheres que, todas elas, têm motivo de
queixa de vós. Hoje que me tratais como a elas, e que eu não posso
ignorá-lo, devo ao público, aos meus amigos, a mim própria, a
necessidade de seguir esta resolução.
Poderia acrescentar aqui que nada ganharíeis se recusásseis
aceder ao meu pedido, pois estou decidida a partir eu própria, se vos
obstinardes em ficar: mas não procuro diminuir o obséquio que vos
ficarei devendo por essa bondade, e é meu desejo que saibais que,
tornando necessária a minha partida, contrariaríeis as minhas
combinações. Provai-me pois, senhor, que, como me dissestes tantas
vezes, as mulheres honestas não terão nunca de queixar-se de vós;
provai-me, pelo menos, que quando lhes dais motivos de agravo, sabeis
repará-los.
Se eu julgasse ter necessidade de justificar o meu pedido a
vossos olhos, bastar-me-ia dizer-vos que tendes passado a vossa vida a
torná-lo necessário, e que, todavia, não foi nunca minha intenção vir a
formulá-lo. Mas não recordemos acontecimentos que quero esquecer,
e que me obrigariam a julgar-vos com rigor, num momento em que vos
ofereço a ocasião de merecerdes todo o meu reconhecimento.
Adeus, senhor; a vossa conduta me dirá quais os sentimentos
com que devo ser, toda a minha vida, a vossa humilde, etc.

25 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Por muito duras que sejam, senhora, as condições que me


impusestes, não recuso cumpri-las. Sinto que me seria impossível
contrariar qualquer dos vossos desejos. Uma vez de acordo sobre este
ponto, ouso supor que me permitireis, por meu lado, que vos faça
alguns pedidos, bem mais fáceis de conceder que os vossos, e que
todavia não desejo obter senão pela minha perfeita submissão à vossa
vontade.
Um, que espero será feito pela vossa justiça, é o de me
nomeardes os meus acusadores junto de vós; fizeram-me, ao que julgo,
bastante mal para que eu tenha o direito de os conhecer.
O outro, que espero da vossa indulgência, é o de permitirdes
que renove algumas vezes a homenagem de um amor que mais do
que nunca vai merecer a vossa piedade.
Pensai, senhora, que me apresso á obedecer-vos, ainda mesmo
quando não posso fazê-lo senão à custa da minha felicidade; direi
mais, apesar de estar persuadido de que não desejais a minha partida
senão para vos furtardes ao espetáculo, sempre penoso, do objeto da
vossa injustiça.
Deveis convir, senhora: é menor o vosso temor de um público
demasiado acostumado a respeitar-vos para ousar formular sobre vós
um juízo desfavorável, do que o vosso aborrecimento pela presença de
um homem que vos é mais fácil punir que censurar.
Afastais-me de vós como quem desvia os seus olhares de um
desgraçado que não se quer socorrer.
Mas, enquanto que a ausência vai redobrar os meus tormentos,
a que outra pessoa além de vós posso eu dirigir as minhas queixas? De
quem poderei esperar consolações que me vão ser tão necessárias?
Recusar-mas-eis, quando sois a causa única das minhas penas?
Não vos admirareis, sem dúvida, que antes de partir eu me
tenha imposto justificar-me junto de vós dos sentimentos que me
inspirastes; como também que eu não encontre a coragem para me
afastar senão recebendo a ordem da vossa boca.
Esta dupla razão faz que vos peça um encontro de um
momento.
Inutilmente quereríamos substituí-lo por cartas: escrevem-se
volumes e ficam mal explicadas as coisas que um quarto de hora de
conversação basta para esclarecer. Encontrareis facilmente o tempo
de mo concederdes: pois por muito empenho que eu tenha em
obedecer-vos, sabeis que Madame de Rosemonde é conhecedora do
meu projeto de passar junto dela uma parte do Outono, e será pelo
menos necessário que eu espere uma carta para poder pretextar um
assunto que me força a partir.
Adeus, senhora; jamais esta palavra me custou a escrever como
neste momento, que me traz à idéia a nossa separação. Se pudésseis
imaginar o que tal palavra me faz sofrer, ouso crer que vos sentiríeis um
pouco grata pela minha docilidade. Recebei, ao menos, com mais
indulgência a certeza e a homenagem do amor mais terno e mais
respeitoso.

26 de Agosto de 17 * *.

CONTINUAÇÃO DA CARTA XL
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Raciocinemos agora, minha bela amiga. Sentis como eu que ao


primeiro dos meus pedidos, e trair a confiança das suas amigas,
nomeando os meus acusadores; assim, prometendo tudo sob esta
condição, não chego a comprometer-me. Mas, como a minha amiga
compreenderá também, essa recusa tornar-se-á um título para obter
tudo o que resta; e nesse caso, afastando-me, fica-me a vantagem de
iniciar com ela, e com o seu consentimento, uma correspondência em
regra: pois a entrevista que lhe peço pouco conta, e quase não tem
outro objetivo que o de a acostumar de antemão a não recusar outras,
quando me forem verdadeiramente necessárias.
A única coisa que me resta fazer antes da minha partida é saber
quais são as pessoas que se ocupam em me prejudicar junto dela.
Presumo que seja o pedante do marido; gostaria que assim fosse: além
de uma ofensa conjugal ser um aguilhão ao, desejo, eu estaria certo
que, desde o momento em que a minha bela consentisse em escrever-
me, nada mais teria a temer do marido, visto ela encontrar-se já na
necessidade de o enganar.
Mas, se ela tem uma amiga com a intimidade bastante para lhe
fazer as suas confidências, e se essa amiga é contra mim, parece-me
necessário fazer com que se zanguem, e conto ser bem sucedido na
tentativa. Mas antes de tudo preciso ser informado. Cheguei ontem a
pensar que o ia ser; mas essa mulher não faz nada como qualquer
outra. Encontrávamo-nos nos seus aposentos, quando vieram dizer-nos
que o jantar estava servido.
Ela acabava de se arranjar, e ao mesmo tempo que se
apressava e nos pedia desculpa, notei que deixava ficar a chave na
secretária; e eu sei que ela não costuma tirar a do quarto. Pensava nisso
enquanto jantávamos, quando ouvi descer a criada: tomei
imediatamente o meu partido; fingi que sangrava do nariz e saí.
Dirigi-me em seguida à secretária, mas encontrei todas as
gavetas abertas, e nem um papel escrito. Contudo, não há ocasião
para os queimar nesta estação. Que faz ela das cartas que recebe?
E o certo é que recebe muitas. Não tive o mínimo descuido tudo
estava aberto, e procurei por toda a parte: mas nada ganhei com isso,
salvo o convencer-me de que esse depósito precioso está nos seus
bolsos.
Como conseguir tirar-lhe as cartas? Desde ontem que me ocupo
inutilmente a encontrar um meio: entretanto não posso vencer o desejo
de o fazer. Lamento não possuir o talento dos larápios. Não é certo que
tal talento devia entrar na educação de um homem que não
desdenha as intrigas?
Não seria agradável furtar a carta ou o retrato dum rival, ou tirar
dos bolsos de uma hipócrita o que bastasse para a desmascarar? Mas
os nossos pais não pensam em nada; e eu, por muito que pense em
tudo, não posso deixar de me convencer de que sou um desajeitado
sem remédio.
De qualquer forma, acabei por voltar à mesa, muito
descontente.
A minha bela acalmou, contudo, um pouco o meu mau humor
com o interesse que tomou pela minha fingida indisposição, e eu não
deixei de lhe afirmar que, já há algum tempo, sentia perturbações
violentas que alteravam a minha saúde. Persuadida como está de ser
ela a causa dessas perturbações, não é verdade que devia, de acordo
com a sua consciência, fazer por acalmá-las? Mas, com toda a sua
devoção, é pouco caridosa; recusa toda a esmola de amor, e essa
recusa chega bem, ao que parece, para autorizar que lha roubem. Mas
adeus; pois embora conversando com a minha amiga, não penso
senão nessas malditas cartas.

27 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Por que procurais, senhor, diminuir o meu reconhecimento?


Por que desejais obedecer-me pela metade e de algum modo
regateais um procedimento honesto? Não somente pedis muito, como
pedis coisas impossíveis. É certo que amigos meus me falaram de vós e
se o fizeram foi apenas por interesse por mim; e ainda que se tivessem
enganado, nem por isso deixariam de o fazer com boa intenção. E,
segundo a vossa proposta, eu reconheceria essa prova de dedicação
da sua parte, denunciando-vos o seu segredo! Eu não devia ter-vos
falado em tal, fazeis-me sentir neste momento!
O que com qualquer outra pessoa seria uma ingenuidade,
torna-se perante vós leviandade, que me levaria a cometer uma feia
ação se acedesse ao vosso pedido. Apelo para vós mesmo, para a
vossa honestidade: julgais-me capaz de semelhante procedimento?
Achais em verdade que me deveríeis ter feito tal proposta? Não, sem
dúvida; e estou certa de que, se refletirdes melhor, não voltareis a fazer
esse pedido.
O outro pedido que me fazeis (o de escrever) não é mais fácil de
conceder; e se quiserdes ser justo, não é de mim que podereis queixar-
vos.
Não desejo ofender-vos; mas com a reputação que adquiristes,
e que, segundo a vossa própria confissão, merecereis pelo menos em
parte, que mulher poderia confessar que mantinha correspondência
convosco? E que mulher honesta pode determinar-se a fazer aquilo que
seria obrigada a esconder?
Ainda se as vossas cartas fossem de tal modo que nunca eu
tivesse de lamentar-me delas, que pudesse sempre justificar-me a meus
olhos de as ter recebido! Talvez então o desejo de vos provar que é a
razão e não o ódio que me guia os passos me levasse a esquecer esses
poderosos motivos, e a fazer mais do que devia permitindo-vos que me
escrevêsseis algumas vezes. Se na verdade o desejais tanto como o
dizeis, de bom grado vos sujeitareis à única condição que me poderia
levar a consentir-vos tal; e se sentis algum reconhecimento pelo que
neste momento faço por vós, não adiareis mais a vossa partida.
Permiti-me que a este respeito vos observe que recebestes esta
manhã uma carta e que não a aproveitastes para anunciar a vossa
partida a Madame de Rosemonde, como me havíeis prometido.
Espero que presentemente nada poderá impedir-vos de cumprir
a vossa palavra. Conto principalmente que não esperareis, para isso, o
encontro que me pedis, ao qual não quero absolutamente prestar-me;
e que, em vez da ordem que pretendeis ser-vos necessária, vos
contentareis com a súplica que vos renovo.
Adeus, senhor.

27 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Podeis partilhar a minha alegria, minha boa amiga: sou amado;


triunfei daquele coração rebelde. É em vão que ele dissimula ainda; a
minha bem sucedida astúcia surpreendeu o seu segredo. Graças à
atividade que empreguei, sei tudo o que me interessa: desde a noite, a
feliz noite de ontem, encontro-me no meu elemento. Retomei o fio de
toda a minha existência; descobri um duplo mistério de amor e de
iniqüidade; gozarei dum e vingar-me-ei do outro; voarei de prazer em
prazer. Só de o pensar sinto-me entusiasmado a tal ponto que é com
algum custo que me lembro de quanta prudência me é necessária; a
custo também conseguirei talvez pôr alguma ordem na narração que
passo a fazer. Entretanto, experimentemos.
Ontem mesmo, depois de lhe ter escrito a minha carta, recebi
uma da celestial devota. Aqui a junto: a minha amiga verá que ela me
dá, o menos desajeitadamente que pode, a permissão de lhe escrever.
No entanto apressa a minha partida e eu senti que não podia adiá-la
por mais tempo sem desvantagem para mim.
Entretanto, atormentado pelo desejo de saber quem poderia
ter-lhe escrito coisas desagradáveis a meu respeito, estava ainda
incerto quanto ao partido que tomaria. Tentei subornar a criada de
quarto e pretendi obter dela que me facultasse os bolsos da sua ama,
de que ela poderia apoderar-se facilmente de noite, e que lhe seria
fácil tornar a colocar no mesmo lugar de manhã, sem despertar a
menor suspeita. Ofereci dez luízes por esse trabalho ligeiro. Mas vi-me
diante de uma hipócrita, escrupulosa ou tímida, que nem a minha
eloqüência nem o meu dinheiro conseguiram vencer.
Continuava a pregar-lhe, quando chegou a hora da ceia. Tive
de a deixar, dando-me ainda por feliz por ela me prometer guardar
segredo, com o qual, como decerto imagina, eu não podia contar.
Nunca tive tamanho aborrecimento. Sentia-me comprometido;
e a mim próprio censurei, durante toda a noite, a minha imprudente
tentativa.
Retirei-me para o meu quarto, não sem inquietação, e falei com
o meu criado, que, na sua qualidade de amante feliz, devia, ter algum
crédito.
Pretendia eu, ou que ele obtivesse dessa rapariga aquilo que eu
lhe tinha pedido, ou pelo menos que se assegurasse da sua reserva: mas
ele, que de ordinário não duvida de nada, pareceu duvidar do êxito
dessa negociação, e a tal respeito teve uma reflexão que me espantou
pela sua profundeza. Disse-me ele: "O senhor sabe com certeza melhor
do que eu que dormir com uma rapariga é só a gente conseguir que
ela faça aquilo que lhe agrada; de aí a conseguirmos que ela faça
aquilo que nós queremos vai uma grande distância."
Le bon sens du Maraud quelquefois m'épouvante.*
"Eu não me responsabilizo por esta", acrescentou ele, "tanto mais
que tenho razões para supor que ela tem um amante, e o que consegui
junto dela foi por não haver mais nada que fazer, aqui no campo. Se
não fosse o meu apego ao serviço do senhor, só o teria conseguido
uma vez". (É um verdadeiro tesouro este rapaz!) "Quanto ao segredo",
acrescentou ele ainda, "de que serve fazer que ela o prometa, se não
arrisca nada em nos enganar? Tornar a falar-lhe nisso é o mesmo que
dar-lhe conta da importância da coisa, e daí dar-lhe mais vontade de
meter tudo no bico à senhora".
Quanto mais eram justas estas reflexões, mais o meu embaraço
*O bom senso de Maraud algumas vezes me apavorava.
aumentava; felizmente o maroto estava disposto para a conversa; e
como eu tinha precisão dele, deixei-o tagarelar. Ao mesmo tempo que
me contava a sua história com a rapariga, lá fui sabendo que o quarto
que ela ocupa é separado do da senhora só por um tabique, que
podia deixar ouvir qualquer ruído suspeito e que era no dele que se
encontravam todas as noites.
Desde logo formei o meu plano, comuniquei-lho, e executámo-
lo com êxito.
Esperei as duas da manhã; e então dirigi-me, como tínhamos
combinado, ao quarto do encontro, levando luz comigo e com o
pretexto de ter tocado várias vezes inutilmente. O meu confidente, que
desempenha os seus papéis à maravilha, simulou uma pequena cena
de surpresa, de desespero e de desculpa, a que pus termo mandando-
o aquecer água, de que fingi ter precisão; isto enquanto a escrupulosa
camareira estava tanto mais envergonhada, quanto é certo que o
patife, indo muito além dos meus projetos, a obrigara a uma toalete
que a estação comportava, mas que de modo algum desculpava.
Sentindo que quanto mais a rapariga fosse humilhada mais
facilmente eu disporia dela, não lhe permiti mudar de situação nem de
vestimenta; e depois de ter ordenado ao meu criado que me esperasse
no meu quarto, sentei-me ao lado dela sobre a cama, que estava
muito em desordem, e comecei a minha conversa.
Eu tinha necessidade de manter o domínio que as circunstâncias
me davam sobre ela; por isso conservei um sangue-frio que teria feito
honra à castidade de Cipião; e sem tomar a menor liberdade com ela,
o que, todavia, a sua frescura e a ocasião pareciam dar-lhe o direito de
esperar, falei-lhe de negócios tão tranquilamente como o poderia fazer
com um procurador.
As minhas condições foram que eu guardaria fielmente segredo,
contanto que no dia seguinte, à mesma hora pouco mais ou menos, ela
me confiasse os bolsos da sua senhora. "Além disso", acrescentei, "eu
ontem tinha-lhe oferecido dez luíses; hoje mantenho a oferta. Não
quero abusar da sua situação".
Tudo ficou combinado, como pode imaginar; retirei-me então e
permiti ao par feliz que recuperasse o tempo perdido.
O meu tempo, empreguei-o a dormir; e ao despertar, querendo
ter um pretexto para não responder à carta da minha bela antes de ter
revistado os seus papéis, o que só podia fazer na noite seguinte, decidi-
me a ir à caça, no que ocupei quase todo o dia.
Na volta, fui recebido com bastante frieza. Tive razão para supor
que houvesse um pouco de melindre por eu mostrar tão pouco
empenho em aproveitar o escasso tempo que me restava;
principalmente depois da carta mais branda que me tinha sido escrita.
Supu-lo assim, porque, tendo-me Madame de Rosemonde feito
algumas censuras pela longa ausência, a minha, bela retrucou com um
pouco de azedume: "Ah! Não censuremos ao senhor de Valmont que se
entregue ao único prazer que pode encontrar."
Lamentei-me da injustiça e aproveitei para assegurar às duas
senhoras que me agradava tanto a sua companhia que por ela ia
sacrificar uma carta de muito interesse que tinha a escrever.
Acrescentei que, não podendo conciliar o sono desde algumas noites,
quisera experimentar se a fadiga faria que eu o recuperasse; e os meus
olhares explicavam com suficiente clareza o assunto da minha carta e
a causa da minha insônia. Tive o cuidado de aparentar durante o serão
uma doçura melancólica que me pareceu cair bem, e sob a qual eu
mascarava a impaciência de ver chegar a hora que deveria revelar-
me o segredo que se obstinavam em esconder-me. Separamo-nos por
fim, e algum tempo depois a fiel criada de quarto veio trazer-me o
preço combinado do meu segredo.
Uma vez de posse deste tesouro, procedi ao inventário com a
prudência que a minha amiga me conhece; pois era importante que
tudo voltasse aos seus lugares. Primeiro deparei com duas cartas do
marido, mistura indigesta de pormenores de processos e de tiradas de
amor conjugal, que tive a paciência de ler até ao fim e não encontrei
uma palavra que me dissesse respeito. Pu-las no seu lugar, de mau
humor; mas este abrandou quando me vieram às mãos os pedaços da
minha famosa carta de Dijon, cuidadosamente reunidos. Felizmente tive
a fantasia de a reler. Imagine a minha alegria, distinguindo nela os
sinais, bem visíveis, das lágrimas da minha adorável devota. Confesso,
cedi a um movimento de rapaz e beijei essa carta com um transporte
de que já não me julgava suscetível. Continuei o feliz exame; encontrei
todas as minhas cartas seguidas e por ordem de datas. E o que me
surpreendeu mais agradavelmente ainda foi ter encontrado a primeira
de todas, aquela que eu supunha ter-me sido devolvida por uma
ingrata, fielmente copiada pela sua mão, e com uma ortografia
alterada e trêmula, que testemunhava com suficiente clareza os doces
debates do seu coração enquanto disso se ocupara.
Até ali todo eu estava entregue ao amor; depressa este deu
lugar à cólera. Quem imagina a minha amiga que queira perder-me
aos olhos dessa mulher que eu adoro? Qual é a Fúria que supõe com
maldade bastante para maquinar semelhante perfídia? A Marquesa
conhece-a; é a sua amiga, a sua parenta; é Madame de Volanges.
Não imagina que tecido de horrores a infernal megera lhe escreveu a
meu respeito. Foi ela, ela unicamente quem perturbou a tranqüilidade
dessa mulher angélica, é pelos seus conselhos, pelas suas opiniões
perniciosas, que eu me vejo forçado a afastar-me; é a ela enfim, que eu
sou sacrificado.
Ah! Não duvide que é preciso seduzir-lhe a filha. Mas isso não é o
bastante, é preciso perdê-la; e já que a idade dessa maldita mulher a
põe ao abrigo dos meus golpes, é preciso feri-la no objeto das suas
afeições.
Quer ela então que eu regresse a Paris! É ela quem me obriga a
isso!
Seja, voltarei, mas há de gemer pelo meu regresso.
Aborrece-me que seja Danceny o herói desta aventura. Tem um
fundo de honestidade que será para nós um obstáculo. É certo que
está apaixonado, e eu vejo-o muitas vezes; talvez se possa tirar partido
dessas circunstâncias. A minha cólera fez-me esquecer que lhe devo
ainda a narração do que se passou hoje. Reatemos.
Esta manhã voltei a ver a minha sensível devota. Nunca a tinha
achado tão bela. Tinha de ser assim; o mais belo momento duma
mulher, o único em que ela pode produzir embriaguez de alma de que
se fala sempre e que tão raras vezes se experimenta, é aquele em que,
seguros do seu amor, não o estamos dos seus favores; e era
precisamente o caso em que me encontrava. Talvez também a idéia
de que ia ser privado do prazer de a ver servisse para a embelezar.
Enfim, à chegada do correio entregaram-me a sua carta de 27; e,
enquanto a lia, hesitava ainda em saber se manteria a minha palavra;
mas encontrei os olhos da minha bela, e ter-me-ia sido impossível
recusar-lhe fosse o que fosse.
Anunciei pois a minha partida. Um momento depois, Madame
de Rosemonde deixou-nos sós; mas, estava eu ainda a quatro passos da
feroz criatura, já ela se levantava com um aspecto horrorizado, dizendo-
me: "Deixe-me, deixe-me, senhor; em nome de Deus, deixe-me." Esta
súplica fervorosa, que denunciava a sua emoção, teve apenas o efeito
de mais me encorajar.
Já eu estava perto dela e lhe segurava as mãos, que ela juntara
com uma expressão absolutamente comovente; já eu balbuciava
ternas queixas, quando um demônio inimigo fez regressar Madame de
Rosemonde. A tímida devota, que na verdade tem alguns motivos para
receio, aproveitou o momento para se retirar.
Ofereci-lhe todavia a mão, que ela aceitou; e, augurando bem
esta benevolência, de que ela não usava havia muito tempo, ao
mesmo tempo que recomeçava as minhas queixas procurava apertar-
lhe a sua. Primeiro ela quis retirá-la; mas, após uma instância mais viva,
entregou-se sem grande resistência, ainda que sem responder nem a
este gesto nem às minhas palavras.
Chegado à porta dos seus aposentos, quis beijar-lhe a mão
antes de a deixar. A defesa começou por ser franca; mas um pense que
vou partir, pronunciado com muita ternura, tornou-a indecisa e frouxa.
Mal eu tinha dado o beijo, a mão encontrou força para se escapar, e a
bela entrou nos seus aposentos onde a esperava a criada de quarto.
Aqui finda a minha história.
Como presumo que a minha amiga esteja amanhã em casa da
Marechala de..., onde com certeza não poderei encontrá-la; como
suponho também que no nosso primeiro encontro teremos mais de um
assunto a tratar, e principalmente o da pequena Volanges, que não
perco de vista, tomei o partido de me fazer preceder por esta carta; e
por muito longa que seja, não a fecharei senão no momento de a
enviar ao correio, pois nas circunstâncias em que me encontro tudo
pode depender de uma ocasião; e deixo-a agora para espiar o
momento.

P. S. - Às oito horas da noite.


Nada de novo; nem o mais pequeno momento de liberdade; houve até
a preocupação de o evitar. No entanto, tanta tristeza como a
cedência permitia, pelo menos. Outro acontecimento que não pode
ser indiferente é que estou encarregado dum convite de Madame de
Rosemonde a Madame de Volanges para vir passar algum tempo ao
castelo.
Adeus, minha bela amiga; até amanhã ou depois de amanhã o
mais tardar.
28 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

O senhor de Valmont partiu esta manhã, senhora; pareceu-me


que desejáveis tanto esse afastamento, que julguei do meu dever dar-
vos conhecimento dele. Madame de Rosemonde lamenta muito seu
sobrinho, cuja convivência, devemos convir, é agradável; passou toda
a manhã a falar-me dele com a sensibilidade que lhe conheceis; não se
cansava de o elogiar. Julguei dever-lhe a complacência de a ouvir sem
a contradizer, tanto mais que é preciso confessar que ela tinha razão
sobre muitos pontos. Demais, eu sentia que tinha a censurar-me ser a
causa desta separação, e não espero poder compensá-la do prazer de
que a privei. Sabeis que de meu natural tenho pouca alegria, e o
gênero de vida que vamos levar aqui não é de molde a aumentá-la.
Se eu não me tivesse conduzido em concordância com as
vossas advertências, recearia ter procedido com um pouco de
ligeireza, pois me sinto verdadeiramente penalizada com a dor da
minha respeitável amiga; comoveu-me a um ponto que de bom grado
teria juntado as minhas lágrimas às suas.
No presente momento vivemos na esperança de que aceiteis o
convite que o senhor de Valmont deve fazer-vos, da parte da Madame
de Rosemonde, de virdes passar algum tempo em casa dela. Espero
que não duvidareis do prazer que teria em ver-vos aqui; deveis-me na
verdade essa recompensa. Ficaria muito contente de aproveitar essa
ocasião para tomar conhecimento mais amplo com Mademoiselle de
Volanges, e para de mais perto vos poder convencer dos sentimentos
respeitosos, etc.

29 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Que foi que lhe aconteceu, minha adorável Cecília? Que


circunstância pôde causar em si uma mudança tão rápida e tão cruel?
Que fez dos seus juramentos de nunca mudar? Ontem ainda, repetia-os
com tanto prazer! Quem teria podido hoje fazê-los esquecer? Debalde
faço exame de consciência; não posso achar em mim a causa, e tenho
horror em a procurar em si. Ah! não suspeito que a Cecília seja leviana
ou goste de enganar; e mesmo neste momento de desespero,
nenhuma suspeita ultrajante conspurcará a minha alma. No entanto,
por que fatalidade não é já a mesma? Não, cruel, já não é a mesma! A
terna Cecília, a Cecília que eu adoro, e de quem recebi as juras, não
teria evitado os meus olhares, não teria contrariado o acaso feliz que
me colocou junto dela; ou, se qualquer razão que eu não posso
conceber a tivesse obrigado a tratar-me com tamanho rigor, não teria
ao menos desdenhado dizer-me o motivo.
Ah! minha Cecília, não sabe, não saberá nunca o que me fez
sofrer hoje, o que sofro ainda neste momento. Julga pois que eu possa
viver e não ser amado por si? No entanto, quando lhe pedi uma
palavra, uma única palavra, para dissipar os meus receios, em lugar de
me responder, fingiu que tinha receio de ser ouvida; e esse obstáculo
que então não existia, fê-lo a Cecília aparecer nesse momento, pelo
lugar que escolheu entre os convidados.
Quando, forçado a deixá-la, lhe perguntei a hora a que poderia
voltar a vê-la amanhã, fingiu ignorá-la, e foi preciso que Madame de
Volanges ma indicasse. Assim esse momento sempre tão desejado que
deve aproximar-nos, amanhã só fará nascer em mim inquietação; e o
prazer de a ver, até agora tão caro ao meu coração, será substituído
pelo receio de lhe ser importuno.
Sinto que já esse receio me detém, e não ouso falar-lhe do meu
amor. Aquele amo-o, que eu gostava tanto de repetir quando o ouvia,
essa palavra tão doce, que bastava para a minha felicidade, não
oferece para mim agora, se a Cecília está mudada, mais do que a
imagem do desespero eterno. Não posso crer todavia que esse talismã
do amor tenha perdido todo o seu poderio, e experimento servir-me
dele ainda,. Sim, minha Cecília amo-a. Repita pois comigo esta
expressão da minha felicidade.
Pense que me habituou a ouvi-la, e que privar-me dela é
condenar-me a um tormento que, tal como o meu amor, só acabará
com a minha vida.

29 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Não a verei ainda hoje, minha bela amiga, e aqui estão as


minhas razões, que lhe peço receba com indulgência. Ontem em vez
de fazer diretamente a viagem de regresso, parei em casa da
Condessa de..., cujo castelo se encontrava quase no meu caminho, e a
quem pedi de jantar. Só cheguei a Paris por volta das sete horas, e
desci na Ópera, onde pensei que a Marquesa poderia estar.
Finda a ópera, fui ao salão para voltar a ver as minhas amigas; lá
encontrei a minha velha Emília, rodeada de uma corte numerosa, tanto
de mulheres como de homens, a quem ela dava de cear nessa mesma
noite em P... Mal eu me tinha reunido à sociedade, fui rogado para
assistir à ceia, por aclamação. Aos rogos de todos juntaram-se os de
uma figurinha gorda e baixa que me algaraviou um convite em francês
da Holanda, e que reconheci como verdadeiro herói da festa. Aceitei.
Pelo caminho, soube que a casa a que nos dirigíamos era o
preço convencionado das bondades de Emília para aquela figura
grotesca, e que a ceia era um verdadeiro banquete de núpcias.
O homenzinho não cabia em si de contente, na expectativa da
felicidade que ia gozar. Pareceu-me tão satisfeito, que me deu vontade
de perturbar a sua alegria; o que de fato fiz.
A única dificuldade que tive foi decidir Emília, a quem a riqueza
do burgomestre tornava um pouco escrupulosa. Acabou por se prestar,
contudo, depois de algumas combinações, ao projeto, que lhe
comuniquei, de encher de vinho aquele pequeno tonel de cerveja, e
de o pôr assim fora de combate por toda a noite.
A idéia sublime que tínhamos formado de um bebedor holandês
fez que empregássemos todos os meios conhecidos. O êxito foi tão
grande, que à sobremesa já ele não tinha força para segurar o copo;
mas a caridosa Emília e eu engorgitávamo-lo o mais que podíamos. Por
fim caiu para debaixo da mesa, numa bebedeira tal que deve pelo
menos durar oito dias.
Decidimo-nos então a recambiá-lo para Paris; e como ele não
tinha levado a sua carruagem, mandei-o pôr na minha, e fiquei em seu
lugar. Recebi em seguida os cumprimentos da assembléia, que se
retirou pouco depois, e me deixou senhor do campo de batalha.
Toda aquela alegria, e talvez o meu longo retiro, fizeram-me
achar Emília tão desejável que lhe prometi ficar com ela até à
ressurreição do holandês.
Esta complacência da minha parte é o preço da que ela acaba
de ter, servindo-me de secretária para escrever à minha bela devota, a
quem achei divertido enviar uma carta escrita na cama e quase entre
os braços de uma prostituta, interrompida mesmo por uma infidelidade
completa, e na qual lhe fiz uma narração exata da minha situação e
do meu procedimento. Emília, que leu a epístola, riu como uma louca, e
espero que a Marquesa rirá também.
Como é necessário que a minha carta leve o carimbo de Paris,
envio-lha; deixo-a aberta. A minha amiga fará o favor de a ler, lacrar e
mandar pôr no correio. Sobretudo não esqueça que não deve servir-se
do seu sinete, nem mesmo de qualquer emblema amoroso; um cunho
qualquer serve.
Adeus, minha bela amiga.

P. S. - Torno a abrir a minha carta; convenci Emília a ir ao Teatro dos


Italianos... Aproveitarei esse intervalo para ir ver a minha amiga. Estarei
em sua casa às seis horas o mais tardar; e, se isso lhe convier, iremos
juntos por volta das sete horas a casa de Madame de Volanges. Será
decente que eu não demore o convite que tenho a fazer-lhe da parte
de Madame de Rosemonde; além disso, serei feliz de voltar a ver a
pequena Volanges.

Adeus, ó belíssima dama. Desejo ter tanto prazer em abraçá-la,


que o Cavaleiro possa sentir ciúmes.

De P..., 30 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

(Correio de Paris)

É depois de uma noite tempestuosa, e durante a qual não pude


conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na agitação de
um ardor febricitante, ou no total aniquilamento de todas as faculdades
da minha alma, que venho procurar junto de vós senhora, uma calma
de que tenho necessidade, e da qual todavia não espero poder gozar
ainda. Na verdade, a situação em que me encontro ao escrever-vos
dá-me a conhecer mais do que nunca o poder irresistível do amor. A
custo consigo manter domínio suficiente sobre mim para pôr alguma
ordem nas minhas idéias; e desde já prevejo que não terminarei esta
carta sem ser obrigado a interrompê-la. Pois quê! Não poderei esperar
que partilheis algum dia a perturbação que experimento neste
instante?
Ouso crer entretanto que, se pudésseis fazer uma idéia do que
sinto, não ficaríeis inteiramente insensível. Podeis crer, senhora; a fria
tranqüilidade, o sono da alma, imagem da morte, não levam à
felicidade; só as paixões vivas podem conduzir lá.
E apesar dos tormentos que me fazeis suportar, posso assegurar-
vos sem receio que, neste momento, sou mais feliz do que vós. Em vão
sobre mim pesam os vossos rigores implacáveis: não impedirão que eu
me abandone inteiramente ao amor e que esqueça, no delírio que em
mim causa, o desespero a que me entregais. É assim que eu me quero
vingar do exílio a que me condenastes. Nunca tive tanto prazer em
escrever-vos.
Nunca senti, nesta ocupação, uma emoção tão doce e todavia
tão viva.
Tudo parece aumentar a minha exaltação: o ar que respiro é
pleno de volúpia; até a mesa sobre que vos escrevo, consagrada pela
primeira vez a este uso, se torna para mim o altar sagrado do amor.
Como vai embelezar-se a meus olhos, por ter traçado sobre ela o
juramento de vos amar sempre!
Perdoai, suplico-vos, a desordem dos meus sentidos! Eu deveria
talvez abandonar-me menos a transportes que não partilhais. Preciso
deixar-vos por um momento para dissipar uma embriaguez que
aumenta a cada instante, e que se torna mais forte do que eu.
Volto a vós, senhora, e volto sem dúvida com o mesmo fervor.
Entretanto o sentimento da felicidade fugiu para longe de mim,
dando lugar ao das privações cruéis. De que me serve falar-vos dos
meus sentimentos, se procuro em vão os meios de vos convencer? Após
tantos e tão repetidos esforços, a confiança e a força abandonam-me
ao mesmo tempo. Se imagina ainda os prazeres do amor, é para sentir
mais vivamente o pesar de ser deles privado. Não vejo outro recurso
que o da vossa indulgência, e sinto demasiado, neste momento, quanto
dela tenho necessidade para esperar obtê-la. Entretanto, nunca o meu
amor foi mais respeitoso, nunca ele deveu ofender-vos menos. É de tal
maneira, ouso dizê-lo, que a virtude mais severa não poderia ter
qualquer receio dele; mas eu próprio temo falar-vos por mais tempo do
sofrimento que sinto. Certo de que o ente que o causa não o partilha,
não devo ao menos abusar das suas bondades; e seria fazê-lo se
empregasse mais tempo a descrever esta dolorosa imagem. Não tomo
mais do que o de suplicar-vos uma resposta, e que não duvideis nunca
da verdade dos meus sentimentos.

Escrita de P..., datada de Paris, 30 de Agosto de 17* *.

CARTA XLIX

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Sem ser leviana nem gostar de enganar, basta-me, senhor, ser


esclarecida sobre o meu procedimento para sentir a necessidade de o
mudar; prometi esse sacrifício a Deus, até poder oferecer-lhe também o
dos meus sentimentos por vós, que o estado religioso em que vos
encontrais torna mais criminosos ainda.
Sinto bem que isso me fará sofrer, e não vos esconderei mesmo
que desde anteontem tenho chorado todas as vezes que penso em
vós. Mas espero que Deus me fará a graça de me dar a força
necessária para vos esquecer, como lhe peço de manhã à noite.
Espero mesmo da vossa amizade, e da vossa honestidade, que
não tentareis perturbar-me na boa resolução que me inspirou, e na qual
procuro manter-me. Peço, por conseqüência, que tenhais a bondade
de não voltar a escrever-me, tanto mais que vos previno de que não
responderei, e que me forçaríeis a avisar a Mamã de tudo o que se
passa: o que me privaria absolutamente do prazer de vos ver.
Não deixarei de conservar por vós toda a dedicação que se
possa ter sem que nisso haja algum mal; e é de toda a minha alma que
vos desejo toda a espécie de felicidade. Sinto bem que deixareis de
amar-me tanto, e que em breve amareis talvez outra melhor do que eu.
Mas isso será mais uma penitência da falta que eu cometi ao dar-vos o
meu coração, que eu devia dar só a Deus, e a meu marido quando o
tiver. Espero que a misericórdia divina tenha piedade da minha
fraqueza, e que não me dê sofrimentos que eu não possa suportar.
Adeus, senhor; posso assegurar-vos que, se me fosse permitido
amar alguém, não amaria outro além de vós. Mas eis tudo o que eu
posso dizer, e talvez seja mais do que deveria.

31 de Agosto de 17 * *.

CARTA L

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

É então desta maneira, senhor, que correspondeis às condições


que vos pus para receber algumas vezes cartas vossas? E posso eu não
ter de que me queixar, quando nelas não me falais senão de um
sentimento ao qual eu recearia ainda entregar-me, mesmo que o
pudesse fazer sem ferir todos os meus deveres ?
Aliás, se eu necessitasse de novas razões para conservar esse
receio salutar, parece-me que as poderia encontrar na vossa última
carta. De fato, no próprio momento em que julgais fazer a apologia do
amor, que fazeis, pelo contrário, senão mostrar-me as temíveis
tempestades a que ele dá lugar? Quem poderá desejar uma felicidade
adquirida à custa da razão, e cujos prazeres pouco duráveis são pelo
menos seguidos pelos pesares, quando o não são pelos remorsos?
Vós próprio, em quem o hábito desse delírio perigoso deve
diminuir-lhe o efeito, não sois obrigado a confessar que ele se torna mais
forte que vós, e não sois o primeiro a queixar-vos da perturbação
involuntária que ele em vós causa? Que horrível devastação não
produziria ele num coração jovem e sensível, que aumentaria o seu
poder pela grandeza dos sacrifícios que seria obrigado a fazer-lhe?
Julgais, senhor, ou fingis julgar, que o amor conduz à felicidade;
e eu persuado-me a tal ponto de que ele me tornaria desgraçada, que
desejaria não ouvir nunca pronunciar o seu nome.
Afigura-se-me que só o falar dele altera a tranqüilidade; e é
tanto por gosto como por dever que vos peço que guardeis silêncio a
tal respeito.
No fim de contas, deve ser-vos fácil presentemente conceder-
me o que vos peço. De regresso a Paris, encontrareis aí bastas ocasiões
de esquecer um sentimento que deve o seu nascimento talvez apenas
ao hábito de vos ocupardes de tais assuntos, e a sua força à ociosidade
do campo. Nesse mesmo lugar onde estais, não me vistes tantas vezes
com indiferença? Podereis dar aí um passo sem encontrardes um
exemplo da vossa facilidade em mudar, e não estais aí rodeado de
mulheres, que, todas mais amáveis do que eu, têm talvez mais direito às
vossas homenagens? Não tenho a vaidade que é censurada ao meu
sexo; tenho ainda menos essa falsa modéstia que é apenas um
refinamento do orgulho; e é de muito boa fé que vos digo aqui que
reconheço em mim muito poucos meios de agradar: mas ainda que
dispusesse de todos, não os julgaria suficientes para vos chamar a
atenção. Pedir-vos que não vos ocupeis de mim é apenas rogar-vos
que façais hoje o que já fizestes o que com toda a certeza faríeis dentro
de pouco tempo, ainda que eu vos pedisse o contrário.
Esta verdade, que eu não perco de vista, seria, por si só, uma
razão bastante forte para não querer ouvir-vos. Tenho mil outras razões
ainda: mas sem entrar nessa longa discussão, limito-me a suplicar-vos,
como já fiz, que não volteis a falar-me num sentimento que eu não
devo atender, e ao qual devo ainda menos responder.

1 de Setembro de 17* *.

SEGUNDA PARTE

CARTA LI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Na verdade, Visconde, é insuportável. Trata-me com tanta


ligeireza como se eu fosse sua amante. Sabe que acabei por me
zangar, e que estou neste momento com um humor horrível?
Como! O Visconde precisa ver Danceny amanhã de manhã;
sabe como é importante que eu lhe fale antes dessa entrevista; e sem
se inquietar muito, deixa que eu o espere todo o dia, para correr atrás
sei lá de quê! É o senhor o causador de que eu tenha chegado
indecentemente tarde a casa de Madame de Volanges e de que
todas as senhoras de certa idade me tenham achado maravilhosa. Foi-
me necessário estragá-las com mimos toda a noite para as apaziguar:
pois ninguém se deve zangar com as mulheres de certa idade; são elas
que fazem a reputação das novas.
Deu já uma hora da manhã, e em lugar de me deitar, e morro
de vontade de o fazer, é preciso que lhe escreva uma longa carta, que
vai redobrar o meu sono pelo aborrecimento que ela me vai causar.
Pode dar-se por feliz de eu não ter tempo para lhe ralhar mais. Não vá
julgar por isso que lhe perdôo; é só porque estou com muita pressa.
Escute, pois, que vou despachar-me.
Por pouco que o Visconde seja hábil, tem de ouvir amanhã as
confidências de Danceny. O momento é favorável para a confiança: é
o momento da desgraça. A pequena foi à confissão; disse tudo, como
uma criança; e depois ficou atormentada a tal ponto com medo do
diabo, que quer romper absolutamente.
Contou-me todos os seus pequenos escrúpulos, com uma
vivacidade que me deu a perceber quanto o medo lhe tinha subido à
cabeça. Mostrou-me a carta de rompimento, que é um verdadeiro
sermão. Tagarelou uma hora comigo, sem me dizer uma palavra que
tivesse senso comum. Mas nem por isso me deixou menos confusa; pois
o Visconde imagina que eu não podia falar abertamente a uma
cabecinha a tal ponto transtornada.
Pude entretanto entender, no meio de toda aquela tagarelice,
que ela não gosta menos do seu Danceny; notei mesmo que ela lança
mão de um daqueles recursos que ao amor nunca faltam, e a que a
rapariguinha se presta de boa vontade, enganando-se a si mesma.
Atormentada pelo desejo de se ocupar do seu namorado, e pelo
receio de ser condenada ocupando-se dele, imaginou rogar a Deus
que lho faça esquecer e, como renova esse rogo a cada instante do
dia, encontra o meio de pensar nele constantemente.
Com qualquer que estivesse mais usado que Danceny, este
pequeno acontecimento seria talvez mais favorável que contrário, mas
o rapaz é tão lamecha que, se não o ajudarmos, ser-lhe-á necessário
tanto tempo para vencer os mais ligeiros obstáculos que não nos
deixará o de efetuarmos o nosso projeto.
O Visconde tem razão; é pena, e estou tão aborrecida com isso
como o senhor, que seja ele o herói desta aventura. Mas que quer? O
que está feito está feito; e a culpa é sua. Pedi que me mostrasse a
resposta dele; fez-me pena. Danceny apresenta-lhe razões até perder o
fôlego, para lhe provar que um sentimento involuntário não pode ser
um crime; como se não deixasse de ser involuntário, no momento em
que se deixa de o combater!
Esta idéia é tão simples, que até à pequena ocorreu. Ele queixa-
se da sua infelicidade de uma forma bastante comovente, mas a sua
dor é tão doce e parece tão forte e tão sincera, que julgo possível que
uma mulher que encontra ocasião de desesperar um homem a tal
ponto, e com tão pouco perigo, não seja tentada a divertir-se com
semelhante fantasia. Por fim explica-lhe que não é monge, como a
pequena supõe; e não há dúvida que é o que ele faz de melhor: pois,
se chegassem tão longe na perfeição que se dessem inteiros ao amor
monástico, seguramente os senhores Cavaleiros de Malta nos
mereceriam a preferência.
De qualquer forma, em vez de perder o meu tempo em
raciocínios que poderiam comprometer-me, e talvez sem conseguir
persuadi-la, aprovei o projeto de rompimento; mas disse-lhe que era
mais honesto, em semelhante caso, dizer as suas razões do que escrevê-
las; que era também de uso entregar as cartas e as outras bagatelas
que possam ter-se recebido. E simulando assim partilhar os pareceres da
pequena, decidi-a a marcar um encontro com Danceny. Combinamos
imediatamente a maneira, e encarreguei-a de resolver a mãe a sair
sem a filha; é para amanhã à tarde o instante decisivo. Danceny já está
instruído; mas, por Deus, se o Visconde achar ocasião, decida esse belo
pastor a ser menos lânguido; e ensine-lhe tudo, que a verdadeira
maneira de vencer os escrúpulos é não deixar nada a perder a quem os
tem.
Depois, para que essa ridícula cena não se renovasse, não deixei
de levantar algumas dúvidas no espírito da pequena sobre o segredo
de confissão; e garanto-lhe que neste momento ela paga o medo que
me meteu com o que ela tem de que o confessor vá dizer tudo à mãe.
Espero que depois de eu ter podido falar com ela mais uma vez ou
duas, já não irá contar assim as suas tolices ao primeiro que aparecer.*
* O leitor deve ter adivinhado há muito tempo, pelos costumes de Madame de Merteuil,
como ela respeitava pouco a religião. Poderia ter-se suprimido todo este parágrafo, mas
julgou-se que, mostrando os efeitos, não se devia deixar de dar a conhecer as causas.
Adeus Visconde; tome posse de Danceny, e seja o seu guia.
Seria vergonhoso que não fizéssemos o que nos apetece de
duas crianças. Se isso nos for mais difícil do que ao princípio supusemos,
lembremo-nos, para animar o nosso zelo, o Visconde, que se trata da
filha de Madame de Volanges, e eu, que ela virá a ser a mulher de
Gercourt.
Adeus.

2 de Setembro de 17* *.

CARTA LII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Proibis-me, senhora, que vos fale do meu amor; mas onde


encontrar a coragem necessária para vos obedecer? Ocupado
unicamente por um sentimento que deveria ser tão, doce, e que tornais
tão cruel; entristecendo no exílio a que me condenastes; vivendo
apenas de privações e de saudades; entregue a sofrimentos tanto mais
dolorosos quanto me recordam sem cessar a vossa indiferença; ser-me-
á necessário ainda perder a consolação única que me resta? E posso
eu ter outra que não seja a de vos abrir algumas vezes uma alma que
encheis de perturbação e de amargura?
Desviareis os vossos olhos para não ver as lágrimas que me
obrigais a derramar? Recusareis até a homenagem dos sacrifícios que
exigis? Não seria, no entanto, mais digno de vós, da vossa alma honesta
e meiga, lamentar um infeliz, que o é apenas por vossa causa, em vez
de pretenderes agravar as suas penas, por uma defesa ao mesmo
tempo injusta e rigorosa?
Fingis recear o amor, e não quereis ver que sois vós unicamente
a causadora dos males que lhe censurais. Ah! este sentimento é penoso,
por certo, quanto o objeto que o inspira não lhe corresponde; mas onde
encontrar a felicidade, se um amor recíproco não for bastante para a
conseguir? A amizade terna, a confiança tranqüila e sem reserva, as
penas suavizadas, os prazeres aumentados, a esperança exultante, as
recordações deliciosas, onde encontrar tudo isso senão no amor?
Caluniais esse sentimento, vós que, para gozar de todos os bens que ele
vos oferece, não tendes mais que cessar de vos furtardes a ele; quanto
a mim, esqueço as penas que sofro, para me ocupar em defendê-lo.
Obrigais-me também a defender-me a mim próprio; pois ao
passo que eu consagro a minha vida a adorar-vos, vós passais a vossa a
procurar em mim motivos de agravo; supúnheis-me já leviano e falso; e
abusando, contra mim, de alguns erros que eu próprio vos confessei,
deleitais-vos a confundir o que eu era então como o que eu sou agora.
Não contente de me haverdes entregue ao tormento de viver longe de
vós, acrescentais a isso uma zombaria cruel sobre prazeres aos quais
sabereis bem a que ponto me tornastes insensível. Não acreditais nem
nas minhas promessas, nem nos meus juramentos. Pois bem! Resta-me
uma garantia a oferecer-vos, que ao menos não se vos tornará suspeita:
sois vós mesma. Não vos peço senão que vos interrogueis de boa fé; se
não acreditais no meu amor, se duvidais por um momento de ser a
única a reinar na minha alma, se não estais segura de terdes
conquistado este coração, até aqui demasiado volúvel, consinto em
expiar a pena que cabe a este erro; soltarei gemidos, mas não farei
qualquer súplica. Mas se, ao contrário, fazendo justiça a nós dois, fordes
obrigada a convir no vosso foro íntimo que não tendes, que não tereis
nunca uma rival, não volteis a obrigar-me, suplico-vos, a combater
quimeras, e deixai-me a consolação de saber que não duvidais dum
sentimento que, na verdade, não acabará, não pode acabar senão
com a minha vida. Permiti-me, senhora, que vos rogue uma resposta
positiva a este ponto da minha carta.
Se eu abandono entretanto aquela época da minha vida que
parece prejudicar-me tão cruelmente a vossos olhos, não é porque, em
caso de necessidade, me faltassem razões para a defender.
Que fiz eu, no fim de contas, além de não oferecer resistência
ao turbilhão que me envolvia? Entrei no mundo, jovem e sem
experiência; passei, por assim dizer, de mão em mão, por uma multidão
de mulheres, que se apressaram todas a antecipar pela sua facilidade
uma opinião que elas sentiam dever ser-lhes desfavorável. Deveria ser
eu pois a dar o exemplo de uma resistência que me não era oposta?
Ou deveria castigar-me a mim próprio por um momento de irreflexão, e
que em muitos casos fora provocado, por uma constância deveras
inútil, e na qual todos veriam um motivo de ridículo? Pois qual é o meio
para justificar a vergonha de uma escolha senão um pronto
rompimento?
Mas, posso dizê-lo, essa embriaguez dos sentidos, talvez mesmo
esse delírio da vaidade, não penetrou o meu coração.
Nascido para o amor, a intriga poderia distraí-lo; não bastava
para tomar inteira posse dele; rodeado de seres sedutores, mas
desprezíveis, nenhum deles ia até à minha alma. Ofereciam-me
prazeres, eu buscava virtudes. E, porque era delicado e sensível, eu
próprio por fim me julguei inconstante.
Foi ao ver-vos que me senti iluminado; depressa compreendi que
o encanto do amor se enraizava nas qualidades da alma; que só elas
podiam causar-lhe o excesso e justificá-lo. Senti enfim que me era
igualmente impossível deixar de vos amar e amar outra que não fôsseis
vós.
Eis, senhora, como é este coração ao qual temeis entregar-vos e
sobre a sorte do qual tendes de pronunciar-vos. Mas qualquer que seja
o destino que lhe reserveis, não mudareis nada aos sentimentos que o
prendem a vós; são inalteráveis como as virtudes que os fizeram nascer.

3 de Setembro de 17* *.

CARTA LIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Estive com Danceny, mas apenas obtive dele meia confidência;


teimou, sobretudo, em calar-me o nome da pequena Volanges, de
quem me falou como de uma mulher muito atilada, e até um pouco
devota; a propósito, contou-me com bastante verdade a sua aventura,
e sobretudo o último acontecimento. Excitei-o o mais que pude e
gracejei bastante acerca da sua delicadeza e dos seus escrúpulos; mas
ele pareceu manter-se firme, não posso responder por ele. A este
respeito poderei dizer alguma coisa mais depois de amanhã. Levo-o
amanhã a Versailles e durante o caminho ocupar-me-ei em o sondar.
O encontro marcado para hoje dá-me também alguma
esperança; pode dar-se o caso de tudo se passar como desejamos; e
talvez no presente momento nos reste apenas arrancar-lhe a confissão
e recolher as respectivas provas. Esta tarefa será mais fácil à Marquesa
do que a mim, pois a pequena é mais confiante, ou, o que vem a dar
no mesmo, mais tagarela do que o seu discreto apaixonado. Entretanto
farei o que me for possível.
Adeus, minha bela amiga, estou com muita pressa; não a verei
nem esta noite, nem amanhã. Se por seu lado souber alguma coisa,
escreva-me uma palavra no meu regresso. Virei com certeza dormir a
Paris.
3 de Setembro de 17* *, à noite.

CARTA LIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Oh! sim! é de fato junto de Danceny que há alguma coisa a


saber! Se ele lha disser, gabou-se. Não conheço ninguém tão tolo em
coisas de amor e cada vez me censuro mais pelas bondades que temos
para ele. Saiba o Visconde que cheguei a julgar-me comprometida por
culpa dele. E pensar que tudo resultou em pura perda! Oh! Hei-de
vingar-me, prometo-lho.
Quando cheguei ontem a casa de Madame de Volanges para
a levar comigo, ela não queria sair; sentia-se incomodada. Foi-me
necessária toda a minha eloqüência para a persuadir, e via chegar o
momento de Danceny aparecer sem que tivéssemos saído, o que seria
tanto mais aborrecido quanto Madame de Volanges lhe dissera na
véspera que não estaria em casa. Eu e a filha estávamos sobre brasas.
Saímos por fim; e a pequena apertou-me a mão tão afetuosamente ao
despedirmo-nos que apesar do seu projeto de rompimento, de que ela
julgava de boa fé ocupar-se ainda, augurei maravilhas para essa noite.
Não tinha chegado ao fim das minhas inquietações. Havia
apenas meia hora que estávamos em casa de Madame de..., quando
Madame de Volanges se sentiu de fato mal, mas seriamente mal; e,
como era razoável, quis voltar para casa. Eu desejava-o tanto menos
quanto receava, se surpreendêssemos os dois jovens, como tudo
indicava, que as minhas instâncias junto da mãe para que saísse se lhe
tornassem suspeitas. Tomei o partido de a assustar sobre o seu estado
de saúde, o que felizmente não é difícil; e consegui retê-la durante hora
e meia, sem consentir em levá-la a casa, fingindo ter medo do
movimento perigoso da carruagem.
Regressamos por fim à hora combinada. Pelo ar envergonhado
que notei ao chegar, confesso que esperei que ao menos as minhas
canseiras não tivessem sido baldadas.
O desejo que eu tinha de ser informada fez que ficasse ao pé de
Madame de Volanges, que se deitou logo, e depois de termos ceado
junto do seu leito, deixámo-la muito cedo, com o pretexto de que ela
necessitava repousar; e passamos aos aposentos da filha. Esta fez tudo
o que eu esperava dela; escrúpulos desvanecidos, novas juras de amor
eterno, etc., de boa vontade executou o programa; mas o parvo do
Danceny não avançou de uma linha o ponto em que antes se
encontrava. Oh! com aquele pode haver amuos; as reconciliações não
são perigosas.
A pequena assegura todavia que ele queria mais, mas que ela
soube defender-se. Ia jurar que ela se gaba, ou que o desculpa; tenho
mesmo quase a certeza. De fato, tive a fantasia de querer saber por
experiência própria de que defesa é ela capaz; e, simples mulher, de
conversa em conversa, dei-lhe volta à cabeça a um ponto... Enfim, o
Visconde pode crer, não conheço ninguém mais suscetível de uma
surpresa dos sentidos. É na verdade digna de ser amada, esta querida
pequena! Merecia outro amante; terá pelo menos uma boa amiga,
pois estou-lhe sinceramente dedicada. Prometi-lhe instruí-la e creio que
cumprirei a minha palavra. Muitas vezes sinto a necessidade de ter uma
mulher por confidente, e gostaria mais que fosse esta que qualquer
outra; mas nada posso fazer, enquanto ela não for... aquilo que é
preciso que seja; e esta é mais uma razão para estar aborrecida com
Danceny.
Adeus, Visconde; não venha a minha casa amanhã, a menos
que seja de manhã. Cedi às instâncias do Cavaleiro para uma noitada
no nosso ninho.

4 de Setembro de 17 * *.

CARTA LV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Tinhas razão, minha querida Sofia; as tuas profecias são mais


certas do que os teus conselhos. Danceny, como tinhas previsto, foi mais
forte que o confessor, que tu e do que eu própria; e eis-nos voltados
exatamente ao ponto em que estávamos.
Ora! Não me arrependo disso; e se tu me censurares, será por
não saberes o prazer que se sente em amar Danceny. A ti é muito fácil
dizeres o que se deve fazer, nada to impede; mas se tivesses
experimentado como nos faz mal a tristeza de alguém que se ama,
como a sua alegria se torna nossa e como é difícil dizer não quando é
sim que se deseja dizer, não te admiravas de nada; eu mesma, que o
senti, e que o senti vivamente, não compreendo ainda. Julgas tu, por
exemplo, que eu possa ver chorar Danceny sem chorar eu também?
Afirmo-te que isso me é impossível; e quando ele está contente, sou feliz
com ele. Podes dizer o que entenderes; o que se diz não altera o que é,
e eu estou certa de que é assim.
Queria ver-te no meu lugar... Não, não é isso que eu quero dizer,
pois com certeza não desejaria ceder o meu lugar a ninguém; mas
queria que tu amasses assim alguém; não seria só para que me
entendesses melhor, e me ralhasses menos; mas porque assim tu serias
mais feliz, ou, para melhor dizer, só então começarias a ser feliz.
Os nossos divertimentos, os nossos risos, tudo isso, bem vês, são
brincadeiras de crianças; delas nada fica depois de passarem.
Mas o amor, ah! o amor!. . uma palavra, um olhar, somente o
sabermos que ele está ali, crê: isso é a felicidade. Quando vejo
Danceny, não desejo mais nada; quando não o vejo, só o desejo a ele.
Não sei porque isto é assim; mas dir-se-ia que tudo de que eu gosto se
lhe assemelha.
Quando ele não está comigo, penso nele; e quando estou
sozinha, por exemplo, sou ainda feliz; fecho os olhos, e logo julgo que o
estou vendo; lembro-me das suas palavras, e creio ouvi-lo; isto faz-me
suspirar; e depois sinto um fogo, uma agitação... Não posso estar no
mesmo lugar. É como um tormento, e esse tormento dá um prazer
inexprimível.
Julgo até que quando uma vez se sente amor, esse sentimento
se espalha até sobre a amizade. No entanto, a que eu tenho por ti não
mudou; é sempre como no convento: mas isto que eu digo, sinto-o com
Madame de Merteuil. Parece-me que a minha amizade por ela se
parece mais com o amor que sinto por Danceny do que com a minha
amizade por ti, e algumas vezes desejaria que ela fosse ele. Isto vem
talvez de não ser uma amizade de infância como a nossa; ou talvez de
os ver tantas vezes juntos, o que faz com que me engane. Enfim, o que
é certo é que os dois me tornam muito feliz; e no fim de contas, não
creio que haja grande mal no que eu faço. Por isso só peço que me
deixem ficar como estou; e só a idéia do meu casamento me faz sofrer;
pois se o senhor de Gercourt é como me disseram, e não duvido de que
o seja, não sei o que será de mim.
Adeus, minha Sofia; sou sempre a tua amiga muito terna.

4 de Setembro de 17 * *.

CARTA LVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

De que vos serviria, senhor, a resposta que me pedistes? Crer nos


vossos sentimentos não será uma razão mais para os temer? E sem
atacar nem defender a sinceridade deles, não me basta, não deve
bastar-vos a vós mesmo, saber que não devo nem quero corresponder-
lhes?
Suponho que me tendes amor verdadeiro (e é apenas para não
voltar a falar neste assunto que eu consinto nesta suposição); seriam por
isso menos insuperáveis os obstáculos que nos separam? E teria eu outra
coisa a fazer que desejar-vos uma rápida vitória sobre esse amor, e
principalmente ajudar-vos com todo o meu poder, apressando-me a
tirar-vos toda a esperança?
Vós mesmo concordais que esse sentimento é penoso quando o
objeto que o inspira não lhe corresponde. Ora, sabeis suficientemente
que me é impossível corresponder-lhe e, ainda que essa infelicidade me
acontecesse, eu seria mais digna de lástima, sem que fôsseis por isso
mais feliz. Espero que me estimareis o bastante para que não duvideis
disso por um momento. Deixai pois, rogo-vos, deixai de pretender
perturbar um coração ao qual a tranqüilidade é tão necessária; não
me obrigueis a lamentar ter-vos conhecido.
Querida e estimada por um marido que amo e respeito, os meus
deveres e os meus prazeres reúnem-se numa só pessoa.
Sou feliz e tenho obrigação de o ser. Se existem prazeres mais
vivos, não os desejo; não quero conhecê-los. Haverá alguma coisa mais
doce que estar em paz consigo mesma, ver decorrer dias serenos,
adormecer tranqüila e despertar sem remorsos?
Aquilo a que chamais felicidade é apenas um tumulto dos
sentidos, uma tempestade das paixões, cujo espetáculo horroriza,
mesmo quando o contemplamos da margem. Pois bem! Como afrontar
tais tempestades?
Como haverá quem possa aventurar-se a um mar coberto dos
despojos de mil e mil naufrágios? E com quem? Não, senhor Visconde,
eu fico na terra firme; são-me caros os laços que a ela me prendem.
Poderia cortá-los, e não o faria; se eles não existissem, apressar-me-ia a
forjá-los para que me prendessem.
Por que seguis os meus passos? Por que vos obstinais nesse
caminho?
As vossas cartas, que deviam ser raras, sucedem-se com rapidez.
Deviam ser prudentes, e nelas só falais do vosso louco amor.
Envolveis-me na vossa idéia, mais do que o fazeis da vossa pessoa.
Afastado sob uma forma, reproduzis-vos sob outra. As coisas que se vos
pede que não digais, voltais a dizê-las de outra maneira. Tendes prazer
em me confundir com raciocínios capciosos; mas furtais-vos às minhas
razões. Não quero voltar a responder-vos, não vos responderei... De que
maneira tratais as mulheres que seduzistes! Com que desprezo falais
delas! Desejo acreditar que algumas o merecem: mas serão todas elas
a tal ponto desprezíveis? Ah! sem dúvida, pois traíram os seus deveres
para se entregarem a um amor criminoso. Desde esse momento,
perderam tudo, até a estima daquele a quem tudo sacrificaram. É justo
esse suplício, mas só a sua idéia faz tremer. Que me importa, afinal? Por
que me ocuparei delas ou de vós? Com que direito perturbais a minha
tranqüilidade?
Deixai-me, não volteis a ver-me; deixai de me escrever, peço-
vos; exijo-o. Esta carta é a última que recebereis de mim.

5 de Setembro de 17 * *.
CARTA LVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Encontrei a sua carta ontem à minha chegada. A sua cólera


deu-me um prazer absoluto. A minha amiga não sentiria mais
vivamente os desastres de Danceny, se estivesse diretamente
interessada neles. É sem dúvida por vingança que habituais a
enamorada Cecília a fazer-lhe pequenas infidelidades. A Marquesa é
uma terrível pessoa! Sim, encanta-me esse modo de ver, e não me
admira que se lhe resista menos que a Danceny.
Enfim, sei tudo o que diz respeito a esse belo herói de romance!
Deixou de ter segredos para mim. Tantas vezes lhe disse que o
amor honesto era o bem supremo, que um sentimento valia mais que
dez intrigas, que eu próprio, nesse momento, era um apaixonado tímido;
mostrei-lhe, enfim, uma forma de pensar tão conforme à dele, que,
encantado com a minha candura, disse-me tudo, e jurou-me uma
amizade sem reservas. No entanto, não estamos mais avançados por
isso com o nosso projeto.
Primeiro, pareceu-me que, segundo o seu sistema, uma menina
merece mais que a poupem do que uma mulher, porque tem mais a
perder.
Acha, sobretudo, que nada pode justificar um homem de pôr
uma rapariga na necessidade de casar com ele ou de viver desonrada,
quando a rapariga é infinitamente mais rica do que o homem, como no
caso em que ele se encontra.
A severidade da mãe, a candura da filha, tudo o intimida e o
detém.
A dificuldade não está em combater os seus raciocínios, por
muito verdadeiros que sejam. Com um pouco de habilidade e ajudado
pela paixão, depressa se conseguirá destruí-los; tanto mais que se
prestam ao ridículo, e que se tem a seu favor a autoridade da
experiência. Mas o que impede que se consiga com ele alguma coisa,
é que ele se considera feliz como está. De fato, se os primeiros amores
parecem, em geral, mais honestos, e, como é costume dizer-se, mais
puros; se pelo menos são mais lentos na sua marcha, não é, como se
pensa, por delicadeza ou timidez, é porque o coração, surpreso ante
um sentimento desconhecido, se suspende por assim dizer a cada
passo, para gozar do encanto que experimenta, e porque esse encanto
tem tanto poder sobre um coração jovem, que o preenche a ponto de
lhe fazer esquecer todo o prazer diferente. Isto é tão verdadeiro, que
um libertino apaixonado, se um libertino o pode ser, desde o momento
em que se apaixona, torna-se menos ávido de gozar; e que, enfim,
entre o comportamento de Danceny com a pequena Volanges, e o
meu com a severa Madame de Tourvel, há apenas a diferença do mais
ou menos.
Seria necessário, para excitar o nosso jovem, maior número de
obstáculos do que os que ele tem encontrado; sobretudo que lhe
tivesse sido preciso rodear-se de mais mistério, pois o mistério conduz à
audácia.
Não ando muito longe de crer que a Marquesa nos prejudicou
ao servi-lo tão bem; a sua manobra teria sido excelente com um
homem usado, que tivesse apenas desejos; mas a minha amiga deveria
ter previsto que para um homem novo, honesto e apaixonado o maior
favor que lhe concedem é fazer dele a prova do amor; e que, por
conseqüência, quanto mais ele está certo de ser amado, menos ativo
será. Que fazer agora? Não sei; mas não creio que a pequena seja
conquistada antes do casamento, e trabalhamos em pura perda. Isto
aborrece-me, mas não lhe vejo remédio.
Enquanto eu uso aqui a minha eloqüência, a Marquesa
emprega melhor o seu tempo com o Cavaleiro. Isso faz-me pensar que
me prometeu uma infidelidade em meu favor, tendo a sua promessa
por escrito, e não quero servir-me dela como de um bilhete de La
Châtrel. Concordo que o vencimento ainda não tenha chegado: mas
seria generoso da sua parte não esperar por ele e por meu lado, pedir-
lhe-ei juros. Que diz a isto, minha bela amiga? Não está fatigada da sua
constância? Esse Cavaleiro é assim tão maravilhoso? Oh! deixe-me
entrar em funções; desejo forçá-la a concordar que, se lhe encontra
algum mérito, é porque me esqueceu.
Adeus, minha bela amiga; beijo-a tal como a desejo; desafio
todos os desejos do Cavaleiro a terem tamanho ardor.

5 de Setembro de 17 * *.

CARTA LVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

Que fiz eu para merecer, senhora, as censuras que me dirigis e a


cólera que me testemunhais? A dedicação mais viva e todavia mais
respeitosa, a submissão mais completa às vossas menores vontades; eis
em duas palavras a história dos meus sentimentos e da minha conduta.
Acabrunhado pelos sofrimentos dum amor infeliz, não tinha eu
outro consolo além de poder ver-vos; haveis-me ordenado que me
privasse dele: obedeci sem me permitir um murmúrio. Como preço
desse sacrifício, haveis-me permitido que vos escrevesse, e hoje
pretendeis tirar-me esse único prazer. Deverei deixá-lo arrebatar-me,
sem tentar defendê-lo? Não, sem dúvida; pois não será caro ao meu
coração sendo o único que me resta, e tendo-o recebido de vós?
As minhas cartas, dizeis, são demasiado freqüentes! Pensai,
peço-vos, que há dez dias que dura o meu exílio, que durante esse
tempo não passei um momento sem me ocupar de vós, e que
entretanto recebestes apenas duas cartas minhas. Nelas só vos falo do
meu amor! Pois que posso eu dizer, senão o que penso?
Tudo o que pude fazer foi moderar-lhe a expressão; e, podeis
crer, não vos deixei ver senão o que me foi impossível esconder-vos.
Ameaçais-me por fim de não voltar a responder-me.
Deste modo, ao homem que vos prefere a tudo, e que vos
respeita mais ainda do que vos ama, não satisfeita de o tratardes com
rigor, quereis ainda juntar a isso o desprezo! Porquê tais ameaças e tal
cólera? Por que necessitais de tais sentimentos?
Não estais segura de ser obedecida, mesmo nas vossas ordens
injustas? Porventura me é possível contrariar qualquer dos vossos
desejos, e não o provei já? Abusareis do domínio que tendes sobre
mim? Depois de me terdes feito desgraçado, e de vos terdes tornado
injusta, ser-vos-á assim tão fácil gozar dessa tranqüilidade que declarais
ser-vos tão necessária? Não vireis a dizer um dia: "deixou-me senhora do
seu destino, e fiz a sua desgraça; implorava os meus socorros, e olhei-o
sem piedade"?
Sabeis até onde pode chegar o meu desespero? Não.
Para calcular a extensão dos meus males, seria preciso saber a
que ponto vos amo, e não conheceis o meu coração.
Sacrificais-me a quê? A quiméricos receios. E quem vo-los
inspira? Um homem que vos adora; um homem sobre quem não
deixareis nunca de exercer domínio absoluto. Que receais, que podeis
recear dum sentimento que sereis sempre senhora de dirigir como vos
aprouver? Mas a vossa imaginação cria monstros, e atribuís ao amor o
horror que eles vos causam.
Um pouco de confiança, e esses fantasmas desaparecerão.
Um sábio disse que quem queira dissipar os seus receios não tem
mais que aprofundar-lhes a causa. É principalmente no amor que esta
verdade encontra a sua aplicação. Amai, e os vossos receios
desvanecer-se-ão. No lugar dos objetos que vos horrorizam,
encontrareis um sentimento delicioso, um amante terno e submisso; e
todos os vossos dias, marcados pela felicidade, não vos deixarão outro
pesar além de terdes perdido alguns na indiferença. Eu próprio, depois
que, distanciado dos meus erros, existo apenas para o amor, lamento
um tempo que supunha ter passado no meio de prazeres; e sinto que só
a vós pertence tornar-me feliz. Mas, suplico-vos, que o prazer que
encontro em escrever-vos não seja perturbado pelo receio e vos
desagradar.
Não quero desobedecer-vos: mas ajoelho-me perante vós, e
reclamo a felicidade que quereis tirar-me, a única que me haveis
deixado; e grito-vos: escutai as minhas súplicas, concedei um olhar às
minhas lágrimas. Ah! senhora, recusar-me-eis tão pouco?

7 de Setembro de 17 * *.
CARTA LIX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me, se sabe, o que significa este desatino de Danceny.


Que foi que aconteceu, e que perdeu ele? A sua bela
aborreceu-se talvez do seu eterno respeito? É preciso ser justo, por
menos qualquer pessoa acabaria por se aborrecer. Que vou eu dizer-
lhe esta noite, no encontro que ele me pediu, e que eu lhe concedi
para ver o que daí resultaria?
Seguramente não perderei o meu tempo a ouvir os seus
lamentos, se isso não nos conduzir a nada.
As queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos
obrigatórios, ou em árias de grande estilo. Diga-me pois de que se trata
e que devo fazer; ou acabo por desertar, a fim de evitar o
aborrecimento que prevejo. Poderei falar com a minha amiga esta
manhã? Se estiver ocupada, pelo menos escreva-me uma palavra, e
forneça-me as deixas do meu papel.
Onde esteve a Marquesa ontem? Não consigo voltar a vê-la.
Na verdade, não me valia a pena ter ficado em Paris no mês de
Setembro. Decida-se, contudo, pois acabo de receber um convite
muito insistente da Condessa de B... para a visitar no campo; e, como
ela me manda dizer de modo bastante agradável, "seu marido possui o
mais belo bosque do mundo, que conserva cuidadosamente para os
prazeres dos seus amigos". Ora, a minha amiga sabe que eu tenho
alguns direitos adquiridos sobre esse bosque; e irei vê-lo de novo se não
lhe posso ser útil.
Adeus; pense que Danceny estará em minha casa pelas quatro
horas.

8 de Setembro de 17* *.

CARTA LX

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE VALMONT

(Inclusa na precedente)

Ah! senhor, estou desesperado, perdi tudo. Não ouso confiar ao


papel o segredo das minhas mágoas: mas tenho necessidade de as
expandir no seio de um amigo fiel e seguro. A que horas poderei vê-lo, e
procurar junto do Visconde consolações e conselhos? Eu era tão feliz no
dia em que lhe abri a minha alma!
Agora, que diferença! Tudo mudou para mim. O que eu sofro
por mim próprio é ainda a menor parte dos meus tormentos; a minha
inquietação sobre um objeto bem mais querido, eis o que não posso
suportar. Mais feliz do que eu, o Visconde pode vê-la, e espero da sua
amizade que não me recusará este favor: mas é preciso que eu lhe fale,
que lhe diga de que se trata. Há de lamentar-me, socorrer-me; só tenho
esperança no meu amigo.
Sei que é sensível, que conhece o amor; e é o único a quem eu
posso confiar-me; não me recuse o seu auxílio.
Adeus, senhor; o único alívio que experimento na minha dor é o
de pensar que me resta um amigo como o Visconde.
Mande-me dizer, peço-lhe, a que horas poderei encontrá-lo. Se
não for esta manhã, desejaria que fosse às primeiras horas da tarde.

8 de Setembro de 17* *.

CARTA LXI

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Minha querida Sofia, lamenta a tua Cecília, a tua pobre Cecília,


que é muito infeliz. A Mamã sabe tudo. Não percebo como pôde ela
desconfiar de alguma coisa, mas a verdade é que descobriu tudo.
Ontem à noite, a Mamã pareceu-me estar de mau humor; mas não dei
ao caso grande atenção; e até, enquanto esperava que ela acabasse
a sua paciência, conversei muito alegremente com Madame de
Merteuil, que tinha ceado conosco, e falamos muito de Danceny. Mas
parece-me que ninguém nos ouviu. Logo que ela se foi embora, retirei-
me para o meu quarto.
Estava a despir-me, quando a Mamã entrou e mandou sair a
minha criada de quarto, pedindo-me em seguida a chave da minha
secretária. O tom com que ela me fez esse pedido causou-me um
tremor tão forte que apenas me podia ter em pé.
Fingi que não a encontrava, mas por fim tive de obedecer. A
primeira gaveta que ela abriu foi precisamente aquela onde estavam
as cartas do Cavaleiro Danceny. Eu estava tão perturbada, que
quando ela me perguntou o que aquilo era, não soube responder-lhe
outra coisa senão que não era nada; mas quando a vi começar a ler a
que estava ao de cima, só tive tempo para ir até uma poltrona, e senti-
me tão mal que perdi o conhecimento.
Logo que voltei a mim, minha mãe, que tinha chamado a criada
de quarto, retirou-se, dizendo-me que me deitasse. Tinha levado todas
as cartas de Danceny. Tremo todas as vezes que penso que é preciso
aparecer diante dela. Toda a noite não fiz outra coisa senão chorar.
Escrevo-te ao romper do dia, na esperança de que Josefina
venha.
Se eu puder falar-lhe sozinha, pedir-lhe-ei que leve a casa de
Madame de Merteuil um bilhetinho que lhe vou escrever; se o não
conseguir, metê-lo-ei na tua carta e tu farás o favor de lho enviar como
sendo teu. É só dela que eu posso receber alguma consolação. Ao
menos, falaremos dele, pois não espero voltar a vê-lo. Sou muito infeliz!
Ela terá talvez a bondade de se encarregar de uma carta para
Danceny. Não ouso confiar-me a Josefina para esse fim, e ainda menos
à minha criada de quarto; pois talvez tenha sido ela quem disse a
minha mãe que eu tinha cartas na minha secretária.
Hei-de escrever-te mais longamente, pois quero ter tempo para
escrever a Madame de Merteuil, e também a Danceny, para ter a
minha carta pronta, se ela quiser encarregar-se de a fazer seguir. Depois
disso, voltarei a deitar-me, para que me encontrem na cama quando
entrarem no meu quarto. Direi que estou doente, para me dispensar de
ir ao pé da Mamã. Não será grande a mentira; com certeza sofro mais
do que se tivesse febre.
Os olhos ardem-me por ter chorado tanto; e tenho um peso no
estômago que me impede de respirar. Quando penso que não voltarei
a ver Danceny, desejaria estar morta. Adeus, minha querida Sofia. Não
posso dizer-te mais nada; as lágrimas sufocam-me.

7 de Setembro de 17* *.
Nota - Suprimiu-se a carta de Cecília Volanges à Marquesa, porque continha apenas
os mesmos fatos da carta precedente, e com menos pormenores. A carta para o
Cavaleiro Danceny não foi encontrada; ver-se-á qual a razão na Carta LXIII, de
Madame de Merteuil ao Visconde.

CARTA LXII

MADAME DE VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Depois de terdes abusado, senhor, da confiança de uma mãe e


da inocência de uma criança, não ficareis surpreendido, por certo, de
não voltar a ser recebido numa casa onde não correspondestes às
provas da amizade mais sincera, senão esquecendo todos os preceitos.
Prefiro pedir-vos que não volteis a minha casa, a dar ordens que nos
comprometeriam a todos igualmente, pelos reparos que os criados não
deixariam de fazer.
Tenho o direito de esperar que não me obrigareis a recorrer a
esse meio.
Previno-vos também de que, se no futuro fizerdes a menor
tentativa para manter a minha filha no desvairamento em que a
lançastes, um recolhimento austero e eterno a subtrairá às vossas
perseguições. A vós compete, senhor, saber se receais tão pouco
causar o seu infortúnio como receastes pouco tentar a sua desonra.
Quanto a mim, a minha escolha está feita, e disso lhe dei
participação.
Encontrareis junto o maço das vossas cartas. Conto que me
devolvereis em troca todas as de minha filha; e que vos prestareis a
apagar qualquer vestígio de um acontecimento de que não
poderemos lembrar-nos, eu sem indignação, ela sem vergonha, e vós
sem remorso. Tenho a honra de ser, etc.

7 de Setembro de 17**.

CARTA LXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Claro que sim, que lhe explicarei o bilhete de Danceny. O


acontecimento que o levou a escrevê-lo é obra minha, e é, creio, a
minha obra-prima. Não perdi o meu tempo depois da sua última carta,
e disse como o arquiteto ateniense: "O que ele disse, eu o farei."
São pois necessários obstáculos a esse belo herói de romance;
que se deixa dormir na felicidade! Oh! que venha ter comigo, eu lhe
darei que fazer; e, ou eu me engano, ou o seu sono tempo, e gabo-me
de que no presente ele lamente o que perdeu.
Era preciso, dizia o Visconde, que ele sentisse a necessidade de
mais mistério; pois bem! Essa necessidade não lhe vai faltar. Eu tenho
isto de bom: é que basta apenas chamarem-me a atenção para os
meus erros; não descanso enquanto não tiver posto tudo certo. Saiba
pois o que eu fiz.
Ao entrar em casa anteontem de manhã, li a sua carta; achei-a
luminosa. Convencida de que o Visconde indicara muito bem a causa
da doença, não me ocupei senão de encontrar maneira de a curar.
Comecei todavia por me deitar; pois o infatigável Cavaleiro não me
tinha deixado dormir um momento e eu julgava ter sono. Mas
enganava-me; toda entregue a Danceny, o desejo de o tirar da sua
indolência, ou de lha castigar, não me permitiu fechar os olhos, e só
depois de ter concertado o meu plano é que pude achar duas horas
de repouso.
Nessa mesma noite fui a casa de Madame de Volanges, e,
conforme o meu projeto, confidenciei-lhe que julgava estar certa de
existir entre a sua filha e Danceny uma ligação perigosa.
Esta mulher, tão clarividente no caso do Visconde, estava cega
a ponto de me ter respondido primeiro que com certeza eu estava
enganada; que sua filha era uma criança, etc. Eu não podia dizer-lhe
tudo quanto sabia a tal respeito; mas citei os olhares, os ditos, que
tinham alarmado a minha virtude e a minha amizade.
Enfim, falei quase tão bem como o poderia fazer uma devota, e,
para vibrar o golpe de misericórdia, cheguei a dizer que supunha ter
visto entregar e receber uma carta. "Isto faz-me recordar", acrescentei
"que um dia ela abriu diante de mim uma gaveta da secretária, na qual
vi muitos papéis, que com certeza ela conserva. Conheceis-lhe alguma
correspondência freqüente?".
Aqui o rosto de Madame de Volanges mudou, e vi algumas
lágrimas nos seus olhos. "Agradeço-vos, minha digna amiga", disse ela,
apertando-me a mão;" eu porei tudo isso a limpo".
Depois desta conversa, demasiado curta para se tornar suspeita,
aproximei-me da pequena. Deixei-a pouco depois, para pedir à mãe
que não me comprometesse junto da filha, o que ela me prometeu de
bom grado, tanto mais que lhe observei quanta vantagem haveria em
que essa criança tivesse bastante confiança em mim para me abrir o
seu coração e me pôr ao alcance de lhe dar os meus prudentes
conselhos. O que me dá a certeza de que ela cumprirá a sua promessa
é que não tenho dúvidas de que ela considere um ponto de honra
exercer a sua penetração junto da filha. Encontrava-me, por esse lado,
autorizada a conservar o meu tom de amizade com a pequena, sem
parecer falsa aos olhos de Madame de Volanges, o que desejava
evitar. Tive ainda a vantagem de continuar por muito tempo e tão
secretamente como eu desejava junto da rapariguinha, sem que a
mãe tivesse qualquer suspeita.
Aproveitei aquele mesmo serão; e depois de terminar a minha
paciência, arrastei a petiza para um canto, e levei-a a falar de
Danceny, assunto em que ela é inesgotável. Diverti-me a dar-lhe volta à
cabeça sobre o prazer que ela teria em vê-lo no dia seguinte; não
houve loucura que eu não a obrigasse a dizer.
Era preciso dar-lhe em esperanças o que lhe tirava em
realidade; além disso, tudo isso a tornaria mais sensível ao golpe, e estou
convencida de que quanto mais ela sofrer, mais ansiosa ficará de na
primeira ocasião tirar a desforra. É bom, aliás, habituar aos grandes
acontecimentos as pessoas que se destinam às grandes aventuras.
No fim de contas, não é justo que ela pague com algumas
lágrimas o prazer de possuir o seu Danceny? Está doida por ele!
Pois bem, prometo-lhe que o há de ter, e até mais cedo do que
o conseguiria sem este contratempo. É um sonho mau cujo despertar
será delicioso; e, bem feitas as contas, parece-me que ela me deve
estar reconhecida. De fato, mesmo que eu tenha posto no caso um
pouco de malícia, é preciso divertirmo-nos.
Retirei-me por fim, muito satisfeita de mim própria. "Ou Danceny",
dizia eu comigo, excitado pelos obstáculos, vai redobrar de amor, e
então servi-lo-ei em tudo o que possa; ou, se não passa de um tolo,
como algumas vezes sou tentada a crer, ficará desesperado e
considerar-se-á vencido; ora, neste caso, pelo menos ter-me-ei vingado
dele, na medida em que o posso fazer; ao mesmo tempo terei
aumentado para mim a estima da mãe, a amizade da filha e a
confiança de ambas.
Quanto a Gercourt, primeiro objeto dos meus cuidados, muito
infeliz seria eu, ou muito inábil, se, dominando o espírito de sua mulher, o
que acontece já, e nesse sentido mais conseguirei ainda, eu não
encontrar mil maneiras de fazer dela o que eu quiser que ela seja".
Deitei-me acalentando estas doces idéias; o que me permitiu
dormir, e despertar muito tarde.
Ao acordar, encontrei dois bilhetes, um da mãe, outro da filha; e
não pude impedir-me de rir, encontrando em ambos literalmente a
mesma frase: É apenas de vós que espero alguma consolação. Não é
engraçado, de fato, consolar contra e a favor, e ser o único agente de
dois interesses diretamente contrários?
Eis-me como a divindade: recebendo os votos opostos dos
cegos mortais e não mudando nada aos meus decretos imutáveis.
Abandonei todavia esse augusto papel, para tomar o de anjo
consolador; e, segundo os preceitos, fui visitar os meus amigos na sua
aflição.
Comecei pela mãe; encontrei-a numa tristeza que já em parte
vinga o Visconde das contrariedades que ela lhe fez sofrer por parte da
sua bela hipócrita. Tudo correu à maravilha. A minha única inquietação
era que Madame de Volanges não aproveitasse esse momento para
conseguir a confiança de sua filha; o que teria sido muito fácil, desde
que empregasse junto dela a linguagem da doçura e da amizade, e
dando conselhos cheios de razão, com o ar e o tom da ternura
indulgente. Por felicidade, armou-se de severidade; enfim, portou-se tão
mal, que só tive ocasião de aplaudir. É certo que esteve para deitar por
terra todos os nossos projetos, pensando em fazer voltar a filha para o
convento; mas eu aparei o golpe; e consegui que apenas fizesse a
ameaça, no caso em que Danceny continuasse a importuná-las, a fim
de obrigar as duas a uma moderação que julgo necessária para o
êxito.
Em seguida estive com a filha. O Visconde não pode imaginar
como a dor a embeleza! Mesmo que venha a usar pouco de
coqueteria, garanto-lhe que há de chorar muitas vezes; por esta vez,
chorava sem malícia...
Surpreendida por aquele motivo de agrado que eu não lhe
conhecia, e que me sentia feliz de observar, só lhe dei a princípio
consolações ineptas, que aumentam mais as mágoas do que as
aliviam; e, por este meio, levei-a a ponto de estar verdadeiramente
sufocada. Deixou de chorar, e por um momento temi as convulsões.
Aconselhei-a a deitar-se, o que ela fez; servi-lhe de criada de quarto.
Não se tinha vestido, e em breve os cabelos esparsos lhe caíam sobre os
ombros e o pescoço inteiramente descobertos. Abracei-a; ela deixou-se
embalar nos meus braços, e as lágrimas recomeçaram a cair-lhe sem
esforço. Deus! como ela estava bela!
Ah! se Madalena era assim, deve ter sido bem mais perigosa
penitente que pecadora.
Quando a bela desolada se deitou, pus-me a consolá-la de boa
fé.
Tranquilizei-a primeiro sobre os receios do convento.
Fiz nascer nela a esperança de ver Danceny secretamente. "Se
ele estivesse aqui...", disse-lhe eu, sentando-me na cama; depois,
fantasiando sobre esse tema, levei-a, de distração em distração, a
esquecer-se de que estava aflita. Ter-nos-íamos separado
perfeitamente satisfeitas uma com a outra se ela não tivesse querido
encarregar-me de uma carta para Danceny, o que eu recusei
firmemente. Aprovará com certeza os motivos, que passo a expor.
Primeiro, seria comprometer-me junto de Danceny; e, se foi esta
a única razão de que pude servir-me junto da pequena, havia muitas
outras que nos dizem respeito. Não seria arriscar o fruto do meu trabalho
dar tão depressa aos nossos jovens um meio tão fácil de suavizar as suas
mágoas? E depois, não me descontenta obrigá-los a meterem alguns
criados nesta aventura; porque, enfim, se ela for levada a bom fim,
como espero, é preciso que seja conhecida imediatamente depois do
casamento; e poucos meios mais seguros do que esses existem para
que todos o venham a saber.
Mas se, por milagre, os criados não falassem, falaríamos nós, e
sempre é mais cômodo que as inconfidências fiquem a cargo deles.
É necessário pois que o Visconde dê hoje essa idéia a Danceny;
e como não estou segura da criada de quarto da pequena Volanges,
de quem ela própria parece desconfiar, indique-lhe a minha fiel Vitória.
Tomarei precauções para que esta diligência seja coroada de bom
êxito. Esta idéia agrada-me tanto mais, quanto a confidência só nos
será útil a nós, e nunca a eles; não cheguei ainda ao fim da minha
narração.
Enquanto eu me furtava a encarregar-me da carta da pequena,
temia a todo o momento que ela me propusesse pô-la no correio, o que
eu não poderia recusar. Felizmente, ou por estar muito perturbada, ou
por ignorância da sua parte, ou ainda porque desse menos importância
à carta que à resposta, a qual ela não poderia ter por esse meio, o
certo é que não me falou em tal; mas para evitar que lhe viesse
semelhante idéia, ou pelo menos que pudesse servir-se dela, tomei
imediatamente o meu partido; e voltando a falar à mãe, decidi-a a
afastar a filha por algum tempo, a mandá-la para o campo... E para
onde? Não lhe bate de alegria o coração, Visconde?... Para casa de
sua tia, a velha Rosemonde. Hoje mesmo Madame de Volanges
escreverá nesse sentido: assim, eis o Visconde autorizado a voltar a ver
a sua devota, que já não terá a objetar o escândalo do convívio a sós,
e, graças aos meus cuidados, Madame de Volanges terá ocasião de
reparar o agravo que lhe fez.
Mas ouça-me, e não se ocupe tão vivamente dos seus assuntos
que acabe por perder este de vista; pense que ele me interessa.
Desejo que o Visconde se torne o correspondente e o
conselheiro dos dois jovens. Comunique pois a Danceny esta viagem, e
ofereça-lhe os seus serviços. Que a sua única dificuldade seja a de fazer
chegar às mãos da bela a sua credencial; e suprima esse obstáculo
imediatamente, indicando-lhe a minha criada de quarto como
intermediária. Não tenho qualquer dúvida de que ele aceite; e como
prémio das suas canseiras, terá o Visconde as confidências de um
coração jovem, o que é sempre interessante.
Pobre pequena! Como ela há de corar ao entregar-lhe a sua
primeira carta! Na verdade, este papel de confidente, contra o qual se
erguem preconceitos, parece-me um lindo passatempo quando se tem
outras ocupações; e será este o seu caso.
Depende agora dos seus cuidados o desfecho desta intriga.
O campo oferece mil ocasiões; e Danceny, com toda a certeza,
estará pronto a seguir logo que o Visconde lhe faça o primeiro sinal.
Uma noite, um disfarce, uma janela..., que sei eu? Mas, enfim, se a
rapariguinha continuar na mesma, ao Visconde pedirei contas. Se
achar que ela precisa que eu a encoraje, mande-mo dizer. Creio ter-lhe
dado uma boa lição sobre o perigo de guardar cartas, para ousar
escrever-lhe agora; e continuo com a intenção de fazer dela minha
discípula.
Parece-me ter esquecido dizer-lhe que as suspeitas da pequena
no que respeita à denúncia da correspondência caíram primeiro sobre
a criada de quarto, e eu desviei-as para o confessor.
Chama-se a isto matar dois coelhos de uma cajadada.
Adeus, Visconde; estou há muito tempo a escrever-lhe e atrasei-
me para o jantar; mas o amor-próprio e a amizade ditaram esta carta, e
ambos são tagarelas. O que é preciso é que a carta esteja em sua casa
às três horas.
Agora queixe-se de mim, se se atrever, e volte a ver, se lhe
apetece, o bosque do Conde de B... Diz o Visconde que ele o guarda
para prazer dos seus amigos! Esse homem é então amigo de toda a
gente? Mas adeus, tenho fome.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE VOLANGES

(minuta junta à Carta LXVI, do Visconde à Marquesa)

Sem procurar justificar a minha conduta, senhora, e sem me


queixar da vossa, só me resta afligir-me por um acontecimento que faz
a infelicidade de três pessoas, todas dignas de um destino mais feliz.
Mais sensível ainda à tristeza de lhe ter sido a causa do que à de ter sido
a vítima, tentei muitas vezes, desde ontem, ter a honra de vos
responder, sem poder encontrar forças para tal. Tenho, no entanto,
tantas coisas a dizer-vos, que me é necessário fazer um grande esforço
sobre mim próprio; e se esta carta for um tanto desordenada, devereis
sentir quanto a minha situação é dolorosa, para me concederdes
alguma indulgência.
Permiti-me primeiro que proteste contra a primeira frase da vossa
carta. Eu não abusei; ouso dizê-lo, nem da vossa confiança nem da
inocência de Mademoiselle de Volanges; respeitei uma e outra nas
minhas ações. Só elas dependem de mim; e quando me tornásseis
responsável por um sentimento involuntário, não recearia acrescentar
que o que me foi inspirado por vossa filha pode desagradar-vos, mas
nunca ofender-vos.
Sobre este assunto, que me interessa mais do que eu posso dizer-
vos, só a vós, senhora, desejo por juiz, e às minhas cartas por
testemunhas.
Proibis-me de me apresentar de futuro em vossa casa, e sem
dúvida terei de sujeitar-me a tudo o que vos aprouver ordenar a este
respeito: mas esta ausência súbita e total não dará lugar aos murmúrios
que quereis evitar, tanto como a ordem que, pelo mesmo motivo, não
quiseste dar aos vossos criados? Insistirei tanto mais sobre este ponto,
quanto é certo que ele é mais importante para Mademoiselle de
Volanges do que para mim.
Suplico-vos pois que peseis atentamente todas as razões, de
modo a não permitir que a vossa severidade altere a vossa prudência.
Persuadido de que só o interesse de vossa filha ditará as vossas
resoluções, aguardarei novas ordens da vossa parte.
Entretanto, no caso em que me permitísseis freqüentar a vossa
casa algumas vezes, comprometo-me (e podeis contar com o
cumprimento da minha promessa) a não abusar dessas ocasiões para
tentar falar em particular com Mademoiselle de Volanges, ou entregar-
lhe qualquer carta.
O receio de pôr em perigo a sua reputação leva-me a este
sacrifício; e a felicidade de a ver algumas vezes me compensará.
É esta a única resposta que posso dar ao que me dizeis sobre a
sorte que destinais a Mademoiselle de Volanges, e que quereis tornar
dependente da minha conduta. Prometer-vos mais seria enganar-vos.
Um vil sedutor pode adaptar os seus projetos às circunstâncias e
calcular segundo os acontecimentos; mas o amor que me anima
permite-me apenas dois sentimentos: a coragem e a constância.
Eu, consentir em ser esquecido por Mademoiselle de Volanges,
ou esquecê-la eu mesmo? Não, nunca! Ser-lhe-ei fiel; ela recebeu o
juramento, e eu renovo-o agora. Perdão, minha senhora, eu desvairo,
tentarei reagir.
Resta-me outro assunto a tratar convosco: o das cartas que me
pedistes. Fico verdadeiramente penalizado por ter de acrescentar uma
recusa aos agravos que tendes de mim; mas suplico-vos, atendei as
minhas razões, e dignai-vos lembrar-vos, para as apreciardes, que a
única consolação para a desgraça de ter perdido a vossa amizade é a
esperança de conservar a vossa estima.
As cartas de Mademoiselle de Volanges, sempre tão preciosas
para mim, muito mais preciosas se tornaram neste momento.
São o único bem que me resta; só essas cartas me recordam
ainda um sentimento que constitui todo o encanto da minha vida.
Entretanto, podeis crer-me, não hesitaria um instante em fazer-vos esse
sacrifício; e o pesar de ser privado delas cederia ao desejo de vos
provar a minha deferência respeitosa; mas considerações poderosas
me tolhem o impulso, e estou certo de que vós mesma não podereis
censurá-las.
É certo que entrastes na posse do segredo de Mademoiselle de
Volanges; mas, permiti que vos diga, estou autorizado a crer que foi o
efeito da surpresa e não da confiança. Não pretendo censurar-vos um
ato que a solicitude materna talvez autorize.
Respeito os vossos direitos, mas não ao ponto de me dispensar
dos meus deveres. O mais sagrado de todos é o de nunca trair a
confiança que alguém nos concede. Seria faltar a ela expor aos olhos
de outrem os segredos de um coração que desejou confiá-los só aos
meus. Se vossa filha consente em vo-los confiar, a ela compete falar; as
suas cartas ser-vos-iam inúteis. Se, pelo contrário, ela quer encerrar o seu
segredo em si própria, não esperareis, por certo, que seja eu quem vos
instrua a tal respeito.
Quanto ao mistério no qual desejais que este acontecimento
fique sepulto, podeis ficar tranqüila, minha senhora; sobre tudo o que
interessa Mademoiselle de Volanges, posso desafiar mesmo o coração
de uma mãe.
Para vos tirar todo o motivo de inquietação, previ tudo. O
precioso depósito, que até aqui tinha inscrito: papéis para queimar, tem
agora: papéis pertencentes a Madame de Volanges. Esta resolução
que tomei deve provar-vos assim que a minha recusa não se baseia no
receio de que encontreis nessas cartas um único sentimento de que
pessoalmente tenhais de queixar-vos.
Eis, minha senhora, uma bem longa carta. Não o seria ainda
bastante se vos deixasse a menor dúvida sobre a honestidade dos meus
sentimentos, do pesar muito sincero de vos ter desagradado, e do
profundo respeito com que tenha a honra de ser, etc.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXV

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Enviada aberta à Marquesa de Merteuil na Carta LXVI do Visconde)

Ó minha Cecília, que vai ser de nós? Que Deus nos salvará das
desgraças que nos ameaçam? Ao menos, que o amor nos dê coragem
para as suportar! Como descrever-lhe o meu espanto, o meu desespero
à vista das minhas cartas, ante a leitura do bilhete de Madame de
Volanges?
Quem nos terá traído? Sobre quem recaem as suas suspeitas?
Teria a Cecília cometido alguma imprudência? Que faz agora? Que lhe
têm dito?
Tanto eu desejava saber tudo, e tudo ignoro. Talvez mesmo a
Cecília não saiba mais do que eu.
Envio-lhe o bilhete da sua Mamã, e a cópia da minha resposta.
Espero que aprovará o que eu lhe disse. Preciso muito que
aprove também as diligências que fiz desde aquele fatal
acontecimento, pois que todas têm por fim conseguir notícias suas e
dar-lhe as minhas; e, quem sabe?, talvez voltar a vê-la, e com maior
liberdade do que nunca. Põe na sua idéia, minha Cecília, que prazer
seria voltarmos a encontrar-nos, podermos jurar-nos de novo um amor
eterno, e ver nos nossos olhos, sentir nas nossas almas que esse
juramento não será desmentido? Um momento tão doce, que mágoas
não fará esquecer? Pois bem!
Tenho esperança de que tal momento surja, e devo-a a essas
mesmas diligências para que suplico a sua aprovação. Que digo; eu?
Devo essa esperança aos consoladores cuidados do mais; terno dos
amigos; e o único pedido que lhe faço é que permita; que esse amigo
seja também o seu.
Talvez eu não devesse confiar tanto sem o seu consentimento;
mas tenho por desculpa a má sorte e a necessidade. Foi o amor que
me conduziu*; é ele que reclama a sua indulgência, que lhe pede que
perdoe uma confidência necessária, e sem a qual ficaríamos talvez
separados para sempre. Conhece o amigo de que lhe falo; é-o
também da mulher de quem a Cecília tanto gosta. É o Visconde de
Valmont. O meu projeto, ao dirigir-me a ele, era primeiro o de lhe pedir
que conseguisse de Madame de Merteuil encarregar-se de uma carta
para a Cecília. Não julgou ele que esse meio fosse bem sucedido mas,
na falta da Marquesa, responde pela sua criada de quarto, que lhe
deve obrigações. Será ela quem lhe entregará esta carta e a Cecília
poderá dar-lhe a resposta.
Este auxílio não nos será de qualquer utilidade, se, como supõe o
Visconde, a Cecília partir em breve para o campo. Mas nesse caso ele
próprio deseja servir-nos. A dona da casa é parente dele, que
aproveitará esse pretexto para a visitar ao mesmo tempo. E será por seu
intermédio que poderemos trocar a nossa correspondência. Deu-me
mesmo a certeza de que, se a Cecília o consentir, ele conseguirá
arranjar maneira de nos vermos sem o perigo de se comprometer.
Agora, minha Cecília; se tem amor por mim, se lamenta a minha
má sorte, se, como espero, toma parte nas minhas mágoas, recusará a
sua confiança a um homem que será o nosso anjo tutelar? Sem ele,
ficarei reduzido ao desespero de nem mesmo poder suavizar as tristezas
que lhe causei. Elas terão fim, espero-o; mas, minha terna amiga,
prometa-me que não se entregará demasiado a tais tristezas, que não
se deixará vencer por elas.
A idéia da sua dor é para mim um tormento insuportável. Daria a
minha vida para a fazer feliz! Bem o sabe. Possa a certeza de ser
adorada levar alguma consolação à sua alma! A minha tem
necessidade da certeza de que perdoa ao meu amor os males que a
obriga a sofrer.
Adeus, minha Cecília, adeus minha terna amiga.

9 de Setembro de 17 * *.
*O Cavaleiro Danceny não fala verdade. Tinha já feito essa confidência ao senhor de
Valmont antes desse acontecimento. Ver Carta LVII.

CARTA LXVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Lendo as duas cartas que junto, a minha bela amiga verá se me


desempenhei bem ou mal da missão de que me encarregou.
Embora ambas sejam datadas de hoje, foram escritas ontem,
em minha casa, e debaixo dos meus olhos. A carta para a pequena diz
tudo o que nós desejávamos. Perante a profundeza dos planos da
minha boa amiga, e a julgar pelo êxito dos seus empreendimentos, não
posso senão humilhar-me. Danceny está em brasa; e, seguramente, na
primeira ocasião deixará de ser digno das censuras que lhe tem dirigido.
Se a bela ingênua quiser ser dócil; tudo estará terminado pouco tempo
depois da sua chegada; tenho cem maneiras preparadas. Graças aos
cuidados da Marquesa, eis-me decididamente o amigo de Danceny; a
ele, não lhe falta mais senão ser Príncipe.
É ainda muito novo, esse Danceny! Acredite, minha amiga, que
não consegui obter dele que prometesse à mãe a renúncia ao amor
pela filha; como se fosse muito difícil prometer, quando se está decidido
a não cumprir!
Seria enganar - repetia-me ele continuamente.
Não é verdade que é um escrúpulo edificante, principalmente
quando se trata de seduzir a pequena? E são assim os homens! Todos
igualmente celerados nos seus projetos, quando fraquejam na
execução, chamam a isso probidade.
Pertence à minha amiga impedir que Madame de Volanges se
enfureça pelas pequenas liberdades que o nosso jovem se permite na
sua carta; livre-nos do convento; e consiga também que a senhora
desista do pedido das cartas da pequena. Em primeiro lugar, ele não as
entregará, e nisso sou da mesma opinião; neste ponto o amor e a razão
estão de acordo.
Li todas essas cartas, devorei o tédio que elas destilam. Podem
vir a ser úteis. Eu me explico.
Apesar da prudência de que usaremos, pode acontecer o
imprevisto; isso faria que o casamento falhasse, e todos os nossos
projetos concernentes a Gercourt cairiam por terra, não é assim? Mas
como, por meu lado, tenho de me vingar da mãe, reservo-me o direito
de desonrar a filha. Fazendo uma escolha habilidosa nessa
correspondência e dando a público apenas uma parte, a pequena
Volanges ficaria suspeita de ter dado os primeiros passos e ter-se
absolutamente atirado de cabeça. Algumas dessas cartas poderiam
mesmo comprometer a mãe e deixá-la-iam maculada pelo menos de
uma imperdoável negligência.
Sei bem que o escrupuloso Danceny se sentiria revoltado às
primeiras impressões; mas como seria atacado pessoalmente, creio que
acabaria por se recuperar. Existem mil probabilidades contra uma de
que as coisas não sigam este caminho; mas é preciso prever tudo.
Adeus, minha bela amiga; seria muito amável se aceitasse o
convite da Marechala de... para cear amanhã em sua casa; por mim,
não pude recusar.
Julgo não ser necessário recomendar-lhe segredo, em relação a
Madame de Volanges, no que respeita ao meu projeto de férias no
campo; ela teria o cuidado de ficar na cidade. Assim, uma vez que nos
encontraremos, com certeza não partirá no dia seguinte. E se ela nos
der somente oito dias, respondo por tudo.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXVII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Não desejaria responder-vos, senhor, e talvez o embaraço que


sinto neste momento seja uma prova de que não o deveria fazer.
Entretanto, não quero deixar-vos um único motivo de queixa contra
mim. Desejo convencer-vos de que fiz por vós tudo quanto poderia
fazer.
Dizeis que vos permiti que me escrevêsseis? Convenho; mas
quando me lembrais essa permissão, julgais que me esqueci das
condições em que ela foi dada? Se eu tivesse sido tão fiel a tal
concessão quando vos afastastes dela, teríeis recebido uma única
resposta minha? No entanto, esta já é a terceira; e enquanto fazeis tudo
o que é preciso para me obrigardes a terminar esta correspondência,
sou eu que me ocupo dos meios de a continuar.
Existe um, mas é o único; e se recusais aceitá-lo, seja o que for
que digais, será provar-me o pouco apreço que lhe dais.
Deixai pois uma linguagem que não posso nem quero ouvir;
renunciai a um sentimento que me ofende e me horroriza, e ao qual
talvez vos sentísseis menos ligado se pensásseis no obstáculo que nos
separa. Será esse o único sentimento que possais conhecer, e o amor
terá a meus olhos mais esse defeito de excluir a amizade? Tereis, vós
próprio, a maldade de não querer por amiga aquela em quem desejais
sentimentos mais ternos?
Não quero acreditá-lo; essa idéia humilhante revoltar-me-ia, e
afastar-me-ia de vós sem remédio.
Oferecendo-vos a minha amizade, senhor, dou-vos tudo o que
me pertence, tudo aquilo de que posso dispor. Que podereis querer
mais? Para me entregar a esse sentimento tão doce, tão à medida do
meu coração, espero apenas o vosso acordo, e a palavra que de vós
exijo, de que essa amizade bastará para vos fazer feliz. Esquecerei tudo
o que pudestes dizer-me; deixar-vos-ei o cuidado de justificar a minha
escolha.
Vedes a minha fraqueza; ela deve provar-vos a minha
confiança.
Depende de vós aumentá-la; mas previno-vos de que a primeira
palavra de amor a destruirá para sempre, ressuscitando todos os meus
receios; que marcará para mim o início de um silêncio eterno para
convosco.
Se, como dizeis, estais distanciado dos vossos erros, não achais
preferível ser objeto da amizade de uma mulher honesta, que causador
dos remorsos de uma mulher culpada?
Adeus, senhor; deveis sentir que, depois de ter falado assim,
nada posso dizer-vos a que não me tenhais já respondido.

9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Como responder, senhora, à vossa última carta? Como ousarei


ser verdadeiro, quando a minha sinceridade pode perder-me a vossos
olhos?
Não importa, é necessário; terei essa coragem.
A mim próprio digo e repito que vale mais merecer-vos do que
obter-vos; e, embora me recuseis uma felicidade que desejarei
incessantemente, é preciso ao menos provar-vos que o meu coração é
digno dela.
Que pena que, como dizeis, eu esteja distanciado dos meus
erros!
Com que transportes de alegria eu teria lido essa mesma carta à
qual tremo hoje de responder! Falais-me nela com franqueza,
testemunhais-me confiança, ofereceis-me por fim a vossa amizade:
tantas ofertas, senhora, e que pesar eu tenho de não poder aproveitar
delas! Por que não continuo eu a ser o mesmo?
Se de fato o fosse, se sentisse por vós apenas uma afeição
vulgar, aquela afeição ligeira, filha da sedução e do prazer, à qual, no
entanto, se dá hoje o nome de amor, apressar-me-ia a tirar vantagem
de tudo o que pudesse obter. Pouco delicado sobre os meios, contanto
que eles me garantissem o êxito, daria ânimo à vossa franqueza pela
necessidade de vos adivinhar; desejaria a vossa confiança com o fim
de a trair; aceitaria a vossa amizade, na esperança de a
desencaminhar... Pois quê, senhora! horroriza-vos este quadro?... No
entanto, seria essa a minha obra se vos dissesse que consinto em ser
apenas vosso amigo...
Pois consentiria eu partilhar com alguém um sentimento
emanado da vossa alma? Se alguma vez eu o disser, não o acrediteis.
Desde esse momento procuraria enganar-vos; poderia desejar-
vos ainda, mas seguramente já não vos amaria.
Não é o caso que a amável franqueza, a doce confiança, a
sensível amizade não tenham a meus olhos certo valor... Mas o amor! o
amor verdadeiro, e tal como vós o inspirais, reunindo todos esses
sentimentos, dando-lhes maior energia, não poderia prestar-se, como
eles, a essa tranqüilidade, a essa frieza da alma, que permite
comparações, que suporta mesmo preferências.
Não, minha senhora, não serei vosso amigo; amar-vos-ei com o
amor mais terno, e mesmo o mais ardente, embora o mais respeitoso.
Podereis tirar-lhe toda a esperança, mas não aniquilá-lo.
Com que direito pretendeis dispor de um coração de que
recusais as homenagens? Por que requinte de crueldade me disputais
até a felicidade de vos amar? Essa felicidade pertence-me, é
independente de vós; saberei defendê-la. Se é ela a fonte dos meus
males, é-lhes também o remédio.
Não, ainda uma vez, não. Podeis persistir nas vossas cruéis
recusas; mas deixai-me o meu amor. Comprazeis-vos em tornar-me
infeliz! Está bem; seja! Experimentai cansar a minha coragem; saberei
forçar-vos ao menos a decidir a minha sorte. E talvez um dia me façais
maior justiça. Não é que eu espere tornar-vos alguma vez sensível; mas
sem serdes persuadida, ficareis convencida, e direis a vós mesma:
"Tinha-o julgado mal."
Dizendo melhor, a vossa injustiça recai sobre vós. Conhecer-vos
sem vos amar, amar-vos sem ser constante, eis duas coisas igualmente
impossíveis; e apesar da modéstia que é vosso timbre, deve ser-vos mais
fácil queixar-vos do que admirar-vos dos sentimentos que fazeis nascer.
Por mim, cujo único mérito é o ter sabido apreciar-vos, esse não quero
perdê-lo; e longe de consentir nas vossas traiçoeiras ofertas renovo a
vossos pés o juramento de vos amar sempre.

10 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Bilhete escrito a lápis e copiado por Danceny)


Pergunta-me o que faço; amo-o e choro. Minha mãe não me
fala; tirou-me papel, penas e tinta; sirvo-me dum lápis, que por
felicidade me ficou, e escrevo-lhe num bocado de papel da sua carta.
É-me forçoso aprovar tudo o que fez; amo-o demasiado para não
aproveitar todos os meios de receber as suas notícias e dar-lhe as
minhas. Eu não gostava do senhor Valmont, e não supunha que ele
fosse tão seu amigo; tentarei habituar-me a ele, e a gostar dele por sua
causa. Não sei quem foi que nos traiu.
Não pode ter sido senão a minha criada de quarto ou o meu
confessor. Sou muito infeliz. Partimos amanhã para o campo; não sei por
quanto tempo. Meu Deus! Não mais o ver! Não haverá meio de o
conseguir.
Adeus; tente ler este bilhete. Estas palavras escritas a lápis virão
talvez a apagar-se, mas nunca os sentimentos agravados no meu
coração.

10 de Setembro de 17* *.

CARTA LXX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tenho uma revelação importante a fazer-lhe, minha querida


amiga.
Ontem, ceava eu, como sabe, em casa da Marechala de...,
quando se falou da minha amiga, e aproveitei para dizer a seu respeito
não todo o bem que penso, mas todo aquele que não penso. Toda a
gente parecia ser da minha opinião, e a conversa ia afrouxando, como
acontece sempre que se diz apenas bem do próximo, quando se
ergueu a voz de um contraditor: era Prévan.
"Deus me defenda", disse ele levantando-se, "de duvidar da
seriedade de Madame de Merteuil! Mas ousaria crer que ela a deve
mais à sua ligeireza do que aos seus princípios. É talvez mais difícil segui-
la que agradar-lhe; e como, quando se corre atrás de uma mulher,
acontece sempre aparecerem outras no caminho, como, em suma, as
outras podem valer tanto ou mais do que ela; uns são distraídos por um
gesto novo, outros desistem por cansaço; por isso ela é talvez a mulher
de Paris que menos tenha tido de se defender. Por mim", acrescentou
ele (encorajado pelo sorriso de algumas mulheres), "não acreditarei na
virtude de Madame de Merteuil senão depois de ter rebentado seis
cavalos a fazer-lhe a minha corte".
Este mau gracejo caiu bem, como todos os que se baseiam na
maledicência; e, enquanto duravam os risos que ele excitou, Prévan
retomou o seu lugar e a conversação geral mudou de rumo. Mas as
duas Condessas de B..., junto das quais estava o nosso incrédulo,
tiveram com ele uma conversa particular, que felizmente estava ao
alcance do meu ouvido.
Prévan garantiu que despertaria a sua sensibilidade, minha boa
amiga, e o desafio foi aceito, com a sua palavra de contar tudo; e de
todas as palavras que viriam a dar-se nessa aventura, essa seria
seguramente a mais religiosamente guardada. Mas agora está
prevenida, e conhece o provérbio.
Resta-me dizer-lhe que esse Prévan, que a Marquesa não
conhece, é infinitamente amável, e ainda mais habilidoso. Se alguma
vez me ouvir dizer o contrário, foi simplesmente porque não gosto dele,
porque me apraz diminuir os seus êxitos e por que não ignoro o peso da
minha opinião junto de trinta, pelo menos, das mulheres da moda.
De fato, manifestando-me de tal modo, impedi-o por muito
tempo de fazer figura no que chamamos os grandes meios; podia fazer
prodígios: nem por isso aumentava a sua reputação.
Mas o ruído da sua tríplice aventura, chamando as atenções
sobre ele, deu-lhe aquela confiança que até então lhe faltava e tornou-
o verdadeiramente temível. Enfim, é hoje, talvez, o único homem que
eu recearia encontrar no meu caminho; à parte o interesse que a minha
amiga nisso possa ter, prestar-me-ia um verdadeiro serviço se o
expusesse, de passagem, a qualquer ridículo.
Deixo-o em boas mãos; e tenho a esperança de que no meu
regresso será um homem liquidado.
Prometo-lhe, em troca, levar a bom fim a aventura da sua pupila
e ocupar-me dela tanto como da minha bela e virtuosa Presidente.
Esta acaba de me enviar um projeto de capitulação. Toda a sua
carta anuncia o desejo de ser enganada. É impossível oferecer um
meio mais cômodo e também mais usado. Quer que eu seja seu amigo.
Mas eu, que gosto dos processos novos e difíceis, não quero possuí-la
por tão baixo preço; e seguramente não me obrigaria a tanto trabalho
com ela para terminar por uma vulgar sedução.
O meu projeto, pelo contrário, é que ela sinta bem
profundamente o valor e a extensão de cada um dos sacrifícios que
virá a fazer por mim; não a conduzirei tão rapidamente que não possa
ser seguida pelo remorso; fazer expirar a sua virtude numa lenta agonia;
obrigá-la a ter sempre presente esse desolador espetáculo; e não lhe
conceder a felicidade de me apertar nos seus braços senão depois de
a ter forçado a não dissimular o desejo. Na verdade, valho muito pouco
se não valho o esforço de ser solicitado. E poderei desejar menor
vingança de uma mulher altiva, que parece envergonhar-se de
confessar a sua adoração?
Recusei pois a preciosa amizade e fixei-me firmemente no meu
título de amante. Como não me iludo sobre esse título que, parecendo
à primeira vista uma disputa de palavras, é todavia de uma
importância real a obter, pus todos os cuidados na minha carta, e tratei
de introduzir nela aquela desordem que constitui o único meio de
descrever os sentimentos. Fui, enfim, tão pouco razoável quanto me foi
possível; pois sem ausência de raciocínio não há ternura; e creio que é
por esta razão que as mulheres nos são a tal ponto superiores nas cartas
de amor.
Terminei a minha carta por um galanteio, e fi-lo ainda em
resultado das minhas profundas observações. Quando o coração de
uma mulher é posto à prova durante algum tempo, tem necessidade
de repouso; e tenho observado que um galanteio constitui, para todas,
o travesseiro mais macio que lhes podemos oferecer.
Adeus, minha bela amiga. Parto amanhã. Se tiver ordens a dar-
me pela Condessa de..., farei paragem em casa dela, pelo menos para
jantar.
Aborrece-me ter de partir sem a ver. Dê-me parte das suas
sublimes instruções e ajude-me com os seus sábios conselhos, neste
momento decisivo. Sobretudo, defenda-se de Prévan; e possa eu um
dia recompensá-la por esse sacrifício!
Adeus.

11 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

O pateta do meu criado deixou a minha pasta em Paris! As


cartas da minha bela, as de Danceny para a pequena Volanges, tudo
lá ficou, e tenho precisão de tudo. Tive de o mandar regressar, para
reparar a sua tolice; e enquanto ele sela o cavalo, vou contar-lhe a
minha história desta noite: pois decerto não vai supor que perco o meu
tempo.
A aventura, em si mesma, é pouca coisa; trata-se apenas de um
caldo requentado com a Viscondessa de M... Mas interessa pelos
pormenores. Por outro lado sinto-me feliz por lhe mostrar que, se possuo
o talento de perder as mulheres, não possuo menos, quando quero, o
de as salvar. O partido mais difícil, ou o mais alegre, é sempre o que eu
tomo; e nunca tenho de me censurar por uma boa ação, contanto que
ela me ponha à prova ou me divirta.
Deu-se pois o caso de encontrar aqui a Viscondessa, e como ela
juntava as suas instâncias às que me faziam para passar a noite no
castelo, disse-lhe: "Está bem! Consinto, com a condição de a passar a
seu lado." "Isso é impossível", respondeu-me ela. "Vressac está aqui." Até
ali eu pensava que lhe fazia uma proposta honesta; mas aquela
palavra "impossível" revoltou-me, como de costume. Senti-me
humilhado por ser sacrificado a Vressac e resolvi não o suportar. Tive
pois de insistir.
As circunstâncias não me eram favoráveis. Esse Vressac
cometeu a tolice de despertar suspeitas no Visconde, de modo que a
Viscondessa não pode recebê-lo em sua casa; e a visita de ambos à
boa Condessa tinha sido combinada entre eles, de maneira a
aproveitarem algumas noites. O Visconde chegou até a mostrar-se
aborrecido por ali encontrar Vressac; mas como é ainda mais caçador
do que ciumento, nem por isso deixou de ficar. E a Condessa, sempre
igual a si mesma (a minha amiga conhece-a!), depois de ter instalado a
mulher num quarto do corredor principal, pôs o marido de um lado e o
amante do outro, e deixou-os arranjarem as coisas entre si. A má sorte
dos dois homens quis que eu ficasse instalado em frente.
Nesse mesmo dia, quer dizer, ontem, Vressac, que, como pode
imaginar, estraga o Visconde com mimos, foi à caça com ele, apesar
de pouco gostar de caçar, e esperava consolar-se à noite, entre os
braços da mulher, do aborrecimento que o marido lhe causara todo o
dia. Eu, porém, achei que ele teria necessidade de repouso, e procurei
maneira de decidir a amante a deixar-lhe tempo para tal. Obtive o que
pretendia e consegui que ela arranjasse uma zanga com motivo
naquela mesma caçada, à qual ele, evidentemente, se sujeitara por
ela. Não poderia haver pior pretexto; mas nenhuma mulher tem, como
a Viscondessa, o talento, comum a todas, de pôr no lugar da razão o
mau humor, e de ser tanto mais difícil de apaziguar quanto menos
motivos tem de agravo. O momento aliás não era cômodo para
explicações; e como eu só pretendia uma noite, consenti que eles
fizessem as pazes no dia seguinte.
Vressac teve pois de aturar à volta os arrufos da Viscondessa.
Quis saber o motivo, obteve ralhos. Tentou justificar-se; o marido,
que estava presente, serviu de pretexto para acabar a conversa.
Procurou ainda aproveitar um momento em que o Visconde se
ausentara para pedir audiência noturna: foi então que a Viscondessa
atingiu o sublime. Indignou-se contra a audácia dos homens, que, só
porque põem à prova a bondade de uma mulher, julgam ter o direito
de continuarem a abusar, mesmo quando ela tem motivos de queixa; e
tendo mudado de tese com esta habilidade, falou tão bem de
delicadeza e de sentimentos, que Vressac ficou confuso e mudo. Eu
próprio estive tentado a crer que ela tinha razão; pois deve supor que,
como amigo de ambos, eu era testemunha do diálogo.
Por fim, a Viscondessa declarou que não acrescentaria as
fadigas do amor às da caça, para não ter de se censurar por perturbar
tão doces prazeres. O marido voltou. O desolado Vressac, que já não
tinha liberdade de responder, dirigiu-se a mim; e depois de por muito
tempo me ter contado as suas razões, que eu conhecia tão bem como
ele, pediu-me que falasse à Viscondessa, e eu prometi-lho. De fato,
falei-lhe; mas foi para lhe agradecer, e combinar com ela a hora e a
maneira de nos encontrarmos.
Disse-me ela que, instalada entre o marido e o amante, achara
mais prudente ir ao encontro de Vressac do que recebê-lo no seu
quarto; e, já que eu estava instalado em frente dela, julgava mais
seguro também vir ao meu encontro. Viria assim que a criada de quarto
a deixasse só; eu só tinha de deixar a porta entreaberta e esperá-la.
Tudo se executou como tínhamos combinado; pela uma hora
da madrugada chegou ela ao meu quarto.
D'une beauté qu'on vient d'arracher au sommeil.*
Como não sou vaidoso, não lhe descreverei os pormenores da
noite; mas a Marquesa conhece-me, e eu fiquei satisfeito comigo.
Ao raiar do dia, foi necessário separarmo-nos. Aqui começa a
coisa a ser interessante. A estouvada julgou que tinha deixado
entreaberta a porta do seu quarto; encontrámo-la fechada, e a chave
tinha ficado do lado de dentro. Não faz idéia da expressão de
desespero com que a Viscondessa me disse então: "Ah! Estou perdida!"
É preciso convir que teria sido divertido deixá-la naquela situação; mas
podia eu suportar que uma mulher ficasse perdida para mim, sem o ser
por mim? E devia eu, como o comum dos homens, deixar-me dominar
pelas circunstâncias?
Era preciso pois encontrar um meio. Que teria feito a minha bela
amiga? Eis o partido que tomei, e que resultou com êxito.
Depressa verifiquei que a porta em questão podia ser
arrombada, desde que se pudesse fazer muito barulho. Consegui pois
da Viscondessa, não sem custo, que ela soltasse gritos agudos de terror,
como Acudam! um ladrão! um assassino! etc. E combinamos que, ao
primeiro grito, eu arrombaria a porta, e ela correria a meter-se na cama.
Não pode imaginar o tempo que foi preciso para a decidir, mesmo
depois de ela ter consentido.
No entanto, acabou-se por cumprir o combinado, e ao primeiro
pontapé a porta cedeu. A Viscondessa fez bem em não perder tempo,
pois no mesmo instante o Visconde e Vressac apareceram no corredor,
e a criada de quarto acorreu também ao quarto da senhora. Só eu
mantinha o sangue-frio, e aproveitei a circunstância para ir apagar
uma lamparina que estava ainda acesa e derrubá-la por terra; pois faz
bem idéia quanto seria ridículo fingir aquele terror pânico, tendo luz no
quarto. Em seguida repreendi o marido e o amante pelo seu sono
letárgico e dei-lhes a certeza de que os gritos a que eu tinha acudido e
os meus esforços para arrombar a porta tinham durado pelo menos
cinco minutos. A Viscondessa, que recuperara a coragem logo que se
meteu na cama, jurava com a máxima sinceridade que nunca tivera
tanto medo na sua vida. Procurávamos por toda a parte sem nada
encontrar, quando fiz notar a lamparina derrubada, e concluí que, sem
dúvida, um rato tinha causado o dano e o terror; a minha opinião foi
*Com uma beleza dos que acabam de despertar. (N. do R.)
aprovada por unanimidade e, depois de alguns gracejos à custa dos
ratos, o Visconde foi o primeiro a ir-se deitar, pedindo à esposa que de
futuro tivesse ratos mais sossegados.
Vressac, ficando só conosco, aproximou-se da Viscondessa para
lhe dizer ternamente que era uma vingança do amor, ao que ela
respondeu olhando-me: "Nesse caso o amor devia estar muito zangado,
pois se vingou cruelmente; mas", acrescentou ela, "estou cheia de
fadiga e quero dormir."
Eu estava num momento de bondade; em conseqüência, antes
de nos separarmos, advoguei a causa de Vressac e preparei a
reconciliação. Os dois amantes beijaram-se e, por minha vez, fui
beijado por ambos. Os beijos da Viscondessa deixaram-me indiferente;
mas confesso que o de Vressac me deu prazer. Saímos juntos; e depois
de ter recebido os seus prolongados agradecimentos, cada um de nós
foi-se meter na cama.
Se achar que esta história é engraçada, não lhe peço que
guarde segredo. Agora que já me diverti, é justo que o público tenha a
sua vez. Neste momento falo-lhe só da história; talvez dentro em pouco
tenhamos de. falar da sua heroína.
Adeus; há uma hora que o meu criado está à minha espera.
Tomo apenas o tempo para lhe mandar um abraço, e lhe recomendar
sobretudo que tenha cuidado com Prévan.

Do Castelo de...,13 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Entregue somente em 14)

Ó minha Cecília! como invejo a sorte de Valmont! Amanhã ele


vê-la-á. É ele quem lhe entregará esta carta; e eu, longe de si, entregue
às minhas mágoas, arrastarei a minha penosa existência entre as
saudades e a dor.
Minha amiga, minha terna amiga, lastime-me pelos meus males;
lastimo-me sobretudo pelos seus; é contra estes que a coragem me
abandona.
Quanto me é penoso causar a sua infelicidade! Sem mim seria
feliz e tranqüila. Perdoa-me? Diga! Ah! Diga que me perdoa; diga-me
também que me tem amor, que há de amar-me sempre. Sinto
necessidade que mo repita. Não é que eu duvide; mas parece-me que
quanto mais se tem essa certeza mais doce é ouvi-lo dizer. Ama-me,
não é verdade? Sim, ama-me com toda a sua alma. Não esqueço que
foi a última palavra que lhe ouvi pronunciar. Como a recolhi no meu
coração! Como ela se gravou ali profundamente! E com que
transportes o meu lhe corresponde!
Ai! Nesse momento de felicidade, estava eu longe de prever a
sorte horrorosa que nos esperava. Ocupemo-nos, minha Cecília, dos
meios para a suavizar. A crer no meu amigo, bastará, para que o
consigamos, que a Cecília deposite nele a confiança que merece.
Fiquei contristado, confesso-o, com a idéia pouco vantajosa que
parece ter a seu respeito. Reconheço aí as prevenções da sua Mamã:
foi para me submeter a elas que descuidei, durante algum tempo, a
sociedade desse homem verdadeiramente amável, que hoje tudo fará
por mim; que, enfim, trabalha para nos reunir, quando a sua Mamã nos
separou. Peço-lhe, querida amiga, veja-o com olhos mais favoráveis.
Pense que ele é meu amigo, que o quer ser seu, que pode
proporcionar-me a felicidade de voltar a vê-la. Se estas razões a não
convencem, minha Cecília, é porque me não ama tanto como eu a
amo, é porque me não ama tanto quanto amou já.
Ah! Se alguma vez vier a ter-me menos amor... Mas não, o
coração da minha Cecília pertence-me; é meu por toda a vida; e se eu
tenho a temer as penas dum amor infeliz, a sua constância pelo menos
me salvará dos tormentos dum amor traído.
Adeus, minha encantadora amiga; não esqueça que eu sofro, e
que só a si cabe tornar-me feliz, perfeitamente feliz. Escute os votos do
meu coração, e receba os mais ternos beijos de amor.

Paris, 11 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

O amigo que a serve soube que lhe faltava tudo que é


necessário para escrever e remediou essa falta. Encontrará na
antecâmara do aposento que ocupa, debaixo do grande armário à
esquerda, uma provisão de papel, de penas e de tinta, que ele
renovará quando quiser e que lhe parece poder ficar no mesmo lugar
se não encontrar outro mais seguro.
Esse amigo pede-lhe que não se ofenda, se simular que não lhe
dá nenhuma atenção nas reuniões e que a olha como uma criança. Tal
procedimento parece-lhe necessário para inspirar a segurança de que
ele precisa e poder trabalhar mais eficazmente na felicidade do seu
amigo e na sua. Procurará suscitar as ocasiões de lhe falar, quando tiver
alguma coisa a comunicar-lhe ou a entregar-lhe; e espera consegui-lo,
se a menina tiver o cuidado de o secundar.
Aconselha-a também a entregar-lhe as cartas à medida que as
for recebendo, a fim de a arriscar menos a comprometer-se.
Termina por lhe dar a certeza de que, se quiser depositar nele
confiança, porá os seus cuidados em suavizar a perseguição que uma
mãe demasiado cruel faz sofrer a duas pessoas, das quais uma é já o
seu melhor amigo, e a outra lhe parece merecer o mais terno interesse.

Do Castelo de..., 14 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Desde quando, meu amigo, se assusta tão facilmente? Esse


Prévan é assim tão temível? Veja como eu sou simples e modesta!
Tenho-o encontrado muitas vezes, a esse soberbo vencedor; e mal o
tenho olhado!
Faltava só a sua carta para que eu lhe desse atenção. Reparei
ontem a minha injustiça. Ele estava na Ópera, quase na minha frente, e
entretive-me com ele. É bonito ao menos, mesmo muito bonito; que
traços finos e delicados! Deve ganhar em ser visto de perto. E diz o
Visconde que ele me quer possuir!
Seguramente far-me-á honra e prazer. Falando sério, tenho essa
fantasia, e confio-lhe aqui que dei para isso os primeiros passos.
Não sei se terão êxito. Passo a narrar-lhe o caso.
Ele estava a dois passos de mim, à saída da Ópera, e eu
marquei encontro, em voz alta, à Marquesa de... para cear sexta-feira
em casa da Marechala. É, segundo creio, o único lugar onde posso
encontrá-lo. Não duvido de que ele me tenha ouvido...
E se esse ingrato lá não fosse? Diga-me: acha que ele irá?
Saiba que, se não for, ficarei aborrecida toda a noite. Bem vê
que ele não terá assim tanta dificuldade em seguir-me; e o Visconde
vai admirar-se mais quando souber que terá ainda menos dificuldade
em agradar-me. Ele quer, segundo diz, rebentar seis cavalos a fazer-me
a sua corte!
Oh! eu salvarei a vida a esses cavalos. Nunca eu teria a
paciência de esperar tanto tempo. O Visconde sabe que não está nos
meus princípios fazer sofrer quando me decido por alguém, e a
verdade é que me decidi por ele. Oh! convenha, Visconde, que sentiu
prazer em me pregar um sermão! A sua revelação importante não teve
um grande êxito? Que quer o Visconde! Há tanto tempo que eu
vegeto! Há mais de seis semanas que não me permito uma aventura.
Apresenta-se-me esta; posso recusá-la? A pessoa não vale a pena?
Haverá alguém mais agradável, em qualquer sentido que tome
a palavra.
O próprio Visconde é obrigado a fazer-lhe justiça; faz mais que
elogiá-lo, tem ciúmes dele. Pois bem! serei eu o juiz entre ambos. Mas
primeiro é preciso tomar conhecimento da causa, e é o que desejo
fazer. Serei juiz íntegro, e ambos serão pesados na mesma balança.
Quanto ao Visconde, tenho já as suas memórias, e a sua causa está
perfeitamente instruída. Não será justo que me ocupe agora do seu
adversário? Vamos, preste-se de bom grado à justiça; e, para começar,
conte-me, peço-lhe, essa tríplice aventura de que ele foi herói. Fala-me
disso como se eu não conhecesse outra coisa, e não sei uma palavra a
tal respeito.
O caso deve ter-se passado durante a minha viagem a
Genebra, e o seu ciúme tê-lo-á impedido de mo contar. Repare esta
falta o mais cedo possível; pense que nada do que lhe diz respeito me é
indiferente. Creio bem que se falava ainda no assunto quando
regressei; mas eu tinha outros motivos de preocupação, e raramente
dou ouvidos a coisas desse gênero quando não são do próprio dia ou
da véspera.
Mesmo que o contrarie um pouco o que lhe peço, não será esse
o menor preço que o Visconde deve aos cuidados que por sua causa
tenho tido? Não foram esses cuidados que o aproximaram da sua
Presidente, quando as suas tolices o tinham afastado dela? Não fui
ainda eu que pus nas suas mãos o meio de se vingar do amargo zelo de
Madame de Volanges? Tantas vezes o Visconde lamentou o tempo que
perdia a procurar aventuras!
Presentemente, tem-nas à mão. O amor, o ódio, só tem o
trabalho de escolher, tudo está debaixo do mesmo teto. E pode até,
fazendo existência dupla, afagar com uma das mãos e ferir com a
outra.
A sua aventura com a Viscondessa é ainda a mim que a deve.
Deu-me muita satisfação; mas, como o Visconde diz, é preciso
que se fale no caso; pois se a ocasião foi de molde a que preferisse o
mistério ao ruído, e compreendo que assim fosse, devemos no entanto
convir que essa mulher não merecia um procedimento tão honesto.
Além do mais, tenho motivos de queixa de tal criatura. O
Cavaleiro de Belleroche acha-a mais bonita do que eu desejaria; e, por
muitas razões, ficaria bem contente se tivesse um pretexto para romper
com ela. Ora não há nada mais cômodo do que poder dizer: "Já
ninguém recebe essa mulher."
Adeus Visconde; pense que, no lugar onde está, o tempo é
precioso; vou empregar o meu a ocupar-me da felicidade de Prévan.

Paris, 15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Está aqui uma boa amiga da Mamã, que eu não conhecia, que
parece também não gostar muito do senhor de Valmont, embora ele
tenha muitas atenções para ela. Tenho receio que ele se aborreça
depressa da vida que levamos aqui e que regresse a Paris; isso seria
lamentável. Deve ter muito bom coração para ter vindo expressamente
a fim de prestar um serviço ao seu amigo e a mim! Bem desejaria
testemunhar-lhe o meu reconhecimento, mas não sei como fazer para
falar; e mesmo que achasse ocasião para isso, ficaria tão
envergonhada que não saberia que dizer-lhe.
É só com Madame de Merteuil que eu falo livremente, quando
falo do meu amor. Talvez mesmo contigo, a quem digo tudo, eu ficasse
envergonhada, se fosse a conversarmos. Com o próprio Danceny tenho
muitas vezes sentido, contra minha vontade, certo receio que me
impedia de dizer tudo o que pensava.
Estou bem arrependida agora, e daria tudo para encontrar o
momento de lhe dizer uma vez, uma única vez, quanto o amo...
O senhor de Valmont prometeu-lhe que, se eu me deixasse
conduzir, arranjaria maneira de nos tornarmos a ver. Eu farei tudo o que
ele quiser; mas não posso conceber que tal seja possível.
Adeus, minha boa amiga, não posso escrever mais.*

Do castelo de...,14 de Setembro de 17* *.

Nota - Nesta carta, Cecília Volanges narra com muitos pormenores tudo o que lhe diz
respeito nos acontecimentos que o leitor conhece do fim da Primeira Parte, Carta LXI
e seguintes. Julgou-se oportuno suprimir essa repetição. Por fim, fala do Visconde de
Valmont, e exprime-se do seguinte modo:
Afirmo-te que é um homem extraordinário. A Mamã diz muito mal dele; mas o
Cavaleiro Danceny diz muito bem, e creio que é ele quem tem razão. Nunca vi
homem mais expedito. Quando me entregou a carta de Danceny, estava muita
gente e ninguém viu nada. certo que tive bastante medo porque não tinha sido
prevenida; mas agora estou sempre à espera. Já compreendi muito bem o que ele
quer que eu faça para lhe entregar a resposta. É muito fácil entendermo-nos com ele,
pois tem um olhar que diz tudo o que ele quer. Não sei o que ele faz para isso: dizia-
me no bilhete de que te falei que diante da Mamã fingira sempre não me ligar
importância. Na verdade, dir-se-ia que não pensa nisso; mas todas as vezes que
procuro os seus olhos, estou certa de encontrá-los imediatamente.
*Tendo Mademoiselle de Volanges, pouco tempo depois, mudado de confidente,
como se verá pela continuação destas cartas, não virá a encontrar-se nesta coleção
nenhuma das que continuou a escrever à sua amiga do convento, pois nada
revelariam ao leitor.

CARTA LXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Ou a sua carta é um gracejo, que não cheguei a compreender,


ou estava, quando ma escreveu, num delírio muito perigoso.
Se eu a conhecesse menos, minha bela amiga, ficaria
verdadeiramente horrorizado; e seja o que for que possa dizer, não me
horrorizo facilmente.
Debalde li e reli a sua carta, não fiquei mais adiantado; pois não
há maneira de a tomar no sentido natural que ela apresenta.
Que quis a minha amiga dizer? Apenas que era inútil ter tantos
cuidados contra um inimigo tão pouco temível? Mas, nesse caso, pode
não ter razão. Prévan é realmente amável; é-o mais ainda do que
supõe. Tem sobretudo o talento deveras útil de interessar muita gente
nas suas relações amorosas, pela habilidade que desenvolve ao falar
sobre tal assunto em sociedade, diante de toda a gente, servindo-se da
primeira conversação que topa a jeito. Poucas mulheres há que se
salvem da armadilha de lhe dar réplica, visto que, tendo todas
pretensões de inteligência, nenhuma quer perder ocasião de a mostrar.
Ora, sabe muito bem a minha amiga que toda a mulher que consente
em falar de amor, cedo acaba por tomar parte nele, ou pelo menos
por se conduzir como se o sentisse. Prévan tira ainda vantagens do
processo, que ele realmente aperfeiçoou, de chamar frequentemente
as próprias mulheres em testemunho das derrotas que lhes inflige. E falo-
lhe disto porque o presenciei.
O segredo veio até mim em segunda mão, pois nunca estive
ligado a Prévan; éramos por fim seis a escutá-lo: a Condessa de P...,
julgando-se muito inteligente, tomou os ares de quem sustenta uma
conversação geral e foi contando aos que nada sabiam, até aos
mínimos pormenores, de como se tinha entregado a Prévan e tudo o
que se passara entre ambos. Fazia a narração com tal segurança, que
nem se sentiu perturbada por um riso louco que nos tomou os seis ao
mesmo tempo; e hei-de recordar-me sempre de que, a um de nós que,
para se desculpar, quis fingir que não acreditava no que ela dizia, ou
antes, no que ela parecia querer dizer, respondeu ela gravemente que
com certeza nenhum de nós estava tão bem informado como ela; e
não receou mesmo dirigir-se a Prévan, para lhe perguntar se tinha
enganado numa só palavra.
Pude então considerar aquele homem perigoso para toda a
gente; mas para si, Marquesa, não bastava que ele fosse bonito, muito
bonito, conforme as suas próprias palavras? Ou que ele lhe fizesse um
desses ataques que lhe agrada algumas vezes recompensar, sem outro
motivo do que achá-los bem feitos? Ou que achasse agradável
entregar-se por uma razão qualquer?
Ou... que sei eu? Posso porventura adivinhar os mil e um
caprichos que governam a cabeça de uma mulher, que só por si a
ligam ao seu sexo?
Agora que está prevenida do perigo, não duvido que se livrará
dele facilmente: todavia era necessário preveni-la.
Volto ao meu assunto: que quis dizer na sua carta?
Se é apenas um gracejo sobre Prévan, além de ser demasiado
longo, não era a mim que devia dirigi-lo, por inútil; é à sociedade que se
deve oferecer um bom motivo de ridículo para esse homem, e renovo-
lhe o meu pedido a tal respeito.
Ah! Julgo ter encontrado a chave do enigma! A sua carta é uma
profecia, não do que virá a fazer, mas do que ele a julgará pronta a
fazer no momento da queda que lhe prepara. Aprovo esse projeto; no
entanto, ele exige grandes preparativos. A minha amiga sabe tão bem
como eu que, para a opinião pública, ceder a um homem ou aceitar-
lhe a corte é absolutamente a mesma coisa, a menos que esse homem
seja um tolo; e Prévan está muito longe de o ser. Se ele tiver as
aparências a seu favor, irá gabar-se, e está tudo dito. Os tolos
acreditarão nele, os maus fingirão que acreditam; quais serão então,
Marquesa, os seus recursos? Creia, tenho medo. Não é que eu duvide
da sua habilidade; mas são os bons nadadores que se afogam.
Eu não me julgo mais estúpido que qualquer outro! Quanto a
meios de desonrar uma mulher, tenho encontrado cem, tenho
encontrado mil: mas quando procuro a maneira de ela se salvar, nunca
vejo tal possibilidade. Mesmo na minha bela amiga, cuja conduta é
uma obra-prima, cem vezes tenho eu julgado ver mais sorte do que
simulação perfeita.
Mas no fim de tudo, estou talvez a procurar uma razão ao que
não existe. Admiro como, há uma boa hora, eu trato com seriedade o
que não passa, com certeza, de uma brincadeira da sua parte. Vai
troçar de mim!
Pois seja! Seja; mas apresse-se, e falemos de outra coisa. De
outra coisa! Engano-me, é sempre a mesma; sempre mulheres a possuir
ou a perder, e muitas vezes ambas as coisas.
Como a minha amiga muito bem notou, tenho aqui com que
me entreter nos dois gêneros, mas não com a mesma facilidade.
Prevejo que a vingança irá mais depressa do que o amor.
A pequena Volanges está rendida, respondo por ela; depende
apenas da ocasião, e encarrego-me de fazer que ela apareça. Mas
com Madame de Tourvel não é a mesma coisa: esta mulher é
desoladora, não chego a compreendê-la. Tenho cem provas do seu
amor, mas tenho mil da sua resistência; e, na verdade, receio que ela
me escape.
O primeiro efeito produzido pelo meu regresso animou-me a
esperar maiores vantagens. Imagina decerto que era meu intuito julgar
por mim próprio; e para ter a certeza de apreciar os primeiros
movimentos, não mandei ninguém à minha frente e calculei o tempo
de viagem de modo a chegar quando estivessem à mesa. De fato, caí
do céu, como uma divindade de ópera que prepara o desenlace.
Fazendo ao entrar bastante ruído, para fixar os olhares sobre mim, pude
ver num só golpe de vista a alegria da minha velha tia, o despeito de
Madame de Volanges e o prazer desmedido de sua filha. A minha bela,
pelo lugar que tinha à mesa, estava de costas para a porta. Ocupada
nesse momento a servir-se de qualquer coisa, nem sequer voltou a
cabeça. Mas eu dirigi a palavra a Madame de Rosemonde; e, tendo
reconhecido a minha voz às primeiras palavras, um grito escapou à
sensível devota, no qual julguei reconhecer mais amor do que surpresa
ou susto. Eu avançara já o bastante para poder ver o seu rosto: nele se
espelharam, de vinte maneiras diferentes, o tumulto da sua alma, a luta
das suas idéias e dos seus sentimentos.
Sentei-me à mesa ao lado dela; ficou sem saber positivamente o
que havia de fazer ou de dizer. Tentou continuar a comer; não houve
maneira.
Por fim, não tinha ainda passado um quarto de hora, tornando-
se mais fortes do que ela o seu embaraço e o seu prazer, não imaginou
nada melhor do que pedir licença para se levantar, e saiu para o
parque, sob o pretexto de ter necessidade de tomar ar. Madame de
Volanges quis acompanhá-la; a terna hipócrita não lho permitiu;
demasiado feliz, sem dúvida, por encontrar um pretexto para estar só e
se entregar livremente às doces emoções que experimentara.
Abreviei o jantar o melhor que me foi possível. Mal tinham servido
a sobremesa, a infernal Volanges, apressando-se sem dúvida a tirar-me
qualquer vantagem, levantou-se do seu lugar para ir ao encontro da
encantadora doente; mas eu tinha previsto esse projeto e prejudiquei-o.
Fingi pois tomar esse movimento isolado pelo movimento geral, e,
tendo-me levantado ao mesmo tempo, a pequena Volanges e o cura
deixaram-se levar por esse duplo exemplo; de maneira que Madame
de Rosemonde se encontrou só à mesa com o velho comentador de
T..., e ambos tomaram também o partido de se levantar. Fomos pois
todos juntar-nos à minha bela, que encontramos no pequeno bosque
perto do castelo; e como ela necessitava de solidão e não de passeio,
tanto valeu para ela regressar conosco como fazer-nos ficar junto dela.
Quando tive a certeza de que Madame de Volanges não teria
ocasião de lhe falar a sós, pensei em executar as suas ordens e ocupei-
me dos interesses da sua pupila. Logo após o café, subi ao meu quarto,
e entrei também nos dos outros, para reconhecer o terreno; tomei as
minhas disposições para assegurar a correspondência da pequena;
depois desse primeiro ato de benemerência, escrevi uma palavra para
lhe dar instruções e lhe pedir a sua confiança e juntei o meu bilhete à
carta de Danceny.
Voltei ao salão. Aí encontrei a minha bela instalada numa
cadeira de encosto num abandono delicioso.
Este espetáculo, à medida que despertava os meus desejos,
animava os meus olhares; senti que estes deviam ser ternos e insistentes,
e coloquei-me de maneira a fazer uso deles. O primeiro efeito
conseguido foi o de obrigar os grandes olhos modestos da celeste
criatura a baixarem-se.
Contemplei por algum tempo essa figura angélica; depois,
percorrendo toda a sua pessoa, diverti-me a adivinhar os contornos e as
formas através de um vestuário ligeiro, mas sempre importuno. Depois
de ter descido da cabeça aos pés, tornei a subir dos pés à cabeça...
Minha bela amiga, o doce olhar estava fixo em mim; de repente baixou
de novo, e eu desviei os olhos, a fim de favorecer o regresso dos seus.
Então estabeleceu-se entre nós aquela conversação tácita, primeiro
tratado do amor tímido, que, para satisfazer o desejo mútuo da vista,
permite aos olhares sucederem-se esperando que se confundam.
Persuadido de que a minha bela se entregara inteiramente a
esse novo prazer, encarreguei-me de velar pela nossa comum
segurança; mas, convencendo-me de que um diálogo vivo nos salvaria
de sermos notados pelos que nos rodeavam, tratei de obter dos seus
olhos que falassem uma linguagem franca. Para esse efeito tomei
primeiro alguns olhares de surpresa, mas com tanta reserva que a
modéstia não poderia ficar alarmada; e para pôr mais à vontade a
tímida pessoa, eu próprio afetei tácita confusão como ela. Pouco a
pouco os nossos olhos, acostumados a encontrarem-se, fixaram-se mais
longamente; por fim não se deixaram mais; e surpreendi nos seus olhos
aquela doce languidez, sinal feliz do amor e do desejo. Mas foi apenas
por um momento; depressa voltando a si, mudou, não sem alguma
vergonha, a posição e o olhar.
Não querendo que ela tivesse alguma dúvida de que eu
houvesse notado os seus diversos movimentos, levantei-me com
vivacidade e perguntei-lhe, fingindo-me assustado, se se sentia mal.
Nesse momento toda a gente veio rodeá-la. Deixei que todos
passassem à minha frente; e como a pequena Volanges, que tecia um
tapete perto da janela, levasse algum tempo a desembaraçar-se do
trabalho, aproveitei a ocasião para lhe entregar a carta de Danceny.
Eu estava um pouco afastado dela, lancei-lhe a epístola sobre os
joelhos. Ela ficou sem saber que fazer.
A minha amiga teria rido do seu ar de surpresa e embaraço;
todavia eu não ri, temendo que tanta falta de jeito acabasse por nos
trair. Mas um olhar e um gesto imperiosos fizeram-lhe enfim
compreender que era preciso guardar a carta no bolso.
O resto do dia não teve nada de interessante. O que depois se
passou dará talvez lugar a acontecimentos de que a minha amiga
ficará satisfeita, pelo menos no que diz respeito à sua pupila; mas vale
mais empregar o tempo a executar projetos do que a contá-los. Além
disso, é esta a oitava página que escrevo, e sinto-me fatigado. Por isso
lhe digo adeus.
Adivinha decerto, sem que eu lho diga, que a pequena
respondeu a Danceny. Eu tive também resposta da minha bela, a quem
escrevera no dia seguinte ao da minha chegada. Envio-lhe as duas
cartas. Leia-as ou não as leia; pois essa perpétua maçada, que já não
me diverte muito, deve ser muito insípida para qualquer pessoa
desinteressada.
Ainda uma vez, adeus. Continuo a amá-la sempre; mas, peço-
lhe, se voltar a falar-me de Prévan, faça-o de maneira que eu entenda.

Do Castelo de...,17 de Setembro de 17 * *.


CARTA LXXVII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

De onde poderá vir, senhora, o empenho cruel que mostrais em


fugir-me? Como pode dar-se que a mais terna dedicação da minha
parte obtenha da vossa um procedimento que apenas seria permitido
para o homem de quem tivésseis os maiores motivos de queixa? Pois
quê? O amor conduz-me a vossos pés; e, quando um feliz acaso me
coloca a vosso lado, apraz-vos fingir uma indisposição, alarmar os
vossos amigos, em vez de consentirdes em ficar ao pé de mim !
Quantas vezes desviastes ontem os olhos para me privar do favor de um
olhar? E se pude ver neles menos severidade por um único instante, esse
momento foi tão curto que parece ter sido menos vosso intuito dar-me
algum prazer do que fazer-me sentir o que eu perdia em ser dele
privado.
Não é esse, ouso dizê-lo, nem o tratamento que merece o amor,
nem o que pode permitir-se a amizade; e todavia, desses dois
sentimentos, bem sabeis se um deles me anima, e eu estava, parece-
me, autorizado a supor que não vos recusaríeis ao outro.
Essa amizade preciosa, da qual sem dúvida me julgastes digno,
visto que ma quisestes oferecer, que fiz eu para a ter perdido depois?
Ter-me-ei prejudicado pela minha confiança, e ter-me-eis punido pela
minha franqueza? Não receais ao menos abusar de uma e de outra?
Não foi, verdadeiramente, no seio da minha amiga que eu depus o
segredo do meu coração? Não foi perante ela só que eu pude julgar-
me obrigado a recusar condições que me bastaria aceitar, para me
dar a facilidade de não as manter, e talvez para delas abusar com
vantagem? Querereis, enfim, por um rigor tão pouco merecido, obrigar-
me a supor que teria sido suficiente enganar-vos para obter mais
indulgência?
Não me arrependo de um procedimento que vos devia, que
devia a mim próprio; mas por que fatalidade cada ação louvável se
torna para mim o sinal de uma nova infelicidade?
Foi depois de ter dado lugar ao único elogio que vos dignastes
ainda fazer ao meu procedimento que tive, pela primeira vez, de
gemer pela desgraça de vos ter desagradado. Foi depois de vos ter
provado a minha submissão perfeita, privando-me da felicidade de vos
ver, unicamente para tranqüilizar a vossa delicadeza, que quisestes
romper toda a correspondência comigo, tirar-me essa frágil
compensação de um sacrifício que havíeis exigido, e arrebatar-me até
o amor que unicamente vos poderia dar tal direito. É enfim por vos ter
falado com uma sinceridade que o próprio interesse desse amor não
pôde enfraquecer, que hoje me fugis como a um sedutor perigoso, de
que tivésseis reconhecido a perfídia.
Não vos cansareis nunca de ser injusta? Dizei-me ao menos que
novos motivos de agravo puderam levar-vos a tanta severidade e não
recuseis ditar-me as ordens que quereis que eu siga; pois que me
comprometo a executá-las, não é pretender demasiado procurar
conhecê-las.

15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXVIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Pareceis, senhor, surpreendido pela minha conduta, e pouco


falta mesmo para me pedirdes contas, como se tivésseis o direito de
censurá-la.
Confesso que me julgaria mais autorizada do que vós a admirar-
me e a queixar-me; mas, depois da recusa contida na vossa última
carta, tomei o partido de me fechar numa indiferença que não deixa
lugar às observações nem às censuras.
Entretanto, como me pedis esclarecimentos, e como, graças ao
Céu, não sinto nada em mim que possa impedir-me de os dar, desejo
entrar ainda uma vez em explicações convosco.
Quem lesse as vossas cartas julgar-me-ia injusta ou caprichosa.
Julgo merecer que ninguém forme essa idéia de mim; parece-
me sobretudo que, menos do que ninguém, estejais no caso de a
formar.
Sentistes, sem dúvida, que necessitando justificar-me me
forçaríeis a recordar tudo o que se passou entre nós. Aparentemente
supusestes que teríeis tudo a ganhar com esse exame; como, pelo meu
lado, julgo não ter nada a perder, pelo menos aos vossos olhos, não
receio sujeitar-me a ele.
Talvez seja esse, na verdade, o único meio de conhecer qual de
nós dois tem o direito de se queixar do outro.
A contar do dia da vossa chegada a este castelo, devereis
confessar, senhor, segundo creio, que pelo menos a vossa reputação
me autoriza a usar de alguma reserva convosco, e que eu teria podido,
sem recear ser acusada de um excesso de pudor, manter-me nas
expressões da mais fria delicadeza. Vós próprio me teríeis tratado com
indulgência, e teríeis achado natural que, uma mulher tão pouco
formada não tivesse mesmo o mérito necessário para apreciar o vosso.
Era esse precisamente o partido da prudência; e ter-me-ia custado
tanto menos segui-lo, que não vos esconderei que, quando Madame
de Rosemonde me veio dar parte da vossa chegada, tive necessidade
de recordar a minha amizade por ela, e a que ela tem por vós, para
não lhe deixar ver quanto essa notícia me contrariava.
Convenho de vontade que vos mostrastes primeiramente sob
um aspecto mais favorável do que eu tinha imaginado; mas convireis
por vosso lado que esse aspecto durou bem pouco e que depressa vos
cansastes de uma obrigação, de que aparentemente vos não julgastes
compensado pela idéia vantajosa que por ela formei a vosso respeito.
Foi então que, abusando da minha boa fé, da minha
tranqüilidade, não receastes comunicar-me um sentimento do qual não
poderíeis duvidar que eu me sentisse ofendida; e, enquanto não vos
ocupáveis senão de aumentar os vossos agravos, eu procurava um
motivo para os esquecer, oferecendo-vos a ocasião para os reparardes,
pelo menos em parte. O meu pedido era arvorando a minha
indulgência como um direito, aproveitastes dela para um pedido ao
qual, sem dúvida, eu não deveria aceder, e cuja permissão todavia
obtivestes. Das condições que foram impostas, não cumpristes
nenhuma; e a vossa correspondência era tal que cada uma das vossas
cartas me punha no dever de não lhe responder. Foi no próprio
momento em que a vossa obstinação me forçava a afastar-vos de mim
que, por uma condescendência talvez censurável, tentei o único meio
que podia permitir-me a vossa aproximação; mas que valor tem aos
vossos olhos um sentimento honesto? Desprezais a amizade; e, na vossa
louca embriaguez, desdenhando por completo a desgraça e a
vergonha, procurais apenas prazeres e vítimas.
Tão ligeiro no vosso procedimento como inconseqüente nas
vossas censuras, esqueceis as promessas, ou antes, comprazeis-vos em
violá-las, e, depois de terdes consentido em afastar-vos de mim, voltais
aqui sem que fôsseis chamado; sem respeito pelas minhas súplicas,
pelas minhas razões, sem terdes mesmo a atenção de me prevenir, não
tivestes receio de me expor a uma surpresa cujo efeito, embora decerto
bem natural, teria podido ser interpretado desfavoravelmente para
mim, pelas pessoas que me rodeiam. Esse momento de confusão que
fizestes nascer, longe de procurar distraí-lo ou dissimulá-lo, parecestes
pôr todos os vossos cuidados em aumentá-lo. À mesa, escolhestes
precisamente o vosso lugar ao lado do meu; uma ligeira indisposição
obrigou-me a sair antes dos outros: em lugar de respeitardes a minha
solidão, arrastastes toda a gente a vir perturbá-la.
Voltando ao salão, se dou um passo; encontro-vos a meu lado;
se digo uma palavra, sois sempre vós quem me responde. O dito mais
indiferente serve-vos de pretexto para conduzir uma conversação que
eu não desejaria ouvir, que pode mesmo comprometer-me; pois, enfim,
senhor, por muita inteligência que haja nos vossos propósitos, creio que
os outros podem também compreender aquilo que eu compreendo.
Forçada assim por vós à imobilidade e ao silêncio, nem por isso
deixais de perseguir-me; não posso levantar os olhos nem encontrar os
vossos. Sou constantemente obrigada a desviar os meus olhares; e, por
uma inconseqüência bem incompreensível, fazeis que todos os olhos se
fixem em mim, num momento em que até aos meus próprios olhos eu
desejaria furtar-me.
E queixais-vos do meu procedimento! E admirais-vos do meu
empenho em vos fugir! Censurai-me antes a minha indulgência,
admirai-vos de que eu não tenha partido no momento da vossa
chegada. Talvez eu devesse tê-lo feito, e obrigar-me-eis a essa solução
violenta mas necessária se não cessardes a vossa ofensiva perseguição.
Não, não esqueço, não esquecerei nunca o que devo a mim própria,
aos laços que formei, que respeito e amo; e peço-vos que acrediteis: se
alguma vez me encontrar reduzida à escolha infeliz de os sacrificar ou
me sacrificar a mim mesma, não hesitarei por um instante.
Adeus, senhor.

16 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Contava ir à caça esta manhã, mas está um tempo detestável.


Como leitura, tenho apenas um romance novo que aborreceria
até um colegial. O almoço será daqui a duas horas, nunca menos.
Assim, apesar da minha longa carta de ontem, vou de novo conversar
com a minha amiga. Estou certo de não a aborrecer, pois vou falar-lhe
do lindo Prévan.
Como é possível que não conheça a sua famosa aventura, a
que separou as inseparáveis?
Aposto que se recordará dela às primeiras palavras. Sempre vou
contá-la, visto que o deseja.
Há de lembrar-se de que todo Paris se admirava que três
mulheres, todas três bonitas, tendo todas três os mesmos talentos, e
podendo ter as mesmas pretensões, continuassem intimamente ligadas
entre si após o momento da sua entrada na sociedade.
Julgou-se primeiro encontrar a razão na sua extrema timidez;
mas logo, rodeadas por uma corte numerosa de que elas partilhavam
as homenagens, e conhecendo o seu próprio valor pelo calor e pelas
atenções de que eram objeto, a sua união tornou-se ainda mais forte.
Dir-se-ia que o triunfo para uma era sempre o das duas outras.
Esperava-se pelo menos que o momento do amor trouxesse também o
de alguma rivalidade. Os nossos jovens namoradores disputavam-se a
honra de ser o ponto de discórdia; e eu próprio me teria posto nas suas
fileiras se os grandes favores que a Condessa de... me concedia por
esse tempo me tivessem permitido ser-lhe infiel antes de obter a
liberdade que solicitava.
Entretanto as nossas três belezas, no mesmo Carnaval, fizeram a
sua escolha como por combinação prévia; e essa escolha, longe de
proporcionar a tempestade que se esperava, teve apenas como
resultado tornar a amizade delas mais interessante pelo encanto das
confidências.
A multidão dos pretendentes infelizes juntou-se então à das
mulheres ciumentas e a escandalosa constância foi submetida à
censura pública. Uns pretendiam que, na sociedade das inseparáveis
(assim lhe chamavam então), a lei fundamental era a comunidade de
bens e que até o amor lhe estava submetido; outros asseguravam que
os três amantes, livres de rivais masculinos, não o eram de rivais
femininos; chegou mesmo a dizer-se que só por decência eles tinham
sido admitidos, e haviam obtido apenas um título sem funções.
Estes rumores, verdadeiros ou falsos, não tiveram o efeito que se
esperava. Os três pares, pelo contrário, sentiram-se que estavam
perdidos se se separassem naquele momento, e tomaram o partido de
enfrentarem a tempestade. O público, que se cansa de tudo, depressa
se cansou de uma sátira infrutuosa.
Levado pela sua ligeireza natural, ocupou-se de outros assuntos;
depois, voltando a este com a sua inconseqüência habitual,
transformou a notícia em elogio. Como tudo se passa consoante as
modas, o entusiasmo venceu; tornou-se um verdadeiro delírio, quando
Prévan tomou a peito verificar aqueles prodígios e fixar sobre eles a
opinião pública e a sua.
Procurou pois tais modelos de perfeição. Admitido facilmente na
sua sociedade, daí tirou um augúrio favorável. Ele sabia bem que as
pessoas felizes não são de fácil acesso. Depressa viu, de fato, que uma
tão louvada felicidade era, como a dos reis, mais invejada que
desejada. Notou que, entre os pretendidos inseparáveis, se começava
a procurar os prazeres do exterior, que já se ocupavam de distrações; e
concluiu que os laços de amor e de amizade começavam a afrouxar
ou a romper-se e que só os do amor-próprio e do hábito conservavam a
sua força.
Entretanto as mulheres, que a necessidade reunia, conservavam
entre elas a aparência da mesma intimidade; mas os homens, mais
livres no seu comportamento, reencontravam deveres a cumprir ou
negócios a seguir. Soltavam ainda alguns queixumes, mas já não se
dispensavam deles, e raramente os serões eram completos.
Este procedimento foi proveitoso ao assíduo Prévan, que,
colocado naturalmente junto da abandonada do dia, ia oferecendo
alternadamente, e segundo as circunstâncias, a mesma homenagem
às três amigas.
Facilmente compreendeu que fazer uma escolha entre elas seria
perder-se; que a falsa vergonha de se considerar a primeira infiel
encheria de susto a preferida; que a vaidade ferida das duas outras as
tornaria inimigas do novo amante e que não deixariam de brandir
contra ele a severidade dos grandes princípios; enfim, que o ciúme por
certo chamaria as atenções dum rival que podia ser ainda para temer.
Tudo se tornaria obstáculo; tudo ficava fácil no seu tríplice projeto: cada
mulher seria indulgente porque estava interessada, cada homem,
porque julgava não o estar.
Prévan, que então tinha apenas uma mulher a sacrificar, teve a
felicidade de ver a sua amante célebre de um momento para o outro.
A sua qualidade de estrangeira e a homenagem de um grande
príncipe recusada com bastante desenvoltura tinham fixado sobre ela
as atenções da corte e da cidade; o seu amante partilhava essas
honras, e delas aproveitou junto das suas novas amantes. A única
dificuldade estava em levar avante as três intrigas, cujo
desenvolvimento tinha forçosamente de regular-se pela mais tardia; de
fato, vim a saber por um dos seus confidentes que a sua maior pena foi
a de ter de suspender uma, que esteve prestes a atingir o êxito cerca
de quinze dias antes das outras.
Enfim, o grande dia chegou. Prévan, que tinha obtido as três
confissões, achava-se já senhor dos acontecimentos, e ordenou-os
como vai ver. Dos três maridos, um estava ausente, o outro partia no dia
seguinte muito cedo, o terceiro estava na cidade.
As inseparáveis amigas deviam cear em casa da futura viúva;
mas o novo senhor não tinha permitido que os antigos servidores fossem
convidados. Na manhã desse mesmo dia, fez três coleções das cartas
da sua bela, juntou a uma delas um retrato que dela tinha recebido, à
segunda juntou uma cifra amorosa que ela própria pintara, à terceira
um anel dos seus cabelos; cada uma recebeu por completo esta terça
parte de sacrifício, e consentiu, em troca, em enviar ao amante caído
em desgraça uma retumbante carta de rompimento.
Era muito; não o era bastante. Aquela cujo marido estava na
cidade só podia dispor daquele dia; combinaram que uma fingida
indisposição a dispensaria de ir cear a casa da amiga e que o serão
seria reservado a Prévan; a noite foi destinada para aquela cujo marido
estava ausente; e o romper do dia, momento da partida do terceiro
esposo, foi marcado para a última, para os gozos do amor.
Prévan, que não descuida nada, corre em seguida a casa da
bela estrangeira, inventa um estado de espírito que suscita o mau
humor de que ele necessitava, e sai depois de conseguir uma discussão
que lhe assegura vinte e quatro horas de liberdade.
Assim tomadas as suas disposições, entra em casa, contando
repousar um pouco; outros assuntos o esperavam.
As cartas de rompimento tinham sido um súbito clarão para
cada um dos amantes caídos em desgraça; nenhum deles podia
duvidar de que o seu sacrifício aproveitava a Prévan. E o despeito de
ter sido joguete, junto à imitação que traz quase sempre a pequena
humilhação de se ser abandonado, deu aos três, sem se comunicarem,
mas como se estivessem combinados, a resolução de pedirem uma
satisfação ao seu afortunado rival.
Este encontrou em casa os três desafios; aceitou-os lealmente;
mas, não querendo perder nem os prazos nem o brilho desta aventura,
fixou os encontros para o dia seguinte de manhã, e indicou aos três o
mesmo lugar e a mesma hora. Foi a uma das portas do Bosque de
Bolonha.
Chegada a noite correu a sua tríplice aventura com um êxito
igual; pelo menos gabou-se depois de que cada uma das suas novas
amantes recebera três vezes o penhor e o juramento do seu amor. Aqui,
como está vendo, faltam provas à história; tudo o que o historiador
imparcial pode fazer é observar ao leitor incrédulo que a vaidade e a
imaginação exaltadas podem obrar prodígios, tanto mais que a manhã
que devia seguir-se a uma brilhante noite parecia dever dispensar
reservas para o futuro. De qualquer modo, os fatos que se seguem
inspiram maior certeza.
Prévan dirigiu-se à hora exata ao encontro que marcara; no
local viu-se em presença dos seus três rivais, um tanto surpreendidos do
mútuo encontro, e cada um deles talvez já consolado em parte, vendo-
se no meio de companheiros de infortúnio.
Abordou-os com ar afável e cavalheiresco, e dirigiu-lhes esta
fala, que me foi reproduzida fielmente: "Senhores", disse-lhes ele, "uma
vez que vos encontro reunidos aqui, adivinhantes sem dúvida que
tendes os três o mesmo motivo de queixa contra mim. Estou pronto a
dar-vos razão. Que a sorte decida, entre vós, qual dos três tentará
primeiro uma vingança à qual tendes um direito igual. Não trouxe
padrinho nem testemunhas. Não os instituí para a ofensa; não os exijo
para a reparação". Depois, cedendo ao seu caráter de jogador,
acrescentou: "Eu sei que raramente se ganha em jogos de azar; mas,
seja qual for a sorte que me espera, já se viveu sempre bastante
quando se teve tempo de adquirir o amor das mulheres e a estima dos
homens."
Enquanto os seus adversários estupefatos se olhavam em
silêncio, e na sua delicadeza calculavam talvez que o triplo amante
impedia que a partida fosse igual, Prévan retomou a palavra: "Não vos
escondo", continuou ele, "que a noite que acabo de passar me fatigou
cruelmente. Seria generoso da vossa parte que me permitísseis reparar
as minhas forças. Dei as minhas ordens para que tivessem aqui pronto
um almoço; dai-me a honra de o aceitar. Almocemos juntos e,
sobretudo, almocemos alegremente. Podemos bater-nos por
semelhantes bagatelas; no entanto elas não devem, creio eu, alterar o
nosso humor".
O almoço foi aceito. Segundo se disse, nunca Prévan foi mais
amável. Teve a habilidade de não humilhar nenhum dos seus rivais, de
os persuadir e que todos teriam conseguido facilmente os mesmos
êxitos, e sobretudo de os pôr de acordo em que nenhum deles deixaria
escapar as ocasiões, tal como ele, Prévan. Uma vez confessados estes
fatos, tudo se arranjou por si mesmo. Ainda o almoço não tinha
terminado, já haviam repetido dez vezes que semelhantes mulheres não
mereciam que homens honestos se batessem por elas. Esta idéia trouxe
a cordialidade; o vinho fortificou-a; tão bem que, poucos momentos
depois, já não era bastante não haver entre eles rancor, juraram-se
amizade sem reserva.
Prévan, que sem dúvida gostava tanto deste desenlace como
do outro, não desejava todavia perder ali a sua celebridade. Em
conseqüência, submetendo habilmente os seus projetos às
circunstâncias, disse aos três ofendidos: "De fato, não é de mim, mas das
vossas infiéis amantes que deveis vingar-vos. Ofereço-vos a ocasião.
Como vós próprios, sinto já uma injúria que dentro em breve partilharei:
pois se cada um de vós não conseguiu conservar a fidelidade de uma
só, posso porventura esperar á fidelidade das três? A vossa ofensa
tornou-se minha. Aceitai para esta noite uma ceia em minha casa, e
espero que a vossa vingança não ficará adiada por muito tempo.”
Quiseram que ele se explicasse; porém ele, com o tom de superioridade
que as circunstâncias o autorizavam a tomar: "Senhores" respondeu,
"creio ter-vos provado que sei como conduzir-me; tende confiança em
mim". Todos consentiram; e, depois de terem abraçado o seu novo
amigo, separaram-se até à noite, esperando o efeito das promessas.
Sem perda de tempo, Prévan regressa a Paris, e vai, consoante o
uso, visitar as suas novas conquistas. Obtém das três que viriam naquela
mesma noite cear a sós com ele em sua casa.
Duas delas opuseram algumas dificuldades; mas que fica para
recusar no dia seguinte? Marcou os encontros com uma hora de
distância, tempo necessário aos seus projetos. Depois desses
preparativos, retirou-se, mandou avisar os outros três conjurados, e todos
quatro foram alegremente esperar as suas vítimas.
Ouviu-se chegar a primeira. Prévan apresenta-se só, recebe-a
com ar de solicitude, conduz-la até ao santuário de que ela se julgava
a divindade; depois, desaparecendo sob um ligeiro pretexto, faz-se
substituir imediatamente pelo amante ultrajado.
Como decerto imagina, a confusão de uma mulher que não
tem ainda a experiência das aventuras tornava, em tal momento, o
triunfo muito fácil. Toda a censura que não foi feita foi contada por uma
graça; e a escrava fugitiva, entregue de novo ao seu antigo senhor,
sentiu-se muito feliz por poder esperar o seu perdão, retomando as suas
primeiras algemas. O tratado de paz ratificou-se num lugar mais solitário,
e a cena, ficando vazia, foi alternadamente ocupada pelos outros
atores, mais ou menos da mesma maneira, e sobretudo com o mesmo
desfecho.
Todavia, cada uma das mulheres julgava-se ainda só em
campo. O seu espanto e o seu embaraço aumentaram quando, no
momento da ceia, os três pares se reuniram; mas a confusão chegou ao
cúmulo quando Prévan, que reapareceu no meio de todos, teve a
crueldade de apresentar às três infiéis umas desculpas que, divulgando
o seu segredo, lhes revelaram inteiramente até que ponto elas tinham
sido burladas.
Entretanto puseram-se à mesa e pouco depois a moderação
voltou: os homens entregaram-se, as mulheres submeteram-se.
Todos tinham o ódio no coração; mas as palavras trocadas não
eram por isso menos ternas. A alegria despertou o desejo, que, por seu
turno, lhe emprestou novos encantos. Esta espantosa orgia durou até de
manhã; e, quando se separaram, as mulheres julgaram-se perdoadas.
Mas os homens, que tinham conservado o seu ressentimento,
procederam no dia seguinte a um rompimento que não teve apelo; e,
não contentes de deixar as suas levianas amantes, terminaram a sua
vingança dando a público a aventura.
Desde então, uma delas está num convento, e as outras duas
definham exiladas nas suas terras.
Aqui está a história de Prévan; cumpre-lhe, Marquesa, julgar se
deseja aumentar a sua glória e atrelar-se ao seu carro de triunfo. A sua
carta causou-me verdadeira inquietação e espero com impaciência
uma resposta mais ajuizada e mais clara à última que lhe escrevi.
Adeus, minha bela amiga; desconfie das idéias divertidas ou
excêntricas que tão facilmente a têm seduzido sempre. Pense que, na
trajetória que a minha amiga segue, a inteligência não basta, e que
uma única imprudência pode tornar-se um mal sem remédio. Suporte
enfim que a prudente amizade seja algumas vezes o guia dos seus
prazeres.
Adeus. Apesar de tudo, continuo a gostar de si como se fosse
razoável.

18 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXX

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Cecília, minha querida Cecília, quando virá o tempo de


voltarmos a ver-nos? Quem me ensinará a viver longe de si? Quem me
dará para isso força e coragem? Nunca, sinto que nunca poderei
suportar esta fatal ausência. Cada dia aumenta o meu sofrimento, e
não posso ver-lhe um termo! Valmont, que me tinha prometido socorros,
consolações, Valmont descuida-se, e esquece-me talvez. Está junto
daquela que ele ama; não sabe quanto sofre aquele que está
afastado. Ao enviar-me a sua última carta, não me escreveu. No
entanto é ele quem deve dizer-me quando poderei vê-la e por que
meio. Nada terá pois a dizer-me?
A Cecília mesmo não me fala em tal; será por não partilhar esse
desejo? Ah! Cecília, sou muito infeliz. Amo-a mais do que nunca: mas
esse amor, que faz o encanto da minha vida, torna-se o tormento dela.
Não, não posso mais viver assim, é preciso que eu a veja, é
preciso, nem que seja por um momento. Quando me levanto, digo a
mim mesmo: "Não a verei." Deito-me dizendo: "Não a vi." Os dias tão
longos não têm um momento para a felicidade.
Tudo é privação, tudo é saudade, tudo é desespero; e todos
estes males me vêm de onde eu esperava todos os meus prazeres!
Acrescente a estas penas mortais a minha inquietação sobre as
suas, e fará uma idéia da minha situação. Penso em si a todo o
momento, e nunca penso sem perturbação. Se a vejo aflita, infeliz, sofro
por todas as suas tristezas; e se a vejo tranqüila e consolada, são as
minhas que redobram. Por toda a parte encontro o sofrimento.
Ah! não era assim, quando habitava os mesmos lugares do que
eu!
Tudo então era prazer. A certeza de a ver embelezava mesmo
os momentos da ausência; o tempo que era preciso passar longe de si
aproximava-me da Cecília enquanto ia passando.
O emprego que eu fazia dele nunca era estranho à Cecília. Se
cumpria deveres, estes tornavam-me mais digno de si; se cultivava
algum talento, esperava agradar-lhe cada vez mais. Mesmo quando as
distrações da sociedade me levavam para longe de si, nunca
estávamos separados.
Nos espetáculos, procurava adivinhar o que lhe teria agradado;
um concerto recordava-me os seus talentos e as nossas tão doces
ocupações.
Na sociedade, como nos passeios, aprendia a mais ligeira
semelhança.
Comparava-a a tudo; por toda a parte era a Cecília quem
levava a palma. Cada momento do dia era marcado por uma
homenagem nova, e cada noite eu lhe levava o tributo a seus pés.
Agora, que me resta? Dolorosas saudades, privações eternas, e
uma ligeira esperança de que o silêncio de Valmont diminua, que o seu
se mude em inquietação. Dez léguas somente nos separam, e este
espaço, tão fácil de transpor, só para mim se torna num obstáculo
invencível! E quando, para me ajudar a vencê-lo, imploro o meu amigo,
a minha amada, ambos ficam frios e tranqüilos! Longe de me
socorrerem, nem mesmo me respondem.
Que é feito da amizade ativa de Valmont? Que é feito,
sobretudo, minha Cecília, dos seus sentimentos tão ternos, que a
tornavam tão engenhosa para encontrar maneira de nos vermos todos
os dias? Algumas vezes, recordo-me, sem deixar de o desejar, via-me
obrigado a sacrificar esse desejo a considerações, a deveres. O que
não me dizia então a Cecília? Por quantos pretextos não combatia as
minhas razões? E lembre-se de que as minhas razões cediam sempre
aos seus desejos. Não pretendo extrair daí um mérito! Nem mesmo tinha
o do sacrifício! O que a Cecília desejava obter, ardia eu em desejos de
concedê-lo!
Mas, enfim, cabe-me agora a vez de pedir; e que peço eu? Vê-
la por um momento, renovar e receber o juramento dum amor eterno.
Pois já não está aí a sua felicidade, como está a minha?
Repito essa idéia desesperadora, que poria o cúmulo aos meus
males.
A Cecília ama-me, amar-me-á sempre; creio-o, estou certa disso,
não quero duvidar jamais. Mas a minha situação é horrorosa e não
posso suportá-la por mais tempo.
Adeus, Cecília.

Paris, 18 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Como os seus temores me causam piedade! Como me provam


a minha superioridade sobre o Visconde! E quer ensinar-me, conduzir-
me! Ah! meu pobre Valmont, que distância vai ainda de si a mim! Não,
todo o orgulho do seu sexo não seria suficiente para preencher o
intervalo que nos separa. Porque não poderia executar os meus
projetos, julga-os impossíveis!
Ente orgulhoso e fraco, fica-te bem quereres calcular os meus
meios e julgar dos meus recursos! Na verdade, Visconde, os seus
conselhos conseguiram irritar-me, e não posso esconder-lho.
Que para mascarar a sua inacreditável falta de jeito em relação
à sua Presidente o Visconde ostente como um triunfo o fato de ter
confundido por um momento essa mulher tímida e que o ama, consinto;
ter obtido dela um olhar, um único olhar, sorrio e passo adiante. Que
sentindo, a seu pesar, o pouco valor das suas diligências, espere furtá-
las à minha atenção, lisonjeando-me pelo esforço sublime de aproximar
duas crianças que ardem no desejo de se ver, e que, diga-se de
passagem, devem a mim somente o ardor desse desejo; admito-o
ainda. Que, enfim, a si mesmo autorize essas ações brilhantes, para me
dizer num tom doutoral que vale mais empregar o tempo a executar
projetos do que a contá-los; essa vaidade não me prejudica, e perdoo-
lha.
Mas que possa supor que eu tenho necessidade da sua
prudência, que eu poderia perder-me se não escutasse as suas
opiniões, que devo sacrificar-lhes um prazer, uma fantasia; na verdade,
Visconde, é exorbitar da confiança que desejo ter em si!
Que tem o Visconde feito que eu não tenha ultrapassado mil
vezes?
Seduziu, perdeu mesmo muitas mulheres: mas que dificuldade
teve a vencer? que obstáculos a ultrapassar? Onde está o mérito que
verdadeiramente lhe caiba? Uma bela figura, puro efeito do acaso;
maneiras graciosas, que o hábito dá quase sempre; espírito, na
verdade, mas o qual uma certa gíria de salão substitui em caso de
necessidade; um impudor muito louvável, mas talvez devido
unicamente à facilidade dos seus primeiros êxitos. Se me não engano,
eis todos os seus dotes; pois, para a celebridade que pôde adquirir, não
exigirá, creio, que conte por muito a arte de suscitar ou aproveitar a
ocasião dum escândalo.
Quanto à prudência, à finura, não falo de mim: mas que; mulher
não as possui de melhor qualidade que o Visconde? Oh! a sua
Presidente leva-o como uma criança.
Creia-me, Visconde, raramente se adquirem as qualidades sem
as quais se pode passar. Combatendo sem risco, deve-se; agir sem
precaução.
Para vós, os homens, as derrotas são apenas êxitos a menos.
Neste combate tão desigual, a nossa sorte está em não perder e a
vossa infelicidade em não ganhar. Ainda que eu concedesse aos
homens tantos talentos como a nós, mulheres, em quantos teríamos nós
ainda de ultrapassá-los, pela necessidade em que estamos de fazer
deles um uso contínuo!
Suponhamos, admito, que vocês põem tanta habilidade em
vencer-nos como nós a defender-nos ou a ceder; convirá ao menos
que ela se lhes torne útil após a vitória. Unicamente ocupados do sabor
que achais na nova ligação, entregais-vos a ela sem receio, sem
reserva; o tempo que ela poderá durar não vos interessa.
De fato, esses laços reciprocamente dados e recebidos, para
falar na gíria do amor, só vós podeis, à vossa escolha, estreitá-los ou
rompê-los; felizes ainda se na vossa ligeireza, preferindo o mistério ao
ruído, vos contentais com um abandono humilhante e não fazeis do
ídolo da véspera a vítima de manhã.
Mas que uma mulher infortunada sinta primeiro o peso da sua
cadeia que riscos não terá a correr se tentar subtrair-se a ela, se ousar
somente soerguê-la? Se experimenta afastar de si o ! homem que o seu
coração repele com esforço, é tremendo que o faz. Se ele se obstina
em ficar, é forçoso entregar ao medo o que antes era concedido ao
amor.
A sua prudência deve desatar com destreza aqueles mesmos
laços que vós teríeis desfeito. À mercê do seu inimigo, ela fica sem
recursos, se ele não tiver generosidade; e como esperar tal sentimento,
quando, se algumas vezes o louvam quando o tem, nunca todavia o
censuram por ele lhe faltar?
Os seus braços abrem-se ainda, quando o seu coração está
fechado.
O Visconde não negará, sem dúvida, estas verdades, cuja
evidência as tornou triviais. Se, entretanto, alguma vez me viu, dispondo
dos acontecimentos e das opiniões, fazer desses homens tão temíveis o
joguete dos meus caprichos ou das minhas fantasias; tirar a uns a
vontade, a outros o poder de me serem nocivos; se eu soube, pouco a
pouco, e consoante a variedade dos meus gostos, juntar ao meu
séqüito ou expulsar da minha beira; se, em meio dessas revoluções
freqüentes, a minha reputação apesar de tudo se conservou pura; não
deverá o Visconde concluir que, nascida para vingar o meu sexo e
dominar o seu, eu soube inventar para o meu uso meios desconhecidos
até de mim própria?
Ora! guarde os seus conselhos e os seus receios para certas
mulheres delirantes, das quais se diz serem sentimentais; cuja
imaginação exagerada levaria a supor que a Natureza lhes pôs os
sentidos na cabeça; que, não tendo nunca refletido, confundem sem
cessar o amor e o amante; que, na sua louca ilusão, acreditam que só o
homem com quem procuraram o prazer é o seu único depositário; e
que, verdadeiramente supersticiosas, têm pelo sacerdote o respeito e a
fé que se deve apenas à divindade.
Pode ainda ter receio por aquelas que, mais superficiais do que
prudentes, não sabem consentir, se for necessário, em serem
abandonadas.
Deverá tremer principalmente pelas mulheres ativas na sua
ociosidade, a quem o Visconde chama sensíveis, e das quais o amor se
apodera tão facilmente e com tamanha força; que sentem a
necessidade de se ocuparem ainda do amor, mesmo quando dele não
podem já extrair prazer algum; e que, abandonando-se à fermentação
das suas idéias, inventam para si próprias cartas tão doces, mas tão
perigosas de escrever, e que não receiam confiar essas provas da sua
fraqueza ao próprio objeto que lhes deu causa. Imprudentes que, no
seu atual amante, não sabem ver o seu futuro inimigo!
Mas que tenho eu de comum com essas mulheres irrefletidas?
Quando me viu o Visconde afastar-me das regras que a mim
própria determinei, e faltar aos meus princípios? Os meus princípios,
repito-o, e digo-o deliberadamente, pois eles não são, como os das
outras mulheres, colhidos ao acaso, aceites sem análise e seguidos por
hábito; são o fruto das minhas profundas reflexões. Criei-os, e posso dizer
que são a minha obra.
Entrando na sociedade num tempo em que, criança ainda, as
circunstâncias me condenavam ao silêncio e à inação, delas soube
tirar proveito para observar e refletir. Enquanto me julgavam estouvada
ou distraída, não dando ouvidos à verdade dos ensinamentos que me
dispensavam, eu recolhia cuidadosamente tudo o que procuravam
esconder-me.
Essa curiosidade útil, ao mesmo tempo em que servia para me
instruir, ensinava-me a dissimular. Obrigada muitas vezes a esconder dos
olhos dos que me rodeavam os motivos que me chamavam a atenção,
experimentei pousar os meus no que me agradasse; o resultado desde
logo foi ter adotado aquele olhar sem constrangimento que o Visconde
tantas vezes me gabou.
Animada por este primeiro êxito, tratei de regular, pelo mesmo
processo, os diversos movimentos do meu rosto. Se sentia qualquer
apreensão, estudava-me até assumir um ar de serenidade ou mesmo
de alegria; levei o meu zelo ao ponto de a mim própria causar dores
voluntárias, para durante esse tempo procurar a expressão do prazer.
Com o mesmo cuidado e maior custo, exercitei-me a reprimir os
sintomas de uma alegria inesperada.
Foi assim que consegui tomar sobre a minha fisionomia aquele
domínio que algumas vezes admirou em mim.
Eu era ainda muito nova e quase sem interesse; mas só tinha de
meu os próprios pensamentos, e indignava-me à idéia de que mos
pudessem roubar ou surpreender contra minha vontade.
Munida dessas primeiras armas, experimentei servir-me delas.
Não me satisfazia o não me deixar penetrar: divertia-me mostrar-
me sob formas diferentes. Dominando os meus gestos, observava as
minhas falas.
Uns e outras eram regulados segundo as circunstâncias, ou
mesmo segundo as minhas fantasias. Desde então, a minha maneira de
pensar pertenceu-me a mim só, e não mostrei nunca senão o que me
era útil deixar ver.
Este trabalho sobre mim própria fixou a minha atenção sobre a
expressão dos rostos e o caráter das fisionomias; e adquiri esta mirada
penetrante, na qual a experiência todavia me ensinou a não me fiar
inteiramente, mas que, em todos os casos, raramente me enganou.
Ainda não tinha quinze anos, possuía já os talentos a que a
maior parte dos nossos políticos devem a sua reputação, e encontrava-
me ainda nos rudimentos da ciência que pretendia adquirir.
Como pode calcular, procurava, como todas as raparigas,
adivinhar o amor e os seus prazeres; mas, não tendo passado pelo
convento, não possuindo uma amiga segura, e guardada por uma mãe
vigilante, tinha apenas idéias vagas e que não podia fixar. A própria
natureza, da qual mais tarde, seguramente, só tive de me louvar, não
me dava ainda qualquer indício. Dir-se-ia que trabalhava em silêncio
para aperfeiçoar a sua obra. Só a minha cabeça fermentava; o meu
desejo não era gozar, era saber. O desejo de me instruir sugeriu-me os
meios.
Senti que o único homem com quem podia falar sobre esse
assunto, sem me comprometer, era o meu professor. E logo tomei o meu
partido.
Passei por cima dessa pequena vergonha; e, gabando-me
duma falta que não tinha cometido, acusei-me de ter feito tudo o que
fazem as mulheres. Tal foi a expressão de que usei; mas, falando assim,
eu não sabia na verdade que idéia exprimia. A minha esperança não
foi de todo iludida, nem inteiramente realizada; o receio de me trair
impedia-me de me esclarecer.
Mas o bom do padre pintou-me o mal tão grande que eu
concluí que o prazer devia ser extremo; e ao desejo de o conhecer
sucedeu o de o saborear.
Não sei onde esse desejo me teria conduzido; e, faltando-me por
completo a experiência, uma única oportunidade ter-me-ia talvez
perdido.
Felizmente para mim, minha mãe anunciou-me alguns dias
depois que eu ia casar-me. A certeza de que ia saber extinguiu
imediatamente a minha curiosidade, e cheguei virgem aos braços do
senhor de Merteuil.
Era com tranqüilidade que esperava o momento que tudo devia
ensinar-me e foi-me preciso refletir para mostrar confusão e receio. A
primeira noite, de que geralmente se tem uma idéia tão cruel ou tão
doce, apresentava-me apenas uma ocasião de experiência: dor e
prazer, tudo eu observava com exatidão, e nessas diversas sensações
via apenas fatos para recolher e meditar.
Este gênero de estudo depressa começou a agradar-me; mas,
fiel aos meus princípios, e sentindo, talvez por instinto, que ninguém
devia estar mais longe da minha confiança do que o meu marido,
resolvi, pelo simples fato de que era sensível, mostrar-me impassível a
seus olhos. Esta frieza aparente foi, ao longo do tempo, o fundamento
inabalável da sua cega confiança. Juntei-lhe, após uma segunda
reflexão, o aspecto estouvado que a minha idade autorizava; e nunca
ele me julgou mais criança do que nos momentos em que com mais
audácia eu o iludia.
Entretanto, devo confessá-lo, deixei-me primeiro arrastar pelo
turbilhão do mundo, e entreguei-me inteiramente às suas distrações
fúteis.
Mas ao fim de alguns meses, tendo-me o senhor de Merteuil
levado a partilhar as suas tristes férias no campo, o medo do
aborrecimento fez com que me voltasse o gosto do estudo; e
encontrando-me rodeada apenas de pessoas cuja distância de mim
me punha ao abrigo de toda a suspeita, aproveitei a ocasião para dar
um campo mais vasto às minhas experiências.
Foi ali, principalmente, que obtive a certeza de que o amor que
nos louvam como a causa dos nossos prazeres é apenas, quando muito,
o seu pretexto. A doença do senhor de Merteuil veio interromper tão
doces ocupações; foi necessário segui-lo à cidade, onde ele ia procurar
socorros.
Morreu, como sabe, pouco tempo depois; e embora, no fim de
contas, eu não tivesse de me queixar dele, nem por isso senti menos
vivamente o preço da liberdade que a minha viuvez ia proporcionar-
me, e a mim própria prometi aproveitar bem essa liberdade.
Minha mãe contava que eu entrasse num convento, ou voltasse
a viver com ela. Recusei uma e outra solução; e tudo o que concedi à
decência foi voltar ao mesmo lugar no campo, onde me restavam
ainda algumas observações a fazer.
Essas observações ganharam força com o auxílio da leitura; mas
não julgue que foram todas do gênero que supõe. Estudei os nossos
costumes nos romances; as nossas opiniões nos filósofos; procurei
mesmo nos mais severos moralistas o que eles exigiam de nós, e soube
assim o que se podia fazer, o que se devia pensar e o que era preciso
parecer. uma vez fixada sobre esses três pontos, só último apresentava
algumas dificuldades na sua execução; esperei vencê-las e medirei nos
meios.
Começava a aborrecer-me dos meus prazeres rústicos,
demasiado monótonos para a minha imaginação; sentia uma
necessidade de coquetismo que me reconciliasse com o amor; não
para verdadeiramente o sentir, mas para o inspirar e o fingir.
Em vão me haviam dito e eu tinha lido que não se podia fingir
esse sentimento; eu via, no entanto, que para o conseguir bastava
juntar à inteligência de um autor o talento de um comediante.
Experimentei os dois gêneros, e talvez com algum êxito; mas em
lugar de procurar os vãos aplausos do teatro, resolvi empregar na minha
felicidade o que tantos outros sacrificavam à vaidade.
Um ano se passou nessas diversas ocupações. Como o meu luto
já me permitia voltar a aparecer, regressei à cidade com os meus
grandes projetos; não esperava o primeiro obstáculo que aí encontrei.
Aquela longa solidão, aquele retiro austero tinham lançado
sobre mim uma aparência de virtude que amedrontava os nossos galãs;
mantinham-se afastados e deixavam-me entregue a uma multidão de
aborrecidos senhores, que pretendiam todos a minha mão. O
embaraço não estava em recusá-los; mas várias dessas recusas
desagradavam à minha família, e eu perdia nessas questões internas o
tempo que prometera a mim mesma gastar tão agradavelmente. Fui
pois obrigada, para atrair uns e afastar os outros, a pôr em relevo
algumas inconseqüências e a empregar em prejudicar a minha
reputação, o cuidado que pensava aplicar em conservá-la. Consegui-o
facilmente, como pode imaginar. Mas não me sentindo arrebatada por
nenhuma paixão, fiz só o que julguei necessário, e medi com prudência
as doses da minha leviandade.
Logo que atingi o fim que me propusera voltei ao ponto de
partida e fiz promessas de emenda a algumas daquelas mulheres que,
não podendo ter pretensões a agradar, se pavoneiam com as do
mérito e da virtude. Foi um lance de dados que me valeu mais do que
eu esperava. Aquelas reconhecidas donas arvoraram-se em minhas
apologistas; e o zelo cego que empregaram para louvar o que elas
chamavam a sua obra chegou ao ponto de, à menor frase que alguém
se permitisse a meu respeito, todo o partido da virtude gritar contra o
escândalo e a injúria. Pelo mesmo processo consegui ainda a
aprovação das mulheres que pretendiam agradar, as quais,
persuadidas de que eu renunciava a seguir carreira idêntica à sua, me
escolheram para alvo dos seus elogios, todas as vezes que queriam
provar que não diziam mal de toda a gente.
Entretanto, a minha anterior conduta tinha atraído os
apaixonados; e, para me equilibrar entre eles e as minhas infiéis
protetoras, mostrei-me como uma mulher sensível, mas difícil, a quem o
excesso de delicadeza fornece armas contra o amor.
Então comecei a desenvolver no grande teatro os talentos que
dera a mim própria. O meu primeiro cuidado foi o de adquirir o renome
de invencível. Para chegar a isso, os homens que não me agradavam
foram sempre os únicos de quem simulei aceitar as homenagens.
Empreguei-os utilmente em alcançar por meio deles as honras da
resistência, enquanto me entregava sem receio ao amante preferido.
Mas a esse a minha fingida timidez não permitiu nunca que me seguisse
na sociedade; e os olhares do mundo fixaram-se, desse modo, no
amante recusado.
Sabe, meu amigo, que levo pouco tempo a decidir-me; é por ter
observado que são quase sempre os cuidados anteriores que revelam o
segredo das mulheres. Por muito que se faça, o tom nunca é o mesmo,
antes e depois do acontecimento. Esta diferença não escapa ao
observador atento, e achei menos perigoso enganar-me na escolha do
que deixar-me penetrar. Ganho ainda com esse procedimento afastar
as evidências, que fornecem os únicos elementos para nos julgarem.
Estas precauções, e ainda a de nunca escrever, não entregar
nunca uma prova da minha derrota, poderiam parecer excessivas; a
mim nunca me pareceram suficientes. Desci ao fundo do meu coração,
e nele estudei o dos outros. Soube assim que não há ninguém que não
conserve aí um segredo que não deve ser revelado; eis uma verdade
que a Antiguidade parece ter conhecido melhor do que nós, e da qual
a história de Sansão poderia ser apenas uma engenhosa alegoria. Nova
Dalila, empreguei sempre, como ela, o meu poder em surpreender esse
importante segredo.
Quantos Sansões modernos não tive eu já com a cabeleira sob a
minha tesoura! E a esses, deixei eu de temer; são os únicos que me
tenho permitido humilhar algumas vezes. Mais subtil com os outros, a
arte de os tornar infiéis para evitar parecer-lhes volúvel, uma fingida
amizade, uma aparente confiança, alguns rasgos generosos, a idéia
lisonjeira que cada um conserva de ter sido o meu único amante, tudo
serviu para obter o seu silêncio.
Por fim, quando esses meios me faltaram, soube, antes de
romper, abafar de antemão, sob o ridículo ou a calúnia, a confiança
que esses homens perigosos pudessem obter.
O que lhe estou dizendo, tem-me o Visconde visto praticar
constantemente; e duvida da minha prudência! Pois bem: evoque o
tempo em que me dispensou as suas primeiras atenções.
Nunca uma homenagem me lisonjeou tanto; desejava-o antes
de o ter visto. Seduzida pela sua reputação, parecia-me que fazia falta
à minha glória. Ardia no desejo de o combater corpo a corpo. Foi o
único dos meus prazeres que teve algum império sobre mim. Entretanto,
se o Visconde tivesse querido perder-me, que meios teria encontrado?
Palavras vãs que não deixam sulco atrás de si, que a sua própria
reputação teria ajudado a tornar suspeitas, e uma sucessão de fatos
sem verossimilhança, cuja narração sincera teria o ar de um romance
mal urdido.
É certo que, mais tarde, vim a entregar-lhe todos os meus
segredos; mas o Visconde sabe os interesses que nos unem, e se, de nós
dois, sou eu quem deve culpar-se de imprudência.*
Já que estou em maré de lhe prestar contas, desejo fazê-lo com
exatidão. Daqui ouço-o dizer-me que estou, pelo menos, à mercê da
minha criada de quarto; de fato, se ela não possui o segredo dos meus
sentimentos, possui o dos meus atos. Quando o Visconde em tempos
me falou a esse respeito, respondi-lhe apenas que estava segura dela; e
a prova de que esta resposta bastou então para a sua tranqüilidade é
que depois disso lhe confiou, por sua conta, segredos bastante
perigosos. Mas agora que Prévan lhe faz sombra, e que a cabeça lhe
anda à roda, tenho dúvidas de que me acredite sob palavra. Vou pois
edificá-lo.
Em primeiro lugar, essa rapariga é minha irmã de leite, e esse
*Virá a saber-se na continuação, Carta CLII, não o segredo do senhor de Valmont,
mas aproximadamente de que gênero ele era; e o leitor sentirá que não foi possível
esclarecê-lo melhor sobre este assunto.
laço que aparentemente nada vale não deixa de ter importância para
pessoas dessa categoria. Além disso, conheço o segredo dela, e mais
ainda: vítima duma loucura de amor, estaria perdida se eu não a
tivesse salvo. Os pais dela, todos eriçados de honra, queriam nada
menos do que interná-la.
Dirigiram-se a mim. Vi, num relance, quanto a sua cólera me
poderia ser útil.
Secundei essa cólera, e solicitei a ordem de internamento, que
obtive. Depois, passando subitamente ao partido da clemência, para o
qual atraí os pais, e aproveitando do meu crédito junto do velho
ministro, levei-os a consentir que me deixassem depositária dessa
ordem, e senhora de pedir ou deter a sua execução, consoante o
mérito do procedimento dessa rapariga. Ela sabe que tenho a sua sorte
nas minhas mãos e ainda que, por absurdo, esse poderoso meio não a
detivesse, não é evidente que a sua conduta desregrada e a sua
punição autêntica tirariam todo o crédito às suas palavras?
A essas precauções que chamo fundamentais, juntam-se muitas
outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito farão encontrar,
caso seja necessário, e que seria fastidioso pormenorizar, mas cuja
prática é importante. Se quer chegar a conhecê-las, Visconde, dê-se
ao trabalho de considerar o meu comportamento no seu conjunto.
Mas pretender que eu me tenha entregue a tantos cuidados
para não retirar deles o fruto; que depois de tanto me ter elevado sobre
outras mulheres pelos meus penosos trabalhos eu consinta em rastejar
como elas, entre a imprudência e a timidez; que sobretudo eu possa
temer um homem a ponto de não ver salvação a não ser na fuga?
Não, Visconde; nunca. É preciso vencer ou morrer. Quanto a Prévan,
quero tê-lo e hei-de tê-lo; ele quererá divulgá-lo, e não o divulgará. Em
duas palavras, eis o nosso romance.
Adeus.
20 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXII

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Meu Deus, como a sua carta me fez pena! E tinha eu tanta


impaciência de a receber! Esperava encontrar nela consolação e afinal
fiquei muito mais aflita do que antes de a ter recebido.
Chorei muito enquanto a lia. Mas não é isso que eu lhe censuro;
já tenho corado muitas vezes por sua causa, sem que isso me faça
pena. Mas, desta vez, não é a mesma coisa.
Que é que quer dizer quando escreve que o seu amor se torna
um tormento, que não pode viver assim; nem suportar por mais tempo a
sua situação? Será o caso que vai deixar de amar-me, só porque isso
não é tão agradável como noutro tempo?
Parece-me que eu não sou mais feliz, bem pelo contrário; e no
entanto,amo-o cada vez mais. Se o senhor de Valmont não lhe
escreveu, a culpa não é minha; não lhe pude pedir, porque nunca
estive só com ele, e combinamos que não nos falaríamos diante das
outras pessoas; e isso é ainda por si, para que ele possa fazer o mais
cedo possível aquilo que deseja. Não digo que o não deseje também, e
disso pode estar certo; mas que quer que eu faça? Se julga que é fácil,
encontre o meio, que eu não peço melhor.
Julga que me é agradável ser repreendida pela Mamã, que
antes não me ralhava nunca, bem pelo contrário? Agora é pior do que
se eu estivesse no convento. Ainda me consolava pensando que era
por si; havia até ocasiões em que eu me dava por feliz.
Mas quando vejo que também está zangado sem que haja da
minha parte culpa nenhuma, fico mais triste do que estava por tudo
quanto aconteceu até aqui.
Só para receber as suas cartas são uns trabalhos, que se o senhor
de Valmont não fosse tão bom e tão expedito como é, eu não sabia o
que havia de fazer. E para lhe escrever é ainda mais difícil.
De manhã não me atrevo, porque a Mamã está muito perto de
mim, e a cada momento entra no meu quarto. Algumas vezes posso
fazê-lo de tarde, com o pretexto de cantar ou tocar harpa; e mesmo
assim é preciso interromper-me a cada linha para que ouçam que
estou a estudar.
Felizmente a minha criada de quarto adormece algumas vezes
ao serão, e eu digo-lhe que me deito muito bem sozinha, para que ela
se vá embora e me deixe luz.
Depois, tenho de me pôr debaixo dos cortinados, para que não
se possa ver a claridade, e para que ao menor ruído eu possa esconder
tudo na cama, se vier alguém. Sempre queria que estivesse no meu
lugar, para ver o que fazia! Bem vê que é preciso amar muito para fazer
isto. Enfim, o certo é que faço tudo o que posso; e eu desejava poder
fazer ainda mais.
É claro que não recuso dizer-lhe que o amo e que o amarei
sempre; nunca lho disse tão do fundo do coração; e ainda está
zangado! No entanto, tinha-me dado a certeza, antes que eu lho
dissesse, que isso bastava para o tornar feliz. Não pode negar o que
disse: está nas suas cartas.
Embora eu já as não tenha, lembro-me disso como quando as lia
todos os dias. E só porque estamos longe um do outro já pensa de
maneira diferente! Mas esta ausência não há de durar sempre. Meu
Deus, como eu sou infeliz! E por sua causa, só por sua causa!
A propósito das suas cartas, espero que tenha guardado as que
a Mamã me tirou, para lhas entregar; há de vir um tempo em que não
esteja tão vigiada como agora, e então tornar-me-á a dar todas. Como
serei feliz, quando puder guardá-las sempre, sem que ninguém tenha
nada a ver com isso! Agora é ao senhor de Valmont que as entrego,
porque seria muito arriscado proceder de outra maneira; apesar disso
nunca lhe dou nenhuma que não me faça pena.
Adeus, meu querido amigo. Amo-o de todo o meu coração.
Amá-lo-ei toda a minha vida. Espero que já não esteja zangado;
e se estivesse certa disso, também já o não estaria. Escreva-me o mais
depressa que puder, pois sinto que até lá estarei sempre triste.

Castelo de. . ., 21 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Suplico-vos, senhora, reatemos o nosso diálogo tão


desgraçadamente interrompido! Que eu possa acabar de vos provar
quanto sou diferente do odioso retrato que vos tinham feito a meu
respeito; que eu possa, principalmente, gozar ainda dessa amável
confiança que começáveis a testemunhar-me! Que de encantos sabeis
dar à virtude! De que maneira embelezais e tornais queridos todos os
sentimentos honestos! É essa a vossa sedução; é a mais forte, a única,
ao mesmo tempo poderosa e respeitável.
Sem dúvida basta ver-vos para que se deseja agradar-vos; ouvir-
vos em meio dos indiferentes, para que esse desejo aumente. Mas
aquele que teve a felicidade de vos conhecer melhor, que pôde
algumas vezes ler na vossa alma, depressa cede a um entusiasmo mais
nobre, e, penetrado de admiração e de amor, adora em vós a imagem
de todas as virtudes. Talvez mais predestinado que outros para as amar
e as seguir, mas alheado delas por alguns erros que me haviam
arrastado, fostes vós que me aproximastes, que de novo me fizestes
sentir todo o seu encanto.
Achais que é um crime esse novo amor? Condenareis a vossa
obra?
Censurareis a vós própria o interesse que por ela podereis sentir?
Que mal se pode recear dum sentimento tão puro, e que delícias não
poderá ele proporcionar?
Assusta-vos o meu amor porque o achais violento, arrebatado?
Podereis temperá-lo por um amor mais doce; não recuseis o
domínio que vos ofereço, ao qual, juro, jamais deixarei de submeter-me,
e que, ouso crê-lo, não será inteiramente perdido para a virtude. Que
sacrifício poderia parecer-me penoso, com a certeza de que o vosso
coração saberia dar-lhe o preço? Onde está o homem tão desgraçado
que não saiba extrair prazer das privações que se impõe; que não
prefira uma palavra, um olhar concedidos, a todos os gozos que
poderia roubar ou surpreender!
E pudestes supor que era eu esse homem! E tivestes receio de
mim! Ah! Por que não depende de mim a vossa felicidade?
Como eu me vingaria de vós, tornando-vos feliz! Mas esse suave
jugo não é a estéril amizade que o impõe; para produzi-lo, só o amor.
Esta palavra intimida-vos! E porquê? Uma dedicação mais terna,
uma união mais forte, um único pensamento, a própria felicidade, os
próprios sofrimentos, que há em tudo isso de estranho à vossa alma?
Todavia, é isso o amor! Pelo menos esse que inspirais e que eu sinto! É
ele principalmente que, calculando sem interesse, sabe apreciar as
ações pelo seu mérito e não pelos seus resultados; tesouro inesgotável
das almas sensíveis, tudo que é feito por ele ou através dele se torna
precioso.
Estas verdades tão fáceis de compreender, tão doces de
praticar, que têm de assustador? Que apreensões pode causar-vos um
homem sensível, a quem o amor já não permite outra felicidade que
não seja a vossa? É esse hoje o meu único desejo: sacrificarei tudo para
o realizar, exceto o sentimento que o inspira; e se consentirdes em
partilhar esse sentimento, dirigi-lo-eis como vos aprouver. Mas não
suportemos que ele nos divida, quando nos deveria reunir. Se a amizade
que me oferecestes não é uma palavra vã, se, como ontem me
dissestes, é o sentimento mais doce que a vossa alma pôde conhecer,
seja ela que regule as condições entre nós, não me furtarei aos seus
mandatos.
Mas, chamada a julgar o amor, que ela consinta em ouvi-lo;
uma recusa tornar-se-ia uma injustiça, e amizade não é injusta.
Um segundo encontro não terá mais inconvenientes do que o
primeiro: o acaso pode ainda fornecer-nos a ocasião. Podereis mesmo
ainda indicar o momento próprio. Admito que eu não tenha razão; não
gostaríeis mais de convencer-me do que de combater-me? E duvidais
da minha docilidade? Se um importuno não tivesse vindo interromper-
nos, talvez eu já me tivesse rendido inteiramente à vossa opinião; quem
sabe até onde pode chegar o vosso poder?
Deverei dizê-lo? Esse poder invencível, ao qual me entrego sem
ousar calcular a sua extensão, esse encanto irresistível, que vos torna
soberana dos meus pensamentos como das minhas ações, acontece-
me algumas vezes receá-los. Pobre de mim!
Talvez eu deva antes temer esse encontro que vos peço! Talvez
depois, cativo das minhas promessas, eu me veja reduzido a abrasar-
me num amor que eu sinto bem que não poderá extinguir-se, sem ousar
mesmo implorar o vosso socorro! Ah! senhora, suplico-vos, não abuseis
do vosso domínio! Mas quê! Se assim vos sentirdes mais feliz, se por isso
eu vos dever parecer mais digno de vós, que mágoas não serão
suavizadas por essas consoladoras idéias? Sim, bem o sinto; falar-vos
ainda é dar-vos armas mais fortes contra mim; é submeter-me mais
inteiramente à vossa vontade. É mais fácil a defesa contra as vossas
cartas; as palavras são as mesmas, mas falta a vossa presença para lhes
dar força. Entretanto, o prazer de vos ouvir faz que eu arroste o perigo:
terei ao menos a felicidade de tudo tentar por vós, mesmo contra mim;
e os meus sacrifícios tornar-se-ão uma homenagem.
Considero-me feliz por vos provar de mil maneiras, como de mil
modos o sinto, que sois vós e sereis sempre o objeto mais caro ao meu
coração.

Castelo de..., 23 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

Viu bem como ontem fomos contrariados. Durante todo o dia


não pude entregar-lhe a carta que tinha para si; não sei se hoje será
mais fácil.
Receio comprometê-la, pondo nisso mais zelo do que
habilidade; e não perdoaria a mim próprio uma imprudência que lhe
seria fatal e causaria o desespero do meu amigo, tornando-a a si
eternamente infeliz. No entanto, conheço as impaciências do amor; sei
quanto deve ser penoso, na sua situação, suportar qualquer demora na
única consolação que possa experimentar neste momento. À força de
me ocupar do processo de afastar os obstáculos, encontrei uma cuja
execução será fácil, se nisso puser algum empenho.
Julgo ter reparado que a chave da porta de seu quarto, que dá
para o corredor, está sempre sobre a chaminé da sua Mamã.
Tudo se tornaria fácil com essa chave, como está vendo; mas, à
falta dela, procurarei arranjar-lhe uma parecida e que a substitua.
Bastar-me-á, para isso, ter a outra uma hora ou duas à minha
disposição. Devo achar facilmente ocasião de a tirar, e para que
ninguém dê pela falta, junto aqui uma, muito parecida, e ninguém
notará a diferença, a menos que a experimentem, o que é pouco
provável. Será preciso apenas que tenha o cuidado de lhe pôr uma fita
azul igual à que tem a outra.
Deve ter essa chave em seu poder amanhã ou depois de
amanhã, à hora do almoço, porque lhe será mais fácil dar-ma nessa
altura, e poderá voltar a pô-la no seu lugar à noite, que é quando sua
Mamã poderá dar-lhe mais atenção. Posso entregar-lha na altura do
jantar, se concordar com isto.
Como sabe, quando vamos do salão para a sala de jantar, é
sempre Madame de Rosemonde que vem em último lugar. Eu dar-lhe-ei
a mão. Terá apenas de deixar o seu tear vagarosamente, ou então
deixar cair qualquer coisa, de maneira a ficar atrás de todos; nesse
momento agarrará a chave, que eu lhe estenderei.
Não se esquecerá, logo que tenha a chave, de vir junto da
minha velha tia, fazendo-lhe algumas carícias. Se por acaso deixar cair
a chave, não lhe cause isso embaraço; eu fingirei que é minha e
respondo pelo resto.
A falta de confiança da sua Mamã e a maneira dura como a
trata autorizam-na a esta pequena fraude. Além do mais, é a única
maneira de continuar a receber as cartas de Danceny, e de fazer que
ele receba as suas; qualquer outro meio é realmente demasiado
perigoso, poderia perder-vos aos dois sem recurso; e a minha prudente
amizade não se consolaria de o ter empregado.
Uma vez de posse da chave, restar-nos-ão algumas precauções
a tomar para evitar o ruído da porta e da fechadura; mas será coisa
fácil. Por baixo do mesmo armário onde pus o papel, encontrará óleo e
uma pena.
Como vai ao seu quarto algumas vezes a horas em que está
sozinha, aproveite para olear a fechadura e os gonzos. Só deve ter
cuidado em não deixar nódoas, que fariam desconfiar. Por isso será
melhor fazer esse trabalho à noite, porque, se o fizer com a atenção de
que a julgo capaz, no dia seguinte de manhã não se notará nada.
Se apesar de tudo alguém notar alguma coisa, não hesite em
dizer que foi o serralheiro do castelo. Nesse caso, será preciso
especificar o tempo e até as conversas que ele teve consigo; como, por
exemplo, que ele toma esse cuidado, para evitar a ferrugem, com
todas as fechaduras de que se não faz uso; pois está vendo que não
seria verossímil ouvir esse barulho todo sem perguntar a causa. São estes
pequenos pormenores que dão verossimilhança, e a verossimilhança faz
que as mentiras não tenham conseqüências, tirando o desejo de as
verificar.
Depois de ter lido esta carta, peço-lhe que volte a lê-la, e,
mesmo, que a estude em pormenor: primeiro, porque é preciso saber
bem o que se quer fazer bem; em seguida, para ter a certeza de que
não omiti nada.
Pouco habituado a usar por minha conta destas habilidades,
não tenho feito delas grande uso. Foi preciso até a minha viva amizade
por Danceny, e o interesse que me inspira, para me resolver a servir-me
destes processos, aliás bem inocentes. Tenho ódio a tudo que se pareça
com enganar o próximo; é este o meu caráter. Mas as vossas
infelicidades tocaram-me a tal ponto, que tentarei tudo para suavizá-
las.
Como deve imaginar, depois desta combinação entre nós ser-
me-á mais fácil conseguir, com Danceny, o encontro que ele deseja.
Mas por agora não lhe fale nisto; não faria senão aumentar a sua
impaciência, e não chegou ainda o momento de a satisfazer. Deve
antes, segundo creio, empregar os seus cuidados em acalmá-la, de
preferência a agravá-la. A este respeito, confio na sua delicadeza.
Adeus, minha bela pupila. Ame um pouco o seu tutor, e
sobretudo empregue com ele docilidade; será bem recompensada por
isso. Ocupo-me da sua felicidade e pode crer que nela encontrei
também a minha.

24 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça.


Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao
fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o que isto
quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu ou ele, se
poderá gabar. A narração não é tão agradável como a ação; por
outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde nada mais fez que
raciocinar bem ou mal sobre este assunto, extraísse dele tanto prazer
como eu, que empreguei tempo e trabalho.
Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar,
se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse rival
perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo livre, pelo
menos por algum tempo; talvez mesmo não torne a erguer-se da
prostração em que o lancei.
Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si uma
fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza que o atrai,
eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto dela. Deseja vingar-
se de uma mulher que lhe furta; eu marco o lugar onde deve feri-la, e
entrego-a à sua mercê. Por fim, para afastar do combate um
concorrente temível, sou ainda eu que o inspiro e o ponho no mais alto
lugar. Na verdade, se não passa a vida a agradecer-me, é porque é
um ingrato. Mas volto à minha aventura, desde o início.
O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi ouvido,
como eu tinha esperado*. Prévan compareceu; e quando a Marechala
lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver duas vezes
seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de responder que
desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil compromissos para
poder assim dispor daquela noite. A bom entendedor...
No entanto, como eu desejava ter a certeza se era ou não o
*Ver Carta LXXIV*Ver Carta LXXIV
verdadeiro objetivo daquela lisonjeira solicitude, quis obrigar o novo
apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto dominante. Declarei
que não jogava; de fato, ele encontrou, por seu lado, mil pretextos
para não jogar. E o meu primeiro triunfo foi sobre o lansquené.
Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar;
escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a quem eu
queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo tempo, sentia-
me à vontade por ter uma testemunha respeitável que, em caso de
necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento e os meus
propósitos. Esta combinação deu resultado.
Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se
tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para
experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento,
como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz deter a sua
jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para um início; baixou
de tom, tomando o da amizade discreta; e foi sob esta bandeira vulgar
que começamos o nosso recíproco ataque.
Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o
braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso ser
justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa particular,
parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral, da qual
aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa, falou-se de
uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia ir à cena no
Teatro Francês. Afetei algum pesar por não ter marcado o meu
camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei, como é da praxe; ao
que ele respondeu muito agradavelmente que eu não tinha ouvido
bem; que com certeza não faria o sacrifício do seu camarote a alguém
que ele não conhecia, mas que somente me avisava de que a senhora
Marechala disporia dele.
Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei.
Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar, um
lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com muita
bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a ocasião para
uma daquelas conversações de duplo sentido, para as quais tem um
talento que o Visconde já me gabou. De fato, tendo-se posto de joelhos
diante da Marechala, como uma criança submissa, dizia ele, sob o
pretexto de lhe pedir a opinião e de implorar o seu auxílio, disse ainda
muitas coisas lisonjeiras e ternas, as quais me era fácil supor que se
dirigiam a mim.
Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no
jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante;
mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse eu; mas
deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem, que foi a
da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que eu o admirava e me
ocupava excessivamente do efeito prodigioso que causava sobre mim.
Julgo que o deixei muito satisfeito; pelo meu lado, eu não estava menos
contente.
Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos
combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro Visconde, nada
posso dizer-lhe do espetáculo, a não ser que Prévan tem um talento
maravilhoso para o galanteio, e que a peça caiu; eis tudo o que lhe
posso dizer. Era com pena que eu via findar o serão, que realmente me
agradava muito. E para o prolongar, convidei a Marechala a vir cear
comigo; o que me forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável
galanteador, que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a casa das
Condessas de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome
reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar as
confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e prometi a
mim própria... continuar a aventura. Estava certa de que o emendaria
de tão perigosa tendência.
Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso,
ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por isso, quando
fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia, ao aceitá-la, de pôr
na minha um ligeiro frêmito, e de conservar, enquanto andávamos, os
olhos baixos e a respiração alta.
Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu
vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de tom e de
maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos que me dirigia
eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias forçavam-no a isso.
Mas o seu olhar, que se tornara menos vivo, era mais acariciador; as
inflexões da sua voz, mais doces; o seu sorriso já não era o da finura,
mas o da satisfação.
Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo
de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntar-
lhe: faria melhor do que isto?
Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que, sendo
forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade de me
defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um olhar rápido,
mas tímido e confundido, de propósito para o levar a crer que todo o
meu receio era que ele adivinhasse a causa da minha preocupação.
Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala
contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar na
otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos sonhos
ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim; de fato, ele
honrou-me com uma atenção particular. O Visconde imagina decerto
que os meus tímidos olhares não ousavam buscar os do meu vencedor;
mas, dirigidos para ele da maneira mais humilde, logo me deram a
certeza de que eu obtinha o efeito que pretendia produzir. Faltava
ainda persuadi-lo de que o mesmo encantamento me penetrava; por
isso, quando a Marechala anunciou que ia retirar-se, exclamei numa
voz terna e indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!"
Todavia levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe
quais os seus projetos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de dar
a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte.
Separámo-nos por fim.
Então, pus-me a refletir. Não duvidava que Prévan aproveitasse
a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar; que viesse
bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse com
vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a minha
reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que, por pouco
hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres dadas à
aventura ou com as que não têm experiência; e tinha a vitória certa se
ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo se tivesse a pretensão
de a obter de mim.
É tão cômodo ter de lidar com as pessoas de princípios!
Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos
desconcerta pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos
transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios, e
algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão facilmente
quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a atitude, o tom,
as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera.
Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o
Visconde adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida
defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia; embaraço, para lhe dar
tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser combatidas;
receio e desconfiança, para provocar os protestos; e da sua parte o
perpétuo estribilho; peço-lhe apenas uma palavra; e da minha um
silêncio, comunicando-lhe uma expectativa que fazia crescer o seu
desejo; e, através de tudo isso, a mão que se toma cem vezes, que se
retira sempre e nunca se recusa. Poderia passar-se assim um dia:
passamos uma hora mortal. Estaríamos talvez ainda nisso se não
ouvíssemos o ruído de uma carruagem entrando no pátio. Esse feliz
contratempo tornou, como é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu,
vendo chegado o momento em que já nada me podia surpreender,
depois de me ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa
palavra.
Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois
rodeava-nos numerosa sociedade.
Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu
consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de quarto
que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir, donde, como
sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir, e foi neste que o
recebi. O diálogo correu livremente, e como ambos tínhamos o mesmo
desejo, breve nos pusemos de acordo; mas era preciso desfazer-nos
daquele espectador importuno; era aí que eu queria chegar.
Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha vida
interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a encontrar um
momento de liberdade, que devíamos olhar como uma espécie de
milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera, e que ainda assim
tivera perigos excessivos para que eu me expusesse a eles, pois a todo o
instante alguém poderia entrar no salão. Não me esqueci de
acrescentar que os hábitos da minha casa estavam assim
estabelecidos porque, até ao presente, nunca me tinham contrariado;
e insisti ao mesmo tempo na impossibilidade de os mudar, porque seria
comprometer-me aos olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer,
ficar amuado, dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde
adivinha quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o
golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro.
Foi exatamente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na
esperança, afetou estar possuído de todo o amor de Orosmane.
Passado o lance teatral, voltamos às combinações. Não podendo ser
durante o dia, pensamos escolher uma noite. Mas o meu porteiro
tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de opinião que não se
podia pensar em suborná-lo.
Ele propôs-me a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o
previsto e inventei um cão que, manso e silencioso de dia, era um
verdadeiro demônio durante a noite. A facilidade com que eu entrava
em todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu em
resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse que eu
aceitei.
Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto como
ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal matéria, patrão
e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande ceia em minha casa, à
qual ele seria convidado. Chegado o momento, despedir-se-ia,
simulando sair só.
O hábil confidente chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele,
Prévan, em vez de subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não
chegaria a dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha
saído, e entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de
conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso que a
minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal projeto, razões
suficientemente más para que ele tivesse a pretensão de as destruir. Ele
respondeu dando-me exemplos; segundo ele, não havia processo mais
vulgar. Já várias vezes se servira dele. Era mesmo o de que fazia mais
uso, como o menos perigoso.
Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia de
candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto do meu
quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e ser-lhe-ia possível
entrar e esperar, sem grandes riscos, que as criadas se recolhessem; e,
para dar maior verossimilhança ao meu consentimento, exigia que o
momento do encontro fosse, sem discussão, de uma submissão perfeita.
Era preciso ter juízo, oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o
meu amor, mas não satisfazer o seu.
A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do
jardim; bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal.
Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono
mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado; pense
na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos de uma
melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse a saber-se, eu
estava certa de que ninguém o saberia. Combinamos para o dia
posterior ao seguinte.
Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que
ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o a
cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me o seu
camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar.
Convido a minha amiga a cear, durante o espetáculo e diante
de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele aceita e,
dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas normas. É certo que
volta a visitar-me no dia seguinte de manhã; mas, além de que as visitas
de manhã não contam, só eu podia julgar esta demasiado apressada.
De fato, coloco-o no número das pessoas que me estão menos ligadas,
com um convite escrito para uma ceia de cerimônia. Posso bem dizer
como Annette e, todavia, eis tudo! Chegado o dia fatal, o dia em que
eu devia perder a minha virtude e a minha reputação, dei as minhas
instruções à fiel Vitória e ela pô-las em execução como vai ver.
Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos
convidados, quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a
polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala, como
acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos conhecido.
A ceia não produziu mais do que um bilhetinho, que o discreto
apaixonado encontrou meio de me entregar, e que queimei conforme
o meu costume. Anunciava-me que podia contar com ele; e esta
palavra essencial era rodeada de todas as palavras parasitas, como
amor, felicidade, etc., que nunca faltam a festas desta natureza.
À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta
macedônia*.
O meu duplo projeto era favorecer a evasão de Prévan e ao
mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de acontecer,
dada a sua reputação de jogador. Por outro lado, todos viriam a
lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar só.
O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e eu
sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro.
Encaminhava-me para a minha perda, quando refleti que, logo
que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio
bastante para o manter vestido com a decência necessária aos meus
projetos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei, bastante aborrecida;
*Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedônia é um conjunto de vários jogos
de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher quando lhe pertence
dar cartas. É uma das invenções do século.
a retomar o meu lugar naquele jogo que não findava mais. Por fim lá
acabou, e todos se foram embora.
Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e
despedi-as.
Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando com
passo tímido e circunspeto, e com a mão mal segura abrir a porta ao
meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria mais rápido.
Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida, antes de ter podido
dizer uma palavra para o deter ou me defender. Ele quis em seguida
tomar uma situação mais cômoda e mais adequada às circunstâncias.
Amaldiçoava o vestuário que, dizia ele, o afastava de mim, e queria
combater-me com armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se
ao projeto, e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupou-
se de outra coisa.
Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram.
Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para uma
agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a muitas
outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o fim desta
aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha com toda a
força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais rápido do que a sua
resposta. Mal tinha ainda balbuciado, quando ouvi Vitória acudir, e
chamar os criados que escondera no seu quarto, como eu lhe
ordenara. Então, tomando o meu tom de rainha, continuei, elevando a
voz: "Saia, senhor, e não torne a aparecer diante de mim." Neste
momento, o grupo dos criados entrou.
O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada no
que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada.
Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente,
agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti um
terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe deixassem livre
a retirada, certificando-se apenas se ele saía da minha casa. Os criados
obedeceram, mas entre eles era grande o rumor. Indignavam-se que
alguém tivesse faltado ao respeito à sua virtuosa senhora. Todos
acompanharam o infeliz cavaleiro, com algazarra e escândalo, como
eu desejava. Só Vitória ficou e ocupamo-nos durante esse tempo a
reparar a desordem do meu leito.
Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda
muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam ainda
todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que tinha dado de
cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa no quarto delas,
enfim, tudo o que tínhamos combinado.
Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que
fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que estava
autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além disso, era um
meio seguro de dar curso e celebridade à aventura.
O médico veio de fato, lamentou-me, e ordenou-me repouso.
Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar
com a vizinhança.
Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que
consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira
uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade e os
pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a desolar-me com
ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes tempos. Um momento
depois recebi da Marechala o bilhete que junto aqui. Por fim, antes das
cinco horas, vi chegar, com grande espanto meu, o senhor*... Vinha,
segundo me disse, apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do
seu regimento ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o
quando estava jantando em casa da Marechala e tinha
imediatamente mandado ordem a Prévan para que se entregasse à
prisão.
Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para
lhe dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu lado e
afetar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta e dizer que
estava incomodada.
É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta.
Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há de
fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser
contada.
Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer
absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente terei
tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou repousar os
meus, que estão fatigados de escrever.
Adeus, Visconde.

25 de Setembro de 17* *, à noite.


*O comandante do regimento no qual servia o senhor Prévan.

CARTA LXXXVI

A MARECHALA DE... À MARQUESA DE MERTEUIL

(Bilhete junto à precedente)

Meu Deus! Que me contais, minha querida amiga? É possível


que Prévan seja capaz de semelhantes abominações! E logo com a
minha amiga! Ao que uma pessoa se expõe! Mas então nem em sua
casa uma pessoa está em segurança? Na verdade, tais
acontecimentos consolam-me de ser velha. Mas do que nunca me
poderei consolar, é de ter sido em parte causadora de terdes recebido
semelhante monstro em vossa casa. Prometo-vos que, se o que me
disseram é verdade, ele não tornará a pôr os pés em minha casa. Todas
as pessoas honestas procederão assim com ele, se fizerem o que é
devido.
Disseram-me que estáveis muito doente, e estou inquieta pela
vossa saúde. Peço-vos que me deis as vossas desejadas notícias; ou que
mas mandeis dar por uma das vossas criadas, se vós mesma o não
puderdes fazer. Não vos peço mais do que uma palavra para minha
tranqüilidade. Se não fossem os meus banhos, que o médico não me
permite interromper, teria ido esta manhã a vossa casa; e esta tarde
tenho de ir a Versailles, sempre por causa do assunto do meu sobrinho.
Adeus, minha querida amiga; conte com a minha sincera
amizade por toda a vida.

Paris, 25 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXVII

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Escrevo-vos do meu leito, querida e boa amiga. O mais


desagradável dos acontecimentos, e o mais impossível de prever, pôs-
me doente de susto e de tristeza. Não é que eu tenha de me censurar
por algum motivo; mas é sempre tão penoso para uma mulher honesta,
e que conserva a modéstia que convém ao seu sexo, fixar sobre si as
atenções públicas, que eu daria tudo no mundo para ter podido evitar
esta infeliz aventura, e não sei ainda se decidirei ir para o campo,
esperar que tudo tenha esquecido.
Vou contar-vos de que se trata.
Encontrei em casa da Marechala de... um tal senhor de Prévan,
que decerto conheceis de nome, e que eu não conhecia de outro
modo. Mas, encontrando-o nessa casa, estava bem autorizada,
parece-me, a julgá-lo boa companhia. Tem certa elegância de figura e
pareceu-me inteligente. O acaso e o aborrecimento do jogo deixaram-
me só entre ele e o bispo de..., enquanto todos os outros convidados
jogavam o lansquené. Conversamos os três até à hora da ceia. À mesa
falou-se de uma novidade teatral, o que lhe deu ensejo a oferecer o
seu camarote à Marechala, que aceitou; e ficou combinado que eu
teria lá um lugar. Era para segunda-feira passada, no Teatro Francês.
Como a Marechala vinha cear comigo à saída do espetáculo, propus
àquele senhor que a acompanhasse, o que ele fez. Dois dias passados
fez-me uma visita que se passou nas conversas do costume, sem que
houvesse absolutamente nada a notar. No dia seguinte veio ver-me de
manhã, o que me pareceu um pouco apressado; mas julguei que, em
vez de lho fazer sentir pela minha maneira de o receber, valia mais
adverti-lo pela minha delicadeza de que não estávamos ainda tão
intimamente ligados como ele parecia supor.
Para isso enviei-lhe, nesse mesmo dia, um convite muito seco e
muito cerimonioso para uma ceia que dei anteontem. Não lhe dirigi a
palavra quatro vezes em toda a noite; e ele pelo seu lado retirou-se
logo que acabou de jogar. Haveis de convir que até ali nada havia que
parecesse conduzir a uma aventura.
Depois do jogo, houve ainda uma macedônia que durou até
perto das duas horas; e finalmente fui para a cama.
Havia pelo menos uma mortal meia hora que as minhas criadas
estavam recolhidas, quando ouvi ruído no meu quarto.
Abri o cortinado cheia de susto e vi um homem entrar pela porta
que conduz ao quarto de vestir. Soltei um grito agudo; e reconheci, à
luz da minha lamparina, esse senhor de Prévan, que, com uma ousadia
inconcebível, me disse que não me alarmasse; que ia esclarecer-me o
mistério da sua conduta e me suplicava que não fizesse ruído algum. Ao
falar assim, acendia uma vela.
Eu estava a tal ponto assustada que nem podia falar. O seu
desembaraço e tranqüilidade petrificavam-me ainda mais, se é
possível. Mas não tinha ainda dito duas palavras, já eu vira qual era o
pretendido mistério; e a minha única resposta foi; como podeis crer,
puxar o cordão da campainha.
Por uma incrível felicidade, todos os criados se tinham reunido no
quarto de uma das minhas criadas, e não estavam ainda deitados. A
minha criada de quarto, que, dirigindo-se aos meus aposentos, me
ouviu falar com exaltação, ficou horrorizada, e chamou toda aquela
gente. Podeis imaginar o escândalo! Os criados estavam furiosos; houve
um momento em que um deles queria matar Prévan. Confesso que,
nesse momento, me senti feliz por ter quem me auxiliasse. Refletindo
agora, gostaria mais que só a minha criada de quarto tivesse acudido;
teria sido suficiente, e talvez se pudesse ter evitado o ruído, que me
aflige.
Em vez disso, o tumulto despertou os vizinhos, os criados falaram,
e desde ontem a novidade corre todo Paris. O senhor de Prévan está
preso por ordem do comandante do seu regimento, que teve a
honestidade de passar por minha casa para me apresentar desculpas.
Esta prisão vai ainda aumentar o ruído; mas não pude conseguir que
fosse de outra maneira. A cidade e a corte inscreveram-se à minha
porta, que está fechada para toda a gente. As poucas pessoas que vi
disseram-me que me faziam justiça e que a indignação contra o senhor
de Prévan tinha chegado ao cúmulo. É certo que ele o merece, mas
nem por isso a aventura deixa de ser muito desagradável.
Além do mais, esse homem tem com certeza alguns amigos, e
esses amigos devem ser maus; quem sabe, quem poderá saber o que
irão inventar para meu prejuízo? Meu Deus, como uma mulher jovem é
infeliz! Sem ter feito nada, tem de se pôr ao abrigo da maledicência; e
é preciso ainda sobrepor-se à calúnia.
Dizei-me, peço-vos, o que teríeis feito se estivésseis no meu lugar;
enfim, tudo o que pensais. É sempre de vós que recebo as mais doces
consolações e os mais prudentes conselhos; por isso é de vós que mais
gosto de os receber.
Adeus, minha querida e boa amiga; conheceis os sentimentos
que para sempre me prendem a vós. Beijo a vossa adorável filha.

Paris, 26 de Setembro de 17* *.

TERCEIRA PARTE
CARTA LXXXVIII

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT

Apesar de todo o prazer que tenho, senhor, em receber as


cartas do Cavaleiro Danceny, e se bem que não deseje menos do que
ele que nos possamos voltar a ver, sem que nos perturbem, não ousei no
entanto fazer que me haveis prometido.
Em primeiro lugar, é demasiado perigoso: a chave que quereis
que ponha no lugar da outra assemelha-se-lhe bastante na verdade:
contudo, não deixa de haver certa diferença, e a Mamã repara em
tudo, dá por tudo. Para mais, se bem que ainda não tenha sido utilizada
desde que aqui estamos, bastava uma falta de sorte; e se dessem por
isso, estaria perdida para sempre.
Depois, isso parece-me muito mal; mandar fazer uma chave
dupla é demasiada ousadia! É certo que teríeis a bondade de vos
encarregardes disso; mas, mesmo assim, se o viessem a saber, a censura
e a falta recairiam sobre mim, visto que seria por mim que o teríeis feito.
Enfim, tentei duas vezes apoderar-me dela, e certamente teria sido
bastante fácil se se tratasse de outra coisa; mas não sei porquê de
ambas as vezes me pus a tremer e nunca tive coragem. Por isso creio
que é melhor ficar como estamos.
Se tiverdes a bondade de continuar tão prestável como até
aqui, sempre encontrareis processo de me entregar uma carta.
Mesmo quando da última, sem o azar que num certo momento
vos obrigou a afastar-vos de repente, ter-nos-ia sido muito fácil.
Sinto bem que não podeis, como eu, ocupar-vos disso apenas;
mas prefiro ter paciência e não arriscar tanto. Estou certa de que o
senhor Danceny pensaria como eu: porque sempre que ele desejava
qualquer coisa que me custasse demasiado, acabava por ceder.
Entregar-vos-ei, ao mesmo tempo que esta carta, a vossa, a do
senhor Danceny e a vossa chave. Não vos estou menos reconhecida
por todas as atenções para comigo e suplico-vos que continueis a
dispensá-las. É bem verdade que sou muito infeliz, e sem vós sê-lo-ia
ainda muito mais: mas, apesar de tudo, trata-se de minha mãe; é
preciso ter paciência. E desde que o senhor Danceny continue a amar-
me, e vós não me abandoneis, talvez venham tempos mais felizes.
Entretanto, tenho a honra de ser, senhor, cheia de
reconhecimento, a vossa muito humilde e obediente serva.

26 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXXXIX

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Se o seu caso não progride tão depressa como deseja, meu


amigo, não é comigo que se deve zangar. Tenho mais de um obstáculo
a vencer. A vigilância e a severidade de Madame de Volanges não são
os únicos; a sua jovem amiga também me cria alguns. Seja frieza ou
timidez, nem sempre faz o que lhe aconselho; e creio no entanto saber
melhor do que ela o que se deve fazer.
Tinha encontrado um meio simples, cômodo e seguro, de lhe
entregar as cartas e até de facilitar, mais tarde, as entrevistas que o
meu amigo deseja; mas não pude decidi-la a utilizá-lo.
Estou tanto mais aflito, quanto é certo que não vejo outro para o
aproximar dela; e que, até por causa da vossa correspondência, receio
incessantemente que nos comprometamos os três.
Ora, deve imaginar que não quero correr esse risco, nem que
ambos a ele se exponham.
Contudo ficaria verdadeiramente penalizado se a falta de
confiança da sua amiguinha me impedisse de vos ser útil: talvez o meu
amigo fizesse bem em lhe escrever nesse sentido. Vejo o que deseja
fazer, é a si que cabe decidir; porque não basta ser prestável aos
amigos, é também preciso sê-lo da maneira que lhes agrada. Poderia
ser também um processo de se assegurar dos sentimentos que ela lhe
dedica; porque a mulher que teima numa opinião não ama tanto
como diz.
Não que suspeite da inconstância a sua eleita; mas é muito
nova; tem muito medo da Mamã que, como sabe, procura apenas
prejudicá-lo; e seria talvez perigoso deixar passar muito tempo sem a
ocupar a seu respeito.
No entanto, não se inquiete muito com o que lhe digo. No fundo,
não tenho nenhum motivo de desconfiança; é apenas a solicitude da
amizade.
Não me alongo mais porque tenho alguns assuntos meus a
cuidar. Não estou tão adiantado como o meu amigo; mas amo com a
mesma força, e isso consola; e mesmo que não tenha êxito pela minha
parte, se conseguir ser-lhe útil, darei sempre por bem empregado o meu
tempo.
Adeus, meu amigo.

Castelo de..., 26 de Setembro de 17 * *.

CARTA XC

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT


Desejo muito, senhor, que esta carta não vos faça sofrer; mas, se
assim não for, que ao menos a vossa dor seja suavizada pela que
experimento ao escrevê-la. Deveis conhecer-me o bastante,
presentemente, para estardes bem certo de que o meu desejo é não
vos magoar; mas vós, sem dúvida, não quereríeis também mergulhar-
me num desespero eterno. Suplico-vos pois, em nome da terna amizade
que vos prometi; em nome até dos sentimentos porventura mais vivos,
mas certamente não mais sinceros, que tendes por mim, que não
voltemos a ver-nos; deveis partir. E até lá, evitemos sobretudo essas
conversas particulares e demasiado perigosas, durante as quais, por
qualquer força inconcebível, sem nunca conseguir dizer-vos o que
quero, passo o tempo a escutar o que não deveria ouvir.
Ainda ontem, quando viestes juntar-vos a mim no parque, eu
tinha como único projeto dizer o que hoje vos escrevo; e que fiz, afinal,
senão ocupar-me do vosso amor?... do vosso amor, ao qual nunca
poderei corresponder! Ah! por piedade, afastai-vos de mim!
Não receeis que a ausência altere os meus sentimentos por vós:
como conseguiria vencê-los, quando já nem tenho coragem para os
combater? Como vedes, digo-vos tudo; temo menos confessar a minha
fraqueza do que sucumbir a ela. Perdi o domínio dos sentimentos, mas
conservarei o das ações; sim, conservá-lo-ei, estou resolvida a isso;
mesmo à custa da vida.
Ai! Não vai longe o tempo em que julgava que nunca teria tais
combates a sustentar! Felicitava-me talvez demasiado. O céu puniu
cruelmente este orgulho; mas, cheio de misericórdia, no próprio
momento em que fere, adverte-me ainda antes da queda; e eu seria
duplamente culpada se continuasse a ser imprudente, prevenida já da
minha pouca força.
Haveis-me dito cem vezes que não queríeis uma felicidade
comprada com as minhas lágrimas. Ah! não falemos já de felicidade;
deixai-me recuperar um pouco de sossego.
Se atenderdes ao meu pedido, que novos direitos não tereis
sobre o meu coração? Mas desses, assentes na virtude, não precisarei
defender-me. Como serei feliz no meu reconhecimento!
Ficarei a dever-vos a doçura de gozar sem remorsos um
sentimento delicioso. Neste momento, assustada com os meus
sentimentos e pensamentos, receio igualmente ocupar-me de vós e de
mim; só de pensar em vós me assusto: quando não posso fugir à vossa
imagem, combato-a; não a afasto, expulso-a.
Não será melhor para ambos cessar este estado de perturbação
e de ansiedade? Vós, cuja alma sempre sensível, mesmo no meio dos
erros, se conservou amiga da virtude, tereis certamente piedade da
minha dolorosa situação; sei que não rejeitareis a minha súplica! Um
interesse mais doce, e não menos terno, sucederá a estas agitações
violentas; então, devendo-vos a vida, a existência ser-me-á cara, e na
alegria do meu coração direi: esta tranqüilidade, devo-a ao meu
amigo.
Parece-vos que este pequeno sacrifício, que vos não imponho,
mas peço, é um preço demasiado caro para dar termo aos meus
tormentos? Ah! se para vos tornar feliz bastasse aceitar a infelicidade,
podeis crer, não hesitaria um momento... Mas cometer uma falta!... Não,
meu amigo, não, antes morrer mil vezes.
Assaltada pela vergonha, à beira dos remorsos, temo os outros e
a mim própria; coro quando estou acompanhada, e tremo na solidão;
a minha vida é apenas dor; só por vossa vontade terei paz. As minhas
resoluções mais louváveis não bastam para me tranqüilizar; formulei
esta ordem e no entanto passei a noite banhada em lágrimas.
Eis a vossa amiga, aquela que amais, a pedir-vos confusa e
suplicante o repouso e a inocência. Ah! meu Deus! sem vós, nunca ela
teria sido obrigada a pedido tão humilhante. Nada vos censuro; sinto
demasiado por mim própria como é difícil resistir, a um sentimento
imperioso. Uma queixa não é um murmúrio. Fazei por generosidade o
que faço por dever; e a todos os sentimentos que me haveis inspirado
acrescentarei uma eterna gratidão.
Adeus, adeus, senhor.

27 de Setembro de 17 * *.

CARTA XCI

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Consternado pela vossa carta, ignoro ainda, senhora, como lhe


poderei responder. Sem dúvida, se for preciso escolher entre a vossa
infelicidade e a minha, sacrifico-me e não hesito; mas assuntos tão
importantes merecem, se bem me parece, ser antes de mais nada
discutidos e esclarecidos; mas como consegui-lo, se não nos devemos
falar, nem ver?
Pois quê! Apesar de nos unirem os sentimentos mais doces, um
vão terror bastará para nos separar, talvez irremediavelmente!
Debalde a terna amizade, o ardente amor, reclamarão os seus
direitos; essas vozes não serão escutadas; e porquê? Que perigo tão
premente vos ameaça então? Ah! acreditai, tais receios, tão
ligeiramente concebidos, são, só por si, fortes motivos de segurança.
Permiti que vo-lo diga, reencontro aqui o vestígio das impressões
desfavoráveis que a meu respeito vos deram. Não se treme junto do
homem que se estima; não afastamos, principalmente, quem julgamos
digno de alguma amizade; tememos e evitamos apenas o homem
perigoso.
No entanto, existiu jamais alguém tão respeitador e submisso
como eu? Como notais, tomo já cautelas com as palavras, já não me
permito aqueles nomes tão doces, tão caros ao- meu coração, que em
segredo não cessa de vo-los dirigir.
Já não sou o amante fiel e infeliz, recebendo consolações e
conselhos duma amiga terna e sensível; sou o réu perante o juiz; o
escravo perante o senhor. Estes novos títulos impõem sem dúvida novos
deveres; assumo o compromisso de os cumprir a todos. Escutai-me, e, se
depois me condenardes, submeto-me e parto. Prometo ainda mais;
preferis o despotismo que julga sem ouvir? Tendes a coragem de ser
injusta? Ordenai e obedecerei sempre.
Mas, ao menos, que essa sentença ou essa ordem a ouça da
vossa boca. "E porquê?", perguntais. Ah! se fazeis tal pergunta,
conheceis pouco o amor e o meu coração! Então o ver-nos ainda uma
vez não significaria nada? E quando finalmente a vossa boca lançar o
desespero sobre a minha alma, talvez um olhar consolador a impeça
de sucumbir. E se for obrigado a renunciar ao amor e à amizade para
que vivo, ao menos podereis ver a vossa obra, e ficar-me-á a vossa
piedade; mesmo que não mereça este pequeno favor, arrisco-me,
parece-me, a pagá-lo bem caro, na esperança de o obter. Será
possível que me afasteis de vós? Permitis então que nos tornemos dois
estranhos? Que digo?
Assim o desejais; e enquanto me afirmais que a minha ausência
não alterará os vossos sentimentos, apressais-me a partida para mais
facilmente os destruir.
Pois se já dizeis que a gratidão os substituirá! Assim, o sentimento
que obteria de vós um desconhecido pelo mais leve serviço, ou até o
vosso inimigo desde que já vos não afrontasse, eis o que me ofereceis! E
quereis que o coração se me alegre. Interrogai o vosso: se o vosso
amante, se o vosso amigo, um dia vos falassem em gratidão, não diríeis
indignada: "Retirai-vos, ingratos?"
Aqui me detenho e suplico a vossa indulgência. Perdoai a
expressão duma dor de que sois autora; não será obstáculo à minha
submissão total. Mas peço-vos em nome desses sentimentos tão doces,
que vós própria vos atribuís, aceitai ouvir-me; e por piedade ao menos
pelo tormento mortal em que me haveis lançado, não retardeis o
momento.
Adeus, senhora.

27 de Setembro de 17 * *, à noite.

CARTA XCII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT


Oh! meu amigo! a sua carta gelou-me de receio. Cecília...
Meu Deus, será possível! Cecília já me não ama. Sim, vejo esta
verdade terrível através do véu com que a sua amizade a cerca.
Quis-me preparar para receber esse golpe mortal; agradeço-lhe
as cautelas, mas podemos impô-las ao amor? Ele antecipa-se em tudo
o que o interessa, não precisa que lhe digam a sua sorte, adivinha-a. Da
minha já não duvido; fale-me sem rodeios, pode fazê-lo, suplico-lhe.
Conte-me tudo: o que fez nascer as suas suspeitas, o que as confirmou.
Os mínimos pormenores são preciosos.
Esforce-se, principalmente, por se recordar das palavras dela.
Uma palavra em vez de outra pode transformar toda uma frase; a
mesma tem às vezes dois sentidos... O meu amigo pode ter-se
enganado: ai! procuro iludir-me ainda. Que lhe disse ela?
Fez-me alguma censura? Não se defende ao menos dos seus
erros?
Eu devia ter previsto esta mudança pelas dificuldades que, de
há um tempo para cá, ela encontra em tudo. Ora o amor não conhece
tantos obstáculos.
Que devo fazer? Que me aconselhais? Se eu tentasse vê-la?
Será impossível? A ausência é tão cruel, tão funesta!... E ela
recusou um meio de me ver!... O Visconde não me explica do que se
tratava; se o perigo era demasiado grande, ela bem sabe que não
quero que se arrisque muito. Mas como conheço também a sua
prudência, nem posso para minha infelicidade acreditar em tal.
Que vou eu fazer agora? Como hei-de escrever-lhe? Deixá-la
suspeitar dos meus receios? Talvez a desgostem, e, se são injustos,
nunca me perdoaria o tê-la afligido. Escondê-los? É enganá-la, e não
sei dissimular perante ela.
Oh! se ela soubesse o que sofro, o meu mal comovê-la-ia.
Sei que é sensível, tem um coração excelente e possuo mil
provas do seu amor. É demasiado tímida, algumas vezes indecisa, e tão
jovem! A mãe trata-a com tanta severidade! Vou escrever-lhe; saberei
conter-me; pedir-lhe-ei somente que confie plenamente no meu amigo.
Mesmo que recuse mais uma vez, não poderá zangar-se com o meu
pedido; e talvez consinta.
A si, meu amigo, peço-lhe mil perdões, por ela e por mim.
Asseguro-lhe que ela aprecia o valor dos seus cuidados, pelos
quais lhe está grata. Não é por desconfiança, é por timidez. Seja
indulgente; é a mais bela face da amizade. A sua é-me preciosa e nem
sei como agradecer tudo o que tem feito por mim.
Adeus, vou escrever-lhe já...
Sinto que todos os meus receios voltam; quem me diria que
alguma vez me custaria escrever-lhe! Ai! ainda ontem era o meu mais
doce prazer.
Adeus, meu amigo; continue a proteger-nos e tenha piedade de
mim.
Paris, 27 de Setembro de 17 * *.

CARTA XCIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

Não lhe posso esconder como fiquei aflito ao saber por Valmont
a escassa confiança que continua a ter nele. Não ignora que é meu
amigo, a única pessoa que nos pode aproximar: julguei que estes títulos
bastariam; vejo com mágoa que me enganei. Poderei ao menos
esperar que me diga as suas razões?
Não haverá ainda outras dificuldades que a impeçam de ter
confiança nele? Não posso no entanto, sem que mo diga, perceber o
mistério da sua conduta. Não ouso pôr em dúvida o seu amor, sei
também que não ousaria trair o meu. Ah ! Cecília !...
É então verdade que recusou um meio* de me ver? Um meio
simples, cômodo e seguro? E é assim que me tem amor! Uma tão curta
ausência pôde alterar a tal ponto os seus sentimentos!
Mas para quê enganar-me? Para quê repetir que continua a
amar-me, e cada vez mais? A sua Mamã, ao destruir o seu amor,
destruiu-lhe também a candura? Se ela lhe deixou ao menos alguma
piedade, não será sem dor que a Cecília saberá os tormentos horríveis
que me causa. Ah ! sofreria menos ao morrer.
Diga-me pois: o seu coração fechou-se definitivamente para
mim? É certo que me esqueceu inteiramente? Graças à sua recusa,
não sei quando ouvirá as minhas queixas, nem quando lhes responderá.
A amizade de Valmont tinha assegurado a nossa correspondência: mas
a Cecília não quis; achava-a difícil, preferiu que ela fosse mais rara.
Não, não acreditarei mais no amor, na boa fé. Em quem acreditar, se a
Cecília me enganou?
Responda-me pois: é certo que já não me tem amor? Não, isso
não é possível; a Cecília ilude-se a si própria; calunia o seu próprio
coração. Um receio passageiro, um momento de desânimo, que o
amor depressa fez desaparecer: não é verdade, minha Cecília? Ah!
Sem dúvida, e faço mal em a acusar. Como eu seria feliz se me tivesse
enganado! Como gostaria de pedir ternas desculpas, de compensar
este momento de injustiça com uma eternidade de amor!
Cecília, Cecília, tenha piedade de mim! Consinta em me ver;
aceite todos os meios! Veja o que produz a ausência: receios, suspeitas,
talvez frieza!
Um só olhar, uma só palavra, e seremos felizes. Mas quê! Posso eu
ainda falar de felicidade? Talvez esteja perdida para mim, perdida para
sempre. Torturado pelo receio, cruelmente apertado entre a suspeita
injusta e a mais cruel das verdades, não me posso agarrar a nenhum
pensamento; o pouco que conservo de vida é para sofrer e amar. Ah!
Cecília! É a única pessoa que tem o direito de me embelezar a
existência, de ma tornar cara; e espero das suas palavras o regresso à
felicidade ou a certeza dum desespero eterno.

Paris, 27 de Setembro de 17* *.

* Danceny não sabe de que meio se trata; repete apenas a expressão de Valmont.

CARTA XCIV

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Nada percebo da sua carta, a não ser a dor que me causa. O


que lhe contou então o senhor de Valmont e o que é que lhe pôde
fazer crer que já não o amava? Talvez isso fosse bem melhor para mim,
porque certamente estaria menos atormentada; e é muito duro,
amando-o de tal maneira, ver como julga sempre que não tenho razão,
e que, em vez de me consolar, seja de si que me vêm sempre as dores
que mais magoam. Julga que o engano e minto! Faz uma linda idéia de
mim, não haja dúvida!
Mas mesmo que mentisse como me censura, que interesse teria
nisso?
Certamente, se já o não amasse, bastava-me dizê-lo, e todos me
elogiariam; mas, por infelicidade, este amor é mais forte do que eu; e
ainda por cima por alguém que não tem qualquer obrigação para
comigo!
Que fiz eu para tanto se zangar? Não ousei roubar uma chave,
porque receei que a Mamã desse por tal e isso me trouxesse mais
dissabores, e a si também por minha causa; e, além disso, parece-me
uma coisa muito feia. Mas fora apenas o senhor de Valmont quem me
falara nisso; não podia adivinhar se estava de acordo ou não, pois
supus que de nada sabia. Agora sabendo o que deseja, recuso por
acaso roubá-la? Fá-lo-ei amanhã mesmo; e veremos então se ainda
tem alguma coisa a dizer.
O senhor de Valmont pode muito bem ser seu amigo; mas julgo
que o meu amor vale bem a amizade dele; e no entanto é sempre ele
quem tem razão e nunca a minha pessoa. Afirmo-lhe que estou muito
zangada. Tanto lhe faz, é claro, pois sabe que me acalmo logo de
seguida: mas desde que tenha chave, posso vê-lo quando bem me
apetecer; e garanto-lhe que não hei de querer quando me tratar assim.
Prefiro sofrer por minha culpa do que pela sua: veja bem o que faz.
Podíamo-nos amar tanto, se quisesse! E ao menos as únicas
penas que teríamos, seriam as provocadas pelos outros! Asseguro-lhe
que, se fosse dona do meu destino, nunca lhe daria motivo de queixa:
mas se não acredita em mim, seremos para sempre infelizes e a culpa
não será minha. Espero que nos poderemos ver em breve e que então
não teremos ocasião de nos irritarmos como agora.
Se pudesse prever tudo isto, teria logo roubado a chave: mas na
verdade julgava proceder bem. Não se zangue pois comigo, peço.
Não esteja triste e ame-me tanto quanto eu o amo: dessa forma ficarei
muito contente.
Adeus, querido amigo.

Castelo de. .., 28 de Setembro de 17 * *.

CARTA XCV

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT


Peço-vos, senhor, a bondade de me entregardes de novo a
chave que me tínheis dado para pôr no lugar da outra; visto que todos
o querem, sou obrigada a consentir.
Não sei por que haveis contado ao senhor Danceny que eu já o
não amava; creio que nunca vos dei lugar a pensar tal coisa; tudo isso
o fez sofrer e a mim também. Sei bem que sois amigo dele; mas isso não
é razão para o fazer infeliz, nem a mim tão pouco: Dar-me-íeis prazer se
lhe mandásseis dizer o contrário, da próxima vez que lhe escreverdes, e
que tendes bem a certeza: por que é em vós que ele tem confiança; e
eu, quando digo uma coisa e não me acreditam, não sei já o que faça.
Acerca da chave, podeis estar tranqüilo; lembro-me bem do
que me recomendáveis na vossa carta. No entanto, se ainda a tendes
e ma quiserdes dar de novo, prometo relê-la com atenção.
Se pudesse ser amanhã à hora do jantar, dar-vos-ia a outra
chave depois de amanhã ao almoço, e devolver-ma-íeis da mesma
maneira que a primeira. Desejava que tudo isto não demorasse muito,
porque nos arriscaríamos menos a que a Mamã desse por qualquer
coisa.
E depois, assim que tiverdes a chave, tereis a bondade de a
utilizar para receber as minhas cartas; dessa forma, o senhor Danceny
terá mais frequentemente notícias minhas. Na verdade será mais
cômodo que no presente; mas a princípio tive muito medo. Peço-vos
que me desculpeis e espero que não deixeis de ser tão atencioso como
dantes. Ficar-vos-ei sempre muito grata.
Tenho a honra de ser, senhor, vossa muito humilde e obediente
serva.

P. S. - Assim que tiverdes a chave, peço-vos que tenhais cuidado e que


ninguém a veja, porque seria muito perigoso.

28 de Setembro de 17 * *.

CARTA XCVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os


meus cumprimentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um pouco
aborrecida com o meu longo silêncio; mas que quer?
Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a
uma mulher, podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmo-
nos sossegadamente de outra coisa. No entanto agradeço-lhe pela
minha parte e felicito-a pela sua. Para a tornar verdadeiramente feliz,
concordo até que, desta vez, ultrapassou a minha expectativa. Depois
disto, vejamos se pela minha parte terei ao menos correspondido à sua.
Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu passo
lento desagrada-lhe. A minha amiga só gosta dos casos arrumados.
Aborrecem-na as cenas que se vão lentamente desenrolando; e eu
nunca tinha apreciado o prazer que sinto nestas pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada,
sem disso se aperceber, num caminho que não permite regresso e cuja
ladeira rápida e perigosa a leva a seguir-me, mesmo contra vontade e
à força.
Assustada com o perigo que corre, gostaria de parar, mas não
pode.
As cautelas e a habilidade podem tornar-lhe os passos mais
curtos; mas eles suceder-se-ão inevitavelmente. Às vezes, não ousando
fitar o perigo, fecha os olhos e, deixando-se guiar, entrega-se aos meus
cuidados.
Muitas vezes um novo terror fá-la redobrar de esforços. Num
pavor mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças para subir
penosamente um curto espaço; e em breve um mágico poder a
coloca de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão
pretendera fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem
pensar em me censurar pela queda inevitável, implora-me que a
retarde. As preces fervorosas, as humildes súplicas, tudo o que os
mortais, no seu medo, oferecem à Divindade, recebo-o eu dela; e quer
a minha amiga que, surdo aos seus pedidos e destruindo eu próprio o
culto que ela me presta, me sirva, para a aniquilar, do poder que ela
invoca para a amparar! Ah! deixe-me ao menos o tempo de observar
estes tocantes combates entre o amor e a virtude!
Pois quê! Esse mesmo espetáculo que a faz correr ao teatro com
ardor, e que aí aplaude com entusiasmo, julga-o menos fascinante na
vida real? Os sentimentos duma alma pura e terna, que teme a
felicidade que deseja e não para de se defender, mesmo quando
deixa de resistir, escuta-os com exaltação; não serão eles sem preço
para aquele que os fez nascer?
Eis no entanto os prazeres deliciosos que esta mulher celestial me
oferece todos os dias! E censura-me que lhes saboreie as delícias! Ah!
Cedo virá o momento em que, degradada pela queda, ela não será
para mim mais do que uma mulher vulgar.
Mas esqueço, ao falar dela, que o não queria fazer. Não sei que
força me prende e sem cessar me atrai a ela, mesmo quando a ultrajo.
Afastemos essa imagem perigosa; recuperemos a calma para tratar
dum assunto mais alegre. Trata-se da sua discípula, presentemente
minha, e espero que agora me reconheça em ação.
Desde há alguns dias, mais bem tratado pela terna devota, por
conseguinte menos ocupado com ela, notara eu já que a pequena
Volanges é com efeito muito bonita; e que, se era parvoíce estar
apaixonado por ela como Danceny, talvez não o fosse menos da minha
parte não procurar junto dela a distração que a solidão me tornava
necessária. De resto pareceu-me justo pagar-me dos trabalhos que
tinha tido por ela; lembrava-me além disso que a minha amiga ma
tinha oferecido, antes que Danceny tivesse qualquer pretensão; e
considerava-me autorizado a reclamar alguns direitos sobre um bem
que ele possuía apenas devido à minha recusa e abandono. A cara
gentil da rapariguinha, a boca tão fresca, o ar infantil, o próprio
embaraço, fortificavam estas sábias reflexões; resolvi portanto agir, e a
empresa foi coroada de êxito.
Tenta já adivinhar o meio pelo qual suplantei tão depressa o
ente querido; qual a sedução conveniente para esta idade e
inexperiência.
Evite tanto trabalho; não me servi de nenhuma. Enquanto que,
manejando com habilidade as armas do seu sexo, a minha cara amiga
triunfava pela sutileza; eu, devolvendo ao homem os seus direitos
imprescritíveis, subjugava pela autoridade.
Seguro da presa se pudesse estar a sós com ela, necessitava de
astúcia apenas para me aproximar, e a de que me servi quase nem
merece esse nome.
Aproveitando-me da primeira carta que Danceny enviara à sua
bela e depois de a ter prevenido por um sinal combinado entre nós, em
vez de a minha habilidade servir para lha entregar, serviu-me apenas
para não encontrar um meio de o fazer: a impaciência que fiz nascer,
fingi compartilhá-la, e depois de ter provocado o mal, indiquei o
remédio.
A donzela dorme num quarto que tem uma das portas para o
corredor; mas, como mandam as regras, a Mamã guardara a chave.
Queria apenas apoderar-me dela. Nada mais fácil; bastava-me dispor
dela por duas horas e trataria de obter outra igual.
Então, correspondência, entrevistas, encontros noturnos, tudo se
tornava cômodo e seguro: no entanto, será capaz de acreditar? A
virgem tímida teve medo e recusou. Outro qualquer ficaria desolado; eu
vi apenas a oportunidade para um prazer mais picante. Escrevi a
Danceny queixando-me da recusa, e fiz tanto e tão bem que o nosso
tonto não descansou enquanto não conseguiu, exigindo até, que a
receosa apaixonada acedesse ao meu pedido e se entregasse
totalmente aos meus cuidados.
Agradava-me, confesso, ter assim mudado de papel e que o
jovem fizesse por mim aquilo que esperava que eu fizesse por ele. Esta
idéia duplicava, a meus olhos, o valor da aventura, assim, logo que
possuí a preciosa chave, apressei-me a utilizá-la.
Foi a noite passada.
Depois de me ter certificado de que tudo estava tranqüilo no
castelo, armado de lanterna de furta-fogo e com o vestuário que a
hora permitia e a circunstância exigia, fiz a primeira visita à sua pupila.
Tinha mandado preparar tudo (e até por ela própria), para poder entrar
sem ruído. Estava no primeiro sono, aquele que é próprio da idade dela,
de forma que pude chegar até ao leito sem a acordar. A princípio
estive tentado a ir mais longe e a fazer-me passar por um sonho; mas
temendo o efeito da surpresa e o barulho que se lhe seguiria, preferi
acordar com precaução a bela adormecida, e consegui com efeito
evitar o grito que receava.
Depois de lhe ter acalmado os primeiros receios, e como afinal
não estava ali para conversar, arrisquei algumas liberdades.
Sem dúvida não lhe ensinaram bem no convento a quantos
perigos está exposta a tímida inocência e tudo o que ela deve
resguardar para não ser surpreendida; porque, juntando toda a
atenção e todas as forças para se defender dum beijo, que era apenas
um falso ataque, todo o resto era abandonado sem defesa; como não
me aproveitar! Alterei então a táctica e num ápice ocupei o meu
posto. Aqui pensamos ambos estarmos perdidos; a pequena, toda
assustada, quis gritar de verdade; felizmente as lágrimas tinham-lhe
roubado a voz. Procurara também o cordão da campainha, mas a
minha habilidade segurou-lhe o braço a tempo.
"Que queres fazer", disse-lhe então, "perderes-te para sempre?”
Que me importa se vier alguém. A quem convencerás que não
estou aqui com o teu consentimento? Quem me teria fornecido o meio
de entrar senão tu? E como explicarás a existência desta chave que só
pude arranjar por teu intermédio, que não arranjaria sem a tua ajuda?"
Este curto discurso não acalmou nem a dor, nem a cólera; mas trouxe a
submissão. Não sei se o tom lhe dava eloqüência; na verdade, não seria
com certeza embelezado pela postura em que me encontrava. Uma
das mãos empregada na força, a outra no amor, que orador em
semelhante posição pretenderia ser gracioso? Se está a ver bem,
concordará que em troca era propícia ao ataque; mas sou um pateta,
como diz, e a mulher mais simples, uma colegial, me leva como a uma
criança.
Esta, se bem que desolada, percebia que era preciso tomar uma
decisão, e negociar. Encontrando-me inexorável aos pedidos, foi
preciso passar às ofertas. Julga se calhar que vendi bem caro um posto
avançado tão importante: não, prometi ceder tudo por um beijo. É
verdade que depois dele, não cumpri a promessa; mas tinha boas
razões. Porventura tínhamos combinado se o beijo seria passivo ou
ativo? À força de negociar, acabamos por concordar num segundo; e
este, assim foi combinado, seria passivo. Então, tendo-lhe guiado os
tímidos braços em torno do meu corpo, e apertando-a amorosamente
com um dos meus, o doce beijo foi com efeito dado; mas perfeita e
belamente dado; de tal forma enfim que o próprio amor não poderia
ter feito melhor.
Tanta boa fé merecia recompensa, por isso acedi
imediatamente ao pedido. A mão retirou-se; mas não sei por que
acaso, encontrei-me eu próprio no lugar dela. Supõe-me já apressado e
ativo, não é verdade? De forma nenhuma. Tomei o gosto da lentidão,
digo-lhe. Certo de chegar, para quê apressar a viagem?
A sério, tinha todo o vagar para observar por uma vez o poder
da ocasião, e encontrava-a aqui despida de toda a ajuda alheia. Ela
tinha no entanto de combater o amor; e o amor apoiado pelo pudor ou
pela vergonha; e fortificado sobretudo pela ira que eu provocara. Tudo
o que havia entre nós era a ocasião; mas estava ali, oferecida,
presente, e o amor estava longe.
Para certificar as minhas observações, tive a malícia de
empregar apenas a dose de força que a donzela podia combater.
Somente, se a encantadora inimiga, abusando da minha
bondade, se encontrava pronta a escapar-se-me, continha-a pelo
mesmo temor, que já antes tão felizes resultados dera. Pois bem!
Sem mais trabalho, a terna amorosa, esquecendo os juramentos,
começou por ceder e acabou consentindo; não sem que após o
primeiro momento as censuras e as lágrimas não tivessem voltado
simultaneamente; ignoro se eram verdadeiras ou fingidas; mas, como
sucede sempre, cessaram logo que me conduzi de maneira a justificá-
las de novo.
Finalmente, de concessão em censura, e de censura em
concessão, só nos separamos depois de satisfeitos e de acordo quanto
ao encontro desta noite.
Só me retirei para os meus aposentos ao raiar do dia, e estava
exausto de fadiga e sono, no entanto sacrifiquei ambos ao desejo de
assistir de manhã ao pequeno almoço; adoro loucamente o aspecto
delas no dia seguinte. Não faz idéia do ar desta.
Era um embaraço na maneira de estar! Uma dificuldade no
andar!
Olhos sempre baixos, tão inchados e batidos! O rosto redondo
tão comprido! Nada de mais agradável. E, pela primeira vez, a mãe,
alarmada com tão grande transformação, lhe testemunhava um
interesse assaz terno!
E a Presidente também se desvelava em volta dela! Oh! Estes
cuidados são por agora dispensáveis; um dia virá em que ela os
merecerá de verdade, e esse dia não está longe.
Adeus, minha bela amiga.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**.

CARTA XCVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ah! Meu Deus, senhora, como estou aflita! Como sou infeliz!
Quem me consolará na minha dor? Quem me aconselhará na
dificuldade em que me encontro? Este senhor de Valmont!...
E Danceny! Não, a lembrança de Danceny lança-me no
desespero...
Como contar? Como ousar dizer-vos?... Não sei como o fazer. No
entanto o meu coração transborda... Preciso de desabafar com
alguém e vós sois a única a quem posso escrever.
Tem sido tão boa para mim! Mas não espero que o sejais agora;
não sou digna disso; como dizer-vos? Já não o desejo. Hoje foram todos
aqui muito carinhosos para comigo, mas só contribuíram para aumentar
o meu sofrimento. Senti profundamente que não merecia tanta
atenção! Vós, pelo contrário, ralhai-me; severamente, porque tenho
imensa culpa, mas depois salvai-me; se não tiverdes a bondade de me
aconselhar, morrerei de desgosto.
Vergonha. Pois bem! Suportá-la-ei; será o primeiro castigo da
minha falta. Sim, dir-vos-ei tudo.
Sabei pois que o senhor de Valmont, que me entregara até
agora as cartas de Danceny, descobriu de repente que era demasiado
difícil; quis ter uma chave do meu quarto. Garanto-vos que não queria,
mas ele escreveu a Danceny e este concordou; e a mim custa-me
tanto recusar-lhe qualquer coisa, sobretudo desde que a minha
ausência o torna tão infeliz, que acabei por consentir. Não previa a
desgraça que daí resultaria.
Ontem, o senhor de Valmont serviu-se dessa chave para entrar
no meu quarto, enquanto eu dormia; estava tão longe de esperar
semelhante coisa que me assustei ao acordar; mas como falou
imediatamente, reconheci-o e não gritei; e além disso veio-me logo a
idéia de que talvez trouxesse uma carta de Danceny.
Nada disso. Passado um momento quis beijar-me; e enquanto eu
me defendia, como era natural, insinuou-se de tal forma junto de mim,
que não quereria por coisa alguma deste mundo que ele continuasse
naquela posição. Mas exigiu um beijo primeiro. Forçoso foi; que fazer?,
tanto mais que tentara tocar, mas além de não ter podido, ameaçou-
me que, se viesse alguém, lançaria toda a culpa sobre mim; e com
efeito seria muito fácil, por causa da chave. Mas depois nem por isso se
retirou.
Quis um segundo; e desta vez, não sei porquê, perturbou-me de
tal forma... e em seguida foi ainda pior. Oh! Não se faz uma coisa
destas. Enfim, depois..., dispensar-me-eis de dizer o resto; sou tão infeliz
quanto é possível sê-lo.
Aquilo de que mais me acuso, forçoso é que vo-lo diga, é o
receio de não me ter defendido quanto podia. Não sei como foi, não
amo o senhor de Valmont, bem pelo contrário; mas houve no entanto
momentos em que foi como se o amasse. Bem sabeis que isso não me
impedia de ir repetindo que não; mas senti que não estava agindo
como dizia; e tudo isto independentemente da minha vontade; e
depois também, ora, estava tão perturbada!
Se é assim tão difícil a gente defender-se, grande prática é
preciso!
Também é verdade que este senhor de Valmont tem umas
maneiras de falar que não se sabe como responder-lhe, enfim, quer
acreditar que quando partiu eu estava de certo modo zangada, e que
apesar disso tive a fraqueza de consentir que voltasse esta noite; o que
me desola ainda mais que tudo o resto.
Oh! Apesar disso, prometo-vos que o impedirei de entrar. Mal ele
saíra, já sentia como tinha errado ao consentir. O resto do tempo não fiz
senão chorar. Sobretudo a recordação de Danceny fazia-me sofrer!
Cada vez que pensava nele, as lágrimas aumentavam ao ponto de
sufocar, e não podia deixar de pensar nele... E ainda agora, vede o
efeito; eis o papel todo molhado. Não, nunca mais me consolarei,
quanto mais não seja por causa dele... Estava exausta, e no entanto
não dormi um minuto. Esta manhã ao levantar-me, perante o espelho,
metia medo, de transtornada que estava.
A Mamã reparou assim que me viu, e perguntou-me o que tinha.
Desatei logo a chorar. Julguei que me ia ralhar, o que talvez me tivesse
custado menos, mas não. Falou-me com doçura!
Não o merecia, de forma nenhuma. Disse que não me afligisse!
Ignorava o motivo do meu desespero. Como me sentia mal! Há
momentos em que desejo a morte. Não resisti. Lancei-me nos braços
dela aos soluços, e dizendo: "Ah! Mamã, a vossa filha é tão infeliz!" A
Mamã não pôde deixar de chorar um pouco; o que só teve como
conseqüência aumentar a minha dor, felizmente não perguntou por
que razão eu era tão infeliz, pois não saberia que responder.
Suplico-vos, senhora, escrevei o mais cedo que puderdes, e
dizei-me o que devo fazer, porque não tenho coragem de pensar em
nada, não faço outra coisa senão afligir-me. Enviai a carta pelo senhor
de Valmont; mas, peço-vos, se lhe escreverdes ao mesmo tempo, não
lhe faleis no que vos contei.
Tenho a honra de ser, minha senhora, com imensa amizade, a
vossa muito humilde e obediente escrava...
Não ouso assinar esta carta.

Castelo de..., 1 de Outubro de 17 * *, à noite.

CARTA XCVIII

MADAME DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ainda há bem poucos dias, minha encantadora amiga, fostes


vós a pedir-me consolações e conselhos; hoje, é a minha vez; faço-vos
o mesmo pedido que então me fizestes. Estou muito preocupada e
receio não ter sabido evitar o desgosto que me aflige.
Cecília é a causa da minha inquietação. Desde a nossa vinda
que a vejo sempre triste e desgostosa; mas já o esperava e tinha
escudado o coração com a severidade que julgara necessária.
Esperava que a ausência e as distrações destruiriam depressa
um amor que me parecia mais uma fantasia infantil do que uma
verdadeira paixão. No entanto, em vez de se ter restabelecido com a
estada aqui, apercebo-me de que a minha filha se entrega cada vez
mais a uma perigosa melancolia; e temo, até, que a sua saúde se
ressinta.
Particularmente nos últimos dias ela muda a olhos vistos. Ontem,
sobretudo, comoveu-me, e todos aqui ficaram sinceramente
alarmados.
O que me revela até que ponto ela está profundamente ferida é
o vê-la pronta a deixar a timidez que sempre mostrou para comigo.
Ontem de manhã, ao perguntar-lhe apenas se estava doente,
precipitou-se nos meus braços dizendo-me que era muito infeliz; e
chorou abundantemente. Não posso exprimir quanto isto me tocou;
vieram-me logo as lágrimas aos olhos; e só tive tempo para me voltar,
para impedir que ela o visse. Mas felizmente tive a prudência de não
lhe fazer nenhuma pergunta, e ela não ousou dizer mais nada: mas vejo
claramente que é a sua paixão infeliz que a atormenta.
Que fazer se isto continua? Serei a causadora da infelicidade da
minha filha? Estarei a voltar contra ela as qualidades mais preciosas da
alma, a sensibilidade e a constância? É assim que cumpro o meu papel
de mãe? E se abafar em mim este sentimento tão natural de desejar a
felicidade da minha filha; se considerar como uma fraqueza o que
creio, pelo contrário, o primeiro e mais sagrado dos nossos deveres; se
forço a sua escolha, não serei a responsável pelas conseqüências
funestas que possam seguir-se? Que mau emprego de autoridade
materna, colocar a própria filha entre o crime e a infelicidade!
Não, minha amiga, não imitarei o que tantas vezes tenho
censurado.
Ao tentar escolher em vez da minha filha, pretendia ajudá-la
com a minha experiência; não exercia um direito cumpria um dever.
Mas faltarei a um se, pelo contrário, dispuser dela desprezando uma
afeição que eu não soube impedir de nascer e de que nem eu nem ela
podemos conhecer a duração e a força. Não, não posso admitir que
case com este para amar aquele, prefiro comprometer a minha
autoridade a pôr em perigo a sua virtude.
Acho que vou tomar a decisão mais ajuizada, retomar a palavra
que dei ao senhor de Gercourt. Expus-vos as razões parecem-me mais
importantes do que a minha promessa. Digo mais: no estado em que as
coisas estão, cumpri-la seria, na verdade, violá-la. Porque enfim, se
devo à minha filha o não revelar o seu segredo ao senhor de Gercourt,
devo também não abusar da ignorância em que o deixo e fazer em
vez dele o que creio que ele faria se soubesse. Irei, pelo contrário, traí-lo
indignamente, e, enquanto ele confia em mim e me honra escolhendo-
me para segunda mãe, enganá-lo na escolha da mãe dos seus filhos?
Estas reflexões, tão verdadeiras e às quais me não posso furtar,
alarmam-me mais do que deixo transparecer.
Às desgraças que receio, comparo a minha filha, feliz com o
esposo que o seu coração escolheu, presa aos deveres só pela doçura
que encontra em cumpri-los; o meu genro também satisfeito e
felicitando-se sempre pela sua escolha; cada um deles encontrando a
felicidade na felicidade do outro, e a de ambos conjugando-se para
aumentar a minha. A esperança dum futuro tão doce deve ser
sacrificada a vãs considerações? E quais são elas? Unicamente as
ditadas pelo interesse. Para que terá servido à minha filha ter nascido
rica, se tem de ser do mesmo modo escrava do dinheiro?
Concordo que o senhor de Gercourt é um partido melhor do
que eu poderia esperar para a minha filha; confesso até que fiquei
extremamente lisonjeada com a escolha dele. Mas enfim Danceny é
dum nome igualmente ilustre; não lhe é em nada inferior em qualidades
pessoais; tem sobre o senhor de Gercourt a vantagem de amar e ser
amado. Não é rico, na verdade; mas não o é minha filha o suficiente
para ambos? Ah! Porquê tirar-lhe a satisfação tão doce de enriquecer
aquele que ela ama!
Estes casamentos arranjados, em vez de entregues ao livre
arbítrio do coração, e a que chamamos de conveniência, nos quais
tudo se ajusta de fato, menos os gostos e os caracteres, não serão eles
a nascente mais fecunda dessas rupturas escandalosas hoje em dia tão
freqüentes? Prefiro adiar; pelo menos terei tempo para estudar melhor a
minha filha, que não conheço. Sinto-me com coragem de lhe causar
um desgosto passageiro, se ele puder contribuir para uma felicidade
mais sólida, mas arriscar-me a arrastá-la para um desespero eterno, isso
não me está no coração.
Eis, querida amiga, as idéias que me atormentam e acerca das
quais vos peço a opinião. Estas preocupações sérias contrastam muito
com a vossa alegria gentil e nem são para a vossa idade; mas vós estais
muito acima dela! A amizade juntar-se-á de resto à vossa prudência; e
sei que uma e outra se não recusarão à solicitude maternal que as
implora.
Adeus, encantadora amiga; não duvideis nunca da sinceridade
dos meus sentimentos.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17* *.

CARTA XCIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Apenas pequenos incidentes, minha bela amiga; mas só cenas,


nada de ações. Deste modo, arme-se de paciência; mesmo muita,
porque enquanto a minha Presidente avança com lentidão, a sua
pupila recua, o que é muito pior. Pois bem! Tenho bom humor para me
divertir com estas catástrofes. Na verdade acostumei-me muito bem à
minha estada aqui e posso afirmar que no triste castelo da minha velha
tia não experimentei um momento de tédio. Pois não tenho aqui
prazeres, privações, esperança, incerteza? Que se tem a mais num
teatro maior? Espectadores? Ah! Esperemos, eles não faltarão. Se não
me vêem entregue ao trabalho, mostrar-lhes-ei a tarefa pronta; só terão
de admirar e aplaudir. Sim, aplaudirão; porque posso finalmente prever,
com exatidão, o momento da queda da minha austera devota. Assisti
esta tarde à agonia da virtude. A doce fraqueza reinará agora. Prevejo
esse momento para a nossa primeira entrevista, mas já a ouço acusar-
me de orgulho.
Anuncia a vitória, gaba-se antecipadamente! Bom, acalme-se!
Para lhe provar como sou modesto, vou começar pela história
da minha derrota.
A sua pupila é de fato uma criaturinha ridícula! É uma criança
que deveria ser tratada como tal e a quem não faríamos mais que
perdoar se nos limitássemos a pô-la de castigo ! Acredita que, depois
do que se passou anteontem entre ela e mim, depois do modo
amigável como nos despedimos ontem de manhã, quando eu quis
voltar à noite, como combináramos encontrei a porta fechada por
dentro? Que diz a isto?
Aturam-se às vezes infantilidades destas na véspera; mas no dia
seguinte!
Não acha cômico?
Mas não ri logo, nunca sentiria de tal forma o peso do meu mau
gênio. Asseguro-lhe que ia àquela entrevista sem prazer, apenas por
deliberação. O meu leito, de que muito necessitava, parecia-me, nesse
momento, preferível ao de outrem, e afastara-me dele com pena. No
entanto, logo que encontrei um obstáculo ardi por o vencer; e acima
de tudo senti-me humilhado por uma criança me ter ludibriado. Retirei-
me então de muito mau humor e com o projeto de nunca mais me
ocupar daquela criança estúpida, nem dos seus problemas, escrevi-lhe
imediatamente um bilhete que pensava entregar hoje, em que a
apreciava no seu justo valor. Mas, como costuma dizer-se, a noite é boa
conselheira; pensei esta manhã que, não tendo aqui a possibilidade de
escolher distrações, não devia perder aquela: destruí pois o severo
bilhete. Depois refleti, espantei-me de ter tido a idéia de acabar uma
aventura sem ter na minha mão com que perder a heroína. Onde nos
pode conduzir um primeiro movimento!
Felizes aqueles que desde sempre se acostumaram como a
minha boa amiga a nunca lhe ceder! Enfim, adiei a minha vingança; fiz
esse sacrifício às suas intenções em relação a Gercourt.
Agora que já não estou zangado, vejo só o ridículo na conduta
da sua pupila. Gostaria na verdade de descobrir o que espera ela
ganhar deste modo! Confesso-me incapaz; se é só para se defender,
concordemos que se acautela demasiado tarde. Um, dia ela explicar-
me-á este enigma! Anseio por conhecê-la. Seria somente por se
encontrar fatigada? Francamente acho possível, porque, sem dúvida,
ela ignora ainda que as flechas do amor, como a lança de Aquiles,
trazem consigo remédio para os golpes que fazem. Mas não, pela
expressão dela durante todo o dia, iria apostar que há ali remorsos... uns
resquícios de virtude...
Virtude! Bem precisa dela. Ah! Que a deixe mas é para a mulher
nascida na realidade para ela, a única que a sabe embelezar e seria
capaz de no-la fazer amar... Perdão, minha bela amiga, mas foi esta
tarde que se passou entre mim e Madame de Tourvel a cena que quero
narrar-lhe e de que ainda conservo a emoção.
Preciso fazer um esforço para sacudir a impressão que me
causou; é para me livrar disso que me pus a escrever-lhe. Deve-se
desculpar este momento de fraqueza.
Há já alguns dias que nós, Madame de Tourvel e eu, estamos de
acordo sobre os nossos sentimentos; discutíamos apenas acerca de
palavras.
Era sempre a sua amizade que respondia ao meu amor, mas
essa linguagem de convenção não modificava o fundo das coisas; e
mesmo que assim nos tivéssemos mantido, eu teria certamente
avançado mais devagar, mas não menos seguramente. Já não se
tratava de me afastar, como ela queria primeiro; e, quanto às
conversas que temos tido diariamente, se ponho os meus esforços em
lhe oferecer a ocasião, ela põe os dela em a agarrar.
Como é habitualmente nos passeios que se dão as nossas
conversas, o tempo terrível que fez hoje todo o dia não me permitia ter
esperança, estava muito contrariado; não previa quanto lucraria com
este contratempo.
Não se podendo passear, pusemo-nos a jogar quando deixamos
a mesa; como não jogo bem, e não era necessária a minha presença,
aproveitei para subir ao meu quarto, com o projeto de esperar pouco
mais ou menos o fim da partida.
Voltava para me juntar ao grupo, quando encontrei a
encantadora dama que entrava nos seus aposentos e que, por
imprudência ou fraqueza, me disse com voz doce: "Aonde ides? Não há
ninguém no salão." Não foi preciso mais para eu, como deve calcular,
experimentar entrar com ela; encontrei menos resistência do que
esperava. É certo que eu tivera a precaução de começar a conversa à
porta, e de a começar com um tom indiferente, mas assim que nos
sentamos, voltei ao que me interessava e falei do meu amor à minha
amiga. A primeira resposta dela, embora simples, pareceu-me
expressiva: "Oh!, não", disse-me, "não falemos disso aqui"; e tremia.
Pobre mulher! Julga morrer.
No entanto não havia motivo para temer. Já há algum tempo
que, certo do sucesso mais cedo ou mais tarde, e vendo-a gastar as
forças em combates inúteis, tinha resolvido economizar as minhas e
esperar sem esforço que ela se entregasse por cansaço. Vê bem como
exijo um triunfo completo e nada quero dever às circunstâncias. Foi
mesmo de acordo com o plano assim elaborado, e para poder insistir
sem me empenhar muito, que voltei à palavra amor, tão
obstinadamente recusada, certo de que ela me julgava demasiado
ardoroso, tentei um tom mais terno. A recusa já não me fazia zangar,
afligia-me apenas; não me devia a minha sensível amiga algumas
consolações?
Enquanto me consolava, deixara uma das mãos na minha; o
lindo corpo apoiava-se no meu braço, e estávamos estreitamente
unidos. Já reparou como nesta situação, à medida que a defesa
enfraquece, os pedidos e as recusas são feitos de mais perto; a cabeça
afasta-se, os olhares baixam-se, enquanto que as palavras ditas em
murmúrio se tornam raras e entrecortadas? Estes sintomas preciosos
anunciam de modo inequívoco o consentimento da alma, mas
raramente este chega aos sentidos; creio mesmo que é sempre
perigoso ousar demasiado, visto que este estado de abandono é
acompanhado por um doce prazer e não é possível arrancar alguém a
ele, sem causar um estado de espírito que se torna infalivelmente
favorável à defesa.
Mas, no caso presente, a prudência era-me tanto mais
necessária quanto eu tinha sobretudo a recear o susto que este
esquecimento de si própria não deixaria de causar à terna sonhadora.
Não exigia que a confissão que suplicava fosse pronunciada; um
olhar bastava; um só olhar e seria feliz.
Minha amiga, aqueles belos olhos ergueram-se de fato para
mim; aquela boca celeste pronunciou até: "Bom! Sim eu..."
Mas de súbito extinguiu-se-lhe o olhar, faltou-lhe a voz e esta
mulher adorável caiu nos meus braços. Mal tivera tempo de; a segurar e
já ela, libertando-se com uma força convulsiva, o olhar perdido, as
mãos elevadas para o céu... "Deus, ó Deus, salvai-me!", gritou; e, no
mesmo instante, mais rápida do que um relâmpago, caiu de joelhos a
dez passos de mim. Sentia-a prestes a sufocar. Avancei para a socorrer,
mas, tomando-me as mãos que banhava de lágrimas e abraçando-me
por vezes pelos joelhos, disse: "Sim, sereis vós que me salvareis! Se não
quereis a minha morte, deixai-me; salvai-me, deixai-me por amor de
Deus, deixai-me!" E outras palavras entrecortadas mal se ouviam através
de soluços redobrados. Entretanto prendia-se-me com uma força que
me não permitia afastar-me; então, juntando as minhas, elevei-a nos
meus braços. No mesmo momento cessaram as lágrimas, deixou de
falar, os membros inteiriçaram-se-lhe, e violentas convulsões sucederam
a esta tempestade.
Eu estava, confesso, violentamente comovido, e creio que teria
acedido aos seus rogos, mesmo que as circunstâncias não me
forçassem a tal. Depois de lhe ter dado algum amparo, deixei-a
conforme me pedia, e felicito-me por isso. Em breve receberei o prêmio.
Esperava que, tal como no dia da minha primeira declaração,
ela não aparecesse à noite. Mas, cerca das oito horas, desceu ao salão
e limitou-se a declarar que estivera muito incomodada.
Tinha o rosto abatido, a voz sumida, e os modos eram afetados;
mas o olhar era doce e muitas vezes me fixou. Como se recusou a jogar
fui obrigado a substituí-la e veio sentar-se a meu lado. Durante a ceia
ficou sozinha no salão. Quando voltamos, reparei que chorara; para me
certificar, disse-lhe que me parecia que ela ainda se ressentia do seu
mal-estar; ao que respondeu delicadamente: "Este mal não se vai tão
depressa como vem!"
Quando finalmente nos retiramos, dei-lhe a mão; e à porta dos
seus aposentos apertou a minha com força. É certo que este
movimento pareceu-me ter qualquer coisa de involuntário, mas tanto
melhor; é mais uma prova do meu poder.
Apostaria que neste momento ela está encantada com o ponto
a que chegamos, acabou-se o trabalho! Gozemos agora.
Talvez, no momento em que lhe escrevo, ela se ocupe já desta
doce idéia! E mesmo que pelo contrário ela se ocupasse dum novo
projeto de defesa, não sabemos já no que resultariam todos esses
projetos? Acha que isto pode ir além da nossa próxima entrevista? Sei
bem que se fará rogada para a conceder, mas enfim! Saberão estas
beatas austeras conter-se uma vez franqueado o primeiro passo? O
amor delas é uma verdadeira explosão; a resistência dá-lhes mais força.
A minha fanática devota correria atrás de mim, se eu deixasse de a
perseguir.
Enfim, minha bela amiga, em breve irei junto de si, para lhe exigir
o cumprimento da sua palavra. Não esqueceu sem dúvida que
prometeu, após o sucesso, uma infidelidade ao seu Cavaleiro?
Está preparada? Pelo meu lado, desejo-a como se nunca a
tivesse conhecido. Ou antes, conhecê-la é talvez uma razão para a
desejar ainda mais.
...je suis juste, et ne suis point galant... *
Será a primeira infidelidade que farei a esta severa conquista; e
prometo-lhe aproveitar o primeiro pretexto para me afastar dela por
vinte e quatro horas. Será o castigo por me ter mantido tanto tempo
longe de si.
Sabe que há mais de dois meses que esta aventura me prende?
Sim, dois meses e três dias; já incluo na verdade o dia de amanhã, pois
ela só então se consumará.
Isto faz-me lembrar que Mademoiselle de B... resistiu três meses
inteiros. Estimo verificar que a coqueteria pura e simples tem mais
defesa que a austera virtude.
Adeus, minha bela amiga; tenho de a deixar porque é muito
tarde. Esta carta levou-me mais longe do que esperava; mas como a
envio amanhã de manhã a Paris, quis aproveitar, para a fazer partilhar
um dia mais cedo da alegria deste seu amigo.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**, à noite.


*..Sou justo, e não sou galanteador... Voltaire. Comédie de Nanrne.(N. do A.)

CARTA C

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Minha amiga, fui ludibriado, traído, abandonado; estou


desesperado; Madame de Tourvel partiu. Partiu e eu não o soube!
E não estava lá para me opor à sua partida, para lhe censurar
tão indigna traição! Ah! Não julgue que a deixaria fugir; ela teria ficado;
teria ficado nem que fosse forçado a recorrer à violência.
Mas quê! Na minha crédula tranqüilidade, dormia
sossegadamente: dormia e o raio fulminou-me. Não, não compreendo
este abandono; devemos renunciar a compreender as mulheres.
Quando me lembro do dia de ontem! Que digo! Da noite até!
Aquele olhar doce! Aquela voz tão terna! E a mão que apertou a
minha! E durante todo esse tempo projetava fugir de mim! Oh! Mulheres,
mulheres! Queixais-vos depois se alguém vos engana! Sim, toda a
perfídia que empregamos é um roubo que vos fazemos.
Que prazer terei em vingar-me! Tornarei a encontrar essa pérfida
mulher e retomarei o meu domínio sobre ela. Se o amor me bastou para
descobrir o caminho, que não farei guiado pela vingança. Ainda a hei-
de ver a meus pés, tremendo e banhada em lágrimas, pedindo-me
perdão com aquela voz enganadora; serei sem piedade.
Que faz agora, que pensa? Talvez se regozije por me ter
enganado e, fiel aos gostos do seu sexo, este prazer lhe pareça o mais
doce. O que não pôde a tão louvada virtude, conseguiu-o a manha
sem esforço. Insensato!
Eu temia a sensatez dela; devia antes temer a má fé.
E ser obrigado a engolir o meu ressentimento! Ousar apenas
mostrar uma terna dor, quando tenho o coração cheio de raiva!
Ver-me reduzido a suplicar outra vez a uma mulher rebelde, que
se furtou ao meu poder! Merecia eu ser humilhado a este ponto?
E por quem? Por uma mulher tímida, sem prática destas lutas.
De que me vale ter-lhe conquistado o coração, tê-la abrasado
pelo fogo do amor, ter elevado até ao delírio a perturbação dos
sentidos, se, tranqüila no seu refúgio, ela pode hoje orgulhar-se mais da
sua fuga do que eu das minhas vitórias? Suportarei isto?
A minha amiga não pode acreditar em tal; não tem de mim
idéia tão humilhante!
Mas que fatalidade me liga a esta mulher? Não há centenas
que desejam as minhas atenções? Que se apressariam a corresponder-
me?
E mesmo que não se comparem a esta, a atração da
variedade, o encanto de novas conquistas, o prestígio do seu número,
não oferecerão também doces prazeres? Por que correr atrás de quem
nos foge e desprezar os que nos procuram?
Ah! Porquê?. .. Ignoro-o mas não posso sentir de maneira
diferente. Não existe para mim felicidade ou repouso se não possuir esta
mulher que odeio e amo com fúria igual. Só poderei suportar a minha
vida a partir do momento em que disponha da sua.
Então, tranqüilo e satisfeito, vê-la-ei, por sua vez, entregue aos
tormentos que me sacodem nesta hora; e criarei ainda mil outros.
Quero que a esperança e o temor, a desconfiança e a
tranqüilidade, todos os males inventados pelo ódio, e todos os bens
concedidos pelo amor, possuam o seu coração, e aí se alternem
segundo o meu desejo. Há de chegar esse momento... Mas quantos
trabalhos ainda! Como ontem estive perto e hoje me sinto afastado!
Como aproximar-me? Não ouso tentar qualquer movimento; para
tomar uma decisão seria preciso estar mais calmo, e o sangue ferve-me
nas veias.
O que aumenta o meu tormento é o sangue-frio com que todos
respondem às minhas perguntas sobre este acontecimento e sobre a
causa, e tudo o que me parece tão extraordinário.
Ninguém sabe nada nem procura saber, nem teriam falado
nisso, se eu consentisse que se falasse doutra coisa. Madame de
Rosemonde, que visitei no seu quarto logo de manhã quando soube a
notícia, respondeu-me, com a calma da sua idade, que se tratava da
continuação natural da indisposição que Madame de Tourvel tivera
ontem; que ela receara uma doença e preferira ir para casa. Achava
muito natural e teria feito o mesmo, afirmou-me.
Como se pudesse haver qualquer coisa de comum entre
ambas!, entre esta, a quem não resta senão a morte, e a outra,
encanto e tormento da minha vida!
Madame de Volanges, que julguei primeiro cúmplice, parece
afinal ofendida por não ter sido consultada sobre esta partida.
Estou satisfeito, confesso, por ela não ter tido o prazer de me dar
um desgosto. Isto prova que ela não possui inteiramente, tal como eu
temia, a confiança da amiga; sempre é uma inimiga a menos. Como se
felicitaria se soubesse que era de mim que fugiam! Como estaria
inchada de orgulho se isso tivesse acontecido devido aos seus
conselhos! Como se sentiria importante!
Meu Deus, como a odeio! Oh, recomeçarei com a filha; quero
moldá-la segundo a minha fantasia; e creio que ficarei aqui algum
tempo. Pelo menos, as poucas reflexões que fiz levam-me a esta
conclusão.
Não acha que; depois desta decisão tão viva, a ingrata deve
recear a minha presença? Se pensou que podia segui-la, certamente
me proibiu a entrada; e não quero nem acostumá-la a isso, nem sofrer a
humilhação.
Prefiro dizer-lhe que fico aqui; rogar-lhe-ei que volte; e quando
estiver persuadida da minha ausência, apresentar-me-ei; veremos
como reage a esta entrevista.
Mas é preciso adiá-la para lhe aumentar o efeito, e não sei se
terei paciência para isso. Abri umas vinte vezes a boca durante o dia
para pedir os meus cavalos. Mas conseguirei dominar-me;
comprometo-me a receber a sua resposta aqui; peço-lhe só, minha
bela amiga, que ma não faça esperar. O que me poderia contrariar
mais seria não saber o que se passa; mas o meu criado, que está em
Paris, tem possibilidade de acesso junto da criada de quarto e portanto
poder-me-á ser útil. Vou-lhe enviar instruções e dinheiro. Não se
importará que eu junte ambos a esta carta e que lhe peça o cuidado
de lhos enviar por um dos seus, com a ordem de lhos entregar
pessoalmente.
Tomo esta precaução porque o tolo tem o hábito de nunca
receber as cartas que lhe escrevo, quando elas lhe ordenam qualquer
coisa que o mace; e, neste momento, não me parece tão apaixonado
pela sua conquista como eu o desejaria.
Adeus, bela amiga; se tiver idéia feliz, qualquer meio de apressar
a marcha, diga-me. Já mais de uma vez senti quanto a sua amizade
me pode ser útil, sinto-o ainda neste momento, porque fiquei mais
calmo enquanto lhe escrevia; pelo menos, falo a alguém que me
compreende, e não aos autômatos junto de quem vegeto desde
manhã. Na verdade, quanto mais penso mais acredito que só existimos
você e eu no mundo, que tenhamos qualquer valia.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.


CARTA CI

O VISCONDE DE VALMONT A AZOLAN, SEU CRIADO

(Junta à precedente)

Deves ser muito imbecil para, tendo partido daqui esta manhã,
não teres descoberto que Madame de Tourvel também partia; ou, se o
soubeste, para me não teres prevenido. De que serve gastares o meu
dinheiro a beber com os criados, e que em vez de empregares o tempo
a servir-me o desperdices a fazer a corte às criadas de quarto, se
apesar disso não fico mais bem informado acerca do que se passa?
Tanta negligência! Mas previno-te de que, se te acontecer uma que
seja neste caso, será a última que terás ao meu serviço.
Informar-me-ás de tudo o que se passar em casa de Madame
de Tourvel, da saúde dela; se dorme; se está triste ou alegre; se sai
muitas vezes e aonde vai; se recebe visitas, e quem; em que passa o
tempo, se se zanga com as criadas, especialmente com a que veio
com ela; o que faz quando está só; se quando lê, lê seguidamente ou
se interrompe a leitura para meditar; e o mesmo quando escreve.
Procura tornar-te amigo do criado que leva as cartas para o correio.
Oferece-te até para fazer esse recado em vez dele; e quando aceitar
não mandes senão as que te parecerem indiferentes, e envia-me as
outras, sobretudo as endereçadas a Madame de Volanges, se alguma
houver.
Procura ser ainda por algum tempo o amante feliz da tua Júlia.
Se ela tem outro, como julgaste, que consinta em se dividir; e não te
aflijas com escrúpulos ridículos, estarás no caso de muitos outros, que
valem mais do que tu. Se no entanto o teu rival se tornar importuno, se,
por exemplo, vires que ele ocupa demasiado a Júlia durante o dia, e
que por isso ela está menos tempo junto da senhora, afasta-o de
qualquer modo; ou procura uma questão com ele; não temas as
conseqüências, responderei por ti. Não deixes essa casa. É pela
assiduidade que se nota e percebe tudo. Se por um acaso algum dos
criados for despedido, apresenta-te para o substituir como se já me não
pertencesses.
Podes dizer nesse caso que me deixaste para procurar uma casa
mais tranqüila e regrada. Faz o possível para que te aceitem. Ficarás do
mesmo modo ao meu serviço durante esse tempo; será como em casa
da Duquesa de...: e, ainda por cima, Madame de Tourvel te virá a
recompensar.
Se tivesses jeito e zelo estas instruções deviam bastar, mas para
suprir a ambos envio-te dinheiro. O bilhete junto autoriza-te como verás
a levantar vinte e cinco luíses do meu administrador; porque tenho a
certeza de que estás sem dinheiro. Empregarás desta quantia o que for
necessário para decidir Júlia a estabelecer correspondência comigo. O
resto será para beberes com os criados. Quando o fizeres, não
esqueças que não são os teus prazeres que eu quero pagar, mas os
teus serviços.
Acostuma Júlia a observar e a contar-te tudo, mesmo o que lhe
pareça demasiado minucioso. Vale mais que ela escreva dez frases
inúteis do que omita uma com interesse; e muitas vezes o que parece
indiferente não o é. Como é necessário que possa ser informado
imediatamente, se acontecer qualquer coisa que te pareça
importante, assim que tenhas recebido esta carta mandarás Filipe fixar-
se em...* com um cavalo; aí ficará até nova ordem; haverá uma muda
em caso de necessidade. Para a correspondência corrente, bastará o
correio.
Tem cuidado em não perder esta carta. Relê-a todos os dias,
não só para te certificares de que não te esqueceste de nada, mas
também para teres a certeza de ainda a possuíres. Faz enfim tudo o
que é preciso, quando se tem a honra da minha confiança.
*Aldeia a meio caminho de Paris ao castelo de Madame de Rosemonde.(N. do A.)
Não terás de que te arrepender se eu ficar satisfeito contigo.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.

CARTA CII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis muito admirada, senhora, ao saberdes que parto de


vossa casa assim tão precipitadamente. Parecer-vos-á extraordinária
esta atitude, mas a vossa surpresa aumentará ainda, quando souberdes
quais os motivos!
Achareis talvez que, ao confiar-vo-los, não respeitei como devia
a tranqüilidade tão necessária à vossa idade; que me afasto até dos
sentimentos de veneração que a tantos títulos vos são devidos. Ah!
senhora, perdão, mas o meu coração está oprimido, e precisa de
expandir a sua dor no seio duma amiga simultaneamente doce e
prudente: quem poderia ele escolher senão vós? Considerai-me como
vossa filha.
Tende para comigo toda a bondade maternal; imploro-vos. Os
meus sentimentos por vós talvez possam justificar as minhas súplicas.
Onde está o tempo em que, inteiramente devotada a
sentimentos louváveis, não conhecia ainda aqueles que, lançando a
alma na perturbação que sinto agora, nos roubam a força de os
combater no momento exato em que impõem esse dever?
Ah!Esta viagem fatal perdeu-me...
Que vos posso dizer? Amo, sim, amo loucamente. Ai! Esta
palavra que escrevo pela primeira vez, esta palavra tanta vez desejada
sem ser obtida, pagaria com a vida a doçura de a poder dizer uma só
vez àquele que ma inspira; e contudo devo sem cessar abster-me de
tal! Ele vai ainda duvidar dos meus sentimentos; julgar-se-á com direito a
queixar-se. Sou tão infeliz!
Por que não lê ele no meu coração com a mesma facilidade
com que aí reina? Sim, seria menos infeliz, se ele soubesse como sofro;
mas mesmo vós, a quem o revelo, não fazeis senão ainda uma leve
idéia da minha dor.
Dentro de poucos momentos vou fugir e afligi-lo. Julgar-se-á
ainda perto de mim, e já eu estarei longe, à hora a que nos
costumávamos ver todos os dias, estarei num local aonde nunca veio,
aonde não devo permitir que venha. Os preparativos estão todos feitos;
tenho tudo em frente dos meus olhos; não os posso repousar sobre nada
que não me anuncie a cruel partida. Está tudo pronto, exceto eu. E
quando mais o coração se recusa, mais me prova a necessidade de
me submeter a esta decisão.
Submeter-me-ei sem dúvida; antes morrer do que viver culpada.
De resto, sinto que já o sou; salvei apenas a sensatez, a virtude já
desapareceu. Não é preciso confessar-vos; o que ainda me resta, devo-
o apenas à generosidade dele. Entontecida com o prazer de o ver, de
o ouvir, com a doçura de o sentir junto de mim e com a felicidade de
poder fazer a dele, encontrava-me sem recursos e sem forças; mal
podia ainda lutar, já não resistia; estremecia com o perigo sem
conseguir fugir-lhe. Pois bem! Viu a minha dor e teve piedade de mim.
Como não o adorar?
Devo-lhe mais do que a vida.
Ah! Se ao ficar junto dele eu tivesse apenas que temer por ela,
podeis crer que nunca me afastaria. De que me serve a vida sem ele?
Não seria para mim uma felicidade perdê-la? Condenada a provocar
eternamente a infelicidade de ambos; a não ousar queixar-me, nem
consolá-lo; a defender-me todos os dias dele e de mim própria; a pôr
todos os meus cuidados em fazer-lhe mal, quando afinal desejaria
consagrá-los à sua felicidade.
Viver assim, não serão mil mortes? Eis todavia o meu destino.
Suportá-lo-ei no entanto, não me faltará a coragem. Recebei vós, a
quem escolho por mãe, este juramento.
Recebei igualmente aquele que faço de nunca vos ocultar
nenhuma das minhas ações; recebei-o, suplico-vos; peço-vo-lo como
um auxílio precioso: obrigada assim a dizer-vos tudo, sentirei como se
estivesse sempre na vossa presença. A vossa virtude substituirá a minha.
Nunca consentirei, sem dúvida, em corar diante de vós, e retida por
esse freio poderoso, ao mesmo tempo que adorei em vós a amiga
tolerante e confidente da minha fraqueza, venerarei ainda o anjo
tutelar que me há de salvar da vergonha.
É já sentir muita o ter de fazer este pedido. Fatal efeito duma
presunçosa confiança! Por que não temi mais cedo esta inclinação que
senti nascer? Por que me lisonjeei de a poder dominar ou vencer à
minha vontade? Insensata! Muito mal conhecia eu o amor! Ah! Se a
tivesse combatido com mais cuidado, talvez tivesse adquirido menos
poder! E então talvez esta fuga não fosse necessária; ou, submetendo-
me embora a tão dolorosa decisão, poderia não romper inteiramente
uma ligação que bastaria tornar menos freqüente! Mas perder tudo
duma só vez, e para sempre! Ó minha amiga...! Mas quê? Mesmo ao
escrever-vos, desvairo ainda em desejos criminosos? Ah! Partamos,
partamos, e que ao menos estes erros involuntários sejam expiados
pelos meus sacrifícios.
Adeus, respeitável amiga; amai-me como filha, adotai-me como
tal; e podes estar certa de que, apesar da minha fraqueza, preferiria
morrer a tornar-me indigna da vossa escolha.

3 de Outubro de 17* *, à uma hora da manhã.

CARTA CIII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Fiquei, minha querida amiga, mais aflita com a vossa partida do


que surpreendida pela causa; uma longa experiência e o interesse que
me inspirais bastaram para me esclarecer quanto ao estado do vosso
coração; e, para dizer tudo, nada me dissestes na carta que eu não
soubesse já. Se só por ela tivesse tomado conhecimento, ignoraria
ainda quem é aquele que amais; porque, embora me faleis dele todo o
tempo, não lhe escrevestes o nome uma só vez. Mas não era preciso,
sei bem de quem se trata.
Noto-o apenas, porque me lembrei que é sempre esse o estilo do
amor. Vejo que é ainda tal como no passado.
Pensei que nunca mais voltaria a recordações tão longínquas e
tão estranhas à minha idade. No entanto, desde ontem, tenho pensado
muito nelas, pelo desejo que sentia de encontrar algo que vos pudesse
ser útil. Mas que posso fazer além de vos admirar e lamentar? Acho
louvável a sensata decisão que tomastes, mas assusta-me, porque
concluo que a julgastes necessária; e quando se está nesse ponto é
difícil mantermo-nos afastadas daqueles que o nosso coração chama
sem cessar.
No entanto não deveis perder a coragem. Nada sei impossível à
vossa bela alma; e mesmo que um dia tivésseis a infelicidade de
sucumbir (que Deus não o permita!), acreditai-me, minha querida
amiga, ficar-vos-á ao menos a consolação de ter lutado com todas as
forças. E depois, o que a sensatez humana não consegue, opera-o a
graça divina quando quer.
Talvez em breve sejais socorrida; e a vossa virtude,
experimentada nestes penosos combates, sairá mais pura e brilhante. A
força que não tendes hoje, podeis recebê-la amanhã. Não deveis ter
esperança nela para vos repousardes, mas antes para vos encorajar a
usar todas as de que já podeis dispor.
Deixando à Providência o encargo de vos socorrer dum perigo
contra o qual nada posso, reservo-me o de vos ajudar e consolar tanto
quanto me for possível. Não aliviarei as vossas penas, mas compartilhá-
las-ei.
É com esse fim que receberei de boa vontade as vossas
confidências.
Sinto que o vosso coração deve ter necessidade de se expandir.
Abro-vos o meu; a idade ainda não o gelou a ponto de ser
insensível à amizade. Encontrá-lo-eis sempre pronto para vos receber.
Podeis vir com confiança repousar-vos de cruéis agitações. Será fraco
alívio para as vossas dores, mas pelo menos não chorareis sozinha; e
quando esse amor infeliz, dominando-vos demasiado, vos obrigar a
falar, mais vale que seja comigo do que com ele. Eis que falo como vós
e creio que ambas não chegaremos a nomeá-lo; de resto
compreendemo-nos.
Não sei se faço bem em dizer-vos que ele me pareceu muito
atingido pela vossa partida; talvez fosse mais sensato não vos falar nisso,
mas não gosto dessa sensatez que faz afligir os amigos.
Sou forçada a não vos falar mais longamente. A vista débil, a
mão vacilante não me consentem longas cartas, quando é preciso que
eu própria as escreva.
Adeus, então, minha querida amiga; adeus, minha filha
adorável; sim, adoto-vos de boa vontade como minha filha; tendes
tudo o que é preciso para fazer o orgulho e o prazer duma mãe.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *.

CARTA CIV

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Em verdade, minha querida e boa amiga, custou-me a evitar um


movimento de orgulho, ao ler a vossa carta. Quê! Pois honrais-me com
a vossa inteira confiança! E ides mesmo ao ponto de me pedir
conselhos! Ah! Sentir-me-ia muito feliz, se soubesse merecer uma opinião
tão favorável da vossa parte, e não devê-la apenas à indulgência da
amizade. De resto, qualquer que seja o motivo, esta não é menos
preciosa para o meu coração; e tê-la obtido, é em minha opinião mais
uma razão para procurar merecê-la.
Vou deste modo (mas sem pretender dar-vos um conselho),
dizer-vos livremente a minha maneira de pensar. Desconfio dela porque
é diferente da vossa, mas depois de vos expor as minhas razões vós as
julgareis; e se as condenardes submeto-me antecipadamente ao vosso
juízo. Terei pelo menos a sensatez de me não julgar mais ponderada do
que vós.
Se no entanto, e por uma só vez, a minha opinião fosse
preferível, a causa disso seriam as ilusões do amor maternal. E este
sentimento, visto que é louvável, encontrar-se-á por certo no vosso
coração. Foi ele com certeza que vos ditou a decisão que estais a
tomar! Se alguma vez vos acontecer errar é apenas na escolha das
virtude.
A prudência é, ao que me parece, a que se deve preferir,
quando temos nas nossas mãos o destino dos outros; e sobretudo
quando se trata de o fixar por um laço indissolúvel e sagrado como o
casamento. É então que uma mãe, simultaneamente sensata e terna,
deve, como tão bem dizeis, ajudar a filha com a sua experiência. Ora,
pergunto-vos, que deve fazer para o conseguir, se não distinguir, para
ela, entre o que agrada e o que convém?
Não será rebaixar a autoridade materna, não será reduzi-la a
nada, subordiná-la a um gosto frívolo, filho do capricho e pai do delírio,
cujo poder ilusório domina só os que o temem, e desaparece logo que
o desprezam?
Por mim, confesso, nunca acreditei nessas paixões arrebatadoras
e irresistíveis com que, segundo me parece, se convencionou desculpar
de modo geral os nossos desregramentos. Não concebo como um
gosto, que nasce num momento e logo morre, pode ter mais força que
os princípios inalteráveis do pudor, da honestidade e da modéstia; e
não compreendo que uma mulher que os trai possa ser mais justificada
pela sua pseudopaixão, que um ladrão pela paixão do dinheiro, ou um
assassino pela da vingança.
Oh! Quem se pode gabar de nunca ter tido que resistir? Mas
sempre tentei persuadir-me que para resistir basta querê-lo; e até aqui,
pelo menos, a minha experiência confirmou esta opinião.
Que seria a virtude sem os deveres que impõe? O seu culto está
nos nossos sacrifícios e a recompensa nos corações. Estas verdades só
podem ser negadas pelos que têm interesse em as desconhecer; e que,
já depravados, esperam iludir-se um momento, tentando justificar a sua
má conduta com más razões.
Mas podê-lo-emos recear quando se trata duma criança simples
e tímida, duma criança que é vossa filha, e cuja educação modesta e
pura fortificou as já felizes tendências naturais? É no entanto a este
temor, ouso dizer humilhante para vossa filha, que quereis sacrificar o
vantajoso casamento que a vossa prudência preparara para ela! Gosto
muito de Danceny; e há muito tempo, como sabe, que pouco vejo o
senhor de Gercourt, mas a amizade por um e a indiferença que sinto
pelo outro não me impedem de sentir a enorme diferença que existe
entre esses dois partidos.
O nascimento é igual, concedo; mas um não tem fortuna, e a
do outro é tal que, mesmo sem o nascimento, teria bastado para lhe
abrir todas as portas. Confesso que o dinheiro não faz a felicidade; mas
devemos confessar também que ajuda muito.
Mademoiselle de Volanges é, como dizeis, rica por dois, no
entanto, as sessenta mil libras de renda de que ela gozará não são já
tanto quando se traz o nome de Danceny e quando se tem de pôr e
manter uma casa que lhe corresponda. Já não estamos no tempo de
Madame de Sévigné. O luxo absorve tudo; censuramo-lo, mas é preciso
imitá-lo; e o supérfluo acaba por nos privar do necessário.
Quanto às qualidades pessoais que tendes, com razão, em tão
grande conta, nada há com certeza a censurar ao senhor de Gercourt;
e, quanto a ele, as provas estão feitas. É-me agradável crer, e creio de
fato, que Danceny em nada lhe é inferior; mas poderemos ter absoluta
certeza? É certo que até aqui me pareceu isento dos defeitos próprios
da sua idade e, apesar das tendências da época, mostra um gosto
pelas boas companhias que parece ser de bom augúrio; mas quem
sabe se não deve esta aparente sensatez à mediocridade da fortuna?
Mesmo que se não tema ser corrupto ou devasso, é preciso dinheiro
para se ser jogador ou libertino, e até se podem amar os defeitos de
que tememos os excessos. Enfim, não seria o único que procuraria as
boas companhias unicamente por não poder ocupar-se mais a seu
gosto.
Não digo (Deus me livre!) que creia tudo isto a seu respeito, mas
sempre seria correr um risco; e que censuras não faríeis a vós mesma, se
o acontecimento não fosse feliz! Que responderíeis à vossa filha quando
ela vos dissesse: " Mãe, eu era jovem e sem experiência, era arrastada
por um erro perdoável na minha idade; mas o céu, prevendo a minha
fraqueza, dera-me uma mãe sensata, para tudo remediar e me
acautelar desse mal. Por que foi então que, esquecendo a vossa
prudência, consentistes na minha infelicidade? Seria eu que deveria
escolher marido, quando nada sabia do estado de casada? Mesmo
que eu o quisesse não tínheis o dever de mo impedir? Mas nunca tive
esse louco desejo. Decidida a obedecer-vos, esperei a vossa escolha
com respeitosa resignação; nunca me afastei da submissão que vos
devia, e hoje suporto os males que só caem sobre os filhos rebeldes. A
vossa fraqueza perdeu-me." Talvez o respeito lhe sufocasse estas
queixas, mas o amor materno adivinhá-las-ia e as lágrimas da vossa
filha; apesar de disfarçadas, correriam do mesmo modo sobre o vosso
coração.
Ser-vos-ia possível então encontrar consolações? Seria possível
encontrá-las nesse amor louco, contra o qual vos deveríeis ter armado e
pelo qual ao contrário vos deixastes afinal seduzir?
Talvez, querida amiga, eu tenha contra a paixão uma
prevenção demasiado grande, mas julgo-a temível, mesmo no
casamento.
Claro que não desaprovo que um sentimento honesto e doce
venha embelezar o laço conjugal e suavizar de algum modo os deveres
que impõem; mas não é a ele que compete criar este último; não é à
ilusão dum momento que cabe fazer a escolha de toda a nossa vida.
Com efeito, para escolher, é preciso comparar; e como é isso possível
quando um só objeto nos ocupa; quando nem esse podemos
conhecer, mergulhados como estamos na embriaguez e na cegueira?
Encontrei, como podeis supor, várias mulheres atingidas por esse
perigoso mal; ouvi as confidências de algumas. De ouvi-las, convencer-
nos-emos que não há nenhuma que não tenha como amante um ser
perfeito, mas essas perfeições quiméricas existem só na imaginação
delas. A sua cabeça exaltada só vê atrativos e virtudes; adornam à sua
vontade aqueles que amam; é o vestuário dum Deus, envergado
muitas vezes por um modelo abjeto, mas não importa o que ele é,
depois de o terem ornado, enganadas pela sua própria obra prostram-
se para o adorar.
Ou a vossa filha não ama Danceny, ou é vítima desta ilusão; que
é comum a ambos, se o seu amor é recíproco. O vosso motivo para os
unir para sempre reduz-se afinal à certeza de que eles se não
conhecem, se não podem conhecer. Mas, responder-me-eis, o senhor
de Gercourt e minha filha conhecem-se melhor?
Não, sem dúvida; mas pelo menos não se enganam a si próprios,
ignoram-se apenas. O que acontece neste caso entre dois esposos, que
julgo honestos? Cada um estuda o outro, observa-se em relação a ele,
procura e depressa encontra em que deve ceder nos seus gostos e
vontades para a tranqüilidade comum.
Esses ligeiros sacrifícios fazem-se sem esforço, porque são
recíprocos e já previstos; em breve fazem nascer uma mútua
benevolência; e o hábito que fortifica todas as tendências que não
destrói, conduz pouco a pouco a essa doce amizade, a essa terna
confiança, que, juntas à estima, formam, ao que me parece, a
verdadeira e sólida felicidade.
As ilusões do amor podem ser mais doces, mas não sabemos
bem que são também menos duráveis? E que perigos não traz consigo
o momento que as destrói! É então que os mínimos defeitos parecem
chocantes e insuportáveis, pelo contraste que formam com a idéia de
perfeição que nos seduzira. Cada um dos esposos pensa que só o outro
mudou, e que ele é ainda o mesmo que o outro apreciara afinal num
momento de desvario.
Espanta-se de já não fazer nascer o encanto que ele próprio já
não sente; isto humilha-o, a vaidade ferida azeda os espíritos, aumenta
os agravos, produz o mal-estar, faz nascer o ódio; e os frívolos prazeres
são pagos por longos infortúnios.
Eis, minha querida amiga, a minha opinião sobre o assunto que
nos ocupa; não a defendo, exponho-a apenas; é a vós que cabe
decidir. Mas se persistis no vosso parecer, peço-vos que me comuniqueis
as razões que venceram as minhas; ficarei radiante por me esclarecer
junto de vós, e sobretudo por ficar descansada quanto à sorte da vossa
adorável filha, para quem desejo ardentemente a felicidade, não só
pela amizade que tenho por ela, mas também pela que me une para
sempre a vós.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *.

CARTA CV

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Ora bem, minha pequena, eis-te muito zangada e cheia de


vergonha! E o senhor de Valmont é um homem mau, não é?
Pois então! Ousa tratar-te como à mulher que mais amasse!
Ensina-te aquilo que morrias de desejo por saber! De fato, essas
coisas não se fazem. E tu, pelo teu lado, querias guardar a tua pureza
para o teu amado (que não abusa dela); do amor só apreciavas os
males e não os prazeres! Nada de melhor para dar uma bela figura de
romance. Paixão, infortúnio, virtude ainda por cima, que belas coisas!
Por vezes no meio desse cortejo aborrecemo-nos deveras, mas
representa-se bem a nossa parte.
Vejam como a pobre pequena é de lamentar! Tinha os olhos
pisados no dia seguinte! E que dirás quando forem os do teu amante?
Consola-te, belo anjo, não os terás sempre assim; nem todos os homens
são Valmonts. E depois, não ousar levantar esses olhos! Oh! Tiveste
razão, toda a gente leria neles a tua aventura. Mas crê-me, se assim
fosse, as nossas mulheres e raparigas teriam o olhar mais modesto.
Apesar dos louvores que sou forçada a fazer-te, como vês,
concordemos no entanto que falhaste a tua obra-prima; devias contar
tudo à tua Mamã! Tinhas começado tão bem! Eis-te já lançada,
soluçando, nos seus braços; ela choraria também, que cena patética! E
que pena não a teres levado até ao fim! A tua terna Mamã,
arrebatada de contentamento, para reforçar a tua atitude, ter-te-ia
enclausurado para toda a vida num convento; e aí amarias Danceny
enquanto te agradasse, sem rivais nem pecado, poder-te-ias desolar à
tua vontade, e Valmont não iria, seguramente, perturbar a tua dor com
prazeres importunos.
Seriamente, admiro-me que, já feitos os quinze anos, se possa ser
tão criança! Tens razão em dizer que não mereces a minha atenção.
Gostaria no entanto de ser para ti uma amiga, terás necessidade talvez
duma amizade com a mãe que tens, e o marido que ela te quer dar!
Mas se não progrides, que queres que façam de ti? Que se pode
esperar, se o que costuma despertar o espírito às raparigas parece, pelo
contrário, tirar-to?
Se fores capaz de raciocinar um momento, depressa verás que
te deves felicitar em vez de te queixares. Mas és uma envergonhada e
isso inibe-te! Bem! Tranquiliza-te; a vergonha que o amor causa é como
a dor que ele desperta, experimentamo-la uma só vez. Podemos ainda
fingi-la, mas nunca mais a sentimos.
No entanto fica o prazer e já é alguma coisa. Julgo ter
depreendido, através da tua tagarelice, que para ti valerá mesmo
muito.
Vamos, um pouco de boa fé. Então essa perturbação que te
impedia de agir, como dizias, que te fazia achar tão difícil defender-te,
que te fez ficar de certo modo zangada quando Valmont partiu, era a
vergonha que a causava, ou era o prazer? E as suas maneiras de falar
às quais não se sabe como responder, não provinha tudo isso da
maneira de ele agir? Ah, menina, mentes e mentes à tua amiga! Isso
não está bem. Mas deixemo-lo.
O que para toda a gente seria um prazer, e poderia ser apenas
isso, torna-se na tua situação uma verdadeira felicidade.
Com efeito, colocada entre uma mãe por quem te convém
fazeres-te amada, e um apaixonado pelo qual desejas sê-lo sempre,
como não vês que o único meio de obter estes propósitos tão contrários
é ocupar-te duma terceira pessoa? Distraída por uma nova aventura,
enquanto diante de tua mãe tens o ar de sacrificar à submissão por ela
um gosto que lhe desagrada, adquires perante o teu amado a honra
duma bela defesa. Assegurando-lhe sem cessar o teu amor, nunca lhe
concederás as últimas provas. Estas recusas, tão pouco difíceis na
situação em que te encontras, não deixará ele de as tomar à conta de
virtude; talvez se queixe, mas amar-te-á ainda mais; e para ter o duplo
mérito, aos olhos de um de sacrificar o amor, aos do outro de lhe resistir,
terás apenas de fazer o sacrifício de lhe saborear os prazeres.
Oh, quantas mulheres perderam a reputação, quando com
cuidado a poderiam ter conservado se se tivessem podido servir de
semelhantes processos!
Esta solução que proponho não te parece a mais razoável, a
mais doce? Sabes o que ganhaste com a que tomaste? A tua mãe
atribuiu a redobrada tristeza a um redobrado amor, está indignada e
espera apenas ter a certeza para te castigar. Acaba de me escrever;
tentará tudo para obter de ti mesma a confissão. Talvez vá até,
segundo me disse, propor-te Danceny como esposo, e isso só para te
fazer falar. E se te deixasses seduzir por essa enganadora ternura,
respondendo segundo o teu coração, em breve enclausurada por
muito tempo, talvez para sempre, chorarias com vagar a tua cega
credulidade.
É preciso opor um outro a este ardil que ela quer empregar
contra ti.
Deves começar por mostrar menos tristeza e fazer-lhe crer que
pensas menos em Danceny. Ela persuadir-se-á tanto mais facilmente,
quanto é esse efeito habitual da ausência; e ficar-te-á muito grata
porque encontrará uma ocasião para aplaudir a sua prudência, que
lhe sugeriu este processo. Mas se, conservando ainda dúvidas, ela
persistisse no entanto em experimentar-te, se viesse a falar-te de
casamento, deverias encerrar-te, como filha bem educada, numa
inteira submissão. Afinal que arriscas? Para aquilo de que nos serve um
marido, tanto faz um como outro; e o mais incômodo é ainda menos
importuno do que uma mãe.
Uma vez contente contigo, a tua mãe casar-te-á enfim; e então,
mais livre nas tuas ações, poderás, a teu gosto, deixar Valmont para
tomar Danceny, ou mesmo conservar os dois.
Porque, toma atenção, o teu Danceny é gentil, mas é um
homem que se tem quando se quer e enquanto se quer; podemos
deste modo estar à vontade com ele. Não acontece o mesmo com
Valmont: é difícil guardá-lo; perigoso deixá-lo. Deve-se usar com ele de
muita habilidade, ou, quando a não temos, de muita docilidade. Mas
se conseguisses prendê-lo como amigo, seria uma sorte. Colocar-te-ia
na primeira fila das mulheres da moda.
É assim que se adquire uma posição no mundo, e não a corar e
a chorar, como quando as religiosas te obrigavam a jantar de joelhos.
Procura, se és sensata, reconciliar-te com Valmont, que deve
estar muito zangado contigo; e como é preciso saber emendar os
nossos erros, não receeis tomar a iniciativa; e aprenderás logo que, se
são os homens que ousam primeiro, somos quase sempre nós as
obrigadas a atraí-los em seguida. Tens um pretexto, não deves guardar
esta carta; peço-te e exijo-te que a entregues a Valmont assim que a
tiveres lido. Não te esqueças de a tornar a lacrar antes. Primeiro, é
preciso deixar-te o mérito do gesto que vais fazer, e que não deve
parecer ter-te sido aconselhado; e depois, porque és tu a única pessoa
no mundo de quem sou suficientemente amiga para te falar como o
faço.
Adeus, meu anjo; segue os meus conselhos, e dir-me-ás se foram
úteis.

P. S. - A propósito, esquecia-me... uma palavra ainda. Cuida mais do teu


estilo. Escreves ainda como uma criança. Vejo bem qual a causa; dizes
tudo o que pensas e nada do que não pensas. Isso não tem
importância entre nós, que nada devemos esconder uma à outra, mas
com os outros, e sobretudo com o teu amado, parecerás sempre uma
tontinha. Pensa que quando escreves a alguém, é para essa pessoa e
não para ti, deves antes procurar dizer aquilo que lhe agradará, de
preferência àquilo que pensas.
Adeus, meu coração; beijo-te em vez de te ralhar, na esperança de
que te tornarás mais razoável.
Paris, 4 de Outubro de 17* *.

CARTA CVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Maravilhoso, Visconde, e, pelo seu êxito, adoro-o perdidamente!


De resto, após a sua primeira carta, a continuação era de
esperar; por isso, não me espantou; e enquanto que, já orgulhoso dos
futuros sucessos, solicitava a devida recompensa, e me perguntava "se
eu estava pronta", percebi bem que não havia necessidade de me
apressar. Sim, por minha honra; lendo a bela descrição dessa terna
cena, que o tinha tão "violentamente emocionado"; vendo o seu
comedimento, digno dos mais belos tempos da nossa cavalaria, repeti
vinte vezes: "Eis um caso falhado!"
Mas é que não podia ser doutra forma! Que quer que faça uma
pobre mulher que se lhe entrega, e de quem não se apoderou?
Por minha fé, num caso desses, é preciso ao menos salvar a
honra; foi o que fez a Presidente. Proponho-me, vendo o efeito do
procedimento dela, utilizá-lo por minha conta, na primeira ocasião que
se me apresente, mas prometo que se, tal como o meu amigo, aquele
por quem eu fizer toda a cena não souber aproveitar-se dela, pode
renunciar a mim para sempre.
Ei-lo pois reduzido a nada, e isto entre duas mulheres uma já
vencida, e outra que não pedia senão a mesma sorte! Pois bem! Vai
crer que me gabo, e dizer que é fácil profetizar depois do
acontecimento, mas juro-lhe que já o esperava. É que realmente não
tem o gênio próprio da condição de libertino; sabe apenas o que
aprendeu e não é capaz de inventar. Assim, desde que as
circunstâncias não se adaptam às manhas usuais e é preciso seguir
caminho novo, fica desarmado como um rapazinho.
Enfim, criancice dum lado, regresso ao pudor do outro em
virtude de não acontecerem todos os dias, bastam para o
desconcertar; e nem sequer os sabe evitar ou remediar. Ah! Visconde,
Visconde, ensina-me a não julgar os homens pelos seus êxitos; e em
breve se dirá a seu respeito: outrora teve mérito." E depois de ter feito
asneira sobre asneira, recorre a mim! Parece que eu não tenho outra
coisa a fazer senão dar-lhe remédio. Seria na verdade trabalho de
sobra.
Dessas duas aventuras, uma foi iniciada contra a minha
vontade, e por isso não me intrometo nela; quanto à outra, como a
aceitou por amabilidade para comigo, encarrego-me eu dela. A carta
que envio junto, e que entregará à pequena Volanges depois de a ter
lido, é mais do que suficiente para a fazer regressar aos seus braços;
mas, peço-lhe, dê alguma atenção a esta criança, e façamos dela, de
comum acordo, o desespero da mãe e de Gercourt. Não receemos
forçar as doses. Vejo claramente que a garota não se assustará; uma
vez realizados os nossos desígnios, que se arranje como puder.
Desinteresso-me inteiramente dela. Tive desejo de a tornar ao
menos uma intrigante inferior, que representaria os segundos papéis sob
a minha direção, mas não tem estofo; sofre duma ingenuidade
estúpida que não cedeu sequer ao específico que o Visconde
empregou, e contudo costuma dar resultado, é na minha opinião, a
doença mais perigosa que uma mulher possa ter. Ela indica, sobretudo
uma fraqueza de caráter quase sempre incurável e que se opõe a tudo;
de maneira que, se procurássemos formar a rapariguinha para a intriga,
criaríamos apenas mais uma mulher fácil. Ora, não conheço nada mais
vulgar do que a facilidade da estupidez, que se entrega sem saber nem
como nem porquê, unicamente porque a atacam e não sabe resistir.
Mulheres desta espécie são puras máquinas de prazer.
Dir-me-á que não há outra coisa a fazer dela e que isso basta
para os nossos projetos. Seja assim! Mas não esqueçamos que cedo
toda a gente descobre as molas e os motores dessas máquinas; assim,
para nos servirmos desta sem perigo, é preciso apressarmo-nos, parar
oportunamente e destruí-la em seguida.
Na verdade, não nos faltarão os meios para nos desfazermos
dela, e Gercourt fá-la-á enclausurar quando quisermos. De fato,
quando ele já não puder duvidar do seu infortúnio, quando este for
bem público e notório, que nos importa que se vingue, contanto que
não se console? O que digo do marido, pensa-o sem dúvida da mãe;
por isso mãos à obra.
Esta posição, que julgo a melhor, decidiu-me a conduzir a jovem
um pouco mais depressa, como verá pela minha carta; importa nada
deixar nas suas mãos que nos possa comprometer.
Atente nisto, peço-lhe. Tomada esta precaução, encarrego-me
eu do moral; o resto é consigo. Contudo, se virmos que a ingenuidade
se corrige, estaremos sempre a tempo de mudar de projeto. De
qualquer forma seria preciso, mais dia menos dia, ocuparmo-nos do que
vamos fazer, em qualquer dos casos, as canseiras não serão inúteis.
Sabe que as minhas quase o foram, e que a boa estrela de
Gercourt ia levando a melhor sobre a minha ciência? Madame de
Volanges teve um momento de fraqueza maternal! Queria dar a filha a
Danceny! Eis o que anunciava esse interesse mais terno que o meu
amigo notara "no dia seguinte". Seria ainda o Visconde o causador de
semelhante obra-prima!
Felizmente a mãe carinhosa escreveu-me e espero tê-la
dissuadido.
Na minha carta falo tanto de virtude, e sobretudo lisonjeei-a
tanto, que ela deve achar que tenho razão.
Tenho pena de não ter tempo para copiar a carta a fim de o
edificar quanto à austeridade moral. Veria como desprezo as
depravadas capazes de terem um amante! É tão cômodo ser-se
rigorista nas palavras! Só pode ser prejudicial aos outros e não nos
estorva de forma alguma... E depois, não ignoro que essa "virtuosa"
mulher teve as suas fraquezas como qualquer outra, nos seus tempos, e
não me desagradou humilhá-la ao menos na sua consciência; isso
consolou-me um pouco dos elogios que lhe fiz à custa da minha. Foi isso
que, na mesma carta, a idéia de fazer mal a Gercourt me deu coragem
para dizer bem dele.
Adeus Visconde; aprovo a decisão de permanecer aí. Não
tenho meios para apressar a sua marcha; mas convido-o a distrair-se
com a nossa comum aluna. Quanto a mim, apesar da delicada citação
que usou, bem vê que ainda é preciso esperar; e concorda, sem
dúvida, que não é minha a culpa.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *.

CARTA CVII

AZOLAN AO VISCONDE DE VALMONT

Senhor:

Obedecendo às vossas ordens, fui, logo que recebi a vossa


carta, a casa do senhor Bertrand, que me entregou os vinte e cinco
luíses, como vós lhe havíeis ordenado. Ainda lhe pedi mais dois para
Filipe, a quem mandara partir imediatamente, como o senhor tinha
ordenado, e que estava sem dinheiro; mas o vosso administrador não
quis, afirmando que não recebera tal ordem da vossa parte. Fui
obrigado a dar-lhos do meu bolso, e espero que o senhor terá a
bondade de levar isso em conta.
Filipe partiu ontem à tarde. Recomendei-lhe muito que não
deixasse a estalagem, para o podermos encontrar se for preciso.
Fui logo a seguir a casa da senhora Presidente para ver a Júlia,
mas ela tinha saído e só falei ao La Fleur, por quem nada consegui
saber, porque desde a chegada que não vai ali senão à hora das
refeições. E o segundo criado que faz todo o serviço, e o senhor sabe
bem que a este eu não o conhecia. Mas comecei hoje.
Voltei esta manhã a estar com a Júlia e ela ficou muito satisfeita
por me ver. Interroguei-a sobre a causa do regresso da patroa; mas
respondeu-me que nada sabia, e julgo que falava verdade.
Censurei-a por me não ter avisado da partida e ela afirmou-me
que só soubera naquela noite, quando fora deitar a senhora; tanto
assim que passara toda a noite a arranjar as coisas e a pobre rapariga
não chegou a dormir duas horas. Saíra nessa noite do quarto da patroa
depois da uma hora, e quando a deixou punha-se esta a escrever.
De manhã, Madame de Tourvel, ao partir, entregou uma carta
ao porteiro do castelo. Júlia não sabia para quem: disse que talvez fosse
para o senhor, mas o senhor não me fala nisso.
Durante toda a viagem a senhora tinha um grande capuz na
cabeça, o que impedia que se lhe visse o rosto, mas Júlia julga que ela
chorou muito. Não disse uma palavra durante o caminho, e não quis
parar em...*, como fizera à ida; o que desagradou a Júlia, que não tinha
almoçado. Mas, tal como eu lhe disse, manda quem pode.
*Ainda a mesma aldeia a meio do caminho.
À chegada, a senhora deitou-se; mas só ficou duas horas na
cama. Quando se levantou, mandou chamar o porteiro e deu-lhe
ordem de não deixar entrar ninguém. Nem sequer se arranjou.
Sentou-se à mesa para jantar, mas só comeu um pouco de sopa
e levantou-se logo. Levaram-lhe o café ao quarto, Júlia entrou ao
mesmo tempo. Viu que a patroa arrumava os papéis da secretária e
reparou que eram cartas. Apostaria que são as do senhor; e das três
que recebeu durante a tarde, houve uma que conservou diante dela
até à noite. Tenho a certeza de que se trata ainda de alguma vossa.
Mas por que regressou ela deste modo? Espanta-me! Mas, enfim, com
certeza que o senhor o sabe, e não tenho nada com isso.
A senhora Presidente foi à tarde à biblioteca e escolheu dois
livros para o tocador, mas Júlia afirma que ela não leu nem um quarto
de hora em todo o dia e que não fez outra coisa senão ler a tal carta, e
pensar apoiada a uma mão. Como julguei que o senhor ficaria
contente por saber de que livros se trata, e Júlia não sabia, consegui ir
hoje à biblioteca, com o pretexto de a ver.
Só estava vazio o lugar de dois livros: um é o segundo volume
dos Pensées Chrétiennes; e o outro o primeiro dum livro que tem por
título Clarisse. Escrevo tal como lá estava: o senhor saberá talvez do que
se trata.
Ontem à noite, a senhora não jantou: só tomou chá. Chamou
cedo esta manhã; pediu logo os cavalos e foi antes das nove a
Feuillants, onde ouviu missa. Quis confessar-se mas o seu confessor
estava ausente e só voltará dentro de oito a dez dias. Pensei que o
senhor gostaria de saber isto.
A senhora voltou logo, almoçou, e pôs-se a escrever, e assim
esteve quase até à uma hora. Aproveitei a ocasião para fazer o que o
senhor tanto desejava: fui eu que levei as cartas ao correio.
Não havia nenhuma para Madame de Volanges; mas envio-lhe
uma que era para o senhor Presidente: pensei que seria a mais
interessante. Havia
também uma para Madame de Rosemonde, mas achei que o senhor a
conseguiria ler quando quisesse, e deixei-a seguir. De resto, o senhor
saberá tudo porque a senhora Presidente também lhe escreve. Verei de
futuro todas as cartas que eu quiser; porque é a Júlia que as entrega
aos criados, e ela prometeu-lhe que por amizade por mim, e pelo
senhor, fará de boa vontade o que eu lhe pedir.
Ela nem sequer quis o dinheiro que lhe ofereci, mas acho que o
senhor deverá querer recompensá-la com algum presente; se o desejar
e se for da sua vontade que eu me encarregue disso, saberei achar
facilmente algo que lhe agradará.
Espero que o senhor não ache deste vez que mostrei
negligência em servi-lo e desejo lavar-me das censuras que me fez. Se
não soube da partida da senhora Presidente, foi por causa do meu zelo
em servir-vos, pois foi devido a ele que parti às três da manhã; desse
modo não vi Júlia na véspera à noite, como de costume, visto que fui
dormir a Tournebride, para não acordar no castelo.
Quanto ao que o senhor me censura de estar muitas vezes sem
dinheiro, em primeiro lugar é porque gosto de me vestir
convenientemente, como o senhor pode ver, depois porque preciso
corresponder ao fato que se traz, bem sei que devia economizar um
pouco para o futuro, mas confio inteiramente na generosidade do
senhor, que é tão bom patrão.
Quando entrar para o serviço de Madame de Tourvel, ficando
na mesma no do senhor, espero que não o exigirá de mim. Era muito
diferente em casa da senhora duquesa; eu não poderia usar uma libré,
e para mais uma libré de nobreza de toga, depois de ter tido a honra
de ser vosso criado.
Para tudo o resto, o senhor pode dispor daquele que tem a
honra de ser, com muito respeito e consideração, vosso humilde
servidor.
Roux Azolan, criado.

Paris, 5 de Outubro de 17* * às onze horas da noite.

CARTA CVIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Oh, minha indulgente mãe! Como vos agradeço e como me era


necessário a vossa carta! Li-a e reli-a sem cessar; não podia arrancar-
me dela. Devo-lhe os únicos momentos menos penosos que passei
desde a minha partida. Como sois boa! A sensatez e a virtude sabem
pois condoer-se da fraqueza! Tendes piedade dos meus males! Ah, se os
conhecêsseis!... São terríveis. Julgava ter experimentado os males do
amor; mas o tormento inexprimível, que é preciso ter sentido para o
poder avaliar, é separarmo-nos daquele que amamos, separarmo-nos
para sempre!... Sim, a dor que hoje sinto voltará amanhã, depois de
amanhã, toda a minha vida! Meu Deus, como sou jovem ainda, e que
longo tempo me resta para sofrer!
Sermos nós próprios os autores da nossa infelicidade; rasgar o
coração com as próprias mãos; e enquanto sofro dores insuportáveis,
sentir a cada instante que as posso fazer cessar com uma palavra, e
que essa palavra é um crime! Ah, minha amiga!...
Quando tomei esta decisão tão penosa de me afastar dele,
esperava que a ausência me aumentaria a coragem e as forças, como
me enganei! Parece-me que pelo contrário acabei por destruí-las.
Precisava de combater mais, é verdade, mas mesmo resistindo,
nem tudo era privação; ao menos via-o algumas vezes; muitas vezes,
mesmo sem ousar olhá-lo, sentia os olhos dele fixos em mim; sim, minha
amiga, sentia-os, parecia que me aqueciam a alma; e mesmo sem me
atravessarem os olhos, chegavam-me ao coração. Agora, na minha
triste solidão, isolada de tudo o que me é caro, frente ao meu infortúnio,
todos os momentos da minha triste existência são regados de lágrimas,
e nada me suaviza a amargura; nenhuma consolação se junta aos
meus sacrifícios; e os que até hoje fiz só serviram para tornar mais
dolorosos os que me resta fazer.
Ontem ainda, senti-o vivamente. Nas cartas que me trouxeram,
havia uma dele; estavam ainda a dois passos de mim e já eu a
reconhecera entre as outras. Levantei-me involuntariamente; tremia, a
custo escondia a minha emoção; e este estado não deixava de me ser
agradável. Quando fiquei só no momento seguinte, essa enganadora
doçura depressa se desvaneceu, e ficou-me apenas mais um sacrifício
a fazer. Com efeito, poderia eu abrir essa carta que tanto ansiava por
ler? Pela fatalidade que me persegue, mesmo as consolações que
parecem apresentar-se-me impõem-me pelo contrário novas privações;
e estas tornam-se mais cruéis ainda pela idéia de que o senhor de
Valmont as compartilha.
Ei-lo enfim, esse nome que me ocupa sem cessar e que tanto me
custou a escrever; a quase censura que me fazeis a este propósito,
alarmou-me deveras. Suplico-vos que acrediteis que uma falsa
vergonha não alterou a minha confiança em vós; e por que temeria
nomeá-lo? Coro dos meus sentimentos e não do objeto que os causa.
Ah! Quem é mais digno do que ele de os inspirar!
E contudo não sei por que me é tão difícil escrever esse nome; e
mesmo desta vez, foi deliberadamente que o escrevi. Volto a ele.
Contais-me que vos pareceu vivamente afetado com a minha
partida. Que fez ele? Que disse? Falou em voltar a Paris?
Peço-vos que o afasteis dessa idéia tanto quanto puderdes. Se
ele me interpretou bem, não deve ter levado a mal a minha partida,
mas deve sentir também que é uma decisão sem apelo. Um dos meus
maiores tormentos é não saber o que ele pensa. Ainda conservo a
carta...; mas sois seguramente da minha opinião, não a devo abrir.
É a vós, minha indulgente amiga, que devo não estar
inteiramente separada dele. Não quero abusar da vossa bondade; vejo
bem que as vossas cartas não podem ser longas, mas não negareis
duas palavras à vossa filha; uma para lhe manter a coragem, a outra
para a consolar.
Adeus, minha respeitável amiga.
Paris, 5 de Outubro de 17* *.

CARTA CIX

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Foi só hoje, senhora, que entreguei ao senhor de Valmont a


carta que me destes a honra de escrever. Guardei-a durante quatro
dias, apesar do terror de que fosse encontrada, guardei-a com muito
cuidado; e quando a tristeza me assaltava, fechava-me para a reler.
Vejo que o que julgava uma tão grande infelicidade não o é; e
devo confessar até que me dá muito prazer; de modo que isso já quase
me não aflige. Somente a idéia de Danceny ainda me atormenta às
vezes. Mas há muitos momentos em que nem sequer penso nisso e o
senhor de Valmont é tão amável!
Fiz as pazes com ele há dois dias; foi-me muito fácil; porque
ainda mal eu pronunciara duas palavras, já ele me dizia que se eu tinha
qualquer coisa a dizer-lhe iria nessa noite ao meu quarto, e só tive de
responder-lhe que me agradaria muito. E depois, logo que entrou,
pareceu-me tão contente comigo como se eu nada lhe tivesse feito. Só
depois é que me ralhou, mas muito docemente; e duma maneira... Tal
como vós; isso provou-me que ele também tem muita amizade por
mim.
Não seria capaz de dizer-vos quantas coisas engraçadas ele me
contou, coisas que nunca teria acreditado; especialmente sobre a
Mamã.
Agradecer-vos-ia muito se me dissésseis se tudo aquilo é
verdade. O que é certo, é que eu não podia impedir-me de rir; duma
vez mesmo às gargalhadas, o que nos causou grande medo, porque a
Mamã podia ter ouvido; e se tivesse vindo, que me teria acontecido?
Desta vez é que me mandaria para o convento!
Como devemos ser prudentes e o senhor de Valmont me disse
que por nada deste mundo queria correr o risco de me comprometer,
combinamos que de ora avante ele viria só abrir a porta e iríamos para
o seu quarto. Aí nada há a recear; já lá estive ontem, e no momento em
que vos escrevo aguardo que me venha buscar. Agora, minha senhora,
espero que me não ralheis mais.
Há no entanto uma coisa que me surpreendeu muito na vossa
carta; é o que me mandais dizer acerca de Danceny e do senhor de
Valmont quando eu estiver casada. Parece-me que um dia, na Ópera,
me dissestes, pelo contrário, que, uma vez casada, não poderia amar
senão o meu marido, e que devia mesmo esquecer Danceny; de resto,
talvez não tenha percebido bem, e prefiro que não seja assim, porque
então, já não terei tanto receio de me casar. Desejo-o até visto que
terei mais liberdade; e espero então arranjar maneira de pensar só em
Danceny. Sinto bem que só com ele serei verdadeiramente feliz, porque
a sua lembrança agora atormenta-me sempre, e só tenho felicidade
quando consigo não pensar nele, o que é muito difícil; e logo que
penso, volto a ficar desgostosa.
O que me consola um pouco é a certeza que me dais de que
Danceny me ficará amando mais devido a isto, mas tendes bem a
certeza...
Oh, sim, seríeis incapaz de me enganar. É engraçado que seja
Danceny que eu ame, e que seja o senhor de Valmont...
Mas, pelo que me dizeis, é talvez uma sorte ! Enfim, veremos. Não
compreendi bem o que me dizeis a respeito da minha maneira de
escrever. Parece-me que Danceny acha as minhas cartas bem tal
como são. No entanto, sinto que nada lhe devo dizer acerca do que se
passa com o senhor de Valmont; nada tendes a temer.
A Mamã ainda me não falou do meu casamento, mas não nos
preocupemos; quando me falar, visto que é para me apanhar,
prometo-vos que saberei mentir.
Adeus, minha boa amiga, agradeço-vos, e prometo-vos que
nunca esquecerei todas as bondades que tendes para comigo. Devo
acabar, é quase uma hora e o senhor de Valmont não tarda.

Castelo de..., 10 de Outubro de 17 * *.

CARTA CX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

"Poderes do céu, eu tinha uma alma para a dor; dai-me outra


para a felicidade." Creio que é assim que se exprime o terno Saint-
preux. Mais bem dotado do que ele, possuo simultaneamente as duas
existências. Sim, minha amiga, sou ao mesmo tempo muito feliz e muito
desgraçado; e visto que lhe dou inteira confiança, devo-lhe a dupla
história das minhas dores e dos meus prazeres.
Saiba pois que a ingrata devota continua a ser severa para
comigo.
Já estou na quarta carta devolvida. Quarta, digo mal; porque,
tendo adivinhado desde a primeira devolução que outras se lhe
seguiriam, e não querendo desperdiçar tempo, tomei a decisão de
escrever os meus queixumes em lugares-comuns, e de não datar, desde
o segundo correio, é sempre a mesma carta que vai e vem; mudo
apenas o sobrescrito. Se a minha bela acabar como acabam
geralmente as belas, e se se enternecer um dia, pelo menos de
cansaço, guardará enfim a missiva, e então será a altura de me pôr em
dia. Bem vê que, com este novo gênero de correspondência, não
posso estar nem mais avançado, nem mais informado do que no
primeiro dia.
Descobri contudo que a volúvel criatura mudou de confidente,
tenho a certeza de que, desde a partida daqui, não veio nenhuma
carta dela para Madame de Volanges, ao passo que já vieram duas
para a velha Rosemonde; e como esta nada nos diz, como já não abre
a boca sobre "a sua querida filha", de quem antes falava sem cessar,
concluí que fora ela quem recebera a confidência. Presumo que por
um lado a necessidade de falar de mim; e por outro lado a vergonha
de expor, perante Madame de Volanges, um sentimento há tanto
tempo renegado, produziram esta grande revolução. Receio ter
perdido com a troca, porque as mulheres quanto mais velhas, mais
ríspidas e severas se tornam.
A primeira dir-lhe-ia mal de mim, mas esta dir-lhe-á ainda pior do
amor; e a sensível e pudibunda dama tem mais terror do sentimento do
que de mim.
A única maneira de saber o que se passa é, como vê,
interceptar a correspondência clandestina. Já dei ordem ao meu
criado; e aguardo a execução de dia para dia. Até lá, só posso agir ao
acaso, assim, há oito dias, revejo inutilmente todos os processos
conhecidos, os dos romances e os das minhas memórias secretas; não
encontro nenhum que convenha às circunstâncias da aventura ou ao
caráter da heroína. O difícil não seria introduzir-me em casa dela,
mesmo de noite, adormecê-la e transformá-la numa nova Clarisse, mas
depois de mais de dois meses de cuidados e de trabalhos, recorrer a
meios que me são estranhos, arrastar-me servilmente pelo caminho dos
outros, e triunfar sem glória!...
Não, ela não terá "os prazeres do vício e as honras da virtude".
Não me basta possuí-la, quero que ela se entregue.
Ora, para tal não basta penetrar até junto dela, mas sim fazê-lo
com o seu consentimento; encontrá-la só e na disposição de me
escutar; sobretudo fechar-lhe os olhos quanto ao perigo, porque, se o
vê, saberá vencê-lo ou morrer. Mas quanto melhor sei o que é preciso
fazer, mais reconheço as dificuldades, e ainda que a minha amiga faça
outra vez troça de mim, confesso-lhe que o meu embaraço aumenta à
medida que me ocupo cada vez mais do caso.
A cabeça ficar-me-ia tonta, creio, sem as felizes distrações que
me dá a nossa comum aluna; é a ela que devo o ter ainda alguma
coisa a fazer que não elegias.
Acredita que a rapariguinha estava de tal modo furiosa, que se
passaram três longos dias antes que a sua carta produzisse efeito
completo? Eis como uma só idéia falsa pode estragar o mais agradável
dos temperamentos!
Enfim; só no sábado é que veio andar à roda de mim, e
balbuciar-me algumas palavras; pronunciadas no entanto tão baixo e
abafadas de tal maneira pela vergonha, que era impossível ouvi-las.
Mas o rubor que causaram fez-me adivinhar o sentido.
Até aqui tinha-me mantido sobranceiro, mas amaciado por um
tão agradável arrependimento, consenti em encontrar-me nessa
mesma noite com a linda penitente; e esta graça da minha parte foi
recebida com todo o reconhecimento devido a uma tão grande
mercê.
Como nunca perco de vista os seus projetos e os meus, resolvi
aproveitar a ocasião para conhecer ao certo o valor desta criança e
também para lhe apressar a educação. Mas, para continuar este
trabalho com mais liberdade, tive necessidade de mudar o local dos
nossos encontros; porque um pequeno gabinete, que separa o quarto
da sua aluna do da mãe, não lhe inspirava suficiente segurança para a
deixar manifestar-se à vontade.
Prometera a mim mesmo provocar "inocentemente" algum ruído
suscetível de lhe causar o receio bastante para a decidir a escolher, de
futuro, um asilo mais tranqüilizador; ela poupou-me o trabalho.
A pequena gosta de rir; e, para lhe agradar, decidi-me, nos
intervalos, a contar-lhe todas as aventuras escandalosas que me
passavam pela cabeça; para as tornar mais picantes e prender-lhe a
atenção, atribuí-as todas à Mamã dela, que me deliciei desta forma a
galardoar de vícios e de ridículos.
Não era sem motivo que tinha tomado esta decisão, de fato
não havia melhor maneira de encorajar a tímida aluna e de lhe inspirar
ao mesmo tempo o mais profundo desprezo pela mãe. Já há muito
tinha notado que, se este meio nem sempre é necessário para seduzir
uma rapariga, é indispensável, e muitas vezes até o mais eficaz, quando
a queremos depravar; porque aquela que não respeita a mãe não se
respeitará a si própria; verdade moral que acho tão útil, que me foi bem
fácil fornecer um exemplo em apoio do preceito.
No entanto, a sua aluna, que não pensava na moral, sufocava
de riso a cada instante; e enfim, uma vez, ia quase rebentando às
gargalhadas.
Não tive dificuldade em lhe fazer crer que tinha sido "um barulho
horrível". Fingi um grande medo que ela facilmente compartilhou. Para
que ela se lembrasse bem, não permiti que o prazer nascesse de novo,
e deixei-a três horas mais cedo que de costume; combinamos também,
ao despedir-nos, que a partir do dia seguinte seria no meu quarto que
nos encontraríamos.
Já aqui a recebi duas vezes; e neste curto intervalo a aprendiza
tornou-se quase tão sabida como o mestre. Sim, na verdade, ensinei-lhe
tudo, até mesmo as complacências! Omiti apenas as precauções.
Ocupado toda a noite, ganho desta forma o benefício de
dormir uma grande parte do dia; e como não há neste momento no
castelo companhia que me atraia, limito-me a aparecer no salão
durante uma hora.
Tomei mesmo, a partir de hoje, a decisão de comer no meu
quarto, e não tenciono deixá-lo a não ser para pequenos passeios. Estas
excentricidades são levadas à conta do meu estado de saúde.
Declarei que estava ligeiramente indisposto; anunciei também um
pouco de febre. Tenho apenas de falar com uma voz lenta e apagada.
Quanto à alteração do meu rosto, confie na sua aluna. "O amor
providenciará." *
Ocupo o ócio pensando nos meios de reconquistar à minha
ingrata as vantagens que perdi, e também a escrever uma espécie de
catecismo da depravação para uso da minha pupila. Divirto-me a
designar tudo pelo termo técnico, e rio antecipadamente da
interessante conversa que daqui resultará entre ela e Gercourt, na noite
de núpcias. Nada mais agradável do que a ingenuidade com que ela
se serve já do pouco que sabe desta língua!
Ela não imagina que se possa falar doutra forma. Esta criança é
realmente sedutora! O contraste entre a ingênua candura e a
linguagem descarada não deixa de fazer efeito, e, não sei porquê,
agora só me agradam as coisas extravagantes.
Talvez me abandone demasiado a esta, visto que comprometo
o tempo e a saúde, mas espero que a minha fingida doença, além de
me salvar do tédio do salão, ainda me possa ser de qualquer utilidade
junto da austera devota, cuja virtude de tigre se alia contudo à doce
sensibilidade!
Não duvido que já esteja instruída deste grande acontecimento,
e gostava imenso de saber o que ela pensa; tanto mais que apostaria
de bom grado que não deixará de se atribuir as honras. Regularei o
meu estado de saúde pela impressão que produzir sobre ela.
Ei-la, minha bela amiga, ao corrente dos meus problemas como
se fora eu próprio. Desejo ter em breve notícias mais interessantes para
lhe transmitir, e, peço-lhe que o creia, no prazer que prometo a mim
mesmo, conto muito com a recompensa que espero de si.

Castelo de..., 11 de Outubro de 17* *.


*Regnard, Folies Amoureuses.

CARTA CXI

O CONDE DE GERCOURT A MADAME DE VOLANGES

Parece que tudo está tranqüilo nesta região, minha senhora; e


esperamos, dum dia para o outro, a licença de voltar a França.
Espero que não duvidareis que desejo sempre com o mesmo
ardor regressar e atar os laços que me deverão unir a vós e a
Mademoiselle de Volanges. No entanto o duque de..., meu primo, a
quem sabeis bem que devo obrigações, acaba de me participar a sua
chamada a Nápoles.
Manda-me dizer que tenciona visitar Roma e ver, no caminho, a
parte da Itália que lhe falta conhecer. Exorta-me a acompanhá-lo
nessa viagem que durará aproximadamente seis semanas ou dois
meses. Não devo ocultar-vos que me seria agradável aproveitar esta
ocasião, pois bem vejo que uma vez casado não terei tempo para mais
ausências do que as exigidas pelo serviço. Talvez seja, aliás, mais
conveniente adiar o casamento para o Inverno; pois só então todos os
meus parentes estarão reunidos em Paris, e principalmente o marquês
de..., a quem devo a esperança de vir a pertencer à vossa família.
Apesar destas considerações, os meus projetos a este respeito
subordinar-se-ão inteiramente aos vossos; e se preferirdes o que
combinamos em primeiro lugar, renunciarei a estes meus planos. Peço-
vos somente que me façais saber o mais depressa possível as vossas
intenções a este respeito. Esperarei a vossa resposta aqui e só por ela
regularei o meu procedimento.
Sou com todo o respeito, minha senhora, e com todos os
sentimentos que convêm a um filho, o vosso muito humilde, etc.

Conde de Gercourt

Bastia, 10 de Outubro de 17* *.

CARTA CXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

(Ditada)
Só agora recebi, minha querida filha, a vossa carta de 1/11, e as
doces censuras que contém. Confessai que tivestes vontade de me
fazer ainda mais; e que se vos não tivésseis lembrado de que éreis
minha filha, ter-me-íeis ralhado a valer. Teríeis sido no entanto bem
injusta! Era o desejo e a esperança de vos poder responder eu própria
que me faziam adiar todos os dias; e vedes que ainda hoje sou
obrigada a servir-me da mão da minha criada de quarto. O maldito
reumatismo voltou-me; anichou-se desta vez no braço direito e estou
mesmo maneta. Eis de que vos serve, jovem e fresca como sois, ter uma
amiga tão velha! Pagais pelos meus incômodos.
Logo que as dores me dêem um pouco de descanso, prometo
conversar longamente convosco. Entretanto dir-vos-ei apenas que
recebi as vossas duas cartas, que teriam duplicado, se tal fosse possível,
a minha terna amizade por vós; e que nunca deixarei de compartilhar
intensamente tudo o que vos diz respeito.
O meu sobrinho também está um pouco indisposto, mas sem
gravidade, nada de inquietante; um ligeiro incômodo, que, ao que me
parece, lhe afeta mais o espírito do que a saúde.
Quase não o vemos.
O afastamento dele e a vossa partida tiraram a alegria ao nosso
grupo. A pequena Volanges sobretudo não diz uma palavra e boceja
desalmadamente durante todo o dia. Especialmente de há alguns dias
para cá, dá-nos a honra de adormecer profundamente logo após o
jantar.
Adeus, minha querida filha; serei sempre para vós a amiga, a
mãe, e até a irmã, se a avançada idade me permitisse tal título.
Enfim, estou-vos ligada pelos mais ternos sentimentos.
Assinada: Adelaide, em nome de Madame de Rosemonde.

Castelo de..., 14 de Outubro de 17* *.

CARTA CXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Creio que devo preveni-lo, Visconde, que começam a falar de si


em Paris; reparam na sua ausência e já se começa a adivinhar a causa.
Assisti ontem a um jantar muito concorrido, onde se disse positivamente
que estava preso na aldeia por um amor romanesco e infeliz; logo a
alegria se pintou no rosto de todos os invejosos dos seus êxitos e de
todas as mulheres que desprezou.
Se me acreditar, não deixará aumentar estes murmúrios
perigosos e virá destruí-los imediatamente com a sua presença.
Pense que, se uma vez deixar perder a idéia de que se lhe não
resiste, em breve sentirá que lhe resistem com efeito mais facilmente; e
que os seus rivais lhe perdem o respeito e ousam combatê-lo: qual de
entre eles se não julga mais forte que a virtude?
Sobretudo pense que, na multidão de mulheres de que se
vangloriou, todas as que não possuiu vão tentar elucidar o público,
enquanto as outras procurarão enganá-lo. Enfim, conte com ser julgado
tão abaixo do seu valor, como até agora o foi acima.
Volte, Visconde, não sacrifique a reputação a um capricho
pueril.
Cumpriu todos os nossos planos em relação à pequena
Volanges; quanto à sua Presidente, não será, parece-me,
permanecendo a dez léguas dela que se libertará dessa fantasia. Julga
que ela o irá procurar? Talvez já se se não se lembre de si, ou só se
recorde para se felicitar de o ter humilhado.
Ao menos aqui, poderá achar ocasião para reaparecer com
brilho, e bem precisa disso; e mesmo que se obstine na sua ridícula
aventura, não vejo em que o seu regresso o possa prejudicar; antes
pelo contrário.
Com efeito, se a sua Presidente o "adora" como tantas vezes me
disse, e tão poucas provou, a sua única consolação e prazer deve ser
agora falar de si, saber o que faz, o que diz, o que pensa, tudo enfim
que lhe diga respeito. Estas misérias tornam-se importantes em relação
às privações que se sofrem. São as migalhas de pão que caem da
mesa do rico: este desdenha-as; mas o pobre recolhe-as avidamente e
alimenta-se delas. Ora, a pobre Presidente recebe agora todas essas
migalhas, e quantas mais tiver, menos pressa terá em ceder ao apetite
do resto.
Para mais, visto que lhe conhece a confidente, não duvidará
que cada carta contenha um pequeno sermão, e tudo o que ela julga
próprio para corroborar a sensatez e fortificar a virtude.
Para quê, pois, deixar a uma recursos para se defender e à outra
para o prejudicar?
Não que eu seja da sua opinião quanto à perda que julga ter
sofrido com a mudança de confidente. Em primeiro lugar, Madame de
Volanges odeia-o, e o ódio é sempre mais engenhoso e clarividente do
que a amizade. A virtude da sua velha tia não se empregará nem um
só instante a denegrir o querido sobrinho; porque a virtude também tem
fraquezas. Para mais os seus receios partem duma observação
absolutamente falsa.
Não é verdade que as mulheres quanto mais velhas, mais
ríspidas e severas se tornam. É dos quarenta aos cinqüenta anos que o
desespero de ver no rosto fanar-se, a raiva de se sentirem obrigadas a
abandonar as pretensões e prazeres a que estão ainda presas, tornam
quase todas as mulheres azedas e hipócritas.
Precisam desse longo intervalo para fazer por inteiro esse grande
sacrifício, mas uma vez consumado, dividem-se todas em duas classes.
A mais numerosa é a das mulheres que, nunca tendo tido mais
do que beleza e juventude, caem numa apatia imbecil de que só
acordam por causa do jogo ou de algumas práticas de devoção; estas
são sempre ameaçadoras, muitas vezes impertinentes, às vezes um
pouco intriguistas, mas raramente más.
Nem se pode dizer se essas mulheres são ou não severas, sem
idéias e sem consistência, repetem, sem compreender e
indiferentemente, tudo o que ouvem dizer e conservam-se por si
próprias absolutamente nulas.
A outra classe, muito mais rara, mas verdadeiramente preciosa,
é a das mulheres que, tendo tido um caráter e não desprezando
alimentar a razão, sabem criar-se uma existência quando a da natureza
lhes falta; e tomam o partido de enfeitar o espírito com os ornatos que
dantes empregavam para o corpo.
Estas têm geralmente uma sã maneira de julgar, o espírito ao
mesmo tempo sólido, alegre e gracioso. Substituem as graças sedutoras
por uma bondade que prende, e ainda por uma alegria cujo encanto
aumenta em proporção com a idade, é assim que conseguem
aproximar-se de juventude e fazer-se amar por ela. Mas então, em vez
de serem, como o seu amigo diz, ríspidas e severas, o hábito da
indulgência, as longas reflexões sobre a natureza humana, e enfim, as
recordações da juventude, os únicos laços que ainda as prendem à
vida, colocá-las-iam talvez demasiado perto da facilidade.
O que lhe posso dizer é que tendo sempre procurado as
senhoras idosas, de quem cedo achei útil a aprovação, encontrei
muitas para quem me atraía tanto a inclinação como o interesse.
Fico por aqui; porque como o meu amigo agora se inflama tão
depressa e de forma tão moralona, tenho medo que se apaixone
subitamente pela sua velha tia e que vá com ela a sepultar no túmulo
onde afinal o Visconde já vive de há uns tempos a esta parte. Volto pois
ao que me interessa.
Apesar do encantamento em que está com a colegialzinha, não
creio que ela pese qualquer coisa nos seus projetos. Achou-a à mão de
semear, apossou-se dela: ainda bem! Mas não se trata
verdadeiramente duma inclinação. Nem sequer é, vendo bem, um
verdadeiro prazer: o meu amigo possui-lhe apenas o corpo! Já não falo
do coração, pois duvido que se preocupe com isso, mas nem sequer
lhe ocupa o espírito. Não sei se deu conta disso, mas tenho a prova na
última carta que ela me escreveu; envio-lha para que veja com os seus
próprios olhos. Repare que, quando fala de si, é sempre o senhor de
Valmont; que todas as idéias, mesmo as que lhe faz nascer, conduzem-
na sempre a Danceny e a este não chama senhor, mas simplesmente
Danceny *.
É assim que ela o distingue de todos os outros; e mesmo quando
se entrega a si, é apenas dele que se torna íntima. Se tal conquista lhe
parece sedutora, se os prazeres que ela oferece o prendem, é
certamente modesto e pouco exigente! Admito que a guarde para si;
entra até nos nossos projetos. Mas acho que isso não vale qualquer
*Ver Carta CIX.
espécie de incômodo; deveríamos ter também algum domínio sobre
ela e não permitir, por exemplo, que se aproxime de Danceny senão
depois de lho termos feito esquecer um pouco.
Antes de deixar de me ocupar de si, para chegar à minha vez,
quero ainda dizer-lhe que esse processo de se desculpar com uma
doença me parece demasiado conhecido e usado. De fato, Visconde,
que falta de imaginação! Também me repito às vezes, como irá ter
ocasião de ver; mas procuro variar os pormenores, e, o que é mais
importante, o êxito dá-me razão. Vou tentar obter mais um e correr uma
nova aventura. Concordo que esta não será uma distração, e morro de
tédio.
Não sei porquê, mas desde a aventura de Prévan que
Belleroche se me tornou insuportável. Está de tal forma atencioso, terno
e cheio de veneração, que já não posso mais. A cólera dele, no
primeiro momento, agradou-me; no entanto tive de o acalmar, porque
deixá-lo agir seria comprometer-me, não haveria maneira de o chamar
à razão. Decidi pois mostrar-lhe mais amor para pôr ponto final no
assunto, mas ele tomou-me a sério, e desde essa altura exaspera-me
com o seu encantamento eterno.
Noto principalmente a insultante confiança que vai depositando
em mim e a segurança com que me considera sua para sempre. Sinto-
me verdadeiramente humilhada. Deve apreciar-me bem pouco, para
se julgar com bastante valor para me prender! Pois não me dizia
ultimamente que eu nunca amara ninguém além dele? Oh, naquele
momento foi preciso apelar para toda a minha prudência para o não
desiludir, contando-lhe a verdade.
Eis mais um cavalheiro que pretende direito exclusivo!
Concordo que é elegante e tem um belo rosto, mas no fundo é
apenas um recruta nestas coisas do amor. Chegou finalmente o
momento, é preciso que nos separemos.
Há já quinze dias que experimento, e tentei sucessivamente a
frieza, o mau humor, as discussões; mas o sujeito é tenaz e não larga a
presa facilmente, é preciso portanto tomar uma decisão mais violenta;
por isso levo-o para a minha casa de campo. Partimos depois de
amanhã. Irão conosco apenas algumas pessoas desinteressadas e
pouco perspicazes, e teremos quase tanta liberdade como se
estivéssemos sós. Então, sobrecarregá-lo-ei a tal ponto de amor e
carícias, viveremos de tal modo unicamente um para o outro, que
aposto que ele desejará ainda mais do que eu o fim desta estada, que
agora considera uma tão grande felicidade; se não regressar mais farto
de mim do que eu já estou dele, poderá dizer, caro Visconde, que não
percebo mais disto que o meu amigo.
O pretexto para esta retirada é ter de me ocupar seriamente
com o meu processo, que irá finalmente a tribunal no começo do
Inverno. O que sem dúvida me convém, porque é muito desagradável
ter assim toda a fortuna em perigo. Não chego a estar inquieta: primeiro
porque a razão está do meu lado; todos os meus advogados mo
asseguram. E mesmo que assim não fosse, era preciso ser bem inábil se
não soubesse ganhar um processo em que tenho por adversários
apenas menores e o velho tutor!
Mas como é preciso não descurar nada num assunto tão
importante, terei efetivamente comigo dois advogados. Parece-lhe
triste esta viagem? No entanto, se ela me fizer ganhar o processo e
perder Belleroche, não lamentarei o meu tempo.
E agora, Visconde, adivinhe-lhe o sucessor; aposto cem contra
um. Ora! Como se eu não soubesse já que nunca acerta em nada...
Pois bem, é Danceny. Admirado? Porque, enfim, ainda não estou
reduzida à educação de crianças! Mas este merece que se lhe faça
exceção; tem todas as graças da juventude e de forma nenhuma a
frivolidade. A sua grande reserva é de molde a afastar todas as
suspeitas, e não se pode imaginar nada de mais agradável na
intimidade. Não que tenhamos chegado já a vias de fato, por
enquanto sou apenas a confidente; mas sob o véu da amizade, creio
ver-lhe uma grande simpatia por mim, e sinto que vou retribuir. Seria na
verdade grande lástima que tanto espírito e delicadeza se fossem
sacrificar e embotar junto dessa imbecil da Volanges! Espero que ele se
engane quando julga amá-la, ela está tão longe de o merecer! Não
que tenha ciúmes dela; mas seria um crime e quero salvar Danceny.
Peço-lhe pois, Visconde, evite que durante a minha viagem ele se possa
encontrar com a sua Cecília, como tem ainda o mau hábito de a
chamar.
Um primeiro amor tem sempre maior poder do que julgamos, e
não respondo por nada se ele a tornasse a ver agora; sobretudo
durante a minha ausência. Depois do meu regresso, tratarei de tudo e
responsabilizo-me pelo êxito.
Ainda pensei levá-lo comigo, mas sacrifiquei este plano à minha
habitual prudência; e depois tive medo que percebesse qualquer coisa
entre mim e Belleroche; ficaria desesperada se ele tivesse a menor idéia
do que se passa. Quero pelo menos que me imagine pura e sem
mácula; enfim, tal como seria preciso ser para o merecer.

Paris, 15 de Outubro de 17* *.

CARTA CXIV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Minha querida amiga, cedo a uma viva inquietação; e sem


saber se estareis em estado de me responder, não posso impedir-me de
vos interrogar. O estado do senhor de Valmont, que vós considerais
"sem perigo", não me deixou tão tranqüila como pareceis estar. Não é
raro que a melancolia e o desejo de solidão sejam sintomas precursores
de alguma grave doença; os sofrimentos do corpo, como os do espírito,
fazem desejar o isolamento; e muitas vezes censuramos o mau humor
de quem deveríamos antes lamentar os males.
Parece-me que ele devia pelo menos consultar alguém.
Como é que estando também tão doente, não tendes um
médico ao pé de vós? O meu, que já hoje vi, e não vos esconderei que
o consultei indiretamente, é de opinião que nas pessoas ativas essa
espécie de apatia súbita não deve ser deixada sem vigilância; e
acentuou que as doenças só cedem quando tratadas a tempo. Por
que deixar correr esse risco a alguém que vos é tão caro?
O que faz aumentar a minha inquietação é que há quatro dias
não recebo notícias dele. Meu Deus! Não me estareis a enganar quanto
ao seu estado? Porque teria deixado de me escrever tão de repente?
Se fosse somente o efeito da minha teimosia em lhe devolver as cartas,
creio que ele teria tomado mais cedo essa decisão. Enfim, mesmo sem
crer em pressentimentos, desde há uns dias pesa sobre mim uma tristeza
que me assusta.
Ah, talvez eu esteja na véspera da maior das infelicidades!
Não podeis calcular, e tenho vergonha de vo-lo contar, quanto
me custa não receber essas mesmas cartas, que afinal me recusaria a
ler. Tinha ao menos a certeza de que ainda pensava em mim, e tocava
qualquer coisa vinda dele. Não abri essas cartas, mas chorava olhando-
as, as minhas lágrimas eram mais doces e mais fáceis; e só elas
dissipavam um pouco a constante opressão que sinto desde o meu
regresso. Suplico-vos, minha indulgente amiga,escrevei-me assim que
puderdes; e entretanto enviai-me todos os dias notícias vossas e dele.
Apercebo-me de que mal escrevi uma palavra em especial
para vós, mas conheceis os meus sentimentos, a dedicação sem
reservas, o terno reconhecimento que dedico à vossa amizade;
perdoareis a perturbação em que estou, devida às penas mortais, ao
terrível tormento de recear males de que sou talvez a causadora. Meu
Deus! Esta idéia desesperante persegue-me e dilacera-me o coração;
faltava-me esta infelicidade, e sinto que estou destinada a sofrê-las
todas.
Adeus, minha querida amiga: não me falteis com a vossa
amizade, e lamentai-me. Receberei hoje carta vossa?

Paris, 16 de Outubro de 1 7* *.

CARTA CXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É inconcebível, minha bela amiga, como as pessoas deixam de


se compreender assim que se afastam. Enquanto estive ao pé de si,
tivemos sempre as mesmas reações, a mesma maneira de ver; e porque
já não vos vemos há três meses, não chegamos a acordo sobre nada.
Quem tem a culpa? Certamente a Marquesa não hesitaria em
responder, mas eu, mais prudente, ou mais delicado, prefiro calar-me.
Responderei apenas à sua carta, e continuarei a contar-lhe o que faço.
Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe o conselho que me dá
acerca dos boatos que correm a meu respeito; mas não me inquieto
por enquanto; tenha a certeza de os fazer cessar em breve. Esteja
tranqüila; reaparecerei mais célebre do que nunca e cada vez mais
digno de si.
Espero até que venham a atribuir qualquer mérito à aventura da
pequena Volanges, que despreza tão facilmente, como se não fosse
nada roubar, numa noite, uma rapariga ao bem-amado, em seguida
servir-se dela como de coisa sua, e sem qualquer embaraço; obter dela
aquilo que nem sequer se ousa exigir a todas as profissionais, e isto, sem
a perturbar no seu terno amor, sem a tornar inconstante, nem mesmo
infiel - porque, com efeito, não lhe ocupo apenas a cabeça -, de
maneira que, depois de me passar a fantasia, a colocarei de novo nos
braços do bem-amado, sem que ela tenha dado por nada. Será isto um
feito vulgar? E, além disto, creia-me, uma vez saída das minhas mãos, os
princípios que lhe revelei continuarão a desenvolver-se; e profetizo que
a tímida aluna se lançará em breve em largos vôos, capazes de
honrarem o mestre.
No entanto, se alguém preferir o gênero heróico, mostrarei a
Presidente, esse modelo de todas as virtudes, respeitada mesmo pelos
mais libertinos, a tal ponto que se tinha perdido até a idéia de a atacar!
Mostrá-la-ei, digo, esquecida dos deveres e da virtude, sacrificando
reputação e dois anos de prudência, para correr atrás da felicidade de
me agradar, para se embriagar com a de me querer bem; julgando-se
paga de tantos sacrifícios, com uma palavra, um olhar, que nem sequer
obterá sempre. Farei ainda mais, abandoná-la-ei; e ou não conheço
esta mulher ou não terei sucessor.
Ela resistirá à necessidade de consolação, ao hábito do prazer,
ao desejo de vingança. Enfim, terá vivido apenas para mim; e quer a
sua vida seja longa ou não, terei sido o único a abrir e a fechar a
barreira. Realizado este triunfo, direi aos meus rivais: "Eis a minha obra, e
procurem um segundo exemplo em todo o século!"
Vai-me perguntar donde me vem hoje este excesso de
confiança?
É que desde há oito dias sou confidente da minha bela; ela não
me diz os seus segredos, mas eu surpreendo-lhos. Duas cartas dela para
Madame de Rosemonde bastaram para me instruir, e só lerei as outras
por curiosidade. Aproximar-me dela será mais do que suficiente para
alcançar o êxito, e os meios para tal já os encontrei. Vou
imediatamente pô-los em ação.
Está curiosa, suponho? Mas não, para a castigar de não
acreditar nas minhas invenções, não as saberá. Merecia que lhe
retirasse radicalmente a minha confiança, pelo menos nesta aventura;
e, com efeito, sem o doce prémio atribuído por si ao meu bom sucesso,
não lhe voltaria a falar nela.
Bem vê que estou zangado. No entanto, na esperança de que
se venha a corrigir, limitar-me-ei a esta ligeira punição; e, regressando à
indulgência, esqueço por uns momentos os meus grandes projetos, para
conversar consigo acerca dos seus.
Ei-la portanto no campo, enfadonho como o sentimento e triste
como a fidelidade! E esse pobre Belleroche! Não se contenta em o
obrigar a beber a água do esquecimento, necessita ainda de o
atormentar! Como está ele? Suporta bem as náuseas do amor? Divertir-
me-ia se ele ainda por cima se prendesse mais a si; teria curiosidade de
ver que remédio mais eficaz conseguireis empregar. Lamento-a de fato
por ter sido obrigada a recorrer a esse. Só uma vez, na minha vida,
utilizei o amor como processo.
Tinha certamente um forte motivo, visto que se tratava da
Condessa de...; e vinte vezes, nos braços dela, tentei dizer-lhe: "Minha
senhora, renuncio ao lugar, que solicito, e permita-me que abandone
aquele que ocupo." E também, de todas as mulheres que possuí, a
única de quem tenho verdadeiramente prazer em dizer mal.
Quanto ao seu motivo, acho-o, para dizer a verdade, dum
ridículo raro; e tinha razão em crer que não conseguiria adivinhar o
sucessor. Pois quê? É por Danceny que está com esse trabalho todo?
Ah! Cara amiga, deixe-o lá adorar a sua virtuosa Cecília e não se meta
nessas brincadeiras de crianças. Deixe-as educarem-se junto das
criadas, ou entregarem-se a pequenos jogos inocentes umas com as
outras. Para que se vai ocupar dum noviço que não saberá nem possuí-
la nem deixá-la, e a quem será preciso ensinar tudo? Digo-lhe muito a
sério, desaprovo a escolha, e por muito secreta que venha a ficar,
humilhá-la-á pelo menos a meus olhos e perante a sua consciência.
Diz que começa a tomar interesse por ele, ora vamos, vamos,
engana-se certamente, e creio até que já descobri a causa do seu erro.
O seu fastio por Belleroche veio num tempo de escassez e, não lhe
oferecendo Paris por onde escolher, as suas idéias, sempre demasiado
vivas, concentraram-se sobre o primeiro objeto que lhe apareceu. Mas
pense que, no regresso, poderá escolher entre mil; e se enfim receia cair
na inação adiando, ofereço-me para a distrair.
Daqui até ao seu regresso, os meus grandes afazeres terão
terminado duma maneira ou doutra; e, certamente, nem a pequena
Volanges, nem a própria Presidente me ocuparão de tal modo que não
possa estar ao pé de si sempre que a minha amiga o desejar. Talvez
mesmo que, daqui até lá, já eu tenha reposto a rapariguinha nas mãos
do seu discreto apaixonado. Sem concordar, por mais que a Marquesa
diga, que não seja um gozo atraente como tenho em projeto que ela
guarde de mim toda a vida uma idéia superior à de todos os outros
homens, lancei-me com ela num ritmo que não poderei manter por
muito tempo sem prejudicar a saúde; e já apenas me prende a ela o
interesse devido aos assuntos de família...
Compreende-me, não é verdade?... É que espero uma segunda
época para confirmar a minha esperança, e assegurar-me de que
realizei plenamente os meus projetos. Sim, bela amiga, já possuo um
indício de que o marido da minha aluna não correrá o risco de morrer
sem posteridade; e que o futuro chefe da casa de Gercourt será
apenas um rebento da de Valmont. Mas deixe-me terminar segundo a
minha fantasia esta aventura que encetei a seu pedido. Pense que, se
fizer de Danceny um inconstante, tirará todo o picante à história.
Considere finalmente que, oferecendo-me para o representar junto de
si, tenho, parece-me, alguns direitos à preferência.
Como estou certo dela, não receei contrariar os seus objetivos,
concorrendo eu próprio para aumentar a terna paixão do discreto
apaixonado pelo primeiro e digno objeto da sua escolha.
Tendo ontem encontrado a sua aluna ocupada em lhe escrever,
e tendo-a primeiro arrancado desta doce ocupação para outra mais
doce ainda depois para ler a carta; e como a achei fria e constrangida,
fiz-lhe sentir que não era assim que ela consolaria o seu namorado, e
decidia-a a escrever outra ditada por mim; na qual, imitando o melhor
que pude o seu tom disparatado, tratei de alimentar o amor do jovem
com uma esperança mais certa. A pequena estava toda encantada,
disse-me, por se ver a escrever tão bem, e daqui em diante serei eu o
encarregado da correspondência. Que não terei eu sido para
Danceny? Fui, sucessivamente, amigo, confiante, rival e amante! Ainda
neste momento, presto-lhe o serviço de o salvar dos perigosos
tentáculos da minha amiga. Sim, sem dúvida, perigosos; porque possuí-
la e perdê-la, é comprar um momento de felicidade por uma
eternidade de saudades.
Adeus, bela amiga; tenha a coragem de liquidar Belleroche o
mais depressa que puder. Deixe Danceny sossegado, e prepare-se para
me reencontrar e me dar de novo os deliciosos prazeres da nossa
primeira ligação.

P. S. Felicito-a pela próxima decisão do grande processo, e agradar-


me-ia imenso que esse feliz acontecimento se desse sob o meu reinado.

Castelo de..., 19 de Outubro de 17* *.

CARTA CXVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES


Madame de Merteuil partiu esta manhã para o campo; assim,
minha encantadora Cecília, eis-me privado do único prazer que me
restava na sua ausência, o de falar de si à nossa amiga.
Permitiu-me há pouco tempo que lhe desse este título; apressei-
me a servi-me dele, pois parecia-me que assim me aproximava mais de
si. Meu Deus, como essa mulher é amável! E que encanto lisonjeiro ela
sabe dar à amizade! Na Marquesa parece que este belo sentimento se
embeleza e se fortifica com tudo o que ela recusa ao amor. Se
soubesse como ela gosta de si e como gosta de me ouvir falar a seu
respeito!... É sem dúvida isso o que me prende a ela. Que felicidade
poder viver unicamente para ambas, passar incessantemente das
delícias do amor à doçura da amizade, consagrar-lhes toda a minha
existência, ser de qualquer forma o ponto de encontro da vossa
recíproca afeição; e sentir sempre que, ocupando-me com a felicidade
duma, trabalho igualmente para a da outra! Tem o dever de gostar
muito, muito, encantadora amiga, desta mulher adorável. A afeição
que tenho por ela, deve a Cecília dar-lhe ainda mais valor,
compartilhando-a comigo. Depois de ter experimentado o encanto da
amizade, desejo que o conheça também. Os prazeres que não
compartilhamos juntos, parece-me que os gozo apenas por metade.
Sim, minha Cecília, gostaria de cercar o seu coração dos mais doces
sentimentos; que cada uma das suas palpitações a fizesse experimentar
uma sensação de felicidade; e julgaria ainda retribuir-lhe apenas uma
parte da felicidade que receberia de si.
Por que é que estes encantadores projetos são apenas uma
quimera da minha imaginação, e a realidade não me oferece senão
privações dolorosas e indefinidas? A esperança que me tinha dado de
nos vermos nesse castelo, compreendo que é preciso renunciar a ela.
Só me resta a consolação de me persuadir de que na realidade tal lhe
não é possível. E esquece-se de mo dizer, de chorar comigo! Já por
duas vezes as minhas queixas a este respeito ficaram sem resposta. Ah!
Cecília! Cecília! Creio que me tem amor com todas as forças da sua
alma, mas a sua alma não é ardente como a minha! Por que não me
cabe a mim afastar os obstáculos?
Por que não são os meus interesses que devo proteger, em vez
dos seus? Em breve lhe provaria que nada é impossível ao amor.
Também não me informa quando deve terminar esta cruel
ausência.
Ao menos aqui, ver-nos-íamos algumas vezes. Os seus olhos
maravilhosos reanimariam a minha alma abatida; a enternecedora
expressão deles tranqüilizaria o meu coração, que algumas vezes bem
o precisa. Perdão, minha Cecília; este receio não é uma suspeita.
Acredito no seu amor, na sua constância.
Ah, muito infeliz seria se duvidasse. Mas tantos obstáculos, e
sempre renovados! Minha amiga, estou triste, muito triste. Parece que a
partida de Madame de Merteuil avivou em mim o sentimento de todas
as minhas dores.
Adeus, Cecília; adeus, minha bem-amada. Pense que o seu
amado se aflige, e que está na sua mão fazê-lo feliz.

Paris, 17 de Outubro de 17* *.

CARTA CXVII

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Ditada por Valmont)

Acredita pois, meu bom amigo, que é preciso censurar-me para


eu estar triste, quando sei que se aflige? E duvida que sofra também por
todas as suas dores? Compartilho consigo mesmo as que lhe causo
voluntariamente; e ainda por cima me entristeço por ver que não me
faz justiça. Oh! Isso não está certo. Bem vejo o que o aborrece; é que
nas duas últimas vezes em que me pediu para vir aqui, nada lhe
respondi a esse respeito; mas será essa resposta tão fácil de dar? Julga
que não sei que o que deseja não me fica bem? E no entanto, se me é
tão penoso recusar de longe, que seria se estivesse presente? E depois,
por o ter querido consolar um momento, ficaria infeliz toda a minha
vida.
Repare, nada lhe escondo por minha parte, eis as minhas razões;
julgue agora por si. Teria talvez feito o que quer se não fosse o que lhe
contei, que o senhor de Gercourt, causador de todas as nossas dores,
não chegará tão cedo; e que, como, de há um tempo para cá, a
Mamã me testemunha muito mais amizade e eu, pelo lado, a acarinho
quanto posso, nem sei o que não será possível obtermos dela. E se
pudermos ser felizes sem que eu nada tenha a censurar-me, não será
muito melhor? A acreditar no que me dizem, os homens gostam menos
das suas mulheres quando elas os amaram muito antes de o serem. É
esse temor que me contém ainda mais que tudo o resto. Meu amigo,
não está seguro do meu coração, e não será sempre tempo?
Escute, prometo-lhe que, se não puder evitar a infelicidade de
casar com esse senhor de Gercourt, que já tanto odeio mesmo antes de
o conhecer, nada me impedirá depois de me dedicar a si tanto quanto
puder e de o amar acima de tudo. Como só me interessa ser amada
por si, e saberá bem que se procedo mal não é por minha culpa, nada
mais me importará; contanto que me prometa amar-me sempre tanto
como agora.
Mas, meu amigo, até lá, deixe-me continuar a proceder assim; e
não insista mais numa coisa que tenho razões para não fazer, e no
entanto me penaliza recusar-lhe.
Gostaria também que o senhor de Valmont não fosse tão solícito
por si; isso torna-me ainda mais triste Oh! Tem ali um grande amigo,
asseguro-lhe! Tudo o que faria se aqui estivesse, ele o faz.
Mas adeus, querido amigo; comecei a escrever-lhe demasiado
tarde e passei nesta tarefa uma parte da noite. Vou-me deitar e
recuperar o tempo perdido. Beijo-o, mas não me ralhe mais.

Castelo de..., 18 de Outubro de 17* *.

CARTA CXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Se acreditar no calendário, adorável amiga, há apenas dois dias


que estais ausente; mas, se acreditar no meu coração, há dois séculos.
Ora, sei-o por vós, é sempre no coração que devemos acreditar; é pois
já tempo que regresseis, todos os vossos assuntos devem estar mais que
tratados. Como quereis que me interesse pelo vosso processo, se,
perdido ou ganho, devo do mesmo modo pagar-lhe as custas pelo
tédio da vossa ausência?
Oh! Que vontade eu tenho de ralhar! E como é triste, com um
tão belo pretexto para estar zangado, não ter o direito de o mostrar!
Não vos parece que é uma verdadeira infidelidade, uma negra
traição, deixar este amigo longe de vós, depois de o ter habituado à
vossa presença? Por mais que consulteis os advogados, nunca
encontrarão justificação para este mau procedimento; e, de resto, essa
gente só dá razões, e não bastam razões para responder aos
sentimentos.
Por mim, tanto me assegurastes que era a razão que vos
ordenava essa viagem, que me indispusestes com ela. Já não a quero
ouvir; mesmo que me ordene que vos esqueça. E no entanto essa razão
é bem razoável; e na verdade não seria tão difícil como pensais.
Bastaria apenas desabituar-me de pensar em vós: e nada aqui,
asseguro-vos, me faria recordar de vós.
As nossas mais belas mulheres, as que são consideradas mais
desejáveis, estão tão longe de vós que só dariam uma pálida idéia da
vossa beleza. Creio mesmo que com olhos mais experimentados,
quanto mais parecidas convosco as julgamos a princípio, maiores
diferenças se acham depois; por mais que façam, por mais que
empreguem tudo o que sabem, falta-lhes sempre o serem vós, e é aí
que reside positivamente o encanto.
Infelizmente, quando os dias são longos, e se está desocupado,
sonha-se, constroem-se castelos de areia, inventam-se quimeras; pouco
a pouco a imaginação exalta-se, quer-se embelezar a obra, junta-se
tudo o que pode agradar, atinge-se por fim a perfeição; e quando aqui
se chega, o retrato conduz-nos de novo ao modelo, e fica-se
espantado por ver que afinal não se fazia outra coisa senão pensar em
vós.
Neste mesmo momento, sou ainda vítima dum erro idêntico.
Pensais talvez que foi para me ocupar de vós que me pus a
escrever-vos? Nada disso: foi pelo contrário, para vos esquecer. Tinha
cem coisas a dizer-vos, de que não éreis o objeto, e que, como o sabeis,
me interessam vivamente; foi contudo destas que acabei por me
desviar. Desde quando o encanto da amizade suplanta o do amor? Ah!
Se eu observasse melhor, talvez tivesse uma pequena censura a fazer-
lhe! Mas chiu! Esqueçamos esta ligeira falta com medo de nela recair; e
que a minha própria amiga o ignore.
Também, porque não estais aqui presente para me responder,
para me conduzir ao bom caminho se me perco, para me falar da
minha Cecília, para aumentar, se é possível, a felicidade que
experimento ao amá-la, com a idéia tão doce ao meu coração de que
é a vossa amiga que amo? Sim, confesso, o amor que ela me inspira
tornou-se-me ainda mais precioso, desde que tivestes a bondade de ser
minha confidente. Gosto tanto de vos abrir o coração, de ocupar o
vosso com os meus sentimentos, de os depositar nele sem reserva!
Parece-me que os acarinho melhor desde que vos dignastes acolhê-los;
e depois, olhando-vos, digo para comigo: "É nela que está guardada
toda a minha felicidade.
Nada tenho de novo a comunicar-vos sobre a minha situação.
A última carta que recebi dela aumenta e confirma a minha
esperança, mas retarda-a ainda. No entanto as razões dela são tão
ternas e tão honestas, que não posso nem censurá-la nem queixar-me.
Talvez não vos seja possível compreender muito bem o que vos digo;
mas porque não estais aqui? Conquanto se diga tudo à amiga, nem
tudo se ousa escrever.
Os segredos do amor, sobretudo, são tão delicados que não é
possível confidenciá-los de qualquer maneira. Se algumas vezes
permitimos que se nos escapem, é preciso não os perder de vista e, de
certo modo, vê-los entrar no seu novo asilo. Ah, regressai pois, adorável
amiga; bem vedes que o vosso regresso é necessário. Esquecei
finalmente as mil razões que vos retêm onde vos encontrais ou então
dai-me uma que me ensine a viver onde não estais.
Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 19 de Outubro de 17* *.

CARTA CXIX

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL


Se bem que ainda sofra muito, querida amiga, tento no entanto
escrever-vos eu própria, a fim de poder falar do que vos interessa. O
meu sobrinho continua na sua misantropia. Manda regularmente saber
notícias minhas todos os dias; mas nem uma única vez veio ele próprio
informar-se, se bem que lho tivesse pedido, de forma que não o vejo
mais do que se ele estivesse em Paris. Encontrei-o no entanto esta
manhã, onde menos o esperava.
Foi na capela, aonde desci pela primeira vez depois da minha
dolorosa doença. Soube hoje que há quatro dias ele vai regularmente
ouvir missa. Deus queira que isto dure!
Quando entrei, dirigiu-se-me e felicitou-me afetuosamente pelas
minhas melhoras. Como a missa começasse, abreviei a conversa que
tencionava retomar depois, mas desapareceu antes que o pudesse
encontrar. Não vos esconderei que o achei um pouco mudado. Mas,
querida filha, não me façais arrepender da confiança na vossa sensatez
com inquietações demasiado vivas; e sobretudo podeis estar certa de
que preferiria afligir-vos a enganar-vos.
Se o meu sobrinho continuar a evitar-me, tomarei a decisão,
assim que estiver melhor, de o visitar no seu quarto e tratarei de
adivinhar a causa desta singular mania, que creio bem tenha algo a ver
convosco. Informar-vos-ei do que tiver sabido. Deixo-vos, já não posso
mexer os dedos, e além disso, se a Adelaide soubesse que escrevi,
ralhar-me-ia toda a noite.
Adeus, querida amiga.

Castelo de..., 20 de Outubro de 17* *.

CARTA CXX

O VISCONDE DE VALMONT AO PADRE ANSELMO

(Bernardo do convento da Rua Saint-Honoré)

Não tenho a honra de ser conhecido por vós, senhor, mas sei da
inteira confiança que em vós tem a senhora de Tourvel e sei, além disso,
quanto essa confiança é dignamente merecida.
Creio portanto poder, sem ser indiscreto, dirigir-me a vós, para
obter um favor essencial, verdadeiramente digno do vosso santo mister,
e no qual o interesse da senhora de Tourvel se encontra aliado ao meu.
Tenho em meu poder papéis importantes que lhe dizem respeito,
que não podem ser confiados a ninguém e que não quero nem devo
entregar senão nas próprias mãos dela. Não tenho maneira de a
informar disto, porque certas razões, que talvez conheçais por ela, mas
que não me julgo autorizado a comunicar-vos, a levaram a tomar a
decisão de recusar toda a correspondência comigo: decisão que hoje
voluntariamente confesso não poder censurar, visto que ela não podia
prever acontecimentos que eu próprio estava bem longe de esperar e
que apenas foram possíveis pela força sobre-humana que é forçoso
reconhecer neles.
Peço-vos, pois, senhor, vos digneis informá-la das minhas novas
resoluções, e pedir-lhe da minha parte uma entrevista particular,
durante a qual possa, pelo menos em parte, reparar os erros com as
desculpas; e, com este último sacrifício, destruir a seus olhos os únicos
vestígios ainda existentes dum erro ou duma falta que me tornou
culpado para com ela.
Só após esta expiação preliminar ousarei depor a vossos pés a
humilhante confissão das minhas imensas loucuras; e implorar a vossa
mediação para uma reconciliação bem mais importante ainda, e
infelizmente mais difícil. Posso contar, senhor, que não me recusareis as
vossas atenções, tão necessárias e tão preciosas? E que vos dignareis
encorajar a minha fraqueza e guiar os meus passos num caminho novo
que desejo sinceramente seguir, mas que confesso, corando, não
conhecer ainda?
Espero a vossa resposta com a impaciência do arrependido que
deseja reparar o mal feito, e peço-vos que me acrediteis tão
reconhecido quão venerador, Vosso muito humilde, etc.

P. S. - Autorizo-vos, senhor, caso o julgueis conveniente, a comunicar


esta carta por inteiro a Madame de Tourvel, a quem me considerarei
toda a vida no dever de respeitar e em quem não deixarei jamais de
venerar aquela de quem o Céu se serviu para reconduzir a minha alma
à virtude, por meio da tocante visão da sua.

Castelo de..., 22 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Recebi a vossa carta, meu jovem amigo; mas antes de vos


agradecer é preciso que vos ralhe e vos previna de que, se não vos
corrigirdes, não obtereis resposta para a próxima vez. Se quereis ter a
minha confiança, abandonai pois esse tom galanteador, que é apenas
gíria do amor, desde que não seja a expressão dele. É esse o estilo da
amizade? Não, meu amigo, cada sentimento tem a linguagem que lhe
é peculiar; servir-se de outra, é disfarçar o pensamento que se exprime.
Bem sei que as mulheres vulgares nada entendem do que se lhes diz se
não for traduzido, de qualquer maneira, na gíria do costume; mas
julgava merecer, confesso-o, que me distinguísseis delas. Estou
verdadeiramente zangada, talvez mais do que deveria, por me terdes
avaliado mal.
Encontrareis pois na minha carta tudo o que falta na vossa,
franqueza e simplicidade. Dir-vos-ei de boa vontade, por exemplo, que
teria um grande prazer em vos ver, e que estou contrariada por só ter à
minha volta pessoas que me aborrecem, em vez de outras que me
agradam; mas vós, a esta mesma frase, traduzi-la-eis assim: ensinai-me a
viver onde não estais; de maneira que quando estiverdes, suponho,
junto da vossa amada, não vos sentiríeis bem se eu não estivesse
presente como terceiro elemento. Que pena! E essas mulheres, a quem
falta sempre serem eu, achais por acaso que isso também falta à vossa
Cecília? Eis no entanto aonde conduz uma linguagem que, pelo abuso
que dela se faz hoje em dia, está ainda a baixo da gíria dos
cumprimentos, e se transforma cada vez mais num simples protocolo
em que se acredita tanto como no "muito humilde servidor" !
Meu amigo, quando me escreverdes, que seja para me dizer a
vossa maneira de pensar e sentir, e não para me enviar frases que
encontrarei, sem precisar de vós, mais ou menos bem ditas no romance
em moda. Espero que não vos zangareis com o que vos digo, mesmo
que verifiqueis um pouco de mau humor; porque não nego que o
tenha, mas para evitar até a suspeita do defeito que vos censuro, não
vos direi que este mau humor seja talvez um pouco aumentado pelo
afastamento em que me encontro de vós. Parece-me afinal de contas
que valeis mais que um processo e dois advogados, e talvez até do que
o atencioso Belleroche.
Vede como em vez de vos desolardes com a minha ausência,
vos deveríeis felicitar; porque nunca vos tinha feito um tão belo elogio.
Creio que o exemplo me contagia e que desejo também dizer-vos
galanteios, mas não, prefiro continuar na minha franqueza; é pois
apenas ela que vos assegura da terna amizade que tenho por vós, e do
interesse que ela me inspira. É maravilhoso ter um jovem amigo cujo
coração está ocupado junto de outra.
Não é o sistema de todas as mulheres; mas é o meu. Parece-me
que nos entregamos com mais prazer a um sentimento do qual nada se
pode ter a recear, foi por isso que desde muito cedo passei convosco
ao papel de confidente. Mas escolhei as vossas amadas tão jovens, que
pela primeira vez me apercebi de que começo a envelhecer, preparai-
vos assim para uma longa carreira de constâncias, e sinceramente
desejo que seja recíproca.
Tendes razão em vos submeterdes às razões ternas e honestas
que, segundo dizeis, retardam a vossa felicidade. Uma defesa
prolongada é o único mérito que resta às que não resistem sempre; e
aquilo que eu acharia imperdoável em qualquer outra, exceto numa
criança como a pequena Volanges, seria o não saber evitar um perigo,
de que já foi suficientemente advertida pela confissão que ela própria
fez do seu amor. Vós, os homens, não avaliais o que é a virtude, e
quanto custa sacrificá-la! Mas por pouco que uma mulher raciocine, ela
deve saber que independentemente da falta que comete, um
momento de fraqueza é para ela a maior das infelicidades; e não
percebo como pode haver alguma que se deixe conquistar, desde que
tenha um momento para refletir.
Não deveis combater esta idéia, porque ela é que me prende
principalmente a vós. Salvar-me-eis dos perigos do amor; e se bem que
até aqui tenha sabido defender-me sem vós, consinto em estar-vos
reconhecida por tal, e amar-vos-ei mais e melhor.
E após isto, caro Cavaleiro, peço que Deus vos tenha na Sua
santa e digna guarda.

Castelo de. . ., 22 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Esperava, querida filha, poder finalmente acalmar as vossas


inquietações; e vejo com pesar que vou pelo contrário aumentá-las de
novo. Sossegai, no entanto; o meu sobrinho não está em perigo; não se
pode mesmo dizer que esteja verdadeiramente doente. Mas passa-se
certamente qualquer coisa de extraordinário nele. Não compreendo
absolutamente nada; mas saí do quarto dele com um sentimento de
tristeza, talvez até de medo, que me censuro de vos fazer compartilhar,
e acerca do qual não posso no entanto impedir-me de conversar
convosco. Eis o que se passou: podeis estar certa que sou fiel, porque
mesmo que eu viva ainda outros oitenta anos, não esquecerei a
impressão que me fez essa cena tão triste.
Fui pois esta manhã aos aposentos do meu sobrinho, encontrei-o
a escrever, e cercado por uma multidão de montes de papéis, que
pareciam ser o objeto do seu trabalho. Estava de tal forma entretido,
que já eu estava no meio do quarto, ainda ele não tinha voltado a
cabeça para saber quem entrara. Assim que me viu, notei que
enquanto se levantava se esforçava por dar uma certa compostura ao
rosto, e talvez tenha sido isso mesmo que me fez reparar com mais
atenção. Para dizer a verdade, não se tinha arranjado nem empoado;
mas achei-o pálido e magro, e sobretudo com a fisionomia
transtornada. O olhar, que vimos já tão vivo e tão alegre, estava triste e
abatido; enfim, aqui entre nós, não gostaria que o tivésseis visto assim,
porque tinha um aspecto comovente, e muito próprio, segundo creio, a
inspirar essa terna piedade, que é uma das mais perigosas armadilhas
do amor.
Se bem que abalada pelo que observava, comecei no entanto
a conversa como se não me tivesse apercebido de nada. Inquiri
primeiro da sua saúde, e sem me dizer que era boa, não se lamentou no
entanto que fosse má. Então queixei-me da sua ausência, que tinha um
pouco o aspecto de mania, e procurei juntar um pouco de bom humor
ao meu "sermão"; mas respondeu-me apenas, e num tom
compenetrado, ah mais um erro, confesso... mas será reparado
conjuntamente com os outros. A expressão do rosto, ainda mais do que
as palavras, desconcertou-me, e apressei-me a dizer-lhe que estava a
dar demasiada importância a uma simples censura ditada pela
amizade.
Começamos então a conversar tranquilamente. Declarou-me,
pouco depois, que talvez um assunto, "o caso mais importante da sua
vida", o chamasse em breve a Paris, mas como tive medo de adivinhar
o que era, querida, e que este intróito levasse a uma confidência que
não queria ouvir, não lhe fiz perguntas, e contentei-me em dizer que
esperava que as distrações lhe fossem úteis à saúde. Acrescentei que
desta vez não lhe faria nenhum pedido, visto amar os meus amigos por
eles próprios; a esta simples frase, cerrando-me as mãos e falando com
uma veemência que não consigo reproduzir: "Sim, minha tia", disse-me,
"amai, amai muito um sobrinho que vos respeita e vos adora; e, como
dizeis, amai-o por ele próprio. Não vos preocupeis com a sua felicidade,
e não perturbeis com nenhum remorso a eterna tranqüilidade que
espera fruir em breve. Repeti que me perdoais e amais; sim, haveis de
perdoar-me; conheço a vossa bondade; mas como esperar a mesma
indulgência daqueles que ofendi tantas vezes?". Então curvou-se um
pouco, para me esconder, creio, os traços de dor que o timbre da voz
traía contra a vontade dele.
Mais comovida do que posso dizer-vos, levantei-me
precipitadamente; e sem dúvida notou o meu susto, porque
imediatamente, retomando a compostura, disse: "Perdão, perdão,
senhora; sinto que me perturbo contra minha vontade. Peço-vos que
esqueçais as minhas palavras e recordeis apenas o meu profundo
respeito. Não deixarei", acrescentou, "de ir junto de vós renovar as
minhas homenagens antes de partir". Pareceu-me que esta última frase
me convidava a terminar a visita; e de fato retirei-me.
Mas quanto mais reflito, menos percebo o que ele quis dizer.
Que assunto é este, que considera "o mais importante da sua vida" ? Por
que me pedia perdão? Donde lhe veio este enternecimento
involuntário com que me falava? Já formulei mil vezes estas
interrogações, sem conseguir responder-lhes. Nada vejo nelas que se
relacione convosco, no entanto, como os olhos do amor são mais
clarividentes que os da amizade, quis que nada ignorásseis do que se
passou entre mim e meu sobrinho.
Tive de me interromper quatro vezes para escrever esta longa
carta, que seria ainda mais longa se me não sentisse tão fatigada.
Adeus, minha querida filha.

Castelo de..., 25 de Outubro de 17* *.


CARTA CXXIII

O PADRE ANSELMO AO VISCONDE DE VALMONT

Recebi, senhor Visconde, a carta com que me honrastes; e


ontem dirigi-me, conforme os vossos desejos, a casa da pessoa em
questão. Expus-lhe o objeto e os motivos da diligência que me havíeis
pedido para desempenhar junto dela. Apesar de achar demasiado
presa à sensata decisão que tomara, depois de lhe ter demonstrado
que se arriscava com a sua recusa a pôr um obstáculo ao vosso feliz
regresso e a opor-se assim aos projetos misericordiosos da Divina
Providência, acabou por consentir na vossa visita, com a condição de
que seria a última, e encarregou-me de vos anunciar que estaria em
casa na próxima quinta-feira, 28. Pede-vos que se esse dia vos não
convier, a informeis e lhe indiqueis um outro. A vossa carta será
recebida.
No entanto, senhor Visconde, permiti-me que vos peça que não
adieis sem fortes razões, para que mais cedo vos possais consagrar
inteiramente às louváveis disposições que me afirmastes.
Pensai que o que se não apressa a aproveitar o momento da
graça se arrisca a que ela lhe seja retirada; que embora a bondade
divina seja infinita, a sua aplicação é regulada pela justiça; e pode
haver um momento em que o Deus de misericórdia se transforme em
Deus de vingança.
Se continuardes a honrar-me com a vossa confiança, peço-vos
que acrediteis que estarei às vossas ordens sempre que o desejardes, e
por maiores que sejam os meus afazeres, a minha importante tarefa
será sempre cumprir os deveres do santo ministério a que me dediquei
inteiramente; e o momento mais belo da minha vida seria aquele em
que visse os meus esforços serem realçados pela bênção do Todo-
Poderoso. Somos fracos e pecadores e nada podemos por nós próprios!
Mas o Deus que vos chama tudo pode; e devemos também à
sua bondade, vós, o desejo constante de vos unirdes a Ele, e eu, os
meios de aí vos conduzir. E com o Seu socorro, espero convencer-vos de
que só a santa religião pode dar, mesmo neste mundo, a felicidade
sólida e durável que vãmente se procura na fogueira das paixões
humanas.
Tenho a honra de ser, com respeitosa consideração, etc.

Paris, 25 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXIV
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Tomada ainda do espanto em que se lançou a nova de que


ontem conhecimento, não esqueço, senhora, a satisfação que ela vos
deve causar, e apresso-me a dar-vos parte dela. O senhor de Valmont
já se não ocupa de mim nem do seu amor; agora pretende apenas
emendar, com uma vida mais edificante, as faltas, ou antes, os erros da
juventude. Fui informada dessa resolução pelo padre Anselmo, a quem
se dirigiu para de futuro o guiar, e também para lhe conseguir um
encontro comigo, que segundo julgo terá como principal objetivo
devolver-me as minhas cartas que conservara até aqui, apesar do meu
pedido em contrário.
Só me resta, sem dúvida, aplaudir esta feliz transformação, e
felicitar-me se, tal como diz, pude de algum modo concorrer para ela.
Mas por que havia de ser eu o instrumento, e por que me custaria isso o
repouso da minha vida? Por que motivo seria o meu infortúnio o preço
da felicidade do senhor de Valmont?
Oh, minha indulgente amiga, desculpai este queixume. Sei que
não me cabe perscrutar os desígnios de Deus, mas enquanto eu lhe
suplico sem cessar, e sempre em vão, força para vencer este meu
desgraçado amor, Ele prodigaliza-a a quem a não pedia, e deixa-me
sem socorro, inteiramente entregue à minha fraqueza.
Mas abafemos murmúrios tão culpados. Bem sei que o filho
pródigo recebe, no regresso, mais graças do pai do que o filho que
nunca se ausentara. Como poderemos pedir contas Àquele que nada
nos deve? E mesmo que gozássemos perante Ele de alguns direitos,
quais poderiam ser os meus? Ousarei vangloriar-me duma sensatez que
só devo a Valmont? Salvou-me como poderia queixar-me por sofrer por
ele? Não: ser-me-ão caros os meus sofrimentos, se são o preço da sua
felicidade. Era necessário que ele regressasse ao Pai. O Deus que o
formou ama com certeza a sua obra. Não criou esse ser encantador
para fazer dele um réprobo. Devo suportar a dor da minha audaciosa
imprudência; pois não devia eu compreender que, se me era interdito
amá-lo, nem sequer me devia permitir-me vê-lo?
O meu erro ou a minha desdita foi não ter aceitado durante
muito tempo esta verdade. Sois testemunha, minha querida e digna
amiga, de que me submeti a esse sacrifício, assim que o reconheci
necessário; mas para que ele fosse completo, faltava só que o senhor
de Valmont o não compartilhasse. Ousarei confessar-vos que esta idéia
é agora a que mais me atormenta?
Insuportável orgulho, que adoça os males que experimentamos
com aqueles que fazemos sofrer! Ah! Hei-de vencer este coração
rebelde e acostumá-lo às humilhações.
Foi sobretudo para conseguir isso que consenti em receber, na
próxima quinta-feira, a penosa visita do senhor de Valmont.
Será, então, o próprio a dizer-me que já não represento nada
para ele, que a frágil passageira emoção que nele despertara se
extinguiu inteiramente! Verei o seu olhar pousar-se sobre mim, sem
comoção, enquanto o medo de denunciar a minha me obrigará a
baixar os olhos. E receberei da sua indiferença essas mesmas cartas que
recusou durante tanto tempo às minhas insistentes súplicas; devolvê-las-
á como objetos inúteis que já lhe não interessam; e as minhas mãos
trêmulas, ao receber esse despojo vergonhoso, sentirão que ele lhe é
entregue por uma mão firme e tranqüila! Enfim, vê-lo-ei afastar-se,
afastar-se para sempre, e os meus olhos segui-lo-ão, sem verem os seus
voltarem-se para mim.
Era preciso que suportasse tanta humilhação! Ah! Tentarei ao
menos torná-la útil, deixando-me penetrar pelo sentimento da minha
fraqueza. Sim, conservarei precisamente essas cartas de que ele já não
faz caso. Impor-me-ei a vergonha de as ler todos os dias, até que as
lágrimas lhes apaguem os últimos traços; e as dele, hei-de queimá-las,
porque estão contaminadas com o perigoso veneno que corrompeu a
minha alma. Oh! Mas que é o amor, que nos faz até ter saudades dos
perigos a que nos expõe; e que sobretudo tememos sentir ainda,
quando já o não inspiramos! Deixemos esta paixão funesta, que só
permite a escolha entre a vergonha e a desgraça, e que por vezes as
reúne; que pelo menos a prudência substitua a virtude.
Como quinta-feira ainda está longe! Que pena não poder
consumar imediatamente esse doloroso sacrifício e esquecer-lhe em
seguida a causa e o desejo! Esta visita importuna-me; arrependo-me de
ter acedido. Oh! Para que precisa ainda ver-me?
Que representamos agora um para o outro? Se me ofendeu,
perdoo-lhe. Felicito-o e louvo-o por querer emendar as suas faltas.
Farei mais, imitá-lo-ei; e visto que fui seduzida pelos mesmos
erros, o exemplo dele ajudar-me-á. Mas se projeta fugir de mim, por que
começa por me procurar? Não está cada um de nós empenhado em
esquecer o outro? Ah! Será esse de hoje em diante o meu único
cuidado.
Se o permitirdes, minha respeitável amiga, será junto de vós que
me irei ocupar desse difícil trabalho. Se necessito socorro e até mesmo
consolação, só de vós os quero receber. Só vós sabeis ouvir-me e falar
ao meu coração. A vossa preciosa amizade preencherá toda a minha
existência. Nada me parecerá difícil para secundar os cuidados que me
dispensardes. Dever-vos-ei a tranqüilidade, a felicidade, a virtude; e o
fruto das vossas bondades será o de me tornardes digna de tudo isto.
Julgo que me dispersei muito nesta carta; presumo-o pela
perturbação em que estive sempre enquanto vos escrevia. Se nela se
encontrar algum sentimento de que eu deva corar, cobri-lo com a
vossa indulgente amizade. Confio inteiramente nela. De vós não
esconderei nenhum movimento do meu coração.
Adeus, minha respeitável amiga. Espero dentro de poucos dias
anunciar-vos a minha chegada.

Paris, 25 de Outubro de 17* *.


QUARTA PARTE

CARTA CXXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Eis vencida essa mulher orgulhosa que ousara crer que me podia
resistir! Sim, minha amiga, tive-a, possuí-a inteiramente; e desde ontem
que nada mais tem a conceder-me.
Estou ainda demasiado cheio da minha felicidade para a poder
apreciar: espanto-me do encanto desconhecido que experimentei.
Será pois verdade que a virtude aumenta o valor duma mulher,
até no momento em que deixa de a ter? Mas não, releguemos essa
idéia pueril para as almas simplórias. Não se encontra quase por toda a
parte uma resistência mais ou menos bem fingida ao primeiro triunfo? E
já alguma vez tinha eu encontrado o encanto de que falo? Contudo,
não é o do amor; porque, enfim, se junto desta mulher espantosa tive
por vezes momentos de fraqueza que se assemelhavam a essa paixão
pusilânime, soube sempre vencê-los e voltar aos meus princípios.
Mesmo que a cena de ontem me tenha, segundo suponho,
levado um pouco mais longe do que contava; mesmo que tenha
partilhado por um momento a perturbação e a embriaguez que
inspirava, essa ilusão passageira estaria dissipada presentemente; e, no
entanto, o mesmo encanto subsiste. Experimentaria até, confesso-o, um
prazer assaz doce em me entregar a ele, se isso não me causasse uma
certa inquietação. Seria eu, na minha idade, dominado como um
principiante por um sentimento involuntário e desconhecido? Não: é
preciso, antes de tudo, combatê-lo e aprofundá-lo.
De resto, talvez já tenha entrevisto a causa! Comprazo-me pelo
menos com esta idéia, e gostaria que fosse verdadeira.
Na multidão de mulheres junto das quais desempenhei até hoje
o papel e as funções de amante, não tinha ainda encontrado
nenhuma que não tivesse pelo menos tanta vontade de se entregar
como eu de a isso a forçar; tinha-me até habituado a chamar
pudibundas às que faziam apenas metade do caminho, por oposição a
tantas outras, cuja defesa provocante cobria imperfeitamente os
primeiros favores que tinham concedido.
Aqui, pelo contrário, encontrei a princípio uma prevenção
desfavorável, fundamentada depois nos conselhos e nas informações
duma mulher odienta, mas sagaz; uma timidez natural e extrema que
fortificava um pudor lúcido; um apego à virtude, conduzida pela
religião, e que contava já dois anos de triunfo; e, para finalizar,
iniciativas súbitas, inspiradas por estes diferentes motivos, tendo por fim
furtar-se à minha perseguição.
Não se trata, pois, como nas minhas outras aventuras duma
simples capitulação mais ou menos vantajosa, da qual é mais fácil tirar
proveito do que vaidade; é uma vitória completa, arrancada por uma
campanha penosa e resolvida definitivamente por sábias manobras.
Nada de espantar pois que este êxito, devido apenas a mim, me seja
mais precioso; e o acréscimo de prazer que experimentei no triunfo, e
que ainda sinto, é a doce impressão do sentimento da glória. Acarinho
esta maneira de ver, que me poupa a humilhação de pensar que possa
depender de qualquer maneira da escrava que submeti: que não
detenho apenas em mim a plenitude da minha felicidade; e que a
faculdade de ma fazer gozar em toda a sua força esteja reservada a
tal ou tal mulher, com exclusão de qualquer outra.
Estas sensatas reflexões regularão toda a minha conduta nesta
importante ocasião; e pode estar certa de que não me deixarei
prender de maneira a não poder, a todo o momento, quebrar a meu
bel-prazer estes novos laços. Falo-lhe já da ruptura, e ignorais ainda por
que meios a ela adquiri direitos; leia, pois, e veja a que se expõe a
sabedoria quando tenta socorrer a loucura.
Estudava tão atentamente as minhas palavras e as respostas,
que obtinha, que espero reproduzi-las com uma exatidão que,
satisfaça.
Verá, pelas duas cópias de cartas aqui juntas, qual o
medianeiro* que escolhera para me aproximar da minha bela, e com
que zelo a santa criatura se empenhou em nos unir. O que é preciso
saber também, e que eu tinha descoberto por uma carta, interceptada
como de costume, é que o receio e a pequena humilhação de ser
abandonada tinham perturbado um pouco a pudicícia da austera
devota; e tinham-lhe enchido o coração e a cabeça de idéias que, lá
por não terem sentido, nem por isso deixavam de ser interessantes. Foi
depois destes preparativos indispensáveis que ontem, quinta-feira, 28,
dia marcado e concedido pela ingrata, me apresentei, escravo tímido
e arrependido, em casa dela, para sair mais tarde coroado vencedor.
Eram seis horas da tarde quando cheguei a casa da bela
reclusa; porque, desde o regresso, a sua porta tem estado fechada a
toda a gente.
Tentou levantar-se quando fui anunciado; mas os joelhos
trêmulos não lho permitiram: voltou a sentar-se imediatamente. Como o
criado que me tinha introduzido tivesse qualquer serviço a fazer na sala,
pareceu impacientar-se e preenchemos este intervalo com os
cumprimentos usuais. Mas para não perder tempo numa ocasião em
que todos os instantes eram preciosos, examinei cuidadosamente o
local; e marquei logo qual seria o teatro da minha vitória. Poderia ter
escolhido um mais cômodo: porque neste mesmo quarto havia uma
otomana.
Mas notei que em face dela estava um retrato do marido; e
receei, confesso-o, que, com esta mulher tão singular, um simples olhar
*Cartas CXX e CXXIII.
lançado por acaso para aquele lado bastasse para destruir num ápice
o resultado de tantos esforços. Ficamos finalmente sós e entrei no
assunto.
Depois de explicar, em poucas palavras, que o padre Anselmo a
devia ter informado do motivo da minha visita, queixei-me do
tratamento rigoroso a que fora submetido; e acentuei particularmente o
desprezo que me tinha sido testemunhado.
Defendeu-se, como esperava; e, como certamente calcula,
apresentei como provas a desconfiança e o medo que eu inspirara; a
fuga escandalosa que se seguira, a recusa de responder às minhas
cartas, de as receber até, etc., etc. Quando começou a justificação,
que seria bem fácil, julguei dever interrompê-la; e para me fazer
perdoar por esta brusquidão, cobri-a logo de lisonjas.
"Se tais encantos", recomecei eu, "produziram uma impressão
tão profunda sobre o meu coração, as vossas virtudes não fizeram
menos sobre a minha alma. Seduzido, sem dúvida, pelo desejo de me
aproximar, atrevi-me a julgar-me digno delas. Não vos censuro por
terdes sido de opinião diferente; mas castigo-me pelo meu erro. Como
o embaraço a forçasse ao silêncio, continuei: "Desejei, senhora, ou
justificar-me aos vossos olhos, ou obter o vosso perdão pelos erros que
me atribuís, a fim de poder ao menos terminar com alguma
tranqüilidade uma vida a que já não dou valor, desde que vos
recusastes embelezá-la."
Aqui tentou responder. "O meu dever não me permitia..." E a
dificuldade de terminar a mentira que o dever lhe exigia não a deixou
acabar a frase. Recomecei então no tom mais terno: "É então verdade
que foi de mim que fugistes?" - "Aquela partida era necessária." - "E
também que me afastais de vós?" - "Assim é preciso." - "E para sempre?"
- "É o meu dever." Desnecessário se torna dizer-lhe que, durante este
curto diálogo, a voz da terna devota estava opressa e que os seus olhos
não se erguiam para mim.
Julguei dever animar um pouco esta cena esmo recente; assim,
levantando-me com ar de despeito, disse então: "A vossa firmeza
devolve-me a minha. Pois bem, senhora, ficaremos separados sim; mais
separados até do que pensais, e tereis então todo o tempo para vos
felicitardes da vossa obra." Um pouco, surpreendida por este tom de
censura, quis replicar. "A resolução que haveis tomado", disse ela... "É
apenas o efeito do desespero", acrescentei com ímpeto. "Quisestes
fazer-me infeliz; provar-vos-ei que o haveis conseguido para além
mesmo dos vossos desejos." "Desejo a vossa felicidade", respondeu. E o
tom da voz começava a anunciar uma emoção assaz forte. Assim,
lançando-me aos seus pés, e com o tom dramático que me, conhece,
exclamei: "Ah, cruel! Como pode existir para mim uma felicidade se vós
a não compartilhardes? Como encontrá-la longe de vós? Ah, nunca,
nunca!" Confesso que, abandonando-me a este ponto, contara imenso
com o auxílio das minhas lágrimas; mas, ou por má disposição, ou talvez
apenas por efeito da atenção penosa e contínua que prestava a tudo,
foi-me impossível chorar.
Por felicidade recordei-me que para subjugar uma mulher todos
os meios são bons; e que bastava impressioná-la com um forte
arrebatamento, para que a impressão permanecesse profunda e
favorável. Supri então a falta de sensibilidade pelo terror; e para tal,
mudando apenas a inflexão da voz, e mantendo a mesma atitude,
continuei: "Sim, faço este juramento a vossos pés: ou vos possuo ou
morro." Ao pronunciar estas últimas palavras, os nossos olhares
encontraram-se. Não sei o que a tímida criatura viu ou julgou ver nos
meus; mas levantou-se com ar assustado e escapou-se dos meus braços
que a rodeavam.
Verdade seja que nada fiz para a reter, porque já notara várias
vezes que as cenas de desespero, conduzidas com demasiada
vivacidade, caem no ridículo quando se tornam longas ou quando só
deixam saídas verdadeiramente trágicas, coisa que eu estava muito
longe de desejar. Entretanto, enquanto ela se esquivava, acrescentei
num tom baixo e sinistro, mas de maneira a poder ser ouvido: "Pois bem!
A morte!"
Levantei-me então; e, guardando um momento de silêncio,
lançava sobre ela, como por acaso, olhares selvagens, que lá por
parecerem alucinados nem por isso eram menos clarividentes e
observadores. O porte pouco seguro, a respiração apressada, a
contração dos músculos, os braços trêmulos e meio levantados, tudo
me provava que o efeito fora tal como o desejava mas, como no amor
só de perto algo se concretiza, e como estávamos um pouco afastados
um do outro, era necessário antes do mais que nos aproximássemos.
Para o conseguir, passei o mais rapidamente possível a uma aparente
tranqüilidade, propícia para acalmar os efeitos desta situação violenta,
mas sem lhe enfraquecer a impressão.
A minha transição foi: "Sou um infeliz. Quis viver para a vossa
felicidade, e estraguei-a. Consagrei-me à vossa tranqüilidade, e
perturbo-a." Em seguida, com um ar calmo mas constrangido: "Perdão,
senhora, pouco habituado às tempestades das paixões, não sei reprimir-
lhes os ímpetos. Se fiz mal em deixar-me levar por eles, pensai ao menos
que é a última vez. Ah, acalmai-vos, acalmai-vos, peço-vos.. E durante
esta longa frase, aproximei-me insensivelmente. "Se quereis que me
acalme, respondeu a bela amedrontada, "estai também mais
tranqüilo".
"Pois bem! Sim, prometo-vos", disse-lhe eu. E acrescentei com
uma voz mais fraca: "Se o esforço é grande, ao menos não será longo.
Mas", acrescentei logo com um ar alucinado, "vim, não é verdade, para
restituir as vossas cartas? Por piedade, dignai-vos aceitá-las. É mais um
sacrifício que me resta fazer; não me deixeis nada que me possa
diminuir a coragem. E tirando do bolso a preciosa coleção, disse: "Eis o
enganador testemunho das afirmações da vossa amizade! Era o que
me prendia à vida; tomai-o. Dai pois vós mesma o sinal que nos deve
separar para todo o sempre."
Aqui, a amante receosa cedeu inteiramente à sua meiga
inquietação.
"Mas, senhor de Valmont, que tendes, que quereis dizer? O passo
que hoje destes não é voluntário? Não é o fruto das vossas próprias
reflexões? E não são elas que vos levaram a aprovar a atitude
absolutamente necessária que tomei por dever?
"Pois bem!", disse eu, "essa atitude impede-me uma decisão." -
"Qual!?" - "A única que pode, ao mesmo tempo que me separa de vós,
pôr fim aos meus tormentos." - "Mas, respondei-me, que decisão é?"
Neste ponto, apertava-a nos meus braços, sem que ela se defendesse;
e calculando, por este esquecimento do decoro, quanto a emoção
devia ser forte e poderosa: "Mulher adorável", disse eu, ousando o
entusiasmo, "não fazeis idéia do amor que inspirais. Nunca sabereis até
que ponto fostes adorada, e como este sentimento me era mais caro
que a minha existência! Que os vossos dias sejam afortunados e
tranqüilos; que se embelezem com toda a felicidade de que me haveis
privado! Retribuí ao menos este desejo sincero com um remorso, uma
lágrima; e crede que o último dos meus sacrifícios não será o mais
doloroso para o meu coração. Adeus."
Enquanto falava assim, sentia o seu coração palpitar com
violência; observava-lhe a alteração do rosto; sobretudo via as lágrimas
sufocá-la, e no entanto só corriam raras e penosas. Só então tomei a
decisão de fingir afastar-me; mas agarrando-me com força: "Não,
escutai-me", disse ela vivamente. "Deixai-me", respondi. "Tendes de me
escutar, quero que me escuteis."
"Devo afastar-me de vós!" - "Não!", gritou ela... Com esta última
palavra lançou-se, ou antes, caiu desmaiada nos meus braços. Como
duvidava ainda de tão feliz êxito, fingi um grande susto; mas ao mesmo
tempo, conduzi-a, ou melhor, levei-a ao colo para o local
precedentemente escolhido como terreno da minha glória; e com
efeito, quando voltou a si já estava abandonada e submetida ao seu
feliz vencedor.
Até aqui, minha bela amiga, achar-me-á, creio, duma pureza de
método que lhe agradará; e verá que não me afastei em nada dos
verdadeiros princípios desta guerra, que já muitas vezes notáramos ser
tão parecida com a outra. Compare-me pois com Turenne ou
Frederico. Obriguei a combater um inimigo que queria apenas
contemporizar; consegui, por meio de sábias manobras, escolher o
terreno e a disposição das forças; inspirei confiança ao inimigo para
mais facilmente o poder alcançar no seu esconderijo; nada deixei ao
acaso, considerando o valor que teria o triunfo e a necessidade de
reservar uma saída em caso de derrota; finalmente, só abri as
hostilidades quando já tinha uma retirada assegurada, de forma a
poder proteger e conservar tudo o que conquistara anteriormente. Eis,
creio, tudo o que é possível fazer; mas receio agora ter-me deixado
amolecer, como Aníbal pelas delícias de Cápua. Eis o que aconteceu
depois. Esperava evidentemente que um tão grande acontecimento
não se passaria sem as lágrimas e o desespero do costume; ora notei a
princípio sobretudo um estado de confusão e uma espécie de
recolhimento; mas atribuí ambos à sua pudicícia, assim, sem me
preocupar com estas ligeiras diferenças, que supus meramente locais,
enveredei pela grande estrada das consolações, convencido de que,
como de costume, as sensações ajudariam o sentimento, e que uma só
ação fazia mais do que todas as palavras, que eu, porém, não deixava
de lado. Mas encontrei uma resistência verdadeiramente assustadora,
menos pela sua força do que pela forma que revestia.
Imagine uma mulher sentada, rígida, rosto imóvel; sem aspecto
de pensar, ouvir ou compreender; de cujos olhos fitos as lágrimas
deslizam continuamente e sem esforço. Assim estava Madame de
Tourvel enquanto eu lhe falava; mas se eu tentava chamar-lhe a
atenção para mim por meio duma carícia, mesmo pelo gesto mais
inocente, a esta aparente apatia sucedia imediatamente o terror, a
sufocação, as convulsões, e alguns gritos entrecortados, mas sem
articular uma palavra.
Estas crises repetiram-se várias vezes, e cada vez mais fortes; a
última foi mesmo tão violenta que fiquei inteiramente desanimado, e
receei por momentos ter obtido uma vitória inútil.
Recorri então aos lugares-comuns do costume, entre os quais se
encontrava este: "Desesperais-vos porque me haveis feito feliz?" A estas
palavras, a adorável mulher voltou-se para mim; e o rosto, se bem que
ainda um pouco alucinado, já tinha no entanto retomado a sua
expressão celestial. "Sois pois feliz?" Afirmei com mais força ainda. "E feliz
por minha causa!" Multipliquei as lisonjas e as meiguices. Enquanto eu
falava os membros distenderam-se-lhe; tombou com moleza, apoiada
contra o sofá; e abandonando-me uma das mãos de que ousara
apossar-me, disse: "Sinto que essa idéia me consola e alivia."
Calcula certamente que uma vez colocado no bom caminho,
não o voltei a abandonar; era realmente o que tinha a fazer.
Assim, quando quis tentar um segundo êxito, encontrei a
princípio certa resistência, e o que se passara anteriormente tornou-me
circunspeto. Mas chamando de novo em meu auxílio aquela mesma
idéia da minha felicidade, verifiquei logo o seu efeito benéfico: "Tendes
razão", disse-me a meiga criatura; "só posso suportar a minha existência
na medida em que ela servir para vos fazer feliz. Vou-me consagrar
inteiramente a isso: a partir deste momento entrego-me, e nunca mais
encontrareis da minha parte nem recusas, nem remorsos." Foi com esta
ingênua e sublime candura que me abandonou a sua pessoa e os seus
encantos, e aumentou assim a minha felicidade ao compartilhá-la.
A embriaguez foi completa e recíproca; e, pela primeira vez, a
minha sobreviveu ao prazer. Ao sair dos braços dela caía-lhe aos pés,
jurando-lhe amor eterno; e, é preciso confessá-lo, eu acreditava no que
dizia. Enfim, mesmo depois de nos termos separado, a sua lembrança
não me deixava, e tive de fazer um esforço para a esquecer.
Ah, por que não está aqui para equilibrar o mérito da ação pelo
da recompensa? Mas não perderei nada por esperar, não é verdade? E
espero poder considerar como assente entre nós o feliz acordo que lhe
propus na minha última carta. Bem vê que cumpro a minha parte, e
que, como lhe prometi, os meus assuntos estarão suficientemente
avançados para lhe poder dedicar uma parte do meu tempo. Apresse-
se a despachar esse estorvo do Belleroche, e deixe em paz o dulçoroso
Danceny, para se ocupar apenas de mim. Mas o que faz no campo,
que nem sequer me responde?
Sabe que tenho vontade de lhe ralhar? Mas a felicidade
predispõe à indulgência. E não esqueço, aliás, que ao colocar-me de
novo no número dos seus apaixonados, devo submeter-me às suas
pequenas fantasias. Lembre-se, porém, de que o novo amante nada
quer perder dos antigos direitos do amigo...
Adeus, como outrora... Sim, adeus, meu anjo! Envio-te todos os
beijos do amor.
P. S. - Sabe que Prévan ao fim do seu mês de prisão foi obrigado a
abandonar o regimento? É a novidade do dia em Paris. Na verdade, ei-
lo cruelmente punido por uma patifaria que não cometeu, e a minha
amiga obteve um êxito completo!

Paris, 29 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXVI

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ter-vos-ia respondido mais cedo, minha amável filha, se a fadiga


da minha última carta me não tivesse provocado dores que me
impediram durante estes dias de poder utilizar o braço.
Estava desejando agradecer-vos as boas notícias que me destes
do meu sobrinho, e de vos dar, a vós, as minhas sinceras felicitações.
Temos de ver nisto um golpe da Providência, que, tocando um,
salvou o outro. Sim, minha querida filha, Deus que queria apenas
experimentar-vos, socorreu-vos no momento em que as vossas forças
estavam esgotadas; e apesar do vosso queixume, deveis, creio, prestar-
Lhe ações de graças. Não é que eu não veja muito bem que seria mais
agradável para vós que tivésseis sido a primeira a tomar essa resolução,
e que a de Valmont fosse apenas a seqüência; parece-me até, falando
humanamente, que os direitos do nosso sexo teriam sido assim mais
resguardados, e nós não queremos perder nenhum! Mas que interessam
essas considerações ligeiras perante os importantes objetivos que se
encontram realizados? Vemos alguém que se salva dum naufrágio
queixar-se por não ter podido escolher o meio?
Sentireis em breve, minha querida filha, que as penas que temeis
se hão-de aligeirar por si próprias; e mesmo que subsistissem sempre e
com a mesma agudeza, não deixaríeis por isso de sentir que seriam
ainda mais fáceis de suportar que os remorsos do crime e o desprezo
por si própria. Inutilmente vos teria falado mais cedo com esta aparente
severidade: o amor é um sentimento independente, que a prudência
pode fazer evitar, mas que não sabe vencer; e que, uma vez nascido,
morre apenas ou de morte natural, ou pela ausência absoluta de
esperança. É este último caso, no qual vos encontrais, que me dá a
ousadia e o direito de vos dizer livremente a minha opinião. É cruel
assustar um doente desesperado, a quem só se devem consolações e
paliativos, mas é sensato esclarecer um convalescente sobre os perigos
que correu, para lhe inspirar a prudência de que necessita e a
submissão aos conselhos que lhe podem ser necessários.
Visto que me escolhestes como médico, é como tal que vos falo,
e que vos digo que os incomodozinhos que sentis agora, e que talvez
necessitem ainda alguns remédios, nada são comparados com a
doença alarmante de que está agora assegurada a cura. E em seguida
como amiga, amiga duma mulher razoável e virtuosa, permitir-me-ei
acrescentar que essa paixão, que vos subjugou, paixão tão infeliz em si
própria, era-o ainda mais pelo seu objeto. A acreditar no que se diz, o
meu sobrinho, que confesso amar talvez com fraqueza, e que reúne
muitas qualidades louváveis e outros tantos atrativos, é perigoso para as
mulheres e culpado perante elas, e para ele seduzi-las e desgraçá-las é
o mesmo. Creio que o teríeis convertido. Nunca alguém foi mais digno
disso, mas já tantas se gabaram do mesmo, vendo depois essa
esperança desenganada, que prefiro não vos ver reduzida a esse
recurso.
Pensai agora, minha querida filha, que em vez de tantos perigos
que correríeis, tereis, além do repouso de consciência e da
tranqüilidade, a satisfação de ter sido a principal causa da feliz
transformação de Valmont.
Por mim, não duvido que seja grande parte trabalho da vossa
corajosa resistência, e que um momento de fraqueza da vossa parte
teria deixado o meu sobrinho numa danação eterna. É-me agradável
pensar assim, e desejo ver-vos pensar da mesma maneira; encontrareis
assim as primeiras consolações, e eu terei razões para vos amar ainda
mais.
Espero-vos aqui dentro de poucos dias, minha amável filha, tal
como anunciais. Vinde encontrar de novo a calma e a felicidade nos
mesmos lugares em que as perdestes, vinde principalmente regozijar-
vos com a vossa terna mãe, de terdes tão fielmente cumprido a
palavra que lhe havíeis dado de nada fazer que não fosse digno dela e
de vós!

Castelo de..., 30 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXVII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Se ainda não respondi, Visconde, à sua carta de 19, não foi por
falta de tempo; mas simplesmente porque ela me irritou e a não achei
razoável. Tinha pensado que o melhor era deixá-la no esquecimento;
mas visto que insiste, que parece empenhado nas idéias que sugere, e
que toma o meu silêncio por um consentimento, urge que lhe exponha
claramente a minha opinião.
Tive por vezes a pretensão de substituir sozinha um serralho
inteiro; mas nunca aceitei fazer parte de um. Pensava que o meu amigo
sabia isso. Pelo menos, neste momento, já não o ignora e julgará
facilmente quanto me pareceu ridícula a sua proposta.
Pois quê! Poderia eu sacrificar uma inclinação, e para mais uma
inclinação recente, para me ocupar de si? E ocupar-me como?
Esperando a vez, como escrava submissa, dos sublimes favores
de Sua Alteza. Quando, por exemplo, se quiser distrair por um momento
desse encanto desconhecido que a adorável, a celeste Madame de
Tourvel foi a única a fazer-lhe sentir, ou quando temer comprometer
perante a atraente Cecília a idéia superior que ela conserve de si;
então, descendo até mim, virá procurar prazeres, na verdade menos
vivos, mas sem conseqüências; e as suas preciosas bondades, embora
um pouco raras, bastarão para a minha felicidade.
Vejo que está cheio de si, mas eu também não sou modesta; e
por mais que me olhe, não me acho decaída até esse ponto.
Talvez seja defeito da minha parte, mas previno-o de que possuo
ainda muitos outros.
Em primeiro lugar o de acreditar que o colegial, o dulçoroso
Danceny, só se ocupando de mim, sacrificando-me, sem se fazer valer,
uma primeira paixão, ainda antes de a ter satisfeito, e amando-me
enfim como se ama na idade dele, poderia, apesar dos seus vinte anos,
contribuir bem mais do que o Visconde para a minha felicidade e os
meus prazeres. Permito-me mesmo acrescentar que, se me desse na
fantasia a idéia de lhe dar um adjunto, não seria certamente o
Visconde, pelo menos por agora.
Por que razões?, perguntará. Em primeiro lugar poderia não
haver nenhuma, porque o capricho que me faria preferi-lo, pode
igualmente excluí-lo. Mas quero, por delicadeza, dar-lhe o motivo da
minha decisão. Parece-me que teria de me fazer demasiados
sacrifícios, e eu, em vez de mostrar o reconhecimento que esperaria de
mim, seria capaz de julgar que ainda merecia mais! Bem vê que, tão
afastados um do outro pela nossa maneira de pensar, de nenhum
modo nos podemos unir; e temo que me seja necessário muito tempo,
mesmo muito, antes de mudar de sentimentos.
Prometo avisá-lo quando estiver corrigida. Até lá, creia-me,
pode arranjar outras aventuras e guardar os seus beijos; tem muito onde
empregá-los melhor!...
Adeus, como antigamente, diz? Antigamente, porém, fazia
muito mais caso de mim; não me limitava aos terceiros papéis e
esperava que eu dissesse sim, para estar certo do meu consentimento.
Aceite pois que em vez de lhe dizer também adeus, como
antigamente, lhe diga adeus como agora.
A sua serva, senhor Visconde.

Do castelo de..., 31 de Outubro de 17* *.

CARTA CXXVIII
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Só ontem recebi, senhora, a vossa resposta tardia. Ter-me-ia


causado imediatamente a morte se a minha existência me
pertencesse, mas outro a possui; e esse outro é o senhor de Valmont.
Vede que nada vos escondo. Considerareis talvez que já não
sou digna da vossa amizade, mas prefiro perdê-la a iludi-la.
Tudo o que vos posso dizer é que, obrigada pelo senhor de
Valmont a escolher entre a sua morte e a sua felicidade me decidi por
esta. Não me envaideço, nem me acuso: digo simplesmente o que se
passou.
Podeis imaginar facilmente, depois disto, como me fez impressão
a vossa carta e as severas verdades que contém não julgueis que ela
tenha feito nascer em mim o remorso ou que possa transformar os meus
sentimentos ou conduta. Não é que eu não passe por momentos cruéis;
mas quando sinto o coração despedaçado, quando temo já não
poder suportar os tormentos, penso: Valmont é feliz; e tudo desaparece
perante essa idéia ou antes, tudo se transforma em prazer.
Dediquei-me pois ao vosso sobrinho; foi por ele que me perdi.
Tornou-se o centro único dos meus pensamentos, sentimentos e ações.
A vida ser-me-á preciosa enquanto for necessária à sua felicidade, e
considerá-la-ei sempre venturosa. Se algum dia ele pensar doutro
modo.... não terá da minha parte nem queixas nem censuras. Já ousei
imaginar esse momento fatal, e a minha decisão está tomada.
Já vedes quão pouco me pode afetar o temor, que pareceis ter,
de que um dia o senhor de Valmont me desgrace, porque, antes de o
querer, terá cessado de amar-me; e que me importarão as vãs censuras
que não ouvirei? Só ele será o meu juiz.
Como terei vivido só para ele, será ele o detentor da minha
memória; e se se vir obrigado a reconhecer que o amava, sentir-me-ei
suficientemente justificada.
Acabais, senhora, de ler o meu coração. Preferi a desgraça de
perder a vossa estima, pela minha franqueza, à de me tornar indigna
dela pelo aviltamento da mentira. Pensei que devia esta inteira
confiança às vossas antigas bondades para comigo. Se acrescentasse
uma palavra poder-vos-ia levar a suspeitar que tenho o orgulho de
contar ainda com ela, quando pelo contrário me faço justiça deixando
de pretendê-la.
Sou com respeito, senhora, a vossa muito humilde e obediente
serva.

Paris, 1 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXIX
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me pois, minha bela amiga, donde vem esse tom de


azedume e de sarcasmo que predomina na sua última carta?
Que crime cometi eu, aparentemente sem dar por isso, e que
tanto a irrita? Acusa-me de me ter dado ares de contar com o seu
consentimento antes de o ter obtido, mas julguei que o que para os
outros poderia parecer presunção, seria sinal da confiança que
deposito em si; e desde quando este sentimento prejudica a amizade
ou o amor? Unindo a esperança ao desejo, cedi apenas ao impulso
natural que nos leva a colocar-nos sempre o mais perto possível da
felicidade que buscamos; e tomou como efeito do orgulho o que era
apenas o reflexo da minha ansiedade.
Bem sei que é costume, nestes casos, aparentar uma dúvida
respeitosa, mas sabe perfeitamente que é apenas uma fórmula, um
simples protocolo; e achei-me autorizado a supor que essas precauções
minuciosas não eram necessárias entre nós.
Parece-me até que esta atitude franca e livre, quando fundada
sobre uma antiga ligação, é preferível às insípidas meiguices, que tão
frequentemente tornam o amor desenxabido. De resto, o valor que vejo
nesta atitude talvez resulte apenas daquele que atribuo à felicidade
que ela me lembra, mas por isso mesmo, ser-me-ia penoso vê-la
discordar de mim.
Eis o único erro que suponho ter cometido: porque não imagino
que pudesse ter pensado seriamente que existisse uma mulher no
mundo que me parecesse preferível a si; e, ainda menos, que tenha
podido apreciá-la tão mal como finge crer.
Diz-me a este respeito que olhou para si própria e que não se
encontrou decadente a esse ponto. Disso estou certo, e prova apenas
que o seu espelho é fiel. Mas não poderia ter concluído, com mais
facilidade e justiça, que eu não iria pensar isso de si ?
Procuro em vão a causa de tão estranha idéia. Parece-me no
entanto que ela resulta, mais ou menos, dos elogios que fiz a outras
mulheres. Deduzo-o pelo menos da sua afetação em salientar os
epítetos de adorável, celeste, atraente, de que me servi ao falar-lhe em
Madame de Tourvel e na pequena Volanges.
Mas não sabe que estas palavras, mais escolhidas ao acaso que
por reflexão, exprimem menos a opinião que se tem da pessoa, do que
a situação em que nos encontramos quando dela falamos?
E se, no próprio momento em que me sentia tão vivamente
afetado, quer por uma quer por outra, eu não a desejava menos; se lhe
dava a preferência sobre ambas, visto que enfim não poderia renovar a
nossa ligação senão em prejuízo das outras duas, não vejo que isso
fosse motivo de grande censura.
Não me será mais difícil justificar-me do encanto desconhecido,
com que parece ter ficado também um pouco chocada, porque,
antes do mais, nem sempre as sensações desconhecidas são as mais
fortes. Oh, quem poderia levar a melhor sobre os deliciosos prazeres que
só a minha amiga sabe tornar sempre novos, e cada vez mais vivos?
Quis portanto apenas dizer que aquele encanto era dum gênero que
ainda não tinha experimentado; mas sem pretender atribuir-lhe
qualquer classificação; e acrescentei, o que hoje repito, que o saberei
combater e vencer.
E nisto aplicarei todo o meu zelo, se vir nesse ligeiro trabalho uma
homenagem a oferecer-lhe.
Quanto à pequena Cecília creio inútil falar dela. Foi a seu
pedido que me encarreguei dessa criança, e só espero a sua ordem de
partida para me pôr ao largo. Notei a ingenuidade e a frescura dela;
achei-a atraente por momentos porque nos comprazemos sempre na
nossa obra, mas não possui consistência suficiente para prender as
atenções.
Agora, minha bela amiga, apelo para o seu senso de justiça,
para as suas primeiras bondades para comigo; para a longa e perfeita
amizade, para a inteira confiança que depois estreitaram ainda mais os
laços que nos uniam, mereci porventura o tom rigoroso que tomou para
comigo? Mas como lhe será fácil compensar-me quando quiser! Uma
palavra sua apenas, e verá se existem encantos e afeições que me
retenham um só minuto.
Voaria para os seus braços, e provar-lhe-ia, mil vezes e de mil
maneiras, que é, que será sempre, a verdadeira soberana do meu
coração.
Adeus, bela amiga; espero a sua resposta com toda a
ansiedade.

Paris, 3 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXX

MADAME DE ROSEMONDE À PRESIDENTE DE TOURVEL

Por que motivo, minha querida, já não quereis ser minha filha?
Por que é que pareceis comunicar-me que vai acabar a
correspondência entre nós? É para me castigar de não ter adivinhado o
que era tão pouco verossímil? Ou desconfiais que vos afligi
voluntariamente? Não, conheço demasiado o vosso coração para crer
que assim possa julgar o meu. Desta forma o desgosto em que me
mergulhou a vossa carta é muito menos por minha causa do que por
vós!
Ó minha jovem amiga! Digo-vos com tristeza; mas sois
demasiado digna de ser amada, para que alguma vez o amor vos
torne feliz.
Ah! Qual foi a mulher verdadeiramente delicada e sensível que
não encontrou o infortúnio nesse mesmo sentimento que lhe parecia
anunciar tanta felicidade! Saberão os homens apreciar a mulher que
possuem?
Alguns haverá honestos no procedimento e constantes na
afeição, mas, mesmo entre esses, quão poucos se sabem elevar à
altura do nosso coração! Não penseis, minha querida filha, que o amor
deles seja igual ao nosso. Experimentam a mesma loucura; muitas vezes
entregam-se-lhe com mais arrebatamento; mas desconhecem este zelo
inquieto, esta delicada solicitude, que nos obriga a cuidados ternos e
contínuos, cujo único fim é sempre o objeto amado. O homem goza
com a felicidade que sente, e a mulher com a que proporciona. Esta
diferença, tão importante e tão pouco notada, influi no entanto, de
modo bem palpável, na totalidade das respectivas condutas. O prazer
de um consiste em satisfazer os seus desejos, o da outra, principalmente,
em os fazer nascer. Agradar é para ele um meio de chegar ao triunfo;
enquanto para ela é o próprio triunfo. E a coqueteria, tantas vezes
censurada às mulheres, representa apenas o exagero desta forma de
sentir e prova a sua verdade. Enfim, o gosto exclusivo, que caracteriza
particularmente o amor, é no homem apenas uma preferência, que
serve, quando muito, para graduar um prazer, que um outro objeto
enfraqueceria talvez mas não destruiria; enquanto nas mulheres é um
sentimento profundo, que não só destrói todo o desejo estranho, mas
que, mais forte do que a natureza, e independente até do domínio
dela, só as deixa experimentar repugnância e desgosto, onde pareceria
dever nascer a voluptuosidade.
E não deveis pensar que as exceções, mais ou menos
numerosas, que seja possível citar, se oponham com êxito a estas
verdades comuns! Estão até confirmadas pelo consenso geral, que
distinguiu, apenas para os homens, a infidelidade da inconstância,
distinção de que se orgulham, em vez de por ela se sentirem
humilhados; e que, no nosso sexo, só foi adotado por essas mulheres
depravadas que fazem a vergonha dele, e para quem todos os
processos são bons, a fim de se salvarem da penosa sensação da sua
baixeza. Julguei, minha querida filha, que podia ser-vos útil ter estas
reflexões a opor às idéias quiméricas duma felicidade perfeita, com que
o amor ilude sempre a nossa imaginação; esperança enganadora, a
que nos conservamos presas, mesmo quando nos vemos forçadas a
abandoná-la, e cuja perda agrava e multiplica os desgostos já
demasiado reais duma viva paixão! Este papel de vos suavizar as dores,
de lhes diminuir o número, é o único que quero, que posso
desempenhar neste momento. Nos males sem remédio, os conselhos só
podem incidir sobre o regime a seguir. Peço-vos somente que vos
lembreis que lamentar um doente não é censurá-lo. Oh, quem somos
nós para nos censurarmos uns aos outros? Deixemos o direito de julgar
Àquele que lê nos corações; e tenho a ousadia de acreditar que, aos
seus olhos paternais, uma multidão de virtudes pode resgatar uma
fraqueza.
Mas, suplico-vos, minha querida amiga, evitai sobretudo essas
resoluções violentas, que não mostram força mas antes um desânimo
completo, não esqueçais que, tornando um outro possuidor da vossa
existência, para me servir da vossa expressão, não pudestes contudo
privar os vossos amigos do que já antes possuíam, e que nunca
cessarão de reclamar.
Adeus, minha querida filha, lembrai-vos às vezes da vossa terna
mãe, e crede que sereis sempre, e acima de tudo, o objeto dos seus
mais queridos pensamentos.

Castelo de..., 4 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Até que enfim, Visconde; desta vez estou mais contente consigo
do que da outra; e agora, falemos amigavelmente, espero convencê-lo
de que, tanto para si como para mim, o acordo que parece desejar
seria uma verdadeira loucura.
Nunca reparou que o prazer, que é com efeito o único fim de
reunião dos dois sexos, não basta no entanto para os unir? E que, se é
precedido do desejo que aproxima, é também seguido do alheamento
que afasta? Uma lei da natureza, que só o amor pode transformar; e o
amor; é possível senti-lo quando se quer?
No entanto é sempre necessário; e seria na verdade
embaraçoso, se se não tivesse notado que felizmente bastava que
existisse dum lado. A dificuldade tornou-se de metade do tamanho, e
nem sequer há muito a perder; com efeito um goza a felicidade de
amar, o outro a de agradar, um pouco menos viva na verdade, mas a
que se junta o prazer de trair, o que provoca o equilíbrio; enfim, tudo se
arranja.
Mas, diga-me, Visconde, qual de nós dois se encarregará de trair
o outro? Conhece a história dos dois batoteiros, que se reconheceram
durante o jogo, nada conseguiremos, disseram paguemos as despesas
a meias; e abandonaram a partida. Sigamos, creia-me, este exemplo
prudente, e não percamos juntos um tempo que podemos empregar
tão bem algures.
Para lhe provar que penso tanto no seu interesse como no meu,
e que não procedo assim nem por irritação nem por capricho, não lhe
recuso o prémio combinado entre nós, de resto bem vejo que uma
única noite nos bastará; e tenho a certeza de que saberemos tão bem
embelezá-la, que a veremos findar com pena. Mas não esqueçamos
que essa mágoa é necessária à felicidade; e por mais doce que seja a
nossa ilusão, não vamos acreditar que possa ser durável.
Como vê, resigno-me, e isto sem que o Visconde tenha ainda
cumprido a obrigação que tinha para comigo, porque enfim, devia ter-
me dado a primeira carta da celeste pudibunda; e no entanto, ou
porque ela representa algo para si, ou porque esqueceu as condições
do contrato, que talvez o interesse menos do que me pretende fazer
crer, não recebi nada, absolutamente nada. No entanto, ou me
engano muito, ou a terna devota deve escrever bastante, pois em que
se há de ocupar quando está só?
Certamente que não tem ânimo para se distrair. Como vê, teria
se quisesse algumas censuras a fazer-lhe; mas deixo-as em silêncio, para
compensar um pouco da irritação que pus talvez na minha última
carta.
E agora, Visconde, só me resta fazer-lhe um pedido; e é tanto
por si como por mim: é o de adiar o momento que também desejo
muito, mas que me parece dever ser retardado até ao meu regresso à
cidade. Por um lado, aqui não teríamos a necessária liberdade; e, por
outro, eu correria um risco: porque bastaria um pouco de ciúme para
prender sem remédio este triste Belleroche, que no entanto agora
parece estar por um fio. Vejo bem que ele já se esforça para continuar
a amar-me; e eu ponho por vezes tanta malícia como prudência nas
carícias com que o sobrecarrego.
Ao mesmo tempo, bem vê que não seria um sacrifício digno de
si! Uma infidelidade recíproca dará um encanto bem mais picante.
Sabe que às vezes lamento que estejamos reduzidos a estes
recursos?
No tempo em que nos amávamos, porque creio que era amor,
eu era feliz; e o Visconde? Mas porque ocupar-me ainda duma
felicidade que não volta? Não, por mais que diga, o regresso é
impossível. Em primeiro lugar, exigirei sacrifícios que não poderia ou não
quereria fazer-me, e que eu talvez não mereça; e depois, como
prendê-lo? Oh, não, não, nem quero pensar nisso; e apesar do prazer
que acho em escrever-lhe, prefiro deixá-lo bruscamente.
Adeus, Visconde.

Castelo de..., 6 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Comovida pelas vossas bondades para comigo, senhora, teria


repousado inteiramente nelas se me não retivesse de algum modo o
receio de as profanar, aceitando-as. Por que motivo é que sou forçada
a considerá-las tão preciosas, no próprio momento em que já não me
sinto digna delas? Ah, mas ousarei pelo menos testemunhar-vos o meu
reconhecimento; admirarei, sobretudo, essa indulgência da virtude, que
só conhece as nossas fraquezas para se apiedar, e cujo poderoso
encanto exerce sobre os corações uma influência tão doce e tão forte,
mesmo comparada com o encanto do amor.
Mas essa amizade, merecê-la-ei ainda quando já não basta
para a minha felicidade? Posso dizer o mesmo dos vossos conselhos;
aprecio-lhes o valor e não os posso seguir. E como não acreditar numa
felicidade perfeita, quando a experimento neste momento? Sim, se os
homens são tal como dizeis, é necessário fugir-lhes, são odiosos; mas
como Valmont está longe de se lhes assemelhar! Se tem como eles essa
violência da paixão, a que chamais arrebatamento, é nele
ultrapassada pelo excesso da sua delicadeza! Oh, minha amiga, falais-
me de partilhar as minhas penas, regozijai-vos então com a minha
felicidade; é ao amor que a devo, e o objeto dele aumenta-lhe o valor.
Amais o vosso sobrinho, dizeis, talvez por fraqueza. Ah, se o conhecêsseis
como eu! Amo-o idolatradamente, e muito menos do que ele merece.
Deixou-se sem dúvida arrastar para alguns erros, ele próprio concorda;
mas quem conheceu como ele o verdadeiro amor? Que mais posso
dizer? Sente-o com a mesma força com que o inspira.
Irei julgar que esta é uma das idéias quiméricas com que o amor
ilude sempre a nossa imaginação, mas nesse caso, por que se teria
tornado mais terno, mais solícito, agora que nada mais tem a obter?
Confesso que antes lhe notava um ar de reflexão de reserva, que
raramente abandonava, é que muitas vezes me recordava, mesmo
sem querer, as falsas e cruéis impressões que me haviam dado acerca
dele. Mas desde que se pode entregar sem constrangimento aos
movimentos do seu coração, parece adivinhar todos os desejos do
meu. Quem sabe se não nascemos um para o outro? Se me não estava
reservada a felicidade de lhe ser necessária? Ah, se é uma ilusão, que
eu morra antes que ela acabe. Mas não; quero viver para o amar, para
o adorar. Por que deixaria de amar-me? Que outra mulher o poderia
tornar mais feliz do que eu? E, sinto-o por mim, a felicidade que damos
é a mais forte cadeia, a única que prende verdadeiramente. Sim, é este
sentimento delicioso que enobrece o amor, que o purifica e o torna
digno de uma alma terna e generosa, como a de Valmont.
Adeus, minha querida, respeitável e indulgente amiga. Quereria
demorar mais tempo a escrever-vos; mas chegou a hora em que ele
me prometeu vir, e qualquer outra idéia me abandona.
Perdão! Mas sei que desejais a minha felicidade; e é tão grande
neste momento que me abandono totalmente a ela.

Paris, 7 de Novembro de 17* *.


CARTA CXXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Quais são pois, minha bela amiga, esses sacrifícios que me julga
incapaz de fazer, e cujo prémio seria afinal agradar-lhe?
Ah! Dê-mos somente a conhecer, e, se hesitar em lhos oferecer
permito-lhe que recuse as minhas homenagens. Que julga de mim
desde há algum tempo, se, mesmo quando é indulgente, ainda
continua a duvidar dos meus sentimentos ou da minha energia?
Sacrifícios que eu não poderia ou não queria fazer! Supõe-me então
apaixonado, dominado? E o valor que dei ao triunfo, suspeita que o
atribuo à pessoa? Ah, graças ao Céu, não estou ainda reduzido a isso, e
guardo-me para lho provar. Sim, prová-lo-ei, mesmo que seja com
Madame de Tourvel. Seguramente, depois disso, não lhe ficarão
dúvidas.
Foi-me possível, julgo que sem me comprometer, conceder
algum tempo a uma mulher, que tem pelo menos o mérito de ser dum
gênero que raramente se encontra. Talvez também a estação morta
em que veio esta aventura me tenha levado a entregar-me com mais
entusiasmo; e agora que o grande movimento mal recomeça, não é de
admirar que ela me ocupe ainda quase inteiramente. Pense no entanto
que ainda não há oito dias que gozo o fruto de três meses de trabalhos.
Tantas vezes me demorei mais tempo com o que valia muito menos e
não me custara tanto! E nunca a minha amiga me julgou mal por isso.
Mais ainda, quer saber a verdadeira causa da solicitude que
emprego? Ei-la. Esta mulher é naturalmente tímida; durante os primeiros
dias duvidava sem cessar da sua felicidade, e essa dúvida bastava
para a perturbar, de forma que só agora começo a poder observar até
onde vai o meu poder nesse campo. Eis uma coisa que ardia em
curiosidade por saber; e a oportunidade não é tão fácil de encontrar
como se julga.
Em primeiro lugar, para muitas mulheres, o prazer é apenas o
prazer e nada mais do que isso; e para essas, seja qual for o título que
nos concedam, somos simples criados, puros moços de recados, cujo
mérito reside apenas na atividade, e entre os quais o que mais faz é
sempre o que faz melhor.
Numa outra classe, talvez hoje a mais numerosa, a celebridade
do amante, o prazer de o ter arrebatado a uma rival, o receio de que
por sua vez lhe seja roubado, ocupa quase inteiramente as mulheres,
nós contribuímos, claro, mais ou menos para esta felicidade de que
gozam; mas ela depende mais das circunstâncias do que da pessoa.
Vem-lhes por nós, mas não de nós.
Precisava por isso de encontrar, para as minhas observações,
uma mulher delicada e sensível, que se dedicasse unicamente ao amor,
e que, no próprio amor, visse só o amante; cuja emoção, não seguindo
o caminho habitual, partisse sempre do coração para os sentidos; já a
vi, por exemplo (e não falo do primeiro dia), sair do prazer toda chorosa,
e um instante depois reencontrar a voluptuosidade numa palavra que
respondia à sua alma.
Enfim, era necessário ainda acrescentar essa natural candura,
tornada invencível de tanto se lhe entregar, e que lhe não permite
esconder nenhum dos sentimentos do coração.
Ora, concordará que tais mulheres são raras; e julgo mesmo que,
sem esta, nunca me teria sido dado encontrar nenhuma.
Não será pois de estranhar se ela me prender mais tempo do
que qualquer outra; e se a observação que quero fazer sobre ela exige
que a torne feliz, inteiramente feliz, por que me recusaria eu a tal, tanto
mais que isso serve os meus planos, em vez de os contrariar? Mas por
que o espírito se encontra ocupado, segue-se-lhe que o coração seja
escravo? Não, sem dúvida. Mas o valor que não deixo de atribuir a esta
aventura não me impedirá de me entregar a outras, ou mesmo de a
sacrificar a algumas mais agradáveis.
Sinto-me de tal modo livre que nem sequer descurei a pequena
Volanges, a quem afinal dou tão pouca importância. A mãe trá-la para
a cidade dentro de três dias; e desde ontem que arranjei maneira de
assegurar as minhas comunicações: uma gratificação ao porteiro, e
umas bugigangas à mulher, resolveram o assunto. E imaginar que
Danceny não soube encontrar um processo tão simples! E ainda dizem
que o amor nos torna inventivos! Pelo contrário, embrutece aqueles que
domina. E pensa que me não saberei defender? Ah! Esteja tranqüila.
Vou já, dentro de poucos dias, enfraquecer, partilhando-a, a impressão
talvez demasiado viva que experimentei; e se uma só partilha não
bastar, multiplicá-las-ei.
Mas estarei pronto a entregar a jovem colegial ao seu discreto
amante, logo que a minha amiga o julgue oportuno. Parece-me que já
não tem razões para o impedir; e eu consinto em prestar esse insigne
serviço ao pobre Danceny. É, na verdade, o mínimo que lhe devo por
todos os que me prestou. Está agora numa grande inquietação por
saber se será recebido em casa de Madame de Volanges. Vou-o
acalmando o melhor que posso, assegurando-lhe que, dum ou doutro
modo, o tornarei feliz na primeira oportunidade, e enquanto espero,
continuo a ocupar-me da correspondência, que ele quer recomeçar
logo após a chegada da sua Cecília. Já tenho seis cartas dele, e ainda
receberei mais uma ou duas antes desse dia feliz. É preciso que o rapaz
esteja muito desocupado!
Mas deixemos esse par infantil, voltemos a nós; que eu possa
ocupar-me unicamente da tão doce esperança que me deu a sua
carta. Sim, prender-me-á, sem dúvida; nem lhe perdoaria se duvidasse.
Alguma vez deixei de lhe ser constante? Os nossos laços foram desfeitos,
mas não quebrados; a nossa pretensa ruptura foi um erro da nossa
imaginação, os nossos sentimentos e interesses mantiveram-se unidos.
Tal como o viajante que regressa desenganado, reconhecerei que
deixara a felicidade para perseguir a esperança; e direi como
d'Hancourt: -Plus je vis d'étrangers, plus j'amai ma patrie.*
Não fuja mais à idéia, ou antes, ao sentimento que a reconduz
até mim; e depois de termos provado todos os prazeres nas nossas
diversas incursões, regozijemo-nos com a felicidade de sentir que
nenhum deles é comparável ao que experimentáramos e que
reencontraremos mais delicioso ainda.
Adeus, encantadora amiga. Acedo em esperar pelo seu
regresso, mas apresse-o e não esqueça que o desejo muito.

Castelo de..., 11 de Novembro de 17* *.

*Quanto mais vi o estrangeiro, mais amei a minha pátria.

CARTA CXXXIV

A MARQUESA DE MERTEUiL AO VISCONDE DE VALMONT

Na verdade o Visconde é como as crianças, diante de quem


não se pode dizer nada e a quem não se pode mostrar nada, que não
desejem imediatamente! Bastou passar-me uma simples idéia pela
cabeça, à qual, aliás, o preveni de que não queria prestar atenção, e
foi o bastante para que tentasse prender-me a ela, quando eu a
procurava esquecer, querendo, por assim dizer, obrigar-me a
compartilhar os seus estouvados desejos! Acha generoso da sua parte
deixar-me carregar sozinha o fardo da prudência? Torno a dizer-lho, e
repito-o a mim própria mais frequentemente ainda, o acordo que me
propõe é realmente impossível. Ainda que o Visconde pusesse no
assunto toda a generosidade que me mostra neste momento, não
acredita que eu tenha também as minhas suscetibilidades, e não queira
aceitar sacrifícios que prejudiquem a sua felicidade?
Ora, não será verdade, Visconde, que se ilude quanto ao
sentimento que o prendeu a Madame de Tourvel? É amor, ou esse
sentimento nunca existiu: nega-o de cem maneiras mas prova-o de mil.
O que é, por exemplo, esse subterfúgio de que se serve para consigo
mesmo, porque acredito que seja sincero comigo, e que o leva a
atribuir ao prazer de observar, o desejo, que não pode esconder nem
combater, de conservar essa mulher?
Não parecerá que nunca fez nenhuma outra feliz perfeitamente
feliz?
Ah! Se duvida, tem a memória bem curta! Mas não, não se trata
de nada disto. Muito simplesmente o coração ilude-lhe o espírito, e
obriga-o a recorrer a fracas justificações; mas eu, que não tenho
nenhum interesse em enganar-me a mim própria, não sou tão fácil de
contentar.
É o caso que, notando embora a delicadeza que o levou a
suprimir cuidadosamente todas as palavras que imaginou pudessem
ter-me desagradado, vi no entanto que, talvez sem dar por isso,
conservava as mesmas idéias. Com efeito, já não se trata da adorável,
da celeste Madame de Tourvel, mas é ainda uma mulher espantosa,
uma mulher delicada e sensível, e isto, com exclusão de todas as outras;
uma mulher rara, enfim, e como não se encontra outra igual. O mesmo
se passa com o tal encanto desconhecido, que não é o mais forte. Pois
bem, seja: mas visto que até aqui nunca o tinha encontrado, é bem de
crer que não o volte a encontrar no futuro, e que a sua perda seja
irreparável.
Ora, ou isto são sintomas infalíveis de amor, ou então temos de
renunciar a encontrá-lo em parte alguma.
Tenha a certeza que desta vez lhe falo sem mau humor.
Prometi a mim mesma nunca mais me deixar assaltar por ele;
reconheci que se podia tornar uma armadilha perigosa. Creia-me,
sejamos amigos, e fiquemos por aí. Agradeça-me a coragem que
mostrei em defender-me: sim, coragem; porque às vezes é bem precisa,
até para não se tomar uma decisão que se sabe errada.
É pois apenas para o pôr de acordo comigo por persuasão que
vou responder à sua pergunta sobre os sacrifícios que eu exigiria e que
o Visconde não poderia fazer. Sirvo-me de propósito da palavra exigir,
porque tenho a certeza de que, dentro em breve, irá achar-me, com
efeito, demasiado exigente: mas tanto melhor! Em vez de me zangar
com as suas recusas, agradecer-lhas-ei.
Olhe, não é consigo que quero dissimular, embora o devesse
talvez fazer.
Exigirei pois, veja a crueldade!, que essa rara, essa espantosa
Madame de Tourvel não seja para si mais do que uma mulher vulgar,
uma mulher como ela é, afinal, porque, não nos deixemos enganar,
esse encanto, que supomos achar nos outros, é em nós que existe; é
apenas o amor a embelezar o objeto amado.
Mesmo que este sacrifício lhe seja impossível, tem no entanto
que mo prometer, jurar até; mas, aviso, não acreditarei em falsas
promessas. Só me deixarei convencer pelo conjunto do seu
procedimento.
Mas ainda não é tudo; sou muito caprichosa! O sacrifício da
pequena Cecília, que me oferece com tão boa vontade, não me
interessa. Pedir-lhe-ei, pelo contrário, que continue esse penoso serviço,
até nova ordem da minha parte; talvez porque goste de abusar do
meu poder ou talvez porque, mais indulgente ou mais justa, me baste
dispor dos seus sentimentos, sem querer prejudicar os seus prazeres. De
qualquer forma, quero ser obedecida; e as minhas ordens serão
rigorosas!
Considerar-me-ia então obrigada a agradecer-lhe; quem sabe?
Talvez até a recompensá-lo. Por exemplo, abreviaria uma ausência que
se me tornaria insuportável. Encontrar-nos-íamos finalmente, Visconde,
encontrar-nos-íamos... de que maneira?...
Mas lembre-se de que isto é apenas uma conversa, o simples
relato dum projeto impossível, e não quero ser a única a esquecê-lo...
Sabe que o meu processo me inquieta um pouco? Quis
finalmente conhecer ao certo quais eram as minhas armas; os
advogados citam-me as leis, e sobretudo autoridades, como eles lhes
chamam: mas já não me acho tão forte como supunha. Quase lamento
não ter aceitado o acordo. No entanto tranquilizo-me, pensando que o
procurador é hábil, o advogado eloqüente e a demandista bonita. Se
estes três argumentos não bastassem, seria preciso alterar toda a
seqüência do assunto, e que viria a acontecer ao respeito pelos antigos
costumes?
O processo é atualmente a única coisa que me retém aqui.
Belleroche, acabou-se: desistiu; trabalho compensado. Chegou
ao ponto de se lamentar por não ter ido ao baile desta noite queixume
desocupado! Restituí-lo-ei à liberdade quando regressar a Paris. Ao fazer
este doloroso sacrifício, consolo-me com a generosidade que ele me
atribui.
Adeus, Visconde, escreva muitas vezes, os pormenores dos seus
prazeres compensam-me em parte dos aborrecimentos que enfrento.

Castelo de...11 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXV

A PRESiDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Tento escrever-vos, sem saber ainda se serei capaz. Ah! Meu


Deus Quando penso que na minha última carta era o excesso de
felicidade que me impedia de a continuar! É o de desespero que me
pesa agora; só me deixa força para sentir as dores, e rouba-ma quando
tento exprimi-las.
Valmont... Valmont já me não ama, o seu amor nunca existiu.
O amor não desaparece assim. Ele engana-me, trai-me, ultraja-
me.
Suporto todos os infortúnios e humilhações que é possível reunir,
e é dele que me vêm!
E não julgueis que é uma simples suspeita: estava bem longe de
as sentir. Nem tenho a sorte de poder duvidar. Vi-o: que me poderá
dizer para se justificar?... Mas que lhe importa! Nem sequer tentará...
Infeliz! Que lhe interessarão as tuas censuras e lágrimas? Não é de ti que
ele se ocupa!...
É pois verdade que me sacrificou, me abandonou mesmo...
E por quem? Por uma vil criatura... Mas que digo? Ah! Já nem
tenho o direito de a desprezar. Ela traiu menos deveres, é menos
culpada do que eu.
Oh! Como é doloroso o desgosto, quando é fruto do remorso!
Sinto que os meus tormentos redobram.
Adeus minha querida amiga; por muito indigna de piedade que
me tenha tornado, senti-la-íeis certamente por mim, se pudésseis fazer
uma idéia do que sofro.
Acabo de reler a carta e apercebi-me de que em nada vos
pode elucidar; vou pois tentar a coragem de vos contar este cruel
acontecimento.
Foi ontem; eu devia, pela primeira vez desde o meu regresso,
cear fora da minha casa. Valmont veio ver-me às cinco horas; nunca
me parecera tão terno. Deu-me a entender que o meu projeto de sair o
contrariava, e, como imaginais, tive logo a idéia de ficar em casa. No
entanto, duas horas depois, e de repente, o seu ar e tom mudaram
sensivelmente.
Não sei se me escapou qualquer coisa que lhe tenha
desagradado; pelo quer que fosse, pouco tempo depois, afirmou
lembrar-se de uma ocupação que o obrigava a deixar-me, e foi-se
embora, mas não o fez sem manifestar uma muito viva pena, que me
pareceu carinhosa, e que então julguei sincera.
Entregue a mim própria, achei mais conveniente não faltar aos
meus primeiros compromissos, visto que estava livre agora.
Acabei por me arranjar e parti na carruagem. Infelizmente o
cocheiro fez-me passar diante da Ópera, e vi-me envolvida no tumulto
da saída; uns quatro passos à minha frente, e na fila ao lado da minha,
vi a carruagem de Valmont. O coração bateu-me logo com mais força,
mas não de temor; e a única idéia que me ocupava era o desejo de
que a minha carruagem avançasse.
Em vez disso, foi a dele que foi obrigada a recuar, e que ficou ao
lado da minha. Debrucei-me imediatamente: qual não foi o meu
espanto quando vi a seu lado uma prostituta, bem conhecida como tal!
Afastei-me, como podereis supor, e era já bastante para me afligir o
coração; mas o que vos deve custar a acreditar, é que essa rapariga,
aparentemente instruída por alguma odiosa confidência, não deixara a
portinhola, nem cessara de me olhar, com gargalhadas capazes de
provocarem uma cena.
No acamrunhamento em que me encontrava, deixei-me no
entanto conduzir à casa onde devia cear; mas foi-me impossível ficar;
sentia-me a cada instante prestes a desmaiar, e sobretudo custava-me
reter as lágrimas.
Assim que regressei escrevi ao senhor Valmont e enviei-lhe logo a
carta; não estava em casa. Querendo, por qualquer preço, sair do
estado de morte em que me achava, ou confirmá-lo para sempre,
reenviei-a com ordem de o esperar; mas antes da meia-noite o meu
criado voltou, com a notícia de que o cocheiro, que recolhera, lhe
dissera que o patrão não voltaria nessa noite. Esta manhã julguei nada
mais ter a fazer do que tornar a pedir as minhas cartas, e dizer-lhe que
não voltasse a minha casa. Dei ordens nesse sentido; mas eram,
certamente, inúteis.
Passa do meio-dia; ainda não apareceu, nem recebi qualquer
recado da parte dele.
Agora, querida amiga, nada mais tenho a acrescentar: eis-vos
instruída e conheceis o meu coração. A minha única esperança é de
que não tenha muito tempo para afligir a vossa delicada amizade.

Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Com certeza, senhor, que, depois do que ontem se passou, não


esperais voltar a ser recebido em minha casa, e com certeza que nem
sequer o desejais! Este bilhete é pois menos para vos pedir que não
volteis, do que para vos solicitar essas cartas que nunca deveriam ter
existido; e que, se puderam interessar-vos um momento, como provas
da cegueira que tínheis procurado fazer nascer, só poderão ser-vos
indiferentes agora que ela se dissipou, visto que exprimem um
sentimento que destruístes.
Reconheço e confesso que errei ao depositar em vós uma
confiança de que tantas outras antes de mim tinham sido vítimas; nisto
só tenho de me acusar a mim própria: mas julgava que pelo menos não
merecia ser abandonada por vós ao desprezo e ao insulto. Julgava
que, tendo-vos sacrificado tudo, e renunciando por vós aos direitos, à
estima dos outros e à minha própria, podia esperar todavia não ser
julgada por vós mais severamente que pelo público, cuja opinião
separa ainda, por um imenso intervalo, a mulher fraca da depravada.
Estes erros, que são os de toda a gente, são os únicos de que vos falo.
Calo os queixumes de amor; o vosso coração não compreenderia o
meu.
Adeus, senhor.

Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXVII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL


Acabam agora, senhora, de me entregar a vossa carta; tremi ao
lê-la, e mal me deixou forças para lhe responder. Que idéia horrível faz
de mim! Ah, sem dúvida tenho defeitos; e tais que nunca mos perdoarei
em toda a vida, mesmo que os cubrísseis com a vossa indulgência. Mas
os de que me acusais estiveram sempre bem longe da minha alma! O
quê, eu! humilhar-vos! Aviltar-vos! quando vos respeito tanto como vos
amo; quando só conheci o orgulho, no momento em que me julgastes
digno de vós. As aparências iludiram-vos; e confesso que eram contra
mim, mas não tínheis no coração o que bastava para as combater?
E ele não se revoltou só com a idéia de que poderia ter razões
para queixar-se do meu? Contudo acreditastes! Assim, não só me
julgastes capaz desse delírio atroz, mas haveis até receado ser vítima
dele em virtude das vossas bondades para comigo.
Ah, se vos julgais degradada a esse ponto pelo vosso amor, é
porque eu próprio sou aos vossos olhos bem vil!
Oprimido pelo sentimento doloroso que esta idéia me causa,
perco a afastá-la o tempo que devia empregar a destruí-la.
Confessarei tudo; ainda uma outra consideração me retém. É
então preciso recordar fatos que queria aniquilar, e fixar a vossa
atenção e a minha sobre um momento de erro que quereria resgatar
com o resto da minha vida, de que procuro ainda a causa, e cuja
lembrança deve fazer para sempre a minha humilhação e o meu
desespero? Ah, se acusando-me excito a vossa cólera, não tereis ao
menos que procurar longe a vingança; bastar-vos-á deixar-me entregue
aos meus remorsos.
E no entanto, quem acreditará? Este acontecimento teve como
causa primeira o poderoso encanto que sinto junto de vós. Foi ele que
me fez esquecer por tempo excessivo um assunto importante, que não
podia ser adiado. Deixei-vos demasiado tarde e não encontrei a pessoa
que procurava. Esperava avistá-la na Ópera, mas a minha tentativa foi
também baldada. Encontrei aí Emília, com quem me relacionei num
tempo em que estava bem longe de vos conhecer ou de conhecer o
amor; não tinha levado carruagem e pediu-me que a deixasse em
casa, bem perto dali. Não vi nenhum perigo nisso e acedi. Mas foi então
que vos encontrei; senti logo que seríeis levada a julgar-me culpado.
O temor de vos desagradar ou de vos afligir é tão forte em mim,
que deveria ser e foi com efeito logo notado. Confesso mesmo que me
levou a tentar evitar que a rapariga se mostrasse; este esforço de
delicadeza voltou-se afinal contra o amor. Habituada, como todas as
da sua espécie, a só se sentir segura dum prestígio sempre usurpado por
meio de abusos a que se atrevem, Emília não quis deixar escapar uma
ocasião tão retumbante.
Quanto mais via aumentar o meu embaraço, mais fazia por se
mostrar; e a sua louca alegria, de que coro que tenhais podido julgar-
vos objeto, tinha apenas por motivo a dor cruel que eu sentia, dor essa
proveniente ainda do meu respeito e do meu amor.
Até aqui sou sem dúvida mais infeliz do que culpado; e estes
erros, que são os de toda a gente, e os únicos de que me falais, estes
erros, não existindo, não me podem ser censurados. Mas calais em vão
os queixumes do amor; não poderei guardar sobre eles o mesmo
silêncio; um interesse demasiado vivo obriga-me a rompê-lo.
Não é que, na confusão em que fui lançado por este
inconcebível equívoco, possa, sem uma dor aguda, dedicar-me a
evocar lembranças. Compenetrado dos meus erros, consentirei em
suportar o castigo, ou esperarei com o tempo o perdão merecido pela
minha constante ternura e pelo meu arrependimento.
Mas como me poderei calar, quando o que me falta dizer é tão
importante para a sensibilidade de todo o vosso ser?
Não penseis que procuro um subterfúgio para desculpar ou
aliviar a minha falta; confesso que sou culpado. Mas não confesso, nem
confessarei nunca, que este erro humilhante possa ser encarado como
um ultraje feito ao amor. Oh, que pode haver de comum entre uma
surpresa dos sentidos, entre um momento de esquecimento de nós
próprios, logo seguido pela vergonha e pelo remorso, e um sentimento
puro, que só pode nascer numa alma delicada, manter-se pela
afeição, e ter como fruto a felicidade! Ah, não profaneis assim o amor!
Evitai sobretudo profanar-vos, reunindo no mesmo ponto de vista o que
nunca se pôde confundir. Deixai as mulheres vis e degradadas
recearem uma rivalidade que sentem que contra elas se pode
estabelecer, e sofrer os tormentos duma inveja igualmente cruel e
humilhante: mas vós! Afastai os olhos desses objetos que maculariam os
vossos olhares; e, pura como a Divindade, puni como ela a ofensa sem
a sentirdes.
Mas que pena me podereis impor que me seja mais dolorosa do
que a que sinto? Que possa ser comparada ao remorso de vos ter
desagradado, ao desespero de vos ter afligido, à idéia insuportável de
me ter tornado menos digno de vós? Procurais castigar-me! E eu peço-
vos consolações. Não porque as mereça, mas porque me são
necessárias, e só me podem vir de vós.
Se de repente, esquecendo o nosso amor deixando de dar valor
à minha felicidade, quiserdes pelo contrário arrastar-me para uma dor
eterna, tendes esse direito: feri; mas se, mais indulgente ou mais sensível,
vos lembrais ainda dos sentimentos tão ternos que uniam os nossos
corações; dessa voluptuosidade da alma, sempre renascente e de
cada vez mais vivamente sentida; desses dias tão doces, tão felizes que
cada um de nós deve ao outro; de todos esses bens do amor que só ele
pode dar; preferireis talvez fazê-los renascer a destruí-los. Que mais
poderei dizer? Perdi tudo, e por minha culpa, mas tudo posso reaver
pela vossa bondade. Compete-vos decidir agora.
Acrescento só uma palavra. Ainda ontem me juráveis que a
minha felicidade estava segura enquanto dependesse de vós! Ah!
senhora, abandonar-me-eis hoje a um desespero eterno?
Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Insisto, minha bela amiga: não estou apaixonado; e não tenho


culpa se as circunstâncias me forçam a representar esse papel. Basta
que consinta, e volte; verá com os seus próprios olhos como sou sincero.
Prestei ontem as minhas provas, e estas não podem ser anuladas pelo
que se passa.
Estava eu ontem em casa da meiga e pudica dama, e não
tinha mais nenhum assunto a tratar, porque a pequena Volanges,
apesar do seu estado prematuro, devia passar toda a noite no baile de
Madame V... A desocupação fizera-me desejar prolongar o encontro; e
exigira até para isso um pequeno sacrifício, mas apenas me fora
concedido, e já todo o prazer que esperava tinha sido perturbado pela
idéia desse amor que se obstina em atribuir-me; ou pelo menos em
censurar-me; de forma que só sentia o desejo de poder
simultaneamente certificar-me e convencê-la de que era da sua parte
pura calúnia.
Tomei então uma decisão violenta; e, alegando um pretexto
bastante inconsistente, abandonei a minha bela, algo surpreendida, e
sem dúvida bastante aflita. Eu, porém, fui tranquilamente ter com Emilia
à Ópera; e ela poder-lhe-ia contar que, até à manhã de hoje em que
nos separamos, nenhum remorso perturbou os nossos prazeres.
No entanto eu teria uma grande causa de inquietação, se a
minha perfeita indiferença me não tivesse salvo: imagine que estando a
uns quatro prédios de distância da Ópera, com Emília na minha
carruagem, veio a da austera devota arrumar-se exatamente ao lado
da minha, e a dificuldade de circulação deixou-no perto dum quarto
de hora ao lado um do outro. Via-se tão bem como se fosse meio-dia e
não havia maneira de escapar.
Mas não foi tudo; decidi dizer a Emília que se tratava da senhora
da carta. (Lembra-se talvez dessa loucura e de que Emília era a mesa.)
Ela, que o não tinha esquecido, e que é zombeteira, não descansou
enquanto não examinou à vontade esta virtude, como ela dizia, e isso
com grandes e irritantes gargalhadas.
Mas também ainda não foi tudo; pois a dama ciumenta não
mandou logo uma carta a minha casa nessa mesma noite? Eu não
estava, mas, na sua obstinação, tornou a mandar com ordem para me
esperarem. Eu, como estava decidido a ficar com Emília, mandara
embora a carruagem, com ordem ao cocheiro de voltar a buscar-me
esta manhã; e quando ao chegar encontrou o mensageiro do amor,
achou bem dizer-lhe simplesmente que eu já não regressava naquela
noite. Imaginará o efeito desta notícia; na volta encontrei-me
despedido com toda a dignidade que exigia a circunstância!
Assim esta aventura, que acha interminável, teria podido, como
vê, acabar esta manhã; se não acabou, não foi, como irá talvez
pensar, porque dê muito valor à continuação, mas antes porque, por
um lado, não achei decente deixar que outrem rompesse; e, por outro,
porque quis reservar-lhe a homenagem desse sacrifício.
Respondi pois ao severo bilhete com uma longa epístola
sentimental. Expus longas razões, e contei com o amor para as fazer
passar por boas. Êxito total. Acabo de receber um segundo bilhete,
ainda muito severo, que confirma a eterna ruptura, como é das regras;
mas já num tom diferente. Insiste em que não quer voltar a ver-me: essa
decisão é enunciada quatro vezes repetida da maneira mais
irrevogável. Concluí que não tinha um momento a perder para
aparecer. Enviei já o meu criado para entreter o porteiro; e dentro dum
momento irei eu próprio fazer assinar o meu perdão: porque nas
questões desta espécie, só há uma fórmula capaz de obter a
absolvição geral, e essa só se executa pessoalmente.
Adeus, minha encantadora amiga; parto para tentar este
grande golpe.

Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXIX

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Como me acuso, minha sensível amiga, por vos ter falado


demasiado, e demasiado cedo,de males passageiros! Sou a causa de
que vos aflijais neste momento; esses desgostos que vos vêm de mim
duram ainda, e eu sou já de novo feliz. Sim, tudo está esquecido,
perdoado; digamos antes sanado. Ao estado de dor e angústia
sucederam a calma e as delícias. Oh, alegria do meu coração, como
posso exprimir-vos! Valmont está inocente; não se é culpado quando se
ama tanto. Esses erros graves e ofensivos que eu lhe censurava com
tanta amargura, não os cometera; e se, num só ponto, precisei de
indulgência, não é certo que também eu tinha injustiças a serem
perdoadas?
Não vos falarei pormenorizadamente dos fatos ou das razões
que os justificam; talvez até o espírito os apreciasse mal, só ao coração
é que compete senti-los. Mas se me acusardes de fraqueza, chamarei a
vossa opinião para apoiar a minha. Em relação aos homens, vós própria
o dissestes, a infidelidade não é inconstância.
Não é que eu não sinta que esta distinção, aprovada pelo
consenso geral, fere ainda a delicadeza; mas de que se queixaria a
minha, quando a de Valmont sofre mais ainda? Esse erro que esqueço,
não penseis que ele o perdoe a si próprio ou se console; e no entanto,
já reparou bem essa ligeira falta pelo excesso do seu amor e da minha
felicidade!
Ou a minha felicidade é maior, ou aprecio-a mais desde que
receei tê-la perdido, mas o que vos posso dizer é que, se ainda me
sentisse com força para suportar desgostos tão cruéis como os que
acabo de sofrer, não julgaria pagar assim demasiado caro o acréscimo
de felicidade que depois saboreei. Oh, minha terna mãe! Repreendei a
esta vossa filha irrefletida por vos ter afligido com tanta precipitação;
ralhai-lhe por ter julgado temerariamente e caluniado aquele que ela
não devia cessar de adorar, mas ao mesmo tempo que a reconheceis
imprudente, contemplai-a feliz e aumentai-lhe a alegria
compartilhando-a.

Paris, noite de 16 de Novembro de 17* *.

CARTA CXL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Que se passa, minha bela amiga, que não recebo resposta sua?
A minha última carta parecia-me no entanto merecê-la; já há três dias
que a devia ter recebido e espero ainda! O menos que lhe posso dizer é
que estou zangado; deste modo nada lhe contarei das minhas
aventuras.
Acerca do belíssimo efeito da reconciliação; de ter dado lugar a
novas ternuras, em vez de censuras e desconfiança; de ser eu agora
quem recebe as desculpas e reparações devidas à minha candura
caluniada, nada lhe direi; e sem o acontecimento imprevisto da última
noite, nem sequer lhe escreveria. Mas como diz respeito à sua pupila, e
como naturalmente ela não estará capaz de lhe escrever durante
algum tempo, encarrego-me eu disso.
Por motivos que facilmente adivinhará ou não, de há uns dias
para cá que Madame de Tourvel não me podia ocupar o tempo; e
como essas razões não podiam existir na pequena Volanges, tornara-
me mais assíduo junto dela. Graças ao amável porteiro, não precisava
de vencer quaisquer obstáculos; e levávamos, a sua pupila e eu, uma
vida cômoda e regrada. Mas o hábito conduz à negligência; nos
primeiros dias, achávamos sempre as precauções insuficientes para a
nossa segurança; tremíamos ainda detrás dos ferrolhos. Ontem, uma
distração inacreditável causou o acidente que lhe quero contar; e se
pelo meu lado apanhei um susto, a donzela pagou mais caro.
Não dormíamos, mas estávamos no repouso e no abandono
que se seguem à voluptuosidade, quando ouvimos a porta do quarto
abrir-se de repente. Agarrei logo a espada, tanto para minha defesa
como para da nossa comum pupila: avancei e não vi ninguém, mas
com efeito a porta estava aberta. Como tínhamos luz, fiz uma busca,
mas não encontrei vivalma. Lembrei-me então que nos esquecêramos
das precauções habituais; e que a porta, apenas encostada, ou mal
fechada, se abrira por si própria.
Voltei para me juntar à minha tímida companheira e tranqüilizá-
la, mas não a encontrei no leito; caíra ou tentara esconder-se na
alcova: enfim, estava desmaiada e sem outro movimento a não ser
fortes convulsões. Imagine o meu embaraço!
Ainda consegui deitá-la na cama, e até fazê-la voltar a si, mas
ferira-se na queda, e as conseqüências não tardaram.
Dores de rins e cólicas violentas, outros sintomas ainda menos
equívocos, depressa me esclareceram quanto ao seu estado, mas, para
a elucidar, foi preciso revelar-lhe primeiro que se encontrava grávida;
porque não fazia a mínima idéia. Nunca ninguém, antes desta
pequena, conservou tanta inocência, fazendo ao mesmo tempo tão
bem tudo o que é preciso para se desfazer dela! Oh, esta não perde
tempo a refletir!
Mas lamentava-se e vi que era preciso tomar uma decisão.
Ficou então combinado que eu iria imediatamente ao médico e
ao cirurgião da casa, e que os preveniria de que alguém os viria buscar,
contando-lhes tudo, sob segredo; que ela, por seu lado, chamaria a
criada de quarto logo que eu saísse; que lhe confidenciaria tudo ou
não, como quisesse; mas que a mandaria buscar socorro, e proibiria
sobretudo que acordassem Madame de Volanges, delicada e natural
atenção duma filha que teme inquietar a mãe.
Fiz as duas diligências e as duas confissões o mais depressa que
pude, e voltei para casa, donde não saí ainda, mas o cirurgião, que eu
aliás já conhecia, veio ao meio-dia relatar-me o estado da doente. Não
me enganara; mas ele espera que, se não sobrevier qualquer
complicação, ninguém lá em casa dará por nada. A criada de quarto
está no segredo; o médico deu um nome à doença; e este assunto
arrumar-se-á como milhares de outros, a não ser que mais tarde nos
possa ser útil que dele se fale.
Mas haverá ainda interesses comuns entre a minha amiga e eu?
O seu silêncio deixa-me dúvidas; já nem acreditaria nisso, se o meu
desejo não procurasse a todo o custo manter-me a esperança.
Adeus, minha bela amiga: beijo-a, mal-grado o seu rancor.

Paris, 21 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT


Meu Deus! Visconde, como me maça com a sua obstinação!
Que lhe importa o meu silêncio? Pensa talvez que o mantenho
por falta de razões para me defender? Ah! Prouvera a Deus!
Mas não, é antes porque me custa dizer-lhas.
Fale-me francamente; ilude-se a si próprio ou procura enganar-
me?
A diferença entre as suas palavras e ações deixa-me hesitar
apenas entre esses dois sentimentos: qual é o verdadeiro?
Que quer que lhe diga, quando eu própria não sei que pensar?
Parece que dá grande valor à sua última cena com a
Presidente; mas o que é que ela prova a favor da sua opinião e contra
a minha? Com certeza que eu lhe não disse que amava essa mulher o
bastante para não a enganar, para não aproveitar todas as ocasiões
que lhe parecessem agradáveis ou fáceis; nem sequer duvido de que
para si seja quase a mesma coisa satisfazer com outra, com a primeira
que apareça, os desejos que aquela lhe tem feito nascer; e nem sequer
me surpreende que, por uma libertinagem de espírito que é inútil negar-
lhe, tenha uma vez feito por deliberação o que fez mil outras por
acidente. Quem sabe se isso não é moda do tempo, e o que fazem
todos, desde o perverso ao mais idiota dos inocentes? Hoje o que se
abstém passa por romanesco, e não é esse, parece-me, o defeito de
que o acuso.
Mas o que disse, o que pensei, o que penso ainda é que nem
por isso deixa de amar a Presidente; não, com certeza, com um amor
puro e terno, mas com o que lhe é dado sentir; com aquele que faz, por
exemplo, ver numa mulher atrativos ou qualidades que ela não tem;
que a coloca num lugar à parte, e todas as outras abaixo; que o
conserva preso a ela, mesmo quando a ultraja; tal como um sultão
pode sentir pela favorita, o que não o impede de preferir muitas vezes
uma simples odalisca. Esta comparação parece-me tanto mais certa,
quanto é verdade que, tal como ele, o Visconde nunca é nem o amigo,
nem o amante duma mulher; mas sempre ou o seu tirano ou o seu
escravo. Por isso estou bem certa que se humilhou e aviltou, para voltar
a estar nas graças desse belo objeto! E demasiado feliz por tê-lo
conseguido, assim que julgou chegado o momento de obter o perdão,
deixa-me por virtude desse grande acontecimento.
Ainda na sua última carta, se me não fala unicamente dessa
mulher, é porque nada me quer dizer das suas grandes aventuras; são
para si tão importantes, que julga o silêncio que faz sobre elas uma
punição para mim. E é depois de mil provas da sua acentuada
preferência por uma outra, que me pergunta tranquilamente se há
ainda interesses comuns entre nós! Tome cuidado, Visconde! Quando
eu responder, a minha resposta será irrevogável; e recear pronunciá-la
neste momento é já talvez esclarecer demasiado. Deste modo, não
quero falar nisso.
O mais que posso fazer é contar-lhe uma história. Não terá talvez
tempo para a ler, ou para lhe prestar a necessária atenção?
Isso é consigo. Será afinal, supondo o pior, apenas uma história
deitada ao mar.
Um dos meus conhecidos tinha-se deixado prender, tal como o
meu amigo, por uma mulher que não estava à sua altura.
Mas ao mesmo tempo tinha a lucidez de ver que, mais tarde ou
mais cedo, aquela aventura o prejudicaria; e corava de vergonha por
não ter coragem para romper. O seu embaraço era tanto maior,
quanto se gabara aos amigos de se manter inteiramente livre; e não
ignorava que o ridículo aumenta à medida que procuramos fugir-lhe.
Passava assim a vida a fazer tolices e a dizer depois: não tenho culpa.
Este homem tinha uma amiga que por um momento esteve tentada a
revelá-lo a todos nesse estado de embriaguez, e a tornar assim o seu
ridículo perpétuo, mas, mais generosa do que maliciosa, ou talvez por
qualquer outro motivo, quis tentar um último recurso, para poder, em
qualquer caso, dizer como o amigo: não tenho culpa. Remeteu-lhe
então, sem mais palavra, a carta que segue, como um remédio cujo
uso poderia ser útil para debelar o mal.
"De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza;
não tenho culpa.
Se agora me aborreço duma aventura que me ocupou
inteiramente durante quatro longos meses, não tenho culpa.
Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito, não é
para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que a outra.
Não tenho culpa.
Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas
também a tua implacável ternura a isso me obrigava! Não tenho culpa.
Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique.
Não tenho culpa.
Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares
perjuro, mas se a natureza concedeu aos homens apenas a constância,
e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa.
Crê-me; tal como eu, escolhe outro amante. Este conselho é
bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa.
Adeus, meu amigo, tive-te com prazer, deixo-te sem pena; talvez
volte ainda. É assim o mundo. Não tenho culpa. "
Não é o momento para lhe dizer, Visconde, o efeito desta última
tentativa, e o que se lhe seguiu, mas prometo que lho direi na próxima
carta. Nela encontrará também o ultimatum sobre a renovação do
tratado que me propõe. Até lá, simplesmente adeus...
A propósito, agradeço-lhe todos os pormenores sobre a
pequena Volanges; é um artigo que se deve guardar até ao dia
seguinte ao casamento, para a gazeta de maledicência. Entretanto,
apresento-lhe os meus pêsames pela perda da sua descendência.
Boa noite, Visconde.
Castelo de..., 24 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Palavra, minha bela amiga, não sei se li mal ou se não


compreendi a sua carta, a história que me narra e o modelo epistolar
que continha. O que lhe posso dizer, é que este último me pareceu
original e próprio para o efeito, por isso copiei-o simplesmente e, mais
simplesmente ainda, enviei-o à celestial Presidente.
Não perdi um momento, pois enviei ontem à tarde a terna
missiva. Preferi assim, em primeiro lugar porque prometera com efeito
escrever-lhe ontem; e também porque pensei que toda a noite não
seria demais para ela se recolher e meditar sobre esse grande
acontecimento, mesmo que pela segunda vez me censure a expressão.
Esperava poder enviar-lhe esta manhã a resposta da minha
bem-amada, mas é quase meio-dia e ainda nada recebi. Esperarei até
às três horas, e se até então não tiver notícias, irei eu próprio procurá-las;
porque, quando se trata de decisões, só o primeiro passo é que custa.
Agora, como pode imaginar, estou ansioso por saber o fim da
história desse seu conhecido, tão cruelmente suspeitado de não saber,
em caso de necessidade, sacrificar uma mulher. Ter-se-á corrigido? E a
generosa amiga ter-lhe-á perdoado?
Anseio também por receber o seu ultimatum: como diz tão
politicamente! Tenho curiosidade em saber se, mesmo nesta última
diligência, ainda encontrará amor. Oh, sem dúvida, há, e muito! Mas
por quem? No entanto, não quero pôr nada em realce, e espero tudo
da sua bondade.
Adeus, minha encantadora amiga; só fecharei esta carta às
duas horas, na esperança de lhe poder juntar a desejada resposta.
Duas horas da tarde. Não veio nada, o tempo urge; só posso
acrescentar uma palavra: recusar-me-á ainda desta vez os ternos beijos
de amor?

Paris, 27 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MEDAME DE ROSEMONDE

Minha senhora, despedaçou-se o véu em que estava pintada a


ilusão da minha felicidade. A funesta verdade alumia-me, e só me
deixa esperar uma morte certa e próxima, cujo caminho está traçado
entre a vergonha e o remorso. Segui-la-ei e bendirei os meus tormentos
se eles me abreviarem a existência. Envio-vos a carta que ontem recebi;
não acrescentarei nenhuma reflexão, não o necessita. Não é já altura
para queixas, resta-me sofrer.
Não preciso de piedade, mas de força.
Recebei pois, minha senhora, o meu único adeus, e atendei o
meu último pedido; é que me deixeis entregue à minha sorte, que me
esqueçais inteiramente, que não conteis mais comigo.
Há um limite na infelicidade, para além do qual até a própria
amizade aumenta os sofrimentos e não os pode sarar. Quando as
feridas são mortais, todo o socorro se torna desumano. Qualquer
sentimento que não seja o desespero me é alheio. Nada me pode
convir mais do que a noite profunda em que vou ocultar a minha
vergonha. Chorarei as minhas faltas, se é que ainda posso chorar, pois
desde ontem que não deito uma lágrima. O meu coração seco já as
não consente.
Adeus, minha senhora. Não deveis responder-me. Jurei sobre
essa carta cruel que não receberia mais nenhuma outra.

Paris, 27 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Minha bela amiga, ontem às cinco horas da tarde, impaciente


por não ter notícias, apresentei-me em casa da bela abandonada;
disseram-me que saíra. Vi, nesta frase, uma recusa de me receber que
me não zangou, nem surpreendeu; e retirei-me, na esperança de que
esta diligência da minha parte levaria pelo menos uma dama tão
educada a honrar-me com uma palavra de resposta. O desejo que
tinha de a receber fez-me passar de propósito por minha casa por volta
das nove horas, mas nada encontrei.
Espantado com este silêncio, que não esperava, encarreguei o
meu criado de ir buscar informações, e saber se a sensível criatura
estava morta ou moribunda. Enfim, quando voltei informou-me que
Madame de Tourvel saíra de fato, às onze horas da manhã, com a
criada de quarto; que mandara seguir para o convento de..., e que às
sete da tarde reenviara a carruagem e os criados, dizendo que a não
esperassem em casa. Evidentemente, tomou a grande decisão. O
convento é o refúgio próprio para uma viúva; e se persiste numa tão
louvável resolução, acrescentarei, a todas as obrigações que já lhe
devo, a da celebridade que vai ter esta aventura.
Bem lhe dizia, há já algum tempo, que, apesar das suas
inquietações, eu reapareceria na sociedade brilhando com um novo
esplendor. Que se mostrem, pois, esses críticos severos, que me
acusavam dum amor romanesco e infeliz; que façam rupturas mais
rápidas e mais brilhantes, ou antes, exijo melhor: que se apresentem
como consoladores, o caminho está-lhes aberto. Pois bem! Que ousem
tentar a carreira que percorri até ao fim; e se um deles obtiver o mínimo
êxito, cedo-lhe o primeiro lugar. Mas todos sentirão que, quando me
emprego a fundo, a impressão que deixo é inapagável. Ah! Esta sê-lo-á,
sem dúvida; e deixarei de me vangloriar de todos os meus outros
triunfos, se algum dia tiver junto desta mulher um rival preferido.
Concordo que esta decisão que ela tomou lisonjeia o meu
amor-próprio; mas custa-me que ela tenha encontrado em si força
suficiente para se separar de mim. Não haverá pois, entre nós ambos,
outros obstáculos além dos que eu próprio coloquei!
O quê! Se eu ansiasse pela reconciliação, ela poderia não a
querer; que digo? Não a desejar, não a considerar a suprema
felicidade!
E então é assim que se ama! Acha, minha bela amiga, que devo
permitir isto? Não poderei eu, e não seria preferível tentar conduzir de
novo esta mulher a encarar a possibilidade de uma reconciliação, tão
desejada quanto esperada? Poderia tentar esta diligência sem lhe
atribuir qualquer importância; e, deste modo, sem que representasse
qualquer menosprezo em relação a si. Seria, pelo contrário, uma simples
experiência que tentaríamos de acordo; e mesmo que obtivesse êxito,
seria um processo de renovar, à sua vontade, um sacrifício que lhe deve
ter sido agradável. Agora, minha bela amiga, resta-me receber o
prémio, e faço votos pelo seu regresso. Volte depressa para reencontrar
o seu amante, os seus prazeres, os seus amigos, e a continuação das
aventuras.
A da pequena Volanges correu maravilhosamente. Ontem
como a minha inquietação me não permitia permanecer em lado
nenhum, passei, nas minhas diversas saídas, pela casa de Madame de
Volanges. Encontrei a sua pupila já no salão, ainda com trajos de
doente, mas em plena convalescença, e cada vez mais fresca e
interessante. Vós, mulheres, num tal caso, ficaríeis um mês num sofá:
palavra, vivam as raparigas! Esta, na verdade, deu-me desejo de me
certificar se a cura fora perfeita!
Devo ainda dizer-lhe que este acidente da menina quase tornou
louco o seu sentimental Danceny. Primeiro de desgosto; hoje de alegria.
A sua Cecília estava doente! Como deve imaginar, a cabeça anda à
volta com uma tal desgraça. Três vezes por dia mandava saber notícias,
e não deixava passar nem um sem se apresentar ele próprio; enfim
pediu, numa bela missiva à mãe, licença para a ir felicitar pela
convalescença dum ente tão querido; Madame de Volanges
consentiu; de modo que encontrei o rapaz instalado como noutro
tempo, apenas com um pouco mais de familiaridade que ele não
ousava ainda permitir-se.
Foi mesmo por ele que soube pormenores; porque saímos ao
mesmo tempo e o fiz tagarelar. Não imagina o efeito que esta visita lhe
causou. Uma alegria, desejos e transportes impossíveis de exprimir. Eu,
que gosto das grandes iniciativas, acabei de lhe fazer perder a cabeça,
garantindo-lhe que dentro de poucos dias lhe arranjaria maneira de ver
ainda de mais perto a sua bela.
Estou, de fato, decidido a entregar-lha, logo que faça a minha
experiência. Quero consagrar-me inteiramente a si; e depois valeria a
pena que a sua pupila fosse também minha aluna, se não soubesse
enganar senão o marido? A obra-prima é que engane também o
amante, e sobretudo o seu primeiro amante; porque eu, por mim, não
tenho que me acusar de alguma vez ter pronunciado a palavra amor.
Adeus, minha bela amiga; volte logo que possa para gozar do
seu poder sobre mim, receber as homenagens e pagar-me o prémio.

Paris, 28 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Seriamente, Visconde, abandonou a Presidente? Enviou-lhe a


carta que redigi para ela? É na verdade encantador; e ultrapassou as
minhas esperanças! Confesso com sinceridade que esse triunfo me
lisonjeia mais do que todos os que até agora tenho obtido. Achará
talvez que avalio muito alto essa mulher, que antes apreciava tão
pouco; nada disso; é que não foi sobre ela que alcancei esta vitória; foi
sobre o Visconde. Eis o que me diverte, e que é verdadeiramente
delicioso.
Sim, Visconde, sei que amava muito Madame de Tourvel e que a
ama ainda; ama-a como um louco, mas porque eu me divertia a
envergonhá-lo, sacrificou-a corajosamente. Teria sacrificado mil para
não ser vítima dum gracejo. Ao que nos conduz a vaidade! Le Sage tem
razão quando diz que ela é inimiga da felicidade.
Como ficaria agora, se eu tivesse querido apenas pregar-lhe
uma partida? Mas sou incapaz de enganar, bem o sabe; e mesmo que,
por minha vez, ficasse agora reduzida ao desespero e ao convento,
corro todos os riscos, e entrego-me ao vencedor.
No entanto, se capitulo é por pura fraqueza; porque, se eu
quisesse, quantas brincadeiras não teria ainda para fazer! E talvez o
Visconde o merecesse! Admiro, por exemplo, a sutileza ou a falta de
jeito com que docemente me propõe que o deixe reconciliar-se com a
Presidente. Convinha-lhe muito, não é assim, vangloriar-se dessa ruptura
sem perder os prazeres da posse?
E como então esse aparente sacrifício nada significaria para si,
oferece-se para o renovar segundo a minha vontade! Por esta infeliz
combinação, a celeste devota julgar-se-ia sempre a única eleita do seu
coração, enquanto eu me orgulharia de ser a rival preferida; seríamos
ambas enganadas, mas o meu amigo estaria contente, e o resto que
importa?
É pena que com tanto talento para os projetos, tenha tão pouco
para a execução; e que por uma só diligência inconsiderada tenha
levantado um obstáculo invencível ao que mais deseja.
O quê! Tinha a idéia de tentar uma reconciliação e ousou
escrevê-lo na minha carta! Supôs-me inábil a esse ponto! Creia-me,
Visconde, quando uma mulher quer ferir o coração de outra, raramente
deixa de encontrar o ponto mais sensível, e o ferimento é incurável.
Enquanto feria esta, ou antes, dirigia os seus golpes, não esqueci que
esta mulher era minha rival, que por um momento a preferiu a mim, e
que enfim me colocara abaixo dela. Se falhei na vingança, consinto em
pagar o erro.
Por isso, Visconde, acho que deve tentar todos os meios; insisto
mesmo, e prometo não me aborrecer com o seu êxito, se o alcançar.
Estou tão descansada a este respeito que nem penso mais nisso.
Falemos doutra coisa. Por exemplo, da saúde da pequena Volanges.
Dar-me-á notícias seguras no meu regresso, não é verdade? Muito
estimarei recebê-las. Depois disso, compete-lhe a si decidir do que mais
convirá: entregar a menina ao namorado, ou tentar ser pela segunda
vez o fundador dum novo ramo dos Valmont, sob o nome de Gercourt.
Esta idéia diverte-me muito; deixo-lhe a escolha, mas peço-lhe que não
tome uma decisão definitiva sem que conversemos ambos. Não se trata
de adiar uma data longínqua, porque brevemente estarei em Paris. Não
lhe posso dizer precisamente o dia; mas tenho a certeza que, logo que
eu chegue, será o primeiro a ser informado.
Adeus, Visconde; apesar das minhas disputas, partidas e
censuras, amo-o sempre muito, e preparo-me para lho provar.
Até à vista, meu amigo.

Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Parto enfim, meu jovem amigo, e amanhã à tarde estarei de


volta a Paris. No meio de toda a confusão que acarreta uma viagem,
não receberei ninguém. No entanto, se tiverdes alguma confidência
urgente a fazer-me, abrirei uma exceção à regra geral; mas só para vós;
por isso, peço-vos segredo da minha chegada. O próprio Valmont não
será informado.
Se alguém me tivesse dito, há uns tempos atrás, que dentro em
pouco teríeis a minha exclusiva confiança, não o acreditaria.
Mas a vossa foi a causa da minha. Quase estou tentada a
acreditar que usastes de muita habilidade, direi mesmo sedução. E isso
seria muito mal! Todavia não seria perigosa agora; tendes de fato mais
com que vos ocupar! Quando a heroína está em cena, esquece-se a
confidente.
Por isso não tivestes tempo de me contar os vossos últimos
triunfos. Quando a vossa Cecília estava ausente, o tempo não chegava
para escutar as vossas ternas queixas. Tê-las-íeis feito para o eco, se não
existisse eu para as escutar. Quando, depois, ela esteve doente, ainda
fui honrada com o relato das vossas inquietações, tínheis necessidade
de alguém a quem as contar.
Mas agora que ela está em Paris, que recuperou a saúde, e
sobretudo que a vedes às vezes, ela basta-vos, e os vossos amigos já
não valem nada.
Não vos repreendo; a culpa é dos vossos vinte anos. Desde
Alcibíades até vós, não sabemos já que os jovens só recorrem à
amizade nos desgostos de amor? A felicidade torna-os às vezes
indiscretos, mas jamais confidentes. Direi tal como Sócrates: gosto que
os meus amigos venham até mim, quando se sentem felizes, mas, na
sua qualidade de filósofo, passava bem sem eles quando não
apareciam. Nisso, não sou tão sensata como ele, e senti o vosso silêncio
com toda a fraqueza duma mulher.
Não penseis que sou exigente: estou muito longe de o ser! O
mesmo sentimento que me leva a notar estas privações faz com que as
suporte com coragem, quando são a causa ou a prova da felicidade
dos meus amigos. Conto convosco amanhã à tarde, contanto que o
amor vos deixe livre e desocupado: proíbo-vos de me fazerdes o mínimo
sacrifício.
Adeus, Cavaleiro; terei muito prazer em ver-vos: vireis?

Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLVII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis certamente tão aflita como eu, minha digna amiga,


quando souberdes do estado em que se encontra Madame de Tourvel;
está doente desde ontem; a doença atacou-a profundamente, e
apresenta sintomas tão graves que estou verdadeiramente alarmada.
Uma febre ardente, um delírio violento e quase contínuo, uma
sede que se não sacia nunca, eis tudo o que se observa. Os médicos
dizem que não podem diagnosticar ainda; e o tratamento será tanto
mais difícil quanto é certo que a doente recusa com obstinação toda a
espécie de remédios; a ponto que foi preciso agarrá-la para a sangrar;
e de duas outras vezes foi necessário usar do mesmo processo para lhe
tornar a pôr a ligadura, que ela pretendia arrancar no meio do delírio.
Vós que a conhecestes como eu, tão fraca, tão tímida e tão
doce, podereis imaginar que quatro pessoas mal a possam conter, e
que logo que lhe tentem falar razoavelmente se lance numa ira
inexprimível? Por mim, creio que não seja mais do que delírio, e que não
se trate duma verdadeira alienação do espírito.
O que aumenta os meus receios a esse respeito é o que se
passou anteontem.
Nesse dia, ela chegou pelas 11 horas da manhã, com a criada
de quarto, ao convento de... Como foi educada nessa casa e
conservou o hábito de aí voltar às vezes, foi recebida como
habitualmente, e pareceu a todos tranqüila e de boa saúde.
Aproximadamente duas horas depois, perguntou se o quarto que
ocupara quando era pensionista estava vago, e como lhe
respondessem que sim, pediu para o ir ver; a superiora e outras religiosas
acompanharam-na. Foi então que declarou que voltava a viver nesse
quarto, que, afirmava, nunca deveria ter abandonado; e donde só
sairia por morte; foram as palavras dela.
Primeiro ninguém soube que dizer; mas, passado o primeiro
espanto, expuseram-lhe que o seu estado de mulher casada não
autorizava a que a recebessem sem permissão especial. Nem essa
razão, nem mil outras conseguiriam nada; e a partir desse momento
obstinou-se, não só a não sair do convento, mas até a não deixar o
quarto. Enfim, impotentes, às sete horas da tarde, consentiram que
passasse lá a noite. Mandaram embora as carruagens e os criados, e
adiaram para o dia seguinte a decisão.
Certificam que durante o serão o seu ar e porte nada tinham de
alucinados, ambos eram modestos e refletidos; apenas caiu quatro ou
cinco vezes num cismar tão profundo que não conseguiram despertá-la
falando-lhe; e que, cada vez que saía dele, levava as mãos à fronte
como se a apertasse com força; e por isso, como uma das religiosas
presentes lhe perguntasse se lhe doía a cabeça, olhou-a longamente
antes de responder, e disse por fim: "Não é aí que está o mal!" Um
momento depois pediu que a deixassem só, e que de futuro lhe não
fizessem mais perguntas.
Toda a gente se retirou, exceto a criada de quarto, que
felizmente devia dormir no mesmo quarto que a senhora, por falta de
lugar.
Conforme a narração da rapariga, a ama esteve muito tranqüila
até às onze da noite. Disse então que se queria deitar, mas, antes de
estar completamente despida, pôs-se a andar pelo quarto, com muitos
movimentos e gestos. Júlia, que fora testemunha de tudo o que se
passara durante o dia, não ousou dizer nada e esperou em silêncio
durante perto de uma hora. Por fim, Madame de Tourvel chamou-a
duas vezes seguidas; só teve tempo de acudir, e a senhora caiu-lhe nos
braços dizendo: "Não posso mais." Deixou-se conduzir até ao leito, mas
não quis tomar nada, nem que alguém fosse buscar socorro. Mandou
somente pôr água perto dela, e ordenou a Júlia que se deitasse.
Esta assegura que esteve sem dormir até às duas da manhã, e
que não ouviu, durante esse tempo, nem movimentos nem queixas. Mas
afirma que foi acordada às cinco horas pelo delírio da ama, que falava
em voz alta e forte; e que tendo-lhe então perguntado se não
precisava de nada, e não obtendo resposta, acendeu o castiçal e foi
ao leito de Madame de Tourvel, que a não reconheceu; mas que,
interrompendo de repente a conversação sem seguimento que ia
discorrendo, gritou vivamente: "Deixem-me só, deixem-me nas trevas;
são as trevas que me convêm." Eu própria notei ontem que esta frase
lhe volta muitas vezes.
Enfim, Júlia aproveitou-se desta ordem para sair e ir procurar
gente e socorro, mas Madame de Tourvel recusou ambos, com iras e
delírios que depois se repetiram frequentemente.
A confusão em que isto fez mergulhar o convento decidiu a
superiora a mandar procurar-me ontem às sete da manhã...
Ainda não era dia. Acudi imediatamente. Quando me
anunciaram a Madame de Tourvel, pareceu retomar o conhecimento,
e respondeu: "Ah, sim, que entre." E assim que me aproximei do leito,
olhou-me fixamente, tomou-me a mão, que apertou, e disse com voz
forte, mas triste: "Morro por vos não ter acreditado." Mas logo em
seguida, escondendo os olhos, voltou à sua frase mais freqüente:
"Deixem-me só, etc."; e perdeu por completo o conhecimento.
Estas palavras que me dirigiu, e ainda outras que deixou escapar
no seu delírio, fazem-me temer que esta cruel doença tenha uma causa
mais cruel ainda. Mas respeitemos os segredos da nossa amiga, e
limitemo-nos a lastimar a sua infelicidade.
Todo o dia de ontem foi muito agitado, e dividido entre
aterradores acessos de delírio e momentos de abatimento letárgico, os
únicos em que tem e dá algum repouso. Deixei a sua cabeceira só às
nove da noite, e voltarei esta manhã para todo o dia. Claro que não
abandonarei a minha amiga tão infeliz; mas o que é desolador é a
obstinação dela em recusar todos os cuidados e socorros.
Envio-vos o boletim desta noite, que acabo de receber, e que,
como vereis, é um pouco consolador. Terei o cuidado de vos trazer
inteiramente a par de tudo.
Adeus, minha digna amiga, vou para junto da doente. A minha
filha, que felizmente está quase inteiramente restabelecida,
cumprimenta-vos.

Paris, 29 de Novembro de 17* *.


CARTA CXLVIII

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Ó vós que eu amo! Ó tu que eu adoro! vós que fizestes a minha


felicidade! Tu que a cumulaste! Amiga sensível, terna amante, por que é
que a lembrança da tua dor vem perturbar o encanto que
experimento? Ah! acalmai-vos, é a amizade que vo-lo roga. Oh! minha
amiga, sede feliz! É a súplica do amor.
Ah! Que censuras tendes a fazer-vos? Crede-me, a vossa
delicadeza engana-vos. Os remorsos que vos causa, os erros de que me
acusa, são igualmente ilusórios; e sinto no meu coração que houve
entre nós um sedutor único: o amor. Não temas entregar-te aos
sentimentos que inspiras, deixar-te penetrar pelo fogo que fazes nascer.
O quê! Seriam os nossos corações menos puros por só tarde terem sido
esclarecidos? Não, com certeza. É só a sedução que, agindo sempre
com um fim, pode combinar a marcha e os meios, e prever de longe os
acontecimentos. Mas o verdadeiro amor não permite meditar e refletir;
afasta-nos dos projetos por meio dos sentimentos; o seu poder é tanto
mais forte quanto nos é desconhecido, e é na sombra do silêncio que
nos prende por laços que são impossíveis de conhecer ou de romper.
Deste modo, ainda ontem, apesar da viva emoção que me
causava a idéia do vosso regresso, do prazer intenso que senti ao ver-
vos, julgava no entanto ser chamado e conduzido apenas pela
tranqüila amizade, ou antes, inteiramente entregue aos doces
sentimentos do meu coração, bem pouco me preocupava em
esclarecer-lhes a origem ou a causa. Tal como eu, minha terna amiga,
também tu sentias, sem o saber, esse encanto poderoso que entregava
as nossas almas às doces impressões da ternura; e ambos só
reconhecemos o amor ao sair da embriaguez em que esse deus nos
mergulhara.
Mas é isso que nos justifica em vez de nos condenar. Não, não
traíste a amizade, nem eu abusei da tua confiança. Ambos, é certo,
ignorávamos os nossos sentimentos; mas essa ilusão experimentávamo-
la apenas, não a procurávamos fazer nascer.
Ah, em vez de a lamentarmos, pensemos na felicidade que nos
trouxe; e sem a perturbarmos com injustas censuras, dediquemo-nos
antes a aumentá-la ainda com o encanto da confiança é da
segurança. Oh, minha amiga! Como esta esperança é cara ao meu
coração! Sim, de ora em diante, livre de todo o temor, inteiramente
dada ao amor, partilharás os meus desejos, os meus êxtases, o delírio
dos meus sentidos, a embriaguez da minha alma; e cada instante dos
nossos dias afortunados será assinalado por uma nova voluptuosidade.
Adeus, adoro-te! Ver-te-ei esta tarde, mas encontrar-te-ei só?
Não ouso esperá-lo. Ah! Tu não o desejas tanto como eu.

Paris, 1 de Dezembro de 17* *.

CARTA CXLIX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ontem durante todo o dia tive esperanças, minha digna amiga,


de vos poder dar esta manhã notícias mais favoráveis da saúde da
nossa querida doente; mas desde ontem à tarde que essa esperança
foi destruída, e só me resta a pena de a ter perdido.
Um acontecimento, bem indiferente na aparência, mas bem
cruel pelas conseqüências que teve, tornou o estado da doente tão
lastimável como antes, se é que o não agravou.
Nada teria compreendido desta súbita transformação, se ontem
não tivesse recebido as confidências da nossa infeliz amiga.
Como ela me não deixou ignorar que também estáveis
informada de todos os seus infortúnios, posso falar sem reserva sobre a
sua triste situação.
Ontem de manhã, quando cheguei ao convento, disseram-me
que a doente dormia há mais de três horas; e o sono era tão profundo e
tranqüilo, que por um momento receei que fosse letárgico.
Algum tempo depois acordou, e abriu ela própria as cortinas do
leito. Olhou-nos a todos surpreendida; e quando me levantei para ir
junto dela, reconheceu-me, chamou-me e pediu-me que me
aproximasse. Não me deu tempo para a interrogar, e perguntou-me
onde estava, o que fazíamos ali, se estava doente e por que não se
encontrava em casa. Primeiro pensei que se tratava dum novo delírio,
embora mais tranqüilo que o precedente, mas vi que ela compreendia
muito bem as minhas respostas. Tinha com efeito recuperado a razão,
mas não a memória.
Interrogou-me, com muitos pormenores, sobre tudo o que lhe
acontecera desde que chegara ao convento, para onde não se
lembrava de ter vindo. Respondi com exatidão, suprimindo apenas o
que teria podido assustá-la, e quando pelo meu lado lhe perguntei
como estava, respondeu-me que não sofria nesse momento; mas que
tinha sido muito atormentada durante o sono, e que ainda se sentia
fatigada. Exortei-a a acalmar-se e a falar pouco; depois disto, fechei
em parte as cortinas, que deixei somente entreabertas, e sentei-me
perto do leito. Ao mesmo tempo, ofereceram-lhe um caldo que tomou
e achou bom.
Ficou assim cerca de meia hora, durante a qual não falou senão
para agradecer os cuidados que eu lhe dispensara; e pôs nos
agradecimentos a gentileza e a graça que lhe conheceis. Em seguida
guardou durante algum tempo um absoluto silêncio, que só rompeu
para dizer: "Ah, sim, lembro-me de aqui ter vindo"; e um momento
depois, gritou dolorosamente: "Minha amiga, minha amiga, lamentai-
me; reencontro os meus infortúnios." Como nesse momento me
aproximei dela, agarrou-me na mão e, apoiando nela a cabeça,
continuou: "Grande Deus, não poderei então morrer?" A sua expressão,
mais ainda que as palavras, enterneceu-me até às lágrimas;
compreendeu-o pela minha voz, e disse-me: "Lamentais-me! Ah, se
soubésseis..." E depois interrompendo-se: "Ordenai que nos deixem sós, e
dir-vos-ei tudo. "
Tal como julgo ter-vos indicado, tinha já suspeitas sobre qual
deveria ser o assunto desta confidência; e temendo que esta conversa,
que previa dever ser longa e triste, prejudicasse o estado da nossa infeliz
amiga, recusei-me a princípio, sob o pretexto de que ela necessitava
de repouso, mas insistiu e acedi às suas instâncias. Assim que ficamos
sós, contou-me tudo o que já vos narrou, e que por essa razão vos não
repetirei.
Falou-me enfim da maneira cruel como foi sacrificada e
acrescentou: "Estava certa de que morreria por causa disso e tinha
coragem; mas sobreviver ao infortúnio e à vergonha, é-me impossível."
Tentei combater este desânimo, ou antes, este desespero, com as
armas da religião, até então com tanto poder sobre ela; mas senti logo
que não tinha força suficiente para essas augustas funções, e propus-
lhe então que se chamasse o padre Anselmo, que sei ser depositário de
toda a sua confiança.
Consentiu e pareceu mesmo desejá-lo muito. Mandamos com
efeito buscá-lo, e ele veio imediatamente. Permaneceu muito tempo
com a doente, e disse ao sair que, se os médicos pensassem como ele,
julgava poder adiar a cerimônia dos sacramentos, e que voltaria no dia
seguinte.
Eram cerca das três horas da tarde, e até às cinco a nossa
amiga esteve muito tranqüila, de modo que todos voltáramos a ter
esperança. Por desgraça, trouxeram-lhe então uma carta.
Quando pretenderam entregar-lha, respondeu não querer
receber nenhuma e ninguém insistiu. Mas a partir desse momento, ficou
muito agitada. Pouco depois, perguntou donde vinha a carta. Não
estava selada. Quem a trouxera? Ninguém sabia. Da parte de quem
vinha? Não o tinham dito ao porteiro. Em seguida guardou silêncio
durante algum tempo; depois disto, recomeçou a falar, mas as suas
frases sem seguimento só nos indicaram que o delírio voltara.
Contudo houve ainda um intervalo tranqüilo, até que pediu que
lhe entregassem a carta que haviam trazido para ela. Assim que lhe
lançou um olhar gritou: "Dele! Meu Deus!", e depois com uma voz forte,
mas abafada: "Tomem-na, tomem-na."
Mandou imediatamente fechar as cortinas do leito e proibiu
todos de se aproximarem, mas pouco depois fomos obrigados a voltar
junto dela. O delírio recomeçara mais violento do que nunca, e era
acompanhado de convulsões verdadeiramente assustadoras.
Estes acidentes não cessaram em toda a tarde; e o boletim
desta manhã informa-me de que a noite não foi menos agitada. Enfim,
o seu estado é tal, que me espanto que não tenha já sucumbido; e não
vos escondo que me restam poucas esperanças.
Suponho que essa funesta carta seria do senhor de Valmont,
mas que ousará ele dizer-lhe ainda? Perdão, minha cara amiga; evitarei
qualquer reflexão, mas é muito cruel ver perecer tão desgraçadamente
uma mulher, até agora tão feliz e tão digna de o ser.

Paris, 2 de Dezembro de 17* *.

CARTA CL

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Enquanto espero a felicidade de te tornar a ver, minha terna


amiga, entrego-me ao prazer de te escrever; e é ocupando-me de ti
que atenuo a pena de estar afastado. Expor-te os meus sentimentos,
recordar-me dos teus, é para o meu coração um verdadeiro prazer; e é
através dele que mesmo o momento das privações me oferece ainda
mil bens preciosos. No entanto, segundo disseste, não receberei
resposta tua, mesmo esta carta será a última; e privar-nos-emos duma
correspondência que, quanto a ti, é perigosa, e de que não temos
necessidade. Claro que, se insistes, te acreditarei, pois que podes tu
querer que por essa mesma razão eu não queira também? Mas antes
de dizer a última palavra, não consentirás que falemos sobre isso?
Quanto aos perigos, deves tu decidir, nada posso prever, e
limito-me a pedir-te que olhes pela tua segurança, porque não posso
estar tranqüilo sabendo-te inquieta. No que respeita a este assunto, não
somos nós ambos que formamos um, és tu que és nós ambos.
Não é o mesmo quanto à necessidade, aqui temos de pensar
do mesmo modo, e se temos opiniões diferentes, é com certeza por não
nos explicarmos ou compreendermos. Eis pois o que julgo sentir.
Sem dúvida que uma carta parece muito pouco necessária
quando nos podemos ver livremente. Que poderá ela dizer, que uma
palavra, ou olhar, ou mesmo um silêncio, não exprimissem cem vezes
melhor? Isto parece-me tão verdadeiro que, no momento em que me
falaste de não mais nos escrevermos, essa idéia deslizou facilmente
sobre a minha alma; perturbou-a talvez, mas não a afetou. Tal como
quando, querendo beijar-te sobre o coração, encontro uma fita ou um
véu; afasto-o apenas, sem chegar a ter o sentimento de um obstáculo.
Mas depois separámo-nos; e logo que deixaste de estar
presente, essa idéia da carta voltou a atormentar-me. Porquê,
murmurei, mais essa privação? Pois quê! Por estarmos afastados nada
mais teremos a dizer-nos? Suponhamos que, favorecidos pelas
circunstâncias, passamos juntos um dia inteiro; será preciso que o tempo
para conversar seja roubado ao do prazer?
Sim, ao do prazer, minha terna amiga; porque ao pé de ti,
mesmo os momentos de repouso fornecem ainda uma voluptuosidade
deliciosa. Enfim, mesmo que tenhamos muito tempo, acabamos por nos
separar; e, depois, fica-se tão só! É então que uma carta se torna
preciosa! Se a não lemos, pelo menos olhamo-la...
Ah! Sem dúvida, pode-se olhar uma carta sem a ler, tal como de
noite sinto que teria ainda prazer em tocar o teu retrato...
O teu retrato, digo? Mas uma carta é o retrato da alma. Não
tem, como a fria imagem, essa fixidez que tão distante é do amor;
presta-se a todos os nossos movimentos: alternadamente anima-se,
goza, repousa-se... Todos os teus sentimentos me são tão preciosos!
Privar-me-ás dum meio de os coligir?
Tens a certeza de que a necessidade de me escrever nunca te
atormentará? Se na solidão o teu coração se dilata ou se aflige, se um
movimento de alegria agita a tua alma, se uma involuntária tristeza a
vem perturbar por um momento, não será então no seio do teu amigo
que expandirás a tua felicidade ou o teu desgosto?
Terás então um sentimento que ele não partilhará? Deixá-lo-ás
então, sonhador e solitário, vaguear longe de ti?...
Minha amiga!... Minha terna amiga!... Mas é a ti que compete
decidir. Quis somente debater o assunto e não seduzir-te; só te
apresentei razões, ouso crer que seria mais convincente com súplicas.
Procurarei, se persistes, não me afligir; farei esforços para dizer a
mim próprio o que me terias escrito, mas escuta, di-lo-ias melhor do que
eu; e sobretudo ser-me-ia muito mais agradável de ouvir.
Adeus, minha encantadora amiga; aproxima-se a hora em que
te poderei ver, abandono-te com pressa, para te reencontrar mais
cedo.

Paris, 3 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Sem dúvida, Marquesa, me não julga tão inexperiente, a ponto


de pensar que me pude deixar iludir quanto ao encontro a sós em que
a surpreendi esta tarde, e ao espantoso acaso que conduzira Danceny
a sua casa! Não é que a sua fisionomia tão treinada não tenha sabido
assumir às mil maravilhas uma expressão calma e serena, nem que se
tenha traído por alguma das frases que às vezes escapam à
perturbação ou ao pesar. Concordo até que os seus olhares dóceis a
serviram perfeitamente; e se se tivessem feito acreditar tão bem como
compreender, eu estaria longe de sentir ou conservar a mínima
suspeita, e nem por um momento desconfiaria do desgosto enorme que
lhe causava esse estranho importuno. Mas, para não ostentar em vão
tão grandes talentos, para obter o êxito que desejava, para conseguir
enfim a ilusão que procurava fazer nascer, seria preciso em primeiro
lugar instruir o seu cândido amante com mais cuidado.
Visto que se começa a dedicar à educação, ensine os seus
alunos a não corarem e a não se desconcertarem ao mínimo gracejo; a
não negarem tão vivamente, quanto a uma só mulher, as mesmas
coisas de que se defendem tão debilmente quanto a outras. Ensine-lhes
ainda a saberem escutar o elogio da sua amante, sem se julgarem
obrigados a prestar-lhe as homenagens; e se permite que a olhem em
sociedade, que ao menos saibam disfarçar esse olhar de posse tão fácil
de reconhecer, e que confundem tão inabilmente com o do amor.
Então pode mandá-los comparecer aos exames públicos, sem que a
sua conduta deixe mal a sábia professora; e eu próprio, muito feliz por
concorrer para a sua celebridade, prometo-lhe elaborar e publicar os
programas desse novo colégio.
Mas até lá espanto-me, confesso, que fosse a mim que
experimentasse tratar como um colegial. Oh, com qualquer outra
mulher, depressa me vingaria! E teria nisso um tão grande prazer!
Como esse prazer ultrapassaria facilmente o que ela me julgara
fazer perder! Sim, é só para si que prefiro a reparação à vingança; e
não julgue que esteja preso pela mínima dúvida ou pela mais ligeira
incerteza; sei tudo.
Está em Paris há quatro dias; e todos os dias recebeu Danceny, e
só ele. Ainda hoje a sua porta estava fechada; e só faltou ao porteiro,
para me impedir de chegar a si, uma segurança igual à sua. No entanto
eu podia ter a certeza, como me mandou dizer, de ser o primeiro
informado da sua chegada; dessa chegada de que ainda me não
podia informar o dia, enquanto me escrevia na véspera da partida.
Negará estes fatos ou tentará desculpar-se? Uma e outra coisa são
igualmente impossíveis; e no entanto ainda me contenho! Por aqui
reconhecerá o seu poder; mas creia-me, satisfeita por o ter
experimentado, não deverá abusar dele mais tempo. Conhecemo-nos
bem, Marquesa; estas palavras devem bastar-lhe.
Disse-me que amanhã estará fora de casa todo o dia? Oxalá
que saia de fato; pode ter a certeza de que o saberei. Mas, enfim,
voltará ao fim da tarde; e para a nossa difícil reconciliação, não
teremos tempo de sobra até ao dia seguinte. Mande-me dizer se será
em sua casa, ou na outra, que se farão as nossas numerosas e
recíprocas expiações. Sobretudo, acabou-se o Danceny. A sua má
cabeça estava cheia dele, não posso ter ciúmes desse delírio da
imaginação, mas pense que a partir deste momento, o que era apenas
uma fantasia tornar-se-á uma nítida preferência. Não me julgo feito
para essa humilhação, e não quero recebê-la de si.
Conto até que esse sacrifício não vos pareça tal. Mas mesmo
que lhe custasse um tanto, parece-me que já lhe dei um belo exemplo!
Uma mulher simultaneamente sensível e bela, que só vivia para mim, e
que neste momento morre talvez de amor e remorso, vale bem um
jovem colegial, a quem, poderemos dizer, não falta figura nem espírito,
mas que não tem nem prática nem segurança.
Adeus, Marquesa; nada lhe digo dos meus sentimentos por si.
Prefiro neste momento não sondar o meu coração. Espero a sua
resposta. Medite bem nela, pense bem que tanto quanto lhe é fácil
ainda fazer-me esquecer ofensa que me infligiu, tanto mais uma recusa
da sua parte, um simples adiamento, a gravará no meu coração em
traços inapagáveis.

Paris, noite de 3 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Tenha cuidado, Visconde, poupe mais a minha extrema


timidez!
Como quer que eu suporte a idéia deprimente de incorrer na
sua indignação; e sobretudo que não sucumba ao terror da sua
vingança? Tanto mais que, como sabe, se me fizer uma infâmia ser-me-
á impossível retribuí-la. Seria escusado que eu falasse, a sua existência
não seria nem menos brilhante, nem menos tranqüila. Na verdade, que
teria a temer? Ser obrigado a partir, se lhe dessem tempo. Mas não se
vive no estrangeiro tão bem como aqui? E afinal de contas, contanto
que a Corte de França o deixasse tranqüilo onde se fixasse, para si seria
apenas mudar o cenário dos seus triunfos. Após ter tentado chamá-lo à
razão por meio destas considerações morais, voltemos ao nosso
problema.
Sabe, Visconde, por que é que não tornei a casar? Não foi com
certeza por não ter encontrado partidos vantajosos; mas unicamente
para que ninguém tenha o direito de censurar as minhas ações. Nem
sequer foi por medo de não poder fazer o que me apetecesse, pois
sempre acabaria por o conseguir, mas porque me teria incomodado a
idéia de que alguém se julgasse com direito a queixar-se; e, enfim,
porque só gosto de atraiçoar por prazer, e não por necessidade. E eis
que o Visconde me escreve a carta mais conjugal que se possa
imaginar! Só me fala de erros do meu lado e de benevolência do seu!
Mas como se pode faltar àquele a quem nada se deve? Não sou
capaz de o saber!
Vejamos: afinal de que se trata? Encontrou Danceny em minha
casa, e isso desagradou-lhe? Pois bem: e que concluiu daí? Ou que se
tratava dum acaso, como eu lhe disse, ou que fora por minha vontade,
ao contrário do que lhe dizia. No primeiro caso a sua carta é injusta; no
segundo, ridícula; não valia a pena escrevê-la! Mas está com ciúmes, e
os ciúmes não raciocinam.
Pois bem! Pensarei eu por si.
Ou tem rival, ou não. Se tem, deve agradar para ser preferido; se
não tem, deve agradar ainda mais para evitar vir a tê-lo.
Em ambos os casos, deve seguir a mesma conduta; assim, para
que atormentar-se! Para quê, sobretudo, atormentar-me a mim!
Já não sabe ser amável? Já duvida do seu êxito? Vejamos,
Visconde, é injusto para si próprio. Mas não é isso; é que, aos seus olhos,
eu não mereço tanto trabalho. Deseja muito menos as minhas
bondades, do que abusar do seu poder. Vamos, o Visconde é um
ingrato. E aqui estou eu a ficar sentimental! E por pouco que eu
continuasse neste tom, esta carta podia tornar-se muito terna, mas o
senhor não o merece.
Também não merece que eu me justifique. Para o castigar das
suas suspeitas, deixo-o ficar com elas, deste modo, nada direi sobre a
data do meu regresso, nem sobre as visitas de Danceny.
Teve muito trabalho para se informar, não é verdade?
Pois bem! Já está mais adiantado? Espero que tenha tido muito
prazer nessa tarefa; quanto a mim, em nada estragou o meu.
O que posso responder à sua ameaçadora carta, é que ela não
teve nem o dom de me agradar, nem o poder de me intimidar; e que
neste momento não estou nada disposta a aceder aos seus pedidos.
Para falar verdade, aceitá-lo tal como hoje se mostra, seria fazer-
lhe realmente uma infidelidade. Não era recomeçar com o meu antigo
amante; mas antes arranjar um novo, e que nem de longe vale o outro.
Ainda não esqueci bastante o primeiro para assim me enganar. O
Valmont que eu amava era encantador.
Concordo mesmo que não encontrei homem mais agradável.
Ah, suplico-lhe, Visconde, se o encontrar, traga-mo; esse será
sempre bem recebido.
Contudo previna-o de que, em qualquer caso, não será nem
para hoje nem para amanhã. O seu Menechmel* prejudicou-o; e,
apressando-me demasiado, temo enganar-me. Ou talvez já eu tenha
dado a palavra a Danceny para esses dois dias? E a sua carta mostrou-
me que se zangava quando faltavam à palavra.
Bem vê que é preciso esperar.
Mas que lhe importa? Acabará por se vingar bem do seu rival.
Ele não fará pior à sua amante do que o Visconde já fez à dele; e afinal,
não vale uma mulher o mesmo que outra? São estes os seus princípios.
Mesmo aquela que fosse terna e sensível, que existisse só para si, que
morresse por fim de amor e remorso, seria do mesmo modo sacrificada
à primeira fantasia, ao terror de ser troçado por um momento; e quer
que nos mortifiquemos?
Ah, isso não é justo.
Adeus, Visconde; volte de novo a ser amável. Escute, só quero
achá-lo outra vez encantador; e desde que esteja certa disso,
comprometo-me a provar-lho. Sou na verdade demasiado indulgente.

Paris, 4 de Dezembro de 17* *.

*Alude à comédia de Plauto Os Menechmes, que trata de dois irmãos gêmeos,


inteiramente semelhantes. (N. do T.)

CARTA CLIII

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Respondo imediatamente à sua carta, e procurei ser claro; o


que não é fácil em relação a si, quando por vezes toma a decisão de
não compreender.
Não eram necessários longos discursos para estabelecer que,
tendo cada um de nós na mão tudo o que é preciso para destruir o
outro, temos igual interesse em nos pouparmos mutuamente: não é
disso que se trata. Mas, entre a decisão violenta de nos destruirmos, e a
outra, sem dúvida melhor, de ficarmos unidos como temos sido, de nos
tornarmos ainda mais íntimos reatando a nossa antiga ligação; entre
estas duas decisões, dizia eu, há mil outras a tomar. Não é ridículo dizer-
lhe, repetir-lhe que, a partir de hoje, serei seu amante ou seu inimigo.
Bem vejo que a necessidade da escolha a importuna; que lhe
agradaria mais tergiversar; e não ignoro que nunca foi do seu agrado
ser assim colocada entre o sim e o não, mas deve sentir também que a
não posso deixar sair desse círculo estreito sem me arriscar a ser iludido;
e devia prever que o não suportaria.
Compete-lhe pronunciar-se: deixo-lhe a decisão, mas não posso
ficar na incerteza.
Já a previno de que me não enganará com os seus raciocínios,
bons ou maus; que me não seduzirá com lisonjas a enfeitar recusas; e
que enfim chegou o momento da franqueza. Desejo até dar-lhe o
exemplo; e declaro com prazer que prefiro paz e união, mas se é
preciso quebrar ambas, quero ter o direito e os meios para tal.
Acrescento até que o mínimo obstáculo levantado do seu
guerra, bem vê que a resposta que lhe peço não exige frases largas e
belas. Bastam duas palavras.

Paris, 4 de Dezembro de 17* *

Resposta da Marquesa de Merteuil escrita no fim da mesma carta.

Pois bem: guerra.

CARTA CLIV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Os boletins informar-vos-ão melhor do que eu poderia fazer,


minha cara amiga, acerca do estado grave da nossa doente.
Inteiramente entregue aos cuidados que lhe dispenso, só roubo
tempo para vos escrever, quando há outros acontecimentos além dos
da doença. Eis um, que eu estava bem longe de esperar.
Trata-se duma carta do senhor de Valmont, a quem aprouve
escolher-me como confidente e mesmo como intermediária junto de
Madame de Tourvel, para quem juntara uma carta à minha. Devolvi
uma ao mesmo tempo que respondia à outra.
Mando-vos esta última e penso que julgareis, como eu, que não
podia nem devia fazer o que ele me pede. Mesmo que o tivesse
querido, a nossa infeliz amiga não estaria em estado de me
compreender. O delírio é contínuo. Mas que dizeis deste desespero do
senhor de Valmont? Em primeiro lugar, devemos acreditá-lo, ou quererá
ele somente iludir todos e até ao fim? Se desta vez é sincero, bem pode
dizer que construiu ele próprio a sua infelicidade. Creio que terá ficado
pouco satisfeito com a minha resposta, mas confesso que tudo o que
me faz pensar sobre esta funesta aventura me revolta cada vez mais
contra o seu autor.
Adeus, minha querida amiga; volto às minhas tristes funções, e
pouca esperança tenho de as ver coroadas de êxito. Conheceis os
meus sentimentos para convosco.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *.

N. dos T. - Na edição Classiques Garnier", de 1952, elaborada sobre o manuscrito


autógrafo, dá-se em nota a carta referida por Madame de Volanges, que Laclos teria
escrito e depois suprimido, e de que damos a tradução:

O VISCONDE DE VALMONT A MADAME DE VOLANGES

Sei, minha senhora, que não gostais de mim; também não ignoro
que fostes sempre contrária à minha pessoa junto de Madame de
Tourvel, e do mesmo modo não tenho dúvidas de que, mais do que
nunca, experimenteis os mesmos sentimentos a meu respeito. Convenho
até que possais julgar justos esses sentimentos.
Entretanto, é a vós que me dirijo, e não receio pedir-vos que
entregueis a Madame de Tourvel a carta que junto aqui para ela, e
ainda solicitar-vos que consigais que a leia e a disponhais a isso dando-
lhe a certeza do meu arrependimento, do meu pesar e sobretudo do
meu amor. Sinto que esta diligência poderá parecer-vos estranha; a
mim próprio ela admira. Mas o desespero apodera-se dos meios sem os
calcular, e, por outro lado, um interesse tão grande, tão caro e que nos
é comum deve afastar qualquer outra consideração. Madame de
Tourvel está à morte; Madame de Tourvel é infeliz; é necessário restituir-
lhe a vida, a saúde e a felicidade. Eis o objetivo a cumprir. Todos os
meios são bons, desde que possam assegurar ou apressar o êxito. Se
rejeitardes este que vos ofereço, ficareis responsável pelo
acontecimento da sua morte, o vosso pesar e o meu desespero eterno,
tudo será obra vossa. Sei que ultrajei indignamente uma mulher digna
de toda a minha adoração; sei que só as minhas torpes ofensas são a
causa de todos os males que ela suporta. Não pretendo diminuir as
minhas faltas nem desculpá-las. Mas vós, senhora, deveis temer tornar-
vos cúmplice impedindo-me de as reparar. Mergulhei o punhal no
coração da vossa amiga, mas só eu posso retirar o ferro da ferida, só eu
conheço os meios de a curar. Que importa que eu seja culpado, se
posso ser útil? Salvai a vossa amiga, salvai-a!
É do vosso socorro que ela necessita, e não da vossa vingança.
Paris, 4 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLV

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Passei duas vezes por sua casa, meu caro Cavaleiro, mas desde
que abandonou o papel de apaixonado pelo de aventureiro galante, é
impossível encontrá-lo. Todavia o seu criado de quarto assegurou-me
que voltaria a casa esta tarde, e que tinha ordem para o esperar; mas
eu, que estou ao par dos seus projetos, bem vi que o meu amigo não
voltaria senão por um momento, para vestir o trajo apropriado, e que
imediatamente recomeçaria as suas corridas vitoriosas. Ainda bem, e só
devo aplaudi-lo, mas talvez, para esta noite, seja tentado a mudar de
direção. Ignora ainda o caminho que tomaram metade dos assuntos
que lhe dizem respeito; devo pô-lo ao corrente daquele que
desconhece, e depois decidirá. Dedique algum tempo a ler esta carta.
Não será afastá-lo dos seus prazeres, pois, pelo contrário, ela tem como
objetivo permitir-lhe a escolha.
Se fosse eu o depositário de todas as suas confidências, se
tivesse sabido por si a parte dos segredos que fui forçado a adivinhar, a
elucidação teria vindo a tempo; e o meu zelo, menos hábil, não
entravaria agora os seus movimentos. Mas partamos do ponto em que
estamos. Qualquer que seja a decisão que tome, nunca deixará de
fazer a felicidade de alguém.
Tem um encontro para esta noite, não é verdade? Com uma
mulher encantadora e a quem adora? Pois na sua idade, que mulher
não adoramos, pelo menos nos oito primeiros dias! O cenário deve
contribuir também para o prazer. Uma casinha deliciosa, que existe só
para si, deve aumentar a voluptuosidade com os encantos da
liberdade e do mistério. Está tudo combinado, esperam-no e o meu
amigo arde no desejo de chegar! Eis o que ambos sabemos, se bem
que nada me tenha dito. Agora, eis o que não sabe, e de que devo
informá-lo.
Desde o meu regresso a Paris que me ocupava com os meios de
o pôr em contato com Mademoiselle de Volanges, tal como lhe
prometera; e ainda da última vez que lhe falei, tive ocasião de julgar
pelas suas respostas, direi até pelo seu entusiasmo, que contribuía para
a sua felicidade. Sozinho não conseguiria eu resolver esta questão tão
difícil, mas, depois de ter preparado os meios, deixei o resto entregue ao
zelo da sua jovem apaixonada.
Ela encontrou, no seu amor, recursos que faltavam à minha
experiência, enfim, para mal do meu amigo, ela conseguiu o que
desejava. Há dois dias, disse-me ela esta tarde, que todos os obstáculos
estão vencidos e que a vossa felicidade depende só de si.
Há dois dias que anseia por transmitir-vos ela própria a notícia, e,
apesar da ausência da mãe, não deixaria por isso de ser recebido, mas
nem sequer apareceu! E, para lhe não esconder nada, ou por capricho
ou a valer, a criaturinha pareceu-me um tanto zangada por essa falta
de ardor da sua parte. Encontrou enfim um meio de me mandar
chamar e obrigou-me a prometer que lhe enviaria o mais cedo possível
a carta que junto. Pelo zelo que mostrou, iria apostar que se trata dum
encontro para esta noite. Seja o que for, prometi, pela honra e pela
amizade, que lhe faria chegar às mãos a terna missiva durante o dia, e
não posso nem quero faltar à minha palavra.
E agora, jovem, que tenciona fazer? Colocado entre a
coqueteria e o amor, entre o prazer e a felicidade, qual vai ser a sua
escolha? Se eu falasse ainda ao Danceny de há três meses, ou mesmo
de há oito dias, conhecedor do coração dele, sê-lo-ia também das suas
decisões; mas o Danceny de hoje, arrastado pelas mulheres,
entregando-se a aventuras, e tornado, como é costume, um tanto
nervoso, preferirá ele uma donzela tímida, que só tem por si a beleza, a
inocência e o amor, aos atrativos duma mulher experiente?
Por mim, meu caro amigo, parece-me que, mesmo dentro dos
seus novos princípios, que confesso serem também um pouco os meus,
as circunstâncias far-me-iam decidir pela jovem amante. Primeiro, será
mais uma, e depois a novidade, e ainda o temor de perder o fruto dos
seus cuidados desprezando colhê-lo; porque, enfim, por esse lado, seria
de fato uma oportunidade falhada, que nem sempre volta, sobretudo
se se trata duma primeira fraqueza, muitas vezes, neste caso, basta um
momento de zanga, uma suspeita de ciúme, menos ainda, para
impedir o mais belo triunfo. A virtude que se afoga agarra-se às vezes
aos ramos; mas uma vez salva, mantém uma certa reserva e não é já
fácil de surpreender.
E do outro lado, afinal que se arrisca? Nem sequer uma ruptura;
quando muito uma disputa, que, com alguns cuidados, pagará o prazer
duma reconciliação. Que mais resta a uma mulher que se entregou, a
não ser á indulgência? Que poderá ganhar com a severidade? A
perda dos prazeres, sem proveito para a sua reputação.
Se, como suponho, seguir o caminho do amor, que me parece
ser também o da razão, creio que será prudente não se desculpar pela
falta do encontro; deixe simplesmente que o esperem, se se arrisca a
dar uma desculpa é muito possível que tentem verificá-la. As mulheres
são curiosas e obstinadas; tudo se pode descobrir, acabo, como sabe,
de ser vítima de um exemplo disso.
Mas se lhe deixar a esperança, como será alimentada pela
vaidade, só morrerá muito tempo depois do momento propício para as
informações, e então amanhã o meu amigo só terá de escolher o
obstáculo intransponível que o reteve; esteve doente, morto até se for
preciso, ou qualquer outra coisa com que estará igualmente
desesperado, e tudo se arranjará.
De resto, qualquer que seja a decisão que tome, peço-lhe só
que me informe; e como não tenho qualquer interesse, acharei sempre
que fez bem.
Adeus, meu caro amigo.
Acrescento ainda que lastimo Madame de Tourvel; estou
desesperado por estar separado dela; daria metade da minha vida
pela felicidade de lhe consagrar a restante. Ah! Acredite-me, só o amor
nos pode fazer felizes.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLVI

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Junta à precedente)

Por que é que acontece, meu caro amigo, que deixo de o ver,
quando não deixo de lhe querer? Não o deseja tanto como eu?
Ah! Agora é que estou triste! Mais triste do que quando
estávamos completamente separados. O desgosto que os outros me
faziam sofrer é agora de si que me vem, e isso custa-me muito mais.
Desde há uns dias que a Mamã nunca está em casa, bem o
sabe; e esperava que procurasse aproveitar esse tempo de liberdade,
mas já nem sequer pensa em mim; sou muito infeliz! Tanta vez me disse
que era eu que amava menos! Eu bem sabia que era o contrário, e eis
a prova. Se tivesse vindo ver-me, ter-me-ia visto de fato, porque eu não
sou como o Cavaleiro; penso só no que nos pode reunir. Merecia que
eu nada lhe dissesse do que fiz para isso, e que me deu tanto trabalho,
mas amo-o demasiado e tenho tanta vontade de o ver, que não posso
fugir a dizer-lhe tudo. E depois, verei se realmente me tem amor!
Trabalhei tão bem que convenci o porteiro, o qual me prometeu
que o deixará entrar como se o não visse todas as vezes que venha, e
podemos confiar nele, porque é muito boa pessoa.
Trata-se apenas de evitar que o vejam em casa; e isso será muito
fácil, se só vier à noite, quando já nada há a temer. Por exemplo, desde
que a Mamã sai todos os dias, deita-se todas as noites às onze horas;
assim teremos tempo de sobra.
O porteiro disse-me que quando quiser vir deste modo, em vez
de bater à porta, deve bater à janela dele e que ele abrirá
imediatamente; e, depois, achará a escada interior; e como não pode
usar luz, deixarei a porta do meu quarto entreaberta, o que sempre o
iluminará um pouco. Tomará cuidado em não fazer barulho,
principalmente ao passar pela porta da Mamã.
Quanto à da minha criada de quarto, não faz mal, porque me
prometeu que não acordaria; é também muito boa rapariga! E para se
ir embora, será o mesmo. Agora, veremos se vem.
Meu Deus, por que é que sinto o coração bater tão forte
enquanto lhe escrevo? É porque me vai acontecer alguma infelicidade,
ou é a esperança de o ver que assim me perturba? O que sinto é que
nunca o amei tanto, e nunca desejei tanto dizer-lho.
Venha, meu amigo, meu querido amigo; para que lhe possa
repetir cem vezes que o amo, que o adoro, que só o amarei a si.
Achei um meio de mandar dizer ao senhor de Valmont que
precisava falar-lhe; e ele, como é um bom amigo, virá com certeza
amanhã, e vou pedir-lhe que lhe mande logo a minha carta...
Esperá-lo-ei pois amanhã à noite, e virá sem falta se não quiser
que a sua Cecília seja muito infeliz.
Adeus, meu caro amigo; beijo-o com todo o amor.

Paris, 4 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLVII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Não duvide, meu caro Valmont, nem do meu coração, nem do


meu procedimento: como poderia eu resistir a um desejo da minha
Cecília? Ah! É certamente ela a única que amo, que sempre amarei! A
sua ingenuidade, a sua ternura, têm para mim um encanto de que
pude ter a fraqueza de me deixar afastar, mas que nada apagará.
Metido noutra aventura, por assim dizer sem dar por isso, muitas vezes a
lembrança de Cecília me veio perturbar mesmo nos mais doces
prazeres; e talvez nunca o meu coração lhe tenha rendido
homenagens mais verdadeiras do que no próprio momento em que lhe
era infiel. Contudo, meu amigo, respeitemos a delicadeza dela, e
escondamos-lhe os meus erros; não para a iludir, mas para a não afligir.
A felicidade de Cecília é o mais ardente voto que formulo; nunca me
perdoaria uma falta que lhe tivesse custado uma lágrima.
Mereci, bem o sinto, as zombarias que me dirige, sobre o que
chama os meus novos princípios, mas pode crer que não é por eles que
me guio neste momento; e a partir de amanhã estou decidido a prová-
lo. Ir-me-ei acusar àquela que foi a causa do meu desvario e o
partilhou; dir-lhe-ei: "Lede no meu coração; ele tem por vós a mais terna
amizade; a amizade unida ao desejo parece-se tanto com o amor!...
Enganámo-nos ambos; mas, suscetível de erro, sou incapaz de má fé."
Conheço a minha amiga; é tão honesta como indulgente; fará mais do
que perdoar, aprovar-me-á até. Ela própria muitas vezes se censurava
por ter traído a amizade; muitas vezes a sua suscetibilidade perturbava
o amor. Mais sensata do que eu, fortificará na minha alma esses
temores que eu temerariamente procurava sufocar na sua. Ficar-lhe-ei
devendo o ter-me tornado melhor e a si o ser mais feliz. Ó meus amigos!
Partilhem o meu reconhecimento.
A idéia de que lhes devo a felicidade aumenta-lhe o valor.
Adeus, meu caro Visconde. O excesso de alegria não me
impede de pensar nas suas penas, e de as compartilhar. Se lhe pudesse
ser útil! Madame de Tourvel continua então inexorável?
Dizem-na doente. Meu Deus, como tenho pena de si! Oxalá que
ela recupere simultaneamente a saúde e a indulgência, e o faça
eternamente feliz! São os desejos da amizade; espero que o amor os
escute.
Gostaria de falar mais tempo consigo; mas o tempo urge, e
talvez já Cecília me espere.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

(Ao despertar)

Então, Marquesa, que tal os prazeres da noite passada? Um


pouco fatigada? Concorde que Danceny é encantador! Faz prodígios,
esse rapaz! Não esperava isto dele, não é verdade? Vamos, quero ser
justo para comigo mesmo; semelhante rival merecia bem que eu lhe
fosse sacrificado. A sério, é um rapaz cheio de boas qualidades! Mas
sobretudo de amor, constância, delicadeza!
Ah! Se conseguir que ele a ame como ama a sua Cecília, nunca
mais terá rivais a temer: ele provou-lhe esta noite. Talvez, à força de
coqueteria, outra mulher possa roubá-lo por um momento; os jovens
não sabem resistir a fosquinhas provocantes; mas esteja tranqüila, uma
palavra só do objeto amado basta, como agora vê, para dissipar as
ilusões; assim só lhe falta vir a ser esse objeto para ser perfeitamente
feliz.
Certamente a Marquesa não falhará; possui um tato demasiado
seguro para que se possa recear tal. No entanto, a amizade que nos
une, tão sincera da minha parte como reconhecida da sua, levou-me a
desejar-lhe a experiência desta noite; foi obra do meu zelo, que teve
um belo êxito, mas nada de agradecimentos; não vale a pena, nada
podia ser mais fácil.
No fundo, que me custou? Um ligeiro sacrifício e um pouco de
habilidade. Consenti em partilhar com esse jovem os favores da amada
dele; mas enfim, ele sempre tinha tantos direitos como eu; esquecera-
me disso! A carta que ela lhe escreveu, fui eu que a ditei, mas foi só
para ganhar tempo, porque bem sabíamos em que o empregar. A que
eu próprio enviei, oh!, não era nada, quase nada; algumas reflexões da
amizade para guiar a escolha do novo amante, mas, por minha honra,
eram inúteis; a verdade deve dizer-se, ele não hesitou um momento.
E depois, com toda aquela candura, irá hoje a sua casa contar-
lhe tudo; e certamente essa narrativa lhe agradará ! Começará assim:
"Lede no meu coração" é o que ele me escreveu, e bem vê que desta
forma tudo se remedeia. Espero que, ao fazer essa leitura, compreenda
finalmente que os amantes demasiado jovens têm os seus perigos; e
ainda que mais vale ter-me como amigo do que como inimigo.
Adeus, Marquesa; até à primeira ocasião.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLIX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Não gosto que se acrescentem graças de mal gosto a atitudes


deselegantes; e isso não está mais nos meus hábitos que no meu gosto.
Quando tenho motivos de queixa de alguém, não o escarneço; faço
melhor: vingo-me. Por muito contente que esteja neste momento, não
se esqueça de que não seria a primeira vez que se aplaudiria
antecipadamente, na esperança dum triunfo que lhe escaparia no
próprio momento em que se felicitava.
Adeus.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Escrevo do quarto da nossa infeliz amiga, cujo estado é mais ou


menos o mesmo. Hoje à tarde haverá uma conferência de quatro
médicos. O que, como sabeis, costuma ser mais uma prova de perigo
do que um socorro.
Parece no entanto ter recuperado um pouco de lucidez durante
a noite passada. A criada de quarto informou-me esta manhã que, por
volta da meia-noite, a sua ama a chamou; quis ficar sozinha com ela, e
ditou-lhe uma carta assaz longa. Júlia acrescentou que, quando estava
ocupada a preencher o sobrescrito, o delírio se apossou de novo de
Madame de Tourvel de forma que a rapariga ficou sem saber a quem
o remeter. Admirei-me a princípio de que a própria carta não bastasse
para lho revelar, e tendo-me ela respondido que receara enganar-se e
que a Presidente lhe recomendara que enviasse a carta
imediatamente, tomei a decisão de a abrir.
Mando-vos justamente o que encontrei, e que na verdade não
se dirige a ninguém, visto que se dirige a toda a gente. Creio no
entanto que foi ao senhor de Valmont que a nossa infeliz amiga quis
primeiro escrever, mas acabou por ceder, sem dar por isso, à desordem
das idéias. Como quer que seja, pensei que esta carta não devia ser
remetida a ninguém. É a vós que a envio, pois assim podereis ver melhor
os pensamentos que ocupam o cérebro da nossa doente. Enquanto
permanecer tão vivamente afetada, não terei esperanças. O corpo
dificilmente se restabelece quando o espírito está tão pouco tranqüilo.
Adeus, querida e digna amiga. Felicito-vos por estardes afastada
do triste espetáculo que tenho diariamente debaixo dos olhos.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXI

A PRESIDENTE DA TOURVEL A...

(Ditada por ela e escrita pela criada de quarto)

Ente cruel e malfazejo, não deixarás de me perseguir? Não te


basta teres-me torturado; degradado, aviltado, queres ainda roubar-me
a paz do túmulo? Pois como! Nesta mansão de trevas onde a ignomínia
me obrigou a enterrar-me, as dores não dão tréguas e a esperança é
desconhecida? Não imploro um perdão que não mereço, para sofrer
sem me queixar, bastará que os sofrimentos não excedam as minhas
forças. Mas não tornes os tormentos insuportáveis. Deixa-me as dores,
apaga-me a cruel memória dos bens que perdi. Depois de mos
roubares, não traces de novo diante dos meus olhos a sua desoladora
imagem. Eu era inocente e tranqüila; foi por te ter visto que perdi o
repouso; foi ao escutar-te que me tornei criminosa. Autor dos meus erros,
que direito tens de os punir?
Onde estão os amigos que me adoravam, onde estão eles? O
meu infortúnio horroriza-os. Nenhum ousa aproximar-se. Sinto-me
oprimida, e eles deixam-me sem auxílio! Morro, e ninguém me lamenta.
Toda a consolação me é recusada. A piedade detém-se nas margens
do abismo onde o criminoso mergulha.
Os remorsos dilaceram-no, e os seus gritos não são ouvidos!
E tu, a quem ultrajei; tu, cuja estima aumenta o meu suplício; tu,
que serias afinal o único a ter o direito de te vingares, que fazes longe
de mim?
Vem punir uma mulher infiel. Que eu sofra finalmente tormentos
merecidos. Já me teria submetido à tua vingança; mas faltou-me a
coragem de te revelar a tua desonra.
Não foi por dissimulação, foi por respeito. Que ao menos esta
carta te informe do meu arrependimento. O céu assumiu a defesa da
tua causa e vinga-te duma injúria que ignoravas.
Foi ele que me prendeu a língua e me reteve as palavras;
receou que me perdoasses uma falta que ele queria punir.
Subtraiu-me à tua indulgência, que teria ferido a sua justiça.
Implacável na sua vingança, abandonou-me àquele que me
desgraçou. Este último é simultaneamente o causador do meu desvario
e o carrasco que me castiga. Em vão lhe quero fugir; persegue-me; está
sempre presente, obceca-me sem cessar. Mas como está mudado! Os
olhos exprimem apenas ódio e desprezo.
A boca só profere insultos e censuras. Os braços, que dantes me
abraçavam, querem despedaçar-me. Quem me salvará do seu
bárbaro furor?
Mas quê? É ele... Não me engano; é ele que volto a ver. Oh,
meu adorável amigo! Acolhe-me nos teus braços; esconde-me no teu
seio: sim, és tu, és tu mesmo! Por que funesta ilusão não te tinha
reconhecido? Como sofri com a tua ausência ! Oh ! Não nos separemos
outra vez. Nunca mais nos separemos. Deixa-me respirar. Vê como o
meu coração bate! Ah! Já não é de receio, mas sim da doce emoção
do amor. Por que te recusas às minhas ternas carícias? Mostra-me o teu
olhar tão doce! Que laços procuras desta maneira romper? Para quem
preparas esse cadafalso?
Que é que te transtorna assim a fisionomia? Que fazes?
Deixa-me: tremo! Deus! É outra vez esse monstro!
Minhas amigas, não me abandoneis. Vós que me aconselháveis
a evitá-lo, ajudai-me a combatê-lo; e vós que, mais indulgente, havíeis
prometido diminuir as minhas dores, vinde pois para junto de mim. Onde
estais ambas? Se já não é permitido ver-vos, respondei ao menos a esta
carta; dizei ao menos que a vossa amizade é ainda a mesma.
Larga-me, cruel! Que nova fúria te anima? Receias que um
sentimento suave penetre até à minha alma? Duplicas os meus
tormentos; obrigas-me a odiar-te. Oh! Como o ódio é doloroso! Como
corrói o coração que o destila! Por que me persegues?
Que podes ter ainda para me dizer? Não me colocaste na
impossibilidade de te escutar e de te responder? Não esperes mais
nada de mim. Adeus, senhor.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *.


CARTA CLXII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Estou informado, senhor, do vosso procedimento para comigo.


Sei também que, não contente por me terdes indignamente
enganado, não receais vangloriar-vos e aplaudir-vos. Vi a prova da
traição escrita por vosso punho. Confesso que senti o coração
compungido, e que tive vergonha de ter contribuído para o odioso
abuso que fizestes da minha cega confiança, contudo não vos invejo
este vergonhoso triunfo; tenho apenas curiosidade de saber se o
conservareis no campo da honra. Espero ter a resposta amanhã de
manhã, entre as oito e nove horas, se quiserdes aparecer na porta do
bosque de Vincennes, aldeia de Saint-Mande. Encarregar-me-ei de aí
fazer aparecer tudo o que for necessário para os esclarecimentos que
me restam obter de vós.
Cavaleiro Danceny.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLXII

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

É com grande pena que cumpro o doloroso dever de anunciar


uma notícia que vos vai causar um tão grande desgosto.
Permiti que exorte em primeiro lugar essa piedosa resignação
que todos admiram por vós, e que é o único sentimento capaz de nos
ajudar a suportar os males de que está semeada a nossa miserável
vida.
O senhor vosso sobrinho... Meu Deus! Ver-me obrigado a afligir
uma tão respeitável dama! O vosso sobrinho teve a infelicidade de
sucumbir num combate singular que teve esta manhã com o Cavaleiro
Danceny. Ignoro inteiramente a causa da disputa; mas afigura-se-me,
pelo bilhete que encontrei ainda na algibeira do senhor Visconde e que
tenho a honra de vos enviar, afigura-se-me, dizia, que não era ele o
agressor. E foi justamente ele que o céu permitiu que sucumbisse!
Estava eu em casa do senhor Visconde, esperando-o, no próprio
momento em que o trouxeram. Imaginai a minha perturbação, ao ver o
vosso sobrinho conduzido por dois criados e todo banhado em sangue.
Recebera dois golpes, e já se encontrava muito fraco. O senhor
Danceny estava também presente, e chorava. Ah! Sem dúvida que
deve chorar, mas de que serve derramar lágrimas quando se causou
uma desgraça irreparável!
Eu por mim não me contive; e apesar do pouco que sou, disse-
lhe o que pensava do caso. Mas foi então que o senhor Visconde se
mostrou verdadeiramente grande. Ordenou que me calasse; agarrou
na mão do assassino, chamou-lhe amigo, beijou-o diante de todos, e
disse-nos: "Ordeno-vos que trateis este senhor com toda a consideração
devida a um homem valente e de brio." Mandou ainda que lhe
entregassem, diante de mim, uns papéis volumosos que não conheço,
mas de que sei terem para ele muita importância. Em seguida, quis que
os deixassem sós por um momento. Entretanto eu mandara sem demora
buscar todos os socorros, tanto espirituais como temporais, mas, ai!, o
mal não tinha remédio. Menos de meia hora depois, o senhor Visconde
perdera o conhecimento. Só pôde receber a extrema-unção; e mal a
cerimônia acabara, dava ele o último suspiro.
Meu Deus! Quando recebi nos braços à nascença este precioso
esteio duma ilustre casa, poderia eu prever que seria nos meus braços
que ele expiraria e que teria de chorar a sua morte?
Uma morte tão precoce e tão infeliz! As lágrimas deslizam-me
mesmo sem eu querer. Peço-vos perdão, minha senhora, de ousar
misturar a minha dor à vossa, mas em todas as classes se pode ter
coração e sensibilidade; e seria muito ingrato se não chorasse toda a
vida um senhor que tantas atenções tinha para comigo, e que me
honrava com a máxima confiança.
Amanhã, depois do funeral, mandarei selar tudo e podeis
descansar inteiramente nos meus cuidados. Não ignorais certamente,
minha senhora, que este infeliz acontecimento anula o vosso
testamento e torna as vossas disposições inteiramente livres.
Se vos puder ser de qualquer utilidade, peço-vos que me
queirais dar as vossas ordens, porei todo o meu zelo em as executar
pontualmente.
Sou, com o mais profundo respeito, minha senhora, vosso muito
humilde, etc.
Bertrand

Paris, 7 de Dezembro de 17 * *.

CARTA CLXIV

MADAME DE ROSEMONDE AO SENHOR BERTRAND

Recebi a vossa carta mesmo agora, meu caro Bertrand, e por


ela soube do terrível acontecimento de que o meu sobrinho foi a infeliz
vítima. Sim, sem dúvida que terei ordens a dar-vos; e só elas me farão
pensar noutra coisa que não seja a minha mortal aflição.
O bilhete do senhor Danceny, que me enviastes, é prova
convincente de que foi ele o provocador do duelo, e a minha intenção
é que apresenteis queixa imediatamente em meu nome.
Perdoando ao seu inimigo, ao seu assassino, o meu sobrinho
pôde satisfazer a sua natural generosidade; mas cabe-me a mim vingar
ao mesmo tempo a sua morte, a humanidade e a religião.
Nunca será demais excitar a severidade das leis contra este
resto de selvajaria que ainda infecta os nossos costumes; e não creio
que o perdão das injúrias nos possa ser prescrito num caso destes.
Espero pois que seguireis esta questão com todo o zelo e toda a
atividade de que vos sei capaz, e que deveis à memória do meu
sobrinho. Tratareis, antes de tudo, de ir ter da minha parte com o senhor
Presidente de..., e de conferenciar com ele.
Não lhe escrevo, apressada como estou de me entregar
inteiramente à minha dor. Apresentareis as minhas desculpas, e mostrar-
lhe-eis esta carta.
Adeus, meu caro Bertrand; louvo e agradeço os vossos bons
sentimentos, e estou para sempre ao vosso dispor.

Castelo de..., 8 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Sei que já estais informada, minha querida e digna amiga, da


perda que acabais de sofrer; conhecia a vossa ternura para com o
senhor de Valmont, e partilho sinceramente a aflição que deveis sentir.
Custa-me imenso na verdade ver-me forçada a acrescentar novas
dores às que já sofreis, mas só vos resta também verter lágrimas pela
nossa infeliz amiga. Perdemo-la ontem, às onze horas da noite. Por uma
fatalidade ligada ao seu destino, e que parecia troçar de toda a
prudência humana, o curto intervalo que sobreviveu ao senhor de
Valmont foi o bastante para tomar conhecimento da morte dele; e,
como ela própria o disse, para sucumbir sob o peso das suas desgraças,
só depois da medida estar completamente cheia.
Com efeito, já vos informara de que havia dois dias que ela
estava absolutamente inconsciente; e ainda ontem de manhã, quando
o médico chegou e nos aproximamos do leito, não nos reconheceu e
não pudemos obter nem uma palavra, nem o menor sinal. Pois bem!
Mal nos tínhamos aproximado da chaminé, e enquanto o médico me
informava do triste acontecimento da morte do senhor de Valmont,
aquela infeliz mulher recuperou a lucidez, ou porque a natureza sozinha
tivesse produzido essa transformação, ou porque fosse causada pelas
repetidas palavras de "senhor de Valmont" e de "morte", que talvez
tenham recordado à doente as únicas idéias de que ela se ocupava de
há muito tempo a esta parte.
Seja como for, abriu precipitadamente as cortinas do leito,
gritando: "O quê! Que dizeis? O senhor de Valmont morreu?"
Ainda tive esperanças de lhe fazer crer que se enganara, e
assegurei-lhe a princípio que tinha ouvido mal, mas, longe de se deixar
convencer, exigiu que o médico recomeçasse a cruel narrativa; e
vendo que eu procurava ainda dissuadi-la, chamou-me e disse-me em
voz baixa: "Para quê querer enganar-me? Ele já tinha morrido para
mim!" Foi forçoso ceder.
A nossa infeliz amiga escutou primeiro com um ar bastante
tranqüilo; mas logo interrompeu a narrativa, dizendo: "Basta, já sei o
suficiente." Pediu imediatamente que se fechassem as cortinas; e
quando o médico lhe quis prestar os cuidados que o seu estado exigia,
não consentiu que ele se aproximasse.
Assim que ele saiu, mandou também embora a enfermeira e a
criada de quarto; e quando já estávamos sós, pediu-me que a ajudasse
a pôr-se de joelhos sobre o leito, e que a segurasse.
Permaneceu algum tempo em silêncio, e sem outra expressão
que a das lágrimas que corriam abundantemente. Por fim, juntando as
mãos e elevando-as ao céu: "Deus Todo-Poderoso", disse ela com voz
fraca mas fervorosa, "submeto-me à Tua justiça; mas perdoa a Valmont.
Que as minhas desgraças, que reconheço merecidas, não lhe sejam
motivo de censura, e bendirei a Tua misericórdia!". Permiti-me, minha
querida e digna amiga, entrar em pormenores sobre um tal assunto que
bem vejo deve renovar e agravar as vossas dores, apenas porque
penso que este rogo de Madame de Tourvel será de grande consolo
para a vossa alma.
Depois de ter proferido estas poucas palavras a nossa amiga
deixou-se cair nos meus braços; e mal voltara a deitá-la, veio-lhe uma
prolongada fraqueza, que no entanto cedeu aos tratamentos habituais.
Assim que voltou a si, pediu-me que mandasse chamar o padre
Anselmo, e acrescentou: "Neste momento é o único médico de que
preciso; sinto que os meus males vão em breve terminar." Dizia sentir
uma opressão e falava com dificuldade.
Pouco depois mandou-me entregar, pela criada de quarto, o
cofrezinho* que vos envio; disse-me que continha papéis pessoais, e
encarregou-me de vo-lo enviar logo após a sua morte.
Em seguida falou-me de vós, e da vossa amizade por ela, tanto
quanto o seu estado lho permitia, e com muita ternura.
O padre Anselmo chegou por volta das quatro horas, e ficou
perto de uma hora sozinho com ela. Quando entramos de novo, o rosto
da doente estava calmo e sereno; mas era fácil perceber que o padre
Anselmo tinha chorado muito. Ficou para assistir às últimas cerimônias
da igreja. Este espetáculo, sempre tão imponente e doloroso, foi-o
ainda mais pelo contraste que formava a tranqüila resignação da
doente com a dor profunda do seu venerável confessor, que se
desfazia em lágrimas ao lado dela. A comoção tornou-se geral; e
aquela que todos choravam foi a única a não chorar.
O resto do dia passou-se nas habituais rezas, que só foram
interrompidas pelos freqüentes desmaios da doente. Finalmente, por
volta das onze da noite, pareceu mais oprimida e aflita.
Avancei a mão para procurar o braço dela; ainda teve forças
para a agarrar, e colocou-a sobre o coração. Já não o senti bater; e,
com efeito, a nossa infeliz amiga expirou nesse mesmo momento.
Recordais-vos, minha querida amiga, que quando da vossa
última viagem aqui, há menos de um ano, ao falarmos de algumas
pessoas cuja felicidade nos parecia mais ou menos assegurada, nos
detivemos com prazer sobre o destino desta mesma mulher, de quem
hoje choramos simultaneamente as desventuras e a morte? Virtudes,
qualidades louváveis, graças; um caráter tão doce e fácil; um marido
que ela amava, e por quem era adorada, um círculo de amigos onde
ela se sentia bem, e de que fazia as delícias; beleza, juventude, fortuna;
tantos dons reunidos e perdidos por uma só imprudência! Oh,
Providência! Sem dúvida que devemos adorar os teus decretos; mas
como são incompreensíveis! Fico-me por aqui; receio aumentar a vossa
tristeza, ao entregar-me à minha.
Deixo-vos e vou ver a minha filha que está um pouco indisposta.
*Este cofrezinho continha todas as cartas relativas à sua aventura com o senhor de
Valmont.
Ao informá-la esta manhã da morte tão rápida de duas pessoas
suas conhecidas, sentiu-se mal e mandei-a deitar-se.
Espero no entanto que este ligeiro incômodo não terá
conseqüências.
Naquela idade ainda não se está habituado aos desgostos, e a
impressão que causam é por isso mais viva e forte.
Esta sensibilidade tão à flor da pele é sem dúvida uma
qualidade louvável; mas como aquilo que vemos todos os dias nos
ensina a temê-la!
Adeus, querida e digna amiga.

Paris, 9 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXVI

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,
Em conseqüência das ordens que me haveis feito a honra de
dar, encontrei-me com o senhor Presidente de..., comuniquei-lhe a
vossa carta, prevenindo-o de que, segundo os vossos desejos, eu nada
faria a não ser pelos seus conselhos. O respeitável magistrado
encarregou-me de vos observar que a queixa que tendes a intenção
de fazer contra o senhor Cavaleiro Danceny comprometeria
igualmente a memória do senhor vosso sobrinho, cuja honra ficaria
inevitavelmente manchada pela sentença da corte, o que seria sem
dúvida uma grande infelicidade. A sua opinião é, pois, que se deve
evitar semelhante diligência; e que, se houvesse alguma coisa a fazer,
seria pelo contrário tratar de evitar que o Ministério Público tomasse
conhecimento desta infeliz aventura, que já fez demasiado ruído.
Estas observações pareceram-me cheias de sabedoria, e tomo
a decisão de esperar novas da vossa parte.
Peço-vos, minha senhora, que tenhais a amabilidade de, ao
enviar-mas, acrescentar algumas linhas sobre o vosso estado de saúde,
de que receio extremamente a reação a tantas desgraças.
Espero que perdoareis esta liberdade à minha dedicação e zelo.
Sou com respeito, minha senhora, vosso, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXVII

ANÔNIMA AO SENHOR CAVALEIRO DANCENY

Senhor,

Tenho a honra de vos prevenir de que se falou, esta manhã, no


tribunal da corte, entre os funcionários de El-Rei, do duelo que travastes
nestes últimos dias com o senhor Visconde de Valmont, e é de recear
que o Ministério Público apresente queixa.
Pensei que este aviso vos podia ser útil, quer para que façais agir
os vossos protetores a fim de evitar conseqüências desagradáveis; quer,
no caso de isso não ser possível, para estardes em posição de vos
defenderdes. Se me permitis um conselho, creio que faríeis bem,
durante algum tempo, em aparecerdes menos vezes em público do
que o tendes feito ultimamente. Se bem que geralmente se seja
indulgente para com casos destes, deve-se ao menos esse respeito
para com a lei.
Esta precaução torna-se tanto mais necessária quanto me
chegou aos ouvidos que uma certa Madame de Rosemonde, que me
afirmam ser tia o senhor de Valmont, queria apresentar queixa contra
vós, e então o Ministério Público não poderia deixar de tomar o assunto
em mãos. Talvez fosse conveniente que conseguísseis intervir junto dessa
dama.
Motivos particulares impedem-me de assinar esta carta.
Mas espero que, ignorando embora donde ela vos vem, não
deixareis ao menos de prestar justiça ao sentimento que a ditou.
Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXVIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Espalham-se por aqui, minha querida e digna amiga, acerca de


Madame de Merteuil, boatos bastante estranhos e muito lastimáveis.
Evidentemente estou bem longe de os crer, e apostaria até que
não passam de horríveis calúnias; mas sei demasiado bem como este
gênero de maldades, mesmo as menos verossímeis, adquirem
facilmente consistência, e como a impressão que deixam se apaga
dificilmente, para não estar alarmada com estas, embora eu julgue fácil
destruí-las. Desejaria, sobretudo, que fosse possível sustê-las desde já, e
antes que se tivessem espalhado mais. Só ontem soube, demasiado
tarde, os horrores que se começam por aí a dizer; e quando mandei
esta manhã um criado a casa de Madame de Merteuil, acabara ela de
partir para o campo, onde deve passar dois dias. Não me souberam
dizer para casa de quem tinha ido. A criada, com quem falei, disse-me
que a sua ama lhe ordenara que só a esperasse na próxima quinta-
feira; e nenhum dos criados que ela aqui deixou sabia mais qualquer
coisa. Eu própria não sou capaz de adivinhar onde possa estar; não me
recordo de nenhum dos seus conhecimentos que esteja no campo até
tão tarde.
Como quer que seja, podereis, assim o espero, conseguir-me,
daqui até ao seu regresso, os esclarecimentos que lhe podem ser úteis,
porque fundamentam estas odiosas histórias sobre as circunstâncias da
morte do senhor de Valmont, das quais suponho deverei ter sido
informada se são verdadeiras, ou que pelo menos vos será fácil
esclarecer, favor que muito vos peço.
Eis o que espalham; ou, pelo menos, o que por enquanto se
murmura apenas, mas que não tardará certamente a dar mais brado.
Diz-se que a querela surgida entre o senhor de Valmont e o
Cavaleiro Danceny é obra de Madame de Merteuil, que os enganava
igualmente a ambos; que, como quase sempre acontece, os dois rivais
começaram por se bater, e só depois é que, entre si, descobriram a
verdade, daqui resultou uma reconciliação sincera; e que para acabar
de revelar a verdadeira Madame de Merteuil ao Cavaleiro Danceny, e
também para se justificar inteiramente, o senhor de Valmont juntou às
suas palavras um grande maço de cartas, constituindo a
correspondência que mantinha regularmente com ela, e em que esta
conta sobre si própria, e no mais audacioso dos estilos, as anedotas
mais escandalosas que se possam imaginar.
Acrescenta-se que Danceny, na sua primeira indignação,
entregou as cartas a quem as quis ver, e que circulam agora por Paris.
Citam-se particularmente duas*: uma onde ela narra a inteira história da
sua vida e dos seus princípios, e que dizem ser o cúmulo do horror; a
outra, que iliba totalmente o senhor de Prévan, de cuja história
certamente vos recordais, pela prova que contém de que ele apenas
cedeu a nítidas provocações de Madame de Merteuil, e que o
encontro estava combinado com ela.
Tenho felizmente fortes razões para crer que estas acusações são
tão falsas como odiosas. Primeiro, sabemos ambas que o senhor de
Valmont não se ocupava com certeza de Madame de Merteuil, e
tenho todo o motivo para crer que Danceny não lhe dava mais
atenção, parece-me assim demonstrado que ela não podia ser nem o
motivo, nem a autora da desavença. Não compreendo igualmente
que interesse teria tido Madame de Merteuil, que supõem de acordo
com Prévan, em fazer uma cena que só poderia ser desagradável pelo
seu escândalo, e que poderia vir a ser muito perigosa para ela, visto
que *Cartas LXXXI e LXXXV desta coleção.(N. do A.)
arranjava assim um inimigo irreconciliável que ficava senhor de uma
parte do seu segredo, e que possuía então muitos partidários. No
entanto, é caso para pensar que, depois desta aventura, não se tenha
levantado uma única voz a favor de Prévan, e que, mesmo da sua
parte, não tenha havido qualquer reação.
Estas reflexões levar-me-iam a suspeitá-lo de ser o autor dos
boatos que correm, e a considerar estas infâmias como obra do ódio e
da vingança dum homem que, vendo-se perdido, esperava por este
meio espalhar pelo menos dúvidas, e desviar as atenções, o que talvez
lhe convenha. Mas qualquer que seja a origem destas maldades, o mais
urgente é destruí-las. Cairiam por si próprias se se descobrisse, como é
verossímil, que os senhores de Valmont e Danceny não se falaram após
o infeliz duelo, e que não houve nenhuma entrega de papéis.
Na minha impaciência de verificar os fatos, enviei esta manhã
um criado a casa do senhor Danceny; mas também não se encontra
em Paris. Os seus criados disseram ao meu que ele partira nessa noite,
por causa dum aviso que recebera ontem, e que se encontrava em
lugar secreto. Aparentemente receia as conseqüências da questão. É
pois só por vós, minha querida e digna amiga, que posso obter os
pormenores que me interessam, e que tão necessários podem vir a ser a
Madame de Merteuil.
Renovo os meus pedidos para que mos façais chegar às mãos o
mais cedo possível.
P. S. - A indisposição de minha filha não teve conseqüências; ela
apresenta-vos os seus respeitos.

Paris, 11 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXIX

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

Talvez acheis a decisão que hoje tomo um pouco estranha; mas,


suplico-vos, escutai-me antes de me julgar, e não vejais audácia e
temeridade onde só existem respeito e confiança. Não ignoro a culpa
de que sou réu a vossos olhos; e nunca ma perdoaria a mim próprio, se
pudesse pensar por um momento que me teria sido possível evitá-la.
Podeis mesmo ter a certeza, minha senhora, de que o fato de me
considerar isento de censura não me inibe de desgostos; e posso ainda
acrescentar com sinceridade que aqueles que vos causo contam muito
entre os que sinto. Para que acrediteis nestes sentimentos que ouso
expor diante de vós, deve bastar-vos que vos preste justiça, e que
saibais que, sem ter a honra de ser por vós conhecido, tenho no entanto
a de vos conhecer.
Contudo, quando gemo sob a fatalidade que causou
simultaneamente os vossos desgostos e a minha infelicidade, querem
fazer-me recear que, inteiramente entregue à vingança, vós procurareis
os meios de a satisfazer, recorrendo até à severidade da lei.
Permiti que vos observe que a este respeito a vossa dor vos
engana, visto que neste ponto o meu interesse está essencialmente
ligado ao do senhor de Valmont, que se encontraria envolvido ele
próprio na condenação que teríeis provocado contra mim. Julgaria eu,
minha senhora, poder pelo contrário contar mais com o vosso auxílio do
que com a vossa oposição, nos cuidados que eu poderia vir a ser
obrigado a tomar para que este infeliz acontecimento permanecesse
envolto em silêncio.
Mas este recurso de cumplicidade, que convém igualmente ao
culpado e ao inocente, não satisfaz a minha delicadeza; e desejando
afastar-vos como parte, reclamo-vos como juiz. A estima das pessoas
que respeitamos é demasiado preciosa para que eu me deixe expoliar
da vossa sem a defender, e creio que possuo os meios para tal.
De fato, se concordais que a vingança nos é permitida, digamos
melhor, que temos a obrigação de a exercer, quando se foi traído no
seu amor, na sua amizade, e, sobretudo, na sua confiança; se
concordais com isto, os meus erros vão desaparecer a vossos olhos. Não
acrediteis nas minhas palavras; mas lede, se para tanto tiverdes
coragem, a correspondência* que deposito em vossas mãos. A
quantidade de cartas aí incluídas em original parece dar o direito de
supor como autênticas as de que só existem cópias. De resto, recebi
estes papéis, tais como tenho a honra de vo-los enviar, do próprio
senhor de Valmont.
Nada acrescentei, e tirei apenas duas cartas que me autorizei a
publicar.
Uma era necessária à comum vingança do senhor de Valmont e
minha, à qual ambos tínhamos direito, e de que ele me encarregara
expressamente. Achei, de resto, que era prestar um verdadeiro serviço
à sociedade desmascarar uma mulher tão realmente perigosa como é
Madame de Merteuil, e que, como podereis ver, é a única, a
verdadeira causadora de tudo o que se passou entre mim e o senhor
de Valmont.
Um sentimento de justiça levou-me também a publicar a
segunda, para justificação do senhor de Prévan, que mal conheço, mas
que não merecia de forma alguma o tratamento rigoroso que acaba
*Foi com esta correspondência, com a entregue igualmente por ocasião da morte de
Madame de Tourvel, e com as cartas confiadas também a Madame de Rosemonde
por Madame de Volanges, que se formou a presente recolha, cujos originais subsistem
nas mãos dos herdeiros de Madame de Rosemonde.
de sofrer, nem a severidade dos juízos do público, mais temível ainda e
sob a qual geme desde então, sem nada ter com que se defenda.
Encontrareis pois apenas as cópias destas duas cartas, de que
me vejo forçado a guardar os originais. Quanto ao resto, não creio
poder colocar em mãos mais seguras um depósito que me interessa
não seja destruído, mas de que me envergonharia de abusar. Creio,
minha senhora, ao confiar-vos estes papéis, servir tão bem as pessoas a
quem dizem respeito, como se os tivesse enviado a elas próprias; e
poupo-lhes o embaraço de os receberem de mim, e de me saberem
informado de aventuras que, sem dúvida, desejam que todos ignorem.
Parte duma coleção bem mais volumosa, donde o senhor de
Valmont a tirou na minha presença, e que encontrareis quando os selos
forem tirados, sob o título, que eu vi, de Conta aberta entre a Marquesa
de Merteuil e o Visconde de Valmont.
Tomareis, a este respeito, a decisão que a prudência vos sugerir.
Sou com respeito, minha senhora, o vosso, etc.

P. S. - Alguns avisos que recebi e os conselhos dos amigos decidiram-me


a ausentar-me de Paris por algum tempo, mas o meu esconderijo,
secreto para toda a gente, não o será para vós.
Se me honrardes com uma resposta, peço-vos que a envieis para a
Comendadoria de..., por intermédio de P..., e ao cuidado do senhor
Comendador de... É de casa dele que tenho a honra de vos escrever.

Paris, 12 de Dezembro de 17* *.


CARTA CLXX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Caminho, cara amiga, de surpresa em surpresa, e de desgosto


em desgosto. Só uma mãe pode imaginar o que ontem sofri durante
toda a manhã; e embora as mais cruéis inquietações se tenham
acalmado depois, resta-me ainda uma grande aflição a que não vejo
o fim.
Ontem, pelas dez da manhã, admirada por a minha filha não ter
ainda aparecido, mandei a minha criada de quarto descobrir qual seria
a causa do atraso. Veio um momento depois muito assustada, e
assustou-me ainda mais, comunicando-me que a minha filha não
estava nos seus aposentos; e que desde manhã que a criada dela a
não encontrava. Imagine a minha situação! Mandei reunir todos os
criados e o porteiro, e todos me juraram não saber nada e nada poder
dizer-me sobre o acontecimento.
Passei pelo quarto da minha filha. A desordem que aí reinava
mostrou-me claramente que só saíra de manhã, mas não encontrei
mais nenhum esclarecimento. Examinei os armários e a secretária;
encontrei tudo no lugar e todos os trajos, com exceção do vestido com
que saíra. Nem sequer levara o pouco dinheiro que tinha com ela.
Como só ontem ela tivera conhecimento do que se diz acerca
de Madame de Merteuil, e lhe era dedicada, a ponto de ter chorado
durante todo o serão, lembrei-me que ela ignorava que Madame de
Merteuil estava no campo, e a minha primeira idéia foi que tivesse
querido ir ver a amiga, e cometido a loucura de ir sozinha. Mas o
tempo, que corria sem que ela voltasse, mergulhou-me de novo em
terríveis inquietações. Cada instante aumentava a minha aflição; e,
ardendo por saber a verdade, não ousava tentar informar-me, com
terror de dar a conhecer uma diligência que, talvez, depois preferisse
ter escondido de todos.
Não, nunca sofri tanto na minha vida.
Enfim, já passava das duas, quando recebi ao mesmo tempo
uma carta da minha filha e outra da Superiora do convento de... A
carta de Cecília dizia apenas que temia que eu me opusesse à sua
vocação religiosa, e que não ousara falar-me em tal; o resto eram só
desculpas por ter tomado, sem minha licença, aquela decisão, que eu
não desaprovaria decerto, acrescentava, se lhe conhecesse os motivos,
que no entanto me pedia que não tentasse descobrir.
A Superiora contava-me que, tendo visto chegar uma jovem só,
se recusara primeiro a recebê-la; mas que, depois de a interrogar e
saber quem ela era, julgara prestar-me um serviço, começando por dar
asilo à minha filha, para a não obrigar a novas diligências, a que
parecia estar resolvida. A Superiora, oferecendo-se como era razoável
para me entregar a minha filha, se eu a reclamar, exorta-me, como
convém à sua posição, a não me opor a uma vocação que considera
tão decidida; dizia-me ainda que não me pudera informar mais cedo
do sucedido, devido à dificuldade que tivera em conseguir que a
minha filha me escrevesse, porque o projeto dela era, segundo me
informa, que todos ignorassem para onde se retirara. É bem cruel a
obstinação dos jovens!
Dirigi-me imediatamente a esse convento; e depois de ter visto a
superiora, pedi-lhe que me deixasse ver a minha filha; esta consentiu em
vir a muito custo, e toda trêmula. Falei-lhe diante das religiosas, e só,
tudo o que consegui arrancar-lhe, entre muitas lágrimas, é que nunca
poderia ser feliz senão no convento; tomei a decisão de a deixar ficar,
mas ainda sem fazer parte das noviças como me pedia. Receio que a
morte de Madame de Tourvel e a do senhor de Valmont tenham
afetado de algum modo esta cabeça tão jovem. Por muito respeito
que tenha pela vocação religiosa, não veria sem pena, e até sem
temor, a minha filha tomar um tal caminho. Parece-me que temos já
bastantes deveres a cumprir, mesmo sem procurarmos mais; e ainda
que não é naquela idade que sabemos o que nos convém.
O que aumenta o meu embaraço é o próximo regresso do
senhor de Gercourt; será preciso romper este casamento tão vantajoso?
Como dar a felicidade aos filhos, se não basta desejá-la e dispensar-lhe
todos os cuidados? Ficar-vos-ia muito agradecida se me dissésseis como
precederíeis no meu lugar; não posso tomar nenhuma decisão. Nada
me aterroriza tanto como ter de decidir do destino dos outros, e temo
igualmente empregar nesta ocasião a severidade do juiz e a fraqueza
da mãe.
Acuso-me de aumentar os vossos desgostos falando-vos dos
meus; mas conheço o vosso coração, a consolação que dais aos outros
torna-se para vós na maior que poderíeis receber.
Adeus, querida e digna amiga; espero as duas respostas com
grande impaciência.

Paris, 13 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXI

MADAME DE ROSEMONDE AO CAVALEIRO DANCENY

Depois do que me deu a conhecer, senhor, resta-me chorar em


silêncio. Lamentamos vivermos ainda, quando sabemos semelhantes
horrores; coro de ser mulher quando vejo uma capaz de semelhantes
excessos.
Concordo, senhor, em pelo meu lado deixar no silêncio e
esquecimento tudo o que possa referir-se ou dar seguimento a estes
tristes acontecimentos. Desejo até que eles vos não causem mais
nenhuns desgostos além dos resultantes da infeliz vitória que tivestes
sobre meu sobrinho. Apesar dos erros que sou forçada a reconhecer
nele, sinto que nunca me consolarei da sua perda, mas a minha eterna
mágoa será a única vingança que me permitirei sobre vós; cabe ao
vosso coração apreciar-lhe a grandeza.
Se permitis à minha idade uma reflexão que se não faz na vossa,
é que, se estivéssemos esclarecidos quanto à nossa verdadeira
felicidade, não a procuraríamos fora dos limites prescritos pelas leis e
pela religião.
Podeis estar certo de que guardarei fielmente o depósito que
me confiastes, mas peço-vos que me autorizeis a não o dar a ninguém,
nem a vós, senhor, a não ser que seja necessário para vossa
justificação. Ouso crer que vos não recusareis a esta súplica, e que
sentis que muitas vezes se sofre por nos termos deixado arrastar, mesmo
pela mais justa vingança.
Não me atardo mais em pedidos, de tão persuadida que estou
da vossa generosidade e delicadeza; seria digno de ambos depositar
também nas minhas mãos as cartas de Mademoiselle de Volanges, que
parece que conservais e que certamente vos não interessam já. Sei que
esta menina cometeu muitas faltas para convosco; mas não julgo que
penseis em a castigar, e, pelo menos por respeito por vós próprio, não
aviltareis um objeto que tanto amastes. Nem preciso acrescentar que a
consideração que a filha não merece é devida à mãe, essa respeitável
dama, em relação à qual algo tendes a reparar, porque, enfim, mesmo
que procuremos justificar-nos por uma pretensa delicadeza de
sentimentos, aquele que primeiro tenta seduzir um coração ainda
honesto e simples torna-se o primeiro incitador à sua corrupção, e para
sempre responsável dos desvarios e excessos que se lhe seguem.
Não vos admireis, senhor, de encontrar tanta severidade do meu
lado; é a maior prova que vos posso dar da minha inteira estima. Esta
aumentará ainda se aceitardes, como desejo, guardar um segredo,
cuja repercussão vos prejudicaria e traria a morte a um coração
maternal, que já feristes. Enfim, senhor, desejo prestar este serviço à
minha amiga; e se receasse que me recusásseis esta consolação, pedir-
vos-ia que meditásseis primeiro que é a única que me deixastes.
Tenho a honra de ser. etc.

Do castelo de..., 15 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXII

MADAME DE ROSEMONDE A MADAME DE VOLANGES

Se tivesse sido obrigada, minha querida amiga, a mandar vir e a


esperar de Paris os esclarecimentos que me pedis a respeito de
Madame de Merteuil, ainda não me seria possível dar-vos-los; e sem
dúvida só teria recebido informações vagas e incertas, mas vieram-me
donde as não esperava, donde menos as poderia esperar; e estas são
absolutamente certas. Oh, minha amiga! Como essa mulher vos
enganou!
Repugna-me entrar em pormenores sobre este amontoado de
horrores; mas, seja o que for que se diga, podeis ter a certeza que ainda
se está longe da verdade. Espero, minha querida amiga, que me
conheçais o suficiente para acreditar na minha palavra; que não
exigireis de mim nenhuma prova; que vos bastará saber que existem em
abundância, e que as tenho neste momento entre mãos.
É com uma imensa dor que vos peço que não me obrigueis a
justificar o conselho que me pedis, relativamente a Mademoiselle de
Volanges. Rogo-vos que não vos oponhais à vocação que ela mostra.
Certamente nenhum motivo vos pode autorizar a forçar alguém a
tomar semelhante decisão, quando o interessado não se sente
chamado, mas às vezes é uma grande felicidade que ele sinta o apelo
divino; e bem vedes que a vossa própria filha vos diz que não a
desaprovaríeis, se soubésseis os motivos dela. Aquele que inspira os
nossos sentimentos sabe melhor que a nossa vã sabedoria o que
convém a cada um, e muitas vezes o que parece um ato da sua
severidade, é, pelo contrário, uma manifestação de clemência.
Enfim, a minha opinião, que bem sei que vos afligirá, e por isso
mesmo deveis crer que não vo-la dou sem ter refletido, é de que deixeis
Mademoiselle de Volanges ficar no convento, visto ser essa a sua
escolha; que encorajeis, em vez de contrariar, o projeto que ela parece
ter formado; e que, enquanto se espera pela execução do mesmo, não
deveis hesitar em romper o casamento que tínheis combinado.
Depois de ter preenchido estes penosos deveres da amizade e
na impossibilidade em que me encontro de acrescentar qualquer
consolação, resta-me, querida amiga, pedir-vos a graça de nunca mais
me interrogardes sobre nada que esteja relacionado com estes tristes
acontecimentos,deixemo-los esquecer, como merecem; e sem procurar
inúteis e terríveis esclarecimentos submetamo-nos aos decretos da
Providência, confiemos na sabedoria das suas decisões, mesmo
quando ela não permite que as compreendamos.
Adeus, minha querida amiga.

Castelo de, 15 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE


Oh, minha amiga! Com que véu assustador envolveis o destino
da minha filha! E pareceis temer que eu tente levantá-lo!
Que me esconde ele pois, que possa afligir ainda mais o
coração de uma mãe do que as horríveis suspeitas a que me
abandonais?
Quanto mais conheço a vossa amizade, a vossa indulgência,
mais os tormentos redobram, vinte vezes, desde ontem, quis sair desta
cruel incerteza e pedir-vos que me informásseis sem considerações nem
desvios; e de cada vez tremi de medo, pensando no pedido que me
haveis feito de não vos interrogar. Enfim, tomo uma decisão que me
deixa ainda alguma esperança; e espero que a vossa amizade não se
recusará ao meu pedido: é que me informeis se compreendi
aproximadamente o que me queríeis dizer; que não receeis revelar-me
tudo o que a indulgência materna pode cobrir, e que não seja
impossível de emendar. Se as minhas desgraças excedem esta medida
então consinto com até onde os meus receios podem ir.
Minha filha mostrou ter certa simpatia pelo Cavaleiro Danceny, e
fui informada de que chegou a receber cartas dele, e até a responder-
lhe; mas supunha ter conseguido impedir que este erro de criança
tivesse conseqüências perigosas; hoje, que tudo receio, concebo que
teria sido possível enganar a minha vigilância, e temo que a minha filha,
seduzida, tenha levado os seus desvarios ao cúmulo.
Recordo-me ainda de certas circunstâncias que parecem
fortificar este receio. Informei-vos de que minha filha se sentiu mal ao
receber a notícia da desgraça acontecida ao senhor de Valmont;
talvez esta reação tivesse apenas por causa a idéia dos riscos que o
senhor Danceny tinha corrido no combate. Depois, quando ela chorou
tanto ao saber o que se dizia a respeito de Madame de Merteuil, talvez
o que interpretei como sendo a dor da amizade fosse apenas o efeito
do ciúme ou da pena de descobrir que o seu amado lhe era infiel. A
sua última decisão pode também, parece-me, explicar-se pelo mesmo
motivo. Muitas vezes supomo-nos chamadas para Deus, apenas porque
nos sentimos revoltadas contra os homens. Enfim, supondo que estes
fatos sejam verdadeiros, e que os conheci, será possível, sem dúvida,
que os acheis suficientes para justificar o conselho rigoroso que me
haveis dado.
Contudo, se assim fosse, e embora censurando minha filha,
pensaria no entanto dever tentar ainda todos os meios para a salvar
dos tormentos e dos perigos inseparáveis duma vocação ilusória e
passageira. Se o senhor Danceny não perdeu por completo a noção da
honestidade, não se recusará a reparar um erro de que só ele é autor; e
creio enfim que o casamento com minha filha seja suficientemente
vantajoso para que ele e a família se sintam lisonjeados.
Eis, querida e digna amiga, a única esperança que me resta;
apressai-vos a confirmá-la, se tal é possível. Adivinhais como anseio pela
vossa resposta, e golpe terrível significaria o vosso silêncio.
Ia fechar a carta, quando um cavalheiro meu conhecido me
veio visitar e me contou a cena cruel por que Madame de Merteuil
passou anteontem. Como não recebi ninguém nestes últimos dias, de
nada sabia até este momento; eis a história, tal como ma narrou uma
testemunha ocular.
Madame de Merteuil, ao chegar do campo, antes de ontem,
quinta-feira, dirigiu-se à "Comédia Italiana", onde tinha o seu camarote;
estava sozinha, e, o que lhe deve ter parecido estranho, nenhum
homem a foi cumprimentar durante todo o espetáculo.
À saída, entrou, como era seu costume, no pequeno salão que
já estava cheio de gente; imediatamente se levantou um rumor, de que
aparentemente não se supôs objeto. Avistou um lugar vago num dos
bancos, e sentou-se; mas logo todas as mulheres que aí se encontravam
se levantaram como de acordo e deixaram-na absolutamente só. Este
nítido movimento de indignação geral foi aplaudido por todos os
homens e fez aumentar os murmúrios, que, dizem, foram até às vaias.
Para que nada faltasse à sua humilhação, teve o azar de o
senhor Prévan, que ainda não tinha aparecido em parte alguma depois
da sua aventura, entrar nesse momento no pequeno salão.
Assim que o viram, toda a gente, homens e mulheres, o cercou e
aplaudiu; achou-se, por assim dizer, transportado para diante de
Madame Merteuil, pelo público que fazia círculo em volta deles.
Afirmam que Madame de Merteuil conservou o ar de quem não vê
nem ouve coisa alguma, e que nem sequer o rosto se lhe alterou, mas
creio que é exagero.
De qualquer forma, esta situação, verdadeiramente ignominiosa
para ela, durou até ao momento em que anunciaram a sua
carruagem; à partida, os apupos escandalosos redobraram. É horrível
ser-se ainda parente desta mulher. O senhor de Prévan foi, nessa
mesma noite, muito bem acolhido por todos os oficiais do seu
regimento que aí se encontravam, e ninguém duvida que em breve lhe
restituirão o cargo e o posto.
A mesma pessoa que me contou tudo isto disse-me que
Madame de Merteuil teve, na noite seguinte, um forte ataque de febre,
que se supôs a princípio ser o efeito da situação violenta em que se
encontrava; mas já se sabe, desde ontem à noite, que se declarou um
ataque de varíola, confluente e com grande virulência.
Na verdade creio que morrer seria para ela uma felicidade.
Diz-se ainda que toda esta aventura a prejudicará muito no seu
processo, que está prestes a ser julgado e no qual se pretende que ela
tinha necessidade que a favorecessem.
Adeus, minha querida e digna amiga. Vejo que os maus foram
castigados, mas não encontro nisso nenhum consolo para as infelizes
vítimas.

Paris, 18 de Dezembro de 17* *.


CARTA CLXXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Tendes razão, minha senhora, e certamente não vos recusarei


nada que dependa de mim e a que parecerdes atribuir qualquer valor.
O maço que tenho a honra de vos enviar contém todas as cartas de
Mademoiselle de Volanges. Se as lerdes, vereis com espanto como se
pode reunir tanta ingenuidade e tanta perfídia. É, pelo menos, o que
mais me impressionou na última leitura que acabo de fazer.
Mas, podemos sobretudo deixar de sentir a mais viva indignação
contra Madame de Merteuil, quando nos recordarmos do horroroso
prazer com que aplicou todos os cuidados em abusar de tanta
inocência e candura?
Não, já não amo. Nada conservo dum sentimento tão
indignamente traído; e não é ele que me leva a procurar justificar
Mademoiselle de Volanges. No entanto, esse coração tão simples, esse
caráter tão doce e fácil, não se deixariam levar para o bem, mais
facilmente ainda do que o foram para o mal? Que outra jovem, saindo
do mesmo convento, sem experiência e quase sem idéias, e trazendo
para o mundo, como quase sempre acontece, uma igual ignorância do
bem e do mal; que outra, dizia eu, teria podido resistir melhor a tão
condenáveis artifícios?
Ah, para ser indulgente, basta refletir a quantas circunstâncias
independentes de nós se encontra ligada a alternativa assustadora da
delicadeza ou da depravação dos nossos sentimentos.
Far-me-íeis pois justiça, minha senhora, pensando que os erros de
Mademoiselle de Volanges, que sem dúvida senti vivamente, não me
inspiram contudo qualquer idéia de vingança. Já basta ser obrigado a
renunciar a amá-la! Custar-me-ia demasiado odiá-la.
Não precisei de refletir para desejar que tudo o que lhe diz
respeito, e que a poderia prejudicar, ficasse para todo o sempre
ignorado por toda a gente. Se na aparência adiei durante algum
tempo a realização dos vossos desejos a este respeito, creio poder
revelar-vos o motivo; quis esperar até ter a certeza de que não seria
incomodado pelas conseqüências deste infeliz caso.
Na altura em que pedia a vossa indulgência, a que ousava crer-
me mesmo com alguns direitos, receei ter o aspecto de a comprar por
esta condescendência da minha parte; e certo da pureza dos meus
motivos, tive, confesso-o, o orgulho de querer que não pudésseis
duvidar deles. Espero que me perdoareis este escrúpulo, talvez
demasiado suscetível, pela veneração que me inspirais e pela
importância que esta me leva a atribuir à vossa estima.
O mesmo sentimento me faz pedir-vos, como última graça, que
me informeis se achais que preenchi todos os deveres que me
impuseram as infelizes circunstâncias em que me encontrei.
Uma vez tranqüilo a este respeito, a minha decisão está tomada;
parto para Malta. Irei com prazer, e aí guardarei religiosamente os votos
que me separarão dum mundo do qual, tão novo ainda, já tenho tanto
a queixar-me; irei enfim procurar esquecer, sob um céu estrangeiro, a
lembrança de tantos horrores acumulados, e cuja recordação só
poderia entristecer e torturar-me a alma.
Sou com respeito, minha senhora, etc.

Paris, 26 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

O destino de Madame de Merteuil parece cumprir-se finalmente,


minha querida e digna amiga; e é de tal sorte que os seus maiores
inimigos estão divididos entre a indignação que ela merece, e a
piedade que inspira. Tinha razão ao dizer que seria para ela uma
felicidade morrer da varíola. Curou-se, é verdade, mas ficou
horrivelmente desfigurada; por cúmulo, perdeu um olho. Não a voltei a
ver; mas disseram-me que está verdadeiramente hedionda.
O Marquês de..., que não perde ocasião para uma maldade,
dizia ontem, falando dela, que a doença a virara do avesso, e que
tinha agora a alma estampada no rosto. Infelizmente todos acharam
que a expressão era justa.
Um outro acontecimento vem acrescentar-se às desgraças e
aos erros dela. O processo foi julgado anteontem, e perdeu-o por
unanimidade. Coube-lhe o pagamento das custas, danos e juros, e foi
forçada a restituir os bens aos menores; de forma que o pouco da
fortuna dela que não estava comprometido no processo foi absorvido,
e até para mais, pelas despesas.
Assim que soube esta notícia, embora ainda doente, fez os seus
preparativos e partiu de noite, sozinha e pela mala-posta.
Os criados dizem hoje que nenhum a quis seguir. Crê-se que
tomou o caminho da Holanda.
Esta partida ainda fez mais barulho que todo o resto; visto que
levou os diamantes, coisa de muito valor, e que deviam ser integrados
na herança do marido; as pratas, as jóias; enfim, tudo o que pôde,
deixando perto de 50000 libras de dívidas.
Uma verdadeira bancarrota.
A família deve reunir-se amanhã para chegar a acordo com os
credores. Se bem que parente muito afastada, ofereci o meu concurso;
mas não estarei presente à reunião, pois devo assistir a uma cerimônia
muito mais triste. A minha filha toma amanhã o hábito de noviça.
Espero que não esquecereis, querida amiga, que, neste grande
sacrifício que faço, não tenho outro motivo para a tal me julgar
obrigada, a não ser o silêncio que guardastes para comigo.
O senhor Danceny abandonou Paris há quinze dias. Dizem que
vai para Malta e que tem o projeto de lá se fixar. Talvez ainda fosse a
tempo de o reter... Minha amiga!... A minha filha é assim tão culpada?
Perdoareis sem dúvida que uma mãe só muito dificilmente ceda a esta
horrível certeza.
Que fatalidade se espalhou pois em volta de mim desde há um
tempo, que me feriu nos seres que me eram mais queridos! A minha filha
e a minha amiga!
Quem poderá deixar de tremer ao pensar nos males que pode
causar uma só ligação perigosa! E que desgostos se não poupariam
meditando mais nesta verdade! Que mulher não fugiria à primeira
proposta de um sedutor? Que mãe poderia sem tremer ver alguém
além dela falar à sua filha? Mas estas tardias reflexões vêm só depois
dos acontecimentos; e uma das mais importantes verdades, e talvez
das mais largamente reconhecidas, permanece sufocada e sem
emprego no turbilhão dos nossos inconseqüentes costumes.
Adeus, minha querida e digna amiga; sinto neste momento que
a nossa razão, já insuficiente para evitar as nossas infelicidades, o é
ainda mais para nos consolar.

Paris, Janeiro de 17* *.

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