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Poema do Cid
Tradução Maria do Socorro Almeida
Poema do Cid. Português.
P798 Poema do Cid / tradução Maria do
Socorro Almeida. – Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988.
(Obras-primas através dos séculos)
CDD - 861.1
∗
SUMÁRIO
Este índice informa a paginação da edição digitalizada. No decorrer do texto foram inseridas, entre
colchetes, as marcas de paginação referente à edição original para maior fidelidade de consulta
acadêmica.
O POEMA DO CID
1
Gesta: nome que se dá à epopéia medieval.
2
Jogral: Na Idade Média, autor ou intérprete de poemas épicos ou líricos.
etc.); as orações, implorando a proteção de Deus, como a de Dona Ximena
pelo Cid desterrado; a expressão de que se serve o poeta do Cid para
apresentar seus personagens chorando: “chorar dos olhos”, que aparecem
todas no Roland e outros poemas franceses mais antigos. Acrescente-se a
isso que a métrica do Cid e, em geral, de todas as manifestações da
poesia épica castelhana, é produto de uma imperfeita imitação das laisses
ou versos monorrímicos3 e da divisão do alexandrino4 francês [p. X] em
dois hemistíquios.5 Certas coincidências na fraseologia, que se notam
entre o Cid e os poemas franceses, poderiam servir também como prova
da influência destes. Assim, por exemplo, quando o poeta chama sua
pátria “Castela, a gentil”, não faz mais do que expressar o amor e a
admiração que nele desperta a terra castelhana, com uma fórmula poética
concebida sob a influência da “douce France” da Chanson de Roland.
Todos estes casos de influência e de imitação deixam intacta,
entretanto, a originalidade do Poema do Cid e, ainda mais, embora haja
influências, o poema castelhano distingue-se da gesta francesa por uma
série de peculiaridades notáveis que nos levaram ao título desta
apresentação.
Nossa intenção, ao colocar o Poema do Cid como uma epopéia
heterodoxa é, comparando-o à Chanson de Roland, considerada aqui
como modelo da épica medieval cristã, depreender suas peculiaridades
em relação ao poema francês, que o tornam, ousamos dizer, uma
narrativa contra-ideológica, no que diz respeito à ética e à estética
medievais, ou melhor, aristocrático-feudais.
Tal comparação é possível e viável na medida em que existe um
solo comum sobre o qual assentar as diferenças, isto é, os dois poemas
são muito parecidos: do mesmo gênero, aproximadamente da mesma
época, geograficamente próximos, tanto no que diz respeito ao lugar de
produção quanto ao espaço ficcional. Além disso, ambos tematizam a luta
cristãos x mouros como um diálogo sangrento entre a cruz e o crescente.
Se está criado o solo comum, que são as semelhanças, podemos
trabalhar com as diferenças que se estabelecem, por exemplo, na maneira
de tematizar a luta, de construir o herói, e até na linguagem, tomada aqui
como um conjunto de técnicas e procedimentos peculiares ao poema
épico e dos quais o autor da gesta espanhola se afasta, queremos crer,
deliberadamente.
[p. XI]
É nossa intenção, a partir do estabelecimento de tais diferenças,
recorrer ao contexto social em que os dois jograis criaram suas obras,
comparando-os também, e buscando nestes contextos e na relação
artista-público por eles proporcionada, uma explicação possível e até
provável para a heterodoxia do Poema do Cid.
Nosso método de trabalho é, portanto, de um lado, a comparação
dos textos, à luz de modernas teorias sobre o épico, fazendo, quando
necessário, adaptações do homérico ao cristão medieval, e de outro a dos
3
Monorrímicos: que têm a mesma rima.
4
Alexandrino: verso de doze sílabas; o alexandrino primitivo tem divisão e acentuação obrigatórias na sexta
sílaba.
5
Hemistíquio: em sentido amplo, cada um dos membros em que se divide um verso; em sentido restrito, a
metade de um verso alexandrino.
contextos, principalmente com base em estudos de Ramón Menéndez
Pidal, Américo Castro e Sánchez-Albornoz.
Para traçar um eixo de comparação entre as duas obras, tomamos a
liberdade de dar a cada uma delas um subtítulo: Chanson de Roland – o
mundo dado – e Poema do Cid – o mundo comentado. Essa subtitulação se
explicitará no decorrer do estudo, mas já adiantamos que, ao fazê-la,
pensamos, de um lado, no poema do feudalismo francês stricto sensu, em
que se apresenta, dentro do maniqueísmo característico da época e de
sua épica, um mundo perfeitamente organizado, que se mostra acabado
aos olhos do homem e que se divide em bons e maus: “chrétiens ont
raison, payens ont tort”. Por outro lado, voltamo-nos para o poema
espanhol em que o maniqueísmo está extremamente debilitado e
freqüentam o cosmos que é o poema (no sentido de que toda obra
literária é sempre um cosmos) todas as classes sociais, que têm voz e
criticam os homens e o mundo, dentro de um contexto que foge ao
feudalismo estrito e permite a um historiador dizer que Castela é uma
ilhota de homens livres no seio da Europa feudal.
Ainda antes de entrarmos na comparação, queremos deixar
assentada a relatividade das afirmações que forem feitas, ou seja, tais
afirmações não terão um caráter absoluto, dependendo sua validade de
serem estabelecidas não quanto a uma das narrativas em si e sim sempre
a uma delas em relação à outra. Por exemplo, quando falarmos em
realismo no Poema do Cid esta palavra não terá o sentido polêmico e
problemático [p. XII] com que se apresenta hoje no enfoque da produção
artística em geral e notadamente da literatura, mas estará colocada em
relação ao mundo maravilhoso, atemporal, aespacial da Chanson de
Roland.
Colocado o solo comum e a relatividade das afirmações, passemos
ao estudo comparativo.
A primeira característica diferenciadora está em uma categoria
muito cara a Staiger,6 o distanciamento do narrador que, como se sabe, é
para o ilustre teórico dos gêneros um traço relevante da epopéia homérica
a ponto de, a nosso ver, derivarem deste, segundo a própria conceituação
de Staiger, a maioria dos caracteres épicos homéricos. Tal distanciamento
se dá entre o narrador e a matéria narrada, mantendo-se este em uma
atitude de objetividade rigorosa em relação àquela. Na Chanson este
distanciamento está presente, por exemplo, no modo como o jogral vê o
mundo dado e o aceita, ou apresenta o herói definido por seu epíteto:
“Roland est preux, Olivier est sage”. No Poema do Cid, diferentemente,
pode-se às vezes falar em uma quase empatia, no modo como os
personagens têm voz: o povo de Burgos critica o rei que desterrou o herói
e até os muçulmanos falam para dizer que o Cid invade suas terras e não
agradece senão a seu Deus, apontando para uma discussão impensável
na época e na épica, dentro da ideologia religiosa. O que nos leva também
a colocar a quebra do distanciamento é que tais discursos são assumidos
pelo narrador, enquanto na Chanson os árabes também falam, mas a
palavra da mentira e da traição, que é também a palavra de Ganelon.
Ligado a esse distanciamento, encontra-se também na gesta francesa o
6
SAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968.
afastamento temporal. A pequena base histórica em que repousa a
Chanson remonta ao século VIII e refere a uma incursão feita por Carlos
Magno à Espanha, em que os franceses são rechaçados e mortos mais
provavelmente pelos próprios cristãos bascos. O jogral aproveita o
episódio, traz Carlos Magno [p. XIII] de sua época para o feudalismo,
cerca-o de barões poderosos, transforma o episódio em um desastre
nacional e a vingança contra os sarracenos em uma redenção do
cristianismo. O poema castelhano trabalha sobre matéria histórica quase
atual, pois os fatos narrados se dão cerca de cinqüenta anos antes. Assim,
o jogral está temporalmente próximo ao que narra e é de uma fidelidade
quase total aos fatos históricos. A geografia do Poema é também fiel e
minuciosa, podendo-se refazer os diversos roteiros dos personagens, na
Espanha de hoje.
Outra característica do mundo dado na Chanson é a imobilidade,
tanto temporal quanto social: os últimos anos de um homem somam-se
aos primeiros mas não decorrem destes, o que leva à construção de
personagens imutáveis, monolíticos, só dirigidos pelo destino. No Poema
nota-se uma evolução temporal, na qual veríamos até um embrião do
chamado tempo psicológico: o rei de Castela, que expulsa o Cid levado
pelas intrigas da corte, tem um tempo todo seu para mudar de atitude em
relação a ele e pouco a pouco, diante dos presentes cada vez mais ricos e
da fidelidade jurada, verificar que a única atitude política e humana é
perdoá-lo; durante todo o Poema o tempo é cuidadosamente marcado em
anos, meses e até dias. Quanto à imobilidade social, como já se disse, no
mundo da Chanson só habitam aristocratas que não teriam mais para
onde subir na escala social; as outras classes aparecem apenas para
compor um pano de fundo, mas só aristocratas são dignos de participar da
matéria épica. Ao contrário, o jogral castelhano povoa seu universo de
todas as classes, desde o rei até os peões e o povo de Burgos. Nem
mesmo o Cid é aristocrata; ele aparece no Poema como infanção, que é
um fidalgo da baixa nobreza, provavelmente de origem servil. Quanto à
evolução social, impensável na Chanson, é pedra de toque na gesta
espanhola. O próprio herói passa de infanção exilado e pobre a senhor de
grandes domínios, portanto rico e honrado, através das batalhas e dos
casamentos de suas filhas. No final do Poema o jogral já pode dizer que
hoje os reis de Espanha são seus parentes.
[p. XIV]
Outra marca do herói épico é que este vive e atua quase por conta
própria, levado por suas paixões, em Homero, e por motivos
transcendentais, na épica medieval. Assim, Roland luta pelo Imperador,
pela Pátria, a “douce France” e pela religião e, em lugar de procurar fugir
à morte, oferece-se a ela, ao não tocar a trompa. Quando finalmente a
toca, não o faz visando a sua própria salvação, mas chamando Carlos
Magno para a vingança. Para Roland, honrar-se é morrer. Já o Cid procura
traçar planos de combate, possui uma estratégia e gratifica
generosamente os que se distinguem nas batalhas. Dentro do que já
chamamos relatividade, não queremos negar os motivos transcendentais
que movem o herói castelhano, assim como a Roland, e que têm seu
ponto principal na luta pelo cristianismo. Mas a este transcendente vem
juntar-se um forte componente de interesses materiais. Quando o herói
deseja engrossar o seu exército, manda fazer pregões e o narrador pode
dizer uma coisa impensável do lado de lá dos Pirineus: que ao cheiro dos
ganhos acorreu gente de toda a limpa cristandade. Freqüentemente o Cid
exorta os companheiros a bem lutar, acenando-lhes com um soldo
dobrado. Isto nos leva a outro ponto que na Chanson está
extraordinariamente velado pela ideologia aristocrática feudal, que é o
fato econômico. No Poema o poder deste é tão grande que o narrador
discrimina criteriosamente os despojos de cada batalha e mostra como
são divididos democraticamente, só que ficando o herói com um quinto do
total. O Cid, como herói épico heterodoxo, enfileira-se para ganhar a vida
e, quando de sua grande façanha, a conquista de Valença, leva a mulher e
as filhas para a torre mais alta do “alcázar”, não para que elas assistam a
façanhas heróicas, mas para que vejam como se fazem moradas em
terras de mouros e como se ganha o pão. Diferentemente da ideologia
aristocrática feudal, em que a honra é oposta ao proveito e só merece o
galardão da fama, no Poema vê-se bem que a honra está estreitamente
ligada à riqueza. Os infantes de Carrión, que são condes da alta linhagem,
ao manifestarem seu desejo de casar-se com as filhas do Cid, o fazem
dizendo que poderiam [p. XV] tomá-las por esposas, pois o Cid cresce em
honra e riqueza. Fato também relevante é que Roland precisa morrer para
manter a honra, enquanto o Cid precisa viver e enriquecer para recuperá-
la. Um leit-motif do Poema são as palavras do herói de que ainda tornará
honrado a Castela.
Ligada à questão da imobilidade social e temporal, do herói
monolítico e da fatalidade estão os epítetos. Na Chanson os epítetos são
únicos e definem o herói: “Roland est preux, Olivier est sage”. O ser
“preux” (bravo) determina a conduta de Roland, como a de Olivier o ser
“sage” (prudente). A Olivier cabe exortá-lo a tocar a trompa e a ele não
tocá-la até que saiba que vai morrer. Já no Poema têm-se vários epítetos.
O próprio herói é “o Cid”, “o Cid Campeador”, “o que em boa hora
nasceu”, “o que em boa hora cingiu espada”, e depois da conquista maior
um epíteto novo aparece: “meu Cid, o de Valença”. Quanto ao rei, antes
de perdoar o Cid, é apenas “Afonso, o castelhano”, “o rei de Castela” etc.,
mas depois de perdoá-lo passa a ser “Afonso, o bom rei”. Quando o tempo
passa e as circunstâncias se modificam no mundo comentado, os epítetos
acompanham tal modificação. O herói épico já não é monolítico (sempre
dentro do relativismo das afirmações) mas, fugindo à fatalidade que
acompanha Roland, tem expedientes para ganhar batalhas, dinheiro e o
perdão real; amadurece com o tempo, pensa antes de agir para ver o que
melhor lhe convém: por exemplo, a vingança contra os condes de Carrión,
que lhe maltrataram e abandonaram as filhas, não é sangrenta como a de
Carlos sobre Ganelon mas sim jurídica, decidida em Cortes que o rei
convoca a pedido do herói. O Cid é capaz até de, sem deixar de ser herói,
cometer uma trapaça. Quando precisa sair de Castela, desterrado e sem
dinheiro, envia o amigo Martin Antolínez com duas arcas cheias de areia,
ricamente enfeitadas, que este leva aos judeus Raquel e Vidas, pedindo-
lhes que não as abram, pois não há tempo e dizendo-lhes que estão
cheias de ouro; com isto consegue enganar os judeus e obter o
empréstimo de que necessitava. Este herói “excêntrico”, que muda os
fatos a seu favor, revela-se um estrategista na batalha [p. XVI] e na vida e
dribla a fatalidade, bem poderia, comparado ao clássico herói da gesta,
ser chamado o arquiteto de seu próprio destino.
O herói épico tradicional é sobre-humano, tem poderes mágicos (a
trompa e a espada de Roland) e não suporta uma situação doméstica. O
Cid é um herói humano porque suas excelências nunca saltam ao
sobrenatural; além disso, tem mulher e filhas, preocupa-se com o seu
bem-estar material e moral e tem uma meta que quase iguala em
importância a sua meta maior de voltar honrado (e rico) a Castela: é de
não morrer sem deixar bem casadas as suas filhas. Para proteger a
família, quando sai exilado, deixa-a em um mosteiro e depois de
recomendar ao abade a sua segurança e bem-estar diz que para cada
marco gasto na despesa dará quatro ao mosteiro, portanto com juros de
quatrocentos por cento. (E a proibição de juros pela própria Igreja?) Tem-
se um herói casado e pai, com preocupações familiares que hoje diríamos
burguesas. Roland, ao contrário, é noivo da donzela Aude, apenas
mencionada na Chanson e que morre ao saber por Carlos da morte do
herói. Tal fato pode ser romanticamente lido como “morrer de amor” mas
no ambiente não romântico da epopéia pareceria melhor o cumprimento
do estabelecido no mundo dado: a donzela estava destinada a Roland, o
primus inter pares, e tendo este deixado de existir ela não poderia ser de
outro, restando-lhe apenas morrer.
Pode-se dizer ainda que o Poema do Cid desmitifica a Chanson de
Roland não só no que toca ao que já se viu da ideologia feudal cristã (vide
pagamento ao abade e honra igual a propriedade territorial) mas ainda no
que se refere ao próprio herói como mito. Não se quer dizer que o Cid não
seja um herói mítico mas, como já se viu, essa mitificação se faz no
terreno das excelências humanas. Isso se verifica, não só comparando os
dois heróis mas também os dois reis: Afonso de Castela, com interesses
políticos definidos e como fiel da balança entre a aristocracia feudalizante
e uma classe média agrária de pequenos e médios proprietários e Carlos
Magno, “l’empereur à la barbe fleurie”, paladino do cristianismo [p. XVII]
no mundo, com mais de duzentos anos de vida e, numa leitura mítica,
representando o Deus Pai. Para melhor explicitar essa desmitificação
elaborada pelo jogral castelhano servimo-nos das espadas, atributos por
excelência dos heróis. A espada de Roland é a mágica Durendal à qual ele
dedica uma belíssima oração. As espadas do Cid são duas, o que já
reduplica o objeto, tirando-lhe o caráter único; foram ganhas em combate
e valem, não por dotes mágicos, mas por sua tempera e pelos pomos de
metais preciosos e pedrarias, ou seja, as espadas são funcionais e seu
valor pode ser trocado em moeda material. Vê-se isso quando o narrador
diz que num combate o Cid ganhou a espada Colada que “valia mais de
mil marcos”.
Para o final deixamos a questão do realismo que de certa forma
engloba as questões anteriores. O realismo do Poema do Cid será aqui
colocado, como já se disse, tomado o termo em oposição ao mundo
maravilhoso da Chanson de Roland. Esse realismo será proposto em três
vertentes: historicismo, verismo ou verossimilhança externa e
referencialidade.
Quanto ao historicismo, desde muito tempo, por esse motivo, o
Poema foi visto pela crítica mais tradicional como crônica rimada ou
biografia epopeizada, devido à sua fidelidade histórica quase total. Isto
sem levar em conta que o histórico é aí uma categoria estética, tal como o
maravilhoso na Chanson de Roland. Acresce que os poucos episódios não
históricos do Poema estão dentro do que chamaríamos o possível histórico
e servem para acentuar a trajetória do herói. Assim, desfeitos os primeiros
casamentos de Dona Elvira e Dona Sol, diz o narrador que elas se casaram
com os Infantes de Navarra e de Aragão, da família real. Isso não é
historicamente verdadeiro mas historicamente possível e o jogral assim o
faz para poder dizer que o Campeador é agora parente dos reis de
Espanha, o que marca a trajetória vertiginosa do herói, desde o exílio e a
pobreza até a riqueza, a honra e o palácio real. Já se disse que a Chanson
praticamente nada tem de histórico e é acrônica, trazendo Carlos Magno
de sua época para [p. XVIII] aquela em que foi composto o poema, com
uma diferença de pelo menos três séculos. Tanto é assim que o Imperador
todo-poderoso aparece como impotente para desobedecer à decisão de
seus vassalos. Na célebre seqüência da nomeação de Roland, em que este
é levado à morte por comandar a retaguarda, as decisões são tomadas
por Ganelon com a concordância dos outros barões e Carlos nada pode
fazer senão chorar e puxar a barba, em sinal de pesar pela morte de seu
querido vassalo e sobrinho dileto, morte aliás já anunciada na atmosfera
da seqüência. Isso porque no Feudalismo mandam os barões (a
aristocracia terratenente) e o rei é figura quase decorativa. Para conciliar
a discordância, o jogral monta claramente um esquema mítico, em que
Carlos Magno é Deus Pai, Roland remete à figura de Cristo morto em
holocausto para salvar o homem (os cristãos) e os doze pares remeteriam
aos doze apóstolos, não faltando aí o traidor Judas-Ganelon. Sendo Deus,
Carlos, o Imperador, é onipotente e tudo é feito segundo sua vontade, mas
é também onisciente e sabe que o que determinou não pode ser mudado;
a doutrina da Igreja diz que o próprio milagre já está previsto nos planos
de Deus e essa impossibilidade de mudança figura na famosa cena dos
Evangelhos, em que Cristo pede ao Pai: afasta de mim este cálice. Assim,
o que é histórico em um poema apresenta-se mítico no outro.
O verismo, ou verossimilhança externa, é fácil de verificar; para o
leitor comum de hoje é esta verossimilhança que dá credibilidade ao
relato, ou seja, o que ocorre na ficção poderia ocorrer na realidade. Desse
ponto de vista a Chanson é totalmente inverossímil (espada mágica,
trompa mágica, parada do sol etc.) e o Poema é quase totalmente
verossímil, apresentando um ou outro exagero, principalmente nas
batalhas.
Quanto à preferencialidade, segundo Luís Costa Lima,7 são realistas
as obras em que o código lingüístico co-divide sua [p. XIX] importância
com o código cultural, isto é, obras cuja matriz não pode ser determinada
apenas internamente, mas sim em sua ligação com o contexto a que se
referem (o referente). No caso da Chanson, por sua falta de cronologia,
por sua espacialidade não determinada, pelo uso de esquemas míticos e
do maravilhoso e por refletir, sem nenhum desvelamento, a ideologia
aristocrática feudal, acreditamos que a matriz do poema possa ser
7
LIMA, Luís Costa. Realismo e literatura. In: __________. A metamorfose do silencio. Rio de Janeiro,
Eldorado, 1974. p. 27-46.
determinada sem que se tenha que recorrer necessariamente ao contexto.
No Poema, por seu historicismo, sua verossimilhança externa, seu
desvelamento da ideologia oficial, é impossível determinar-se a matriz ou
o sentido último sem recorrer ao contexto cultural; pelo menos mais
necessariamente do que na Chanson. Esta conceituação de Costa Lima vai
aqui sem discussão, não porque seja incontestável, apenas porque não
haveria espaço para tanto e, no caso presente, acreditamos que funcione.
Como última etapa deste breve estudo comparativo, aproximamo-
nos agora do contexto cultural da Península Ibérica, principalmente de
Castela, para buscar nele uma explicação plausível para a heterodoxia do
Poema.
Antes de fazermos tal incursão, queremos deixar assentado, com os
estudiosos da Idade Média em seus aspectos econômicos e sociais,
principalmente Henri Pirenne, que o feudalismo francês foi o mais perfeito
e acabado de toda a Europa, servindo ao conhecido historiador da Idade
Média como modelo de feudalismo. Já na Península Ibérica, por razões que
só muito resumidamente apontaremos, o feudalismo é extremamente
relaxado (poder do rei como comandante da Reconquista, presença do
inimigo de fora que une a todos na guerra de cruzada em torno do rei).
Nesse feudalismo relaxado já é possível pensar-se em certa mobilidade
social; acresce que, reconquistada Castela, o rei, por razões históricas que
não caberiam nos limites desta apresentação, usando de seu poder, divide
a região não em grandes latifúndios mas em pequenas e médias
propriedades que dá a camponeses que lutaram e continuarão lutando na
Reconquista. Tais camponeses, com a ajuda da família e através da guerra
constante, [p. XX] aumentam suas propriedades e sobem na escala social:
de peões a cavaleiros-vilões e infanções; o Cid aparece no Poema como
infanção mas sabe-se historicamente que pode descender de
camponeses-peões. A diferença entre um aristocrata de sangue e um
infanção é tão grande ou maior do que a existente entre este e um
camponês. O jogral sabe disso e no Poema os infantes de Carrión, depois
de maltratar e abandonar as esposas, filhas do Cid, podem dizer que
fizeram muito bem, são da alta linhagem dos condes de Carrión, filhas de
infanções não eram para eles e nem para barregãs deveriam tê-las
tomado. Tem-se então um poema épico que é também um poema político
e tematiza, em alguns aspectos, por estranho que possa parecer, a luta de
classes. Tem-se também um herói não aristocrata que cava seu lugar na
sociedade e penetra na aristocracia. Dentro desse contexto, o herói
precisa ser humano e o poema precisa ser realista porque os ouvintes
assim o desejam. Já se levantou a hipótese de que o poema seria realista
porque o jogral, cantando fatos ocorridos há tão pouco tempo, encontraria
entre os ouvintes pessoas que conheceriam a verdade por tê-la ouvido de
pais e avós e a cobrariam dele. Mas devemos pensar que a atitude de
quem ouve um poema não é a mesma de quem ouve uma crônica e para
ouvi-lo todos têm que munir-se do que Coleridge chamou “a suspensão
temporária da descrença”. O mais plausível é que os ouvintes
camponeses, que estão perto do Cid, desejem um herói humano e um
relato fidedigno; o tipo de identificação público-herói tem um caráter de
emulação, enquanto o público camponês da Chanson, sabendo que jamais
poderá chegar sequer perto de Roland, deseja um herói sobre-humano e a
identificação se faz por evasão de sua realidade e magnificação da pessoa
do herói. Ambos os poemas são didáticos: o francês diz aos camponeses
que a classe dominante deve ser louvada e admirada por ser a guardiã e
defensora dos valores que sustentam o corpo social e o poema castelhano
diz também aos camponeses que sejam leais ao rei, valentes e honestos
como o Cid o foi e poderão chegar ao que ele chegou.
[p. XXI]
Nesta apresentação, em nenhum momento, enveredamos por
critérios de valor, ou seja, cogitamos qual dos dois poemas seria
esteticamente melhor. Nossa intenção foi tão-somente levantar as
peculiaridades que fazem do Poema do Cid uma epopéia heterodoxa.
O que nos parece indispensável colocar, como conclusão, é que o
Poema do Cid, por ser peculiar, não deixa de ser uma epopéia e, como
criação castelhana, ibérica, universal, é uma obra de arte. Não que o
realismo, a historicidade sejam, em si mesmos, méritos artísticos, como
não o é em si mesma a fantasia. O que lhe confere mérito artístico é que o
histórico, ao integrar-se no universo criado, torna-se categoria estética. E
os fatos históricos estão em um poema, não em uma crônica.
A tradução que ora apresentamos ao leitor brasileiro parte de uma
prosificação do poema, em espanhol moderno, feita por Alfonso Reyes.
Reyes toma por base a edição preparada por Ramón Menéndez Pidal para
os Clásicos castellanos de La Lectura (Madri, 1913) e segue estritamente o
texto estabelecido pelo ilustre filólogo, copiando, inclusive, a divisão de
estrofes. Antecedendo cada estrofe, nas pegadas de Pidal e Reyes,
colocamos um resumo do acontecido, que facilitará o entendimento do
leitor comum, não familiarizado com certos procedimentos em um poema
com a respeitável idade de mais de oito séculos. Para algumas palavras
caídas em desuso, ou de difícil compreensão, que não podiam ser
substituídas, damos esclarecimentos em notas de pé de página.
A bibliografia sumária apresentada ao final é uma sugestão para
quem deseja obter maiores informações sobre a obra e conhecer alguns
importantes estudos críticos do texto.
[p. XXII]
ROTA DO CID, A PARTIR DO DESTERRO, ATÉ A CONQUISTA DE
VALENÇA.
PRIMEIRO CANTAR
DESTERRO DO CID
O rei Afonso envia o Cid para cobrar tributos do rei mouro de Sevilha. Este
é atacado pelo conde castelhano Garcia Ordóñez. O Cid, em ajuda ao
mouro, vassalo do rei de Castela, vence Garcia Ordóñez em Cabra e
prende-o com afronta. O Cid volta a Castela com os tributos mas seus
inimigos conseguem indispô-lo com o rei. Este desterra o Cid.
O rei Dom Afonso mandou o Cid Rui Dias receber o tributo que os
reis de Córdova e de Sevilha tinham de pagar-lhe todos os anos.
Almutamiz, rei de Sevilha e Almudafar, rei de Granada, eram então
grandes inimigos e odiavam-se mortalmente. Almudafar, rei de Granada,
tinha a seu lado alguns senhores que o ajudavam: o conde Garcia Ordóñez
e Fortun Sánchez – genro do rei Dom Garcia de Navarra – e Lope Sánchez.
Todos estes auxiliavam Almudafar com seu poder e juntos marchavam
sobre Almutamiz, rei de Sevilha.
O Cid Rui Dias, quando soube que vinham sobre o rei de Sevilha,
que era vassalo e tributário do rei Dom Afonso, seu senhor, irritou-se,
sentiu grande pesar e enviou cartas a todos, rogando-lhes que não se
empenhassem em atacar o rei de Sevilha e destruir suas terras, pela
obrigação que tinham com o rei Dom Afonso, e que se a todo custo
queriam fazê-lo, tivessem por certo que o rei Dom Afonso não poderia
deixar de defender seu vassalo, posto que era seu tributário. O rei de
Granada e os ricos-homens não fizeram caso das cartas do [p. 1] Cid e
caíram sobre o rei de Sevilha, destruindo todas as suas terras até o
castelo de Cabra.
Ao ver isto, o Cid Rui Dias recrutou todas as forças que pôde juntar
entre cristãos e mouros e marchou contra o rei de Granada, para expulsá-
lo das terras do rei de Sevilha. Quando disto souberam o rei de Granada e
os ricos-homens que o acompanhavam, mandaram-lhe dizer que não seria
ele quem os tiraria daquelas terras. Ouviu-o o Cid Rui Dias e achou-se
obrigado a castigá-los e foi-se a eles, combatendo-os em batalha campal
1
que durou desde a terceira hora até o meio-dia, e grande foi a
mortandade de mouros e cristãos do lado do rei de Granada. Assim
venceu o Cid a seus inimigos, obrigando-os a abandonar o campo. Nesta
batalha ele prendeu Dom Garcia Ordóñez e arrancou-lhe um tufo das
barbas, assim como prendeu muitos outros cavaleiros. Tantos foram os
inimigos presos que se perdeu a conta. Três dias teve-os cativos o Cid e
depois os mandou soltar. Mas antes ordenou aos seus que recolhessem
todos os bens e riquezas abandonadas no campo e foi ter com Almutamiz,
2
rei de Sevilha, levando sua tropa e seu despojo.
A ele e a seus mouros entregou, dos objetos resgatados, quanto
reconhecessem por seu e ainda do demais quanto quisessem tomar. E
Terceira hora: uma das horas canônicas do rito católico.
Despojo: presa; aquilo que se apreendeu ao inimigo.
desde então cristãos e mouros passaram a chamar Rui Dias de Vivar de
Cid Campeador, para recordar sua bravura nas batalhas.
Almutamiz presenteou-o ricamente e entregou-lhe ainda o tributo
que tinha vindo cobrar. O Cid levou o tributo ao rei Dom Afonso, seu
senhor. O rei recebeu-o muito bem, declarou-se satisfeito com ele e muito
contente com sua conduta. E esta foi a causa de que aparecessem muitos
invejosos buscando razões que o malquistassem com o rei.
Este deu-lhes ouvidos porque tinha uma velha rixa com o Cid e
mandou-lhe dizer por carta que saísse do reino. O Cid, lida a carta, ainda
que cheio de pesar, não quis demorar [p. 2] a obedecer, pois tinha um
prazo de nove dias para cumprir o mandado.
1
O Cid convoca seus vassalos; estes desterram-se com ele. (Continua o
relato da Crônica de vinte reis, seguido de versos de uma refundição do
poema.) Adeus do Cid a Vivar. (Aqui começa o manuscrito de Per Abbat.)
2
Agouros no caminho de Burgos.
4
Ninguém hospeda o Cid. Só uma menina dirige-lhe a palavra, para mandá-
lo afastar-se. O Cid tem que acampar fora do povoado.
5
Martin Antolínez vem de Burgos para prover de víveres o Cid.
6
O Cid, empobrecido, recorre à astúcia de Martin Antolínez. As arcas de
areia.
7
As arcas destinadas a obter dinheiro de dois judeus burgaleses.
8
Martin Antolínez volta a Burgos, em busca dos judeus.
9
Conversa de Martin Antolínez com os judeus. Estes vão à tenda do Cid e
apanham as arcas de areia.
10
O Cid despede os judeus. Martin Antolínez vai com eles a Burgos.
11
O Cid, provido de dinheiro pelos judeus, dispõe-se a partir.
13
Martin Antolínez volta à cidade.
14
O Cid vai a Cardeña, despedir-se de sua família.
15
Os monges de Cardeña recebem o Cid. Ximena e suas filhas chegam
diante do desterrado.
Matinas: primeira das horas canônicas.
pois, afinal, a meu lado; sede meu hóspede.
– Graças, senhor abade; muito satisfeito estou convosco! Eu
conseguirei comida para mim e para minha gente. Como tenho que sair
desta terra, quero deixar-vos cinqüenta marcos e dobrá-los-ei, se Deus me
der vida e saúde; não quero causar o menor gasto ao mosteiro. Eis aqui
outros cem marcos, para que possais servir, durante este ano, a Dona
Ximena, a suas filhas e damas. Cuidai-me bem dessas duas meninas, vo-
las encomendo especialmente, abade Dom Sancho. Tende todos os
cuidados com elas e com minha mulher. Se acabar o dinheiro, ou faltar
algo, proverei tudo do mesmo modo. Por cada marco despendido, darei
quatro ao mosteiro.
A tudo disse que sim, de bom grado, o abade.
[p. 11]
Mas eis aqui Dona Ximena e com ela suas filhas, cada uma nos
braços de uma ama. Dona Ximena ajoelha-se diante do Campeador; não
pode conter as lágrimas, quer beijar-lhe as mãos:
– Campeador, Campeador, em boa hora nascestes. Ai que vos
desterram as intrigas dos malvados.
16
Ximena lamenta o desamparo em que ficam suas filhas pequenas. O Cid
espera chegar a casá-las honradamente.
17
Uma centena de castelhanos junta-se em Burgos para seguir com o Cid.
19
Última noite que o Cid dorme em Castela. Um anjo consola o desterrado.
20
O Cid acampa na fronteira de Castela.
21
Contagem das gentes do Cid.
Ainda era de dia e não se tinha posto o sol, quando o Cid Campeador
quis passar revista em sua gente. Fora os peões e outros valentes, contou
trezentas lanças, todas com pendões.
22
O Cid entra no reino mouro de Toledo, tributário do rei Afonso.
23
Plano de campanha. Castejon cai em poder do Cid. Algara contra Alcalá.
24
Minaya não aceita nada do despojo e faz um voto solene.
4
– Ilustre Campeador, muito vos agradeço. Com este quinto que me
ofereceis, até o castelhano Afonso dar-se-ia por bem pago. Mas eu vo-lo
devolvo. E prometo a Deus, que está no alto, que enquanto não me
satisfaça de lutar em campo com os mouros, montado em meu cavalo,
empunhando a lança e sacando a espada, até que o sangue escorra diante
de Rui Dias, o grande Campeador, não hei de aceitar que me pagueis
sequer uma moeda. Quando vos ganhar algo que valha a pena, aceitarei
minha parte; por enquanto, tomai tudo para vós.
25
O Cid vende seu quinto aos mouros. Não quer lutar com o rei Afonso.
26
O Cid vai para terras de Saragoça, dependentes do rei mouro de Valença.
– Não leveis a mal o que vos digo. Sabei que aqui em Castejon não
poderíamos ficar. O rei Afonso está perto e viria buscar-nos. Mas
tampouco quero assolar este castelo. Darei liberdade a cem mouros e cem
mouras, a fim de que não digam mal de mim, pelo que lhes tiro. Estais
todos pagos e ninguém fica por pagar. Amanhã de manhã sairemos, pois
não quero lutar com Afonso, meu senhor.
A todos pareceu bem o que disse o Cid. Abandonam, pois, o castelo,
enriquecidos, com as bênçãos de mouros e mouras.
Caminham Henares acima tudo o que podem: passam a Alcarria e as
grutas de Anguita; passam as águas do Tajuña, entram no campo de
Taranz e vão-se metendo por aquela terra. O Cid foi abrigar-se entre Ariza
e Cetina, colhendo no caminho grandes ganhos. Não sabem os mouros o
intento audaz daquela gente. No dia seguinte, pôs-se em marcha o Cid de
Vivar, passou Alfama e a Foz, passou Briviesca e, mais adiante, Ataca, e
foi descansarem Alcocer, num redondo outeiro, elevado e forte, onde não
lhe podem cortar a água, pois corre perto o Jalon. O Cid Dom Rodrigo
pensa em conquistar Alcocer.
[p. 19]
27
O Cid acampa em Alcocer
28
Temor dos mouros.
29
O Campeador toma Alcocer, com um ardil.
Os de Alcocer pagam tributo ao Cid e os de Ateca, os de Terrer e os
de Calatayud, a quem isto pesava. Ali descansou o Cid quinze semanas ao
todo.
Vendo que Alcocer não se rendia, inventou logo um ardil. Mandou
levantar todas as tendas, menos uma, e foi-se Jalon abaixo, com pendões
5
alçados, espadas cingidas e postas as lorigas, para fazê-los cair em uma
emboscada. Como se alegravam os de Alcocer, vendo-os partir.
– Já se acabou todo o pão do Cid e a cevada. Deixou uma tenda e
levou todas as outras, quase não pode com elas. Vai de tal modo, como se
fugisse derrotado.. Assaltemo-lo [p. 20] agora e ganharemos bom despojo,
antes que o alcancem os de Terrer, que esses, se o pilham, nada nos
darão. Agora é tempo de que devolva em dobro o tributo que lhe
pagamos.
Saíram de Alcocer com grande pressa. O Cid, ao vê-los, fingiu que
fugia. E foi pelo Jalon abaixo, com os seus.
– Lá se vão nossos ganhos – diziam os de Alcocer.
E grandes e pequenos saíam da cidade, pensando só na cobiça,
deixando as portas abertas e sem ninguém a guardá-las. Então o
Campeador virou a cabeça e, vendo que entre eles e o Castelo havia um
largo espaço, mandou tornar o pendão e esporear os cavalos.
– A eles, meus cavaleiros, feri-os em temor! Se Deus nos ajudar,
grandes ganhos teremos.
Ao meio do campo, encontram-se com os mouros. Ó Deus, que
alegria a dessa manhã! À frente iam o Cid e Álvar Fáñez, com bons
cavalos, que manejam à vontade, e logo entraram no castelo. Sem
piedade caíam os vassalos do Cid sobre os mouros e, em curto espaço,
matam trezentos. Dando então grandes gritos, os que tinham ficado
escondidos saem, adiantam-se, desembainham as espadas e juntam-se à
porta do castelo, para guardá-la. Logo chegam os seus; a vitória está
consumada.
Assim ganhou o Cid o castelo de Alcocer.
30
O pendão do Cid ondeia sobre Alcocer.
31
Clemência do Cid com os mouros.
Loriga: saia de malha, com escamas de metal, usada pelos guerreiros da Idade Média.
este castelo, muitos mouros morreram, poucos são os que ficaram vivos;
não temos a quem vender mouros e mouras; se os matarmos, nada
ganharemos; recebamo-los aqui dentro, pois é nosso o senhorio;
hospedar-nos-emos em suas casas e deles nos serviremos.
32
O rei de Valença quer recuperar Alcocer. Envia um exército contra o Cid.
33
Fáriz e Galve cercam o Cid em Alcocer.
34
Conselho do Cid com os seus. Preparativos secretos. O Cid sai em batalha
campal contra Fáriz e Galve. Pero Bermúdez dá os primeiros golpes.
35
Os do Cid correm a socorrer Pero Bermúdez.
36
Destroçam as hostes inimigas.
37
Menção dos principais cavaleiros cristãos.
7
Ó que bem peleja, sobre dourado arção, o Cid Rui Dias, grande
combatente; Minaya Álvar Fáñez, o que mandou em Zurita; Martin
Antolínez, o leal burgalês, e Muño Gustioz, que foi seu criado; e Martin
Muñoz, o que mandou em Monte Maior; e Álvaro Álvar e Álvaro Salvadórez
e Galindo [p. 25] Garcia, o bom aragonês; e Félix Muñoz, sobrinho do Cid.
Todos acorrem a defender o pendão do Campeador.
38
Minaya em perigo. O Cid fere Fáriz.
Adarga: antigo escudo oval, com duas braçadeiras: uma estreita para a mão e outra larga para o braço.
Arção: parte arqueada e saliente da sela.
39
Galve ferido e os mouros derrotados.
Martin Antolínez assestou tão duro golpe no mouro Galve que lhe
arranca os rubis do elmo e, partindo-o, entra na carne. Não quis ele
esperar o segundo golpe. Derrotados estão os emires Fáriz e Galve:
grande dia para a cristandade, que já de todos os lados fogem os mouros.
Ferindo-os, perseguem-nos os do Campeador. O emir Fáriz refugiou-
se em Terrer, e Galve, porque não o quiseram receber, foge para
Calatayud, a bom galope. O Campeador segue-o de perto e a perseguição
continua até Calatayud.
[p. 26]
40
Minaya vê cumprida sua promessa. Despojo da batalha. O Cid manda um
presente ao rei.
Bom Cavalo coube a Minaya Álvar Fáñez e assim pôde matar trinta e
quatro mouros. O valente espada, quão ensangüentado traz o braço,
escorrendo-lhe o sangue pelo cotovelo!
– Agora, sim, estou satisfeito. Agora chegarão a Castela as boas
novas de que meu Cid Rui Dias saiu vitorioso em batalha campal.
Há tantos mouros mortos que quase não ficam sobreviventes.
Os daquele que nasceu em boa hora foram-nos perseguindo e já
estão de regresso. Via-se o Cid em seu cavalo, espada na mão, franzida a
coifa e caído sobre os ombros o capuz da loriga. Ó Deus, que bela barba
tem!
Vendo vir os seus, exclama:
– Graças a Deus, que está nos céus, a vitória é nossa.
Os de meu Cid entregam-se depois a saquear o acampamento,
recolhendo escudos, armas e abundantes riquezas. Juntaram quinhentos e
dez cavalos dos mouros e grande é sua alegria quando percebem que
suas baixas não passam de quinze. Já nem sabem onde pôr tanto ouro e
tanta prata. Enriquecidos estão com o despojo. Voltam a receber no
castelo os mouros que os serviam e manda o Cid que lhes dêem algo. O
Cid e seus vassalos regozijam-se e ordena o Campeador que sejam
distribuídos os ganhos. Só no quinto do Cid entram cem cavalos. Ó Deus,
que bem paga aos seus, tanto peões quanto cavaleiros. Como sabe tudo
bem fazer o que nasceu em boa hora. Todos os que o acompanham ficam
contentes!
– Ouvi, Minaya, meu braço direito: desta riqueza que Deus nos
enviou, tomai quanto quiserdes. E quero que vades a Castela, dar conta
desta vitória, porque desejo obsequiar o rei Afonso, que me desterrou,
com trinta cavalos, todos com selas e freios e espadas nos arções.
– De bom grado o farei, respondeu Minaya.
[p. 27]
41
O Cid cumpre sua promessa à catedral de Burgos.
– Eis aqui ouro e fina prata – continuou o Cid – até encher esta bota
por completo. Pagareis mil missas em Santa Maria de Burgos; o que sobrar
seja para minha mulher e minhas filhas. Que roguem por mim de dia e de
noite. Se Deus me der vida, chegarão a ser damas opulentas.
42
Minaya parte para Castela.
43
Despedida.
44
O Cid vende Alcocer aos mouros.
45
Venda de Alcocer.
46
Abandono de Alcocer. Bons agouros. O Cid assenta-se no Poyo, sobre
Monreal.
Quando viram que o Cid vai abandonar o castelo, mouros e mouras
cativos começam a queixar-se: já te vais, ó Cid? Acompanhem-te nossas
orações. Senhor, ficaremos sempre agradecidos. Ao sair de Alcocer o Cid,
mouros e mouras ficam chorando. O Campeador afasta-se, pendão no
alto, encaminhando-se até abaixo do rio Jalon. Ao passar o rio, deram-lhe
as aves bons augúrios. Se ficam contentes os de Terrer e mais ainda os de
Calatayud, os de Alcocer, porque lhes era benéfico o Cid, sentem muito
pesar. Este caminhava e assim continuou, até chegar ao Poyo, que está
sobre Monreal: é alto, grande e maravilhoso de ver-se; por nenhum lado
poderiam alcançá-lo os inimigos. Começou por submeter Daroca e depois
Teruel e, por fim, Cella, a do Canal.
[p. 29]
47
Minaya chega diante do rei, que lhe dá o perdão, mas não ao Cid.
Haja o Cid Rui Dias a graça de Deus. Álvar Fáñêz Minaya partiu já
para Castela e apresenta ao rei os trinta cavalos. Este admira-os com um
sorriso de complacência:
– Minaya, Deus te salve: quem me manda semelhante presente?
– O Cid Rui Dias, que em boa hora cingiu espada. Depois que o
desterraste, conseguiu, valendo-se de uma artimanha, ganhar Alcocer.
Soube-o o rei de Valença, por uma mensagem, e mandou que o cercassem
e, com efeito, cortaram-lhe a água. Mas o Cid saiu do castelo para lutar
em campo aberto e venceu dois emires. Enormes foram seus ganhos,
senhor. E a vós, rei honrado, envia hoje este presente e beija-vos os pés e
as mãos, para pedir-vos que façais mercê, em nome de Deus.
– Ainda é muito cedo – disse o rei – para acolher um desterrado que
perdeu a graça de seu senhor, mas aceito o presente, por vir de
patrimônio de mouros e ainda confesso que me alegro com as vitórias do
Cid. E, sobretudo, Minaya, a vós perdôo e restituo honras e terras e dou
permissão de que entreis e saiais à vossa vontade. Mas, com respeito ao
Cid, não quero dizer-vos mais nada.
48
O rei permite aos castelhanos irem ter com o Cid.
49
Incursões do Cid. Minaya, com duzentos castelhanos, reúne-se a ele.
50
Alegria dos desterrados, ao receber notícias de Castela.
51
Alegria do Cid.
52
O Cid ataca terras de Alcañiz.
53
Desengano dos mouros.
54
O Cid abandona o Poyo. Ataca terras protegidas pelo conde de Barcelona.
55
Ameaças do conde de Barcelona.
Por toda parte voa a notícia e enfim chega aos ouvidos do conde de
Barcelona que o Cid Rui Dias anda saqueando as terras de seu
protetorado. Soube-o com muito pesar e tomou por grave ultraje.
56
O Cid trata em vão de acalmar o conde.
57
Discurso do Cid aos seus.
58
O Cid vence a batalha e ganha a espada Colada.
59
O conde de Barcelona, prisioneiro, quer deixar-se morrer de fome.
Assim venceu esta batalha e honrou suas barbas. Levou para sua
tenda o conde prisioneiro, mandando a seus servidores que o guardassem,
e depois saiu da tenda. Seus homens começavam a chegar, trazendo
consigo muitos objetos de valor, de que o Cid se regozijava. Prepararam
Cilha: tira de pano ou de couro com que se aperta a sela ou a carga por baixo do ventre das cavalgaduras.
uma comida suculenta, mas o conde Dom Ramon não fazia caso dos
manjares; em vão os traziam e os punham diante dele. Não se dignava a
comer e desdenhava tudo, dizendo:
– Não hei de provar um só bocado, por todo o ouro que há na
Espanha; antes prefiro perder o corpo e a alma. Haver-me vencido a mim
estes mal calçados!
60
O Cid promete ao conde a liberdade.
61
Negativa do conde.
62
O Cid reitera ao conde sua promessa. Põe em liberdade o conde e deixa-o
partir.
63
O conde parte receoso. Riqueza dos desterrados.
64
O Cid vai para terras de Valença.
65
Conquista de Murviedro.
66
Os mouros valencianos cercam o Cid. Este reúne sua gente.
67
Fim do discurso do Cid.
9
Gesta: canção que celebra grandes feitos.
– Passe a noite, venha a manhã e encontre aparelhados os cavalos e
preparadas as armas. Atacaremos seu exército. Desterrados somos em
terra alheia; aqui se verá quem sabe ganhar o soldo.
68
Minaya faz o plano de batalha. O Cid vence outra lide campal.
69
Incursões do Cid ao sul de Valença,
70
O Cid em Benicadel.
71
Conquista de toda a região de Valença.
72
O Cid assedia Valença. Manda pregões aos cristãos para a guerra.
73
Repete-se o pregão.
– Quem comigo quiser vir para cercar Valença, que venha de bom
grado e saiba que o esperarei três dias no canal de Ceifa.
[p.41]
74
Gente que acorre ao pregão. Cerco e rendição de Valença,
75
O rei de Sevilha quer recuperar Valença.
76
O Cid deixa crescer a barba. Riqueza dos seus.
Não conhece limites a alegria dos cristãos que andam com o Cid Rui
Dias. Cresceu-lhe muito a barba, porque ele havia dito um dia que “por
amor do rei Afonso, que me desterrou”, não havia de meter-lhe tesoura
nem cortar um pêlo. Que murmurassem mouros e cristãos!
Em Valença descansa o Cid Dom Rodrigo, com Minaya a seu lado.
Enriquecidos estão os que se desterraram com ele: a todos deu o bom
Campeador terras e herdades em Valença. Agora vêem como é grande a
generosidade do Cid. Também já estão pagos os que se lhe juntaram
depois, mas, quanto a estes, sabe o Cid que voltariam a suas terras, se
pudessem, com tudo o que ganharam. Então, a conselho de Minaya,
dispôs que, se alguém que ganhou dinheiro com ele, fosse embora sem
despedir-se e beijar-lhe a mão, que o prendessem, tomando-lhe o dinheiro
e enforcando-o.
E isto disposto, com as preocupações devidas, pôs-se a conversar
com Minaya:
– Se vos parece bem, Minaya, gostaria de saber quantos se juntaram
a mim depois e tiveram ganhos em minhas empresas; pô-lo-emos por
escrito e, se alguém se esconder, ou estiver ausente, terá que dar o que
ganhou a meus vassalos que guardam a fortaleza de Valença.
– Bem pensado – disse Minaya.
77
Contagem da gente do Cid.
10
Alcáçar: antiga fortaleza ou castelo fortificado.
seiscentos os seus.
[p. 43]
– Minaya, graças a Deus e a Santa Maria! Com bem menos saímos
nós de Vivar. Ricos estamos hoje e mais estaremos amanhã. Se vos
agradar e não vos causar incômodo, queria que fósseis a Castela, onde
estão nossas herdades, e que vísseis o rei Dom Afonso, meu senhor
natural. Quero que tomeis, entre meus haveres, cem cavalos e os leveis a
ele. E que lhe beijeis a mão de minha parte e lhe rogueis encarecidamente
que, se a tanto vai sua mercê, deixe que venham a mim minha mulher,
Dona Ximena, e minhas filhas. Se ele concordar, mandarei buscá-las e
esta será minha mensagem: “Manda o Cid que sua mulher e suas filhas
pequenas sejam conduzidas com grande honra às terras estranhas que
ganhou com os seus.”
E disse, então, Minaya:
– De bom grado!
Tendo falado assim, começam a preparar a viagem. O Cid deu a
Álvar Fáñez cem homens para seu serviço e pediu-lhe que levasse mil
marcos de prata a São Pedro e desse a metade ao abade Dom Sancho.
78
Dom Jerônimo chega a Valença.
79
Dom Jerônimo é feito bispo.
80
Minaya dirige-se a Carrión.
81
Minaya saúda o rei.
Logo que saiu da missa o rei Dom Afonso, eis que se aproxima o
gentil Minaya. Ajoelha-se, à vista de todo o povo, cai aos pés do rei, beija-
lhe repetidas vezes as mãos e diz-lhe assim.
82
Discurso de Minaya ao rei. Inveja de Garcia Ordóñez. O rei dá seu perdão
à família do Cid. Os infantes de Carrión cobiçam a riqueza do Campeador.
– Mercê, senhor Dom Afonso, pelo amor de Deus! O Cid, esse grande
guerreiro, beija-vos as mãos e os pés, como [p. 45] convém a tão bom
senhor, e pede-vos – assim vos valha Deus – que lhe façais mercê. Vós o
desterrastes e negastes a ele vosso amor; mas, ainda que em terra
estranha, tem-se saído bem: ganhou Jérica e a chamada Onda; tomou
Almenara e Murviedro, que ainda é melhor; o mesmo fez com Puig e
Castejon e com Benicadel, que é grande fortificação; e, enfim, já é senhor
de Valença, onde criou por suas mãos um bispado e bateu-se em cinco
batalhas campais, vencendo todas. Grandes ganhos deu-lhe Deus e eis as
provas de que vos digo a verdade: cem cavalos, fortes e corredores, com
selas e freios, suplica o Cid que aceites. Ele é vosso vassalo e vós sois seu
senhor.
O rei, levantando a mão direita e benzendo-se, diz:
– Valha-me Santo Isidro! Alegram-me os imensos ganhos e as
contínuas façanhas do Campeador. Aceito o presente dos cavalos.
Mas o que agrada ao rei desagrada a Garcia Ordóñez:
– Parece que por terras de mouros não há ninguém, pois por lá põe e
dispõe o Cid Campeador.
E o rei disse ao conde:
– Calai, conde, que em tudo me serve ele melhor do que vós.
E Minaya, o esforçado varão, prosseguiu:
– Se vos apraz, ó rei, o Cid pede que o deixeis tirar sua mulher, Dona
Ximena, e suas duas filhas, do mosteiro em que as deixou e levá-las para
Valença, junto a si.
– De coração o concedo. Eu lhes darei provisões enquanto viajarem
por meu reino e protegê-las-ei de qualquer dano ou afronta. Quando
chegarem à fronteira estas damas, então cuidareis delas vós e o
Campeador. Eia, pois, soldados, e toda a minha gente, ouvi. Não quero
que perca nada o Cid. A todos aqueles que o reconhecem como senhor,
restituo-lhes tudo o que lhes havia confiscado; que por seus tenham seus
bens, onde quer que estejam ao lado do Cid; asseguro-lhes que não
receberão mal nem dano grave e tudo isto faço para que sirvam bem a
seu senhor.
Minaya Álvar Fáñez beija-lhe as mãos e o rei continua, com muita
gentileza:
[p. 46]
– Os que quiserem servir o Campeador recebam meu consentimento
e partam com a graça de Deus. Mais ganharemos com esta mercê do que
com novo castigo.
Aqui os infantes de Carrión puseram-se a dizer:
– Muito vão crescendo as façanhas do Cid. Não nos viria a mal se
casássemos com suas filhas. Não ousaríamos, porém, tornar público este
desejo, que o Cid é da aldeia de Vivar e nós somos condes de Carrión.
A ninguém o dizem e calam-se com este pensamento. Já se despede
do bom rei Minaya Álvar Fáñez. E o rei diz:
– Ide-vos, pois, Minaya? Levai um mensageiro real, que poderá
servir-vos. Se tendes que acompanhar as damas, que sejam devidamente
servidas. Dar-lhes-ei tudo o que for necessário, até Medinaceli e daí em
diante, cuide delas o Campeador.
E Minaya despediu-se do rei e da corte.
83
Minaya vai a Cardeña buscar Dona Ximena. Mais castelhanos apresentam-
se para ir a Valença. Minaya promete aos judeus bom pagamento da
dívida do Cid. Parte com Dona Ximena. Pero Bermúdez sai de Valença
para receber Ximena. Em Molina, encontra-se com Abengalbon.
Encontram Minaya em Medinaceli.
84
Os viajantes descansam em Medina. Viajam de Medina a Molina e chegam
perto de Valença.
85
O Cid envia gente ao encontro dos viajantes.
Nunca, nunca se viu mais alegre o Cid, que já tem perto o que mais
ama no mundo. Mandou logo duzentos cavaleiros para que recebam
Minaya e as ilustres damas. Ele ficará guardando Valença, pois está certo
de que Álvar Fáñez tomou as providências necessárias.
86
Dom Jeronimo vai até Valença preparar uma procissão. O Cid cavalga ao
encontro de Ximena. Entram todos na cidade.
87
As damas contemplam Valença do alcáçar.
88
O rei de Marrocos vem cercar Valença.
89
Desembarque das tropas do rei de Marrocos.
Fazem-se ao mar e vão a Valença, em busca do Cid Dom Rodrigo. Já
chegam as naves, já desembarcam em Valença, já fincam as tendas, já
acampa a ímpia gente. Logo chega a notícia ao Cid.
90
Alegria do Cid e terror de Ximena.
91
O Cid encoraja sua mulher e suas filhas. Os mouros invadem o campo de
Valença.
93
Plano de batalha.
94
O Cid concede ao bispo os primeiros golpes.
95
Os cristãos travam batalha. Derrota de Yúsuf. Despojo extraordinário. O
Cid saúda sua mulher e suas filhas. Concede um dote às damas de
Ximena. Divisão do despojo.
11
Escano: escabelo; estrado alto.
armas e vestimentas de bom preço: e vou dizer-vos o melhor: não há
como inventariar os cavalos inimigos, porque andam arreados e não há
quem os possa pegar. Também ganharam algo os mouros da terra e ainda
cabem ao Campeador mil cavalos de grande porte.
Se tanto toca ao Cid, é que todos estão bem pagos. Ó que formosas
tendas e postes de preciosos lavores ganharam o Cid e os seus! A tenda
do rei de Marrocos, a melhor de todas, tem dois postes lavrados em ouro.
O prudente Campeador manda que a deixem fincada e ninguém a toque.
– Tenda tão formosa e vinda de Marrocos – diz – quero enviá-la a
Afonso, o castelhano, para que acredite nas novas de minha prosperidade.
E levaram todo o despojo a Valença.
O bispo Dom Jerônimo, bom sacerdote, fartou-se de combater com
as duas mãos e não sabe quantos mouros matou. Assim também é o
despojo que lhe corresponde, porque [p. 58] o Cid Dom Rodrigo, que em
boa hora nasceu, outorgou-lhe o dízimo sobre seu quinto.
96
Alegria dos cristãos.
97
Minaya leva o presente a Castela.
98
Minaya chega a Valladolid.
Passam serras, montes e rios; chegam a Valladolid, onde está o rei.
Pero Bermúdez e Minaya mandam-lhe aviso para que receba sua
companhia, que traz os presentes do Cid.
99
O rei sai a receber os do Cid. Inveja de Garcia Ordóñez.
100
O rei mostra-se benevolente para com o Cid.
101
Os infantes de Carrión pensam em casar com as filhas do Cid.
102
Os infantes conseguem que o rei aceite o casamento. Este deseja ver o
Cid. Minaya volta a Valença e dá ciência de tudo ao Campeador. Ele marca
o lugar da entrevista com o rei.
103
O rei fixa o prazo da entrevista. Prepara-se, com os seus, para a viagem.
12
Cendal: tecido fino e transparente.
104
O Cid e os seus preparam-se para a entrevista. Partem de Valença. O rei e
o Cid encontram-se às margens do Tejo. Perdão solene dado pelo rei ao
Cid. O rei pede as filhas do Cid para os infantes. O Cid confia suas filhas ao
rei e este as casa. A entrevista acaba. Presentes do Cid aos que se
despedem. O rei entrega os infantes ao Cid.
13
Mesnada: porção de soldados assalariados.
Já estão dadas as palavras e feitas as promessas. No outro dia de
manhã, ao sair o sol, cada um seguirá seu caminho.
Então fez coisas admiráveis o Cid: todas aquelas mulas robustas,
belos palafréns e vestes preciosas começou a dá-las a quem as desejava;
pedem todos e a ninguém nega o que pede. Sessenta cavalos deu o Cid.
Todos os que assistiram à entrevista foram presenteados. Já se vão, pois
chega a noite.
O rei toma pela mão os infantes, entregando-os ao Campeador.
– Eis aqui vossos filhos, pois que são já vossos genros. De agora em
diante estão sujeitos à vossa vontade. Que vos sirvam como a um pai e
vos respeitem como a um senhor.
– Agradeço este dom, ó rei, e que vos pague Deus do céu.
[p. 67]
105
O Cid não quer ele próprio entregar as filhas. Minaya será representante
do rei.
– A vós, meu rei natural, peço-vos uma mercê: posto que casais
minhas filhas, conforme vossa vontade, designai um representante que as
receba em vosso nome. Eu não as entregarei por minha mão; que não se
gabem disto.
E o rei respondeu:
– Aqui está Álvar Fáñez. Tome-as ele por sua mão e dê-as aos
infantes, tal como eu as tomo daqui, como se estivessem presentes.
Sereis vós o padrinho da cerimônia e, quando voltarmos a ver-nos, contar-
me-eis se o haveis cumprido.
– Por minha fé que o farei, senhor.
106
O Cid despede-se do rei.
107
Muitos homens do rei vão com o Cid para Valença, Os infantes são
acompanhados por Pero Bermúdez.
108
Cid anuncia o casamento a Ximena.
109
Dona Ximena e suas filhas estão satisfeitas.
110
O Cid está preocupado com o casamento.
– Seja por Deus, Dona Ximena. Digo-vos, Dona Elvira e Dona Sol,
este matrimônio muito nos honrará; mas sabei que eu não o resolvi; meu
senhor Afonso pediu tão firmemente e com tanta vontade que eu não
pude negar-lhe. Confiei-vos as duas à mão do rei. Sabei-o: é ele, não eu,
quem vos casa.
111
Preparativos das bodas. Apresentação dos infantes. Minaya entrega as
esposas aos infantes. Bênçãos e missa. Festas durante quinze dias.
Terminam as bodas, distribuem-se presentes aos convidados. O jogral se
despede de seus ouvintes.
112
Solta-se o leão do Cid. Medo dos infantes de Carrión. O Cid amansa o leão.
Vergonha dos infantes.
113
O rei Búcar de Marrocos ataca Valença.
114
Os infantes temem a batalha. Repreensão do Cid.
115
Mensagem de Búcar. Carga de cavalaria dos cristãos. Covardia do infante
Fernando. (Lacuna do manuscrito que se supre com a Crônica de vinte
reis) Generosidade de Pero Bermúdez.
116
Pero Bermúdez desentende-se com os infantes. Minaya e Dom Jerônimo
pedem o primeiro posto na batalha.
– Ó Cid, peco-vos por caridade que não seja eu o aio dos infantes;
hoje que os cuide outro que eu quero atacar o inimigo seguido pelos
meus, e vós ficareis na retaguarda com os vossos e, se houver perigo,
vireis socorrer-me.
Aqui aproximou-se Minaya Álvar Fáñez:
– Ó leal Cid Campeador, escutai-me: o Criador e vós, que sois seu
protegido, determinam esta batalha. Dizei-nos por que lado havemos de
atacar e cada um cumprirá suas obrigações. Veremos em que acabará
isto, com Deus e vossa ventura.
– Tenhamos calma – disse o Cid.
Então aproxima-se o bispo Dom Jerônimo, muito bem armado e,
pondo-se diante do Cid, falou assim:
– Hoje vos cantei a missa da Santíssima Trindade. Saí de minha terra
e vim até aqui só pelo desejo que tinha de matar mouros; bem quisera
honrar minhas armas e a ordem a que pertenço. Desejo ser o primeiro no
ataque; trago um pendão com um emblema de corças e queria prová-lo,
se Deus o permite: muito me alegraria isto e sei que vós mais me
estimaríeis. Se não me concederdes este favor, deixo-vos.
[p. 76]
E o Cid:
– Faça-se o que pedis. Ali tendes mouros à vista, atacai-os. Daqui
veremos como peleja o senhor abade.
117
O bispo começa a batalha. O Cid acomete e invade o acampamento dos
mouros.
118
Os cristãos perseguem o inimigo. O Cid alcança e mata Búcar. Ganha a
espada Tizona.
119
Voltam os do Cid, este satisfeito com seus genros, e os infantes
envergonhados. Despojos da vitória.
120
O Cid satisfeito com a vitória e com seus genros (repetição)
121
Repartição do despojo.
122
O Cid, no auge de sua glória, almeja dominar Marrocos. Os infantes ricos e
honrados na corte do Cid.
123
Vaidade dos infantes. Burlas de que são alvos.
124
Os infantes decidem afrontar as filhas do Cid. Pedem a este suas mulheres
para levá-las a Carrión. O Cid concorda. Enxoval de suas filhas. Os
infantes dispõem-se a partir. As filhas despedem-se do pai.
125
Ximena despede-se das filhas. O Cid cavalga para as despedidas. Maus
augúrios.
126
O Cid envia com suas filhas Félix Muñoz. Ultimo adeus. O Cid volta a
Valença. Os viajantes chegam a Molina. Abengalbon acompanha-os a
Medina. Os infantes tramam matar Abengalbon.
127
Abengalbon despede-se, ameaçando os infantes.
128
O mouro volta a Molina, pressentindo a desgraça das filhas do Cid. Os
viajantes entram no reino de Castela. Dormem no bosque de Corpes. Na
manhã seguinte os infantes ficam sozinhos com suas mulheres e
preparam-se para maltratá-las. Rogos inúteis de Dona Sol. Crueldade dos
infantes.
– Dizei-me, pois, infantes, que mal vos fiz? Enquanto vos sirvo sem
malícia, tramais minha morte. Aqui vos abandono como traidores, se Dona
Elvira e Dona Sol me derem seu consentimento, pois o renome dos
Carrions a mim não me importa. Queira Deus, dono e senhor do mundo,
que o Campeador se satisfaça com tais casamentos.
Dito isto, o mouro afastou-se; ao passar pelo Jalon, vai jogando as
armas; muito prudente foi em voltar a Molina.
Os infantes de Carrión abandonam o Ansarera e andam de dia e de
noite. À direita deixam Atienza, rude penhasco; passam a serra de Miedes
e picam esporas por Montes Claros; à esquerda deixam Griza e pela direita
chegam a Santo Estêvão de Gormaz. Já entram no carvalhal de Corpes:
bosques [p. 85] altíssimos, cujos galhos sobem até as nuvens e que é
morada de muitas feras. Ali encontram um vergel e uma limpa fonte e
mandam fincar a tenda. Ali repousaram uma noite os infantes e seus
companheiros. Os infantes, com suas mulheres nos braços, dão mostras
de amor. Que mal as haveriam de tratar no outro dia!
Mandaram carregar as azêmolas com os numerosos fardos e
recolher a tenda que os abrigara aquela noite, deixando ir adiante os que
os acompanhavam. Ordenaram que não ficasse ninguém com eles,
homem nem mulher, salvo suas esposas, Dona Elvira e Dona Sol, com
quem desejavam divertir-se sem testemunhas.
Todos se vão: os quatro estão sós. Ali os infantes de Carrión
meditam maldades:
– Dona Elvira e Dona Sol, acreditai: aqui sereis escarnecidas, nestes
agrestes montes. Hoje mesmo partiremos e vós ficareis aqui
abandonadas. Não, vós não tereis parte nas terras de nosso condado. As
novas chegarão ao Cid e assim estaremos pagos da afrontado leão.
Tiram-lhes os mantos e peles, deixam-nas só com as camisas e os
briais.14 Os negros traidores têm as esporas calçadas e lançam mão de
ásperas cilhas. Quando isto viram as damas, disse Dona Sol:
– Dom Diogo, Dom Fernando, pedimo-vos, por Deus. Tendes duas
espadas fortes e cortantes: àquela chamam Colada, a esta Tizona. Cortai-
14
Brial: túnica feminina presa na cintura.
nos as cabeças, seremos mártires; mouros e cristãos irão dizer que não
merecíamos tal castigo. Mas não cometais tal crueldade, não nos ultrajeis,
que isso vos desonra e hão de pedir-vos contas em juntas ou em cortes.
De nada servem os rogos. Os infantes de Carrión começam a
golpeá-las. Sem compaixão, descarregam sobre elas as tiras corredias e
as esporas, onde mais lhes doa. Assim lhes rasgam as camisas e, com
elas, as formosas carnes; o sangue escorre, tingindo os briais. Já os
corações delas estão mordidos pela dor. Ó que ventura seria se prouvesse
aos céus que aparecesse ali o Cid!
[p. 86]
Tanto as maltratam que jazem desfalecidas, ensangüentados as
camisas e panos. Fartaram-se de feri-las e Dona Elvira e Dona Sol já não
podem falar. Por mortas as deixam no carvalhal de Corpes.
129
Os infantes abandonam suas mulheres (repetição).
130
Gabam-se os infantes de sua covardia.
131
Félix Muñoz suspeita dos infantes. Volta atrás em busca das filhas do Cid.
Reanima-as e leva-as em seu cavalo a Santo Estêvão de Gormaz. Chega
ao Cid a notícia de sua desonra. Minaya vai a Santo Estêvão recolher as
damas. Entrevista de Minaya com suas primas.
132
Minaya e suas primas partem de Santo Estêvão. O Cid sai a recebê-los.
133
O Cid manda Muño Gustioz para pedir justiça ao rei. Muño fala ao rei em
Sahagun e expõe-lhe o assunto. O rei promete reparação.
134
O rei convoca corte em Toledo.
135
Os de Carrión pedem em vão ao rei que desista da corte. Reúne-se a
corte. O Cid chega por último. O rei vai a seu encontro.
136
O Cid não entra em Toledo. Celebra vigília em São Servando.
137
Preparação do Cid em São Servando para ir à corte. O Cid vai a Toledo e
entra na corte. O rei oferece-lhe assento em seu escano. O Cid recusa. O
rei abre a sessão. Proclama a paz entre os infantes. O Cid expõe sua
demanda: reclama Colada e Tizona; os de Carrión entregam-nas. O Cid
oferece-as a Martin Antolínez e Pero Bermúdez. Segunda demanda do Cid:
o enxoval de suas filhas; os infantes sentem dificuldades em pagar.
138
Acabada sua demanda civil, o Cid propõe o desafio.
139
O Cid chama os infantes de traidores.
140
Altercação entre Garcia Ordóñez e o Cid.
141
Fernando rechaça a acusação.
Fernando González, de pé, diz com voz alterada o que ides ouvir:
– Basta, Cid, já vos pagamos vosso dinheiro. Não cresça entre nós o
pleito. Temos sangue de condes de Carrión; com filhas de reis e
imperadores podemos casar-nos, não com filhas de simples infanções.
Estávamos em nosso direito, ao deixá-las e por isso não nos aviltamos, ao
contrário, valemos mais.
142
O Cid incita Pero Bermúdez ao desafio.
143
Pero Bermúdez desafia Fernando.
144
Prossegue o desafio de Pero Bermúdez.
145
Diogo responde à acusação de valer menos.
146
Martin Antolínez desafia Diogo González.
A isto, levanta-se Martin Antolínez:
– Cala-te, aleivoso, boca mentirosa! Não devias esquecer o caso do
leão: escapaste pela porta, até o curral não paraste e ali te escondeste
atrás de uma viga. Aquele manto, aquele brial que usavas já não pudeste
usá-los mais. Eu o manterei em combate e não há de ser de outro modo;
por as haverdes deixado, entendei-o bem, as filhas do Cid valem muito
mais que vós. Na hora do combate terás que dizer por tua própria boca
que és traidor e mentiste em tudo.
[p. 103]
147
Asur Gonzalez entra na corte.
Nisto ficou a disputa, quando entra pelo palácio Asur Gonzalez, com
manto de arminho e comprido brial. Como acabara de almoçar, estava
muito vermelho. As palavras que disse são de homem sem comedimento.
148
Asur insulta o Cid.
149
Muño Gustioz desafia Asur Gonzalez. Mensageiros de Navarra e de Aragão
pedem ao Cid suas filhas para os filhos dos reis. Dom Afonso apóia o novo
casamento. Minaya desafia os de Carrión. Gómez Peláez aceita o desafio,
mas o rei só fixa o prazo para os que desafiaram antes. O rei vai amparar
os três lutadores do Cid. O Cid oferece presentes de despedida a todos.
(Lacuna – prosa da Crônica de vinte reis). O rei sai de Toledo com o Cid.
Manda a este correr em seu cavalo.
150
O rei admira Babieca, mas não o aceita de presente. Últimas
recomendações do Cid a seus três combatentes. Volta a Valença. O rei em
Carrión. Chega o prazo do combate. Os de Carrión pretendem excluir dele
Colada e Tizona. Os do Cid pedem o amparo do rei e entram em campo. O
rei designa fiscais do campo e adverte os de Carrión. Os fiscais preparam
o combate. Primeira acometida: Pero Bermúdez vence Fernando.
151
Martin Antolínez vence Diogo.
152
Muño Gustioz vence Asur González. O pai dos infantes declara terminado
o combate. Os do Cid voltam cautelosamente a Valença. Alegria do Cid.
Segundo casamento de suas filhas. O jogral acaba seu poema.
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