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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Livro de Resumos

II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

28 de setembro a 01 de outubro de 2009

FFLCH – USP

Promoção

Grupo de Pesquisas Spinoza & Nietzsche – SpiN


Grupo de Estudos Espinosanos – GEE
Grupo de Estudos Nietzsche – GEN
Grupo de Pesquisas Crítica e Modernidade – GCM

PPG Filosofia – USP


PPG Filosofia – UFRJ
PPG Filosofia – UNICAMP

Apoio

Gt Pensamento do Século XVII


Gt Nietzsche

_________________________________________

FFLCH - USP
Cidade Universitária
São Paulo, SP

Prédio de Filosofia e Ciências Sociais


Av. Prof. Luciano Gualberto, 315

Prédio de História e Geografia


Av. Professor Lineu Prestes, 338

Telefone e Fax
55 11 3091-3709 / -3761 / -3765
1
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Universidade de São Paulo


Reitor: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretora: Sandra Margarida Nitrini
Vice-Diretor: Modesto Florenzano

Departamento deFilosofia
Chefe: Moacyr Ayres Novaes Filho
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino

2
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Patrocínio

CAPES
FAPESP
Projeto CAPES-COFECUB n. 611/08
Crises e anátemas da modernidade filosófica: Spinoza e Nietzsche como
sismos na metafísica da subjetividade
Projeto Temático FAPESP-USP n. 07/56080-1
Ruptura e continuidade: Investigações sobre a relação entre Natureza e
História
FFLCH-USP
Consulado Geral da França em São Paulo

Comitê científico
Laurent Bove
Marilena Chauí
Oswaldo Giacoia Jr.
Christian Lazzeri
André Martins
Scarlett Marton
Patrick Wotling

Comissão organizadora
André Martins – UFRJ – Coordenador
Homero Santiago – USP
Luís César Oliva – USP

Equipe de organização
Danilo Bilate, Ana Cláudia Gama Barreto, Renato Bittencourt, Pablo
Azevedo, Hugus Félix (UFRJ),
Tiago Barros (UERJ)

Equipe de trabalho durante o Congresso


Membros do GEE:
André Menezes Rocha, Daniel Santos, Éricka Itokazu, Marcos Ferreira de
Paula, Marine de Souza Pereira, Valéria Loturco (USP)
Membros do SpiN:
Elaine Zeranze, Igor Melo, Victor Barros, Mírian Monteiro (UFRJ)
Membros do GEN:
André Favero, Eduardo Nasser, João Evangelista Neto, Márcia Rezende de
Oliveira, Vinícius Pedrozo Parente de Andrade

Revisor técnico do livro de resumos


Danilo Bilate (UFRJ)

3
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

4
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Sumário

Programação do evento

2a. feira, 28/09 .......................................................................7


3a. feira, 29/09 ......................................................................11
4a. feira, 30/09 ......................................................................14
5a. feira, 1/10 .......................................................................17

Resumos das apresentações

Conferências da noite 1 - CN1 ..................................................21


Conferências da noite 2 - CN2 ..................................................21
Conferências da noite 3 - CN3 ..................................................22
Conferências da noite 4 - CN4 .................................................23

Conferências da tarde 1 - CT1 .................................................24


Conferências da tarde 2 - CT2 .................................................25
Conferências da tarde 3 - CT3 .................................................26
Conferências da tarde 4 - CT4 .................................................27

Conferências da manhã 1 - CM1 ................................................28


Conferências da manhã 2 - CM2 ................................................29
Conferências da manhã 3 - CM3 ................................................30
Conferências da manhã 4 - CM4 ................................................31

Mesa da Tarde 1 - MT1................................................................33


Mesa da Tarde 2 - MT2................................................................39
Mesa da Tarde 3 - MT3............................................................45
Mesa da Tarde 4 - MT4.............................................................52
Mesa da Tarde 5 - MT5............................................................57
Mesa da Tarde 6 - MT6............................................................62

Mesa da manhã 1 - MM1..............................................................69


Mesa da manhã 2 - MM2............................................................75
Mesa da manhã 3 - MM3...........................................................81
Mesa da manhã 4 - MM4..........................................................87
Mesa da manhã 5 - MM5..........................................................93
Mesa da manhã 6 - MM6.........................................................100

5
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Mesa da manhã 7 - MM7............................................................106


Mesa da manhã 8 - MM8...........................................................113
Mesa da manhã 9 - MM9..........................................................119
Mesa da manhã 10 - MM10..........................................................125
Mesa da manhã 11 - MM11........................................................132
Mesa da manhã 12 - MM12.........................................................137
Mesa da manhã 13 - MM13..........................................................144
Mesa da manhã 14 - MM14..........................................................150
Mesa da manhã 15 - MM15........................................................156
Mesa da manhã 16 - MM16........................................................163

6
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

2ª feira, 28/09/2009
9:h-10:40h - Comunicações da manhã (20’ cada; 20’ debate)
MM1 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)

Mediador: Eduardo Nasser / USP


Adriany Mendonça / UERJ
Filosofia e Arte: o antiplatonismo de Nietzsche nos cursos da
Universidade da Basiléia
Ana Claudia Gama Barreto / UFRJ
Variações do conceito de vida no pensamento de Nietzsche
Filipi Oliveira /UERJ
Vestígios de Spinoza em Nietzsche ou a embriaguez alegre
do artista
Wander Andrade de Paula / UNICAMP
O(s) Sócrates de Nietzsche e a crise da razão na
modernidade

MM2 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 1031)

Mediador: Daniel Santos / USP


Hugusnardo de Carvalho Félix / UFRJ
O princípio de causalidade e suas implicações na Ética de
Spinoza
João Edson Gonçalves Cabral / Mestrando Filosofia UFC
Dalila Miranda Menezes / UEVA
A análise de Nietzsche acerca da metafísica da subjetividade
cartesiana
João Pereira da Silva Neto / UFC
Perspectivismo, utilidade e verdade no pensamento de
Nietzsche
Mariana Cecília de Gainza / USP
Perspectivismo e verdade, entre Spinoza e Nietzsche

MM3 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 10)

Mediador: Danilo Bilate / UFRJ


Alexander Gonçalves / UNIOESTE
Linguagem e fisio-psicologia na filosofia de Nietzsche
Leonardo Catafesta / UNIOESTE
A sabedoria trágica como instrumento indispensável para a
transposição do dionisíaco em pathos filosófico
Tiago Barros / UERJ
Solidão: pátria de Zaratustra
7
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Marcelo de Mello Rangel / PUC-RJ


Algumas considerações sobre a compaixão no Zaratustra de
Nietzsche: ou sobre os afetos

MM4 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 105)

Mediador: Valéria Loturco da Silva / USP


Ivan Maia / UFBA
Dança e estética da existência
Eduardo André Rodrigues de Lima / UFC
Nietzsche e Pós-Modernidade: a questão do niilismo
Eládio C. P. Craia / PUC-PR
A Univocidade do Ser como elemento central para uma
ontologia da Diferença: Gilles Deleuze leitor de Spinoza e
Nietzsche
Rafael Rodrigues Pereira / PUC-RJ
A Diferente Relação entre Razão e Potência nas Filosofias de
Nietzsche e de Spinoza

30’ Pausa
11:10h-12:30h - Conferências da manhã (30’ cada; 20’ debate)

CM1 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Bárbara Lucchesi / UMC-SP


Vânia Dutra / PUC-Camp
Nietzsche e a interpretação: ponto de virada
Maria Luisa Ribeiro Ferreira / Lisboa
Espinosa, um patrono da ecologia profunda?

12:30h-14:40h - Horário de almoço

14:40h-16:20h
Conferências da tarde (40’ cada; 20’ debate)
CT1 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)
Mediador: Wilson Frezzatti / UNIOESTE
Céline Denat / Reims
A concepção nietzschiana do “homem moderno”, ou a
modernidade como momento “crítico” da história
Homero Santiago / USP
O corpo da gramática, a gramática do corpo: os hebraísmos
de João Evangelista

20’ Pausa

8
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

16:40h-18:20h - Comunicações da tarde (20’ cada; 20’ debate)

MT1 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Tiago Barros / UERJ


Priscila Rufinoni / UnB
Nietzsche, crítico extemporâneo do expressionismo
Alexandre Ferreira de Mendonça / UFRJ
Nietzsche e a arte contemporânea
Renarde Freire Nobre / UFMG
Nietzsche e a escrita artística do pensamento
Rafael Haddock-Lobo / UFRJ
A metafórica de Nietzsche: um primeiro tempo da
desconstrução

MT2 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)


Mediador: Sandro Kobol Fornazari / USP
Alex Fabiano Correa Jardim / UEMC
Da imaginação ao entendimento: Espinosa aos olhos
contemporâneos de Gilles Deleuze
Lindomar Rocha Mota / PUC-MG
Spinoza ou Kant: a possibilidade do discurso sobre Deus
Péricles Pereira de Souza / UNIMONTES
Deleuze: Genealogia e Crítica
Arthur Arruda Leal Ferreira / UFRJ
O conhecimento como afecção: ressonâncias spinozistas na
epistemologia contemporânea

40’ Pausa

19h-21h - Conferências da noite (40’ cada; 30’ debate)


CN1 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: André Martins / UFRJ


Chantal Jaquet / Paris I
Do eu ao si: a restauração da interioridade em Spinoza
Scarlett Marton / USP
Contra modernos e pós-modernos: Nietzsche e as filosofias
de fachada

9
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

21h-22h (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, 1º andar)

Coquetel de lançamento dos livros:


O mais potente dos afetos. Spinoza & Nietzsche , de André Martins (org.)
Cadernos Nietzsche 25
Nietzsche, um “francês” entre franceses, de Scarlett Marton (org.)
Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, de Scarlett
Marton (3a. edição)
Tratado Político , de Spinoza

10
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

3ª feira, 29/09/2009
9h-10:40h - Comunicações da manhã (20’ cada; 20’ debate)

MM5 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)

Mediador: Luís Rubira / UFPel


Adolfo Miranda Oleare / UFES
Deus e a morte de Deus – a crítica da religião em Kant e
Nietzsche
Alexandre Marques Cabral / UERJ
Nietzsche e a experiência não metafísica do sagrado
Renato Bittencourt / UFRJ
Spinoza, Nietzsche e a denúncia da moral teológica como
distorção axiológica das disposições afirmativas da autêntica
práxis crística
Israel da Cunha Mattozo / Fac. Jesuíta de BH
O conceito Deus em Nietzsche a partir da obra Crepúsculo
dos Ídolos

MM6 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 1031)

Mediador: Hugus Félix / UFRJ


Alexandre Arbex Valadares / UFRJ
O ‘vazio’ como objeto da filosofia de Spinoza
Alexandre Pinto Mendes / PUC-RJ
O povo em armas – democracia e violência em Spinoza
Bernardo Bianchi Barata Ribeiro / IUPERJ
O maquiavelismo de Spinoza
Pablo Ramos de Azevedo / UFRJ
A multidão contra o povo - exórdio de uma democracia por
vir

MM7 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 10)

Mediador: Marcos Ferreira de Paula / USP


Caio César Souza Camargo Próchno / UFU
Cecília de Souza Neves / UFU
Crise e Retomada da Metafísica da Subjetividade – Diálogos
entre Nietzsche e Lacan
Paulo Joaquim Leão Porto / PUC-SP
Ética e tipos de vida: a noção de afeto entre Nietzsche e
Spinoza
11
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Luis Eduardo P. Aragon / PUC-SP


A importância da dimensão afetiva e imanente do corpo na
clínica contemporânea. “Corpo-cosmos” em Espinosa
Rodrigo Siqueira-Batista / IFRJ
Paulo César Rosental Fernandes / UNIFESO
Maria Lúcia M. Smolka / UNIFESO
Mariana Beatriz Arcuri / UNIFESO
Nietzsche e a psicanálise: por uma autonomia menor

MM8 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 105)

Mediador: João Evangelista Neto / USP


André Bentes / PUC-RJ
A individuação por uma óptica estética
Joana Quiroga / UFES
Nietzsche e linguagem: metafísica ou arte?
Ricardo Bazilio Dalla Vecchia / UNICAMP
Metafísica de Artista como Fio de Ariadne Resumo
Carlos Mario Alvarez / PUC-RJ
Acordes nietzschianos: notas sobre um filósofo-artista

30’ Pausa

11:10h-12:30h - Conferências da manhã (30’ cada; 20’ debate)

CM2 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Clademir Araldi / UFPel


Bárbara Lucchesi / UMC-SP
Nietzsche entre o Romantismo e o “Novo Iluminismo”
Henry Burnett Jr. / UNIFESP
Nietzsche e os pré-românticos: visões do popular

12:30h-14:40h - Horário de almoço

12
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

14:40h-16:20h - Conferências da tarde (40’ cada; 20’ debate)

CT2 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Danilo Bilate / UFRJ


Blaise Benoit / Reims
Nietzsche e a crítica da metafísica do sujeito: por um “si
corporal”?
Luís César Oliva / USP
Contemplação e imaginação na ética de Espinosa

20’ Pausa

16:40h-18:20h - Mesa-Redonda Relações França-Brasil (15’ cada;


35’ debate)

MR1 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: André Martins


Marilena Chauí
Renato Janine Ribeiro
Scarlett Marton
Chantal Jaquet
Patrick Wotling

40’ Pausa

19h-21h - Conferências da noite - (40’ cada; 30’ debate)

CN2 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Luís César Oliva / USP


Pascal Sévérac / CIPh
Potência da imaginação em Spinoza
Oswaldo Giacóia Jr. / UNICAMP
Metafísica e Sujeito - Metafísica do Sujeito

13
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

4ª feira, 30/09/2009
9h-10:40h - Comunicações da manhã (20’ cada; 20’ debate)

MM9 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)


Mediador: Renato Bittencourt / UFRJ
Daniel Santos da Silva / USP
Relações de poder no contexto político de Espinosa e de
Nietzsche
João C. Galvão Jr / UFF
(Des)sacralização em Spinoza e Schmitt
João Paulo Simões Villas Boas / UFPR
Considerações sobre a Grande Política em Nietzsche
Thiago Fortes Ribas / UFPR
Foucault e a leitura política da reversão do platonismo em
Nietzsche

MM10 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)

Mediador: Pablo Azevedo / UFRJ


Ana Luiza Saramago Stern / PUC-RJ
Coisas semelhantes a nós: subjetivação e singularidade na
filosofia de Spinoza
Eduardo Reis de Mello / PUC-PR
Os Conatus coletivos e as Coisas humanas singulares na Ética
de Spinoza
Ericka Marie Itokazu / USP
Em nós ou fora de nós: o não-lugar da subjetividade e da
alteridade na filosofia de Espinosa
Leonardo Mees / UFRJ
Nietzsche e o problema das significações de “sujeito” em sua
filosofia

MM11 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 104)

Mediador: Ana Cláudia Gama Barreto / UFRJ


Juliana Merçon / U. Queensland Austrália
Desressentindo... generosidade e gratidão como boa
vingança
Vagner da Silva / UNICAMP
Nietzsche e a construção de um novo paradigma da
subjetividade humana entre civilização e cultura
Sandro Kobol Fornazari / USP
A crítica genealógica no limiar da filosofia da diferença
14
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MM12 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 105)

Mediador: Tiago Barros / UERJ


Willis Santiago Guerra Filho / UFRJ
A Religião em Nietzsche
Gabriel Cid de Garcia / UERJ
A natureza como partes sem um todo: aspectos de uma
filosofia trágica em Fernando Pessoa
Gustavo Bezerra Costa / UFC
A hipocrisia, o sujeito e a máscara. Nietzsche e a criação
hipócrita de si
Ramon Souza / USP
Daniel Kupermann / USP
A ironia como ilusão trágico-criativa em
Nietzsche

30’ Pausa

11:20h-12:30h - Conferências da manhã (30’ cada; 20’ debate)

CM3 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)


Mediador: Vânia Dutra / PUC-Camp
Clademir Araldi / UFPel
Nietzsche: Da crítica do sujeito à posição do indivíduo soberano
Fernando Dias Andrade / UNIFESP
A democracia de Nietzsche contra a democracia de Espinosa

12:30h-14:40h - Horário de almoço

14:40h-16:20h - Conferências da tarde (40’ cada; 20’ debate)

CT3 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)

Mediador: Tessa Moura Lacerda / USP


Gabor Boros / Budapeste
Spinoza e o romantismo alemão, ou como o Escrito sobre a
liberdade de Schelling vivifica Spinoza
Antônio Edmilson Paschoal / PUC-PR
Nietzsche, Kant e o projeto da modernidade

20’ Pausa

15
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

16:40h-18:20h - Comunicações da tarde (20’ cada; 20’ debate)

MT3 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)

Mediador: Pablo Azevedo / UFRJ


Adriana Belmonte Moreira / USP
Corpo, potência e terapêutica nas filosofias de Nietzsche e
Espinosa
Cristina Rauter / UFF
Contribuições da Filosofia de Spinoza para pensar a violência
e a criminalidade contemporâneas
Órion Ferreira Lima / UNESP
Contribuições de Espinosa para o conceito de saúde mental
Adriana Barin / PUC-SP
A Ética de Espinosa e sua operatividade clínica

MT4 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)

Mediador: Hugus Félix / UFRJ


Robson Cordeiro / UFPB
Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte
Hélio Rebello Cardoso Jr / UNESP
Breves considerações a propósito do paralelismo ontológico
em Espinosa e a continuidade em Peirce: o caso da “mente
experimentalista”
Marília Muylaert / UNESP
Um Corpo só sustenta os valores que vive: Espinosa e
Nietzsche na composição de conceitos-ferramentas para a
contemporaneidade
Sérgio Luiz Persch / UFPB
O interesse por Espinosa numa Genealogia da moral

19h-21h - Conferências da noite (40’ cada; 30’ debate)

CN3 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)

Mediador: Scarlett Marton / USP


André Martins / UFRJ
Romantismo, Spinoza e Nietzsche: Um percurso de influências,
distanciamentos e proximidades
Werner Stegmaier / U. Greifswald
“Inconsequência de Spinoza?” Adolfo Trendelenburg como
fonte da crítica de Nietzsche a Spinoza, em Além do Bem e
do Mal §13
16
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

5ª feira, 01/10/2009
9h-10:40h - Comunicações da manhã (20’ cada; 20’ debate)

MM13 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)

Mediador: Henrique Piccinato Xavier / USP


André Menezes Rocha / USP
Retórica e imaginário político no Tratado Teológico-Político
Cátia Benevenuto / USP
Imaginação e Superstição
Marcos Ferreira de Paula / USP
Crítica da linguagem e necessidade em Nietzsche e Espinosa
Samuel Mendonça / PUC-Camp
Mariana Baruco M. Andraus / UNICAMP
Verdade representada, verdade artística: a linguagem como
limite e expansão do conhecimento

MM14 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 1031)

Mediador: Ivo da Silva Jr. / UNIFESP


Danilo Bilate / UFRJ
O pathos da indiferença e o outro: a ética da nobreza em
Nietzsche
Ildenilson Meireles / UNIMONTES
Assim falou Zaratustra como propedêutica à superação de si
Leon Fahri Neto / UFSC
“Libera ingenia” e “freie Geister”
Márcia Rezende de Oliveira / USP
A possibilidade da grande saúde

MM15 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 117)

Mediador: Renato Nunes Bittencourt / UFRJ


João Evangelista Tude de Melo Neto / USP
A Concepção nietzschiana de fatalismo
Marlon Miguel / U. Paris I
Daniel Nogueira / PUC-RJ
Experiência e decisão na filosofia nietzscheana
Rebeca Furtado de Melo/ UERJ
Nietzsche e a ‘grande razão’: uma resposta à metafísica da
subjetividade
Gilcilene Dias da Costa / UFPA
Um novo qualitas do apetite (desejo) em Nietzsche
17
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MM16 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 111)

Mediador: Marinê de Souza Pereira / USP


Daniel Figueiredo de Oliveira / UECE
Os afetos mal-ditos e o corpo como “máquina de guerra” –
Uma leitura mal-dita dos afetos e corpos em Benedictus de
Spinoza
Catarina Resende / UFF
A consciência-corpo: movimento do corpo tornado
movimento de pensamento
Aldo Ambrozio / PUC-SP
Paulo Alexandre Cordeiro de Vasconcelos / USP
Aproximações do corpo e do pensamento em Nietzsche e
Espinosa
Silas Borges Monteiro / UFMT
Reinaldo Marchesi / UFMT
Nietzsche: um ensaio sobre a função da arte

30’ Pausa
11:10h-12:30h - Conferências da manhã (30’ cada; 20’ debate)

CM4 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediadora: Ana Cláudia Gama Barreto / UFRJ


Wilson Frezzatti / UNIOESTE
A crença no progresso: civilização e darwinismo como sintomas
de decadência
Ivo da Silva Jr. / UNIFESP
Conservadorismo e busca pela origem: o legado dos românticos
em Nietzsche

12:30h-14:40h - Horário de almoço

14:40h-16:20h - Conferências da tarde (40’ cada; 20’ debate)

CT4 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Antônio Edmilson Paschoal / PUC-PR


José Ezcurdia / U. Guanajuato
Amor como caridade e homem livre que está além do bem e
do mal: apontamentos problemáticos em torno das doutrinas
de Spinoza e Nietzsche
Rosa Maria Dias / UERJ
A arte de “Como alguém se torna o que é”
18
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

20’ Pausa

16:40h-18:20h - Comunicações da tarde (20’ cada; 20’ debate)

MT5 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Cristiano Novaes de Rezende / USP


Rochelle Cysne / UNICAMP
Espinosa como inspiração para uma filosofia da ecologia
Luis Rubira / UFPEL
O eterno retorno do mesmo: medida de valor, condição de
possibilidade da transvaloração de todos os valores
Mauricio Rocha / UERJ
Deleuze, Spinoza: o Cristo dos filósofos

MT6 (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, sala 8)

Mediador: Vicente de Arruda Sampaio / UNICAMP


Eduardo Nasser / USP
Nietzsche e os primeiros românticos
Pedro Duarte de Andrade / PUC-RJ
Encontros alegres no absoluto: os primeiros românticos
alemães entre Spinoza e Nietzsche
Samon Noyama / UFOP
Quem é o Schiller de Nietzsche?
Victor Manuel Pineda Santoyo / U. Michoacana
Intuição intelectual, religião e infinito: Spinoza e os românticos

40’ Pausa

19h-21h - Conferências da noite (40’ cada; 30’ debate)

CN4 (Prédio de História/Geografia, Auditório de História)

Mediador: Homero Santiago / USP


Marilena Chauí / USP
Título a confirmar
Patrick Wotling / Reims
Uma genealogia ao inverso. A metafísica da subjetividade e a
metafísica como subjetividade

21h-22h (Prédio de Filosofia/Ciências Sociais, 2º andar)


Coquetel de encerramento

19
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

20
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

CONFERÊNCIAS NOITE 1 (2ª feira, dia 28/09, 19:00h-21:00h)


Mediador: André Martins / UFRJ

Chantal Jaquet / Paris I - Sorbonne

Do eu ao si : a restauração da interioridade em Spinoza


Se Spinoza filosofa na primeira pessoa, ele não se refere nunca ao
“eu”, mas somente ao “si”. O sábio não funda sua meditação sobre o “eu”
pensante, mas ele é “consciente de si, de Deus e das coisas”. Essa passagem
do eu ao si é acompanhada em Spinoza de uma concepção nova da noção de
interioridade. O que é si e como o distinguir disso que não é si? Essa questão
coloca em jogo a distinção entre interior e exterior que é problemática no
seio de um pensamento da imanência. É por isso que as categorias de interior
e de exterior devem ser repensadas de modo renovado para compreender a
emergência do si. É essa restauração da noção de interioridade que se tratará
de examinar a partir da distinção operada por Spinoza no escólio da proposição
29 da Ética II, entre uma determinação do fora e uma determinação do
dentro.

Scarlett Marton / USP

Contra modernos e pós-modernos: Nietzsche e as filosofias


de fachada
Tendo em vista suas diferentes concepções de modernidade, pretendo
num primeiro momento examinar as leituras que Heidegger, Habermas e
Foucault fazem da filosofia nietzschiana, com o intuito de avaliar seus acertos
e desacertos. A partir do exame atento das linhas mestras do pensamento de
Nietzsche, conto em seguida defender a tese de que ele não se enquadra nos
parâmetros da filosofia moderna nem do que mais recentemente veio a se
chamar de pensamento pós-moderno. Investigar o seu não-lugar é o que me
proponho fazer por fim.

CONFERÊNCIAS NOITE 2 (3ª feira, dia 29/09, 19:00h-21:00h)


Mediador: Luís César Oliva / USP

Pascal Sévérac / Collège International de Philosophie

Potência da imaginação em Spinoza


A imaginação, para Spinoza, não é uma faculdade mental cujo
engenho nos seria secretamente oculto. Ela designa antes de tudo um gênero
de conhecimento, um certo tipo de ideias que são associadas segundo uma

21
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

lógica que pode ser conhecida pela razão. Qual é essa lógica da imaginação?
Se a imaginação não é ilógica, por que não é racional? A imaginação seria no
fundo redutível à memória? A questão é importante em Spinoza, que
compreende a gênese da imaginação a partir dos traços do passado, dos
hábitos contraídos desde a infância. Que a imaginação tradicionalmente
chamada produtora, ou criativa, não possa se conceber sem uma dimensão
reprodutora, que seja: é preciso ter percebido certas coisas para poder
imaginá-las de novo. Mas imaginar de novo não é imaginar o novo – como
explicar então, na perspectiva do spinozismo, essa força que a imaginação
possui de combinar o antigo para produzir o novo? De onde ela tira sua
potência de invenção?

Oswaldo Giacoia Junior / UNICAMP

Metafísica e Sujeito - Metafísica do Sujeito


No horizonte da crítica nietzscheana da metafísica, meu texto
explorará a relação entre metafísica e subjetividade sob várias perspectivas:
no plano teórico, histórico, moral e estético. Em todos eles, pretendo mostrar
que crítica disruptiva permite também elaborar e formular experimentos
teóricos abertos para modalidades alternativas de constituição de experiências
de si.

CONFERÊNCIAS NOITE 3 (4ª feira, dia 30/09, 19:00h-21:00h)


Mediadora: Scarlett Marton / USP

André Martins / UFRJ

Romantismo, Spinoza e Nietzsche: Um percurso de influências,


distanciamentos e proximidades
O Romantismo alemão, tomando a Crítica da razão pura de Kant
como um livro que buscava limitar o saber para abrir espaço para a crença na
existência de Deus, segundo as próprias palavras de seu autor, restituiu a
legitimidade da intuição intelectual, atribuindo esta tarefa à arte. Esse Deus,
no Romantismo, contudo, não é mais apenas o Deus transcendente da tradição
metafísica, mas, fortemente influenciado por uma leitura torcida de Spinoza,
um Deus que é também, paradoxalmente, Natureza e mundo. Através de
Schopenhauer, é esta a herança romântica – da arte como capaz de fazer a
ligação entre o mundo das aparências e o mundo da Vontade – que chegará
a Nietzsche. Este, contudo, já apresenta uma versão desse princípio
profundamente distinta da do Romantismo, e por isso deste se afastará. Ao
afastar-se, aproxima-se fundamentalmente de Spinoza, mas não mais em
sua imagem transformada pelo Romantismo.
22
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Werner Stegmaier / E-M-A-Universität Greifswald

“Inconsequência de Spinoza?” Adolfo Trendelenburg como fonte da


crítica de Nietzsche a Spinoza, em Além do Bem e do Mal §13
Em Além do Bem e do Mal, §13, Nietzsche introduz, pela primeira
vez em sua obra aforística, após Assim falou Zaratustra, o seu conceito de
vida como “vontade de poder” – e o contrapõe ao “impulso de
autoconservação”. O “método”, que deve ser o da “economia essencial de
princípio”, proíbe que se estabeleça, “como o impulso cardinal de um ser
orgânico”. Um impulso de autoconservação acabaria assim pertencendo aos
“princípios teleológicos supérfluos”. Pois, “a autoconservação” seria “apenas
uma das consequências indiretas e a mais frequentes” para o fato de “um ser
vivo querer liberar sua força”, no entanto, ele quer sempre mais do que a
autoconservação, ou seja, ele quer “crescimento”, como dizia em A gaia ciência,
§349. Nietzsche contrapõe ali a vontade de poder ao “Darwinismo e a sua
doutrina incompreensivelmente unilateral sobre a luta pela existência”. Deve-
se também a Spinoza o fato de “nossas ciências modernas” se atrelarem
tanto ao princípio da autoconservação: “alguns filósofos, como por exemplo,
o tuberculoso Spinoza, [deviam] achar que era decisivo justamente o assim
chamado impulso de autoconservação [...] – estes deviam ser mesmo homens
em situação de indigência”. Voltando a Além do Bem e do Mal §13, a
abordagem do impulso de autoconservação em Spinoza, segundo Nietzsche,
se deve a uma mera “inconsequência”. Porém, até o próprio Spinoza
considerava como “ficções” (figmenta) os princípios nascidos das necessidades
e das carências e que principalmente as causae finales, os fins, pertencem às
ficções humanas (Ética, I, apêndice). Pois, também para Spinoza, elas são
princípios teleológicos supérfluos. Estaria então o princípio de Spinoza, o
conatus in suo esse perseverandi, o esforçar-se por perseverar em seu ser,
também incluído entre essas ficções? Seria Spinoza inconsequente?

CONFERÊNCIAS NOITE 4 (5ª feira, dia 01/10, 19:00h-21:00h)


Mediador: Homero Santiago / USP

Marilena Chauí / USP

Título a confirmar

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Patrick Wotling / Reims - Champagne-Ardenne

Uma genealogia ao inverso. A metafísica da subjetividade e a


metafísica como subjetividade

Sabe-se que Nietzsche confere uma importância particular à crítica


do pensamento cartesiano. A metafísica na época moderna toma através
dela forma particular, fundando daí em diante o saber filosófico sobre a noção
de sujeito, que se acha posto em questão. Mas é menos sabido que a reflexão
nietzschiana possui um segundo aspecto, mais radical: ela mostra, com efeito,
que toda metafísica, que ela tome por princípio o ser ou a subjetividade, em
realidade constrói seus objetos sem que se dê conta a partir de uma
interpretação do eu e de sua atividade. É essa lógica que essa conferência se
propõe estudar para mostrar que a crença na subjetividade não é somente o
objeto privilegiado de um tipo de metafísica, mas a fonte ativa de todo
pensamento idealista.

CONFERÊNCIAS TARDE 1 (2ª feira, dia 28/09, 14:40h-16:20h)


Mediador: Wilson Frezzatti / UNIOESTE

Céline Denat / Reims - Champagne-Ardenne

A concepção nietzschiana do “homem moderno”, ou a modernidade


como momento “crítico” da história
A crítica nietzschiana da fraqueza do “homem moderno” é um ponto
bem conhecido de seu pensamento – ainda é preciso compreender a sua
justificação e o seu sentido preciso. Ater-nos-emos aqui a esclarecer as
características que são, segundo Nietzsche, essas do tipo “moderno” de
homem, e, isto feito, mostrar que essas características não implicam numa
simples e absoluta desvalorização da modernidade. Esta aparece, com efeito,
muito mais como um momento crítico – no sentido original e médico do
termo – da história, isto é, como fase certamente “doente” e de fraqueza,
mas que, contudo, guarda também ao mesmo tempo as condições de seu
próprio ultrapassamento. Se o homem moderno é provocado por um desejo
de saber ilimitado, que excede toda necessidade, que joga em primeiro lugar
contra a vida e faz dele um homem múltiplo, caótico, deve-se perceber, no
entanto, nessa diversidade caótica ela mesma um modo de elevar o homem
e de achar um estado de saúde superior.
É por isso que a época moderna é pensada por Nietzsche como
sendo, não o fim da história humana, mas, ao contrário, como sendo antes
de tudo uma “época de transição” (übergangzeit) da qual o filósofo médico
deve saber reparar os males dos quais ele pode, no entanto, fazer uso em
vista de uma transformação do porvir.
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Homero Santiago / USP

O corpo da gramática, a gramática do corpo: os hebraísmos de João


Evangelista
Ao morrer, Espinosa deixou inacabado um Compêndio de gramática
da língua hebraica, incluído em suas Obras póstumas. Segundo o prefácio
destas, o autor “sempre teve a intenção de expor a gramática hebraica
demonstrada à maneira geométrica” (Hebræa Grammatica, more Geometrico
demonstrata).
Ora, não haveria um essencial descompasso entre tal intenção e o
objeto ao qual ela se aplica — a gramática de uma língua empírica? O propósito
nos remete diretamente à noção de um tratamento científico do hebraico;
quem fala em ciência, principalmente no interior do espinosismo, fala ao
mesmo tempo em necessidade; todavia, qual necessidade pode perpassar
uma língua a ponto de permitir uma exposição more geometrico de sua
gramática e tudo que isso implica (definições, dedução de regras, absoluta
regularidade, etc.)?
Em geral, é desta questão que gostaríamos de nos ocupar, em dois
momentos. Primeiro, cabe entender como a distinção espinosana entre
“gramática da Escritura” e “gramática do hebraico” abre o campo de
possibilidade para um conhecimento científico da língua hebraica, ao basear-
se no uso do idioma, que por sua vez responde por uma tradição da língua
(no sentido em que o Tratado teológico-político fala, tratando do hebraico,
em “tradição dos judeus”) que lhe confere perenidade. Em segundo lugar,
buscaremos mostrar como tal tradição, que origina a necessidade própria da
língua, toma assento nos corpos dos falantes (uma tradição incorporada);
para isso nos serviremos de uma comparação entre trechos do Compêndio e
do Teológico-político, especialmente os dedicados aos hebraísmos de João.

CONFERÊNCIAS TARDE 2 (3ª feira, dia 29/09, 14:40h-16:20h)


Mediador: Danilo Bilate / UFRJ

Blaise Benoit / Nantes

Nietzsche e a crítica da metafísica do sujeito: por um “si corporal”?


O sujeito não é um princípio, mas uma ficção. Essa é a famosa crítica
nietzscheana da metafísica do sujeito, que culmina notadamente com o
questionamento radical do sujeito substancial cartesiano. Esse estudo esboça
uma via segundo a qual a crítica da metafísica do sujeito permite vislumbrar
uma reorientação da relação entre si e o mundo. Nessa perspectiva, o sujeito
voltado sobre si mesmo se superaria em um “si corporal” fecundo, todo
atravessado pela alteridade e fundamentalmente afirmador.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Luís César Oliva / USP

Contemplação e imaginação na ética de Espinosa


O trabalho investiga as relações entre os conceitos de contemplação
e imaginação nos livros II e III da Ética de Espinosa. Levantando os usos dos
termos na parte II, bem como seu sentido preciso nos contextos de cada um
dos gêneros de conhecimento propostos pelo filósofo, descobrimos que a
imaginação tem papel decisivo tanto no conhecimento inadequado, que é um
tipo de contemplação, quanto no conhecimento adequado, que parte de um
tipo de contemplação para chegar a outro. A parte III oferece um espelhamento
das descobertas anteriores, mas de um ponto de vista dinâmico, em que a
busca do aumento de potência se realiza nos dois níveis: o esforço de imaginar
e o esforço de inteligir, diferentes entre, mas também inseparáveis.

CONFERÊNCIAS TARDE 3 (4ª feira, dia 30/09, 14:40h-16:20h)


Mediador: Tessa Moura Lacerda / USP

Gabor Boros / Eötvös University - Budapeste

Spinoza e o romantismo alemão, ou como o Escrito sobre a liberdade


de Schelling vivifica Spinoza
Em vista da torrente de textos tanto contemporâneos quanto tardios
que denunciaram a filosofia de Spinoza como uma grande ameaça para todas
as religiões reveladas sobrenaturais, é surpreendente que se tenha chegado
no século XVIII a uma recepção spinozana teológica. A figura-chave desta
recepção é evidentemente Lessing, cuja reação ao hino Prometeu de Goethe,
publicado no pequeno livro de Jacobi, foi sabidamente interpretada como
uma espécie de credo spinozano. O próprio Jacobi era da opinião de que o
spinozismo, qual o panteísmo e qual o fatalismo, era um mal que abrange
tudo, que devia ser sobrepujado, caso se tratasse de fundamentar uma filosofia
cristã. Essa convicção geral foi a razão por que os filósofos do romantismo
alemão atribuíram um significado decisivo ao pensamento de Spinoza e
tentaram superá-lo (mas decerto sem dar primazia a um salto mortale
fundamentado teologicamente). Foi Schelling quem tentou atingir essa meta
do modo mais interessante e ao mesmo tempo mais enigmático. Em seu
Escrito sobre a liberdade, que recebeu o título Investigações filosóficas sobre
a essência da liberdade humana e nesse ano completa 200 anos, ele menciona
e cita Lessing (ao lado de uma contínua referência a Spinoza). Certamente,
sua recepção de Spinoza não foi em absoluto teológica, mesmo sendo inegável
que, nesse escrito, Deus e outros teologemas desempenham um papel de
importância eminente. Schelling parte de raciocínios fundamentais da Ética
de Spinoza, obra que ele entende como um projeto que todo intérprete deve

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

completar, levar a efeito e vivificar. Ele mesmo a completou de maneira


engenhosa, ao vivificá-la no sentido schellinguiano do termo.

Antonio Edmilson Paschoal / PUC-PR

Nietzsche, Kant e o projeto da modernidade


Propomos neste artigo algumas considerações sobre a debatida
correlação entre Nietzsche e Kant, tendo em vista o chamado projeto crítico
da modernidade em relação à razão. O objetivo é colocar em cheque a hipótese
de que tal correlação ocorre numa linha de continuidade entre os dois filósofos.
Enfocando especialmente o que poderíamos chamar de o Kant de Nietzsche,
e tomando em particular os textos do período em que foi professor de filologia
clássica na Universidade da Basiléia, pretendemos ressaltar a utilização de
Kant feita por Nietzsche como um instrumento, um meio de expressão para a
sua própria filosofia. Uma idéia muito cara a Nietzsche, porém, pouco apreciada
pelos principais intérpretes que se debruçarem sobre aquela correlação.

CONFERÊNCIAS TARDE 4 (5ª feira, dia 01/10, 14:40h-16:20h)


Mediador: Antônio Edmilson Paschoal / PUC-PR

José Ezcurdia / U. Guanajuato

Amor como caridade e homem livre que está além do bem e do mal:
apontamentos problemáticos em torno das doutrinas de Spinoza e
Nietzsche
O presente texto tem como objetivo levar a cabo uma análise de
diversas afinidades e diferenças entre Nietzsche e Spinoza a partir da revisão
da figura presente na doutrina, de ambos autores, do homem livre que se
encontra além do bem e do mal. Neste sentido, toda vez que se assinalar a
forma do próprio homem livre como foco em que se condensa a crítica que
Nietzsche e Spinoza lançam contra o resultado da moral heterônoma (a
servidão voluntária no caso de Spinoza; a moral de rebanho no caso de
Nietzsche), dando satisfação a um vitalismo metafísico (vontade de poder,
no caso de Nietzsche; imanência no caso de Spinoza), sublinhar-se-á como
que a
a própria concepção do homem livre que está além do bem e do mal na
doutrina espinosana supõe uma radical diferença com relação à nietzschiana:
a cabal afirmação do homem livre a partir do conhecimento do terceiro gênero
ou amor Dei intellectualis. A partir dessa radical diferença, pretende-se
estabelecer um campo problemático com relação ao alcance das afinidades

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

entre Nietzsche e Spinoza, tanto no próprio domínio da metafísica, como de


sua crítica mesma à moral heterônoma e, com esta, à cultura ocidental.

Rosa Maria Dias / UERJ

A arte de “Como alguém se torna o que é”


O objetivo da comunicação é analisar o subtítulo de Ecce Homo,
“Como alguém se torna o que é”, expressão do poeta Píndaro, que aparece
não só nesse último livro de Nietzsche, de 1888, mas, em outras obras, tais
como A gaia ciência e Assim falou Zaratustra, e procurar relacioná-lo ao que
filósofo entende por vida como obra de arte.

CONFERÊNCIAS MANHÃ 1 (2ª feira, dia 28/09, 11:10h-12:30h)


Mediadora: Bárbara Lucchesi / UMC-SP

Vânia Dutra de Azeredo / PUC-Camp

Nietzsche e a interpretação: ponto de virada


Nossa comunicação tenciona mostrar que Nietzsche ultrapassa os
pressupostos da modernidade e inaugura uma nova dimensão da filosofia ao
considerar toda produção humana como interpretação e ao remeter ao corpo
o primado da significação. Parte-se da análise de Habermas, conforme
exposição no Discurso filosófico da modernidade, buscando apresentar
elementos que possibilitam refutar sua posição frente ao pensamento de
Nietzsche. Segundo Habermas, a própria elaboração da filosofia de Nietzsche
apresenta problemas em termos de coerência interna que poderiam inviabilizar
a posição do filósofo frente à modernidade. Apesar de seu empenho de pôr
termo ao processo de exame do conceito de razão, substituindo-o pela
introdução de uma crítica total dessa faculdade, seu empreendimento teria
resultado em um irracionalismo, uma vez que inviabiliza toda e qualquer
pretensão de objetividade nos domínios epistemológicos. Procuraremos
mostrar, mediante a equiparação prévia de impulsos, forças e vontade de
potência, que Nietzsche compreende a vontade de potência, ao mesmo tempo,
como verbo, ela é o interpretar, como sujeito, ela é o intérprete, e como
significação, enquanto expressão do significante e do significado, que se faz
como exercer-se. Que no domínio do texto, enquanto imposição de
perspectivas, não há leitura correta, mas imposição de uma interpretação. E,
por fim, que o autor de Assim falava Zaratustra busca construir uma nova
linguagem para expressar a singularidade doadora de sentidos que caracteriza
sua exposição.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Maria Luísa Ribeiro Ferreira / Universidade de Lisboa

Espinosa, um patrono da ecologia profunda?


Segundo Paul Ricoeur, Espinosa antecipou os “filósofos da suspeita”
(Nietzsche, Marx e Freud) pois tal como eles pôs em causa representações
dominantes na sua época, provocando roturas e propondo perspectivas
alternativas. É uma dessas perspectivas suscitadas pelo pensamento de
Espinosa que pretendemos analisar na presente comunicação. Esta tem como
finalidade discutir a hipotética ligação do espinosismo à ecologia profunda.
Na primeira parte visamos apresentar Espinosa como um pensador
que, embora partilhe algumas das constantes do mecanicismo coevo,
estabelece com a natureza uma relação de integração e de sintonia, em
contraste com a visão cartesiana de uma natureza maquinal Na segunda
parte será particularmente relevado o contributo dado pelo filósofo a algumas
perspectivas ecológicas contemporâneas. Nessa linha abordaremos a
interpretação feita por Arne Naess que elege Espinosa como patrono da
ecologia profunda (Deep Ecology). Na terceira parte confrontaremos a leitura
de Naess com os textos do filósofo. Mostraremos os aspectos do pensamento
espinosano que justificariam a sua aproximação à ecologia , nomeadamente
a relação por ele estabelecida entre partes e todo, o ataque a perspectivas
teleológicas, a exaltação da completude, perfeição e auto-suficiência da
Natureza, o conceito de uma salvação que implica sintonia e integração do
homem com o todo. Mostraremos, no entanto, que o conceito espinosano
de Natureza é muito mais amplo do que aquele que os ecologistas defendem
pois diz respeito a tudo quanto existe e não só ao mundo material, englobando
mentes e ideias. Sem dúvida que devemos a Espinosa a colocação da Natureza
como tema fundador da filosofia. Mas não podemos nem devemos ignorar o
que ele realmente escreveu, forçando-o a entrar numa moldura na qual não
se encaixa. É essa a tese que pretendemos desenvolver ao longo da
comunicação: as leituras atuais e inovadoras suscitadas pelo pensamento do
filósofo, não devem esquecer o texto real que por ele foi escrito.

CONFERÊNCIAS MANHÃ 2 (3ª feira, dia 29/09, 11:10h-12:30h)


Mediador: Clademir Araldi / UFPel

Bárbara Lucchesi Ramacciott / UMC-SP

Nietzsche entre o Romantismo e o “Novo Iluminismo”


A obra de Nietzsche é geralmente dividida em três grandes períodos.
Em cada um pode-se identificar uma posição diferente em relação à ciência.
No primeiro período, marcado pelo forte vínculo com o Romantismo alemão,

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

o conhecimento estético é valorizado em oposição à ciência iluminista herdeira


do “otimismo lógico”, o qual, segundo o filósofo, remontaria ao “racionalismo
socrático”. O segundo período é demarcado, simultaneamente, pela ruptura
com a metafísica de Schopenhauer e com a estética de Wagner, e pela
aproximação ao campo das ciências da natureza. Nesse contexto, Nietzsche
formula o método de sua “filosofia histórica”, anuncia a tarefa de “levar adiante
o Iluminismo” e define o “espírito livre” como ideal do homem do
conhecimento. Pretendemos analisar a mutação em torno do problema da
ciência e do conhecimento operada na passagem da primeira para a segunda
fase da obra, quando a oposição entre arte e ciência moderna cede espaço
ao elogio da ciência pós kantiana, sobretudo em Humano, Demasiado Humano.
Interessa-nos precisar qual concepção de conhecimento e de verdade é alvo
de crítica e de elogio.

Henry Burnett / UNIFESP

Nietzsche e os pré-românticos: visões do popular


Ao desenvolver em seus escritos de juventude uma teoria do Volkslied,
cujo núcleo pode ser identificado no capítulo 6 de O nascimento da tragédia,
Nietzsche ecoava uma discussão antiga – que remontava pelo menos até os
pré-românticos do movimento Sturm und Drang – a respeito do princípio
gerador da arte. A discussão sobre o traço instintivo e o desenvolvimento
consciente das criações artísticas foi alvo de grandes debates na Alemanha.
Nesta apresentação, pretendemos retomar não apenas a discussão em seu
momento histórico, ou seja, focada nas questões estéticas do século XIX e
na herança de autores como Hamann e Herder sobre o jovem Nietzsche.
Tentaremos também deslocar essas clássicas reflexões estéticas para uma
discussão acerca da hegemonia da canção popular na história da música do
Brasil.

CONFERÊNCIAS MANHÃ 3 (4ª feira, dia 30/09, 11:10h-12:30h)


Mediadora: Vânia Dutra de Azeredo / PUC-Camp

Clademir Luís Araldi / UFpel

Nietzsche: Da crítica do sujeito à posição do indivíduo soberano


O objetivo deste artigo é mostrar que as críticas de Nietzsche ao
sujeito identitário da metafísica têm como base a compreensão de vontade
de poder que atua, ao mesmo tempo, como instância crítica e como critério
para a posição do indivíduo soberano, criador de valores nobres. Em Humano,

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

demasiado humano e em Para além de bem e mal expressa-se a preocupação


prático-moral de Nietzsche em constituir um indivíduo singular e legislador,
que teria um modo radicalmente distinto de criar, compreender, hierarquizar
e dominar a si mesmo, seus impulsos, afetos, seus múltiplos ‘eus’ e almas.
Investigaremos as implicações da oscilação de Nietzsche em fornecer um
estatuto adequado ao novo criador de si e de valores. A fisio-psicologia
nietzschiana, que tem o corpo (pluralidade de impulsos) como fio condutor,
abriga ainda um discurso sobre a responsabilidade, sobre a liberdade e deveres
para consigo mesmo, do indivíduo (ou tipo) enobrecido.

Fernando Dias Andrade / UNIFESP

A democracia de Nietzsche contra a democracia de Espinosa


Para Espinosa, a democracia é a forma mais natural de governo, a
forma política originária, a única prática política que deve sempre ser buscada.
Para Nietzsche, a democracia é expressão de fraqueza e perversidade, desejo
de submissão e violência, uma prática política que prepara para a escravidão.
O que leva dois filósofos tão interessados na liberdade e na potência a verem
na democracia manifestações tão opostas, exatamente quando a prática
política aparece, tanto em um quanto em outro, como instrumento essencial
da afirmação da existência? Essa oposição mostra que Nietzsche está errado
quando elege Espinosa como seu precursor: a democracia espinosana,
incompatível com a filosofia nietzscheana, não pode ser abstraída da afirmação
da potência nem de qualquer instante da crítica à teologia e à moral.

CONFERÊNCIAS MANHÃ 4 (5ª feira, dia 01/10, 11:10h-12:30h)


Mediadora: Ana Cláudia Gama Barreto / UFRJ

Wilson Antônio Frezzatti / UNIOESTE

A crença no progresso: civilização e darwinismo como sintomas de


decadência
As relações que Nietzsche estabelece entre progresso, civilização e
decadência são o tema deste trabalho. As críticas que o filósofo alemão dispara
contra a noção de progresso são inseparáveis do antagonismo que o filósofo
estabelece entre Cultura elevada (hohe Cultur) e Civilização (Civilisation). A
cultura é produto da ação criadora e de imposição de valores e, portanto, de
verdades de um grande homem (grosse Mensch) ou gênio (Genie). Esses
valores são expressão ou sintomas de impulsos potentes e altamente
hierarquizados que conseguiram ter livre curso. A civilização, por sua vez,

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

expressa a domesticação (Zähmung) e decadência de impulsos: por não


poderem crescer em potência, necessitam postular um estado futuro
paradisíaco para iludir sobre sua situação de penúria. Nietzsche não acredita
em nenhuma forma de progresso e muito menos no progresso da humanidade
como um todo. O darwinismo, na perspectiva nietzschiana, seria uma das
formas de aparecimento da idéia de progresso.

Ivo da Silva Jr. / UNIFESP

Conservadorismo e busca pela origem: o legado dos românticos em


Nietzsche
Neste trabalho, trata-se de investigar a importância dos românticos
para a tentativa de Nietzsche de recompor o mundo dilacerado. Conta-se
fazer ver que o filósofo, assim como Herder, no pré-romantismo, e com os
românticos, deixa explícito uma busca por uma alma alemã, por aquilo que
estariam destinados a ser, mas não conseguem. Visa-se com isso apontar
não apenas a problemática – que é a mesma – mas as soluções do filósofo e
dos românticos que se aproximam e se afastam.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA TARDE 1 (2ª feira, dia 28/09, 16:40h-18:20h)


Mediador: Tiago Barros (UERJ)

Alexandre Ferreira de Mendonça / Prof. Dr. Filosofia da Educação UFRJ /


alexfm72@hotmail.com

Nietzsche e a arte contemporânea


Qual seria a essência de uma obra de arte? Como diferenciar um
objeto artístico de um outro qualquer? O que as obras de arte teriam de
especial? A partir de que critérios as produções artísticas poderiam ser avaliadas?
Estes são alguns dos problemas que somos incitados a formular não tanto
frente a exemplares da arte moderna, mas, principalmente, frente a boa
parte do que chamamos de arte contemporânea. Freqüentemente as
respostas se encaminham no sentido de uma desqualificação destas
produções. O objetivo do trabalho aqui proposto é exercitar outras
possibilidades de respostas e discutir em que medida o pensamento de
Nietzsche pode contribuir para uma melhor compreensão e avaliação das
criações ligadas à chamada arte contemporânea. Desenvolvidas inicialmente
através de um modelo metafísico, de inspiração reconhecidamente romântica,
as tematizações de Nietzsche acerca da arte tomam um outro rumo a partir
da publicação de Humano, demasiado humano. Neste escrito é desmistificada
a auréola metafísica que em seu primeiro livro era atribuída à arte e a atividade
artística passa a ser concebida inteiramente no campo do artifício, afastada,
portanto, de qualquer modelo convencional de verdade – idéias que
reaparecem em A gaia ciência, quando a arte é concebida como uma “espécie
de culto ao não verdadeiro”, ou em Genealogia da moral, quando dela se
trata como inimiga radical dos ideais ascéticos justamente por conta de sua
boa consciência para com a mentira. Na Miscelânea de opiniões e sentenças
surge outra idéia que passa então a freqüentar suas publicações seguintes:
a crítica à concepção da arte restrita às obras de arte – crítica que deságua
na valorização de uma ação estética sobre a própria existência. Seja por
pensar a arte a partir de seu caráter essencialmente artificial, seja por conceber
a atividade artística para além da moldura convencional com que até então
se apresentavam as ditas obras de arte, Nietzsche parece ter criado um
modelo teórico que funcionava na contramão da produção de seu tempo e
que prenunciava boa parte das manifestações a que assistimos na
contemporaneidade, convidando-nos a desenvolver uma outra percepção,
capaz de dar conta destas produções que, antes mesmo de conquistar o
espaço do museu, começam por se insinuar em nossas vidas cotidianas. Por
outro lado, se por essa perspectiva se diluem os contornos que definiam
com clareza os limites que até então constituíam as obras de arte, isto não
nos obriga a abrir mão de critérios que possam orientar nossas avaliações,
não nos condena a um relativismo estéril. É justamente porque os valores
absolutos perdem seu suposto fundamento, é justamente porque todo valor
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

é concebido como relativo e contingente que se multiplicam as possibilidades


de avaliação. Este parece ser o sentido de textos como o conhecido
fragmento 370 de A gaia ciência, intitulado “O que é o romantismo?”, ou
ainda como o epílogo de O caso Wagner. Neles Nietzsche, articulando mais
uma vez arte e vida e valendo-se da terminologia desenvolvida em Além do
bem e do mal e Genealogia da moral, contrapõe sua crítica ao que seria uma
arte vil à valorização de uma arte nobre, criando critérios que lhe permitem
não só enaltecer a poesia grega e a poesia provençal ou criticar o drama
wagneriano e a cultura de massas emergente, como também lançar suas
esperanças em relação à arte do futuro. Futuro que talvez já se faça presente
desde a crise da representação alardeada por boa parte da produção
modernista. Crise que se acentua e toma outros rumos nas produções dos
chamados artistas contemporâneos. De Fernando Pessoa a Sophie Calle, de
Marcel Duchamp a Andy Warhol, do expressionismo abstrato de Pollock ao
neoconcretismo de Helio Oiticica e Lygia Clark, a ultrapassagem dos limites
entre arte e vida, entre ficção e realidade, o questionamento dos princípios
que nos permitiam identificar com relativa segurança uma obra de arte e
ainda a exigência de criação de novos e múltiplos parâmetros para a orientação
da produção artística vêm se apresentando, de um modo cada vez mais
insistente, como alguns dos problemas que talvez encontrem em Nietzsche
no mínimo a figura de um de seus precursores.

Priscila Rufinoni / Prof.ª Dr.ª Filosofia UnB / rufinoni@unb.br

Nietzsche, crítico extemporâneo do expressionismo


Se levarmos em conta a posição de Foucault, os três caminhos para a
crítica da modernidade foram os abertos por Marx, Freud e Nietzsche. Se
essas filosofias são perspectivas para o mundo moderno, são, portanto, pontos
de vista para analisar também a arte de vanguarda. Quanto a Marx, sabemos
como foram profícuas as vertentes de viés sociológico dialético nas análises
da história da arte, caminho cuja importância tornou quase obrigatória a
passagem pela Kulturkritik para qualquer estudioso dos fenômenos culturais.
A perspectiva de Freud, até por ter sido base teórica do surrealismo, esse
“último instantâneo de inteligência européia” e ponto de crise das vanguardas,
também possibilitou outras maneiras de abordagem da arte. O mesmo não
se pode dizer de Nietzsche – pelo menos não sem fazer inúmeras mediações,
como veremos –, apesar de sua última filosofia ser movida por um impulso
heraclitiano lúdico e artístico. Citado entre os “precursores” do pathos
expressionista, sua perspectiva filosófica, entretanto, parece não ser vista
como um recurso de análise dos influxos artísticos da modernidade. Essa
característica da historiografia não se baseia apenas em escolhas, ela, na
verdade, decorre de um problema de matriz metodológica. Que Nietzsche

34
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

tenha sido reivindicado pelo expressionismo não soluciona uma questão básica
de método: quase seus contemporâneos, não podemos esperar dos artistas
alemães tal percepção “filosófica” capaz de compreender um pensador tão
extemporâneo, e só com cuidado podemos usar juízos de comentadores
atuais retrospectivamente. Resta, então, uma discrepância entre o Nietzsche
ao qual Foucault credita uma das perspectivas de crítica da modernidade e o
“Nietzsche” forjado post-mortem pela tradição, aquele profeta-poeta-rebelde
cujos desígnios atendiam ao gosto dos jovens vanguardistas.
Os estudos sobre artes geralmente tratam com cuidado as
formulações filosóficas, atentos ao desvão que irremediavelmente marca a
passagem do plano teórico para o empírico. Tratar de artes visuais, mais do
que de qualquer outra modalidade artística, é tratar de objetos-de-arte (obras-
de-arte) e não de Arte, objeção enraizada na gênese desta disciplina “História
da arte”, pois ela remonta à Arqueologia. Em um de seus aforismos de Humano,
demasiado humano, Nietzsche marca a distinção entre as obras e a arte:
depois da grande, da gigantesca tarefa da arte para a vida, “a assim chamada
arte propriamente dita, a das obras de arte, é somente um apêndice”
(Humano, demasiado humano, II, § 174). Entender a arte pela obra de arte
é entendê-la pelo fim, pendurar-se a sua cauda, a seu apêndice, pois o
processo, o movimento que impele à embriagues, ao impulso lúdico de
conceber as obras é “uma arte superior à arte das obras de arte: a invenção
de festas”. Uma história da arte de matiz nietzschiano seria, então, um contra-
senso, um “verme que morde o rabo”, já que ruminaria sobre os apêndices
da manifestação artística, disciplina esvaziada e doentia como l’art pour l’art.
Entretanto, se tratamos de uma filosofia que se pretende a crítica
aos discursos abstratos, aos falsos fundamentos, de um pensamento que
não teme usar as armas da Filologia (e atentemos para o parentesco destas
ciências com a Arqueologia) para desmascarar todos os fundos erigidos sobre
o abismo, o descompasso entre empírico e teórico é um dos cernes do
próprio empreendimento de Nietzsche. Todo o pensamento acerca das artes
modernas que se quer não-idealista ou dogmático pode valer-se da crítica
nietzschiana da “modernidade” romântica. A perspectiva filosófica de
Nietzsche, longe de ser um “sistema” fechado, é um instrumento de
diagnóstico para os desdobramentos da modernidade, portanto, perspectiva
justificável também para a compreensão dos processos artísticos que
sucederam as poéticas fim-de-século.Ou seja, pretendemos olhar a partir de
Nietzsche os momentos artísticos posteriores ao “romantismo” (pensado como
aquela poética demarcada pelo próprio filósofo em Gaia Ciência, § 370),
principalmente o expressionismo.
Para tanto, seguimos uma terceira margem interpretativa do trabalho de
Nietzsche, em contraponto às já clássicas interpretações de Heidegger e
Foucault, empreendida pelo comentador contemporâneo Müller-Lauter e
seu discípulo Jörg Salaquarda. Esse outro caminho dá um caráter de suma
importância aos fragmentos finais da obra do filósofo, desfazendo os equívocos

35
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

criados pela falsa obra póstuma forjada por Elizabeth Föster-Nietzsche. O


conceito central de “vontade de potência”, como o jogo lúdico do artista ou
da criança em seu construir e destruir, como força psico-fisiológica em oposição
a uma razão abstrata possibilitam uma leitura construtiva do filósofo, não
mais meramente um niilista. Ao analisar as obras chamadas posteriormente
de “expressionistas”, sua necessidade de comunicação primordial anterior a
qualquer instituição lingüística ou simbólica, aproximamos essa experimentação
do mundo do “pessimismo dionisíaco”, aquele que diz sim até a seus abismos,
que cria a partir do querer-mais-vida e não do ascetismo. Essa reflexão abre
novas veredas formais e teóricas para compreender o expressionismo não
apenas como poética da angústia exacerbada, mas também como experiência,
como arte de um corpo que sente e pensa.

Rafael Haddock-Lobo / Prof. Dr. Filosofia UFRJ / outramente@yahoo.com

A metafórica de Nietzsche: um primeiro tempo da desconstrução


O texto de Nietzsche Introdução teorética sobre a verdade e a
mentira no sentido extramoral pode ser visto como o texto paradigmático
do filósofo seu tratamento acurado da metáfora. Nele, Nietzsche procede a
uma instigante reabilitação da metáfora, investindo contra a primazia
tradicionalmente atribuída ao conceito na filosofia ocidental. O intuito
nietzschiano, portanto, consiste em solapar a verdade e todo o arcabouço
conceitual do qual ela necessita e, para tanto, mais que uma teoria da
metáfora é necessário que o autor empreenda uma teoria metafórica, uma
escrita que diga respeito à metáfora e que, além disso, seja sustentado por
uma articulação entre metáforas entrelaçadas. Segundo Cristina Ferraz, a
força deste ensaio não consiste no que comumente se atribui a ela, ou seja,
sua afirmação ou sua “tese central” de que a verdade, a verdade conceitual,
não passaria de uma construção metafórica como qualquer metáfora, mas,
antes, pelo fato deste ser invadido por metáforas que se convocam, se
sucedem e articulam, tecendo uma rede em que o leitor é seduzido e fisgado.
Com isso, o filósofo, ao pensar esta “origem” como interpretação e invenção,
põe em questão a própria noção de origem, que não pode mais ser pensada
como uma substância ou uma presença efetiva que guie e sustente a verdade
e todo o discurso conceitual que dela se desenvolve.
O texto-tecido que Nietzsche borda não se destina, então,
unicamente a confrontar metáfora e conceito, apostando na “verdade” da
primeira, mas pretende, assim, empreender o “uso estratégico” de uma vasta
rede de metáforas que faz com que sua “máquina textual” não opere apenas
como combustível conceitual, tendo como sua explosão máxima além da
inversão do sistema que, desde Aristóteles, concede à metáfora um local
secundário com relação ao conceito, também a sua performance: isto é, um
uso da potencialidade metafórica levada ao extremo, possibilitando a co-
36
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

existência de diversos idiomas em um único texto. Sendo, assim, o que


antes era visto como mero ornamento é agora tornado eixo – e, além da
inversão, opera-se então o deslocamento deste próprio eixo, que não pode
mais servir de sustentáculo teórico. Com isso, Nietzsche procura demonstrar
a precariedade e a insuficiência do conceito em expressar o sentido único da
verdade, pois não havendo esse sentido original, resta uma infinidade de
sentidos dos quais nenhum conceito pode dar conta, restando apenas os
idiomas da metáfora, que são sempre plurais, para conseguir fazer justiça e
essa multiplicidade.
E é a essa rede metafórica, mais justa e mais “original”, que Sarah
Kofman se dedica em Nietzsche et la métaphore, lendo cuidadosamente o
texto nietzschiano e fazendo ecoar sua herança derridiana, mais precisamente
do artigo de Derrida A mitologia branca, publicado depois em Margens da
filosofia. De acordo com tais leituras desconstrutivas, a metaforização seria
um gesto mais original que a conceitualização, aliás, o gesto humano mais
original: e se há alguma “propriedade” no homem, esta seria sua capacidade
de construção metafórica. Assim, o que se entende por “sentido” não passaria
de um suplemento, de algo acrescentado ficcionalmente às coisas, que não
apresentam nenhuma verdade em si. Retomando a definição de Aristóteles
(Poética 1457b) Kofman, seguindo Derrida, traduz nestes termos: a metáfora
é o transporte para alguma coisa de um nome que designa outra, transporte
do gênero à espécie ou da espécie ao gênero, ou da espécie para a espécie
ou segundo a relação de analogia. Com isso, mostra-se que numa perspectiva
grega (e tradicional) o conceito sempre viria antes da metáfora, sendo esta
um “segundo movimento” apenas de ornamento ou de estilo – e com o que
Nietzsche pretende romper justamente tal pretensão de verdade, através
do apontamento de que o que se entende por verdade nada mais é que
uma metáfora esquecida, uma metáfora que esqueceu de seu estatuto de
metáfora e deixou-se acreditar verdade.

Renarde Freire Nobre / Prof. Dr. Sociologia e Antropologia UFMG /


fnrenarde@gmail.com

Nietzsche e a escrita artística do pensamento


O filósofo é um pensador que escreve. O poeta é um escritor que
pensa. Assim talvez se possa introduzir um corte entre os dois ofícios. É
certo que a escrita interessa ao filósofo, notadamente como meio para a
expressão mais precisa, por vezes também mais agradável, dos seus
pensamentos. O filósofo busca uma organização consistente de idéias e,
para tanto, as palavras lhe são utensílios lingüísticos cujo uso e combinação
se destina à produção de enunciados semanticamente coordenados. Na
filosofia, as palavras servem essencialmente para comporem interpretações.

37
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Quanto ao poeta, por mais que ele pense, por mais que as idéias façam
parte da sua criação e por mais que as suas frases ou os seus versos carreguem
sentidos, a escrita lhe é tão valiosa que a sua arte pode ser definida como o
primado da composição de palavras, considerando-lhes as propriedades visual,
sonora e imagética. Sob o regime das palavras e das suas dimensões, as
idéias poéticas se subordinam ao imperativo de uma escrita possante, que é
fim e não meio. As idéias que um poema apresenta só dizem de sentidos
porque, para tanto, dizem de formas, sons e imagens. Por mais distintos que
sejam os estilos, o poeta tem um zelo especial pelas palavras, uma a uma, ao
ponto de elas lhe serem muito caras e de podê-las livres das exigências
lógicas da linguagem enunciativa. O filósofo, por sua vez, dá-se com freqüência
ao direito de desprestigiar significativamente as palavras ao reduzi-las à
condição de utensílios lingüísticos estruturais.
Como invenção mais livre de jogos de palavras, a poesia revela uma
qualificação essencial que a distingue ainda mais fortemente da filosofia. Trata-
se do ritmo. A poesia exige o ritmo como o seu leitmotiv, sua forma maior, a
sua intensidade concentrada, resultado que se obtém com a arquitetura das
palavras. A arte poética é a escrita que melhor traduz as emoções e idéias
em uma arquitetura de palavras. O ritmo é essa arquitetura, a espinha dorsal
da alma poética, que encontra nas palavras a sua carne, o seu sangue e a
sua voz. A força performática das palavras é o poder da boa solução rítmica.
A filosofia, por seu turno, segue o ritmo mental da trama das idéias, com
maior ou menor carga emocional, mas certamente com menor encanto.
Nesta, as palavras servem essencialmente como peças de frases, voltadas
que estão para a composição enunciativa, enquanto servem ao poeta como
tais, seja na sua particularidade seja na sua aglutinação, mas sempre voltadas
para uma composição rítmica.
Friedrich Nietzsche foi um filósofo porquanto a sua obra é
essencialmente a produção de sentidos e de avaliações, ou seja, revela-se
como um exercício de edificação de idéias dotadas de força interpretativa.
São idéias sobre uma multiplicidade de temas que, por sua vez, dizem respeito
a questões maiores, relativas ao homem, ao conhecimento, à cultura, à
moral, à vida. Mas esta definição, sem dúvida suficiente para o enquadramento
do pensamento nietzschiano no âmbito dos estudos filosóficos, é insuficiente
e não dá conta da magnitude da obra, especialmente quando se busca
examinar o estilo de elaboração das idéias e, sobretudo, as pretensões do
autor a respeito da linguagem escrita. Tal exame levará à negação de um
enquadramento filosófico convencional. Ver-se-á que o filósofo esteve muito
mais próximo de um ensaísta da estirpe de Montaigne ou de um narrador
poético como o foi por vezes Platão do que de um sistematizador kantiano
de conceitos, ao conduzir a escrita para bem distante dos sistemas e arranjos
conceituais.
A relação diferenciada com a escrita se verifica em vários momentos
da obra nietzschiana, mas, de forma paradigmática, no livro Zaratustra, em

38
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

que o autor dispõe idéias filosóficas na forma de uma prosa fortemente


poética. Neste e em outros escritos, ao fazer filosofia como prosa poética,
Nietzsche nos deu a maior prova da sua recusa da filosofia convencional, de
tipo racionalista, e o fez pela prática de uma filosofia às avessas em face da
tradição dominante. “Às avessas” porquanto transgressão semântica e
estilística, vinculando-se a filosofia umbilicalmente à vida, ao corpo e à arte.
O resultado mais expressivo da transgressão nietzschiana é a produção de
discursos que visam menos à compreensão cerebral do que à digestão
existencial, certamente não através de complicações e eruditismos, mas pelo
cultivo de uma semântica que perturba e de um estilo que encanta. O
encantamento envolve a boa arquitetura rítmica das palavras.
O objetivo da comunicação é o desenvolvimento da idéia do
pensamento nietzschiano como escrita aberta à poesia. Neste sentido, mostrar-
se-á que o “aforismo” é a forma por excelência dessa escrita e o livro
Zaratustra, uma obra paradigmática de estilização do pensamento filosófico
como escrita artística, via tratamento cuidadoso da palavra e via a maestria
da composição rítmica.

MESA TARDE 2 (2ª feira, dia 28/09, 16:40h-18:20h)


Mediador: Sandro Kobol Fornazari (USP)

Alex Fabiano Correia Jardim / Prof. Dr. Filosofia UNIMONTES /


alfaja@hotmail.com

Da imaginação ao entendimento: Espinosa aos olhos


contemporâneos de Gilles Deleuze
Apresentaremos como Gilles Deleuze entende a passagem em
Espinosa do primeiro gênero do conhecimento, a imaginação, para o terceiro
gênero do conhecimento, o entendimento de Deus, isto é, um conhecimento
“sobre nossa essência singular e sobre a essência singular de todas as coisas”
e de como tal procedimento desdobraria respectivamente nas idéias de corpo,
imaginação, tradição teológica, servidão e liberdade. Para Deleuze, do Tratado
da Correção do Intelecto, passando pela Ética até o Tratado Teológico
Político, Espinosa denunciou o estilo enganoso e supersticioso da compreensão
dos conceitos de bem e mal, da interpretação da Escritura, do conceito de
corpo e das paixões, pois, para Ele, vivendo-se no mundo da imaginação, o
exercício da autoridade tornava-se mais eficaz na pratica para expandir a
servidão e assim, administrar e nos conduzir para as paixões tristes. O
racionalismo de Espinosa visa o pleno entendimento das paixões para
aumentar a potência do nosso corpo e da nossa alma. Espinosa, para Deleuze,
enuncia uma teoria da expressão e da imanência: nada está fora da natureza,

39
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

mas há uma causalidade imanente que vai da substância infinita à sua


expressão. Neste sentido, um dos maiores desafios de Bento Espinosa foi
estabelecer um conjunto de diferenças entre a força da imaginação e o
intelecto. São essas diferenças que farão com que Espinosa denomine “erro”
à falta de clareza e cuidado nas distinções entre “imaginar e entender”. Por
isso, trataremos do conceito de Deus e da critica desenvolvida à tradição
teológico-metafísica, que funda a “imagem” de Deus a partir das teorias
imaginativas, estas, nos conduz então pelo caminho da superstição e da
servidão. A ausência do conhecimento de Deus se deve ao fato de formarmos
idéias inadequadas a seu respeito. Mas há por outro lado, um problema: as
noções comuns é o que apresentamos de mais generalizado entre os seres,
a linha que conduz aos encontros e que produz alegria e potência. A idéia de
Deus então seria o exemplo mais nítido de uma noção comum geral, dado
que os “modos existentes” expressam a existência de Deus. Mas Deus não é
uma noção comum. Seus modos, sim. Ou seja, uma sorte de singularidade
que perpassa os seres (seus modos) e os implica diretamente a Deus. Mas
qual seria essa relação entre Deus e noções comuns em seu aspecto critico,
em especial ao tratarmos das questões que envolvem o pensamento
teológico? Para Espinosa, as noções comuns, aquilo que une um corpo a
outro, uma unidade de composição, se caracteriza especialmente por relações
de afecção. E a nossa imaginação pode ser tanto maior, dado que o nosso
corpo pode ser afetado de diversas maneiras por outro corpo. Logo, a riqueza
da imaginação é proporcional ao numero de afecções às quais nosso corpo é
capaz. E a imaginação, tal como nos a conhecemos, sofre variações, de
acordo com o corpo afetado, ou seja, ela constitui mundos, institui práticas
e formas de vida. Uma dessas práticas são os discursos provenientes e
característicos do imaginário teológico-metafisico, objeto central de nosso
texto. Desse modo, Deleuze, ao apontar a importância da idéia adequada de
Deus em Espinosa ver ruir os alicerces da tradição que se firmavam na crença
da transcendência de Deus, para pensá-lo enquanto pura imanência e o
mundo como sendo a expressão da substância infinita (Deus). Dessa maneira,
tudo o que existe, se apresenta pela potência necessária dos infinitos atributos
e modos de Deus (o homem como parte da natureza infinita de Deus).
Nesse sentido, Deus é causa imanente de tudo. Não é criador e nem juiz.
Para Deleuze, leitor de Espinosa, toda a realidade é a expressão da natureza
infinita de Deus (enquanto pura imanência), e dessa maneira, torna-se
impossível falarmos de uma hierarquia entre os seres, mas falaríamos de
singularidades e graus de potência a partir da composição existente entre os
modos. Estamos diante então, de uma nova Ética: da recusa da
transcendência divina e da possibilidade de demonstração de que o nosso
intelecto pode conhecer adequadamente a natureza de Deus. Para Deleuze,
o pensamento de Espinosa é o mais radical das expressões por pensar uma
ética a partir de uma metafísica, pois ele parte do conhecimento da substância
infinita – causa de si mesma – para poder entender a noção de liberdade e

40
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

de como o homem pode constituir a sua vida de maneira livre no mundo.


Sendo assim, a ética de Espinosa possui uma profunda expressão prática,
diferenciando-se de uma tradição que tinha como objetivo pensar o homem
“como ele deveria ser”, isto é, uma ética idealista. Com esse objetivo, Espinosa
se depara com duas questões: a razão como àquela que nos afasta dos
enganos da imaginação; e as paixões, com sua força sobre os corpo e alma
dos homens, impedindo-nos do pleno uso do intelecto.

Lindomar Rocha Mota / Doutor Filosofia Pontifícia Universidade Gregoriana /


lrocht@yahoo.com.br

Spinoza ou Kant: a possibilidade do discurso sobre Deus


Kant mesmo confessa, e com ele toda teologia-filosófica moderna,
que o tema está aberto entre o idealismo transcendental e o spinozismo.
Não existe outro modo de pensar Deus: ou Ele é transcendente ao espaço
e o tempo, logo da condição de fenômeno ou se transforma em fenômeno
e o tempo e o espaço serão suas determinações essenciais.
Esta difícil problemática, em Kant, puxa sua reflexão da metafísica de
Spinoza e da compreensão conservada na Ética, onde Spinoza faz confluir o
problema de Deus com a vida, a liberdade e a capacidade de
autodeterminação. A maioria das dificuldades kantianas deriva da interpretação
desta problemática.
Deus para Spinoza era um conhecimento claro e distinto em si mesmo.
Apreendido por uma intuição intelectual [uma espécie de amor], segundo o
qual se evidencia a relação das coisas singulares com a substância necessária.
O que ultrapassa este parâmetro é um discurso dialético, insolúvel
entre a transcendência de Deus e a imanência do mundo.
Spinoza especula profundamente quanto ao modo de argumentar
tradicional da teologia-filosófica, e identifica alguns problemas centrais na
construção destes argumentos. O primeiro deles é o uso inconsiderado e o
abuso das analogias, conseguindo uma passagem contínua entre o desejo
de nós, homens, e o modo de ser de Deus.
A tese sustentada sobre o abuso da analogia, segundo Spinoza, reza
nos seguintes termos “não existe coisa alguma de cuja natureza não resulte
qualquer efeito” (Ética, I, prop.36). Mas isso é somente um modo humano
de pensar, feliz por ter encontrado uma causa segundo a qual não se pode
ir além. Um termo da imaginação. E, ainda mais, quando não se encontra
nenhuma explicação externa para justificar este sonho o homem volta-se
para dentro de si mesmo e reflete “sobre os fins por que habitualmente se
determinam em atos semelhantes, e desta maneira julgam necessariamente
a compleição alheia pela sua própria” (Ética, apêndice).
Kant, por outro lado, sabe que Spinoza tentava conservar a
transcendência de Deus através do amor intelectual, mas acabou por confundir
41
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

liberdade com determinação, do momento que seu agir ocorre de acordo


com a necessidade da natureza – uma pretensa proposição metafísica que
suprimiu a liberdade.
Kant afirma contra o teísmo da tradição e Spinoza que como extensão
da natureza Deus não é livre, assumindo para sua filosofia a difícil solução de
como fundar a imanência de Deus e sua liberdade.
Uma primeira resposta kantiana é de colocar Deus como imanente à
razão prática e não à natureza. Mas qual é o fundamento desta relação com
Spinoza?
Os conceitos de mundo, ou argumento cosmológico e de imortalidade
da alma estão juntos com o conceito de Deus, aliás, fazendo parte da mesma
proposta de decisão de nos colocarmos com Spinoza ou com Kant. Mas o
que significa mundo para a teologia-filosófica clássica? O mundo, não é outro
que uma esfera espacial, uma sucessão contínua de eventos e fatos, onde
Deus entra como causa.
Neste contexto há de se entender Spinoza e há de se entender também
algumas de suas críticas mais agudas ao pensamento da tradição metafísica
que pensava Deu e sua suspensão como causa para pensá-lo como extensão
necessária do mundo. Para Kant, entretanto, ficou definido que a realidade
é extensa, através das condições do espaço e do tempo. Desta forma vacila
o discurso sobre substancia pensado por Spinoza. Deus não está mais nesse
mundo. Esta solução convém, sobretudo, ao resguardo da transcendência
de Deus, nascida da idealidade do espaço e do tempo. É por isso que se
deverá optar entre o spinozismo e o idealismo transcendental.

Arthur Arruda Leal Ferreira / Prof. Dr. Psicologia UFRJ /


arleal@superig.com.br

O conhecimento como afecção: ressonâncias spinozistas na


epistemologia contemporânea
Spinoza, no livro II da sua Ética, aponta para um modelo de
conhecimento distante do quadrante representacional consagrado no
racionalismo de Descartes. Se neste modelo preconiza-se o conhecimento
através de uma razão depurada das paixões e das afecções corporais, em
Spinoza é somente através destas vicissitudes afetivas que o entendimento
é possível. No entanto, esta diferença própria do pensamento do século
XVII nos legou uma herança desigual, com um claro predomínio da tradição
representacionista, mesmo na passagem da antiga Teoria do Conhecimento
às atuais Filosofias da Ciência. Dado o aspecto majoritário desta concepção
no domínio da epistemologia atual, seja no positivismo, seja no racionalismo
aplicado, seja no paradigmatismo, podemos nos perguntar se não haveria
alguma corrente do pensamento sobre a ciência que não tome o
conhecimento a partir de uma afecção corporal. O que pode ser levantado

42
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

é que tanto na epistemologia política de Isabelle Stengers e Vinciane Despret,


quanto na Teoria ator-rede de Bruno Latour, podemos encontrar um
referencial próximo ao spinozista para se abordar a questão do conhecimento.
Para estes, a afecção só se coloca como problema para uma perspectiva
epistemológica que supõe o conhecimento científico através da purificação
dos dados, em que ao pesquisador caberia apenas a representação dos
objetos a partir de sentenças bem construídas. Para estes autores, o
conhecimento, ao contrário, se daria sempre como articulação e co-afetação
entre entidades, na produção inesperada de efeitos, e não no salto
representacional dado na identidade entre uma sentença ou hipótese prévia
e um estado de coisas. Esta concepção fica ainda mais clara quando se toma
um texto de Latour como How o talk about the body? Aqui o processo de
conhecimento científico, tomado como uma múltipla articulação entre diversas
entidades, é comparado ao modo com que um especialista em perfumes
constitui seu saber, ou seja, pelo modo progressivo com que ele vai se
articulando através de seu corpo a um “kit de odores”. Nesse caso, o
conhecimento científico deixa de ser assimilado a um processo de purificação
e passa a ser entendido como um modo progressivo de articulação e afetação
entre as entidades pesquisadas. Enquanto articulação, o conhecimento
científico não se distingue mais entre má e boa representação, mas entre
má e boa articulação. No primeiro caso, temos uma situação em que a
articulação é extorquida ou condicionada a uma resposta pontual, conduzindo
os seres pesquisados a um lugar de “docilidade”. No segundo, teríamos uma
articulação na qual o testemunho iria além da mera resposta, abrindo-se ao
risco de invalidação das questões e proposições do pesquisador e a colocação
de novas questões pelos entes pesquisados. Aqui teríamos uma relação de
recalcitrância. O problema das concepções representacionais é que elas não
apenas são inadequadas, como conduzem, em nome da purificação a uma
forma de articulação extorsiva e inibidora da recalcitrância. Um exemplo claro
disto é o design de “sujeito ingênuo”, muito comum nas ciências humanas,
como a psicologia. Aqui, na busca de evitar uma influencia dos pesquisadores
sobre os sujeitos pesquisados, evita-se ao máximo qualquer informação sobre
os objetivos da investigação. Segundo Despret, isto não apenas não garante
qualquer objetividade, como produz uma articulação extorsiva. Este design
não garantiria uma posição de derradeira ingenuidade por parte dos sujeitos
psicológicos: apenas uma posição ambivalente destes, entre a confiança,
dada no crédito aos cientistas, e a desconfiança de que algo se esconde. O
efeito disto seria uma espécie de clivagem na consciência, típica das situações
de confiança & desconfiança conjuntas: a obediência ao cientista, mas com
“uma pulga atrás da orelha”, na tentativa de se entender o que se passa.
De mais a mais, este “desconhecimento” imposto ao sujeito ingênuo seria
visto como inútil e empobrecedor, pois não apenas não exclui a complacência,
como se evitam outras possibilidades de intercâmbio entre investigadores e

43
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

iinvestigados. Certamente embasadas numa posição mais ativa e


problematizadora. São estas as formas de afetação doravante buscadas.

Péricles Pereira de Sousa / Prof. Dr. Filosofia UNIMONTES / pericles-


sousa@ig.com.br.

Deleuze: Genealogia e Crítica


Desde as primeiras páginas de Nietzsche e a Filosofia, Deleuze
considera Nietzsche o responsável por introduzir na filosofia os conceitos de
sentido e de valor. Através desses conceitos, o filósofo alemão confere à
filosofia e ao filósofo outra imagem: a filosofia tornar-se crítica e o filósofo
genealogista. Afirmar que o filósofo seria genealogista e a filosofia crítica
talvez não seja novidade. Ainda mais se tivermos em vista que Kant, muito
antes de Nietzsche, inaugurou na história da filosofia a idéia de crítica. É claro
que o filósofo francês não desconhece a crítica kantiana. Porém, ele desconfia
de tal projeto, acredita que Kant não foi capaz de conduzir a crítica. O que
levaria Deleuze a afirmar que Nietzsche e não Kant teria desenvolvido a
crítica? A resposta se encontra no modo como cada um colocou os problemas.
Se Kant não foi capaz de fazer a crítica, de levá-la às últimas conseqüências,
foi por não ter colocado o problema em termos de valores, cabendo a
Nietzsche essa capacidade. O filósofo francês considera que haveria dois
aspectos inseparáveis da filosofia crítica: a necessidade de submeter toda
origem a seu real sentido e valor; mas, numa ordem inversa, a exigência de
indicar que o sentido e o valor devem possuir uma origem. O que se mostraria
inaceitável para Nietzsche, seria o fato de determinados valores escaparem à
crítica, mas também que a crítica fosse apresentada a partir dos valores
vigentes. Sendo nesse sentido que Kant e Schopenhauer seriam vistos como
operários ou trabalhadores da filosofia. Desenvolver a crítica a partir de fatos
objetivos, como faziam os utilitaristas, também não parece grande coisa,
pois os poderes estabelecidos continuariam a exercer as suas funções. Embora
os utilitaristas não sejam operários da filosofia, suas considerações seriam
idiossincráticas. Em ambos os casos, manter-se-ia a filosofia no elemento
indiferente, do que vale em si ou do que vale para todos. A verdade é que
a filosofia não deve se preocupar com o que possui valor em si, menos ainda
visar o que vale para todos. O elemento da filosofia seria a diferença e não o
indiferente, essa a contribuição deixada por Nietzsche ao fazer do filósofo
um genealogista e da filosofia uma crítica. É preciso observar que Deleuze
desenvolve boa parte dessas considerações logo no início, onde teria o
objetivo de refletir sobre o pensamento e cultura trágica. Não teria ele
negligenciado o itinerário intelectual de Nietzsche, esboçando comentários
sobre um tema que apenas em 1887 parece ganhar destaque na obra do
filósofo alemão? Por que a necessidade de recorrer ao conceito de genealogia?
Como entender que ele invoque o conceito de forças para pensar o conjunto
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

da obra nietzscheana, uma vez que apenas em 1885, Nietzsche desenvolveria


tal teoria? Que ao mostrar a relação entre vontade de poder e forças, fazendo
da vontade de poder o elemento diferencial e genético das mesmas, ele
diferencie onde qualquer um estaria proibido de diferenciar, sob pena de
renunciar à coerência interna do pensamento de nietzscheano? Nesse sentido,
não teria ele se equivocado na maneira como conduziria a crítica nietzscheana
contra a crítica kantiana? Ao analisar o trágico, o filósofo francês não só
começa definindo o conceito de genealogia, mas esboça interpretações acerca
das forças e da vontade. Ao fazer a apresentação, considera ter dado um
salto importante em relação ao conceito de genealogia: pois sendo a origem
a diferença na origem, a diferença na origem a hierarquia, a hierarquia a
relação entre forças que dominam e obedecem, só se pode pensar a
genealogia como inseparável da hierarquia, sendo esse o verdadeiro problema.
Que importância teria para Deleuze analisar, ainda que rapidamente, os
conceitos de força, vontade de poder e genealogia no início de sua obra?
Isso talvez só possa ser explicado em função da importância que a Genealogia
da Moral possui para o pensador. O que o filósofo francês parece sugerir é
que se deveria, se possível, apreender o conjunto da obra nietzscheana sob
a luz da Genealogia da Moral. É verdade que, do ponto de vista dos especialistas,
isso talvez dificulte um pouco as coisas, acentuando certas redundâncias.
Entretanto, seria interessante acompanhar como essas idéias seriam
apresentadas.

MESA TARDE 3 (4ª feira, dia 30/09, 16:40h-18:20h)


Mediador: Pablo Azevedo (UFRJ)

Adriana Barin de Azevedo / Doutoranda Psicologia Clínica PUC-SP /


adri_barin@yahoo.com.br

A Ética de Espinosa e sua operatividade clínica


Deleuze em uma de suas aulas de 1983 em Vincennes, dizia que
Nietzsche considerava Espinosa como seu único predecessor. Para Nietzsche
era preciso um grande amor para pensar, um grande amor para levantar seus
problemas; o que ele queria dizer é que uma pessoa não pode se ocupar de
uma questão sem que esta mude o seu modo de perceber as coisas e mude
sua potência de vida. No entanto, quem mostrou que todo encontro vivido
implica numa mudança do modo de perceber e do modo de sentir, que vem
a ser os afectos, foi Espinosa. Nietzsche e Espinosa foram dois grandes
pensadores de saúde frágil que lançaram gritos perguntando pelo aumentando
da potência de uma vida. Suas vozes ressoam até hoje e nos ajudam a
continuar pensando com que ferramentas construímos vidas alegres.
Proponho concentrar aqui a questão em torno de Espinosa,
principalmente no que tange a sua obra-prima, a Ética. Parece curioso pensar

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

que esta grande obra da filosofia, a Ética, interesse tanto a leitores filósofos
quanto a leitores não-filósofos. O modo como este livro é escrito traz os mais
diferentes efeitos para quem tem a oportunidade de lê-lo.
Deleuze é um grande admirador de Espinosa e encontra na Ética um
pensamento potente que trata dos modos de vida e dos afectos que
compõem um indivíduo. Com Deleuze, encontramos nesta filosofia do século
XVII uma preocupação que permanece atual; trata-se de um modo de pensar
o indivíduo por seus afectos.
Poderíamos chamar Espinosa de vidente, pois além de ser um bom
polidor de lentes para telescópio, ele observava com cuidadosa atenção a
experiência de vida dos homens de sua época e o modo pelo qual estes
homens buscavam bons ou maus encontros. Espinosa via o que ninguém
via, ele percebia como alguém se fazia escravo ou se fazia livre.
Uma preocupação como esta interessa muito ao campo da Psicologia.
Trata-se de uma perspectiva filosófica com uma potência clínica no modo de
pensar. Podemos dizer que há uma clínica na filosofia de Espinosa, no que diz
respeito a uma atenção ao corpo, pelos afectos que ele experimenta. Espinosa
apresenta estes modos de afetar e ser afetado, quando trata dos três gêneros
do conhecimento na Ética. Num primeiro gênero viver-se-ia ao acaso dos
encontros, sem conhecer os corpos com que se relaciona; num segundo
gênero já se seria capaz de conhecer os corpos que se compõem e os que
não se compõem com o seu corpo, o que levaria a escolher encontros alegres,
e um terceiro gênero que ele chama de estado de beatitude, que remete a
um amor a Deus, pelo qual é possível reconhecer os bons afectos e construir
uma vida alegre e livre.
Estes gêneros do conhecimento entram em diálogo com a Psicologia quando
se fala em processos de subjetivação e individuação. O modo como o indivíduo
vive seus encontros, subjetivando-se e individuando-se através deles, traça
um diagnóstico das suas tristezas e alegres. Os graus de sofrimento de um
corpo podem ser pensados através do que Espinosa apresenta com os três
gêneros do conhecimento.
Nesse sentido, este pensamento da imanência, como podemos
chamar o pensamento espinosano, interessa a uma certa clínica da Psicologia,
pois traz dispositivos potentes para operar um encontro terapêutico.
Esta filosofia da liberdade e da alegria interessa em absoluto as práticas
clínicas ocupadas com a subjetividade contemporânea. Poderíamos dizer que
na Ética é explicitada a subjetividade presente numa Holanda do século XVII,
que continua vigorando com outros gestos e outras caras no mundo
contemporâneo. Por isso fica a questão de saber como a neurose, as patologias
e os modos de sofrer de hoje, saem desta diminuição de potência de vida
para alcançar um estado de beatitude.
A clínica se ocupa inteiramente desta questão, não só nos settings
terapêuticos, como também em suas muitas variações, no caso por exemplo,
de uma análise da subjetividade contemporânea, de uma análise de instituições

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

e suas relações de poder, da construção de um olhar clínico no campo da


Psicologia. O que encontramos na Ética, principalmente pela retomada que
Deleuze faz desta obra, são disparadores importantes para pensar os
diferentes graus em que pode operar uma clínica. É nesse sentido que dizemos
que a filosofia espinosana é uma grande aliada de uma psicologia preocupada
em pensar o indivíduo pelos seus afectos.

Adriana Belmonte Moreira / Doutoranda Filosofia USP /


adribelmonte@hotmail.com

Corpo, potência e terapêutica nas filosofias de Nietzsche e Espinosa


Nosso objetivo é, a partir dos conceitos de corpo e potência
presentes nas filosofias espinosana e nietzschiana, apresentar a idéia de uma
terapêutica, pautada na dinâmica dos afetos. Partindo da idéia de que tanto
Espinosa quanto Nietzsche são conhecidos como pensadores da imanência e
da afetividade, que subvertem a forma de pensar a relação corpo/alma
colocando-a sob a insígnia da potência (seja o conatus espinosano, seja a
Wille zur Macht nietzschiana), em nosso percurso, recorreremos
fundamentalmente aos cinco livros da Ética e aos textos de Nietzsche do
chamado último período de sua produção filosófica (1883-1888), incluídos
os fragmentos póstumos. Nesses escritos, Nietzsche apresenta o corpo como
uma estrutura social de afetos que lutam incessantemente para aumentar
sua potência, subjugando outros conjuntos afetivos. A seu ver, mesmo a
alma deve ser remetida a este registro, já que não se distingue
substancialmente do corpo. Já Espinosa apresenta o corpo como uma estrutura
complexa composta de outros corpos, e a mente como “idéia do corpo” e
“idéia da idéia do corpo”; mente e corpo entendidos, respectivamente, como
modos finitos dos atributos de uma única substância, Deus. Modos estes
que, em sua essência, possuem diferentes graus de potência. Destarte,
embora um aposte num monismo da substância e outro recuse a perspectiva
substancialista dualista, tanto Espinosa quanto Nietzsche apresentam o corpo
e a alma a partir de uma complexidade afetiva e entendem ser a saúde um
processo contínuo de busca por aumento de sua potência de ação. Com
efeito, Espinosa apresenta a unidade corpo e mente como potência imanente
(ou conatus), capaz de variação positiva e negativa, aumento ou diminuição.
Ou seja, todos nós somos dotados de uma potência de agir, sendo que na
interação que temos com o mundo encontramos coisas que favorecem ou
criam obstáculos ao pleno exercício de nossa potência, dependendo da forma
como somos afetados por elas. Assim, durante nossa vida fazemos bons ou
maus encontros, dependendo se eles aumentam ou diminuem a nossa
potência de agir. Ademais, se a saúde está relacionada ao incremento de
nossa potência de agir, ela também está diretamente relacionada ao afeto
da alegria, considerado o melhor “remédio” contra a impotência ou

47
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

passividade, enquanto enfraquecimento do conatus. Na perspectiva


nietzschiana, a saúde também está relacionada aos processos de elevação
de potência do conjunto afetivo que compõe o corpo. De algum modo,
Nietzsche também vincula a idéia de grande saúde à alegria, proporcionada
pelo exercício da arte da dança. Isso porque, metaforicamente, ele apresenta
o dinamismo das inter-relações entre os afetos como uma dança, um ensaio
de novas coreografias próprio da vida. Se a potência do corpo está elevada
é porque dança dos afetos está caracterizada pelo dinamismo e pela mudança
de formas, se está diminuída, é porque os conjuntos afetivos encontram-se
desorganizados, não conseguindo compor um bailado harmonioso. No primeiro
caso, quando o corpo está mais ativo em sua dança, ele experimenta
diferentes pensamentos, sentimentos e quereres e se recria incessantemente,
no segundo, quando a dança arrefece, ele tende à estagnação de suas
formas de querer, sentir e pensar, o que diminui sua potência criativa. Como
esse conjunto afetivo está constantemente se alterando, a elevação de
potência passa a ser uma condição que continuamente se procura, já que os
processos de diminuição de potência ou descompasso são inevitáveis. Assim,
para Nietzsche, saúde seria a capacidade de manter essa dança sempre vivaz,
através da criação de diferentes coreografias vitais. Mesmo que a dança
arrefeça por um tempo, que o bailado não seja harmonioso, o que importa é
que ela continue ativa e supere os períodos de descompasso. É em vista
disso que Nietzsche define a “grande saúde” em oposição à “pequena saúde”,
que não suporta a doença. Ou seja, a “grande saúde” não é uma saúde
perfeita, ideal, entendida como ausência de doença, mas como a capacidade
que temos de enfrentar a experiência do adoecimento, que a nós é inevitável,
e superá-la, fazendo dela uma oportunidade de criação de diferentes modos
de querer, sentir e pensar. A verdadeira doença, para ele, seria o paralisar-se
no estado crítico, sem conseguir fazer do adoecimento uma experiência
potencializadora. Para Espinosa, é necessário conhecer como se dá nosso
funcionamento afetivo e realizar encontros que aumentem nossa potência
de agir, selecionando aqueles que são úteis ao aumento de nossa potência
ou conatus. Na terapêutica nietzschiana também há a necessidade do
diagnóstico de como se processa a nossa dinâmica afetiva, e é central a idéia
de seleção daquilo que nos potencializa (alimentação, moradia, clima, amigos,
recreações etc.). Em ambos os casos, a terapêutica é estritamente pessoal,
pois não há nenhuma fórmula ou receita que seja universal, prescritivo-
normativa, pois o que está em jogo para cada um é a elevação da potência
que está contida em cada corpo, no caso de Nietzsche, e, segundo Espinosa,
em cada essência singular.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Cristina Rauter / Prof.ª Dr.ª Psicologia UFF / c.rauter@terra.com.br

Contribuições da Filosofia de Spinoza para pensar a violência e a


criminalidade contemporâneas
A filosofia de Baruch Spinoza traz contribuições para o estudo da
violência e da criminalidade, já que compreende a negatividade presente no
campo social não como tendência inerente ao humano ou à sociedade
humana, mas como processo histórico a ser compreendido numa genealogia
dos modos de subjetivação e de um campo social dado. Uma única substância
engendra tanto os fenômenos positivos quanto os negativos, presentes na
destrutividade dirigida a si próprio e aos outros. Este plano pré individual é
concebido como um campo para além do bem e do mal, não cabendo pensá-
lo como ligado à negatividade, esta sim engendrada a partir de
constrangimentos e “tiranias” que só podem ser vistos como fenômenos
secundários em relação a esse plano. Tal direção é bastante distinta de
análises sobre a criminalidade contemporânea propostas por especialistas,
com freqüência logo após algum crime especialmente chocante. Nelas a
referência é geralmente o conceito de pulsão de morte proposto por Freud
e que tem sido objeto das mais diversas interpretações. A partir de uma
certa compreensão do conceito freudiano de pulsão de morte, alguns afirmam
existir uma negatividade anterior ao campo social e capaz de engendrar
múltiplos fenômenos destrutivos, desde o terrorismo até a criminalidade,
retirando estes fenômenos do campo político e mesmo do campo da clínica
psicanalítica. Duas direções podemos tomar para pensar o negativo a partir
da filosofia de Espinosa. Numa primeira, o negativo é ilusão da razão. O mal
não pode ter qualquer existência real, não pode estar presente na essência
do ser. Já o “mau” tem uma existência concreta e resulta do mau encontro,
do constrangimento, de tudo o que gera a tristeza. A crítica spinozista a
instâncias transcendentes (o mal) traz novos parâmetros para a construção
de uma ética pensada no plano de imanência, nas experimentações concretas
do campo das práticas coletivas.
Negando ao mal qualquer substância, coloca-se a difícil questão acerca
do mal praticado pelo mal feitor. Poderia haver um ser cuja essência fosse a
prática de crimes? Examinemos o ato criminoso nele mesmo. Aquele que
ergue o braço e empunhando uma faca, mata, expressa com este movimento
uma potência do corpo e enquanto tal, expressa algo disso que está para
além do bem e do mal. Mas o que faz desse ato um ato mau (e aqui utilizamos
propositadamente o adjetivo mau e não o substantivo mal, que encerra uma
generalização) é a idéia que o acompanha, a idéia de matar, de decompor
com esse ato as relações de um outro corpo que não pode suportar esse
encontro sem que seja aniquilado, suprimindo assim a possibilidade de novos
encontros de corpos. E a idéia de matar, o ódio, são eles próprios afetos
tristes, sempre secundários, sempre resultado de constrangimentos e de
tiranias que são internalizados, mas que não estão dados no plano do ser.

49
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Spinoza afirma também o caráter sempre exterior da morte. Sendo exterior,


ela não é buscada por nenhum ser vivo, ela não expressa uma tendência.
Toda morte é acidental e trágica, no sentido de que toda morte diz respeito
a um mau encontro e a uma decomposição de relações. Um indivíduo é
sempre composto de múltiplas partes e um encontro entre dois indivíduos
encerra uma multiplicidade, sendo em si mesmo imprevisível do ponto de
vista dos afetos que engendra. Está sempre aberta a possibilidade de que
um mau encontro possa levar a uma decomposição de relações que ponha
fim aquele feixe de relações entre as partes que compõem um indivíduo
determinado. O indivíduo morre, mas não a suas partes, que podem
estabelecer novas relações. A idéia de destruir é que configura a maldade do
mal feitor. O ódio, para Spinoza não é nunca uma virtude. A alegria, esta sim,
é uma virtude, enquanto expansão do ser. O ódio está sempre ligado ao
constrangimento e à impotência e a idéia de destruir só aparece como efeito
das tiranias e envenenamentos que a produziram.

Orion Ferreira Lima / Doutorando Saúde Coletiva UNESP /


orionferreira@yahoo.com.br

Contribuições de Espinosa para o conceito de saúde mental


O presente trabalho pretende analisar em que medida as
contribuições de Espinosa são importantes para o conceito de saúde mental.
Para isso, pretendemos tomar como fio condutor os diversos modos de
apreensão do que hoje denominamos doença mental. Historicamente falando,
esta se delineou as sombras dos sintomas apresentados pelos indivíduos, de
modo que a loucura tornou-se sinônimo de erro, ou seja, de tudo aquilo que
se constitui deturpação da realidade. Nessa perspectiva, o louco tornou-se
um alienado, alheio a si mesmo e ao mundo, em suma, um não-sujeito.
Entendida nesse sentido, a doença mental assume o caráter de desajuste
na esfera biológica, precisamente cerebral. Como sinônimo de erro, o doente
deveria, isolado do mundo, procurar “ajustar-se” à realidade. É nesse universo
de isolamento que a loucura torna o indivíduo o sujeito da desrazão, em
outras palavras, o sujeito, que por conta de sua alienação, deixa de ser
protagonista de sua própria história, dando lugar ao objeto de alienação.
Nessa concepção de institucionalização da loucura, a doença mental
se molda a partir do conceito de distúrbio ou de “desajuste” que se revela
numa sintomatologia bizarra. Não há nenhuma preocupação com o indivíduo,
entendido aqui em sua totalidade.
Com o advento da chamada “reforma psiquiátrica”, apregoada pelas
idéias de Basaglia (Psiquiatria e Antipsiquiatria & A instituição negada), Rotelli
(Desistitucionalização: uma outra via), estimulados, sobretudo por uma filosofia
da emancipação do sujeito proposta por Foucault (História da Loucura na
Idade Clássica & As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências
50
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

humanas), começa-se a fomentar a desconstrução de um mecanismo


psiquiátrico fundado na noção de poder-saber. O próprio estabelecimento
da doença mental nos sugere pensar que uma subjetividade diferente está
emergindo, de modo que não faz nenhum sentido tratarmos os sintomas
deixando de lado o sujeito como também sua existência e seu sofrimento.
(Torre & Amarante, Protagonismo e Subjetividade: a construção coletiva no
campo da saúde mental).
Pretendemos demonstra que essa nova imagem de mundo levou-
nos a pensar se não seria interessante ocuparmo-nos do conceito de saúde
ao invés de doença mental. Por muito tempo focalizamos nossa atenção no
conceito de doença mental e, conseqüentemente em seus sintomas.
Construímos nossas teorias e práticas a partir de uma série coordenadas de
sintomas que caracterizam o estabelecimento de um “desajuste” na esfera
dita mental; com isso diagnosticamos e traçamos um plano comum de
terapêutica. Nesse sentido, os aspectos histórico-sociais e individuais não
são valorizados.
Em nosso trabalho temos pretensão de valorizar essas dimensões,
considerando-as imprescindíveis à construção do conceito de saúde.
Acreditamos que a filosofia monista-naturalista de Espinosa nos garante
subsídios imprescindíveis para se entender como é possível alcançar uma vida
satisfatória.
Ao postular sua teoria do conatus, Espinosa afirma que são os afetos
que nos permitem pensar o desenrolar de uma vida saudável ou não. Por
conatus entende-se o esforço de autopreservação do ser em existir. O homem
é um conatus na medida em que busca manter-se na existência. A questão
é que esse conatus pode sofrer variações, isto é, pode aumentar ou diminuir,
dependendo de como o homem relaciona-se com outros seres que povoam
o mundo. A intensidade da força do conatus diminui se a singularidade for
afetada por outros, de modo que se torne dependente deles. Por outro
lado, ela aumenta se a singularidade do indivíduo não perder sua autonomia
ao ser afetada por outros. (Chauí, Espinosa: poder e liberdade).
Espinosa nos leva a repensar o papel dos afetos na construção das
individualidades. Para que haja um indivíduo saudável, livre, isto é, com um
conatus forte, os afetos que diminuem sua potência de ser e agir devem ser
substituídos por afetos que aumentam essa força. Assim, a alegria (afeto
que aumenta a força do conatus) deve substituir à tristeza (afeto que diminui
a força do conatus). Esse constitui o caminho para a busca do equilíbrio.
Como podemos observar, a filosofia espinosana permite-nos pensar
o indivíduo humano em sua totalidade, valorizando, sobretudo, seus aspectos
afetivos como também sua relação com o mundo. Nessa perspectiva homem
e natureza encontram-se indissociáveis, o que nos faz considerar a importância
do meio social na busca por um modelo que proporcione aumentar cada vez
mais sua potência de existir.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA TARDE 4 (4ª feira, dia 30/09, 16:40h-18:20h)


Mediador: Hugus Félix (UFRJ)

Hélio Rebello Cardoso Jr / Prof. Dr. Filosofia da UNESP /


harebell@hotmail.com

Breves considerações a propósito do paralelismo ontológico em


Espinosa e a continuidade em Peirce: o caso da “mente
experimentalista”
Entre os filósofos da tradição metafísica elogiados por Peirce encontra-
se Espinosa. A saudação de Peirce a este pensador se deve ao fato de que
sua metafísica seria partícipe de uma, assim chamada, mente experimentalista.
A presente comunicação visa, justamente, destacar elementos da filosofia
espinosana que, por hipótese, realizam o caráter experimentalista alegado
por Peirce. Tal objetivo principal será cumprido a partir de certas considerações,
onde se demonstrarão não apenas os problemas experimentalistas de
Espinosa, como também, sua ressonância em certas passagens importantes
de “Metafísica Científica” de Peirce. Em suma, tanto para Espinosa quanto
para Peirce, vigoraria certa ressonância entre a alegria ética e a satisfação de
conhecer. Por isso é que, hipoteticamente, a mente experimentalista de
Espinosa atraiu a atenção de Peirce, visto que nos escritos espinosanos estaria
inscrita a ideia de que novas relações implicam maneira de conhecer, de
modo que todo conhecimento implica uma modificação de relações que se
estabelece e se afirma no mundo, entre corpos, entre ideias ou entre corpos
e ideias. No início de um de seus textos clássicos, a saber, O que é o
Pragmatismo, Peirce definiu o tipo de mente que era moldado pela vida em
laboratório, como a sua própria o fora desde sua infância. Os experimentalistas
são, na maioria das vezes, físicos, químicos e todos aqueles que praticam
uma ciência experimental. No entanto, Peirce também encontrou filósofos
cujo modo de pensar, especialmente no campo da Metafísica, lembrava o
preparo mental que as ciências requerem. Sendo assim, começo por questões
simples: porque Peirce coloca Espinosa entre os filósofos cuja mente teria
um caráter experimentalista? Por que a Metafísica de Espinosa proporciona
uma mente com tal caráter? A fim de responder a estas questões, procurarei
mostrar que a Ontologia de Espinosa, originalmente, e através de seus recursos
próprios, realiza o princípio pragmatista que Peirce orgulhosamente encontrou
no modo de pensar dos filósofos experimentalistas. Tendo em vista tal
proposição, examinarei, em primeiro lugar, o referido princípio pragmatista
em termos das ideias peirceanas de crença e de efeitos sobre a conduta da
vida. Consequentemente, e em segundo lugar, pretendo examinar
brevemente o que poderia fazer ressonância, em algumas passagens da
ontologia/ética espinosana, com o preceito Pragmatista de que a alegria
ética combina-se com a satisfação que acompanha o conhecimento, “o aplacar
de uma dúvida”, segundo expressão de Peirce. Em terceiro lugar, e por fim,

52
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

retornarei a Peirce para mostrar, também com brevidade, que a partir dessas
aproximações em torno da mente experimentalista, surge e se evidencia um
elo conceitual mais arrojado que merece exame futuro. Trata-se da hipótese
de que há certa vizinhança entre a tese do paralelismo ontológico em Espinosa
e o importante conceito peirceano de continuidade, com o qual Peirce definiu
a principal e mais abrangente tarefa de seu pensamento. De fato, Espinosa
se dedica, com afinco, à construção do chamado paralelismo ontológico entre
corpos e idéias. Sendo esta uma das teses centrais de sua Ética, o referido
paralelismo estabelece, decisivamente, um elo prático entre o conhecimento
(idéias) e o mundo da ação (corpos). Com Peirce, temos o sentimento de
satisfação sempre que se passa da dúvida à crença, de modo que novos
hábitos mentais são também a garantia epistemológica de que algo novo
surgiu no mundo da existência dos corpos. Outra importante concordância,
do lado de Espinosa, se encontra do ponto de vista dos modos de conhecer.
De acordo com ele, o surgimento de uma nova relação entre corpos impõe
a necessidade de conhecimento, já que novas relações precisam de novas
idéias. Da mesma forma, para Peirce, novas relações desencadeiam crenças
que se estabelecerão, configurando uma nova que há de gerar uma
modificação quanto à conduta da vida.

Marília Aparecida Muylaert / Prof.ª Dr.ª Psicologia Clínica UNESP /


mmuylaert@uol.com.br

Um Corpo só sustenta os valores que vive: Espinosa e Nietzsche na


composição de conceitos-ferramentas para a contemporaneidade
“É sempre pela ação de um corpo que outro se movimenta ou repousa.
O corpo pode as relações que está. Toda coisa se esforça, enquanto está
em si, por perseverar no seu ser” (ESPINOSA, Ética, III, prop. 6). Se nenhuma
condição atual ao seu estado foi modificada ela permanecerá por tempo
ilimitado. Tal é a natureza atual da coisa, sua essência. Por seu lado, a
Vontade de Potência “não é em si, mas a relação com as outras; não é algo,
mas um agir sobre [...] é um efetivar-se” (MARTON, S. O eterno retorno do
mesmo – Tese cosmológica ou imperativo ético? Companhia das Letras. São
Paulo: 1992, p.210). A Genealogia da Moral trata das forças plurais e
divergentes que compõem o movimento vital apontando o Polemus como o
estado que se instaura num corpo quando está habitado por forças contrárias
à sua Natureza (ESPINOSA, Ética II, prop. 31), ou seja, afecções que
emblemam sentidos vitais antagônicos, valores que dão a dimensão logística
do corpo no mundo, variando com a vigência destes valores, expressão
inequívoca de seus agenciamentos. Esta relação de estrangeirismo, que
também é de jogo de forças, alicerça os movimentos do Corpo na gestação
de devires. A Vontade de Potência, esta desejabilidade de vida (NIETZSCHE,
F. Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, §24), é aliada
53
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

no acolhimento da alteridade, dependendo do tipo de força que, em


determinado momento e conjunto, combatem e obtém a primazia de um
modo. O Corpo-em-relação animado pela Vontade de Potência, dá o diagrama
de forças que convoca o corpo a sustentar os valores que vive. Bom ou Mau
nascem como efeito do encontro e não a priori da experiência. Esta
desejabilidade de vida, em quaisquer das formas que ela tome, é o amor fati,
enquanto o próprio caráter trágico do jogo das forças no acolhimento das
diferenças; alteridades em nós que investem de potência o desejo, desafiando,
seduzindo em direção a outras formulações vitais, estilísticas existenciais,
num agenciamento que adensa sua perspectiva intensiva de criação. “A arte
é o grande estimulante a viver [...] O que o artista trágico comunica de si?
Seu instinto mais básico visa a arte, ou não visaria antes ao sentido da arte,
à vida? [...] Não é precisamente o estado sem medo diante do temível e
problemático que ele mostra?” (Ibidem). O que importa à Vida não é reservar-
se, mas expandir-se, desdobra-se em múltiplas formas, comportar a potência
das forças que atravessam o corpo.
A vida talhada a partir da experiência - o que vale dizer do corpo no
mundo - tem a multiplicidade e variação como elemento: multiplicidade esta
com que o Devir atravessa os planos e é jogo de forças. O corpo, matéria
deste combate, produz, a cada vez, as expressões das batalhas travadas;
bem como, as configurações resultantes, efeitos destes encontros. De todo
modo, efeitos dos valores vigentes naquele corpo, em variação com o jogo
das Forças num território existencial. Deste modo, estes conceitos-ferramentas
assim trabalhados, são indicadores dos processos – como varreduras intensivas
– que o corpo vai pondo em funcionamento, uma vez atravessado pelas
forças atuais, que demandam expressão, como criação de realidades provisórias.
Não há possibilidade de haver uma pragmática existencial que não seja
sustentada pelo corpo que a constrói; não existe possibilidade de um corpo
arcar com o que não sustenta, cotidianamente, em seu trajeto pelo tempo.
Tal é o limite que se instaura a partir das relações. É a fronteira mais precisa
e intensa que o corpo ético pode viver. Desta perspectiva temos o corpo
produzido a cada encontro: sustentando os valores que vive, que desenham
estilísticas da existência, que são as políticas que cada corpo assume na
vivência destes valores.

Robson Costa Cordeiro / Prof. Dr. Filosofia UFPB /


robsonccordeiro@bol.com.br

Nietzsche e a Vontade de Poder como Arte


Nietzsche considera a arte como a grande força que possibilita a
percepção originária do que é vida, isto é, que possibilita perceber vida no
seu movimento de aparecimento, auto-exposição. No fragmento póstumo
17 [3], escrito entre maio e junho de 1888, ele vai compreender a arte

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

como a força possibilitadora, sedutora e estimulante de vida, como sendo a


única força contrária contra toda vontade de negação da vida, como a força
anticristã, antibudista, antiniilista por excelência. A arte é a força que concede
ao homem o poder não só de perceber, mas também de afirmar a existência
em todo o seu caráter terrível e abissal, ou seja, como sendo sem sentido,
como sendo nada. A arte, portanto, não é o objeto, a obra de arte que se
vê, mas o que possibilita o ver, o perceber. Ao ser tocado por esse poder da
arte, o homem sente-se elevado a um estado de afirmação do caráter trágico
da vida, exultando-se com ela por ela ser essencialmente dor, finitude, limite.
Isto, contudo, não significa dizer que toda arte seja uma afirmação da
existência, nem que somente os artistas possam afirmá-la, visto que arte,
segundo Nietzsche, não se refere somente ao seu sentido estrito, como
uma força vinculada às belas-artes ou àqueles que possuem o sentimento
artístico.
A arte exprime a vontade de aparência que permite ao homem a
afirmação da existência. O homem dotado da força artística não só percebe
que a verdade do real é a sua aparência, o seu caráter perspectivístico, mas
assume esta verdade para si, vivenciando-a com plenitude. Para Nietzsche,
esta vontade de aparência é a vontade primordial da existência, sobrepondo-
se, inclusive, à vontade de verdade, já que é seu fundamento e sua força
promotora. A vontade de aparência seria uma espécie de delírio, que teria o
poder de alçar o homem a condições elevadas de existência, que pudessem
se sobrepor à sua existência habitual e coisificada. Por isso, Nietzsche
apresenta a arte não como uma forma da vontade de poder entre outras,
mas como a sua forma mais elevada, a mais transparente e conhecida. A
arte, para ele, não diz respeito exclusivamente às belas artes, mas ao poder
de criar e produzir, que ocorre inclusive na natureza.
A arte, como a forma mais elevada da vontade de poder, é a força
que fundamenta a nova posição de valores. Representa o movimento contrário
frente à derrocada dos supremos valores, portanto, frente ao niilismo. Que
a arte seja a força fundamental da vida não significa outra coisa senão que
vida é, essencialmente, impulso para o poder. A arte se contrapõe ao niilismo
enquanto movimento de busca por um sentido para a vida fora da própria
vida. Isto significa buscar para a vida algo que se encontra para além do seu
movimento de criação, do seu poder de sempre poder querer, de poder
voltar a inserir-se no querer, na vontade. Este movimento de inserção é um
jogo, que Nietzsche chama de jogo de auto-superação, que consiste em um
ordenar a si mesmo a partir de uma obediência. Este ordenar é um destinar-
se a um poder ser, a uma possibilidade de vida a partir de uma “obediência”,
ou seja, a partir de uma “escuta” àquilo que propriamente se pode ser.
Buscar sair da vida significa buscar sair do jogo, procurar abandoná-lo como o
que é inútil, sem sentido, justamente por não possuir sentido algum fora da
própria atividade de jogar, que consiste em poder voltar a eternamente criar
a si mesmo. A arte se contrapõe ao niilismo por ser a grande força promotora

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

da vida que permite ao homem a percepção descomunal desta como sendo


essencialmente esse jogo inútil de criação e destruição de si mesma.

Sérgio Luís Persch / Prof. Dr. Filosofia UFPB / slpersch@yahoo.com.br

O interesse por Espinosa numa Genealogia da moral


É possível colocar em relação Espinosa e Nietzsche com base em
certas afinidades conceituais, como, por exemplo, entre o “conatus” e a
“vontade de potência”. Mas há também as referências explícitas de Nietzsche
a Espinosa. Estas, porém, mais parecem indicar divergências do que
aproximações entre os dois. Conforme sói acontecer quando fala de outros
autores, Nietzsche faz alusões breves, cortantes, sutilmente irônicas a
Espinosa. Faremos um exame das remissões feitas na Genealogia da moral.
Porém, ao invés de afinidades conceituas, procuraremos compreender o
papel dessas referências no discurso de Nietzsche, o efeito que elas produzem
no texto, o seu significado para o assunto em questão. Assim poderemos
notar que as referências, aparentemente aleatórias, indicam uma leitura
apaixonada da Ética, na qual por vezes Nietzsche se inspirava enquanto escrevia
a Genealogia da moral. No segundo discurso, ele se refere duas vezes a
Espinosa. Uma, no aforismo 6, para justificar o uso da expressão simpathia
malevolens. A outra no aforismo 15, é a definição de morsus conscientiae,
citada diretamente da Ética, parte III, proposição 18, escólios I e II. Pareceriam
referências demasiado breves para justificar uma relação em certa medida
sistemática entre a Genealogia da moral e a Ética. Até porque Nietzsche faz
de Espinosa uma caricatura, que leva o leitor a pensar numa dessas charadas
que dizem respeito antes ao autor do que à obra – Espinosa escrevendo
após o meio dia, excitado por uma lembrança qualquer... Parece, pois, que
lhe interessa o tipo do autor, mais do que a sua obra. No entanto, essas
poucas notas alusivas podem estar muito estreitamente ligadas ao problema
central do segundo discurso da Genealogia. Já no primeiro aforismo, Nietzsche
fala sobre a eficácia da memória para transformar o ser humano em um
animal promitente. O homem teve que se tornar calculável, regrado,
necessário. Exigência que se lhe impôs na medida em que foi obrigado a
viver em sociedade. A transformação que o homem sofre, na passagem do
modo vida no “estado natural” para o modo de vida em comunidade, Nietzsche
a compara com as exigências impostas ao animal que, tendo por condição
natural viver na água, é obrigado depois a sobreviver na terra firme. O homem
se tornou promitente e passou a ser devedor da sociedade, a credora. E
somente por um longo e sofisticado aparelho de punição ele efetivamente
conquista a responsabilidade e a autonomia, vindo a ser um indivíduo soberano
– cujo exemplo mais cabal é o homem moderno. Nesse sentido, é muito
interessante encontrar-se um filósofo que trate das afecções humanas
utilizando-se do cálculo e do modelo geométrico. De fato, uma das

56
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

peculiaridades que fazem a charada do espinosismo – para utilizar uma


expressão de Nietzsche – é o fato do autor da Ética tratar à maneira de um
geômetra a matéria prima da moral, oferecendo uma explicação racional das
afecções humanas, como fazem os físicos quando escrevem sobre os
fenômenos naturais. Os leitores não tardam em perceber que esse
procedimento metodológico termina por solapar os fundamentos da
moralidade tradicional. Portanto, as reações críticas imediatas apelam para a
censura. Mas uma questão mais duradoura é a seguinte: como pode que, do
indivíduo soberanamente sábio, resulte uma prática tão razoável, um modo
de vida tão correto, imune a qualquer censura moral e, ao mesmo tempo,
uma explicação dos afetos humanos tão desastrosa para as concepções morais
vigentes? Talvez a Genealogia da moral ofereça uma resposta a essa questão.
De qualquer forma, a presença de Espinosa no segundo discurso da Genealogia
é digna de interesse. Considerando-se que Nietzsche trata de um tema que
está no âmago da filosofia moderna – a questão do pacto, do contratualismo
–, podemos notar que as referências a Espinosa são muito privilegiadas,
quando, dentre todos aqueles que sobre isso escreveram no século XVII,
encontramos o nome dele, ao lado, inclusive, de um interessante personagem
moderno: Dom Quixote, no aforismo 6. Tratando-se, pois, da constituição
da memória (práticas mnemotécincas) que por fim proporcionou ao homem
o aprendizado perfeito da faculdade de calcular e do uso da razão – , é
provável que esse geômetra das idéias, qual foi Espinosa, seja para Nietzsche
um caso exemplar. É possível, também, que Nietzsche tenha vivido tardes
de leitura apaixonada da Ética, tal como ele supõe tê-las vivido o seu autor
enquanto a escrevia, Espinosa.

MESA TARDE 5 (5ª feira, dia 01/10, 16:40h-18:20h)


Mediador: Cristiano Novaes de Rezende (USP)

Maurício Rocha / Prof. Dr. Faculdade de Educação UERJ /


cawaipe@gmail.com

Deleuze, Spinoza: o Cristo dos filósofos


Entre Deleuze e Spinoza há uma relação de fidelidade e admiração
que é expressa, de modo explícito, desde a primeira referência, discreta
porém decisiva, em Nietzsche e a filosofia (com uma evocação da concepção
spinozana de corpo) publicado no inicio dos anos 60. No final daquela década,
Spinoza e o problema da expressão participaria do impulso de renovação das
interpretações do filósofo, em sincronia com as obras contemporâneas de
Gueroult, Matheron e Rousset. O próprio Deleuze diria depois que “foi sobre
Spinoza que trabalhei mais seriamente segundo as normas da história da
filosofia” (Diálogos). De fato, esta declaração solicita um exame e uma
avaliação do estilo interpretativo singular que caracteriza as monografias

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

produzidas pelo autor sobre vários pensadores, e sobre a exceção concedida


às “normas da história da filosofia”, no caso da obra sobre Spinoza. Sobretudo
pela heterodoxia notória dessa leitura, e pela inserção de elementos
extrínsecos à letra do filósofo (o tema da univocidade) no contexto daquela
obra.
É certo que o empreendimento historiográfico de Deleuze se mantém
distante das clivagens disciplinares, e ignora os dilemas, que ele parece julgar
artificiais, entre explicação e compreensão, comentário e interpretação.
Sabemos que “em suas monografias ele procede como um detetive sobre
os traços de um assassino desconhecido, como um escritor de ficção científica
que imagina um mundo que nunca lhe será dado a conhecer, desenhando
uma genealogia fictícia da filosofia na qual, em primeiro lugar, não existe
nenhum laço de filiação” (ANTONIOLLI, Manola, Deleuze et l’histoire de la
philosophie. Paris: Kimé, 1999, p.16) e que “a escolha dos autores não é
justificada pela filiação, o desenvolvimento de um mesmo problema, influências,
pertencimento a uma mesma época ou tendência filosófica: o pensamento
não é um história de família, ou famílias, nem de pai e filho, nem de irmãos.
Trata-se antes de personagens de um romance filosófico que seria aquele da
história da filosofia segundo Deleuze e que parece traçar os contornos de
uma espécie de universo paralelo do pensamento” (Ibidem). Para Deleuze,
uma filosofia é o desenvolvimento de um problema que nunca depende de
uma escolha voluntária de um filósofo, afetado por um constrangimento
externo, de fora. Assim, a história da filosofia só interessa a Deleuze se ela
determina as condições e implicações de um problema gerador, e os conceitos
de um filósofo só adquirem sentido a partir desse problema (no caso de
Spinoza, a expressão) – e o empreendimento historiográfico deverá coincidir
com esse problema. É bem esse o significado da fórmula “tomar pelo meio”,
“tentar compreender Spinoza pelo meio” – meio vivo irredutível a uma
arquitetura sistêmica. Pois “o meio de um filósofo é também isto que no seu
pensamento não constitui nem o seu objetivo final nem seu primeiro princípio,
mas que liga ambos, separando-os: pegar Spinoza pelo meio é renunciar a
acompanhar o seu caminho passo a passo, do momento onde começa o seu
discurso até onde ele termina, já que nenhum discurso filosófico nem começa
nem acaba verdadeiramente, mas é, o precedendo, apreendê-lo diretamente
neste ponto central de onde surgem os seus problemas” (MACHEREY, Pierre.
Avec Spinoza. Paris: PUF, 1982, p.240). Por isso não se trata, nas monografias
sobre os pensadores que o interessam, de descrever conteúdos doutrinais
de suas obras de modo objetivo e exaustivo, de um ponto de vista estático,
nem de analisar caminhos especulativos de algo já pensado. Trata-se
“dinamicamente, produzir, como se fosse a primeira vez, o movimento
intelectual pelo qual ela se tornou o que é. Em lugar de seguir Spinoza,
tomando o cuidado de repetir tudo o que ele já teria dito, é como se Deleuze
o precedesse, intervindo na história de um pensamento ao mesmo tempo
que o dá a conhecer, e não dando-o a conhecer senão para que da mesma

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

forma intervenha nele: já que Deleuze em Spinoza é também Spinoza em


Deleuze” (Ibidem).
Para além daquela obra, tão magistral quanto heterodoxa, as referências a
Spinoza irão se desdobrar ao longo dos anos 70 (como o recurso à concepção
spinozana de desejo no Anti-Edipo). Mas sofrendo uma inflexão, uma “brusca
dramatização” (ZOURABICHVILI, François. “Deleuze et Spinoza” in Spinoza
au XXeme siécle. Paris: PUF, 1993) – ligada à rejeição do estruturalismo –
contemporânea de uma meditação sobre o plano de imanência (presente
na segunda edição de Spinoza, filosofia prática e também em Mil Platôs).
Enfim, a incidência de referências culminará, já nos anos 90, em O que é a
filosofia?, obra na qual Spinoza aparece como herói filosófico, como o Cristo
dos filósofos.

Luís Rubira / Prof. Dr. Filosofia UFPel / lrubira@usp.br

O eterno retorno do mesmo: medida de valor, condição de


possibilidade da transvaloração de todos os valores
Embora Heidegger tenha reconhecido que “no século XIX faz-se
usual falar de valores e pensar em valores. Porém somente se fez
verdadeiramente popular graças à difusão das obras de Nietzsche” (Holzwege.
Frankfurt am Main Vittorio Klostermann, 1950), e Deleuze tenha afirmado
que “o projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir em filosofia os
conceitos de sentido e valor” (Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962),
nem eles, nem os comentadores de Nietzsche, desenvolveram o modo como
o próprio filósofo vai construindo sua reflexão sobre o valor, bem como o
emprego que se fazia da palavra valor até o século XIX. Afinal, é somente o
desenvolvimento de sua própria noção de valor que cria as condições para
que Nietzsche julgue encontrar no pensamento do eterno retorno a resposta
para um questionamento presente já aos dezoito anos em seus escritos
inéditos.
Uma hipótese lançada em O andarilho e sua sombra, e mais tarde a
tese na Genealogia da moral, é a de que a moral tem sua constituição na
mais antiga relação comercial entre credor e devedor, e que nela a balança e
os pesos acabaram por fascinar o homem antigo e penetrar em sua moralidade.
Hipótese plausível, é ela que servirá de fio condutor para pensarmos como a
representação de um instrumento de medida, que era inicialmente utilizado
na esfera comercial, acabou por surgir na esfera moral e jurídica. A investigação
permitirá compreender que o transporte da balança e dos pesos da esfera
comercial para a esfera moral já se encontrava no antigo Egito, e ganhará
desenvolvimento entre Judeus, Cristãos e muçulmanos. Será, portanto, a
partir do Antigo e do Novo testamento, bem como do Alcorão, que surgirá
a concepção de “pesagem das almas”, ou seja, de que a alma necessitaria
estar em equivalência com o “peso” da Verdade, ou seja, da palavra de Deus

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

– compreendida como o “peso maior”, a mais alta medida de valor que,


colocada no outro prato da balança, serviria para “pesar” a alma humana. De
outra parte, se no Antigo Testamento existem inúmeras passagens que
fazem referência às relações comerciais nas quais os pesos e a balança tornam-
se presentes, talvez isto venha a explicar por que só tardiamente a palavra
latina valere (valer) foi empregada no sentido de valore (valor) para refererir-
se especificamente aos casos em que se tratava de “preço” – o que conduzirá
Adam Smith, não por acaso, a delimitar o conceito de valor tão somente no
sentido de “preço”.
Nossa abordagem pretende fazer ver que, se na esfera comercial os
pesos servem para avaliar o “valor” de um determinado produto, na esfera
moral é também a avaliação que está em jogo. Neste sentido, o antigo uso
da palavra latina valere (valer) faz denotar que é uma avaliação que está em
andamento quando se diz que alguém ou alguma coisa tem força/potência/
coragem/valentia. Ora, em Nietzsche a formação de sua noção de valor estará
ligada à questão da avaliação, e é sobretudo após a leitura de Der Wert des
Lebens, de Dühring, que ele chegará à conclusão de que os juízos sobre o
valor da vida provêm de um “movimento do ânimo” (Gemüthsbewegung)
que pode expressar tanto ímpeto quanto cansaço de vida. A partir de então
crescerá seu interesse pela fisiologia e, em Humano demasiado humano, ele
passará a pensar que “todos os juízos sobre o valor da vida são formados
ilogicamente”, algo que o conduzirá, paralelamente, à questão da parcialidade
das avaliações. A noção de valor em Nietzsche, então, será formada por sua
análise em torno dos diferentes tipos de avaliação moral, da parcialidade das
avaliações, da fisiologia por trás dos juízos de valor, e tudo isto em paralelo a
reflexões em que trata da balança e dos pesos na esfera da moral. É por esta
razão que, a partir de Humano, demasiado humano, torna-se possível
compreender que “peso”, em seu pensamento, é sinônimo de valor.
O presente texto tem como objetivo, portanto, compreender por
que no ano de 1881, em Sils-Maria a 6.000 pés de altitude, Nietzsche divisou
na possibilidade do “ciclo absolutamente infinito e repetido de todas as coisas”
um “novo peso”, ou seja, uma nova medida para os valores - aquela que está
no centro de sua filosofia afirmativa e que irá fornecer a condição de
possibilidade para uma transvaloração de todos os valores.

Rochelle Cysne Frota D’Abreu / Doutoranda Filosofia UNICAMP /


cysne@ucb.br

Espinosa como inspiração para uma filosofia da ecologia


A célebre frase de Tomás de Aquino “in homine quodammodo sunt
omnia” é sintomática com relação ao explícito antropocentrismo herdeiro
da metafísica cristã e judaica de interpretação do mundo: o homem é o
centro da criação divina, e para seu desfrute existem as outras coisas

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

criadas por Deus. Tal postura segue-se também na filosofia moderna e


contemporânea. Esse antropocentrismo tem como conseqüência o que os
biólogos chamam de especicismo: a convicção de que os animais, vegetais,
minerais existem para a glória do homem e para o seu desfrute, ou seja,
esse antropocentrismo não resiste sem um implícito teleologismo a lhe dar
aporte teórico e sustentação.
A palavra ecologia, empregada pela primeira vez por Ernst Haeckel,
tem na sua formação as palavras oikos que significa morada, e logos que
comumente entende-se por discurso, estudo. Ela iniciou-se a partir do
estudo das relações que os organismos vivos estabeleciam entre si e o
meio ambiente, e hoje se consolida a partir de uma visão antropológica e
interdisciplinar que procura estudar as formações que grupos humanos
estabelecem entre si e os meios nos quais estão inseridos. Atualmente, o
tema banalizou-se, aproximando-se dele pessoas até então distantes da
questão ambiental, e sendo visto pela opinião pública de maneira
homogênea, ainda que existam diferentes movimentos como
ecofeministas, eco-socialistas, conservacionistas, eco capitalistas, ecologia
profunda, etc.
A filosofia de Espinosa, uma vez que considera a Natureza como um
ente absolutamente infinito que ultrapassa em muito o intelecto humano e
que não se define como pura exterioridade, oferece boa ontologia como
suporte dessa crítica ao antropocentrismo, ao teleologismo e como suporte
também dessa idéia de Natureza enquanto morada constitutiva do próprio
homem, necessários para os diferentes movimentos de ecologia. Isso não
significaria uma volta ao antropocentrismo no sentido de que caberia ao
homem a responsabilidade de preservação da biodiversidade do planeta,
porque a própria Natureza encontra seus mecanismos de auto regulação e
equilíbrio, pois ela é logicamente anterior ao homem e eterna. Ou seja, não
caberia ao homem a medida de higienizar a Natureza, ou reordená-la. Ora,
somente como história que pode haver para os homens qualquer coisa como
uma relação com a Natureza. Não há relação entre homem e natureza que
não seja, ela mesma, histórica. Desse modo, a história do consumo não é
antinatural. Caberia aos homens, dessa maneira, não salvar a Natureza, que
não precisa dele para ser salva. Mas buscar salvar a si mesmo, esquadrinhando
pela via da inteligência outros tipos de relação com o ambiente natural que
o cerca e que também o constitui, tornando possível para si sua própria
história.
O par naturante/naturada que Espinosa não inventou e poucas vezes
citou, não equivale ao par criador/criatura, pois esse segundo par não é
possível em uma filosofia que afirma a imanência divina e a eternidade da
Natureza. Naturante é o que é em si, ou seja, Deus enquanto causa livre.
Naturada é o que segue da necessidade da natureza de Deus, isto é, todos
os modos dos atributos de Deus, omnes attributorum modos. Tais expressões
aparecem na demonstração da proposição 31 da parte 1, somando-se 4

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

iindicações em toda a obra. Parece-nos pouco relevante, mas é uma distinção


fundamental. O que nos interessa ao alegarmos tal diferença reside no fato
de que o homem, fazendo parte da natureza naturada, não é capaz nem
de compreender e nem de prejudicar a ordem da Natureza, pois enquanto
Naturante, essa é absolutamente livre. A idéia de que o homem está
destruindo a natureza e colocando sua própria existência em risco pode ser
usado como o mais moderno tipo de fundamentalismo escatológico, fruto
da concepção criador/criatura e não do par naturante/naturado. No entanto,
é verdade que a sua relação com a Natureza pode estar impossibilitando sua
própria perpetuação enquanto espécie. E isso decorre do desejo de
objetivação da própria Natureza: o que nos é vedado pela filosofia espinosana.

MESA TARDE 6 (5ª feira, dia 01/10, 16:40h-18:20h)


Mediador: Vicente de Arruda Sampaio (Unicamp)

Eduardo Nasser / Mestrando Filosofia USP / enasser@uol.com.br

Nietzsche e os primeiros românticos


Já é bastante conhecida a aversão de Nietzsche pelo romantismo.
A exemplo de Goethe, Nietzsche julga o romantismo uma doença. Porém,
enquanto Goethe dirige suas diatribes a Novalis, um dos maiores expoentes
do chamado romantismo de Jena, Nietzsche refere suas críticas a um outro
“romantismo”, qual seja, aquele assentado nos ideais de Rousseau, e que
tem como seus representantes mais famosos Schopenhauer e Wagner,
seguidos por nomes como Victor Hugo e Balzac. Nesse ponto, é importante
que se diga que Nietzsche possui uma resposta bastante peculiar para a
pergunta “o que é romantismo?”. No seu entender, o romantismo se
caracteriza como uma solução nas “artes e conhecimento” para a dupla
necessidade de um determinado “tipo” de sofredor por “silêncio, quietude,
mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento, ou a embriaguez,
o entorpecimento, a convulsão, a loucura”. Não se trata, assim, do
movimento artístico e filosófico que teve nascimento no final do século
XVIII e no início do século XIX, mas antes de um fenômeno que possui um
sentido muito mais abrangente tanto historicamente quanto
conceitualmente. O romantismo corresponde àqueles que sofrem de
“empobrecimento de vida”, podendo ser localizado já em Epicuro e no
“cristão”, que são “essencialmente” românticos, e que alcança sua forma
mais acabada no “pessimismo romântico” da filosofia schopenhaueriana e da
música wagneriana. Portanto, Nietzsche não tinha como meta na sua
campanha contra o romantismo combater especificamente autores como
os irmãos Schlegel, Schleiermacher, Hölderlin e Novalis, e ele sequer os
considerava “românticos”, ao menos segundo a sua acepção crítica. Na
verdade, as menções que Nietzsche faz a esses autores são esporádicas.
62
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Em 1859, Nietzsche leu Novalis, e nessa mesma época ele chega a confessar
que o “pensamento filosófico” do romântico despertou seu interesse. Mas
salvo raras exceções, Nietzsche não volta a mencionar o nome de Novalis
em seus escritos ulteriores. Em outubro de 1861, no início do quarto ano
em Pforta, Nietzsche redige o ensaio Brief an meinen Freund, in dem ich
ihm meinen Lieblingsdichter zum Lesen empfehle. O “poeta favorito” do
título era Hölderlin. Todavia, assim como no caso de Novalis, não há nenhum
indício de que o interesse pelo poeta tenha persistido nos anos seguintes.
Em Ecce Homo, Nietzsche não esconde seu repúdio a Schleiermacher, um
dos nomes que compõe o cenário de pensadores alemães “fabricantes de
véus” (Schleiermacher). Entretanto, não se trata aqui do colaborador do
Athenäums, e tampouco do autor de Rede über die Religion, mas do tardio
Schleiermacher, o teólogo de Glaubenslehre. No que diz respeito a Friedrich
Schlegel, o maior entusiasta do movimento romântico, e visto por muitos
como o seu fundador, tudo leva a crer que Nietzsche nunca o leu, apesar
de August-Wilhelm Schelegel, o irmão de Friedrich, ter exercido uma
influência decisiva sobre os seus escritos de juventude acerca da tragédia.
Por conseguinte, a posição de Nietzsche em relação aos primeiros românticos
não é clara, razão pela qual muitos de seus comentadores se dividem. Para
alguns, existem notáveis similitudes entre Nietzsche e os românticos. Por
exemplo, Nietzsche compartilha com Friedrich Schlegel o ceticismo pós-
kantiano que capacita o surgimento de uma filosofia norteada pela ironia e
a crítica da verdade. Ademais, caberia citar outros pontos de interesse em
comum, como a proposta de retorno aos gregos, a nova concepção de
tragédia, a revelação dos impulsos dionisíaco e apolíneo, etc. Para outros,
no entanto, esse vínculo é marcado por inegáveis diferenças. Alguns desses
intérpretes se preocupam em mostrar a incompatibilidade entre a afirmação
nietzschiana do instante com o progresso histórico pregado pelos românticos.
Há também quem diga que a ironia nietzschiana é ambivalente, e que se
por um lado o deixa próximo de românticos como Schlegel, por outro lado
o distancia. Por fim, tendo em vista essas considerações, o nosso trabalho
será dividido em dois momentos. Primeiramente, procuraremos separar a
“imagem do romantismo” de Nietzsche dos primeiros românticos. Em seguida,
apresentaremos as discussões dos comentadores na esperança de avaliar a
proximidade entre alguns dos principais temas românticos e nietzschianos.
Com isso, esperamos poder situar o lugar dos primeiros românticos na filosofia
do autor de Zaratustra.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Pedro Duarte de Andrade / Doutorando Filosofia PUC-Rio /


p.d.andrade@gmail.com

Encontros alegres no absoluto: os primeiros românticos alemães


entre Spinoza e Nietzsche
“Mal consigo conceber como se possa ser poeta sem venerar
Spinoza, amá-lo e se tornar completamente um dos seus”, afirmou Friedrich
Schlegel (Conversa sobre a poesia. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 53).
Tendo em vista que a estética era o principal foco filosófico dos primeiros
românticos alemães, esta declaração evidencia a centralidade de Spinoza
para eles. Ele surgia como contrapartida à filosofia de Descartes que,
marcando a certeza da realidade na subjetividade, opunha a ela a objetividade
do mundo. Spinoza, pelo contrário, partia da definição do absoluto. Não foi
seu racionalismo que interessou os românticos, mas sim seu monismo, a
profunda intuição da univocidade do ser, mesmo que multifacetada. “Por
substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo
é concebido”, afirmava Spinoza. Esta é a definição do absoluto.
Em sua ontologia, Deus é a substância primordial, ente
absolutamente infinito. Este absoluto, bem como esta infinitude, surgiam,
para os românticos, como antípodas da visão dualista que caracterizava a
filosofia das Luzes. Tudo o que é, para Spinoza, é em Deus, inclusive nós.
Deus é a natureza. Esta afirmação sugeria, para os românticos, a possibilidade
não apenas de abandonar a visão antropomórfica de Deus, mas, sobretudo,
de superar a dualidade entre religião e ciência, já que Deus estaria na própria
natureza.
É que, para Spinoza, a natureza não é objeto. Ela possui dois
sentidos. É naturada e naturante. Ela se torna viva. Deleuze notou que a
natureza naturante, como causa, e a natureza naturada, como efeito, estão
atreladas por uma recíproca imanência: “por um lado, a causa permanece
em si mesma para produzir; por outro, o efeito ou o produto permanecem
na causa” (Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002, p. 94). Estamos
já sempre no absoluto, e não na dicotomia. Somos já na natureza, junto a
ela, nela.
“Este Deus-natureza come-nos, dá-nos à luz, fala conosco, educa-
nos, dorme a nosso lado, deixa que dele nos alimentemos, que o geremos
e que o demos à luz; abreviando, ele é a matéria infinita de nossa atividade,
e do nosso sofrer”, afirmou Novalis (“Seleção dos fragmentos e estudos”, in
A cristandade ou a Europa. Lisboa: Antígona, 2006, p. 75). já se apropriando
da filosofia de Spinoza. Ele submete a religião, assim, ao clima erótico e
sensual de seu pensamento, para o qual “só há um templo no mundo e
esse é o corpo humano”, pois “nada é mais sagrado do que essa alta
configuração”.
É só porque nós já somos em Deus, como queria Spinoza, que se
torna possível, como quer Novalis, encontrar sua revelação na própria carne,
64
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

pois ela, a carne, não está fora dele, Deus. Ela traz seu quinhão divino. “É
entre os homens que é preciso procurar Deus”, diz Novalis (Ibidem, p. 70),
completando que “nos acontecimentos humanos, nos pensamentos e nas
sensações humanos revela-se com a maior claridade o espírito celestial”. Não
seria necessária a tradicional transcendência para chegar a Deus. Ele se
ofereceria nas próprias coisas: na carne, nas sensações, no corpo, no
pensamento – na imanência da vida.
Partindo da ontologia de Spinoza, segundo a qual nós, seres finitos,
fazemos parte da substância infinita, os primeiros românticos alemães
conceberam que a criação artística só existe, então, na medida em que nela
age a mesma força divina que testemunhamos pela natureza naturante, que
cria a todo o tempo as coisas que constituem a natureza naturada. É a
própria natureza que é poesia original.
Segundo eles, só porque a natureza é, ela mesma, criadora, nós
mesmos podemos ser também, pois somos feitos dela e nela, logo, jaz em
nós a mesma força criadora, que, desse ponto de vista, é divina. Em outras
palavras, só escrevemos poemas, narramos romances, pintamos quadros,
construímos esculturas, compomos músicas, encenamos peças e, por fim,
somos capazes de fruir essa produção estética, porque fazemos parte do
todo divino da natureza que é, ele mesmo, criador. “Nós todos, humanos,
não temos nenhum outro objeto e nenhuma outra matéria de toda ação e
alegria, sempre e eternamente, que não o poema único da divindade, de
que somos também parte e flor – a terra”, afirmou Friedrich Schlegel (Conversa
sobre a poesia. São Paulo: Iluminuras, 1994, p. 30).
É, ainda, neste sentido que a apreciação da arte, ou da filosofia, ou
da vida, não poderia ser, para os primeiros românticos alemães, apenas passiva.
Ela deveria ser, para empregar sua palavra predileta, crítica. Para Friedrich
Schlegel, (O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997, p.23).
“crítico é um leitor que rumina” e que, “por isso, deveria ter mais de um
estômago”. Essa tarefa não é simples, pois vai contra a pressa da técnica
moderna que nos faz correr com as leituras, ao invés de remastigá-las ou
remoê-las. “É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se
preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido […],
para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um ‘homem moderno’:
ruminar”, escreveu Nietzsche. Ler assim, por fim, seria ter com as coisas
aquilo que Spinoza chamava de paixão alegre, ou seja, um bom encontro,
que nos faz passar de passivos a ativos.

Samon Noyama / Mestre Filosofia UFOP / snoyama@gmail.com

Quem é o Schiller de Nietzsche?


A pergunta que provoca este artigo surge fundamentalmente da
leitura dos textos de juventude de Nietzsche sobre a tragédia que
precederam sua primeira obra, O nascimento da Tragédia. Certamente as
preleções sobre a tragédia de Sófocles constituem a obra mais importante
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

para este estudo, no qual pretendemos investigar a leitura que Nietzsche


faz da concepção de tragédia de Schiller, na sua desenvoltura desde a
relação com o movimento Sturm und Drang até a concepção de A noiva
de Messina, uma de suas peças mais polêmicas e ousadas, que estreou em
Weimar a 19 de março de 1803. È importante entender essa adjetivação:
a ousadia de Schiller consiste na forma como ele utiliza o coro na tragédia,
e a sua conseqüente e inevitável polêmica provoca uma repercussão
controversa. Enquanto os românticos Schlegel, Hoffmann e Schelling se
posicionam criticamente quanto à forma como Schiller usa o coro,
Nietzsche é o único a defender e concordar com o êxito da execução de
A noiva de Messina.
Nas suas preleções sobre Sófocles, Nietzsche reconhece a
importância da escolha de Schiller em utilizar o coro em sua tragédia
resgatando o modelo antigo, tal como nas peças de Sófocles. A
justificativa de Schiller aparece logo no prefácio à peça, onde ele
argumenta que a função do coro é imprescindível para o objetivo e a
finalidade da tragédia, desde que admitamos e reafirmamos o compromisso
do teatro com a formação cultural da humanidade. Por isso, isto é, pela
necessidade de cumprir tal função, a tragédia deve resgatar o modelo
antigo grego, especialmente o caso de Sófocles, para que possa recuperar
seu prestígio, função e relevância para e na formação cultural da
humanidade [Bildung]. Concordando com a perspectiva do poeta e
dramaturgo, Nietzsche reproduz as principais idéias deste prefácio no §5,
intitulado “O coro”, onde chega a dizer que Schiller “reproduziu a
Antiguidade nem sentido extremo, de modo muito mais profundo do que
foi reconhecido na época pelos eruditos” (NIETZSCHE, F. Introdução à
tragédia de Sófocles. Tradução e notas Ernani Chaves. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006, p. 69.).
Para alcançar nosso objetivo, a saber, o de conseguir identificar a
visão que Nietzsche tem a respeito da filosofia e da concepção da tragédia
de Schiller, optamos por dois eixos metodológicos. O primeiro consiste na
análise dos ensaios: “37ª preleção sobre arte e literatura dramática”, de
August Schlegel, “Sobre o coro”, de Friedrich Schelling, e “Carta de um
monge a seu amigo na capital”, de E.T.A. Hoffmann; todos escritos como
crítica sobre o uso do coro em A noiva de Messina e publicados em anexo
na edição brasileira organizada por Márcio Suzuki. Este conjunto de ensaios
nos permitirá reunir as críticas apontadas contra a forma do coro utilizada
por Schiller na sua tragédia dos irmãos inimigos, e, esperamos,
compreender de que maneira o sentido dessas críticas acabaria por
aproximar Schiller e Nietzsche.
Aliás, essa aproximação se dá também em relação à principal
afirmação de Aristóteles em sua Poética, quando ele diz que toda arte é a
imitação de uma ação humana. Esse caráter necessariamente mimético da
arte reduziria seu potencial criador e sua força ideal, justamente o que
interessa tanto aos outros dois.
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

O segundo eixo da análise consiste na leitura do prefácio de


Schiller à peça, intitulado “Sobre o uso do coro na tragédia”, além do §7
de O nascimento da tragédia e das preleções sobre a tragédia de
Sófocles, ambos de Nietzsche. O intuito é procurar elementos que
justifiquem a aproximação entre os dois autores, através de uma leitura
atenta a respeito da importância central que o coro exerce na tragédia,
particularmente na peça em questão, e que argumentem contra a
recepção “ácida” dos românticos.
Uma das hipóteses que pretendemos averiguar nessa empreitada
é sobre a leitura particular que Nietzsche faz de A noiva de Messina, pelo
menos se comparado aos demais filósofos e poetas românticos. A
valorização da arte, sobretudo da tragédia, une Nietzsche e Schiller em
defesa de uma retomada das tragédias gregas, sobretudo por
reconhecer em Ésquilo e Sófocles o grande momento da arte grega.
Neles, a arte pode significar e trazer à tona o que há de mais humano na
existência e na vida, a grandiosidade do homem e a sua relação
necessária e irremediável com a natureza.

Victor Manuel Pineda Santoyo / Prof. Dr. Filosofia Universidade Michoacana


– México / vmpineda_1@hotmail.com

Intuição intelectual, religião e infinito: Spinoza e os românticos


A relação de Spinoza com os românticos se centra de una maneira
essencial na questão do infinito. Mas não podemos dizer que o movimento
romântico tenha continuado de uma maneira literal e fiel a intuição spinozana
do infinito. Por detrás dessa infidelidade se encontra um dos movimentos
culturais mais frutíferos donde se encontra a marca do pensamento do
filósofo de Amsterdam. É provável que muitas das posições assumidas pelos
filósofos românticos não seriam objeto de aprovação do mestre que lhes
despertou o tema do infinito; é provável que teria reagido como Kant frente
à obra de Fichte e sua pretensão de ser um continuador da filosofia crítica:
os românticos seguem em seu próprio caminho todas as influências que
receberam, incluindo aí quando pretendiam seguir seus mestres. A intuição
do infinito é para Spinoza uma chave para avançar com a idéia de Deus e os
atributos que o constituem; para os românticos, o infinito lhes revela um
sentido da experiência religiosa que tem um significado completamente
oposto ao de Spinoza: “o sentimento de ser criatura” é uma forma radical
de subjetivação da religião, como a que queriam experimentar, mas também
implica numa recaída em uma prática criticada pelo pensamento político de
Spinoza: a religião reduzida à obediência passa a ser uma aliada extrema das
tiranias. O sentimento de ser criatura é uma das formas de traduzir a tese
spinozana da relação entre uma substância infinitamente infinita e suas
afecções, a causa e o efeito, uma forma de explicitar o modus operandi de

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Deus enquanto causa rerum. Os românticos exploram na “menoridade” da


religião uma experiência radical da subjetividade, aí onde Spinoza pretendia
fundar um sentido libertário e ativo de um sujeito completamente afastado
da via humilitatis. No que se pode dizer que os românticos foram precisamente
passivos, no sentido da antiga virtude, que invocavam figuras como São
Paulo. Ao contrário: foram os filósofos que reivindicaram um sentido radical
da atividade.
A religião não é o único tema em que se abre a confluência entre
Spinoza e os românticos. Entre as manifestações do infinito também se
encontram as paixões, a arte e o próprio pensamento filosófico. A presente
comunicação pretende abordar de uma maneira crítica a presença da influência
de Spinoza em Goethe, Scheleiermacher, Schelling y Novalis, encarregados
todos eles de fazer nascer seu mito e sua entronização como filósofo de
primeira ordem. Uma das temáticas que sem dúvida terão que incluir é a do
conhecimento intuitivo, ai onde os filósofos românticos se encontravam mais
à vontade, porque lhes permitia tudo o que a filosofia crítica restringia: a
especulação.
O conhecimento intuitivo, o do terceiro gênero, se ocupa da essência
das coisas singulares em sua relação imediata com a idéia de Deus, uma forma de
plenitude intelectual que define a natureza da alma e que fornece o primeiro elo
perdido do sistema de concatenação que é o intelecto metodologicamente
purificado. Distingue-se do segundo gênero na medida em que este tem como
fundamento as noções comuns das coisas a partir das quais, por meio de uma
dedução mediata, deriva as propriedades das coisas. Trata-se de um conhecimento
expeditivo em relação a seu objeto, despojado de preâmbulos e digressões,
enquanto que o conhecimento racional implica um processo pelo qual as
proposições da razão vão trançando o curso do que se pode conhecer, a intuição
economiza, prospera sem obstáculos e se afirma em um espaço intelectual
privilegiado. Ainda que se diferenciem nesse ponto, o conhecimento racional
aponta para o conhecimento intuitivo. A ciência intuitiva, a máxima forma de
conhecimento que reconhece Spinoza, está submetida à potência do
pensamento e tem, ao mesmo tempo, a particularidade de ser um conhecimento
exato, patente e cujo conteúdo se rubrica ao cunho da certeza. Fundamentada
em uma potência de afirmação, expressiva da idéia do ser absolutamente infinito,
este saber consiste na afirmação pura e irrestrita do conhecimento, quer dizer,
é capaz de desdobrar-se de toda ordem de questões sem dar lugar a um êxtase
irracional: a ciência intuitiva é o entusiasmo liberado do delírio. Sobre esses eixos
temáticos, propomos fazer uma confrontação entre Spinoza e a leitura romântica
de suas obras. Os temas em questão são o infinito, a intuição intelectual e a
religião.

68
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 1 (2ª feira, dia 28/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Eduardo Nasser (USP)

Adriany Ferreira de Mendonça / Doutora Filosofia UERJ /


adrianyfm@globo.com

Filosofia e Arte: o antiplatonismo de Nietzsche nos cursos da


Universidade da Basiléia
O modo como Nietzsche constrói sua filosofia é um dos elementos
que fizeram com que seu nome fosse associado à imagem de um dos críticos
mais ferozes da tradição de pensamento metafísico que baliza a cultura
ocidental há mais de dois mil e quinhentos anos. Por trabalhar, ao mesmo
tempo, as porções afirmativa e negativa de seu pensamento, por não dissociar
as formulações em que investe contra os principais alicerces que teriam
sustentado a perspectiva metafísica de interpretação do mundo daquelas
outras em que aposta na valorização dos mesmos elementos que,
historicamente, esta perspectiva insistiu em desqualificar, sua crítica à tradição
de pensamento ocidental firmou-se talvez como o traço mais forte de sua
filosofia. Contudo, este traço não pode ser dissociado daquilo que o
pensamento nietzschiano traria de mais criativo, que seria o revés e o
complemento de suas formulações críticas, e que o colocaria em um lugar
diferenciado em relação a outros filósofos que se pretenderam críticos da
metafísica: a proposição da criação de um novo solo a partir do qual germinaria
o pensamento, para além dos valores morais que marcam a relação do homem
ocidental com a realidade. Neste sentido, a criação da chamada gaia ciência
nietzschiana – um tipo de pensamento afirmativo por excelência –, na medida
em que pressupõe uma aliança explícita com os discursos artísticos, não
estaria desvinculada de uma postura crítica através da qual a tradição de
pensamento metafísica é desmontada a partir de suas próprias origens
socrático-platônicas.
O objetivo desta comunicação é analisar de que modo Nietzsche opera
sua crítica à tradição de pensamento tomando como ponto de partida a
rejeição do próprio gesto de fundação do chamado discurso filosófico. A
hipótese central aqui é a de que ele adota principalmente a estratégia de
explicitar o estreito vínculo existente entre a filosofia metafísica e a arte, e
de que, pelo fato de este vínculo ser mais perceptível quando se enfoca o
próprio nascimento do discurso filosófico, Nietzsche elege prioritariamente
Sócrates e Platão como alvos, tomando-os como figuras emblemáticas a
partir das quais o estudo da relação entre filosofia e arte se delinearia. Ao
fazê-lo, Nietzsche abre espaço para que se possa interpretar a filosofia não
apenas como uma das modalidades do discurso artístico, mas ainda como um
tipo de arte que se volta contra a sua própria origem artística, que nega a
arte em seu interior. Discutiremos de que maneira Nietzsche procura evidenciar
a proximidade entre os discursos filosófico e artístico a partir dos comentários

69
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

críticos dirigidos sobretudo na direção de Platão. Serão analisados os cursos


sobre o filósofo grego oferecidos na Universidade da Basiléia na passagem de
1871 para 1872, de 1873 para 1874, e no verão de 1876, e editados
posteriormente com o título Introdução à leitura dos diálogos de Platão.
Nietzsche evidencia a tensão entre a arte e a filosofia que marca o momento
de consolidação do platonismo como discurso filosófico legítimo através da
caracterização de Platão como filósofo e artista. Além de trabalhar os aspectos
da construção do texto platônico que permitiriam tal caracterização,
analisaremos também a maneira como Nietzsche enfoca as complexas relações
estabelecidas entre Sócrates e Platão, e de que modo tais relações se refletem
na forma pela qual os diálogos platônicos são construídos. Neste sentido,
Platão é apresentado como um ativista político, a quem a criação do
personagem Sócrates interessaria diretamente. A corrupção do Platão artista
pelo mestre Sócrates e a criação do Sócrates platônico para atender aos
interesses políticos colocados em jogo pelo discípulo corrompido são os aspectos
centrais das argumentações desenvolvidas por Nietzsche neste momento
que nos interessam diretamente.

Ana Cláudia Gama Barreto / Doutoranda Filosofia UFRJ /


anakate@gmail.com

Variações do conceito de vida no pensamento de Nietzsche


Em 1871, em seu primeiro trabalho publicado, O Nascimento da
Tragédia a partir do espírito da música, Friedrich Nietzsche almejava dar a luz
a uma nova forma de conhecimento, a ‘filologia’. Esta nova forma de
conhecimento, misto de filologia, filosofia e arte, seria capaz de fornecer
uma resposta nova à pergunta sobre o valor da vida. Acreditamos que esta
questão torna-se cada vez mais relevante para o pensamento nietzschiano.
Assim, buscaremos mostrar alguns dos movimentos que conduziram à
formulação do conceito de vida tal qual este se apresenta no período crítico
do projeto nietzschiano, que ele intitula como o momento de transvaloração
de todos os valores. Também buscaremos entender as posições estratégicas
e bélicas que Nietzsche adota perante a história da filosofia – contra
determinados tipos de pensamento. Gostaríamos de mostrar, portanto, como
o conceito de vida é crucial para a crítica nietzschiana da verdade, e como
ele é construído em camadas, que se articulam de acordo com o adversário
que Nietzsche combate no momento. Nossa hipótese é de que não há um
conceito unívoco, fixo, para definir o que é a vida. Se por um lado tal opção
de Nietzsche implica numa dificuldade extra para o leitor, por outro evita a
fabricação de verdades que caracteriza a filosofia que ele pretende combater.
A crítica da verdade, compreendendo sob este termo a moral, a
metafísica e a razão, é uma parte fundamental do pensamento de Nietzsche.
Ao lado deste empreendimento crítico, vemos que se delineia uma outra
tarefa, que se dá como a elaboração de um elogio. A face afirmativa do
70
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

pensamento nietzschiano abarca o conceito de vida, que Nietzsche utiliza


para se contrapor à visão de mundo fundamentada na verdade. Para
Nietzsche, a vida será o critério último, que ultrapassa e se sobrepõe aos
critérios de verdade produzidos pela razão.
Em nosso trabalho partimos do pressuposto de que Nietzsche, na
época em que escreveu O Nascimento da Tragédia, estava sob a influência
da filosofia de Schopenhauer e do romantismo alemão. Neste momento, a
vida para ele era uma força bruta, a que poderíamos relacionar a ‘natureza’
dos românticos, ou a ‘vontade’ schopenhaueriana. Ela só se revela em toda
sua potência ao homem artista ou àqueles que estão em êxtase dionisíaco.
Num segundo momento, marcado pela elaboração de Humano, Demasiado
Humano, Nietzsche afasta-se do pensamento de Schopenhauer e das idéias
do romantismo. Este será o momento da grande suspeita, radicalização de
um projeto crítico já iniciado no Nascimento da Tragédia, onde tinha como
objeto o socratismo estético. Nietzsche vai suspeitar de toda criação humana
que se chame de verdade, inclusive as concepções sobre a vida, que aqui
não será mais equiparada à vontade schopenhaueriana, mas seguirá podendo
ser concebida como natureza.
O conceito de vida será também de máxima importância para a
elaboração da crítica nietzschiana mais radical, aquela que se mostra a partir
do Zaratustra, onde será relacionada ao conceito de vontade de potência,
novidade – ao lado da idéia do eterno retorno – para sua filosofia. O conceito
de vida ocupa, portanto, um lugar fundamental na obra de Nietzsche, por
estar ligado tanto ao aspecto crítico quanto ao afirmativo de seu
pensamento. O conceito de vida tanto funciona como peso para avaliação
do valor dos valores, quanto como martelo para a demolição de edifícios
conceituais estabelecidos. Tentaremos mostrar que serão estas as sucessivas
reelaborações que possibilitarão que Nietzsche conceba a vida como vontade
de potência, conceito que irá aparecer no Zaratustra, e do qual ele se
utilizará em sua tarefa crítica e em sua tarefa afirmadora, e que será de
crucial importância para o método genealógico criado por Nietzsche para
efetivar sua tarefa de transvaloração.

Filipi Oliveira / Mestrando Filosofia UERJ / filipigradim@hotmail.com

Vestígios de Spinoza em Nietzsche ou a embriaguez alegre do


artista
Entre Spinoza e Nietzsche corre um profundo e caudaloso rio que
os interliga: a Natureza e seus inúmeros modos de ser. Vivendo cada um em
margens e momentos distintos, ainda assim algo se estira de um ponto ao
outro da extensão sem se diluir, mantendo ali, firme, um elo de afinidade.
Mesmo filosofando através de línguas diferentes, fazendo uso de uma escrita
particular e sofrendo as influências respectivas ao seu meio, entre Spinoza e

71
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Nietzsche deveras passa um rio, um desterritório comum que cruza sem


cerimônias as fronteiras da história: o rio das afecções, o defluir pulsante e
criativo da Natureza e do vir-a-ser da matéria. Interessados em arrancar da
terra as sementes do idealismo plantadas por Descartes e de desmanchar
as pretensões da razão teórica por ele desenvolvida no século XVII, esses
dois filósofos propuseram uma alternativa. Atentos à trajetória da filosofia,
eles racharam com a metafísica clássica, introduzindo um novo método lógico,
deslocando o processo epistemológico e mudando a direção do pensar;
pondo abaixo às ilusões que vinham sendo cultivadas com o plantio indevido
de uma ciência distanciada do real, Spinoza e Nietzsche inauguram uma
filosofia da imanência, em lugar de uma metafísica que já dava sinais de
esgotamento. Assim, no lugar de um pensamento estreitado no domínio
da lógica que aspirava deduzir o absoluto através da formulação adequada
dos conceitos, eles formularam um novo pensar e agir humano. A genialidade
que lhes é atribuída vem justamente daí: ter intuído, sem pretensões
abstratas, a totalidade a partir da experimentação do real nos limites da
razão humana. Se é inviável apontar uma causa originária para o nascimento
dessa fonte, mais ainda é saber que destino ela segue. Seja como for, as
afecções parecem ser o problema central a ser, se não solucionado, mas
pelo menos posto pelas filosofias de Spinoza e Nietzsche. Como deslindar
para a consciência aquilo que perpassa cada ente natural e que nos é fechado
o acesso quando queremos nos utilizar de meios racionais? Rejeitando a
filosofia de gabinete, Spinoza e Nietzsche trouxeram à baila o conteúdo
que houvera sido desprezado das tematizações nas mesas de debate: o
problema da afetividade humana; recorrendo, com isso, à imaginação para
conceber a constelação de afetos provindos do encontro entre os corpos
na extensão. Tomando por base o plano subaquático e imanente sobre o
qual todos os entes naturais são conduzidos na duração, esta comunicação
vem destacar um ponto não explorado por Spinoza a partir do qual Nietzsche
soube fazer bom uso, alinhavando ética e estética de maneira brilhante; a
saber: as reverberações dos afetos no produzir e no intuir artísticos. Sendo
assim, reportamos à obra de Nietzsche A vontade de poder, fazendo alusão
à Ética, procurando sobressaltar a afinidade da concepção nietzschiana de
artista com a dinâmica dramática dos afetos apresentada por Spinoza. Este
descreve de modo claro e geométrico o procedimento que conduz à gênese
dos afetos, demonstrando-nos o agir humano frente à multiplicidade de
objetos que se dirigem ao abrigo dos sentimentos; o que lhe interessa é
registrar as diversas nuances dos encontros e da produção de imagens
decorrentes desse contato, que oscila entre a lividez e a violência. O grau
de intensidade das afecções determinará o estado do corpo afetado e a
produção imagética derivada daí. Ao dividir os afetos em primários e
secundários, Spinoza distinguiu a natureza de cada um; primários nasceriam
das impressões imediatas do corpo em relação ao meio ambiente: alegria e
tristeza seriam seus nomes; um para expressar o grau elevado de intensidade

72
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

e de qualidade da natureza de cada ente, isto é, da sua potência e inteligência


(alegria) e outro para expressar o declínio dos mesmos (tristeza). Nesse
embalo, provocariam o corpo a produzir imagens que imprimiriam uma forma
e um tipo específico como maneiras de traduzir o impacto e a resistência
para as adversidades e desproporções dos outros corpos. Amor e ódio seriam
os afetos, secundários, nascidos de uma modificação na consciência. Em
franca oposição ao pessimismo de Schopenhauer, Nietzsche assinala o trabalho
do artista não como melancólico asceticismo e sacrificada resignação, mas
como dionisismo, como sagrado dizer “sim” ao acaso, como afirmação e
volúpia de potência, no domínio de um afeto guerreiro e expansivo sobre
outro, amolecido e ressentido; saindo em defesa da alegria, ele aviva a
criação como catalisadora necessária para o salto do homem em direção à
plenitude Correlacionando o afeto triste com o alegre, Nietzsche reconhece
que no artista estes sentimentos se interpenetram na exaltação do seu
estado psicofisiológico. Encerrado no espírito de reprodução do rebanho, o
homem mirra de tristeza. Ao passo que, pleno de vontade de metamorfose,
ele se intensifica, atirando-se aos cumes do prazer/desprazer no seu delinear
autônomo sobre o plano da imanência. Sentimento e consciência de potência
emanam daí, formando a imagem alegre do poder criador.

Wander Andrade de Paula / Doutorando Filosofia UNICAMP /


wanderdepaula@gmail.com

O(s) Sócrates de Nietzsche e a crise da razão na modernidade


O nascimento da tragédia, obra inaugural do pensamento de
Nietzsche, traz à tona reflexões de um jovem professor de filologia clássica
da Universidade da Basiléia, na sua inquietude em relação à forma com que
a arte, a ciência e a filosofia grega vinham sendo tratadas ao longo da
história. Resultam dessa busca célebres formulações acerca do fenômeno
trágico antigo, tais como as noções de Apolo e Dionísio como seus deuses
formadores, como “poderes artísticos que, sem a mediação do artista
humano, irrompem da própria natureza”; bem como a hipótese hermenêutica
de acordo com a qual Sócrates, em contraposição aos deuses formadores
da tragédia grega antiga, teria subestimado a música, elemento fundamental
da arte grega, em prol de uma “nova divindade”, a razão. Sócrates, em
associação com Eurípides, desqualifica o elemento instintivo da tragédia
grega, invertendo a relação que o grego antigo mantinha com a arte: se,
na criação das obras de Ésquilo e Sófocles, o instinto se sobrepunha à
razão, em Eurípides esta se converte em meio de criação artística. O
socratismo é caracterizado, sob esse ponto de vista, como o fenômeno
“mais problemático da humanidade”. Tal contraposição, que poderia ser
sintetizada na fórmula “Dionísio versus Sócrates”, foi desde as primeiras
recepções da obra do jovem Nietzsche, a mais trabalhada pelos

73
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

comentadores, podendo-se acrescentar, ainda, uma terceira questão, a saber:


a crítica da cultura operística moderna, enquanto reflexo da cultura socrático-
otimista, e a defesa do projeto wagneriano de “obra de arte total”, como o
antídoto contra ela. Arte e ciência parecem ser, sob esse ponto de vista, os
dois pólos antagônicos que se colocam na base da primeira obra publicada
por Nietzsche. Apenas parecem, deve-se ressaltar, pois Nietzsche trata
também, em O Nascimento da Tragédia, da enigmática figura de um Sócrates
artístico (Künstlerischen Sokrates), musicante (musiktreibenden Sokrates):
“será que a arte não é até um correlativo necessário e um complemento da
ciência?”. Nietzsche desenvolve o mesmo tema a partir da passagem que vai
de 60d a 61c do diálogo Fédon, de Platão: a composição musical por Sócrates,
ao final de sua vida, tal como o pensador deseja ressaltar a partir do texto de
Platão, é como que uma espécie de remorso, de expiação diante de sua
“atividade missionária” em favor da razão. O próprio Eurípides, discípulo de
Sócrates, compôs, já no final de sua vida, a peça As bacantes, como uma
espécie de retratação, conforme afirma Nietzsche, diante do maior deus
grego, Dionísio. Esse tema é de profunda relevância na obra em questão,
uma vez que é a partir dele que Nietzsche conjectura os limites da ciência,
os limites da razão, notadamente pelo fato de que o próprio Sócrates, o
“mistagogo da ciência” teria reconhecido a insuficiência de seu método
racional-científico. O percurso socrático, que pode ser entendido em Nietzsche
como o percurso trágico da razão, visto que esta se conduz ao seu próprio
declínio, compele sempre à recriação da arte, segundo o autor. E o que isso
significa? Que “a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica
desta vida”, tal como afirma no prefácio tardio ao Nascimento da tragédia. O
problema posto pela personagem de Sócrates, em toda sua magnitude, nos
permite refletir sobre uma questão fundamental da modernidade, a saber, a
crise da razão como fundamento filosófico. Kant e Schopenhauer influenciaram
diretamente nas reflexões sobre tal questão, sobretudo pelo fato de terem
conquistado, com “enorme bravura e sabedoria” a “vitória mais difícil, a vitória
sobre o otimismo oculto na essência da lógica”, ou seja, eles apontaram, no
campo da filosofia, os limites da razão, da lógica – conforme ressalta Nietzsche.
O nosso objetivo não pode ser outro senão o de apontar como a reflexão
sobre Sócrates é fundamental para entender a crise da razão na modernidade,
tal como se desenvolve na primeira obra publicada de Nietzsche, em suas
múltiplas implicações. Para tanto, recorreremos às interpretações de Nietzsche
de um Sócrates como “paladino da ciência”, e de como este se converte em
Sócrates “musicante”, destacando a influência exercida, sobretudo por
Schopenhauer, no rebaixamento da razão e na valorização da música como a
mais importante dentre todas as artes.

74
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 2 (2ª feira, dia 28/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Daniel Santos (USP)

Hugusnardo de Carvalho Felix / Mestrando Filosofia UFRJ /


huguscarvalho@yahoo.com.br

O princípio de causalidade e suas implicações na Ética de Spinoza


Com o presente trabalho trataremos de analisar a formulação do
princípio de causalidade, utilizado por Spinoza sob a forma de axioma (Ética,
I axioma 4), na demonstração de Ética II 7. Tentaremos compreender o
sentido de tal princípio a partir de algumas concepções que o envolvem. Da
referida proposição decorre ao menos uma concepção que difere radicalmente
daquela sustentada pela doutrina cartesiana. A partir de sua enunciação,
corpo e mente devem ser entendidos como sendo uma só e mesma coisa
expressa de duas maneiras diversas, e não como atributos de uma substância
como sustenta Descartes. No entanto, diferentemente de como sugere a
demonstração, não nos parece evidente a maneira como este princípio
fundamenta a proposição. Sob quais exigências podemos depreender que o
princípio, que afirma que a “idéia de qualquer coisa causada depende do
conhecimento da causa da qual ela é o efeito” (Ética, II 7, dem.), pode
fundamentar uma tese tão forte quanto a da unicidade divina?
Sabemos que Descartes se vale deste mesmo princípio na Meditação
III para investigar sobre a causa da idéia de Deus que o sujeito pensante
possui. Naquele contexto o princípio de causalidade é formulado na
dependência do princípio de inteligibilidade, isto é, dada uma idéia deverá
haver na natureza uma causa, e que, a mesma permita explicar clara e
distintamente a idéia causada como efeito dando conta de sua essência.
Descartes é levado a recusar que uma realidade objetiva possa ser a causa
de uma idéia, pois, segundo ele, se assim fosse, seríamos remetidos a uma
série infinita de elementos que compõem a realidade objetiva, que não nos
possibilita, desta forma, alcançar a essência do objeto da idéia.
Aceitando a concepção de realidade objetiva em Descartes, somos
levados a uma nuance que impossibilitaria a compreensão das razões que
levam Spinoza a utilizar o mesmo princípio para fundamentar a concomitância
das afecções nos atributos pensamento e extensão. Na Ética, mesmo
utilizando termos tais como “essência formal” e “essência objetiva”, que sob
uma leitura descuidada poderiam ser remetidos diretamente aos termos de
Descartes, Spinoza se opõe claramente a Descartes quanto a concepção de
idéia. Conforme o escólio de Ética II 43, onde é estabelecido que a verdade
é critério de si mesma, Spinoza, fazendo referência explícita a definição de
idéia presente na Meditação III (§6), diz não partilhar da concepção daqueles
que julgam “que uma idéia seja algo mudo, como uma pintura numa tela”.
Assim, a partir da concepção de que uma idéia seja a afirmação de um modo
na realidade também seríamos obrigados a entender o aspecto

75
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

representacional de uma idéia distintamente daquele concebido por Descartes?


De que forma a relação, desempenhada pelo conteúdo representacional de
uma idéia com seu aspecto formal, garante que sendo uma idéia verdadeira
ela concordará com o ideado? Respostas possíveis a estas questões nos
parecem viáveis a partir da aceitação de que não se pode negar que as idéias
sejam diferentes entre si, pois Spinoza afirma que uma idéia contém mais
realidade que outra se o seu objeto contém mais realidade do que o objeto
da outra (Ética II 13 esc.).
Pautaremos nossa investigação atentando para relação que
desempenha o princípio de causalidade com a concepção de verdade como
concordância. Considerando que diferentemente de Descartes, que recusa
todas as idéias provindas dos sentidos por parecer interessado em conhecer
a verdade das coisas externas independentemente da natureza do corpo
que por elas é afetado, a Spinoza não parece ser uma questão relevante a
investigação acerca do estatuto dos objetos exteriores que afetam um sujeito,
isto é, não há a preocupação de estabelecer primeiramente se os objetos
exteriores são ou não tais como os percebemos. Compreendendo a grande
importância que o corpo exerce no sistema ético de Spinoza, tentaremos
mostrar que o mesmo se vê impossibilitado de negá-lo, mesmo diante da
promessa de que os valores intrínsecos a ele sejam restituídos posteriormente
pela razão.

João Edson Gonçalves Cabral / Mestrando Filosofia UFC /


jotaedsoncabral@hotmail.com.
Dalila Miranda Menezes / Graduanda Filosofia UEVA /
dalila.filosofia@hotmail.com.

A análise de Nietzsche acerca da metafísica da subjetividade


cartesiana
A pesquisa tem como proposta explicitar a crítica desenvolvida por
Nietzsche à metafísica da subjetividade em Descartes. Segundo Nietzsche, a
faculdade de pensar do homem, que o acaba qualificando como existência,
é uma redundância carregada de pressupostos metafísicos e resoluções
dogmáticas. Sendo assim, a substância pensante instituída por Descartes
não é mais que uma crença cega em se fazer do homem portador de uma
verdade universal. Pois, na analise de Nietzsche, a idéia de um tipo de
subjetividade que transcende as experiências do corpo como elemento
fundamental do conhecimento passa a ser desprovida de sentido, já que a
realidade é composta pelos fluxos dos acontecimentos, pelos devires,
remontando assim, à insuficiência da idéia de certeza existente na concepção
a respeito do cogito cartesiano. Rompendo assim, com a tradição do
pensamento moderno, Nietzsche problematiza a questão da genealogia do
sujeito em contraposição à teoria do sujeito como substância pensante,

76
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

pois, segundo Nietzsche o pensamento metafísico fez, no decorrer da história,


uma interpretação do conceito sujeito, de forma a afastá-lo das forças que o
envolve, como as paixões, vontades, desejos e sensações, para agir somente
segundo a orientação da razão. Na perspectiva de Nietzsche, as multiplicidades
de forças é que constituem a existência se caracterizando pela diversidade.
As forças fazem parte de uma forma de vida instintiva. No qual nós não
podemos afirmar mais que o homem é definido como queria Descartes, por
unidade, permanência ou absolutização da consciência. A teoria das forças
como constituidoras da existência no pensamento nietzscheano vai destruir
a noção cartesiana de um sujeito indiferente, afastado dos instintos que
constituem a existência. Assim sendo, a ruptura nietzschiana é notória com
a metafísica da subjetividade de Descartes, no momento em que Nietzsche
resgata o homem do idealismo, dando ao homem um sentido histórico,
buscando, assim, uma discussão sobre o sujeito, não em sua origem, mas em
sua genealogia. Para tanto, Nietzsche invalida os postulados da metafísica,
que quando quer descobrir a origem do sujeito, retorna ao princípio de
identidade implícita em sua constituição, ou seja, a metafísica tende a retomar
o homem em seu suposto começo absoluto, metafísico, como se o sujeito
fosse produto de uma idealidade auto-suficiente e incondicionada. Pretende-
se aqui evidenciar a crítica de Nietzsche à metafísica, demonstrando, que
desenvolvendo um método genealógico para refletir sobre a gênese dos
sentimentos morais, Nietzsche concebe o homem como um ser que cria
valores, questionando, neste viés, a possibilidade de um conhecimento
verdadeiro e universal como instaurava Descartes na instância do sujeito
pensante. Deste modo, o método genealógico é proposto na Genealogia da
Moral, onde Nietzsche começa a indagar os mecanismos que explicam a gênese
dos valores. A compreensão da gênese dos valores, em si mesma, será
suficiente para por em duvida a pretensa absolutez e indubitabilidade das
verdades instituídas pela metafísica. Nesta perspectiva, Nietzsche desconsidera
os postulados de verdade que a metafísica cartesiana institui a respeito do
homem-sujeito e ao mesmo tempo pressupõe a transvaloração de todos os
valores que impedem a vida edificada numa configuração que a impulsione
no desafio de se constituir fecunda, desafiadora e artisticamente afirmativa.

João Pereira da Silva Neto / Mestrando Filosofia UFC /


jpsfilosofia@yahoo.com.br

Perspectivismo, utilidade e verdade no pensamento de Nietzsche


O perspectivismo nietzschiano tem início na fase da maturidade,
denominada por alguns autores como fase da transvaloração de todos os
valores, que começa com a publicação do Ecce Homo e se estende até suas
últimas obras. Nietzsche considera que a consciência, por estar condicionada
ao lugar que ocupa no espaço e a certo momento no tempo, incapaz de
77
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

apreender a objetividade, assimila um mundo aparente determinado pelas


necessidades do sujeito. A realidade apresenta inúmeras perspectivas, todas
elas verdadeiras e inerentes à condição humana, pois a superação da
perspectiva sugeriria a possibilidade de considerar as coisas de um ponto de
vista absoluto inexistente.
Nietzsche define perspectivismo como a filosofia que reconhece que
o mundo, a realidade, oferece múltiplas interpretações ou perspectivas, todas
diferentes de individuo para individuo, sendo impossível atingir uma verdade
objetiva, consensual, dado que a psique de cada um interpreta o real e não
consegue compreender todas as outras perspectivas. O perspectivismo
nietzschiano diz respeito à idéia de que conhecimento não está sujeito a
interpretação metafísica de verdade como correspondência, uma vez que a
verdade é uma noção mais moral e sociolingüística do que epistemológica.
A metafísica desde Platão, em geral, pressupõe a essência das coisas
contida na unidade de sua validação: a veracidade. A busca pela verdade
absoluta inerente à objetividade e alheia a qualquer espécie de interpretação
ou pluralidade de olhar, é o foco das críticas que Nietzsche dispara contra a
metafísica. O filósofo aponta os fundamentos como utopias, a começar pela
verdade divina anunciada por Platão. Esta crítica será estendida ao cristianismo,
que segundo Nietzsche, seria “platonismo para as massas”.
A derrocada da metafísica, assim como de sua pretensão de verdade,
se daria com a morte de Deus, o fundamento último da verdade para a
metafísica, desde Platão, para quem a idéia divina de bem era o sol que
iluminava todas as verdades científicas. Ora, se Deus inexiste na filosofia
nietzschiana, toda busca por certezas ou a vontade de verdade própria da
ciência conduz a um auto-engano. A morte de Deus representa o fenômeno
através do qual, por excesso de cientificidade, ocorreria toda a morte de um
sistema de crenças e conhecimento, onde a ciência por suas contradições
internas se autodestruiria.
Do ataque perpretado por Nietzsche a conceitos metafísicos como
coisa em si, conhecimento absoluto e certeza imediata ocorre a redução da
pretensa realidade, a representações utilitárias como respostas adequadas
da imaginação às necessidades humanas (afinal, toda pretensa “verdade” é
oriunda de uma crença, um mal entendido, fortalecida pelo saber). Se há o
real, Nietzsche o concebe no domínio das paixões e dos desejos, ou seja,
nos afetos. Algo que fale de perto aos instintos e que orientam o pensamento
humano, nascedouro da vontade de poder, que sustenta os caminhos que
levam o autor ao perspectivismo.
Ao propor o perspectivismo como nossa verdadeira aproximação do
real, Nietzsche suspeita de todos os fundamentos em um mundo onde todo
conhecimento não preexiste, mas é constituído pelo sujeito em uma leitura
particular. Nietzsche identifica o surgimento de noções, como universalidade,
identidade, causalidade, não como apreensão de realidades últimas e leis
naturais, mas como formulações úteis para a sobrevivência humana, e nos
quais o critério último de validade é a utilidade, e não a verdade.
78
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Nietzsche, em sua Gaia Ciência, expõe o caráter utilitarista, por exemplo,


o da nossa pré-concepção de que os objetos do mundo refletem
“semelhanças objetivas”, de fato, nada no mundo reflete tais semelhanças.
Tudo o que há é absolutamente individual, particular até as últimas
conseqüências. Mais ainda, mesmo a noção de substância, fundamento da
lógica baseado em uma concepção imobilista do mundo, não passa de uma
deficiência, uma fraqueza reforçada pelo saber. Esta noção, defendida e
desenvolvida pelos eleatas é a base da teoria platônica das formas.
A teoria das formas, a saída platônica para assegurar o conhecimento,
ameaçado pelo fluxo heraclitiano de todas as coisas, se põe justamente em
meio a esta tensão entre imobilidade do conhecimento objetivo e mutabilidade
da realidade. Esta tensão é o cerne do embate metafísico expresso pelo
dualismo essência-aparência. As essências platônicas são o lastro da verdade
objetiva, são a perspectiva absoluta de onde se pode reduzir a multiplicidade
totalmente particularizada.
Nietzsche, porém, através de sua genealogia da verdade, limita o
conhecimento das essências aos predicados de sua aparência, dado que o
filósofo compreende que não possuímos nenhum órgão ou sentido especial
que nos demonstre o que possam ser essências. Esta interpretação aproxima
os conceitos de essência e aparência, paradoxalmente reduzindo o uno ao
múltiplo, ao reduzir os predicados das essências aos predicados das aparências,
descendo as essências para o terreno da efetividade.

Mariana Cecilia de Gainza / Doutoranda Filosofia USP /


marianagainza@gmail.com

Perspectivismo e verdade, entre Spinoza e Nietzsche


A multiplicidade dos modos de vida, assim como a diversidade dos
pontos de vista que se sustentam nessa multiplicidade de base, é uma
constatação filosófica que tem o papel de emendar as tendências dogmáticas
que tentam organizar a realidade e seu conhecimento sob o império de um
princípio único. Nesse sentido, o perspectivismo é um aliado natural do
realismo, que luta contra as pretensões reducionistas das filosofias que, de
maneira espontânea e acrítica, projetam um único interesse (identificado
com o próprio) para a totalidade. Mas como evitar que o perspectivismo, em
caso de esquecer que nem todas as posições nem todos os pontos de vista
podem reclamar uma idêntica legitimidade, recaia num relativismo? A questão
da verdade das perspectivas, então, não pode ser omitida. Nessa necessária
tensão entre perspectiva e verdade pode se reconstruir, segundo achamos,
um diálogo frutífero entre as filosofias de Spinoza e Nietzsche.
Gostaríamos de defender a idéia de que, nos dois casos, o que faz
de uma perspectiva singular determinada uma perspectiva verdadeira é o
fato de ser uma perspectiva crítica. Nesse caso, quais são as condições que

79
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

permitem afirmar que um pensamento é crítico? Por que a “dialética kantiana”


que conduz diretamente, segundo diz Nietzsche, ao “imperativo categórico
não chegaria a encarnar consistentemente uma crítica? Por que Spinoza não
aceitaria como seus antecessores a Platão, Aristóteles e Sócrates, e sim, a
Epicuro, Demócrito e Lucrecio? Podemos ler uma convergência chave na
forma em que os dois enxergam a história da filosofia, e escolhem seus
interlocutores filosóficos entre aqueles que souberam reconhecer, ao criticar
a tradição filosófica, a efetividade de certos preconceitos que pautam a
especulação pretensamente livre, mas servo, em verdade, de seus instintos;
e que souberam mostrar que esses pensamentos sempre querem, no fundo,
fazer com que toda existência exista conforme à própria imagem. A crítica
nietzschiana dos estóicos, por exemplo, tem ecos espinosanos altamente
sugestivos: “Vosso orgulho pretende impor à Natureza vossa moral e vosso
ideal [...], porque desejais que tudo quanto existe se reduza à vossa própria
imagem, fazendo uma prodigiosa e eterna apoteose e uma generalização do
estoicismo. Porém, apesar de todo vosso amor pela verdade, vos empenhas
em ver a Natureza como ela não é, em vê-la estóica, e finalmente, não
podeis vê-la de outro modo. Não sei que orgulho ilimitado vos inspira esta
insensata esperança: que porque sois vosso próprio tirano, a Natureza se
prestará à tirania, como se o estoicismo não fosse também parte da natureza”
(Além do Bem e do Mal, §9).
Para Espinosa, uma perspectiva pode afirmar-se como verdadeira
enquanto se enuncia da experiência de quem, sabendo-se dentro da rede
de relações imaginárias que constituem a base da vida social humana, realizou
o esforço de penetrá-la. Só de dentro dessa rede de relações, e sem
menosprezar as práticas que fazem corpo com essa disposição imediatamente
imaginária, um pensamento é capaz de construir as armas e os caminhos
para que seu ponto de vista possa afirmar-se, do próprio interior da experiência
vivida, como sendo seu saber. Desta sorte, a filosofia de Espinosa, sem fugir
da experiência comum que gera de maneira dominante a sujeição e a
impotência da maioria dos homens, interroga-a e elabora uma “lógica da
realidade” que, como causalidade imanente complexa que afirma a necessidade
da determinação, permite também uma indagação ética sobre as condições
materiais (afetivas e sociais, “subjetivas e objetivas”) da liberdade como uma
alternativa, difícil e rara, mas que existe como uma possibilidade real para as
sociedades humanas. A partir desta base é que gostaríamos de interrogar a
filosofia nietzschiana, para tentar enxergar confluências e eventuais
discrepâncias que possam enriquecer o debate em torno de questões que
permanecem sensíveis para a filosofia contemporânea.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 3 (2ª feira, dia 28/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Danilo Bilate (UFRJ)

Alexander Gonçalves / Mestrando Filosofia UNIOESTE /


alexandermano@hotmail.com

Linguagem e fisio-psicologia na filosofia de Nietzsche


Esta comunicação tem por objetivo geral apresentar algumas relações
entre filosofia e linguagem na obra de Friedrich Nietzsche e, em específico, o
processo de demolição empreendido pelo filósofo sobre os princípios
ontológicos e metafísicos a partir do qual teria se estruturado a linguagem
ocidental. Segundo o solitário de Sils-Maria, a filosofia, desde os eleatas a
Hegel, esteve sempre subsidiada por uma teoria da comunicação e da
linguagem que se desdobrou numa série de equívocos e ilusões que serviram
de fundamento ao pensamento ocidental durante milênios. Ciladas gramaticais
fizeram não poucos filósofos se embrenharem em especulações vazias até se
encontrarem estarrecidos diante de uma suposta verdade última sobre o
mundo e a existência. Conceitos como “ser”, “Deus”, “eu”, que tiveram sempre
lugar cativo na tradição metafísica passam a ser designados por Nietzsche
como mero vapor e ilusão. Também a contradição (Widerspruch), elemento
maldito e expurgado do discurso logocêntrico, recebe do filósofo pleno direito
à cidadania. Os textos nietzschianos não deixam dúvidas de que a questão
da linguagem aparece não só como uma importante temática a ser tratada,
mas, sobretudo, como condição necessária para a realização de sua filosofia,
portanto, um golpe crucial de seu martelo. Mas qual é o estatuto da linguagem
para Nietzsche? Concebendo a linguagem como mais um desdobramento da
vontade de potência o filósofo acaba por deslocá-la da imanência metafísica
aferida pela tradição atribuindo-lhe uma dimensão fisiológica. Em outras
palavras, com Nietzsche a linguagem abandona a ontologia metafísica para
ser entendida como apenas mais um dos acontecimentos do mundo orgânico:
ficções lógicas úteis à vida. Sendo assim, na contramão da tradição metafísica,
que sempre aferiu ao signo uma paternidade detentora de um “sentido
absoluto” e, portanto, refletindo algo maior e anterior (ser, Deus), Nietzsche
conceberá o signo como órfão e parricida. Com efeito, desprovido de qualquer
sentido absoluto, o signo pode apresentar-se como pura fonte originária e
incessante de sentidos. Com pertinência, Jacques Derrida afirma que com a
filosofia de Nietzsche inaugura-se uma profunda inversão de valores no âmbito
da linguagem. Ao tomar distância da metafísica, afirma Derrida, Nietzsche
contribui poderosamente para a libertar o significante de sua dependência
ou de sua derivação com referência ao logos e ao conceito conexo de verdade
ou de significado primeiro. Para o filósofo da desconstrução, Nietzsche opera
uma inédita demolição na onto-teologia metafísica ao conceber que a escritura,
primeiramente a sua, não está originariamente sujeita ao logos e à verdade.
Ao determinar a ausência de um significado transcendental, Nietzsche concebe

81
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

a linguagem como um vir-a-ser, um devir ativo e criador, como sendo o próprio


jogo do mundo na linguagem. Zaratustra afirma só gostar “do que cada um
escreveu com o seu sangue”, pois “verificarás que o sangue é espírito” (Assim
falou Zaratustra, “Do ler e escrever”). Por fim, a aplicação do conceito de
vontade de potência sobre a questão da linguagem revela o olhar demolidor
de Nietzsche sobre as bases e pressupostos metafísicos que asseguravam
até então o caráter de unidade e identidade ao discurso filosófico. Entender
o mundo, a totalidade, “como vontade de potência e nada mais” é, em
última instância, conceber o real a partir de um jogo de forças que se
encontram em constante luta pelo acréscimo de potência. É a partir deste
estado belicoso heraclitiano que Nietzsche entenderá a realidade, ou seja,
como um múltiplo de forças que se estruturam e se hierarquizam, que se
destroem e se conservam, numa constante condição de luta e ímpeto por
mais potência. Ora, conceber a linguagem como inerente a uma teoria de
desenvolvimento da vontade de potência é desprovê-la de todo seu aparato
qualitativo metafísico, bem como de toda sua segurança identitária para
enfim atirá-la ao Coliseu da contradição e da diferença. Talvez este seja o
primeiro golpe, todavia, o mais incisivo para a constituição de uma linguagem
nos domínios da fisio-psicologia nietzschiana.

Leonardo Augusto Catafesta / Mestrando Filosofia UNIOESTE /


leonardocatafesta@yahoo.com.br

A sabedoria trágica como instrumento indispensável para a


transposição do dionisíaco em pathos filosófico
Nietzsche considera ser o primeiro filósofo trágico devido sua
compreensão e aceitação irrestrita do caráter efêmero e contraditório do
mundo. Características transfiguradas através da figura do deus Dioniso. Assim,
para ser chamado de o primeiro filósofo trágico, o filósofo alemão afirma ser
o primeiro a adaptar radicalmente o dionisíaco num estatuto filosófico. Mas
qual a estratégia para tal adaptação? Como entender sua filosofia dionisíaca
sem cair nas malhas do dualismo metafísico, e, mais que isso, superá-lo? Em
seus últimos escritos, Nietzsche anuncia que antes dele não houve a completa
e decisiva transposição do dionisíaco em pathos filosófico devido a falta daquilo
que o pensador denomina de “sabedoria trágica”. Mas o que seria tal sabedoria
anunciada por Nietzsche, que a interpreta como ferramenta indispensável
para compreender o dionisíaco de maneira filosófica? Problemática que assume
fio condutor do presente estudo, pois, como relatado pelo filósofo, é
paradigmático para a compreensão deste empreendimento filosófico/trágico.
Partindo do pressuposto que o problema é anunciado por Nietzsche dentro
de Ecce Homo, no capítulo em que o autor trata de sua primeira obra, O
nascimento da tragédia (1872), entendemos que, para a compreensão da
sabedoria trágica, o ponto de partida deve ser o mesmo de Nietzsche: seu
primeiro livro publicado.
82
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

O nascimento da tragédia foi direcionado, conforme seu prefácio,


ao músico Richard Wagner. Nietzsche parte da concepção que a arte não
pode ser entendida como mero acessório para a vida, mas como a tarefa
suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida. Portanto, o único
reduto no qual o conjunto do aparecer pode adquirir sentido é a arte. É
somente nesse território que a vida torna-se possível e digna de ser vivida. A
partir destes pressupostos, Nietzsche lança-se a investigar as manifestações
artísticas entre os gregos antigos argumentando filosoficamente que elas
não desabrocham através de uma única fonte inspiradora, isto é, a arte não
nasce e se desenvolve apenas sob um impulso estético, mas sim sob dois,
que os helenos representaram através da figura do deus Apolo e do deus
Dioniso. Nota-se que os fortes laços com o Richard Wagner, e a constante
nomenclatura schopenhaueriana, fazem com que o pensamento de Nietzsche
permaneça vinculado a uma metafísica de artista.
A partir de Assim falou Zaratustra (1883), o pensamento de Nietzsche
adquire maturidade e maior autonomia. Neste terceiro período, o pensamento
acerca do trágico reaparece, ou seja, o dionisíaco ressurge com uma nova
carga semântica, não necessitando mais do apolíneo. As questões filosóficas
são mais aprofundas e decisões mais radicais são tomadas. Livre dos
pressupostos metafísicos, cristãos e científicos, Nietzsche concebe uma
postura trágica, desvinculada radicalmente de qualquer essência que a
justifique, não necessitando de impulsos estéticos, fundamentados
metafisicamente, para afirmar a vida. A vida, além de não precisar ser
justificada, não necessita ser conhecida, apenas vivida em sua completude,
em sua transitoriedade, visando sempre a sua superação.
Na concepção de Nietzsche, não há um ser dando condição ao
vir-a-ser. A transitoriedade é eterna. Mesmo que todos os entes encontram
inevitavelmente a finitude, a eternidade seria exatamente a constante
criação de novas formas, que surgem do interminável dilaceramento daquilo
que perde sua vitalidade. Assim, a sabedoria trágica, fundamental para a
transposição do dionisíaco em pathos filosófico é um pensamento que
compreende e afirma a finitude, sem nenhum resquício ascético. Assim, é
também um pensamento sobre o vir-a-ser, cuja luta é constante, sem início
e final, não almejando, em hipótese alguma, a paz. Aceita a própria luta
como responsável para qualquer instauração de mundo. É também um
pensamento que não cai em armadilhas metafísicas, pois não duplica o mundo,
ou seja, não postula uma unidade, um ser, uma essência em detrimento da
aparência.
A vida é compreendida como um rio de Heráclito, que entramos
apenas uma vez, sendo necessário jogar com cada momento, pois não há
nada fora de seu fluxo: a ação é tudo. Por isso que Nietzsche considera a
sabedoria trágica, com todas suas características, como condição para
transposição do dionisíaco num estatuto filosófico totalmente livre da
metafísica. Sem dúvida, não se trata de uma sabedoria de cunho racionalista,

83
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

seria antes uma postura, uma vivência, perante a esfera contraditória


que permeia a existência, visando sempre a sua afirmação para, por meio
do jogo contínuo entre criação e destruição que permeia a luta, atingir a
superação.

Marcelo de Mello Rangel / Doutorando História PUC-Rio /


mmellorangel@yahoo.com.br

Algumas considerações sobre a compaixão no Zaratustra de


Nietzsche: ou sobre os afetos
O presente estudo põe em evidência a noção de compaixão
(Mitleidigen) em Nietzsche, a partir de um capítulo do Assim Falou Zaratustra,
intitulado “Dos Compassivos”. Propomos que a noção de compaixão é um
elemento central para a compreensão da teoria dos afetos proposta pelo
filósofo alemão, teoria que aparece como condição de possibilidade para que
o homem conquiste o modo de ser adequado ao que vida oferece e necessita
em sua dimensão mais radical, a saber, criação incessante.
Pretendemos mostrar que a compaixão é um afeto próprio aos
espíritos fracos, e que esses espíritos não suportam o eterno retorno de
certa necessidade - a tarefa de refazer, de reconquistar sempre novamente.
Nietzsche evidencia o princípio de realidade que funda a vida, qual seja - a
dinâmica de configuração e de reconfiguração incessante, e, ao mesmo tempo,
faz aparecer a indisposição do homem em aceitar isso que vida é.
Então, buscamos assinalar certa ânsia de corrigir a vida denunciada
por Nietzsche, certo despudor em querer transformar a vida, justo no que
ela não pode ser, quero dizer, em lugar seguro, livre de todo e qualquer
sofrimento, o que diz o mesmo que trabalho. Ânsia responsável pela criação
de um peso terrível, o peso da infelicidade - o homem tornou-se “doente da
vida”, afirma o filósofo alemão. O que queremos dizer é que no esforço de
corrigir o que não pode ser corrigido, vale lembrar, a incessante necessidade
de reconfiguração de realidades, o homem acabou acumulando reveses e
sofrimentos, desviando-se da possibilidade de alegrar-se.
Pretendemos, assim, analisar certo embotamento - o esquecimento
radical da experiência da alegria. De tanto sofrer, o homem adotou o sofrimento
como afeto mobilizador, melhor dizendo, realizou a inversão do que é causa
e do que é efeito, segundo o filósofo alemão. Perceberemos certa denúncia
de Nietzsche, a de que o sofrimento não é o princípio ontológico que mobiliza
a vida, mas que, pelo contrário, é o resultado direto de uma insistente
cegueira, de um estridente não à vida, de um desvio que não permite ver a
existência a partir do que ela é mais profundamente, a saber, possibilidade e
necessidade de realizações incessantes. Realizações que oferecem alegrias,
bem como reveses.
A partir dessa inversão, dessa cegueira, aparecem afetos que
adoecem o homem, entre eles a resignação, a esperança da espera pelo

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

além-mundo, ou ainda a compaixão. A compaixão aparece, assim, como a


necessidade de se construir uma comunidade na qual todos vivam as dores
uns pelos outros, que com-padeçam juntos, protegendo-se lamuriosamente
da vida, uma vez que a estrutura do sofrimento é tomada como princípio de
realidade.
Temos a intenção de analisar a acusação de Nietzsche a toda história
do ocidente, a acusação de que os homens se tornaram “doentes da vida”,
apontando para certo desalinho, uma dessintonia radical. Assim, compaixão
acaba evidenciando-se como afeto mobilizador disso que os homens
adoentados entendem ser a vida, a saber, um vale de lágrimas. Todos são
convidados a chorar e a lamentar juntos, ou bem pelo que não podem viver,
ou bem pelo que poderiam ter vivido, compartilhando e acumulando dores e
reveses.
Pretendemos sublinhar a compaixão como um afeto, que embota o
princípio de realidade que move a vida, o poetar. Afeto que desvia o homem
de assumir aquilo que lhe é mais peculiar, o ter de realizar, a cada vez
novamente, sempre com sangue próprio. Aqui, perceberemos que o que
está em jogo é o eterno retorno da necessidade de reconfigurar novas
constelações de sentido, sempre já em meio a tramas relacionais propríssimas.
Sangue próprio remete-nos à solitária e intransferível tarefa que é o viver, o
criar. Cada homem é um modo diferenciado, encontra-se numa malha relacional
singular, malha que sempre está, a cada vez novamente, exposta ao
movimento deveniente, que exige criação incessante, o que podemos chamar
de vontade de poder.
Tomaremos essa solidão própria à criação, como o traço que funda a
possibilidade de alegrar-se. Nesse momento, não há o que dividir, nem
sofrimentos nem alegrias, justo porque tudo é possibilidade a ser realizada, a
ser configurada. Pretendemos evidenciar que cada homem está fadado a
perder, sempre novamente, referências e significações que conquistara, bem
como convidado a reconfigurar sentidos, no interior de uma malha relacional
que lhe é própria. Nesse instante, tudo é deserto, ou seja, tudo é solidão
perfeita, não cabendo com-paixão. A compaixão desvia os sentidos do homem
para isso que seu mundo requisita, fazendo-o refugiar-se num mundo alheio
ao seu, opaco, insignificante para ele, num mundo sem sal, aí o homem
definha. O homem desvia-se do único instante no qual é possível criar e
alegrar-se – o seu próprio, trocando o extraordinário de uma nova dança,
pelo amparar de um leito cômodo.

Tiago Barros / Doutorando Filosofia UERJ / tiagomsbarros@yahoo.com.br

Solidão: pátria de Zaratustra


Nietzsche considerava Assim falou Zaratustra como um de seus
principais livros, tendo chegado a declarar que ele ocupa um lugar à parte

85
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

dentre as suas obras. Reiteradamente enfatizou a singularidade e a “elevação”


que o distinguem e distanciam de todo o restante da humanidade. Um dos
principais reflexos destas características é a radical solidão deste livro e de
seu protagonista. Condições que foram intensamente tematizadas pelo
próprio autor que por diversas vezes ressaltou a “solidão anil” desta obra que
chegou a classificar como um “ditirambo à solidão”.
A solidão é fundamental para o processo de auto-formação do
protagonista que é descrito ao longo do livro. A trajetória de Zaratustra
principia com uma vivência radical desta experiência quando, aos 30 anos de
idade, após deixar sua terra natal, vai para uma caverna no alto de uma
montanha em que goza durante dez anos de “seu próprio espírito e solidão,
sem deles se cansar”. Os principais ensinamentos apreendidos por ele ao
longo de seu percurso posterior a este isolamento inicial também surgem
precisamente durante ou após intensas experiências de solidão, muitas das
quais vivenciadas durante momentos de retorno a esta mesma caverna.
A trajetória de Zaratustra é marcada pela solidão, mas também se
caracteriza por uma incessante busca por companheiros, discípulos e amigos.
Ao fim da Primeira Parte da obra ele surpreende ao se separar dos poucos
discípulos que havia angariado com bastante dificuldade e depois de muito
empenho. Despede-se e afasta-se, sobretudo, para que eles também possam
aprender a usufruir os benefícios da solidão e para que o processo de
aprendizado dos discípulos se desenvolva de modo autônomo e independente
da tutela de Zaratustra. Devido a esta postura, a relação entre eles oscila
entre intensos momentos de aproximação e afastamento ao longo do livro.
Contudo, o sentido da “solidão” não é unívoco e Zaratustra é
cuidadoso ao caracterizar o sentido específico em que a preza e vivencia. Por
exemplo, deixa claro que sua solidão não é semelhante à do personagem
eremita descrito no Prólogo da obra. Zaratustra não se isola por incapacidade
para o convívio humano tampouco por odiar os homens. Sua solidão pode
ser aproximada a do andarilho (Wanderer) caracterizado no primeiro discurso
da Quarta Parte. Ela é freqüente e necessária, mas não permanente ou
imposta. Trata-se de um desafio, de uma conquista, de um aprendizado e
não de uma tentativa de fuga por inadaptação. Neste sentido que no discurso
“O regresso” estabelece uma fundamental distinção entre o “abandono”
(Verlassenheit) e a “solidão” (Einsamkeit). Mesmo discurso em que também
se refere à solidão como sua Heimat (“pátria”, “lar”, “terra natal”, “casa”),
dada a importância da Einsamkeit em sua vida.
Em seu livro subseqüente, Além do bem e do mal, Nietzsche aponta
a solidão como uma das quatro principais virtudes nobres (ao lado da coragem,
da perspicácia e da simpatia). Também em sua autobiografia (Ecce homo),
declara que considera “sofrer de solidão” como uma das principais “objeções
a um homem” e que sempre sofreu justamente do oposto disso, “da
multidão”. A solidão de Zaratustra, assim como a de Nietzsche, parece ser
uma conseqüência natural da extemporaneidade dos pensamentos expressos

86
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

por eles como, por exemplo, a hipótese do eterno retorno de todas as


coisas.
De acordo com Nietzsche, a concepção fundamental do Zaratustra
é o pensamento do eterno retorno, “a mais elevada forma de afirmação que
se pode em absoluto alcançar”. Idéia apresentada inicialmente em agosto de
1881 em uma página com o significativo subescrito “Seis mil pés acima do
homem e do tempo”. Cabe assinalar que uma das principais passagens de
Assim falou Zaratustra em que o eterno retorno é mencionado de modo
explícito é na enigmática visão “do ser mais solitário” (citada nos discursos
“Da visão e do enigma” e “O convalescente”).
O principal objetivo da comunicação é o de analisar a importância da
experiência da solidão na filosofia de Nietzsche com particular ênfase para
sua determinante presença na trajetória do personagem Zaratustra.

MESA MANHÃ 4 (2ª feira, dia 28/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Valéria Loturco da Silva (USP)

Eduardo André Rodrigues de Lima / Mestrando Filosofia UFC /


eduardo_rlima@hotmail.com

Nietzsche e Pós-Modernidade: a questão do niilismo


A base da comunicação primeiramente será lançar algumas reflexões
sobre o trabalho de Nietzsche enquanto um fundamental precursor para as
crises e anátemas de nossa Filosofia contemporânea, tomando ainda tais
crises como significativas de um amplo niilismo. E, em um segundo momento,
debater como o próprio Nietzsche pensou sobre o niilismo, objetivando
possíveis correlações deste estudo com nossa atualidade. Nesse sentido,
parece indubitável que a produção nietzschiana é tomada por muitos filósofos
importantes, como, p. ex., Habermas, Heidegger e Vattimo, enquanto um
magno ponto de ruptura da modernidade, assim como, um fértil campo de
trabalho para a criação de modelos de inteligibilidade alternativos. Deste
modo, se Nietzsche combateu Sócrates como um magno ponto de ruptura
teórica para a história da Filosofia é notável que suas próprias idéias possam
legitimamente ser observadas como responsáveis por uma grande
ressignificação teórica engendrada em um possível fin de siècle moderno.
Com efeito, atualmente, a imensa quantidade de obras nas mais variadas
áreas e disciplinas do conhecimento, que trazem em seu título o termo Pós-
Modernidade instigam uma investigação conceitual sobre a crise das categorias
de racionalidade modernas. Não obstante, não existe consenso se estamos
em uma pós-modernidade como também não há acordo sobre como se lidar
com a questão em termos filosóficos. Nota-se que, no enfrentamento desta
atual crise de inteligibilidade, existe uma irredutível pluralidade de possibilidades

87
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

de labores filosóficos cercada por distintas teorias de verdade. Entretanto,


em meio desta real multiplicidade, legitimamente, nosso tempo pode ser
entrevisto sob a singular égide de um ceticismo/niilismo realmente global. E
tal signo, por sua vez, pode significar a destituição das antigas teleologias e
as fortes pretensões ontológicas das imponentes filosofias modernas – um
ponto singularmente presente em meio de vertentes inexoravelmente plurais.
Com isso, se pode sustentar que Nietzsche é uma interessante via de trabalho
de mão dupla, pois debater o supracitado niilismo em nossa atualidade, em
correlação com as idéias deste precursor, implica necessariamente que se
deve compreender como o niilismo se apresentou em sua obra. E, observando
tal imbricamento, se percebe que em Nietzsche, há uma sutil duplicidade no
trato com o niilismo, pois, no concernente às categorias de racionalidade de
seu tempo, ele figura um demolidor de ídolos filosóficos. No entanto, se tal
pessimismo/ceticismo significa a negação da natureza, da vida e a criação de
metafísicas consoladoras, tal pessimismo se torna motivo para um alegre
fortalecimento, para uma santa afirmação, para novas tábuas de valor positivas,
jamais resignadas ou ressentidas. Com efeito, estudar o niilismo em Nietzsche
implica no desvelamento de um modelo alternativo de inteligibilidade para
além das epistemologias modernas – um conhecimento dionisíaco/ trágico –
que aceite e afirme positivamente o estético, o agônico, o inaudito, a
diferença, a plenitude das forças e o devir, mas jamais apenas um ceticismo
resignado. Somente munido desta compreensão faria sentido Nietzsche se
entender enquanto niilista – como chegou a fazer – e ainda se afirmar
positivamente. E, com base na súmula dos dois momentos argumentativos
supracitados, é plausível concluir que: se, por um lado, as críticas as
metanarrativas, assim como, seus ataques as vetustas categorias da razão
de sua época podem ser observados como uma característica pós-moderna.
Por outro, ele possivelmente jamais aceitaria discursos filosóficos de nossa
atualidade que implicassem em pura negação resignada da vida ou em um
amplo ceticismo ressentido. Portanto, Nietzsche inexoravelmente produziu
em pleno diálogo com a Filosofia e com todas as concepções de seu tempo.
E, não obstante, obteve o direito, sob muitos aspectos, de ser chamado de
nosso contemporâneo, ganhando a possibilidade de não estar apenas situado
como história da Filosofia, mas como um pensador pertencente a nossa suposta
pós-modernidade, um filósofo legitimamente nascido póstumo.

Eladio C. P. Craia / Prof. Dr. Filosofia PUCPR / eladiocraia@hotmail.com

A Univocidade do Ser como elemento central para uma ontologia


da Diferença: Gilles Deleuze leitor de Spinoza e Nietzsche
O presente trabalho analisa a importância conceitual do problema da
Univocidade do Ser em Spinoza e Nietzsche, segundo a leitura proposta por
Gilles Deleuze, para a elaboração duma ontologia da Diferença. O texto parte

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

da exposição da cartografia da Univocidade do Ser segundo esta é traçada


por Deleuze, recortando e considerando seus principais operadores conceituais.
Neste sentido, três são os filósofos que Deleuze invoca a fim de estabelecer
este desenvolvimento da univocidade; são eles, em ordem cronológica: Duns
Scot, Spinoza e, finalmente, Nietzsche. A primeira grande voz da univocidade,
Duns Scot, anuncia o advento, já a partir do interior do próprio cristianismo,
da Univocidade do Ser. A reflexão de Duns Scot propõe que a Filosofia
interrogue não mais ao ser enquanto Supremo Ser, infinito e universal, e
nem tampouco o particular, os entes individuais. O pensamento ontológico
deve ser aplicado ao Ser entendido como Ser enquanto puro Ser, na medida
em que este é indiferente, tanto ao universal quanto ao particular, tanto ao
geral quanto ao individual, neutro e impassível. Assim, com Duns Scot o ser
unívoco é pensado do modo mais refinado, mas também mais neutro. No
segundo momento da univocidade, exposto na obra de Spinoza, o Ser unívoco
já não é pensado como neutro, senão que se faz objeto de afirmação pura,
concebido, agora, como substância infinita. Isto, segundo Deleuze, implica
um avanço em relação ao Doutor Sutil, sem que se perca de vista ou deixe
de lado as reflexões deste. Spinoza insiste na oposição entre distinções reais
e numéricas. As primeiras correspondem à categoria formal, as segundas, à
moda do scotismo. De acordo com esta correlação, uma distinção real jamais
é numérica, senão qualitativa; opera a nível da essência e não implica uma
distinção de quantitativa. As distinções numéricas, inversamente, nunca são
reais, mas intensivas e individuais, e expressam a diferença de atributos de
acordo com os graus de intensidade com os quais foram atualizados. Segue-
se disto que os atributos possuem um modo de se atualizar; e esse modo é,
justamente, o grau intensivo de que são capazes. Os atributos se expressam,
eles próprios, através de modos intensivos e individualizantes, ao mesmo
tempo em que, sendo atributos de uma mesma substância, a expressam de
um modo unívoco. Spinoza compõe, na relação substância-atributo-modo, a
dinâmica da expressão do ser, sem limitá-la, de maneira alguma, a uma forma
de “propriedade” inexpressiva como eminência da substância com relação
aos atributos. A indiferença que ainda existia em Duns Scot é superada, no
esquema ontológico espinosano, rumo a uma afirmação real e unívoca do
Ser. Toda hierarquia é eliminada, posto que são os atributos os que expressam
a substância através de um grau de potência atualizada que determina seus
modos de individuação. O ser é, na medida em que se expressa, mas somente
pode se expressar por meio dos atributos. Por conseguinte, o Ser é imanente
com seus modos, sendo, estes, diferentes entre si. Por fim, o terceiro
momento implica o passo fundamental para a concreção da univocidade.
Com Spinoza existia ainda uma indiferença entre, de um lado, as puras
diferenças (os atributos e modos) e, de outro, o ser (a substância), já que
este não se dizia plenamente daqueles. Para Deleuze, no eterno retorno
nietzscheano a univocidade se realiza no final, pois com ele a identidade se
torna segunda em relação ao princípio da diferença. O eterno retorno, -

89
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

segundo o entende Deleuze -, encontre-se mobilizado por a dinâmica da


multiplicidade das forças e, portanto, é o lugar apropriado para o
desenvolvimento da univocidade. Isto não poderia ser de outro modo, pois,
para ser completada, a univocidade requer tanto de uma imanência como
de um pensamento da Diferença primeira, o que somente pode ser produzido
plenamente no eterno retorno. O que o espírito nietzscheano, tal como
Deleuze o concebe, consegue com a postulação do eterno retorno é colocar
em movimento a univocidade do ser. Aquilo que é o Mesmo de todo retornar
é o próprio retornar, sendo este o ser de todos os devires. Num mundo
onde todas as atribuições e predicações fixas foram suprimidas, no qual todas
as identidades foram burladas, podemos encontrar somente uma coisa que
“é” sempre a mesma: o diferenciar-se interminável dos entes entre si e em
relação a eles próprios, de acordo com a ordem dos fluxos de intensidade. O
fato de que sempre sejam diferenças se diferenciando: esse é o ser unívoco
como diferença primeira. O unívoco, o comum de tudo o que é, é que tudo
é diferença, sendo, entretanto esta, como tal, ela mesma inatribuível e
inobjetivável. Diferença sem objeto e sem grau determinável, diferença que
é o ser de tudo o que é e que se produz, a partir do eterno retorno, já não
do mesmo, mas do diferente.

Ivan Maia de Mello / Doutorando Filosofia da Educação UFBA /


filosofenix@yahoo.com.br

Dança e estética da existência


Pretende-se apresentar uma perspectiva de educação filosófica
tomando a vivência da dança como experiência estética de criação artística
que remete à criação da vida como obra de arte, que é o princípio da estética
da existência gerado a partir do pensamento de Nietzsche e desenvolvido
contemporaneamente por Foucault, Deleuze e Guattari.
O corpo é pensado filosoficamente como o ser próprio e considerado
enquanto corpo criador que precisa ser preparado para a dança da vida. A
singularidade desse processo de subjetivação no qual ocorre a apropriação
de si mesmo é pensada em seu caráter estético tomando a dança como
metáfora do devir, a partir do pensamento de Nietzsche expresso em Assim
falou Zaratustra.
Zaratustra apresenta uma concepção de auto-educação configurada
pelo devir pindárico no qual alguém torna-se o que é e faz da dança o
símbolo de seu pensamento trágico expresso através da vontade de potência
que afirma o eterno retorno. A vida, interpretada como algo em constante
mutação, encontra na dança sua metáfora plena de fluência imprevisível,
leveza incorporada, graça transfiguradora e criatividade lúdica. Em seu vir a
ser, a vida se mostra numa dinâmica de impulsos que tomam corpo na vivência
do acontecimento, de modo que se pode pensá-la como uma improvisação

90
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

em dança que, à medida que desenvolve um domínio de suas possibilidades,


aproxima-se da plenitude da realização criadora.
Zaratustra, personagem de Nietzsche em sua obra Assim falou
Zaratustra, dizia que o devir queria que ele o ensinasse a falar. A dança é,
assim, o modo de Nietzsche simbolizar o devir. Dançar para além de si é uma
proposta que surge em sintonia com o que Zaratustra considera como
característica essencial da existência humana enquanto corpo criador, o qual
ele trata como o ser próprio. E é precisamente o corpo, como condição mais
própria da existência, que Zaratustra apresenta como “uma multiplicidade
com um único sentido”.
Nietzsche foi um filósofo que escrevia poemas, tocava piano e dançava
nas montanhas. Filosofia, Arte, Ciência podem se entrelaçar, compor uma
trança com seus fios conceituais. A dança dos conceitos é o processo crítico
e criativo no qual o corpo pensa numa linguagem própria, singular. O Zaratustra
personagem da obra de Nietzsche é um dançarino e poeta cujo pensamento
apresenta o que Foucault chamou de “estética da existência”. Assim pode
ser entendido o propósito nietzschiano de “fazer da vida uma obra de arte”.
Esse processo de autocriação no qual o indivíduo cria a si mesmo é o
processo que ocorre de modo singular através de uma apropriação de si
mesmo, por meio da efetivação das possibilidades existenciais mais próprias.
O modo como Zaratustra expressa essa apropriação de si mesmo aponta
para a dança como condição reveladora desse processo de tornar-se o que
se é. A autopoiesis do corpo criador é pensada aqui como um caminho de
experimentação criativa, considerado como o jogo da criação, no qual os
impulsos nascidos da potência vital do corpo afirmam o prazer de tornar-se o
que se é. O caráter experimental da incorporação de um modo próprio de
ser que constitui a autopoiesis é confirmado pelo que diz Nietzsche em Ecce
homo. O jogo da criação, no qual os impulsos do corpo criador afirmam o
prazer em vir a ser o que se é, foi considerado por Nietzsche como a obra
máxima da arte do amor de si.
O “pressuposto fisiológico” apresentado por Nietzsche para possibilitar
uma tal afirmação da existência nesse jogo autopoiético de experimentação
criativa é o que ele chamou de “grande saúde” e Nietzsche criou seu
Zaratustra como um poeta dançarino andarilho que busca tornar leve o que
há de pesado na existência humana.
Incorporar na dança a leveza de um corpo capaz de voar significa, no
pensamento de Nietzsche, recusar as perspectivas metafísicas que situam o
corpo em posição de inferioridade diante da alma, da consciência, da mente
ou do espírito e amar a finitude existencial encarnada num corpo criador, um
corpoema para o qual a existência terrestre torna-se leve.
A linguagem poética do corpo criador não se restringe, portanto, à
linguagem verbal e a elevação do corpo, de que fala Zaratustra, requer uma
semiologia mais abrangente como a que se encontra na linguagem da dança.
A poesia de Zaratustra tende a ser incorporada pelo corpo criador através de

91
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

uma expressividade rica em ritmos, tonalidades sonoras, gestuais e outras


intensidades próprias de uma vitalidade exuberante, de uma altivez de espírito
e de uma abundância de energias características de um estado estético que
tonifica a existência estimulando sua plenificação.
O objetivo da comunicação proposta é discutir as possibilidades
de uma educação de si no sentido filosófico que põe em questão o valor da
existência a partir da consideração do processo de apropriação de si enquanto
corpo criador que deve se preparar para afirmar o devir como a dança da
vida.

Rafael Rodrigues Pereira / Doutorando Filosofia PUC-Rio /


rafaelrod@ig.com.br

A Diferente Relação entre Razão e Potência nas Filosofias de


Nietzsche e de Spinoza
O objetivo deste trabalho é analisar as relações entre razão e potência
nas filosofias de Nietzsche e de Spinoza. Procuraremos mostrar que as
principais diferenças e semelhanças entre os dois autores podem ser explicadas
a partir desta relação. Ambos elaboraram, de fato, o que poderíamos chamar
de “ontologia da potência”, compartilhando, assim, uma visão extremamente
positiva desta noção, vista como essência da vida ou da natureza. Esta
premissa comum terá conseqüências éticas e políticas: tanto Nietzsche quanto
Spinoza defendem a afirmação ética da potência, considerando que se trata
de algo que deve ser sempre intensificado, o que contraria grande parte da
moral tradicional, sobretudo a judaico-cristã. Politicamente, ambos defenderão
a tese de que “direito é potência”, tanto a nível natural quanto civil. No
entanto, apesar destes pontos em comum, seus pensamentos conterão
importantes divergências. Tentaremos mostrar que isto se deve, sobretudo,
ao fato de que a relação entre potência e razão é oposta nos dois autores.
Nietzsche elaborou, de fato, uma ontologia que podemos chamar de
“irracionalista”, onde a natureza é descrita a partir de relações caóticas entre
as diversas vontades de potência. Esta concepção visaria, sobretudo, rejeitar
a noção de “verdade”, entendida como uma hipóstase ilegítima das categorias
da razão. Já para Spinoza a potência se identifica à essência de Deus,
entendido como substância única. Contrariamente a Nietzsche, o filósofo
holandês considera que a razão não é uma invenção humana, mas sim um
atributo divino, portanto algo que possui legitimidade ontológica – daí a
famosa tese da total inteligibilidade do real, totalmente oposta à concepção
do filósofo alemão. Do ponto de vista ético, ambos associam o valor de uma
ação ou de um indivíduo à sua potência, mas, para Spinoza, esta última
aumenta com o exercício da racionalidade, ao passo que para Nietzsche a
glorificação da razão seria um sintoma de fraqueza. Politicamente, a mesma
premissa - “direito é potência” - levará Spinoza a defender a democracia,
vista como sistema mais racional, enquanto Nietzsche considera a aristocracia
92
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

como melhor modelo, criticando, justamente, o igualitarismo democrático


como fruto de uma fé infundada nas categorias da razão. Resumindo,
tentaremos mostrar, em nosso trabalho, que os dois filósofos partem de uma
premissa comum – a positividade da potência, tanto do ponto de vista
ontológico quanto ético e político -, mas divergem quanto à relação desta
noção com a racionalidade, o que implica, na prática, em uma série de
diferenças entre as duas visões. Seguindo esta linha de análise, a ênfase de
nosso trabalho estará na contribuição destes pensadores na construção da
modernidade e da contemporaneidade: ambos, de fato, procuraram contestar
o dogmatismo idealista e a moral religiosa medieval, em prol de uma filosofia
da imanência e da afirmação. No entanto, a divergência fundamental que
apontamos – a relação entre potência e racionalidade – refletiria, no fundo,
maneiras diversas de realizar este projeto, de forma ligada às épocas em que
os autores viveram. Spinoza pertence a um período em que o poder da
razão estava sendo afirmado contra os dogmas vigentes, herdados do
pensamento medieval. A originalidade deste pensador em relação a outros
do mesmo período está no radicalismo com que realiza esta proposta, o que
o leva a rejeitar, por assim dizer, as meias-verdades utilizadas por muitos para
conciliar os valores do velho e do novo mundo. Podemos considerar que
Nietzsche defende o mesmo projeto radical, mas indo ainda mais longe, ao
negar até mesmo a legitimidade da razão, vista como herdeira dos antigos
preconceitos. O filósofo alemão pertence a um período posterior ao de Spinoza,
onde o valor da racionalidade, defendido por este último, estava agora sendo
contestado. Desta forma, embora os dois pensadores defendam um projeto
similar, as próprias épocas em que viveram os leva a divergir na realização
deste projeto, a partir, como dissemos, de uma relação oposta entre potência
e racionalidade. Suas filosofias, assim, seriam próximas em sua originalidade,
mas ao mesmo tempo distantes, tornando a comparação entre ambos rica e
complexa. Podemos considerar que o mundo contemporâneo absorveu
grande parte das lições de Nietzsche e de Spinoza, mas ainda hesita entre as
particularidades de cada proposta. Esta confrontação, assim, é sem dúvida
alguma importante para a compreensão do mundo de hoje.

MESA MANHÃ 5 (3ª feira, dia 29/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Luís Rubira (UFPel)

Adolfo Miranda Oleare / Mestrando Filosofia UFES /


aldeiaverbal@hotmail.com.

Deus e a morte de Deus – a crítica da religião em Kant e Nietzsche


No Prólogo de Assim falou Zaratustra e antes, no fragmento “O
homem louco”, de A gaia ciência, a morte de Deus aparece como um processo
consumado na história do Ocidente. Na coletânea de fragmentos póstumos
93
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

reunidos sob o título A vontade de poder, Nietzsche determina o niilismo


como causa da morte de Deus e destino da metafísica, que tende, com ele,
a se locupletar. Desse modo, niilismo e metafísica aparecem como fenômenos
congêneres, visto que o mundo ideal metafísico já surge de uma inversão
platônico-cristã dos valores aristocráticos, o que faz com que o germe niilista
desenvolva-se muito lentamente ao longo da história, efetive-se na
modernidade e, finalmente, compreenda o endereçamento a uma vagarosa
superação da metafísica. Niilismo, diz Nietzsche, significa que os valores
superiores tenham se desvalorizado: porque sua tradição platônico-cristã se
ergueu sobre uma vontade de ideal que tomou o impossível como meta, o
homem ocidental tem sua vontade ao mesmo tempo hipertrofiada e
deprimida, de modo que, impedido de nada querer, passa a querer o nada:
“O niilismo radical é a convicção de uma absoluta inconsistência da existência
quando se [trata] daqueles valores que se reconhecem como os mais altos,
adicionado o entendimento de que nós não temos o mínimo direito de
acrescentar um além ou um em-si das coisas que seja ‘divino’ ou moral de
carne e osso [leibhafte]” (A vontade de poder, §3). Para Nietzsche, esta
despotenciação do homem, calcada na ânsia pelo ser e na respectiva fuga
do devir, é promovida pelas três instituições formadoras dos valores ocidentais,
a saber, a religião, a moral e a filosofia, desde as quais se determinam,
constituem e fundamentam – num recurso ao supra-sensível – o bem e o
mal. Assim, condenando o sensível, o histórico, o transitório e,
conseqüentemente, o corpo, essa “idéia fixa dos sentidos” (Crepúsculo dos
ídolos, III, §1), acometido por todas as “falhas da lógica”, ou controlando o
corpo, continuamente submetido a tecnologias de confissão e assepsia
(Foucault), obrigado a falar (Barthes), a filosofia, a moral e a religião expandiram
seus domínios mantendo a aposta numa outra instância: a alma como dado
supra-sensível, de cujos diversos matizes poéticos e filosóficos se sobressai a
função de plataforma imaterial do intelecto, da razão, da consciência, da mente.
Apostaram, pois, na possibilidade de uma realidade ‘pura’ e autônoma no homem,
isto é, na pretensão de que uma dimensão supra-sensível nele instalada fosse
condição de possibilidade da apreensão e organização de tudo que se apresenta,
acontece, aparece. Tanto o racionalismo como o empirismo, o criticismo ou o
idealismo afirmaram, de algum modo, a dicotomia entre sensível e inteligível,
projetando suas finalidades em conceitos formais, abstratos: o Ser, o Bem, o
Sujeito, a Idéia... o Homem. No diagnóstico empreendido por Nietzsche, assim
a filosofia plantou, já no seu início, o germe da própria derrocada: “o pior, mais
persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção
platônica do puro espírito e do bem em si” (Além do bem e do mal, “Prólogo”).
Pois onde deveria se ancorar a razão? Que resposta a filosofia, a moral e a religião
foram capazes de dar para sua própria confiança na razão enquanto princípio do
conhecer verdadeiro e do agir moral livre, para sua fé nas categorias da razão
como caminho certo e seguro rumo à verdade e ao bem? A experiência sensível
estava, desde sempre, descartada: por não se comportar de acordo com a

94
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

lógica – instrumento ideal, vigilante e corretivo –, foi assumida como sinônimo


de erro e contradição. Para a razão – tornada por decreto a faculdade distintiva
do homem, instância que, se bem cultivada, o levaria à felicidade, nesta vida ou
na futura – os filósofos, religiosos e moralistas encontraram uma ‘explicação’ mais
nobre, a despeito de parecer tão fantasiosa, pois “na Índia, tanto quanto na
Grécia, cometeu-se o mesmo engano: ‘é preciso que já tenhamos estado ao
menos uma vez em um mundo mais elevado (ao invés de em um muito inferior:
o que teria sido a verdade!) e que aí tenhamos nos sentido em casa. É preciso
que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!’” (Crepúsculo dos ídolos, III, §5).
Esta comunicação, portanto, consiste em estudar o tema nietzscheano da
morte de Deus a partir de um comparativo entre as críticas à religião produzidas
na coletânea A vontade de poder, de Nietzsche, e na obra A religião nos
limites da simples razão, de Kant, tratado em cujo desenvolvimento
concentram-se de modo exemplar as idéias de religião, moral e filosofia
modernas, o que estrategicamente vale, para uma leitura nietzscheana, como
elemento vivo daquilo a ser dinamitado: o projeto central da modernidade,
fundado na fé dedicada ao edifício supra-sensível da razão e,
conseqüentemente, à autonomia da subjetividade, mesmo depois das Críticas.

Alexandre Marques Cabral / Doutorando Filosofia UERJ /


alxcbrl@yahoo.com.br

Nietzsche e a experiência não metafísica do sagrado


O presente trabalho tem como objetivo mostrar como Nietzsche
reinscreve o tema do sagrado na filosofia, justamente a partir do momento
que declara explicitamente a “morte de Deus”. Por mais paradoxal que
possa parecer, a “morte de Deus” de modo algum alija a possibilidade de se
colocar o problema do sagrado nos átrios do labor filosófico. Tomando como
ponto de partida as declarações nietzschianas da morte de Deus presentes,
sobretudo nos aforismos 125 e 343 de A Gaia Ciência, verifica-se que sentido
áureo da expressão “Deus morreu” refere-se antes de tudo à falência das
categorias metafísicas, no que concerne ao poder vinculativo ou estruturador
da totalidade dos modos possíveis de configuração da existência. Justamente
este acontecimento deflagra concomitantemente a gênese do niilismo
entendido sobretudo como a perda dos parâmetros balizadores da existência,
cujo esteio ontológico sempre foi metaempírico. Tal experiência
consequentemente deflagra a dissolução de toda dimensão ontológica em-
si, isto é, o mundo não mais possui, com a morte de Deus, instâncias ontológicas
que se apresentem como apartadas de qualquer tipo de relação. Destarte,
a relação passa a ser o elemento caracterizador dos princípios ontológicos de
conformação do real. Nietzsche denomina tais princípios, que entre si se
relacionam agonisticamente, de força, cujo modo de ser deflagra-se no
conceito de Wille zur Macht: vontade de poder ou vontade de potência.
95
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Porquanto o real aparece como resultado dos embates decorrentes da relação


conflitiva entre as forças, Nietzsche insere o devir como elemento ontológico
inerente a semântica constitutiva do mundo, ao mesmo tempo em que
assinala a exigência de cada ente, orgânico ou não, ter de hierarquizar a
pluralidade das forças em devir, a partir da conquista de seu princípio
ontológico de singularização (próprio). `A medida que o supra-sensível se
esvai na morte de Deus, a temporalidade não mais pode ser pensada a partir
de pressupostos metafísicos, pois não há instâncias atemporais que assinalam
a fonte ou o ponto de chegada do devir e do tempo. Fechando-se em si
mesmo, o mundo, cuja essência é vontade de poder, passa a ser marcado
por outra experiência temporal que a metafísica, cujo suporte ontológico
sempre foi a dicotomia entre dois planos ontológicos distintos, quais sejam,
o sensível e o supra-sensível.
No que tange ‘a compreensão nietzschiana da temporalidade, o
capítulo Da visão e do enigma, presente na terceira parte de Assim falou
Zaratustra, mostra-se como paradigmático. Justamente porque a fala de
Zaratustra, como patente no Prólogo da obra, emerge da assunção da morte
de Deus como horizonte norteador de sua fala, Nietzsche acaba inserindo a
eternidade como horizonte de realização da temporalidade, ‘a medida que a
própria eternidade aparece como qualificativo essencial da dinâmica de
realização do instante. Este, por sua vez, antes de referir-se a um simples
momento fugaz que assinala a fugacidade do real, aparece como instância
de conjugação de passado, presente e futuro. Porquanto o instante deflagra
a síntese da totalidade dos direcionamentos da temporalidade, ele mesmo
torna patente a supressão de qualquer tipo de carência ontológica no interior
do tempo, já que o instante aparece como lugar onde a totalidade do real
vige em plenitude, visto que a totalidade dos acontecimentos (configurações
da vontade de poder) passados, presentes e futuros irrompem em unidade
no instante. Justamente isto reinscreve o sagrado no discurso filosófico.
Como Nietzsche deixa claro no aforismo 56 de Para alem de bem e mal, Deus
vigora como círculo vicioso. Tal círculo assinala a plenitude ontológica presente
no instante. Se o sagrado emerge do próprio modo de ser do instante,
então, o pensamento nietzschiano rompe com o ateísmo inerente à
modernidade, ao mesmo tempo em que não engendra nenhum conceito de
Deus hipostasiado, como as teologias e teodicéias sempre o fizeram. Isto
deflagra mais uma faceta do caráter intempestivo do pensamento de
Nietzsche: Deus para além da metafísica ou o sagrado fora da compreensão
judaico-cristã de mundo.

96
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Israel da Cunha Mattozo / Mestrando Filosofia e Teologia Fac. Jesuíta de


BH / israelmattozo@oi.com.br

O conceito Deus em Nietzsche a partir da obra Crepúsculo dos


Ídolos
A filosofia, durante mais de dois mil anos, debruçou-se sobre a
problematização de Deus, sobre a possibilidade de uma realidade subjacente
à imediata, sobre a necessidade ou não de uma fundamentação universal da
ética, enfim, buscou compreender o sentido do mundo, da vida e de suas
ações. A formulação do conceito Deus conduziu investigações filosóficas e,
conseqüentemente, suas conclusões deram subsídios para a construção da
vida dos homens. Reconhecemos, portanto, que tais temas demonstraram
ser de enorme complexidade e importância para a história da filosofia.
Na tentativa de compreender a realidade, foram desenvolvidas várias
investigações que resultaram em diferentes perspectivas e interpretações.
Nietzsche ocupa um lugar diferente na tradição filosófica do Ocidente. O
autor pretende resgatar, não em uma realidade última exterior, mas no próprio
homem, no mundo, os valores imanentes à vida humana.
Nietzsche alerta para o erro da tradição que, ao buscar sentido fora
do homem, fora do mundo, acabou por desprezar o que deveria ser valorizado.
Dessa forma, ele refuta as respostas que foram propostas pela tradição
filosófica, inclusive o conceito Deus, que serviu como subsídio para que outros
valores, reconhecidos pelo autor como decadentes, fossem construídos e
aceitos como reais. Os valores tradicionais estão conduzindo o homem, de
forma decadente, para o niilismo, e o conceito Deus, que atravessa a história
da filosofia, é tanto uma conseqüência desse declínio quanto responsável
por agravá-lo.
Nessa perspectiva, surge a problemática sobre Deus, quando ela se
apresenta para a filosofia durante toda a sua história e quando a filosofia
pretende compreendê-la, conceituá-la, buscando através desse conceito,
dar sentido à vida, responder sobre a realidade última das coisas.
Para o filósofo alemão, os valores morais da cultura ocidental e a
metafísica correlata ao Deus cristão são consequências desse processo de
decadência. Contudo, ao mesmo tempo em que Nietzsche critica essa cultura,
definindo-a como niilista, defende uma necessária tresvaloração de todos os
valores. O modelo religioso dessa nova tábua de valores tem no Deus Dionísio
e na cultura trágica, importantes referências.
Nietzsche, de uma forma mais concisa na obra Crepúsculo dos Ídolos,
apresenta um alerta para o equívoco interpretativo da realidade, para o
equívoco da construção do conceito Deus através de uma interpretação da
história da filosofia ocidental. Nessa obra, Nietzsche anuncia, de imediato no
Prólogo, a sua intenção de superar os valores decadentes criados pela tradição

97
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

filosófica através de marteladas, “este pequeno livro é uma grande declaração


de guerra”.
Com isso, o autor, ao abordar o problema de Deus, faz com que se
levante uma suspeita em relação aos valores que haviam sido estabelecidos
como verdadeiros, a racionalidade socrática, a moral reconhecida pelo autor
como antinatural e a idealização de um transmundo, que resultam numa
sociedade niilista. Tais críticas são retomadas, de forma concisa, na obra
Crepúsculo dos Ídolos no decorrer de seus capítulos.
Reconhecendo a importância que a problematização sobre Deus
assumiu na cultura ocidental, é inevitável dar ouvidos às críticas realizadas
por Nietzsche às perspectivas assumidas até então como verdadeiras.
Através de uma investigação genealógica, reconhecendo os aspectos
históricos como fundamentais para compreensão dos valores assumidos como
“verdades absolutas”, Nietzsche reconhece que Deus nada mais é do que
um conceito, um valor.
Pretendemos, portanto, apresentar o diagnóstico de Nietzsche
sobre a construção do conceito Deus na cultura ocidental, a partir da obra
Crepúsculo dos Ídolos. Apresentaremos a crítica realizada pelo autor à moral
apontada como antinatural, à metafísica dualista e à racionalidade socrática,
entendendo que são diagnosticadas como responsáveis pela construção
do conceito Deus e, consequentemente, de uma cultura decadente, niilista.
Concluindo, dessa forma, que a problemática metafísica está na base histórica
da filosofia ocidental. Espíritos fracos, na tentativa de fugirem do sofrimento
imanente à realidade, construíram uma falsa realidade, uma visão de mundo
equivocada, fugindo, portanto, do aspecto trágico da vida, através de ilusões
que deturpam a realidade. Um desses conceitos ilusórios é o conceito Deus.

Renato Nunes Bittencourt / Doutorando Filosofia UFRJ /


renunbitt@yahoo.com.br

Spinoza, Nietzsche e a denúncia da moral teológica como distorção


axiológica das disposições afirmativas da autêntica práxis crística
Apresentamos possíveis convergências entre Spinoza e Nietzsche na crítica
da moral teológica-sacerdotal. Apesar da distância cronológica e diferenças
conceituais que separam ambos os filósofos, pretende-se demonstrar que
há um eixo comum que perpassa os seus respectivos projetos de crítica da
tradição metafísica manifestada na moralidade sustentada pela ideologia
religiosa normativa sustentada pela teologia dogmática e pela casta
eclesiástica. A partir de Spinoza, especialmente mediante leitura do Tratado
Teológico-Político, evidencia-se o projeto moralista que associa o discurso
teológico com o obscurantismo das disposições religiosas marcadas por
caracteres coercitivos, enaltecendo as superstições como mecanismo de
controle das mentes dos fiéis. A classe eclesiástica, em prol do seu jugo
sobre as massas, impõe a esta um sistema moral a ser seguido de forma
98
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

extrínseca, impedindo a liberdade de pensamento e a possibilidade de haver


divergências interpretativas no estudo dos textos sagrados. O poder
eclesiástico se propõe a impedir o cultivo do pensamento entre os seus fiéis,
manipulando estes através da flutuação dos afetos tristes, em especial o
medo e o ódio que motivam uma compreensão distorcida da realidade. Tal
dispositivo se evidencia como uma ruptura axiológica em relação ao âmago
da disposição originária do Cristianismo: proporcionar ao fiel o despertar de
afetos potentes, de alegria, de caridade e afirmação das diferenças, mediante
a compreensão da ação divina em cada pessoa. O estudo das Escrituras e a
investigação das suas fontes filológicas, conforme a perspectiva espinosana,
favoreceria um desmascaramento da arbitrariedade moral imposta pelo clero
autoritário. Nietzsche, por sua vez, em especial na Genealogia da Moral e O
Anticristo, realizará uma análise genealógico-psicológica do tipo sacerdotal,
esmiuçando de que modo no contexto de uma prática religiosa de cunho
normativo, a classe eclesiástica se aproveita de valorações morais nitidamente
coercitivas para estabelecer o seu poder opressor sobre o rebanho de fiéis.
O sacerdote vive dos “pecados”, e toda sociedade estabelecida por disposições
moralistas depende desse mecanismo de repressão. Para Nietzsche, a idéia
de “pecado” é fruto de uma má compreensão fisiológica do corpo, através
da inserção de valorações morais na dinâmica da vida, que é intrinsecamente
amoral. O grande problema evidenciado por Nietzsche no âmbito dessa relação
sacerdotal decorre do fato de que o projeto civilizatório da moral cristã nasce
de uma ruptura profunda com a práxis evangélica vivenciada por Jesus, que,
segundo a perspectiva nietzschiana, jamais se valeu de determinações
coercitivas para estabelecer a sua doutrina entre os homens. Enquanto Jesus
fez de sua vida um exemplo de que a “Boa Nova”, isto é, a unicidade com
“Deus” se encontra ao alcance de qualquer pessoa, a moral cristã estabelecida
pela casta eclesiástica gera um dispositivo de dependência do fiel em relação
ao discurso sacerdotal, como se este e somente este proporcionasse o
“caminho da salvação” ao rebanho dos seguidores. Segundo a interpretação
nietzschiana da vivência psicológica da práxis evangélica, não haveria nesta
as noções de “culpa”, “pecado”, “penitência”, pois a experiência sagrada por
excelência evidenciada por Jesus em sua práxis foi a beatitude, decorrente
da compreensão da existência da unicidade com Deus, para além de qualquer
consideração transcendente de valores. Para o indivíduo alcançar esse estado
de jubilo existencial, os afetos reativos (ódio, tristeza, ressentimento), devem
ser transformados em disposições tonificantes, tornando propícia a abertura
do indivíduo ao âmbito sagrado. Se Jesus fez de sua atividade evangélica
uma experiência de alegria e amor, como se justificar então a distorção
axiológica que a moral teológica fez de sua obra, estabelecendo perseguições
condenatórias contras valorações religiosas distintas? Uma resposta seria a
de que tal distorção ocorreu tanto em decorrência de uma má interpretação
de sua vida evangélica por parte dos primeiros seguidores, que acrescentaram
traços morais ao tipo psicológico do Nazareno, como o uso intencional destas

99
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

valorações morais pelas gerações cristãs seguintes que, para consolidarem o


poder social sobre as crescentes massas de fiéis, se encontraram na
necessidade de manipular a mensagem evangélica “originária” de acordo com
as suas conveniências. Um exemplo nítido dessa interpretação distorcida é
se considerar Jesus como o Redentor da humanidade, que pereceu na Cruz
como forma de purificar o gênero humano dos seus pecados. Conforme
Nietzsche salienta, o elemento mais estranho ao tipo psicológico de Jesus é
precisamente a idéia de “dívida” ou “culpa”, e sua morte nada mais foi do
que a culminação de sua doutrina, que é a supressão de toda desavença ou
ódio pela afirmação do perdão e do amor transfigurador da própria
individualidade. O presente trabalho pretende demonstrar, mediante a
intercessão entre as perspectivas de Spinoza e de Nietzsche, que há uma
compreensão positiva das disposições religiosas da prática crística originária,
e que esta, para além de toda interpolação e interferência anódina da ideologia
sacerdotal, é um meio de se alcançar a beatitude na própria imanência, para
além de qualquer consideração transcendente de valoração moral, como a
instituição cristã impôs ao rebanho dos fiéis cristãos.

MESA MANHÃ 6 (3ª feira, dia 29/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Hugus Félix (UFRJ)

Alexandre Arbex Valadares / Doutorando Filosofia UFRJ /


alexarbex@gmail.com

O ‘vazio’ como objeto da filosofia de Spinoza


O trabalho tem por objetivo discutir a noção de “vazio” na filosofia
de Spinoza. Considerar-se-á, como referência de partida, um artigo de
Althusser intitulado Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre
(“A corrente subterrânea do materialismo do encontro”), no qual ele lança a
tese controversa, mas não meramente provocativa, de que o objeto da
filosofia é, para Spinoza, o vazio.
Na parte introdutória do trabalho, dois paradoxos relativos a essa
tese serão examinados. O primeiro diz respeito ao contraste entre o que
nela se propõe e a imagem que Spinoza nos oferece de sua própria filosofia
na Ética: um sistema coeso, sólido, que recobre com a massa dos seus
conceitos a totalidade do mundo existente e inteligível. O segundo paradoxo
tomará em consideração o fato de que, por meio dessa tese, Althusser
postula a inserção de Spinoza em certa corrente subterrânea da história da
filosofia, a que ele dá o nome de “materialismo do encontro” ou “materialismo
aleatório”, uma reivindicação que parece ser explicitamente desautorizada
pelo rigoroso determinismo que preside à concepção spinozista de Natureza,
e do qual a proposição 29 da parte I da Ética apresenta uma formulação
peremptória.

100
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Na segunda parte do trabalho, estudar-se-ão as ocorrências da noção


de “vazio” na obra de Spinoza, apresentando, inicialmente, a forma com que
a questão aparece na sua correspondência epistolar com Boyle, à luz do
debate mais amplo entre vacuístas e plenistas. Tratar-se-á, nesse momento,
da influência de Descartes sobre a física de Spinoza, articulando os conceitos
de “matéria sutil” e “corpos simples” e enfatizando a importância de ideia,
comum a ambos, de que a extensão – o mundo material – é infinita. O passo
seguinte consistirá em compreender em que medida Spinoza rompe com o
cartesianismo e o escolasticismo ao propor que a extensão é um atributo de
Deus ou da substância, e de que maneira essa proposição, ao negar qualquer
hipótese de transcendência, estabelece a existência divina como simples
afirmação da existência do real.
A terceira parte do trabalho abordará mais detidamente o texto de
Althusser e a interpretação que ele oferece acerca da filosofia de Spinoza.
Será feita uma breve recapitulação do argumento com que Althusser procura
demonstrar que a história da filosofia é perpassada por uma corrente oculta,
recusada pela tradição, e identificada por ele como “materialismo aleatório”.
Essa reflexão fará ver em que medida esse conceito, cuja gênese remete a
Epicuro e cujo princípio fundamental reside no primado do desvio sobre a
norma, constitui uma antítese às ideias de origem e finalidade e de ordem e
sentido. Indicando-se, de passagem, o caráter inadequado da alusão de
Althusser ao “paralelismo” do sistema spinozista, será examinada, com base
nas suas considerações, a relação entre aleatoriedade e conhecimento na
concepção spinozista do método e da ideia verdadeira presente no Tratado
da Reforma do Intelecto. Em seguida, serão comentados os pontos principais
da interpretação de Althusser acerca da ontologia spinozista, assinalando
especialmente a tese segundo a qual a definição spinozista de Deus promove
um esvaziamento do campo filosófico, ao excluir as categorias de “ordem”,
“origem”, “sentido”, “razão” e “finalidade”, pelas quais a filosofia tradicionalmente
opera, e ao pôr em questão a própria possibilidade de um pensamento que
seja capaz de prescindir dessas categorias.
Na conclusão, buscar-se-á delinear, a partir da leitura althusseriana,
o caráter político da definição de Deus exposta por Spinoza na Ética. Esse
aspecto será relacionado, sobretudo, à afirmação da extensão ou materialidade
como atributo de Deus; ver-se-á, também, como essa proposição radical, à
qual Spinoza recorre em sua argumentação contra o vazio, produz ela própria
um vazio filosófico. Por fim, será levantada a hipótese de que a noção de
“materialismo aleatório” ilustra o modo através do qual os mecanismos de
imaginação e de paixão operam na formação e na transformação do estado
social. O trabalho não propõe julgar se a tese de Althusser é verdadeira ou
não, mas, sim, analisar o que ela traz de novo às interpretações relativas à
filosofia de Spinoza.

101
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Alexandre Pinto Mendes / Mestre Direito Constitucional PUC-Rio /


alexandrepmendes@yahoo.com.br

O povo em armas – democracia e violência em Spinoza


O objetivo do trabalho é analisar aquilo que poderíamos chamar de
teoria spinozana do povo armado, prática democrática de exercício da
violência estatal exposta no Tratado Político. Embora esta obra se interrompa
justamente no capítulo sobre a democracia, Spinoza já demonstrara a
necessidade de instituições democráticas nas constituições monárquica e
aristocrática, de modo a estabelecer a proporção adequada entre o poder
soberano e a potência da multidão. Uma delas será exatamente a instituição
responsável pela defesa e segurança comuns.
Ao contrário de Hobbes, para quem o direito sobre a milícia deve
ser exclusivamente do soberano e, aliás, lhe é indispensável, Spinoza entende
que a instituição de um exército permanente abala este equilíbrio de potências
e é, na verdade, mais nocivo à segurança do Estado do que útil. Contudo,
o exército permanente não é problemático unicamente por estar a serviço
do detentor do imperium e, deste modo, por poder ser utilizado
contrariamente aos interesses da multidão. Conferindo aos militares um status
diferenciado entre os cidadãos, confiando-lhes a sorte do próprio Estado e
a tutela de seus compatriotas, aquele a quem a multidão transferiu seu
direito democraticamente tem seu poder ameaçado.
Eis porque se torna imprescindível que o exército seja composto
pelo próprio povo em armas, sem remuneração e apenas nos casos em que
a segurança do Estado esta ameaçada. E mesmo que esta regra não se
aplique exatamente da mesma maneira no regime aristocrático, no qual a
oficialidade militar deverá ser composta por um corpo de patrícios
remunerados e instruídos nas artes militares, a instituição de uma milícia
permanente é, desde o início, descartada.
Pretendemos, assim, compreender a demonstração desta posição
singular de Spinoza, de inspiração nitidamente maquiaveliana. Spinoza é voz
dissonante com relação a outros pensadores modernos, uma vez que não
procura justificar em suas obras políticas o monopólio estatal da violência.
Para melhor expor esta diferença, iniciaremos debatendo a concepção
hobbesiana sobre o direito de milícia, que aparece tanto no Leviatã quanto
no Behemoth. Amparado por seu balanço histórico da guerra civil inglesa,
Hobbes atribuía à capacidade concreta de utilização da violência uma
importância capital para a soberania, sem o que não se evitar o estado de
guerra. Em outros termos, sem este “poder comum”, seria impossível manter
os homens em respeito. Seguindo esta linha de raciocínio, Hobbes chegará
à afirmação de que o controle sobre a milícia “de fato, é todo o poder
soberano. Pois quem tem o poder de recrutar e mandar nos soldados tem
todos os demais direitos que a soberania pode reclamar” (HOBBES, Thomas.
Behemoth o el Parlamento Largo. Madrid: Editorial Tecnos, 1992. p.103).

102
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Por outro lado, a multidão é absolutamente incapaz de organizar sua defesa


comum por si própria.
Spinoza parte de premissas opostas. Como o filósofo esclarece na
carta 50 a Jelles, a diferença entre sua concepção política e a de Hobbes
consiste na manutenção do estado natural no seio do estado civil. Isto porque
a potência da multidão não é de todo alienável. Ou seja, a transição para o
estado civil não implica a perda de sua capacidade de resistência, seja individual,
seja coletiva. A alienação política será sempre instável e o direito comum
estará sujeito a ser transgredido pela maioria, uma vez que a obediência seja
percebida como inútil. Spinoza concede a Hobbes que a multidão pode ser
enganosamente levada a esta percepção, por estar atravessada por
imaginações e paixões. Mas a instituição de um exército permanente a serviço
do soberano, tal como propõe Hobbes, não resolve esta instabilidade inerente
ao corpo social: ao contrário, parece aprofundá-la. Seja porque abre a
possibilidade de instituição de um poder violento, contra o qual os cidadãos
não tardarão a se rebelar, seja porque os militares, alçados a uma condição
especial entre os cidadãos, certamente se entenderão como os únicos
verdadeiramente legitimados ao exercício do poder.
Sendo assim, caberá a nosso trabalho a tarefa de analisar como se
desenvolve a demonstração spinozana da relação intrínseca entre liberdade
e instituição da milícia popular, mesmo diante da prevalência dos afetos na
constituição do corpo coletivo e, consequentemente, da inconstância da
multidão.

Bernardo Bianchi Barata Ribeiro / Doutorando Ciência Política IUPERJ /


bernardobianchi@gmail.com

O maquiavelismo de Spinoza
Quanto mais as instituições política distanciarem-se da vontade
popular, tanto mais os magistrados temerão a multidão. (Cf. CRISTOFOLINI,
P. Spinoza e l’acutissimo fiorentino, p. 11 e MAQUIAVEL, N. Discorso per
rassetare le cose di Firenze doppo la morte del ducha Lorenzo, p. 985). Com
efeito, Spinoza e Maquiavel concordam que um povo que atemoriza seu
governante acaba por induzi-lo a comportamentos ferozes e, por outro lado,
um governante feroz tem muitos motivos para temer o povo. Desse modo,
aquele que, sendo potente, vive sob o medo, é induzido a provocar medo.
Dá-se, portanto, a reprodução do medo, o que, inexoravelmente, leva ao
fim da liberdade e à servidão. O medo é, dentro dessa concepção, o principal
obstáculo à liberdade e não pode ser elevado, em hipótese alguma, a alicerce
de um bom governo. Pois a servidão não é simplesmente estar a ferros, mas
sim estar separado daquilo que se pode e não existe abismo mais profundo
do que o medo. Assim, Spinoza afirma: “uma cidade em que a paz não possui
outra base senão a inércia dos súditos, os quais se deixam conduzir como um

103
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

rebanho e não são habituados senão com a servidão, merece mais o nome
de solidão do que o de cidade”.
Para Spinoza, o medo é exatamente o índice da distância entre a
vontade da civitas e a vontade das instituições políticas. Para Hobbes, o
medo é a paixão domesticadora que permite a convivência entre o dispositivo
passional do homem e os imperativos sociais. Com efeito, Hobbes reduz os
homens-lobos a individualidades silenciosas, coisa que não ocorre em Spinoza.
No Discurso sobre a reforma, Maquiavel afirma a necessidade de se
adotar o regime republicano em Florença. Tal conselho deriva de dois fatos.
O primeiro refere-se à tese de que, sendo a liberdade fundada
necessariamente na igualdade, e sendo Florença um espaço
reconhecidamente de igualdade, sua constituição é avessa à instauração
de um principado, restando apenas a opção republicana. Tentar transigir
com esta realidade inescapável seria o mesmo que decretar a ruína do governo.
A verdadeira conservação do Estado depende desta postura. O segundo
motivo, que deriva e constitui o primeiro, envolveria a dinâmica própria do
medo, ou seja “ao manter-se a cidade de Florença nas bases aturais, corre-
se, em caso de acidente, muitos perigos”. Mais à frente, Maquiavel corrobora
tal parecer ao afirmar que os Medici devem descentralizar o poder político
de modo que não necessitem arcar com o ônus de uma responsabilidade
que poderia submetê-los a graves perigos por parte da população, sendo
mais prudente “organizar o Estado de modo que por si mesmo se administre”.
Tampouco podemos conceber a política spinozana senão a partir
de uma física social, como fica claro na Carta 50, o que nos leva novamente
a Maquiavel. Ao falar dos aragoneses (Cf. BOVE, L., Direito de guerra e
direito comum na política spinozista.), Spinoza afirma que esses, após levarem
a cabo uma guerra de libertação contra os árabes, puderam instituir o
governo que bem entendessem. Eles desejaram, portanto, introduzir uma
monarquia. Contudo, eles não podiam se decidir quanto às condições que
deveriam ser impostas ao futuro rei, de modo a preservar sua liberdade
recém conquistada.
O povo aragonês mantém, no seio mesmo do Estado recém criado, o direito
natural que detinham durante a guerra de libertação. Expressamente, os
aragoneses preservam este direito que é inalienável, pois “a justiça, articulada
à soberania da potência da multidão, ultrapassa o quadro jurídico-político
instituído” (Ibidem, p. 09). Estamos muito mais próximos do modelo
maquiaveliano de guerra do que do modelo hobbesiano do contrato, como
bem nota Bove. O direito de guerra define o direito civil e promove, inclusive,
a sua racionalidade.

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Pablo Ramos de Azevedo / Mestrando Filosofia UFRJ /


pablo.gawan@gmail.com

A multidão contra o povo - exórdio de uma democracia por vir


A presente comunicação pretende expor alguns pontos
concernentes à nossa pesquisa de mestrado desenvolvida nestes últimos
meses, versando sobre as divergências intrínsecas à filosofia política de Hobbes
e Spinoza. Sob a luz dos conceitos de multidão e de povo presentes,
respectivamente, no Tratado-Político e no Leviatã, analisaremos as distinções
políticas que separam os dois autores – um, partidário das monarquias
absolutistas do século XVII, o outro, partidário da democracia.
Contudo, pretendemos pensar não apenas as divergências políticas
entre Hobbes e Spinoza, mas problematizar as reapropriações contemporâneas
da filosofia política destes autores. O conceito de povo que, desde Hobbes,
ganhou importância capital nos debates políticos da modernidade, não se
tornou hegemônico no pensamento político do Ocidente sem que antes
estivesse no centro de controvérsias políticas práticas. Tal momento ao qual
nos referimos é justamente o século XVII, período de instabilidade do poder
monárquico, que tentava unificar politicamente regiões que resistiam
violentamente a este movimento. Neste período de intenso conflito, marcado
por diversas revoltas civis, os conceitos de povo e multidão disputavam pela
hegemonia no âmbito político, sendo que a vitória das monarquias marcou,
de certa forma, a vitória do conceito de povo sobre o de multidão - ficando
este relegado ao esquecimento.
Porém, com a falência e desnaturalização do conceito de povo no
pensamento moderno (fruto das modificações que o Estado-nação vem
sofrendo nas últimas décadas), muitos teóricos vêm tentando repensar o
campo político sob novas perspectivas conceituais, no intuito de renovar a
análise de seus respectivos campos; neste movimento, cientistas políticos,
sociólogos e outros têm voltado com bastante freqüência sua atenção para
a filosofia política para entender o mundo atual e todas as suas contradições.
Pode-se dizer, de maneira geral, que tais crises constituem o pano de fundo
sob o qual estes deslocamentos teóricos e conceituais se exerceram,
exatamente por não responderem mais aos problemas conjunturais específicos
que fazem parte da contemporaneidade. O movimento de retorno aos
clássicos, ou de busca por ferramentas conceituais mais adequadas às
especificidades atuais, se tornou cada vez mais freqüente em nossos dias.
A partir deste âmbito, não nos parece coincidência que, justamente
após estas crises que marcaram as ultimas décadas do século XX (crises
políticas e econômicas que abalaram o modus operandi da soberania dos
Estado-nação) e o enfraquecimento de projetos políticos democráticos de
inclinação mais radical, tenham-se ampliado as releituras de Spinoza e Hobbes
no pensamento contemporâneo. De certa forma, podemos dizer que tais
recuperações da filosofia política de Spinoza e Hobbes pautam um conflito e

105
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

uma posição política que atravessam o cenário atual – de um lado, pensar a


democracia em sua mais radical expressão, de outro, um pensamento
aprisionado por um ponto de vista que torna a potência da multidão refém
da autoridade do Estado.
Sendo assim, pretendemos aqui analisar não apenas as distinções
políticas entre Hobbes e Spinoza no seio de suas próprias filosofias, mas,
problematizar também as apropriações de seus conceitos que tem sido feitas
pela ciência política contemporânea, concentrando-nos principalmente no
trabalho de Negri sobre a filosofia espinosana (Anomalia Selvagem) e o de
Bobbio sobre Thomas Hobbes (obra homônima ao pensador inglês). Focando-
nos sob estas diferentes interpretações, tentaremos abordar a potência
com que o conceito de multidão se abre num horizonte político democrático
mais amplo que o paradigma da democracia contemporânea, pautado ainda
na perspectiva do conceito de “povo” – pensando assim, o Tratado Político
como o exórdio de uma democracia por vir, um projeto democrático que se
encontra no coração mesmo de uma filosofia que abre a democracia em sua
mais absoluta expressão para além de qualquer paradigma histórico dado:
além dos modelos da antiguidade, do republicanismo moderno e de nossas
atuais democracias.

MESA MANHÃ 7 (3ª feira, dia 29/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Marcos Ferreira de Paula (USP)

Caio César Souza Camargo Próchno / Prof. Dr. Psicologia UFU /


c.prochno@uol.com.br
Cecília de Souza Neves / Graduanda Filosofia UFU /
cecilianeves2003@yahoo.com.br

Crise e Retomada da Metafísica da Subjetividade – Diálogos entre


Nietzsche e Lacan
Em seu livro Além do Bem e do Mal o filósofo alemão faz uma crítica
dos preconceitos dos lógicos em geral que não podem admitir que “um
pensamentos vem quando ‘ele’ quer, e não quando ‘eu’ quero; de modo
que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição
do predicado ‘penso’. Isso pensa: mas que este ‘isso’ seja precisamente o
velho e decantado ‘eu’ é, dito de maneira suave, apenas uma suposição,
uma afirmação, e certamente não uma ‘certeza imediata’. E mesmo com
‘isso pensa’ já se foi longe demais; já o ‘isso’ contém uma interpretação do
processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o
hábito gramatical: ‘pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente,
logo -’.” (NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.23). Ou seja, toda uma metafísica

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

ancorada na subjetividade supõe a divisão clara e evidente entre sujeito e


predicado, entre o agente e a ação. O eu, tão querido e estimado, é posto
enquanto uma ficção lógico-gramatical que acaba por delimitar o espaço da
consciência e do próprio psiquismo do agente. Ao se dar tanta fé ao sujeito
da gramática, as resultantes aparecem em novas crenças tais como, alma,
substância, espírito, eu, matéria, átomo, unidade. A transformação que
Nietzsche opera vai se dar no sentido da instância do corpo que veicula
então uma verdadeira singularidade, ultrapassando toda e qualquer
subjetividade. Ou, mantendo a mesma a uma certa distância, pois se sabe
que ela é da ordem de um efeito gramatical. O corpo em Nietzsche se
entende então como uma grande Razão, que produz um eu singular. As
razões do corpo são engendradas a partir do si-próprio, que não se confunde
absolutamente com este eu superficial. Está certo, deste modo, que
Nietzsche combate através de seu pensamento a metafísica da subjetividade,
inaugurada por Descartes – o Sujeito Moderno do conhecimento.
Já a psicanálise, inaugurada por Freud, rompe também de maneira
intensa com aquela metafísica da subjetividade moderna. No registro da
primeira tópica freudiana, no dividir o psiquismo entre o Eu (“ich”), o Supra-
Eu (“über-ich”) e o Isso (“es”) Freud já rompe com qualquer tentativa de
predominância do eu. Este é visto como um efeito superficial do próprio
inconsciente, algo de um campo de alienação de determinadas figuras
produzidas ideologicamente. O eu é muito frágil em Freud, sendo que o
que de fato determina é o jogo pulsional que atravessa o corpo.
No que se refere à Psicanálise Lacaniana, tem-se um movimento
ambíguo em relação à metafísica da subjetividade. Num primeiro momento
há como que uma reinterpretação do inconsciente como fenômeno
intersubjetivo, mas mesmo assim, em seguida, uma reinserção do sujeito
enquanto transcendência cartesiana (DEWS, P. A verdade do sujeito:
linguagem, validade e transcendência em Lacan e Habermas. In: Um limite
tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise / organizador Vladimir Safatle.
São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 95). Ou seja, num segundo momento
do projeto de Lacan há uma ênfase em como ele pode mostrar que “o
isolamento do ‘sujeito’ empreendido por Descartes, através da suspensão
de toda relação cognitiva com o mundo, revela seu estatuto ‘transcendental-
pragmático’ [...] enquanto pressuposto indubitável de todo discurso” (Ibidem,
p. 95). Há, no sentido da psicanálise, algo como um resto de substancialismo
em Lacan, na figura do Cogito, que se torna uma garantia metafísica da
possibilidade de todo e qualquer discurso. Claro está que Lacan pensa na
inauguração do sujeito moderno, principalmente no que se refere à Ciência
e o seu poder de engendrar objetos, no poder do espaço de reflexão e de
representação.
Neste sentido, há que se compreender que por detrás do conceito
de sujeito do inconsciente subjaz um elemento substancial, uma figura de
unidade, um disfarce de uma coisa. Tal substância seria algo como o derradeiro

107
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

suporte a engendrar caminhos seguros de obtenção de certas verdades e


isso, principalmente, no encontro analista-analisante.
O objetivo, então, da minha comunicação é tentar mostrar que a
partir da grande ruptura que Nietzsche engendra na metafísica da
subjetividade o diálogo com a Psicanálise Lacaniana tem pontos de
ambigüidade no que tange a permanência ou não de figuras metafísicas
tão tradicionais, tais como o sujeito ou a substância.

Luis Eduardo P. Aragon / Doutor Psicologia Clínica PUC-SP /


aragonn@uol.com.br

A importância da dimensão afetiva e imanente do corpo na clínica


contemporânea. “Corpo-cosmos” em Espinosa
Fibromialgia, fadiga crônica, transtorno do déficit de atenção e
hiperatividade, dor crônica, são apenas algumas das entidades que pululam
nos códigos de doenças contemporâneas, nos tratados médicos e
psicológicos, e assombram os especialistas confrontados com elas. Estas
expressões do sofrimento atual têm em comum interrogar os limites do
saber de todas as especialidades existentes, e não se acomodar em
categorias nosológicas, colocando em xeque tanto a abordagem
metodológica do cientificismo hegemônico, quanto o uso de um paradigma
classificatório (com raízes que passam por Aristóteles e pela botânica), para
a apreensão do corpo e de suas expressões.
Sabemos que o racionalismo científico tornou-se a pedra de toque
da metodologia de pesquisa no campo da saúde, e que influenciou
largamente a apreensão que temos hoje de nosso próprio corpo, este
pensado por partes, de forma mecanicista e passível de compreensão total
pela consciência. A fragmentação dos saberes especializados, o uso da
estatística como forma de apreender o vivo, a necessidade de
reprodutibilidade das ações terapêuticas e dos experimentos fisiológicos e
mesmo expressões cotidianas como: “estou com uma dor no coração” ou
“o meu intestino não está funcionando”, são apenas algumas amostras da
força e da forma insidiosa com que os poderes – e a arrogância – do ego
ganharam expressão.
Do próprio nascedouro da modernidade cartesiana, o século XVII,
surge a complexidade de uma constelação teórica que tira o corpo e seus
afetos do ostracismo. Espinosa filosofa com as afecções e os afetos surgidos
do encontro com o mundo, melhor, do “encontro-mundo”, pois a natureza
naturada das expressões diferenciais de cada ser é colhida a todo o momento
pelo plano naturante do devir. Nesta perspectiva estabelece-se uma
contemporaneidade de Espinosa conosco, pois o corpo metamorfoseante
de hoje, com limites imprecisos, metaestável, povoado de afetos e potente
enquanto produtor de afecções convoca aquele do filósofo: corpo-variação
afetiva, corpo-imanência, corpo-encontro, e porque não dizer – com a ajuda

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

de Deleuze – corpo-acontecimento. A dor de uma mulher pobre, abusada


sexualmente na infância, merendeira de uma escola pública, desejosa de um
sem número de mundos oferecidos pelos meios de comunicação, que impõe
uma mudança de ritmos aos familiares, esta dor incapacitante que não cabe
nos limites de um organicismo ou mecanicismo reducionistas, não se deixa
apreender pela reumatologia, pela psiquiatria, pela genética ou fisioterapia,
não se acalma com alongamentos, antiinflamatórios, mas um tanto com
antidepressivos, ela é a pura manifestação da falência da forma moderna e
cartesiana do conhecer e da necessidade de apreender diferentemente a
experiência e o vivo.
Abordando a expressão corporal dos sofreres atuais através do conceito
de campo problemático conforme concebido por Deleuze, é possível acolher
os paradoxos do vivo, e a própria indiscernibilidade dos limites do corpo,
como características afirmativas e expressivas deste, concebido como um
campo de imanência, um momento de um processo mais amplo que as formas
do dado, um processo de individuação, segundo Gilbert Simondon.
Da prática clínica de hoje surge a necessidade de retomada da filosofia
espinosana, no sentido de considerar a dor, a fadiga, a hiperatividade, a
depressão, não como defeitos a serem consertados ou banidos da experiência,
mas como expressão legítima de um “corpo-cosmos”, um corpo que afirma
sua singularidade e legitimidade através da beatitude de um sofrer. Não se
faz aqui nenhuma concessão ou apologia à dor ou ao sofrimento, mas apenas
se considera a beatitude como o plano real e atmosférico do acesso a um
corpo amplo que engendra a própria criação topológica e temporal. Experiência
de uma espacio-temporalidade radicalmente singular, mas que recolhe em
suas tramas o encontro com todos os espaços e tempos no movimento
mesmo do ato expressivo. Enlace por “cooperação” quântica ou disparação
de fases e ordens de grandeza diferentes de tudo o que existe, tornando
uma dor o signo justo de um campo problemático em questão, dor que
convoca uma clínica para “o que pode o corpo” e não para a alienação do
sofrer que pode produzir sentido e abrir a perspectiva da alegria (como
concebida pelo filósofo).

Paulo Joaquim Leão Porto / Doutorando Psicologia Clínica PUC-SP /


paulojporto@hotmail.com

Ética e tipos de vida: a noção de afeto entre Nietzsche e Spinoza


A questão da afetividade humana ocupa lugar central na filosofia de
Spinoza, e foi amplamente desenvolvida em sua obra principal, a Ética
demonstrada à maneira dos geômetras. O próprio título desta obra revela o
interesse ético do filósofo. Se, por um lado, a alegria (Hilaritas) é o afeto que
exprime o equilíbrio entre as múltiplas possibilidades de ser do corpo, este é
também o afeto que norteia o bom encontro entre os corpos. No comentário
de Deleuze, no encontro entre os corpos dois acontecimentos podem ocorrer:
109
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

tanto pode suceder uma composição para formar um todo mais potente,
como é possível também que um decomponha o outro destruindo a coesão
das suas partes. Embora não possamos nos apropriar exatamente do que
nos acontece no nível do jogo entre as forças, como afirma Spinoza:
“concebe-se mais facilmente do que se observa” (Ética, esc. da prop. 44),
podemos, no entanto, nos apropriar dos efeitos das composições e
decomposições que acontecem nesse jogo: sentimos alegria quando um
corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe; sentimos tristeza, ao
contrário, quando um corpo ou uma idéia ameaçam a nossa própria coerência.
Um bom encontro então é aquele que nos provoca alegria, que nos faz
sentir alegria. É, portanto, na relação que se estabelece no encontro dos
corpos que se dá a interpretação ética. Uma boa interpretação é aquela
que no campo de afetação entre os corpos promove um aumento, uma
intensificação dos poderes dos corpos, uma interpretação ruim é a que
empobrece ou degrada, os poderes corporais. Sabemos da consideração
que Nietzsche nutria em relação a Spinoza, que o considerava declaradamente
como um companheiro e precursor. Sabemos também da centralidade da
questão ética em sua obra, principalmente na Genealogia da moral. Para
Nietzsche, os valores possuem uma origem que os contextualiza histórica e
socialmente. Mas, nesta origem existem avaliações que remetem à vida:
origem de valor e valor de origem dirigem o procedimento genealógico.
Sendo vontade de poder, a vida possui uma necessidade intrínseca de se
expandir, aumentar sua força: “uma criatura viva quer antes de tudo dar
vazão à sua força – a própria vida é vontade de poder” (Além do bem e do
mal, §13). Ou seja, a vida enquanto “vontade de poder encarnada, quererá
crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio” (Além do bem e do
mal, §259). Sendo assim, o critério de avaliação da vida se pautará por esta
sua necessidade intrínseca: é bom o que favorece a sua expansão e mau o
que a interdita. A estes dois modos básicos de ser do vivente, correspondem
dois modos de interpretar a existência: nobre e escravo, uma moral de
senhores e uma moral de escravos. Nietzsche, portanto, faz uma diferenciação
dos homens em dois tipos: o nobre, afirmador da vida, o que quer expandi-
la, e o escravo, que quer conservá-la. Não se tratam, no entanto, de dois
tipos que se excluem reciprocamente, mas antes de estilos de vida, ou de
formas de disposição das forças do corpo que co-habitam inclusive em um
mesmo homem, em um mesmo corpo. De forma semelhante à Spinoza,
Nietzsche compreende que não se podem constatar estas forças do corpo,
ou observá-las, mas que podemos concebê-las. No esforço de descrever
sua forma de conceber a atividade da vontade de poder, o termo afeto
parece ocupar lugar semântico indispensável para Nietzsche. Na busca por
uma terminologia que melhor expressasse seu entendimento da atividade
corporal, Nietzsche elabora um universo semântico em que os termos instinto
(instinkt), pulsão (trieb) e afeto (affekt) são os mais recorrentes em toda a
sua obra e desempenham um papel fundamental para a compreensão dos

110
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

procedimentos filosóficos engendrados em sua filosofia. No entanto, embora


estes sejam os termos mais ecorrentes, é notável a preferência do filósofo
por este último: afeto. Ao que parece, Nietzsche percebia neste termo
uma melhor expressão da característica fundamental da atividade das instâncias
do corpo: a de afetar e ser afetada nos complexos processos de formação
de domínio, sendo por isto o termo que melhor expressaria a noção de
vontade de poder. Propomos aqui a um estudo das relações que podem
aproximar as noções de tipos de vida em Nietzsche e afetividade em Spinoza.

Rodrigo Siqueira-Batista / Professor PhD Ciências IFRJ e UNIFESO /


rsiqueirabatista@terra.com.br
Paulo César Rosenthal Fernandes / Graduando Medicina UNIFESO /
paulocrf@hotmail.com
Maria Lúcia M. Smolka / Mestranda Ensino de Ciências IFRJ e UNIFESO /
smolkam@uol.com.br.
Mariana Beatriz Arcuri / Professora PhD Ciências UNIFESO /
marianaarcuri@yahoo.com.br

Nietzsche e a Psicanálise: por uma autonomia menor


Prolegômenos: A argumentação ética e bioética contemporânea
tem se alicerçado, em grande medida, no princípio de respeito à autonomia
da pessoa – herança da tradição kantiana –, constatação que ganha especial
relevância no âmbito das profissões da área da saúde. A presente comunicação
tem por escopo investigar os limites do conceito autonomia, através do
seguinte percurso: (1) o nascimento nas tradições grega e cristã, (2) a
maturidade com a filosofia moral kantiana, e (3) a senescência com a crítica
de Nietzsche e Freud, nos séculos XIX e XX. A questão: A aplicação definitiva
do conceito de autonomia moral ao indivíduo, ganha sua expressão máxima
na formulação moral sistemática de Kant, para quem um ato genuinamente
moral, somente pode ser realizado por um ser racional e autenticamente
autônomo: “A moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da
vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio das suas máximas.
A ação que possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a
que com ela não concorde é proibida.” Desta feita, torna-se evidente que a
autonomia constitui-se no princípio supremo da moralidade, contrapondo-
se à heteronomia.
A influência kantiana no século XX pressente-se em diferentes
domínios do pensamento, mormente na ética; de fato, boa parte da reflexão
moral nos últimos anos – coincidente com o advento da bioética –, tem se
alicerçado em um conceito (prima facie) de respeito à autonomia individual,
como aquele formulado no âmago do principialismo, considerando-se o
indivíduo autônomo aquele que “age livremente de acordo com um plano
escolhido por ele mesmo, da mesma forma que um governo independente
111
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

administra seu território e define suas políticas”. Entretanto, a despeito de


sua eficácia teórica, díspares aporias têm sido levantadas – ato contínuo aos
movimentos de análise rigorosa do conceito de autonomia –, sendo possível
colocá-lo em xeque a partir de diferentes perspectivas, com destaque à
filosofia nietzschiana e à psicanálise freudiana. A subversão da ética kantiana
elaborada por Nietzsche, diz respeito a uma genuína desconstrução dos
pressupostos racionalistas – especialmente na Genealogia da Moral e em
Além do Bem e do Mal – na esteira de sua contundente crítica à metafísica
clássica. No primeiro ensaio, o filósofo tenta “desvendar” a gênese das
concepções éticas tradicionais, denunciando a “moral do rebanho”, fraca,
impotente e ressentida. Na segunda obra, busca a transmutação de todos
os valores, demolindo, a golpes de martelo, o pífio maniqueísmo da cultura
ocidental – o bem versus o mal. Contrapondo-se a isto, são erigidas a
vontade, a criatividade e o sentimento estético como genuínas afirmações
da vida. Nietzsche também procura superar a idéia de boa vontade,
demonstrando que a ela subjaz a vontade de poder e o ressentimento.
A despeito da crítica nietzschiana, é a psicanálise de Freud que
descentrará, definitivamente, o sujeito racional kantiano de seu lugar
privilegiado para o julgamento/ação moral. O ponto de partida para a
compreensão desta assertiva é o reconhecimento da centralidade do
inconsciente na teoria psicanalítica. A descrição do inconsciente pode ser
erigida à linha de força desta descentralização, na medida em que expõe,
de forma virtualmente incontestável, o quão limitada é a concepção que
entende os processos psíquicos apenas nos seus aspectos conscientes. De
fato, partindo de sua compreensão de que a distinção entre consciente e
inconsciente é a matriz da psicanálise, Freud contesta a autotransparência
da razão, explicitando que as causas últimas dos atos humanos estão
relacionadas à libido. Ademais, este comentário ressalta um aspecto
significativo da concepção de sujeito freudiano, que é a sua clivagem em
consciente e inconsciente; ou seja, trata-se de uma subjetividade cindida e
instituída por duas sintaxes distintas. A concepção freudiana de inconsciente
se articula, de certo modo, ao ideário determinista, o que traz profundas
implicações nas operações conscientes: “os acontecimentos psíquicos são
determinados. Não há nada arbitrário neles. De modo bastante geral, pode-
se demonstrar que se um elemento é deixado indeterminado por um certo
encadeamento de pensamentos, sua determinação é imediatamente
efetuada por um outro.” Tal determinação psíquica é incompatível com a
autonomia iluminista, na medida em que o inconsciente dita as preferências
e opções aparentemente livres que se estabelecem como “suposto” produto
da atividade consciente, a ponto de ser possível dizer que “Freud coloca
por terra o livre arbítrio”. O panorama estabelecido a partir das críticas
formuladas por Nietzsche e Freud alteraram, radicalmente, o ideário, até
então vigente, de um sujeito capaz de pensar e a agir motivado por uma
razão albergadora de idéias claras e distintas e/ou capaz de se constituir

112
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

como um verdadeiro tribunal, no qual são julgados, de forma autônoma e


imparcial, os diferentes aspectos relativos ao conhecimento e à moral. A
autonomia, nestes termos, jamais poderá ser a mesma, acenando-se, enfim,
para a possibilidade de pensá-la enquanto autonomia menor.

MESA MANHÃ 8 (3ª feira, dia 29/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: João Evangelista Neto (USP)

André Luiz Bentes / Mestrando Filosofia PUC-Rio / andrebentes@gmail.com

A individuação por uma óptica estética

A questão referente à individuação é motivo de investigação


recorrente para uma importante parte da História da Filosofia, aparecendo
amplamente, pela primeira vez, em Aristóteles como “princípio de distinção
numérica” (SUAREZ, F. Disputaciones Metafísicas. Volume I. Tradução: S. R.
Romeo, S. C. Sánchez e A. P. Zánon, Madrid: Editorial Gredos, 1960, p.
604). Tal questão é abordada com entusiasmo em O Nascimento da Tragédia,
no qual representa o princípio de atualização da aparência, ou seja, o princípio
constituinte de tudo aquilo que se apresente imediatamente como imagem,
conforme pretendemos demonstrar.
Nietzsche desenvolve em sua primeira obra um estudo sobre os
impulsos artísticos da natureza, sob o ponto de vista grego, ou seja, a partir
do contraste entre os elementos estéticos: apolíneo e dionisíaco. Tal contraste
consiste em características atribuídas a dois deuses gregos, onde Apolo,
deus da luz, do sonho e da medida, é apresentado como responsável pelo
principium individuationis (princípio de individuação), que viabiliza a manifestação
das figuras individuais, a partir da singularidade oriunda da noção de espaço e
tempo; e Dionísio, deus da arte não figurada, da embriaguez e da música,
características promovedoras da fragmentação da individualidade e que
viabilizam o retorno ao “Uno-primordial” [Ur-einen], ou seja, à essência de
todas as coisas. A partir daí, Nietzsche pensa então a tragédia grega como
um raro momento da História onde houve total harmonia entre essas duas
forças artísticas da natureza: o dionisíaco, pela música trazida pelo coro e a
dor do herói presente no palco, responsável pelo aniquilamento da
individualidade; o apolíneo, pelas imagens de máscaras e cenários,
reconfortando os espectadores a partir do elemento figurativo, devido ao
seu caráter individualizante.
Ainda sob enorme influência schopenhaueriana, Nietzsche evidencia
uma metafísica de artista imbuída do espírito de O Mundo como Vontade e
Representação. No entanto a dualidade aqui se refere, por um lado, ao Uno-
primordial, o “uno vivente” [eine lebendige], este princípio de vida, onde
113
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

todas as coisas se unem em uma espécie de raiz, sendo a música sua cópia
mais fiel; e pelo outro, ao mundo de aparências, sim, de representação,
onde se desenrolam os fenômenos, por onde a vida se manifesta repartida
em individualidades. A palavra aparece, nesse momento, como um artifício
de proteção do indivíduo por ter a capacidade de unir música e imagem: “a
música, exteriorizando as imagens, e as palavras, transpondo essas imagens
em sons” (DIAS, R. M. Nietzsche e a Música. São Paulo: Unijuí, 2005, p. 12).
A música dionisíaca é apresentada como o principal elemento estético
responsável pela dissolução da individualidade. Para Nietzsche, é justamente
a partir do canto ditirâmbico, ou seja, da música, que nasce a Tragédia.
Inicialmente como louvor ao deus da fertilidade, onde em procissão seguiam
mulheres e homens como sátiros, munidos de suas flautas, em êxtase coletivo
provocado pela música. Somente os que faziam parte desse cortejo poderiam
observar tal cena através de olhos destituídos de individualidade, imersos no
Uno-primordial. Aquelas pessoas não possuíam mais identidade com o que
julgavam ser no seu cotidiano, suas personalidades eram agora destituídas
de suas lembranças de vida, sendo eles próprios, nesse momento, os seres
mágicos da natureza, possuídos pela melodia e harmonia, eram a pura
expressão da vida, eram a manifestação do deus Dionísio, inseridos na “única
individualidade verdadeiramente existente e eterna, que jaz no âmago de
todas as coisas” (Ibidem, p. 47).
A individuação concebida a partir de uma ótica estética, ou seja,
compreendida a partir de seus traços aparentes, perceptíveis a um observador,
coloca em segundo plano a discussão metafísica acerca dessa questão. Ao
referir-se à restituição da individualidade do extático dionisíaco, enquanto
promovida por um caráter imagético, próprio do estado apolíneo, Nietzsche
nos leva a crer que o princípio de individuação seja correlato a um princípio
de atualização da aparência, por onde, a partir de uma imersão espaço-
temporal, caracterizada pela percepção de um objeto, pode o indivíduo
reconhecer-se como tal. Parece-nos que, para Nietzsche, o princípio de
individuação se apresenta por meio de formas delimitadas, sendo isso o que
resulta da conjunção entre tempo e espaço, que talvez assuma aqui o caráter
de precondição para o princípio de individuação.

Carlos Mario Alvarez / Doutorando Letras PUC-Rio /


carlosmario@terra.com.br

Acordes nietzschianos: notas sobre um filósofo-artista


O processo de construção do pensamento de Nietzsche tem no ato
de composição e improviso ao piano um de seus mais fortes laços de
sustentação e impulsão. Sua filosofia ganhou força a partir de sua música, e
sua escrita sempre transbordou musicalidade. Afirmamos que Nietzsche não
só deixou um importante legado musical, mas também que, pela maneira
coerente com que viveu e pensou, exerceu de forma plena aquilo que

114
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

designou como experiência do filósofo-artista: “O filósofo-artista. Concepção


superior de arte” (NIETZSCHE, F. La volonté de puissance, Vol II, p. 311.
Paris, Gallimard, 1995).
O piano funciona como uma extensão de seu corpo. É o instrumento
onde ele encontra ressonância para que sua inesgotável vontade de afirmação
de si e da vida possam se afinar com os elementos do mundo ao redor. Sua
capacidade de encontrar expressividade diante das teclas é estupenda. O
piano, de forma decisiva, fez parte substancial de sua educação. Muito cedo
ele exercitou aí suas afecções de forma inesgotável criando um dispositivo
que se repetiria em sua vida até o fim. Sua aspiração, inicialmente, era a de
se tornar um grande compositor e intérprete. Sem sombra de dúvida podemos
dizer que Nietzsche levou às últimas conseqüências esse desejo (ou que foi
levado por esse desejo ao extremo de suas dobras) e que, com ele, triunfou
de uma maneira muito particular. O fato de sua obra musical não ter o
reconhecimento e o estatuto de algo significativo entre os ambientes e
círculos musicais não a torna algo desprovido de importância e magnitude
dentro de uma concepção de arte formulada pelo próprio Nietzsche (a do
filósofo-artista).
Em um fragmento de La Volonté de Puissance sua afirmação não
deixa dúvidas quanto à convicção que orienta seu pensamento: “A crença
no corpo é mais fundamental do que a crença à alma” (Ibidem, Vol I, p.
301).
Se levarmos às últimas conseqüências o sentido que Nietzsche dá ao
corpo – à corporeidade e suas produções –, teremos condições de dizer
que, de fato, é com isto que se pode aceder à experiência da transvaloração.
O corpo – que canta, que dança e que sofre – atravessado pelos ritmos e
síncopes que o invadem, somente ele é capaz de emitir sons, ruídos e signos
que se desvencilhem dos ditames morais. A transvaloração que vive Nietzsche
é a transvaloração do sentido pela via da experiência da música. Se podemos
falar de uma estética em Nietzsche, ela deve ser tomada a partir da
consagração do que é dissonante, aberto, polissêmico e errante.
Por essas características sua música pode parecer extremamente
difícil de ser capturada pelos sistemas signicos que prevalecem nos ambientes
musicais. Dizer que ela é dissonante ainda é dizer pouco. A música de Nietzsche
resvala no próprio inaudito, visa uma espécie de continuidade que se desfaz
a cada movimento. Não é apenas dissonante, mas também errática e
experimental. Não é de se espantar que seja considerada risível por aqueles
que pensam a música pelas vias dominantes. A música de Nietzsche é primitiva
e quer soar assim. Ele conhecia profundamente teoria musical e o próprio
instrumento. Não se pode dizer que lhe faltava algum tipo de senso ou
percepção do que seria o aceitável, mas, ao contrário, que sua potência
criativa era afinada com a inexistência do belo à priori e que se queria soar a
partir de si própria. A música de Nietzsche era a condição para o seu agir
filosófico.

115
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Nietzsche compõe como pensa e pensa compondo. Seu ouvido


musical, desenvolvido desde sempre, é o mesmo que escuta e decodifica
suas impressões tanto no campo da filosofia quanto no da política. Seu
ouvido, poderíamos arriscar dizer, é uma produção de seu corpo e,
metonimicamente, assume as vias de um órgão independente. Se levarmos
esta afirmação ao extremo, chegamos a dizer que em Nietzsche, a
musicalidade é a linguagem princeps e ao mesmo tempo a grande produtora
de sentido. Filosofar e fazer música, para ele, se tornam práticas que se
imbricam e se fundem em um exercício estético singular. A singularidade,
aqui, encontra seu sentido no fato de que a música nietzschiana é
absolutamente autoral e intransferível.
O trabalho terá os seguintes objetivos: 1) Mostrar como a
experiência nietzschiana ao piano é um dos pólos de potência de seu pensar
e agir filosófico. Neste sentido desenvolveremos o que ele indicou sob o
signo de “Filósofo-artista”; 2) Apresentar alguns dos aspectos que
caracterizam a música de Nietzsche (dissonância, prenúncios de atonalismo
e tensão) mostrando que eles constituem uma forma de composição não
só original mas também consonante com sua obra filosófica. Neste sentido,
afirmaremos sua música como potência de transvaloração; 3) Analisaremos
biográfica e musicalmente a bela e polêmica composição Nachklang einer
Sylvesternacht escrita em sua última versão (1871) para piano a quatro
mãos, elogiada por Franz Liszt, Gustav Krug e o próprio Wagner.

Joana Quiroga de Figueiredo Côrtes / Mestranda UFES Filosofia /


joanaqfc@ig.com.br

Nietzsche e linguagem: metafísica ou arte?


A linguagem não é propriamente um tema central do filósofo,
contudo forma parte incontornável de seu verdadeiro projeto, a saber, a
superação da metafísica, já que, para ele, de um modo geral, a linguagem
é o veículo de disseminação dos valores decadentes – e, consequentemente,
de viabilização do niilismo – não só porque os divulga, mas também por sua
estrutura, que formata o pensamento para reafirmá-los. Em outras palavras,
problema da linguagem se estabelece quando ela dissimula sua ficcionalidade
e cunha o conceito, que é a pretensa verdade objetiva e fixa que a linguagem
serve para comunicar. Ele diz: “pomos uma palavra onde começa a nossa
incerteza – onde não podemos ver adiante, por exemplo, a palavra “eu”, a
palavra ‘fazer’, a palavra ‘sofrer’: - tais são, talvez, linhas do horizonte do
nosso conhecimento, mas não verdades” (NIETZSCHE, F. A vontade de
poder. Trad. Marcos Sinésio Pereira Fernandes, Francisco José Dias de Moraes.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, §482).
Ao não se ser capaz de individualizar os acontecimentos (e, em
certo sentido, nem si mesmo, pois o homem vive em rebanho), cria-se
estruturas lógicas, a fim de reduzir os fenômenos a casos idênticos,

116
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

protegendo-se psicológica e socialmente: as relações de causa e efeito, as


leis, classificações e equivalências são formas de defender o homem da
angústia diante do informado, do caos, das pulsões, e também garantem,
ao reduzirem os casos a unidades de sentido intercambiáveis e homogêneas,
causando-lhe a impressão segurança. Tais identidades proporcionadas pela
estrutura da linguagem são entendidas como substancialidades,
identificando-se com o próprio ser das coisas: a gramática induz à crença de
seu valor ontológico, ou do equivalente real de suas regras, ocultando, com
isso o sujeito afirmante desta ficção. Para Nietzsche, a noção de substância
deriva da do sujeito e não o contrário, pois quando se realiza uma ação –
que é pensada pelo sujeito, logo determinada por ele – pressupõe-se que
haja algo por trás dessa ação, que vai sofrê-la ou causá-la. Nisso se oculta a
vontade do sujeito de ser causa em si. E isso escapa às análises de qualquer
teoria do conhecimento, que já tem como pressupostas o formato sujeito,
verbo e predicado: na interpretação de Nietzsche, Descartes, mesmo
querendo duvidar de tudo, não foi capaz de por isso em questão, o “eu
penso” como determinante da ação expressa pelo verbo.
Enfim, como se pode perceber, para Nietzsche a linguagem é
geradora de “um erro monstruoso”, que é o pessimismo tornado dominante
pelo homem ressentido, e propagado pelas mais distintas esferas. Dentro
deste contexto valeria, então, a pergunta: o que fazer diante da linguagem?
Para Nietzsche, conforme sua obra O Nascimento da Tragédia, a linguagem
tem suas origens na tradução simbólica e apolínea, da música dionisíaca,
quer dizer, a linguagem aponta, em última instância, para a “melodia originária
dos afetos”, não enquanto fundamento absoluto, mas como um eco das
sensações de prazer e desprazer que compõem o querer primitivo, que
está antes de toda metáfora. Isso formará o fundo tonal da linguagem, a
musicalidade única em cada língua, mas que é índice do aspecto universal
entre elas, um fundo geral compreensivo, a saber, que toda língua se dá a
partir da vontade de poder, na forma aqui do ímpeto interpretativo.
Neste sentido, uma vez que a superação da metafísica só pode ser
devidamente realizada quando se remonta sua origem a fim de encontrar
seu caráter meramente simbólico como sintoma e símbolo de uma
enfermidade, torna-se possível tomar as medidas necessárias para não se
incorrer em outros idealismos, ou valorações moralizantes, tão niilista quanto
aqueles a serem superados, quer dizer, deve-se pensar como não apenas
trocar a metafísica pautada pela inteligibilidade por, por exemplo, uma
“aparência”, que acabaria por cumprir a mesma função daquela. Assim, ao
se realizar uma crítica sobre a linguagem, encontra-se nela uma capacidade
reconstrutiva, posto que está fundada em uma experiência artística anterior
e, portanto, dissonante com os projetos da metafísica.

117
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Ricardo Bazilio Dalla Vecchia / Doutorando Filosofia UNICAMP /


ricardobdv@claretiano.edu.br

Metafísica de Artista como Fio de Ariadne Resumo


Esta comunicação tem como escopo discutir aspectos
interpretativos pontuais da obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-
1900) e trazer à discussão uma hipótese gerada a partir do confronto de
alguns textos. É prática comum a quase toda a fortuna crítica especializada
no pensamento de Nietzsche se servir da divisão da obra em três períodos,
qual sejam, o período da juventude (1870 a 1876), o período intermediário
(1876 a 1882), e o período da maturidade (1882 a 1889). De fato, esta
periodização da obra auxiliou e ainda auxilia em muito o trabalho hermenêutico
da crítica, uma vez que estabelece uma demarcação mais rigorosa e precisa
em relação aos temas, problemas e interlocutores. O problema é que esta
periodização também acabou por fomentar, a nosso ver, um vício
interpretativo de se considerar os períodos num processo de superação, o
que levou alguns dos textos e teses, sobretudo do período da juventude,
a serem considerados como “superados”, quando não simplesmente
negligenciados, limitando o trabalho exegético e interpretativo à produção
do período da maturidade. Ocorre que, com a expansão da pesquisa
especializada nas últimas décadas, possibilitada por trabalhos como a vasta
e erudita edição de Colli e Montinari, muitos destes textos antes
desconsiderados, e também os Nachlass e as cartas passaram a compor
efetivamente o itinerário das pesquisas especializadas, num verdadeiro
redescobrimento da obra nietzscheana. Com isso, análises mais abrangentes
começaram a ser empreendidas, de forma a inaugurar novos precedentes
para a interpretação dos textos, o que permitiu perceber que muitos dos
grandes temas da filosofia do velho Nietzsche já possuíam algumas
formulações, ainda que em estado embrionário, desde os primeiros anos do
período da juventude, o que faz da periodização mais uma estratégia
hermenêutica do que um conteúdo de fato, algo que ao mesmo tempo
enfraquece a idéia de superação de um período por outro, restitui o valor
dos textos e teses iniciais, e permite o surgimento de análises que, como a
nossa, se propõem a estabelecer fios de continuidade na obra, malgrado a
variedade de problemas, estilos, interlocutores etc. Ou seja, se mediante
uma investigação mais global da obra é possível postular que não há uma
ruptura de fato no seu interior, mas um grande processo contínuo de
desenvolvimento, torna-se lícito defender a hipótese da existência de fios
condutores, ou como preferimos Fio de Ariadne, que perpassariam toda a
obra, ainda que, como gosta Nietzsche, metamorfoseando-se. Contribuem
significativamente para esta premissa alguns textos de caráter
autobiobibliográfico como Ecce Homo, porém, não nos deteremos nele,
senão estrategicamente em outros textos de natureza símile, conhecidos
como os “Prefácios de 1886”. Esses prefácios foram preparados pelo filósofo,

118
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

no período da maturidade (1886), por ocasião do lançamento da segunda


edição de algumas de suas obras, e são de um valor inestimável para a
compreensão não só das obras prefaciadas, como também de todo o
programa filosófico nietzscheano, pois, ao lado de Ecce Homo, eles
constituem uma verdadeira autobiografia filosófica de Nietzsche, já que sua
proposta consiste em lançar um “olhar mais velho, cem vezes mais exigente”
sobre as obras anteriores (portanto, do período da juventude e do período
intermediário), capaz de revelar de forma fidedigna as intenções que o
nortearam, e, o que mais nos interessa, capaz de testemunhar sobre a
continuidade entre os textos. Numa análise concentrada destes prefácios
é possível perceber implícita e explicitamente a existência deste fio condutor,
pois em vários momentos Nietzsche advoga a continuidade entre certos
temas e problemas, dos quais nos interessa um em específico. Precisamente
no prefácio intitulado Tentativa de Autocrítica, redigido para prefaciar sua
primeira obra publicada na juventude, Nietzsche confessa ter inaugurado já
naquela época um “novo problema”, “talvez o problema da ciência mesma”,
e que frente a ele não se encontrava, ainda que dezesseis anos depois, de
“maneira alguma mais frio e estranho”. Ora, como sabemos, este problema
do qual fala Nietzsche é justamente a tese de Metafísica do Artista, que
inaugurou mediante sua proposta de “ver a ciência com a ótica do artista,
mas a arte, com a da vida”, procedimento típico, o “método”, de todo o
trabalho filosófico nietzscheano, que consiste, grosso modo, em estabelecer
perspectivas, “óticas”, e neste sentido inclui-se também a genealogia, para
a abordagem e investigação das problemáticas. Dito isto, nossa hipótese é
de que a tese juvenil de Metafísica do Artista, ainda que formulada no
período da juventude e considerada como superada pela fortuna crítica,
ainda permanece mesmo que metamorfoseada, enquanto método de
investigação, forma, ótica -– fio de Ariadne –, em toda a obra subseqüente,
possibilitando, inclusive, sua efetivação.

MESA MANHÃ 9 (4ª feira, dia 30/09, 09:00h-10:40h) Mediador:


Renato Bittencourt (UFRJ)

Daniel Santos da Silva / Doutorado Filosofia USP /


danidani_ss@yahoo.com.br

Relações de poder no contexto político de Espinosa e de


Nietzsche
Podemos vislumbrar uma gama de conceitos com os quais tanto
Espinosa como Nietzsche tiveram uma preocupação específica: inflexionar
o conceito para que ele ganhasse uma dimensão outra da que ele estava
acostumado a ter. Contudo, talvez o que mais tenha relevo, tendo em
vista a importância que a política assume nos dois casos, seja o conceito de

119
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

poder. E, simultaneamente a toda a discrepância que não poderia não existir


no trato com tal conceito, Espinosa e Nietzsche propõem algo de comum,
e isso é um ponto de força de ambas as filosofias, o que seja, que o poder
é algo constituinte do homem, e, principalmente, que não há nenhuma
determinação moral na sua efetivação. Politicamente, é preciso que
pensemos o poder em sua dinamicidade expressiva, seja na forma de uma
força atual de existência (conatus) ou na de uma vontade dominante,
porque é assim que se pode sair da transcendência sem deixar dela qualquer
vestígio, e pondo-se de frente contra algumas determinações que pretendem
um direcionamento ontológico no desejo, e, consequentemente, no poder.
Pretendemos, pois, explorar esse aspecto imanente e amoral presente nessas
filosofias do poder (no caso de Nietzsche analisando principalmente Aurora
e Genealogia da Moral), salientando o caráter inovador de ambos os
momentos de concepção. Abrimos mão de explorar uma possível influência
do espírito espinosano na letra de Nietzsche, por ser um assunto complexo
e incerto demais; queremos mesmo localizar a potência crítica desse conceito
do ponto de vista político, incluso aí toda uma crítica às pretensões teológicas
de verdade e de uso de poder, além de tentarmos pensar uma articulação
entre formação jurídica e poder, análise que difere em ambos (como não
poderia deixar de ser) mas que, ao pensar no conjunto, remete o poder a
dimensões bem terrenas, em outras palavras, procura compreender a
efetividade desse conceito a partir de relações, que no fim serão os reais
determinantes do fazer político e da organização sócio-jurídica tal como os
dois compreendiam. E assim, em ambos os autores há uma preocupação de
retirar e combater qualquer resquício de teleologia na formação social e
política e afirmar o poder como um jogo de relações, relações não só de um
indivíduo com outro, mas do próprio corpo com o que o cerca e consigo
mesmo, relações das paixões entre si (paixões ou sentimentos, trata-se de
algo que empurra o homem à ação), etc. Da perspectiva de uma tradição
do direito natural objetivo – e igualmente subjetivo –, é possível conceber
leis sociais (morais) antes mesmo da existência concreta de um corpo cívico,
arranjando o social conforme tais leis sempre com fundamento numa
transcendência real, seja na forma da transcendência da própria lei, seja na
transcendência da figura do soberano. Em vez disso, Espinosa e Nietzsche
articulam a formação – gênese – das leis civis a partir das relações compostas
por inúmeras forças que perpassam o homem no momento em que este
está em vida, ou seja, não há a mínima determinação extrínseca no agir
humano em busca de uma organização coletiva: há forças, paixões,
sentimentos, imitação afetiva, vontade de dominação, medo da morte e da
solidão, etc. E o que há de comum no tratamento dado a essa questão por
Espinosa e por Nietzsche é justamente esse apelo radical à imanência –
porque cremos poder articular as bases políticas de Nietzsche também no
plano da imanência -, ou seja, ao jogo de relações infinitas que produzem o
mundo e o “mundo humano” a cada momento como relações de poder em

120
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

múltiplas formas, sem finalidade e sem moral, sem mesmo nenhuma categoria
extrínseca que cumpra o papel de um fundamento incondicionado (nem
mesmo o conceito de substância cumpre esse papel) e que determine
necessariamente a gênese e a manutenção política.

João C. Galvão Jr. / Doutorando Ciência Política UFF / jgj@nplyriana.adv.br

(Des)sacralização em Spinoza e Schmitt


Pretendemos nesta comunicação estabelecer um diálogo entre
Carl Schmitt e Spinoza. Este último, como todos sabemos, autor da obra
Tratado Teológico-Político, aquele, já em pleno século XX, na sacralização
da política em sua Teologia Política.
Se verdadeiramente existe neste Livro de 1922 uma
anatematização secreta, teológica, moralista, que tem sido objeto de tantas
especulações, não está dedicado a algo irremediavelmente perdido. Esta
“Teologia Política” renova o conceito de Poder Soberano em seus níveis de
significado contra-revolucionários: a “multidão” seria um navio carregado de
uma tripulação de marinheiros inferiores, recrutada à força, que berra e
dança até que a ira do Deus cristão lance ao mar a gentalha rebelde, para
que, novamente, reine o silêncio. Ou seja: o Estado se afirma como poder
soberano somente ao oprimir a potência revolucionária. Num quadro
mitológico, um dos monstros, o “Estado” Leviatã, mantém sob controle
constante o outro monstro, o Behemoth, a “multidão revolucionária”; o
Leviatã seria o único corretivo para o Behemoth. O totalitarismo seria o
opressor do caos incontrolável inerente a esta “gentalha”, ou de maneira
mais drástica, em nossas “democracias”: indisciplina mais força policial. Na
condição da ordem do poder soberano, todos os “cidadãos” estariam seguros
em sua existência física: nela reina a paz e a segurança. Essa é uma definição
bastante conhecida de polícia enquanto violência extra-legal – violência
mítica. O Estado moderno encarnado no poder soberano e a polícia moderna
passaram a existir simultaneamente e a instituição mais vital do “Estado” ou
“Leviatã schmittiano” seguro seria a polícia. Esta espécie teológica do “Leviatã
schmittiano” revela o mais forte poder, cuja força onipotente mantém a
multidão spinozista sob controle, transformando-as em massas. Tudo isso
se passa num sistema de representação do Soberano – Pai onipotente;
que já demonstra um delírio do poder – sentimento de onipotência numa
forma universal, espaço do pensamento da imagem – identidade. Em
contraste com a interpretação spinozista da desteologização da política,
nesta leitura schmittiana, a teologia política da teoria do Estado decisionista
aflora com maior intensidade a luz deste Livro principal em nossa modernidade,
revelando conceitos teológicos escondidos na filosofia política, conduzindo
ao centro político do pensamento de Carl Schmitt e seu combate à potência
da multidão, consequentemente sua sentença de maldição. Quem seria
121
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

esse Deus onipotente que traz paz e segurança as massas atormentadas


pela angústia e pelo medo, que transforma lobos em cidadãos e com esse
milagre (exceção) prova ser um Deus imortal?
Como resultado, boa parte do pensamento de Schmitt ataca o liberalismo
individualista moderno, proferindo sua sentença de excomunhão. Schmitt
empenhado em seu combate teológico contra Spinoza. Neste sentido,
Spinoza teria sido o primeiro liberal em política a proclamar a autonomia do
espaço interior da subjetividade, obviamente angustiado com a “potência”,
que na “segunda natureza” em excesso, poderia transformar-se na barbárie
dos atos fascistas. Para Schmitt, no grande continuum histórico até o século
do “constitucionalismo”, Spinoza teria feito seu trabalho como um pensador
judeu, ou seja, ele contribuiu para a destruição e castração de um Leviatã
que havia sido cheio de vitalidade. O que Carl Schmitt enuncia acerca do
seu Leviatã e que forma ele assume em nossa modernidade no combate
asfixiante da “multidão”? Para o maior representante deste poder soberano,
que a ferocidade rebelde da multidão deve ser vencida com a ajuda da
exceção, razão instrumentalizada na técnica (teologia) é auto-evidente até
mesmo nos dias de hoje para aqueles que aderem ao pensamento da
“multidão”. Na concepção schmittiana, sua “máquina gigante” resultaria em
um mecanismo de comando (decisão) tecnicamente (teologicamente)
onipotente, funcionando sem resistência; seu poder soberano atingiria com
isso o ponto mais elevado, sendo a representação maior de Deus na Terra.
Contra a violência pura (Benjamin) da multidão spinozista o simbolismo
enigmático do “Leviatã schmittiano”; influência do mito político como uma
força histórica arbitrária no extermínio da multidão.

João Paulo Simões Vilas Bôas / Mestrando Filosofia UFPR /


jpsvboas@yahoo.com.br

Considerações sobre a Grande Política em Nietzsche


A trajetória das leituras políticas de Nietzsche ao longo do século
XX esteve imersa em polêmicas acirradas desde as primeiras repercussões
de sua obra. Não bastasse o fantasma da ingrata apropriação da sua obra
por parte da ideologia nacional-socialista, diversos foram ainda os leitores de
Nietsche que entenderam-no como um anarquista radical, como um pensador
a-político, ou ainda como um defensor nostálgico de uma espécie de
aristocratismo tirânico de inspiração maquiavélica.
Contudo, julgamos que tais leituras são bastante problemáticas,
pois se deixam arrebatar pelo tom belicista presente nos escritos do filósofo
alemão e desconsideram um aspecto que julgamos fundamental para uma
adequada compreensão desta expressão: o de que o discurso da Grande
Política estrutura-se como parte indissociável da crítica genealógica da
modernidade que Nietzsche busca levar a cabo, a qual tem por objetivo

122
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

não apenas o desmascaramento dos ideais morais que se ocultam por detrás
dos discursos “humanitários” de nosso tempo, mas que também se arroga
a tarefa de superar o niilismo, o qual é considerado pelo pensador alemão
como o “autêntico problema trágico do nosso mundo moderno”.
Tomando em diálogo algumas dentre as críticas desenvolvidas por
Ansell-Pearson como exemplo de um tipo de leitura que aparentemente
desconsidera esta dimensão moral do discurso da Grande Política,
buscaremos em nosso trabalho mostrar que os elogios de Nietzsche ao
aristocratismo e suas críticas às principais formas políticas contemporâneas
(democracia, socialismo e, de modo menos explícito, mas não menos
significativo, também ao anarquismo) extrapolam o âmbito de uma mera
discussão acerca das práticas e objetivos políticos de seu tempo e remetem
antes às origens e filiações morais da política contemporânea.
A partir de uma compreensão da modernidade ocidental como um
tempo marcado pelo fenômeno do niilismo, objetivamos mostrar como
Nietzsche pode afirmar que a crença na política enquanto instância
supostamente capaz de garantir o bem-estar dos homens nada mais seria
do que uma tentativa de substituir o antigo fundamento do Deus
transcendente por um ideal laicizado, que em nada se diferencia dos princípios
da moralidade cristã dos homens de rebanho, e que, portanto, apenas
reproduz com outros termos a condição de mediocridade dos últimos
homens, dependentes de algo exterior que seria capaz de garantir
segurança e sentido às suas existências, bem como uma justificativa para o
sofrimento.
Para isso, faz-se necessária a distinção entre dois sentidos principais
em que a expressão Grande Política aparece nos escritos do filósofo: o
primeiro deles, tendo sua primeira aparição ainda à época de Humano,
demasiado humano, é empregado por Nietzsche no sentido de crítica ao
modelo predominante de política do ocidente, quando o pensador se refere
de maneira irônica às práticas políticas de sua época chamando-as de “Grande
Política”, quando na verdade objetiva significar justamente o contrário.
Contudo, para além de uma expressão meramente irônica, a Grande
Política também quer significar o contradiscurso nietzscheano que tem por
objetivo instaurar um espaço de conflito entre perspectivas nos moldes do
agon grego. Vale ressaltar que tal discurso não tem em vista provocar a
derrocada definitiva da moralidade cristã, mas ao contrário, acolhe-a enquanto
uma perspectiva necessária para o estabelecimento de um “saudável
combate”. Nesse sentido, acreditamos ser possível afirmar que o objetivo
principal de Nietzsche com o projeto da Grande Política seria antes o de
inserir o germe da perturbação em meio à passividade bovina do rebanho
moderno, de modo a desestabilizar a crença na unilateralidade da perspectiva
moral cristã, mostrando que aquilo que até então se julgava como a moral
por excelência na verdade nunca deixou de ser apenas uma moral possível,

123
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

deixando dessa forma um espaço aberto para o surgimento de novas formas


de valoração e novos “filósofos do futuro”.

Thiago Fortes Ribas / Mestrando Filosofia UFPR / thiagoribas@uol.com.br

Foucault e a leitura política da reversão do platonismo em


Nietzsche
Referência para o pensamento que busca romper com a estabilidade
do mesmo, Nietzsche será uma referência do pensamento contemporâneo
em torno a uma nova política. Para ele, a crise niilista do presente está
diretamente relacionada com o modo como a tradição filosófica construiu
seus “valores supremos”. A tradição platônica tem como uma de suas
características principais a divisão entre mundo sensível e mundo supra-
sensível, o que pressupõe a diferenciação entre mundo aparente e mundo
verdadeiro e, assim, o estabelecimento de uma duradoura forma de se
relacionar com a verdade, frequentemente tomada como necessária. Na
contracorrente do platonismo segue a perspectiva genealógica, em virtude
da qual se compreende que foi a partir de determinado momento da história
que o discurso passou a ter uma referência responsável pela garantia de
veracidade, ou seja, passou a ser medido em sua relação interna com o
Ideal, tornando-se imparcial para ser verdadeiro e sem relações com o poder
por ser necessário. Nesse contexto, somente o filósofo seria capaz de
enxergar a verdade por ter capacidade e posicionamento ‘corretos’ do seu
olhar. Podemos ver na diferenciação platônica entre o filósofo e o sofista
que tal discurso verdadeiro possuía seu contrário, isto é, a invenção que
engana para obter algo em troca. O impostor cria ilusões aproveitando-se
da incapacidade e do mau posicionamento do olhar dos outros. Ainda nesta
caracterização, aqueles que enganam são impuros, ambiciosos, e, por
oposição, os filósofos são ascéticos, controlados e pregam tal forma de
vida. Instinto e verdade se opõem desde Sócrates. Este ateniense, segundo
Nietzsche, dominava todos os seus instintos fazendo da razão uma tirana. A
razão a todo custo foi o remédio oferecido por Sócrates para o domínio dos
instintos e a tradição filosófica o acatou sem questioná-lo. Pondo em xeque
um dos pressupostos mais comuns da modernidade filosófica (especialmente
em Hegel), Nietzsche enxerga na figura de Sócrates o início da decadência
ao invés do primeiro raio de luz da manhã filosófica. Afirmando que o modo
de pensar platônico não é uma necessidade, mas somente uma perspectiva
que precisa negar todas as outras, e contestando os poderes da razão,
Nietzsche abre caminho para que a filosofia contemporânea pense de maneira
radicalmente nova as relações entre filosofia e ação política. Assim, para
aqueles que pensam com Nietzsche, como Foucault e Deleuze, não se
separam mais a verdade e o poder, e, agora, as teorias filosóficas poderão
ser concebidas como ferramentas de luta, não mais sendo medidas por sua
veracidade. Enquanto Nietzsche oferece um outro critério no lugar da
124
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

veracidade, o qual será a “afirmação da vida”, Foucault se utilizará da teoria


nietzschiana para pensar politicamente sem a preocupação de estabelecer
critérios gerais, apropriando-se principalmente de sua crítica ao
conhecimento. Sem a oposição dialética entre aparência e essência, o
conhecimento troca de estatuto. Enquanto tinha uma origem, o
conhecimento caracterizava-se pela aproximação do objeto e pelo controle
dos instintos ao realizar esta aproximação: de outro lado, sem pressupor
uma origem ele é sempre uma imposição que se faz ao mundo, uma tentativa
de dominação que nada tem de desinteressada. A filosofia anterior a
Nietzsche não poderia aceitar esta impura procedência do conhecimento.
Nessa perspectiva, o filósofo, tal como concebido no platonismo, seria o
mais apto ao engano sobre a natureza da verdade, pois ele a buscaria numa
existência baseada no ascetismo (na ausência de instinto e perspectiva),
quando o conhecimento é sempre uma relação de luta, de poder. O jogo
de máscaras toma o lugar do mundo, o “em-si” perde seu espaço para os
valores, enfim, a percepção do objeto pelo sujeito dá lugar à interpretação
de interpretações. Percebe-se com o fim do âmbito supra-sensível uma
demanda nova na estruturação de valores, sendo que, para aqueles que
constroem as atuais interpretações, é necessário que estas se relacionem
com a verdade de uma nova forma. Na impossibilidade de conceder à verdade
aspectos como pureza e necessidade, nota-se a importância de se enfatizar
o caráter agonístico dessa forma de valoração no próprio ato da produção
de valores. Assim, para os “filósofos do futuro”, particularmente para Foucault
e Deleuze, impõe-se outro tipo de ascese: faz-se necessário para a
continuidade do pensar filosófico a não ostentação de avaliações universais,
ou seja, o discernimento de que seu discurso encontra-se sempre
estrategicamente posicionado, de que é somente uma perspectiva, e,
portanto, parcial. No pensamento atual é preciso que cada discurso saiba
que favorece uma visão de mundo específica, que luta a favor desta visão,
recusando a busca do bem comum. Com isso, o estatuto das interpretações
propostas pelos “filósofos do futuro” poderia ser definido, no contexto da
reversão do platonismo, com o termo “contra-discurso”.

MESA MANHÃ 10 (4ª feira, dia 30/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Pablo Azevedo (UFRJ)

Ana Luiza Saramago Stern / Doutoranda Direito PUC-Rio /


analuizasaramago@gmail.com

Coisas semelhantes a nós: subjetivação e singularidade na


filosofia de Spinoza
Nesse trabalho visamos analisar como a concepção spinozana acerca
do homem e de seu processo de subjetivação se distancia da matriz

125
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

individualista propugnada pelo pensamento moderno hegemônico. No século


XVII com Thomas Hobbes e John Locke, a modernidade hegemônica insiste
em discursos que fazem do homem um indivíduo que pré-existe ao social;
cuja natureza, constituição e direitos, mais do que antecedem, condicionam
sua inserção numa coletividade. Já Spinoza propõe uma outra concepção
acerca dessas coisas semelhantes a nós, uma outra concepção do nosso
processo de subjetivação, e nos permite pensar uma outra antropologia. Ao
destituir o homem de seu papel privilegiado de império dentro de um império,
Spinoza devolve-nos ao status de parte da natureza, insere nosso processo
de subjetivação na ordem dos encontros e relações com outras coisas
singulares, nas variações entre agir e padecer, na mecânica dos afetos.
No plano de imanência spinozano, todas as coisas singulares se igualam
como modos finitos da substância. Desde a coporea simplicíssima ao indivíduo
mais complexo, tudo o que existe é uma parte da mesma potência infinita
de Deus. No entanto, enquanto todas as coisas se igualam em partes da
Natureza, enquanto o conatus inscreve cada modo finito na luta pela
existência, cada indivíduo é uma singularidade. Uma singular relação de
composição entre partes constituintes individualiza, ao mesmo tempo em
que constitui cada indivíduo. No mesmo plano infinito do múltiplo simultâneo
da Natureza, algo determina a diferença, relações constituem e distinguem
as cores das singularidades.
Em Spinoza, o que nos dá a conhecer cada coisa singular é sua
potência atual, seu poder de afetar e ser afetado. Assim, no universo
conflituoso dos modos finitos, é a potência de agir ou padecer, as relações
de composição e decomposição, os encontros e os afetos, que determinam
a singularidade. O conhecimento adequado de cada coisa singular é o
conhecimento de sua interação com os outros modos finitos na Natureza, o
conhecimento de suas ações e passividades.
E assim também se definem as singularidades dessas coisas
semelhantes a nós. A mente humana só tem consciência de seu corpo e de
si mesma pelas idéias das afecções do corpo (Ética, II, prop. 23). É pelos
encontros com outros corpos, com outras coisas, com outros homens - e
pelas relações e afetos que os acompanham - que a mente constitui a
consciência de sua individualidade. Somente pelo reconhecimento daquilo
que aumenta ou diminui nossa potência de agir; pela experiência afetiva de
nossos desejos, alegrias e tristezas; pelas associações da memória e do hábito,
é que constituímos nossa individualidade. E assim, o processo de subjetivação,
em Spinoza, é necessariamente intersubjetivo, indissociável da experiência
dos encontros com outras coisas singulares, “a realidade humana é
imediatamente realidade coletiva” (BOVE, Laurent. La stratégie du conatus,
Paris : J.Vrin, 1996, p.75).
Neste sentido, fica clara a distância que separa a concepção spinozana
acerca da singularidade daquela concepção individualista própria dos discursos
da modernidade hegemônica. A afirmação do homem como indivíduo

126
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

separado e pré-existente ao social; assim como a afirmação da sociedade


como a soma de indivíduos atomizados, e subordinada, em sua organização,
à observância dos interesses individuais não encontram qualquer ressonância
na filosofia de Spinoza. O singular spinozano se constitui necessariamente
nos encontros e relações com outras coisas, na experiência da comunidade,
nos encontros e afetos com outros homens.
Sem ser senhor da natureza ou imagem e semelhança de um Deus
criador, em Spinoza o homem é apenas outra coisa na Natureza. E, da mesma
forma, a Natureza também não serve aos desígnios humanos, nem existe
para satisfazer suas necessidades. Spinoza nega qualquer concepção narcísica
antropocêntrica da existência. Tudo que existe segue às mesmas leis de
necessidade de toda a Natureza, e o homem insere-se nesse universo apenas
como mais uma parte, mais um modo da mesma Substância infinita. Sem
privilégios, o homem nada mais é que um modo finito da Substância. Spinoza
constrói, em sua concepção imanente da singularidade e do processo de
subjetivação, os traços de uma outra antropologia: uma antropologia cujo
“objeto não é o indivíduo, mas a individualidade, melhor, a forma da
individualidade: como ela se constitui, como ela tende a se conservar, como
ela se compõe com outras conforme relações de composição ou
decomposição, de atividade ou de passividade” (BALIBAR, Étienne. La crainte
des masses, Paris : Galilée, 1997, p. 87).

Eduardo Reis de Mello / Mestrando Filosofia PUC-PR /


eduardomellori@yahoo.com.br

Os Conatus coletivos e as Coisas humanas singulares na Ética de


Spinoza
O conceito de “Conatus” é a grande chave que Espinosa encontra
para passar de suas explicações metafísicas para a existência de “Deus” a
uma outra parte de sua obra em que busca explicar as coisas finitas, derivadas
da natureza divina. Sem este esforço que cada coisa tem para perseverar
em seu ser, encontraríamos inúmeras incoerências em sua obra, pois várias
das proposições que seguem a esta que estabelece o conatus, são derivadas
dela. Em nosso trabalho ressaltaremos as conseqüências do conatus para a
psicologia espinosana, desenvolvida principalmente na parte III e IV da Ética.
Buscaremos com isto, justificar a passagem da explicação da Substância
às coisas finitas e como elas se relacionam, chegando finalmente ao homem,
como singularidade complexa e, que sem ser um “império dentro de um
império”, cria relações com outros homens formando com isto novos indivíduos
complexos. Estes últimos, por sua vez, possuem também por definição, um
conatus.
Cada coletividade tomada como coisa individual, possui também um
Conatus. Um grupo de cidadãos formando um Estado, um grupo de
127
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

protestantes em uma passeata ou dois amantes, sendo sob o aspecto de


causar um único efeito, são coisa individual, tendo por essência um esforço
para perseverar em seu ser.
O sucesso deste esforço, naturalmente não pode ser infinito, pois
seus componentes tampouco o são. Todas as individualidades são modos
finitos da Substância, a única coisa que é sempre causa de si mesma e ao
mesmo tempo de todas as outras coisas.
Se assim é, somos em nós mesmos ao mesmo tempo em que somos
nas coisas mais complexas das quais fazemos parte. Devemos, portanto, à
nossa essência singular um esforço de auto-preservação, ao mesmo tempo
em que somos componentes dos conatus coletivos. Daí poderíamos derivar
também que as partes formadoras do complexo, ao não buscar outra coisa
que não sua auto-preservação, são de algum modo convenientes ao esforço
de auto-conservação do complexo. Não se diz aqui que o conatus individual
é coincidente com o conatus coletivo, mas que a união dos primeiros convém
para o esforço deste último para permanecer em sua existência.
Quais são as coletividades-indivíduo das quais fazemos parte? Como
estas nos afetam e por nós são afetadas? Quanto à primeira questão podemos
atribuir certa relevância apenas por nos levar a refletir em sua própria
incomensurabilidade. Tentar contá-las seria tão inútil e trabalhoso quanto
contar as estrelas no céu. A segunda, entretanto, abre-nos uma questão
que se também é trabalhosa e difícil, contém em si a utilidade de buscar
entender como se afetam as coletividades de um modo geral. Temos como
hipótese que estas coletividades-indivíduos se não são humanos individuais,
são individualidades humanas, já que são causadas pelas uniões dos conatus
humanos. Assim sendo, verificaremos a possibilidade de entendê-las,
conforme a teoria dos afetos que Espinosa demonstra na parte IV de sua
Ética. Resumindo a questão: as coletividades (que chamaremos daqui por
diante de Multidão) pensam, desejam e agem como um indivíduo humano
ou possuem um modus operandi aparte? Se a criação de uma multidão se
dá através da união de singularidades formadas pelos atributos da extensão
e do pensamento, não teria ela mesma extensão e pensamento, ou seja,
uma multidão não seria uma singularidade complexa dotada de corpo e
pensamento?
De acordo com Espinosa, somos formados em ato por múltiplas coisas
singulares, enquanto formamos, por nossa vez, inúmeras coletividades que
se tornam novas coisas singulares. Esta relação entre singularidade e
multiplicidade é de grande importância para a derivação, não apenas de
uma psicologia, mas posteriormente ( em um sentido lógico e não
cronológico) de sua Política. Neste sentido, partiremos deste paralelismo
ontológico entre o singular e o múltiplo, para buscar as relações que possui
com a formação do “esforço para perseverar em sua existência”, ou seja, do
Conatus.
Espinosa na proposição 6 da parte III de sua Ética afirma que “cada
coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”. Esta
128
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

proposição é derivada da E p4 que afirma que: “nenhuma coisa pode ser


destruída senão por uma causa exterior”. Caberá então a esta pesquisa
analisar a validade destas proposições e de suas conseqüências na formulação
da psicologia que Espinosa descreve em suas afirmações subseqüentes.

Ericka Marie Itokazu / Doutora Filosofia USP / ericka@usp.br

Em nós ou fora de nós: o não-lugar da subjetividade e da


alteridade na filosofia de Espinosa
“Em nós ou fora de nós”. Por que esta expressão não aparece
nenhuma vez na Ética II? E por que, na Terceira parte da Ética, Espinosa
reserva cuidadosamente esta formulação para utilizá-la uma única vez, num
lugar peculiar e privilegiado na estrutura do texto, a saber, na segunda
Definição. Ao longo das deduções da Parte II as ocorrências que encontramos
são “corpos exteriores” a um “corpo humano” ou a uma “mente humana”
em geral, e muito raramente encontramos as palavras “nós” e “fora de
nós”, contudo, para nenhum dos casos “em nós ou fora de nós”. Aliás, cada
uma destas expressões aparece separadamente, cada uma numa proposição,
como veremos. Contudo, contrariamente ao que se poderia pensar, os
“corpos exteriores” não aparecem para falar da exterioridade por oposição
a uma interioridade: Espinosa apresenta proposições que explicam como o
que está fora do corpo humano é uma imagem neste corpo e nesta mente,
num encontro entre o exterior e o interior tal que é até indiferente se o
corpo exterior está presente ou ausente, trata-se de uma constante relação
interior/exterior na construção de uma incomensurável e simultânea produção
de muitíssimas imagens, na mente e no corpo, em que se constroem as
relações que nos constituem, multiplicando-se as relações entre os vários
indivíduos que compõem este corpo assaz complexo, ampliando tanto as
suas disposições, quanto a complexidade das imagens e das relações entre
elas, tornando a mente cada vez mais apta a perceber muitíssimas coisas.
Eis a construção de nossa capacidade ou aptidão de afetar e ser afetado.
Contudo, estas mesmíssimas relações que ampliam nossa aptidão, num
conjunto dinâmico em que interno-externo se refazem como as relações
que nos constituem que, na Ética III, poderão ser a tradução em um efeito
de nossa potência, ou de nossa impotência. O que ocorre, entre a Ética II
e a Ética III?
Na Parte II da Ética, encontramos a definição da coisa singular e
Espinosa explica-nos que ser coisa singular é ser um complexo de vários
indivíduos compostos que concorrem conjuntamente para produzir única e
uma mesma ação, mas produzir uma ação não significa diretamente aumentar
a potência ou diminuí-la. Ser coisa singular é ser causa, é produzir uma
ação, mas isto não caracteriza a atividade ou a passividade, pois somente
disto não temos como determinar se a causa aqui é completa (adequada)
129
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

ou parcial (inadequada) de seus efeitos. Ora, poderíamos concluir portanto


que há uma distinção entre a lógica do afetar e ser afetado (que versa
sobre a capacidade ou aptidão) e a lógica da atividade ou passividade (ser
causa completa ou parcial de um efeito). Portanto, no que se refere à
aptidão, ser afetado não pode ser associado diretamente à passividade,
assim como afetar não indica propriamente a atividade. E, na dedução
espinosana, ocorrerá o mesmo para a mente. O que encontramos é uma
ambivalência do ser afetado e afetar na construção da aptidão no corpo e
na mente, e é desta ambivalência que se multiplicam as muitíssimas relações
em que se freqüentam o interno e o externo como encontro nas relações
que nos constituem, o que amplia a nossa capacidade, de tal sorte que ser
afetado e afetar será a construção mesma de um arcabouço de imagens
que, por sua vez, serão diversas, convenientes ou opostas entre si, e que
fundarão o solo da ampliação de nossa potência, como a condição para
sermos ativos como causa completa dos efeitos que produzimos na
reconstituição destas mesmas ou de outras relações, em nós ou fora de
nós. Eis aí o lugar da experiência dos contrários ou, como nos diz Laurent
Bove, “o corpo como o sujeito-dos-contrários”, algo bastante peculiar de se
afirmar, quando o próprio Espinosa afirmará na quinta proposição da Ética III
que as coisas de “naturezas contrárias, isto é, não podem estar no mesmo
sujeito, enquanto uma pode destruir a outra”.
E nisso, voltamos àquela mesma pergunta: como desta experiência
da multiplicidade simultânea de imagens e afecções convenientes, diversas
e opostas, destas mesmíssimas relações dos encontros entre interno e
externo que nos constituem, tornam-se “coisas naturezas contrárias” a nós
e que não poderão estar mais no mesmo sujeito? E que nos lembremos
que não se tratará, jamais para filosofia de Espinosa, de um corpo ativo e
uma mente passiva, não se encontraremos esta mudança no desencontro
entre corpo e mente, pois ambos, corpo e mente, serão sempre ativos ou
passivos juntos. Ora, onde encontrar a diferença entre a ampliação da aptidão
e a atividade/passividade? Eis as questões que apresentaremos em nosso
trabalho, procurando responder como a segunda definição da Ética III
introduz um não-lugar para a subjetividade e para alteridade na filosofia de
Espinosa.

Leonardo Mees / Doutorando Filosofia UFRJ / leonardo.mees@gmail.com

Nietzsche e o problema das significações de “sujeito” em sua filosofia


A comunicação abordará o tema da subjetividade na filosofia de
Nietzsche, reconhecendo e comentando algumas das diferentes significações
de “sujeito” em sua obra.
1) A des-subjetivação do sujeito: Nietzsche, em “O nascimento da
tragédia”, não se embate diretamente contra a concepção de sujeito “genial”

130
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

do Romantismo, mas compreende este sujeito como um medium da vontade


dionisíaca do mundo: “Mas na medida em que o sujeito é um artista, ele já
está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um médium
através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua
redenção na aparência” (O nascimento da tragédia. § 5, Trad. J. Guinsburg,
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, §5, p. 47), o gênio se funde com o
artista primordial do mundo. O sujeito, em sentido forte, é o Uno-primordial.
2) A destruição do sujeito lógico: Para Nietzsche, há um fetichismo
grosseiro entre os pressupostos fundamentais da linguagem metafísica: “esse
fetichismo vê por toda parte agentes e ações, ele crê na vontade enquanto
causa em geral; ele crê no “eu”, no eu enquanto ser, no eu enquanto
substância, e projeta essa crença no eu-substância para todas as coisas”.
(Crepúsculo dos Ídolos, “A razão na filosofia”, § 5, trad. M. A. Casa Nova, Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 31). “O sujeito é apenas uma ficção,
simplesmente não há o ego de que se fala, quando se repreende o egoísmo”
(KSA, 12, p. 398). Segundo Theo Meyer, com a crítica ao conceito de sujeito
lógico, Nietzsche não quer simplesmente eliminar de sua filosofia a atividade
do sujeito: “Em todo caso, o problema da subjetividade não se esgota em
Nietzsche com a destruição do sujeito, pois o sujeito também pode assumir
uma qualidade positiva. Deve se distinguir entre o sujeito lógico e o sujeito
criativo.” (MEYER, Theo. Kreative Subjektivität bei Nietzsche. In: Perspektiven
der Philosophie, vol. 31, 2005, p. 92).
3) O sujeito criador: Em “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche conclama
o criador para “ir para sua solidão”, com seu amor e com sua atividade criador”,
onde ele precisa “dar a si mesmo o seu mal e o seu bem e suspender a sua
vontade por cima de si como uma lei”, “ser seu próprio juiz e vingador de sua
lei” (Assim falou Zaratustra. “O caminho do criador”, trad. Mário da Silva, Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 78). No entanto, mesmo assim “o artista
não é o homem das grandes paixões”, pois, “quando se tem um talento,
também se é vítima de seu talento, vive-se sob o vampirismo de seu talento”
(KSA 12, p. 472). Seu talento é o sujeito de sua obra.
4) O sujeito da vontade de poder: O sujeito da vontade de poder
não só “um” sujeito, mas também muitos sujeitos, pois ele é o próprio mundo:
“Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso!” (KSA 11, p. 611).
Segundo W. Müller-Lauter assim como o mundo é um e múltiplo, “é possível
supor que a vontade de poder também seja uma e muitas” (Über Werden
und Wille zur Macht, p. 39), isto porque “toda unidade é apenas unidade
enquanto organização e jogo conjunto” (KSA 12, p. 104), então também o
mundo, como sujeito da vontade de poder, não é “sujeito”, mas em
perspectiva se deixar significar como “sujeito”.
5) O sujeito lúdico: Na terceira metamorfose do espírito, anunciada
no primeiro discurso de Zaratustra, encontramos a criança como o “sujeito”
do sagrado “sim ao jogo de criação”, ela é “inocência e esquecimento; um
novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento

131
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

inicial” (Assim falou Zaratustra, “Das três metamorfoses”, p. 44). O sujeito


do jogo é a criança heraclítea (Frag. 52), que pode fazer aquilo que o
sujeito-leão (eu quero) não pode: só ela pode dizer “eu sou”, segundo Karl
Löwith (Nietzsches Philosophie, p. 40). Seguindo mais ou menos por este
percurso, procuraremos alcançar o ponto paradoxal deste “sujeito lúdico”,
que ao dizer “eu sou” afirma e redime toda história da subjetividade.

MESA MANHÃ 11 (4ª feira, dia 30/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Ana Cláudia Gama Barreto (UFRJ)

Juliana Merçon / Doutoranda Filosofia Universidade de Queensland


Austrália / j.mercon@uq.edu.au

Desressentindo... generosidade e gratidão como boa vingança


Sentir pena (commiseratio) é vivenciar uma tristeza acompanhada
da idéia de um mal sofrido por um outro que imaginamos ser nosso semelhante
(Ética, III, Definição dos Afetos). É um ‘sofrer com’ (Mitleid), sempre sinônimo
de uma forma de fraqueza. Como fraqueza ou tristeza, a pena é, em si, má
e inútil (Ética, IV, prop. 50): é um afeto pelo qual a potência de agir do
corpo é diminuída ou refreada. As vozes de Spinoza e Nietzsche coincidem
ao denunciar que a pena não é uma virtude, não nos potencializa, não nos
permite compreender ou agir. Nietzsche, porém, parece levar ainda mais
longe sua reflexão sobre esta paixão triste. Propõe, por exemplo, que
sentir pena de alguém é uma maneira de colocar-se em uma posição superior
à daquele que sofre. O afeto de pena seria, neste sentido, acompanhado
por um sentimento de auto-elevação (Assim falou Zaratustra, II, §25). Por
implicar o rebaixamento daquele a quem a pena se dirige, uma ferida em
seu orgulho ou o seu envergonhamento, o afeto de pena pode ser
entendido como uma forma de competição ou, em alguns casos, como
retaliação ou vingança. A contribuição nietzscheana mais contundente talvez
não se refira, no entanto, às explicações sócio-psicológicas da pena e da
vingança, mas sim à interpretação desses afetos como conceitos ontológicos.
Foi por sentir pena dos homens que deus morreu, anunciou o diabo a
Zaratustra (Assim falou Zaratustra, II, §25). O amor de deus pelos homens
era o seu inferno – um amor entristecedor, compassivo, que aniquilou suas
forças. Embora concordasse com o fato anunciado pelo diabo, o homem
mais feio contestaria sua causa: por ver os abismos dos homens, toda sua
oculta ignomínia e fealdade, por sua pena não conhecer a vergonha, por
ser o mais compassivo, curioso e importuno, por ser uma eterna testemunha
que assiste a tudo, deus sofreu com a própria morte a vingança perpetrada
pelo homem (Assim falou Zaratustra, IV, §67). A pena sentida por deus
acentuava a inferioridade humana e paralisava suas criaturas. Para agir e
tentar afirmar finalmente sua própria vida, o homem teve que matar deus.

132
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Não obstante, o espírito de vingança define-se como sendo exclusivamente


retaliador. Por ser sempre uma reação, envolve o risco de permanecer
subordinado ao objeto que procura rechaçar (Genealogia da Moral, II, §11).
Dirigido a deus ou à vida como um todo, o sentimento de vingança é uma
impotente negação da existência – quando sublimado ou espiritualizado
este sentimento se converte em ressentimento. O homem de
ressentimento é aquele que não apenas abandona sua esperança de atuar
vingativamente (baseando sua atuação em um julgamento positivo e
restaurador), como passa, ademais, a desvalorizar seu espírito vingativo. O
homem de espírito ressentido é aquele que considera a sua impotência de
agir e de reverter o mal a ele causado uma prova de sua bondade. O
ressentido se orgulha, assim, por sofrer com equanimidade. Em repúdio à
nefasta celebração da vida como martírio, Nietzsche e Spinoza mostram-
nos que a criação de um viver como pura afirmação reside no entendimento
ativo de que tudo o que há é fruto da necessidade. Amor fati e amor dei
são ambos antídotos contra a pena, a vingança e o ressentimento estéril –
são formas de vida rara e dificilmente conquistadas por aqueles que afirmam-
se em potência e liberdade. Como afirmar a vida não significa isolar-se com
intenções ascéticas (ou assépticas!), a força das paixões pode a qualquer
momento arrebatar-nos. Diante do sofrimento e do ódio, a pessoa guiada
pela razão é movida pela generosidade, e não pela pena ou vingança,
ensina-nos Spinoza (Ética, V, prop. 10 esc.). A vida abraçada em sua
totalidade, com suas forças criativas mas também com suas tristezas, inspira
à atitude de gratidão. Do mais alto sentimento de felicidade e potência, a
gratidão traduz-se, segundo Nietzsche (KSA, 9, §79), como “boa vingança”.
Traçar laços produtivos entre, por um lado, os conceitos nietzscheanos de
gratidão, amor fati, ressentimento, vingança e pena, e, por outro, as noções
spinozanas de generosidade, amor dei e comiseração é o exercício ao qual
me dedicarei em minha apresentação.

Sandro Kobol Fornazari / Pós-doutorando Filosofia USP / skf@usp.br

A crítica genealógica no limiar da filosofia da diferença


Em Nietzsche e a filosofia, G. Deleuze contrapõe o procedimento
genealógico nietzschiano à crítica da razão pela própria razão, concebida
por Kant. Refazendo o percurso polêmico de Nietzsche, Deleuze enfatiza o
quanto a crítica kantiana permaneceu respeitosa aos valores estabelecidos.
Se a filosofia crítica se opõe ao dogmatismo e ao ceticismo é porque se
arroga o papel de legisladora sobre os seus próprios limites, substituindo o
conceito de erro pelo de ilusões interiores à própria razão. É preciso, no
entanto, observar o bom uso das faculdades em cada caso: o entendimento
legisla no interesse superior do conhecimento, determinando a imaginação
a esquematizar os dados da intuição sensível segundo as categorias postas
pelo próprio entendimento; no âmbito moral, a autonomia da vontade que
133
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

se exerce no imperativo categórico significa que somos ao mesmo tempo


legisladores e súditos desde que seja a razão e apenas ela que nos ordene
a agir de modo que a máxima de nossa vontade possa ser pensada como
princípio de uma legislação universal; por fim, existe um domínio do senso
comum estético, em que a imaginação e o entendimento se exercem cada
qual por sua conta, constituindo um “pura harmonia subjetiva”. Ora, Kant
não faz mais que dirigir a crítica às pretensões ao conhecimento verdadeiro
e à moralidade, mas não à verdade e à moral; a crítica não faz mais que
condenar as usurpações de domínio de uma faculdade por outra, enquanto
os domínios permanecem sagrados, o bom uso das faculdades apenas
coincide com os valores estabelecidos e “a verdadeira moral”, “o
conhecimento verdadeiro”, “a verdadeira religião” permanecerão intocados
pela crítica. O procedimento genealógico, em Nietzsche, permite que ele
coloque o problema em outros termos. Trata-se, em Kant, de obedecer
sempre a uma de nossas faculdades, segundo seu domínio próprio, não
deixamos de obedecer mesmo quando desmorona a autoridade de Deus
ou do Estado, mas a quais forças obedecemos quando assentimos à razão
ou ao entendimento? Para Nietzsche, é necessário colocar em questão o
sentido e o valor da verdade e o sentido e o valor da moral, isto é, determinar
que relação de forças se exprime na vontade que almeja o verdadeiro ou o
Bem universal. De acordo com sua tipologia, as forças são qualificadas em
cada relação como ativas ou reativas, enquanto a vontade de potência é
afirmativa ou negativa. A nobreza indica a superioridade das forças ativas,
em sua afinidade com a afirmação, enquanto a afinidade das forças reativas
com a negação implica o predomínio do ressentimento, da má consciência
e do ideal ascético. A crítica kantiana teria sido incapaz de ultrapassar as
forças reativas que se exprimem na razão, na moral, na religião. O que
seria, então, um pensamento não submetido às forças reativas e que
pudesse afirmar a vida, estar a serviço da vida afirmativa? Ele deveria ser
capaz não apenas de destruir os valores antigos, os vínculos entre a verdade
e o ideal ascético, mas de inventar novas possibilidades de vida, como
aquela do artista em que a potência do falso eleva a aparência, selecionada,
desdobrada, à mais alta potência. Com base nessa contraposição entre a
filosofia crítica kantiana e a genealogia dos valores em Nietzsche, Deleuze
desenvolverá o que chama de uma “nova imagem do pensamento”, em
que a verdade é concebida não como um elemento do pensamento, a que
o pensador teria acesso a partir do exercício natural de sua faculdade de
conhecimento, mas como o produto de um encontro com forças exteriores
ao pensamento e que o fazem pensar. Nesse caso, trata-se de evitar não o
erro, provocado em nós, segundo a imagem dogmática do pensamento,
por forças exteriores ao pensamento, como o corpo, as paixões, os
interesses, mas a besteira como sintoma do predomínio das forças reativas.
Abre-se, assim, a possibilidade de um pensamento novo, fruto de uma
formação ditada por encontros a partir das coordenadas (espaciais e

134
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

temporais) precisas que frequentamos com nossa vida, ali mesmo onde
forças possam fazer de nosso pensamento algo ativo e afirmativo.

Vagner da Silva / Doutorando Filosofia da Educação UNICAMP /


vagnerdasilva@hotmail.com

Nietzsche e a construção de um novo paradigma da subjetividade


humana entre civilização e cultura
É sabido que o jovem Nietzsche afirmou que cultura é unidade de
estilos artísticos na vida de um povo. Transferindo esta idéia da primeira
fase do pensamento de Nietzsche para sua fase madura, e do campo da
cultura para o da constituição pulsional dos indivíduos humanos, mas
mantendo a idéia de unidade, não mais artística, porém agora pulsional,
podemos afirmar que o homem superior de Nietzsche (homem culto e
cultivado) é aquele no qual há unidade harmônica no (s) arranjo (s) de
sua constituição pulsional. Porém como surge ou como é possível esta
harmonia?
Em um fragmento póstumo Nietzsche afirmou que: “A contraposição
das paixões, a duplicidade, triplicidade, multiplicidade das ‘almas em um só
peito’: nada saudável, ruína interior, autodissolução, revelando e ampliando
uma divisão interna e um anarquismo -, exceto se por fim uma paixão assumir
o controle. Restabelecimento da saúde”. (NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos
Finais. Seleção, tradução e prefácio: Flávio R. Kothe. Brasília: Editora
universidade de Brasília, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.
132).
Temos neste fragmento uma associação entre unidade pulsional e
saúde, elementos constituintes do homem superior, porém o índice da saúde
neste fragmento é conseguido não pela harmonia, mas pelo domínio tirano
de uma paixão (pulsão) sobre as demais. Mas este domínio castrador de
uma pulsão sobre as outras não é o índice daquilo que Nietzsche chamava
de cultura, mas sim de civilização. Nietzsche, na esteira da tradição filosófica
alemã fez também distinguiu civilização de cultura: cultura representa os
períodos de dissolução moral, nos quais a criatividade assume o primeiro
plano nas vidas humanas e nas sociedades, e civilização os períodos de
castração e dominação do animal homem, dominação de sua constituição
pulsional por uma pulsão tirana ou por uma sociedade tirana, ou ainda e
mais propriamente as duas coisas, a este respeito o próprio autor escreveu
que: “Os ápices da cultura e da civilização estão separados entre si: não
devemos nos deixar extraviar sobre o abissal antagonismo entre cultura e
civilização. Moralmente falando, os grandes momentos da cultura sempre
foram tempos de corrupção, e, novamente, as épocas da voluntária e coerciva
domação animal (‘civilização’) do homem foram tempos de intolerância para
as naturezas mais espirituais e ousadas. A civilização quer outra coisa que a

135
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

cultura quer: talvez algo inverso...” (NIETZSCHE, Friedrich. A “Grande


Política”, fragmentos. Introdução, seleção e tradução: Oswaldo Giacóia Jr..
Campinas: Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas-IFCH-UNICAMP, 2002, p. 51).
Sendo assim este homem superior, não seria outra coisa senão um
homem civilizado? Se o homem superior de Nietzsche for apenas um homem
civilizado e domado, quem então seria o homem culto (cultivado)?
Em outro fragmento póstumo Nietzsche afirma sobre o homem
superior: “O domínio sobre as paixões, não seu enfraquecimento ou
extermínio! Quanto maior é a força dominadora de nossa vontade, tanto
mais liberdade pode ser dada às paixões. O grande homem é grande pelo
espaço de liberdade de suas paixões: ele é, porém, forte o suficiente, de
modo que faz desses monstros seus animais domésticos.” (Ibidem, p. 50)
A soma dos fragmentos nos conduz, aparentemente, a uma
contradição que este artigo tentará solucionar: o homem possui uma
constituição subjetiva pulsional, estas pulsões, porém são individuais e o
seu ser (das pulsões) constitui-se da luta por mais poder (vontade de
potência), o homem superior de Nietzsche (homem cultivado, homem culto)
é aquele no qual há harmonia nas pulsões, aquele que pode dar maior
liberdade às suas mais terríveis pulsões, sem, no entanto, perder o controle
sobre elas: eis a contradição – se ele (o homem superior) exerce controle
sobre as pulsões então elas não são harmônicas, ou seja, há aqui a
incompatibilidade entre harmonia e controle. Seria a harmonia pulsional do
homem superior uma farsa ou uma harmonia forjada sobre o malho do
controle pulsional?
Em outros termos: o homem superior é de fato o homem culto e
cultivado de Nietzsche? Se a resposta para esta pergunta for sim, então
neste homem reina a harmonia pulsional. Se por outro lado a resposta for
não, então para que este homem não se torne um bárbaro destruidor,
perigoso para si e para os outros é necessário que uma pulsão domine as
demais. Todavia não se pode fugir à contradição: ou nele há a harmonia
pulsional ou o controle pulsional.
Este artigo buscará resposta para esta aparente contradição em
dois modelos humanos muito importantes para Nietzsche: Goethe e
Napoleão, ambos cotados pelo filósofo de Zaratustra como homens
superiores, mas o primeiro sendo o exemplo da harmonia pulsional e o
segundo do controle pulsional.

136
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 12 (4ª feira, dia 30/09, 09:00h-10:40h)


Mediador: Tiago Barros (UERJ)

Gabriel Cid de Garcia / Doutorando Literatura Comparada UERJ /


gcidgarcia@gmail.com

A natureza como partes sem um todo: aspectos de uma filosofia


trágica em Fernando Pessoa
A partir da suspeita de que o pensamento e sua expressão não se
limitam a uma única forma, convém analisar, em diálogo com o pensamento
de Friedrich Nietzsche, de que modo podemos pensar uma filosofia trágica
em Fernando Pessoa, enquanto um discurso que atesta a impossibilidade
de se acercar de um sentido último para a existência. Quais os pressupostos
que permitem considerar o fenômeno heteronímico pessoano como um
expediente trágico que diz respeito ao próprio pensamento, ou ainda, como
entrever, no projeto pessoano, o lugar de embate – trágico, por excelência
– entre aquilo que somos, enquanto sujeitos, e os processos que franqueiam
à escrita a constituição de uma subjetividade outra? Desdobrando-se em
heterônimos, Pessoa comportaria em si a justaposição de formas de ver e
compreender o mundo, mas o processo pelo qual este desdobramento se
dá poderia ser tomado como anterior às formas constituídas das
personalidades particulares, apresentando-se como uma disposição anti-
dialética do próprio pensamento. Para Gilles Deleuze, Pessoa teria sido o
responsável por operar uma ressignificação do pensamento, que passaria à
expressão por meio da afirmação de entidades poéticas, figuras sensíveis,
atribuindo às sensações um privilégio e uma anterioridade em relação aos
ditames da razão, questionando os pressupostos da representação que
destituem a arte de sua potência expressiva própria. Desde a aurora da
tradição metafísica ocidental, a razão tem sido associada e confundida com
uma instância superior, distinguindo-se como uma faculdade do sujeito que
pode, por meio da reflexão, formular alguma verdade que seja
universalmente válida. Estaria inaugurada, com Sócrates, Platão e todos os
pensadores posteriores tidos como sérios e reputáveis, o percurso metafísico
da associação da atividade do pensamento à revelação de uma certa ordem,
ao desvelamento de uma inteligibilidade presente nas relações que se pode
destacar e nomear a partir da desordem, do aspectos casuais da realidade.
O mundo exterior, tal como se percebe, em suas partes que se oferecem
à sensibilidade, estaria destarte condenado a ser percebido à luz de um
conjunto, ignorando estas mesmas partes ao integrá-las em uma unidade
inteligível, ilusória, destacada de sua realidade imediata, possibilitando ao
homem se acreditar independente dos processos que o constituem, ao
levar em conta como instância primária uma abstração construída sobre o
caos. A consciência, o mundo interior do sujeito, é tomada como ponto de
partida do conhecimento, no momento exato em que marca sua diferença
137
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

em relação ao objeto – exterior –, a ser conhecido. O embate entre o


estágio anterior à compreensão socrática, lugar do caótico e do informe, e
sua progressiva obliteração, pode ser pensada à luz dos dois princípios da
tragédia trazidos por Nietzsche, que nos ajudam a operacionalizar a relação
entre o trágico e o pensamento. Tendo em vista a problemática do trágico
em Nietzsche, acreditamos ser possível evidenciar sua abrangência para
pensar aspectos que possibilitem a relação entre filosofia e literatura. Aliando-
se ao mesmo percurso da ontologia embrionária nietzscheana, capaz de
criticar um pretenso destino apolíneo do pensamento ocidental – com ápice
na modernidade –, António Mora, heterônimo louco e filósofo de Pessoa,
pensa que toda filosofia incorre em dois grandes erros, responsáveis por
torná-la, de saída, um antropomorfismo: o erro de se atribuir às coisas
qualidades da nossa consciência, ou seja, de se analisar o exterior com
categorias do nosso interior; e o erro – segundo ele, mais grave – que
consiste em atribuir à consciência (como consciência absoluta, universal)
qualidades particulares que seriam desdobradas de nossos corpos e
psiquismos individuais, o que significa dizer: o erro de erigir o interior particular
de cada um em uma idéia universal de interioridade. Na argumentação de
Mora, a suspensão de aspectos sensíveis associados ao conhecimento levaria
a uma compreensão equivocada da relação do homem com o real,
enfatizando como questionável a própria idéia de Natureza. O equívoco
residiria no fato de se operar uma redução na realidade, com a ilusão de
querer encontrar seu funcionamento interno, a decifração de seu mistério.
Sendo assim, Nietzsche nos fornece a teoria, de base espinosista, que
envolve a tentativa de se traduzir o pensamento poético de outro
heterônimo pessoano, Alberto Caeiro, resumido no verso ‘a natureza é
partes sem um todo’. O que seria, de fato, a heteronímia, se nos
autorizarmos a ampliar este pensamento para entendermos o procedimento
artístico pessoano? Regulando as diferenças em uma totalidade
representativa, admitindo como definível uma identidade específica, qualquer
nomeação é capaz de definir uma natureza, e, portanto, ignorar a dimensão
impessoal que constitui aquilo mesmo que se tem por definido. É desta
forma que Pessoa pode se colocar como um artista trágico, pois no lugar
de se perceber como alguém que se desdobra em outros, percebe de
fato, por meio do desdobramento, o caráter convencional e casual de sua
própria identidade. Se compreendermos o mundo em seu caráter inapelável,
não submetido a instâncias exteriores, cada heterônimo encarnaria, portanto,
um modo diverso de senti-lo e expressá-lo.

138
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa / Mestrando Filosofia UFC /


arqgustavocosta@hotmail.com

A hipocrisia, o sujeito e a máscara. Nietzsche e a criação hipócrita


de si
O pensamento nietzscheano pode ser tomado como ponto de
inflexão na filosofia, dentre outros fatores, pelas críticas radicais às idéias de
“sujeito” [Subjekt] e “consciência” [Bewuâtsein] e “livre-arbítrio” [freier
Wille] nas quais a modernidade buscou a fundamentação de sua ciência e
moral. Revelando-as como hipóstases de relações gramaticais, fruto de uma
inversão, ou mesmo de uma invenção da relação entre causa e efeito –
aplicada aqui ao “fenomenalismo do ‘mundo interior’” – Nietzsche aponta
para a ficção e engano que envolve tais noções. “Sujeito”, “consciência” e
a própria idéia de “livre-arbítrio”, nesse sentido, seriam apenas o epifenômeno
de certa relação – leia-se “luta e tirania” – de impulsos [Triebe] entre si;
“resumo” de uma configuração atual de processos internos da qual só temos
acesso à superfície. Engano com o qual se põe em xeque também as
pretensões de constituição de um Eu, síntese de tais noções: também a
idéia de um eu resulta de um fetichismo da linguagem, que pressupõe a
existência do sujeito como condição e causa predicado “penso”. No presente
texto, partiremos das conseqüências advindas de tais críticas para tentar
compreender como se insere, nesse panorama, a possibilidade colocada
pelo pensamento nietzscheano de constituição de si como uma criação,
sintetizada na máxima de Píndaro: “torna-te o que tu és”. Vedado o caminho
por meio do “autoconhecimento”, Nietzsche nos aponta o caminho da arte
– da compreensão de si como “sujeito” e “objeto” de um fazer artístico.
Fazer esse perpassado por um trabalho de autodisciplina [Selbstdisziplin] e
cultivo de si [Selbstzucht]. No entanto, poderíamos aqui perguntar: como
poderíamos caracterizar este eu que constitui, ou ainda, que cria a si próprio?
Como fazê-lo, levando-se em conta as mesmas críticas que solaparam os
pilares da ciência e moral da modernidade? Sabemos que Nietzsche faz
advir de tais críticas as noções de máscara e interpretação, enfatizando a
transitoriedade e ficcionalidade que envolvem a criação de si. Mas como
qualificar o fazer criativo aí envolvido quando já não faz sentido perguntar
“o que” está por detrás da máscara ou ainda “quem” interpreta? Ou ainda:
como poderia ser compreendido o “sujeito” da criação de si nietzscheana?
Pretendemos aqui de defender que uma re-significação do conceito de
hipocrisia à luz do pensamento nietzscheano vem lançar luz às questões
acima postas, tornando possível uma “restituição”, ainda que fictícia, da
idéia de eu. Ao apontar para o estatuto artístico presente na constituição
de si, o pensamento nietzscheano abriria as portas para uma reavaliação do
conceito de hipocrisia, envolvendo aí uma retomada da concepção artística
do termo: a hipocrisia como arte do ator. O que de igual modo, requer uma
crítica à concepção moral do termo, que tem a figura do hipócrita como

139
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

sujeito da hipocrisia, como alguém que engana e que, com plena “consciência
de si”, “esconde-se atrás de uma máscara”. Desfeita a idéia de uma
“consciência”, defendemos que os processos conscientes, agora situados
em um plano artístico, vêem a coadunar-se com uma concepção de hipocrisia
associada ao manuseio artístico de máscaras e compreendida como processo
fictício, embora reconhecido como tal, de constituição de um eu. Nosso
problema estaria então em compreender como é possível, a partir do
esfacelamento do “sujeito” em uma pluralidade de máscaras constituídas ao
longo do tempo; e da dissolução da “consciência de si” em uma pluralidade
de interpretações às quais não temos acesso, sustentar ainda uma idéia de
hipocrisia e de hipócrita e, ainda mais, de uma hipocrisia em relação a si
próprio. Centrando o foco em nos textos do chamado “período intermediário”
e em Além do bem e do mal procuraremos, inicialmente, expor em linhas
gerais o teor das críticas nietzscheanas às idéias modernas de “consciência”,
“livre-arbítrio” e “sujeito” e as conseqüências a que estas críticas conduzem
no pensamento nietzscheano – em particular às idéias de interpretação e
máscara – procurando compreender de que maneira essas idéias influem na
concepção nietzscheana de eu. Na segunda parte da exposição,
aproximando-nos do foco de nossa análise, procuraremos expor em que
sentido uma reavaliação do conceito de hipocrisia, não só resistiria às críticas
nietzscheana acima apontadas, como forneceria chaves de interpretação
para as questões acima levantadas, tornando possível a restituição de uma
determinada concepção de eu, situada agora em um plano artístico, à qual
associamos a figura do hipócrita.

Ramon Souza / Doutorando Psicologia Clínica IPUSP /


ramon.souza@usp.br
Daniel Kupermann / Prof. Dr. Psicologia Clínica IPUSP /
dkupermann@usp.br

A ironia como ilusão trágico-criativa em Nietzsche


Refletir acerca da noção de ironia no pensamento de qualquer
autor é levar em conta as concepções epistemológicas de verdade-realidade
e aparência-ilusão. Para Sócrates, por exemplo, a figura da ironia é considerada
um nobre instrumento maiêutico de denúncia das ilusões (ou falsas verdades)
em nome de uma verdade superior: a filosófica. Trata-se da crítica das ‘ilusões’
– tomadas como ‘engano’, ‘mentira’ – em prol de uma realidade que é,
acima de tudo, essência e imutabilidade.
Ao contrário de Sócrates, a ironia nietzscheana não responde a
uma verdade transcendente e absoluta. A denúncia do caráter ilusório da
verdade é a própria celebração da ilusão como inevitável no enfretamento
da realidade. Afinal de contas, verdade para Nietzsche não passa de “um
exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos [...] as verdades

140
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são” (NIETZSCHE, F.
Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2008,
p.37).
Uma das tarefas da filosofia de Nietzsche é criticar o legado platônico,
relembrando quão ilusória e metafórica é a verdade. Crítica esta que encontra
na ironia uma parceira poderosa para realizar os seus objetivos. Nesse sentido,
concordamos com Oswaldo Giacóia Jr. ao reconhecer Nietzsche como um
mestre da ironia. A “ambição do filósofo” lembra Giacóia, “consiste em tomar
superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade
filosófica. Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo
moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental” (GIACÓIA
JR., O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000, p.10). Enquanto a ironia
socrática critica as ilusões, em prol de uma verdade, Nietzsche tem como
alvo a verdade, em prol das ilusões: “A sentença deve ser declarada: vivemos
somente através de ilusões, sendo que nossa consciência dedilha a superfície.
Há muita coisa que se esconde diante do nosso olhar. Também nunca se
deve temer que o homem termine por se conhecer inteiramente, que ele,
a todo instante, penetre em todas as leis da impulsão, da mecânica, bem
como em todas as fórmulas da arquitetura e da química que são necessárias
à sua vida. É bem possível que tudo se torne conhecido por meio de esquemas.
Isso não altera em quase nada nossa vida. Ademais, trata-se apenas de
fórmulas para forças absolutamente desconhecidas” (NIETZSCHE, F. Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral., p.57).
A ironia nietzscheana nos alerta dos perigos do enrijecimento das
metáforas em conceitos, denunciando a tentativa de atribuir significados
únicos e verdadeiros as coisas. Ao jogar com a linguagem, a ironia escancara
o jogo de máscaras que está por trás da existência, pois só a ironia, nas
palavras de Vladimir Safatle, “é capaz de afirmar sem, com isto, petrificar as
afirmações em explicações sobre a positividade do estado do mundo. Só a
ironia coloca o mundo como uma ficção que se afirma como uma ficção
criadora” (SAFATLE, V. Nietzsche e a noção de ironia em música. Cadernos
Nietzsche, São Paulo, v. 21, 2006, p.22).
Safatle dedica dois importantes artigos a respeito da noção de ironia
em Nietzsche: Duas formas de amor pela superfície: sobre os usos da metáfora
e ironia em Lacan (1999) e Nietzsche e a ironia em música (2006). O autor
chama atenção para a observação de Behler (1990) de que Nietzsche evitou
o termo “ironia” em sua obra devido ao atravessamento do romantismo,
preferindo assim “a clássica noção de dissimulação, que é traduzida por
máscara”. Pensamos que tal evitamento também se deve ao fato da figura
da ironia carregar consigo o nome de Sócrates e o cheiro de instrumento
científico-racional. Talvez por isso no prefácio de O Nascimento da Tragédia
Nietzsche se pergunte: “É a cientificidade talvez apenas um temor e uma
escapatória ante o pessimismo? Uma sutil legítima defesa contra – a verdade?
E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade? E, amoralmente,

141
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

uma astúcia? Ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo?,


ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua – ironia?” (NIETZSCHE, F. O
nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, p.14).
Se a verdade “alcançada” pela ironia socrática esconde a escapatória
defensiva do próprio enfrentamento da verdade, podemos supor que a
ironia nietzscheana é assunção de uma realidade recheada de sofrimento e
acaso. Nesse sentido, a ironia (ao lado do riso) se alinha com o pensamento
trágico do autor. Tomemos, por exemplo, o profeta Zaratustra como a
personificação do gesto irônico nietzscheano, cuja crítica é também criação,
dança, zombaria e riso. Nietzsche, desse modo, celebra as necessárias ilusões
criativas ao mesmo tempo em que resgata etimologicamente o termo “ilusão”
que significa “ironizar”, “zombar de”.

Willis Santiago Guerra Filho / Doutorando Filosofia UFRJ /


willisguerra@hotmail.com

A Religião em Nietzsche
Objetivo do presente estudo é situar a religião no pensamento de Nietzsche.
Embora, como é de um modo geral conhecido, nosso A. se oponha a
qualquer manifestação que se apresente como transcendente, de um
“mundo além”, bem como a toda forma de monoteísmo, seria incorreto
afirmar que ele, simplesmente, propõe o ateísmo como alternativa. Isso
porque, para ele, a religião se mostra como parte essencial de toda cultura
saudável, ou seja, daquelas do passado e, especialmente, da Antigüidade
grega mais recuada, sendo exatamente uma tal saúde que se perdeu na
Modernidade, e que ele espera possamos alcançar superando-a, reatando
vínculos perdidos com uma tradição, mais do que apostando em um
progresso para melhorar, no que teria um papel importante a desempenhar
novos deuses, forjados de acordo com uma ordem natural - “o sentido da
Terra”, como ele diversas vezes menciona em seu Zaratustra –, para atender
aos anseios maiores de uma humanidade que se pretende, buscando-os,
também superar, para que viva o “além do homem”. É para semelhante
cura da cultura que seria necessário mobilizar a filosofia, pondo-a no comando
da ciência, da política e também da religião. A tão propalada “morte de
Deus” é apresentada por Nietzsche como um evento terrível – após anunciá-
la, Zaratustra se retira para a solidão do topo da montanha por dez anos -
, mas graças ao qual se pode descobrir a vontade como um fato natural
que em nós resulta na capacidade de produzir o sobrenatural enquanto
ficção, novos deuses, ilusões que nos auxiliam a favorecer o engrandecimento
da vida. Sim, porque para quem fora um (grande) filólogo, desistente dessa
forma de teologia secularizada que é a filologia, convertido em poeta do
pensamento, tendo percebido o mundo verdadeiro como uma fábula e a

142
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

verdade como ficção, restou a prática de uma escrita criadora ou re-criadora


do mundo, fazendo de sua obra o cenário em que se digladiavam as forças
políticas e sociais de seu tempo, quando estava em gestação o nosso tempo,
colaborando, desse modo, nessa gestação. É certo que postular não ser
Nietzsche um anti-religioso é um grande desafio, pois os sinais contrários são
bem mais evidentes. Sua conhecida afirmação de que não há fatos morais
mas apenas uma interpretação moral dos fatos – e, além disso, de que não
há fatos, só interpretações –, ou que haja o bem ou o mal em si mesmos,
Deus ou o diabo, permite que se reivindique uma total liberdade em questões
geralmente tuteladas pelas religiões. Ao mesmo tempo, sua denúncia
veemente do ascetismo e do ressentimento contra a vida que ele implica,
em nenhum momento aponta para o ateísmo como uma solução, embora
seja esse ascetismo patrocinada por religiões – mas não só por elas, como
demonstra o estoicismo. Daí vem o seu desprezo pelo cristianismo. Entretanto,
se do que necessitamos, acima de tudo, é de novas ficções, é preciso que
se tenha fé, crença nelas, sendo do que se trata quando uma nova filosofia
é postulada – tal como se nova religião fosse. Isso é o que teria feito Paulo,
ao criar, propriamente, o cristianismo, como bem demonstra Nietzsche em
diversas passagens de sua obra, publicada ou inédita, especialmente naquela
totalmente dedicada ao tema, “O Anticristo”. Paulo, por sua conversão, vai
aceitar e passar a justificar o “escândalo” de Deus feito homem e morto
como um reles escravo na cruz, transformando tal evento em um marco que
divide a história da humanidade, e associando seu nome à “revelação”
(apocalipse) e “divulgação” da “boa nova” (evangelios). Agora, aplicando a
Nietzsche o seu próprio método genealógico e fisiológico, revelador das
verdadeiras e ocultas intenções dos que propugnam tábuas de valores fixadas
religiosamente, a partir da determinação de sua origem em impulsos ou,
como em geral ele os denomina, “instintos”, oriundos da vontade de poder,
torna-se plausível, verossímil – e verossimilhança é o máximo que se pode
almejar, aceitando-se o postulado epistemológico ficcionalista nietzschiano –
caracterizar como religiosa esta pulsão fundamental em Nietzsche. E isso,
dentre outros motivos, pela tentativa de associar seu nome ao que seria um
possível novo marco na história da humanidade, encerrada, conforme análises
de autores da linhagem do cristianismo histórico, paulino, como Hegel, com
o que nele já se apresenta como a morte de Deus, finalizando o período em
que se vivia para o futuro, assim como antes do advento messiânico se vivia
para o passado, para iniciar-se o período em que se vive para e no eterno
presente, pela experiência, de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo.

143
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 13 (5ª feira, dia 01/10, 09:00h-10:40h)


Mediador: Henrique Piccinato Xavier (USP)

André Menezes Rocha / Doutorando Filosofia USP /


rocha_andre@yahoo.com.br

Retórica e imaginário político no Tratado Teológico-Político


Espinosa, além dos textos geométricos, escreveu textos retóricos
com engenho e arte. O Tratado Teológico-Político, por exemplo, consiste
numa peça talhada com as regras da retórica clássica, assimiladas por Espinosa
pela leitura de Cícero e Sêneca. Tais regras discursivas moldaram tanto os
textos políticos como a imaginação de seus leitores ao longo da antiguidade,
da idade média e da modernidade que se iniciava. Embora retórico, o Tratado
Teológico-Político não é extrínseco à filosofia de Espinosa. Os escólios da
Ética, igualmente, estão vinculados às demonstrações e foram talhados
com maestria retórica.
Como a imaginação não é rebaixada ou excluída pela racionalidade
das noções comuns e pela intuição, no plano dos modos de conhecimento,
assim também o texto retórico não é excluído pelo texto geométrico que
demonstra a ontologia do necessário, no plano dos modos de discurso
empregados por Espinosa. O meu propósito, na comunicação, será apontar
alguns aspectos da linguagem retórica do Tratado Teológico-Político.
Nós sabemos que o Tratado Teológico-Político tem uma estrutura
peculiar, com três grandes momentos. Nos seis primeiros capítulos, Espinosa
examina os temas especulativos da Escritura e define a religião revelada. Do
sétimo ao décimo quinto, apresenta o seu método filológico de interpretação
das Escrituras, bem como os resultados filológicos de sua aplicação. Do
décimo sexto ao vigésimo, apresenta a primeira formulação de sua política
que lhe permite pensar a diferença entre a república livre e a república
teocrática.
No sétimo capítulo, Espinosa fundamenta a construção de sua
filologia na história da natureza, método indutivo de interpretação dos dados
naturais que tinha sido inaugurado por Francis Bacon. Trata-se de um método
que parte do conhecimento de efeitos rumo ao conhecimento das causas
ou, segundo a terminologia do grande racionalismo, um método analítico
ou a posteriori. A experiência e a imaginação, portanto, constituem o ponto
de partida deste método. O método inverso é o método que parte do
conhecimento das causas rumo aos efeitos, método sintético ou a priori
que foi o empregado por Espinosa na composição da Ética. Nós sabemos
que o método sintético, na Ética, não parte da imaginação, mas também
não a exclui: pelo contrário, ele permite chegar à imaginação, na segunda
parte, para explicá-la por suas causas imanentes e, na terceira parte, para
inaugurar uma ciência dos afetos.

144
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Entretanto, se considerarmos o Tratado Teológico-Político como


uma composição que segue o método analítico ou a posteriori, o seu ponto
de partida sendo os dados da imaginação, podemos encontrar nele uma via
para o conhecimento causal, ou seja, conhecimento racional ou intuitivo?
Para responder a tal indagação, buscaremos interrogar se os
capítulos metodológicos do próprio Tratado Teológico-Político nos ensinam
como as regras de sua leitura. A diferença entre o livro hieróglifo e o livro
inteligível, estabelecida no capítulo sétimo, reside, entre outros pontos,
precisamente nisso: o livro inteligível ensina aos seus leitores como pode
ser lido adequadamente, ele explica o seu sentido, ao passo que o hieróglifo
só pode ser entendido com referência a dados extrínsecos a ele, dados tais
como o temperamento imaginativo do autor, suas relações sociais, o
momento histórico em que escreve, os eventos particulares a que pretende
responder. Resumamos assim a interrogação que anima o exame: os capítulos
metodológicos do Tratado Teológico-Político ensinam como abrir uma via
analítica para o conhecimento causal da política? Ensina como, partindo da
imaginação e da experiência política, elaborar um conhecimento da
causalidade eficiente imanente desta própria experiência?
Em seguida, cumprirá perguntar se o próprio Tratado Teológico-
Político efetua este percurso dos efeitos às causas. E se efetua, será preciso
ressaltar o peculiar uso que Espinosa faz da linguagem e das regras da
retórica clássica em seu tratado. Desde os estudos de Akkerman, com
efeito, nós sabemos que o Tratado Teológico-Político é uma peça de retórica,
composto segundo as regras da retórica clássica. Trata-se de um uso da
linguagem que é voltado para a imaginação política, as afecções da linguagem
no ânimo devendo suscitar suas paixões segundo a regra do docere,
comovere, movere. No caso do Tratado Teológico-Político, essa força
imaginativa da linguagem não está de todo separada da razão e da intuição,
pois se segue a via analítica é por conduzir ao conhecimento causal da
política, ou seja, ao seu conhecimento intuitivo. Não poderia ser diferente,
porquanto a não hierarquização dos modos de percepção não significa isolá-
los. Assim como não há razão e intuição em Espinosa sem imaginação, assim
também devemos dizer, reciprocamente, que não há imaginação sem
simultâneo conhecimento racional ou intuitivo.

Cátia Cristina Benevenuto de Almeida / Mestranda Filosofia USP /


catiabenevenuto@usp.br

Imaginação e Superstição
Na obra Tratado Teológico Político, Espinosa cerca a região do
sagrado,de forma que filosofia e religião devem permanecer separadas.No
entanto,o filósofo não pretende uma distinção para evitar ou minimizar
meramente a influência da Igreja instituída na produção do saber;mas sim
145
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

o que ele intenta é uma separação de natureza política,uma vez que a


Bíblia no século XVII é a principal fonte de legitimação de poder.
Tal questão é de grande evidência entre os pensadores deste
século, contudo a inovação espinosana se dá no método histórico crítico
de leitura do Livro Sagrado. E uma vez que a Bíblia é fonte de legitimação
de poder,é igualmente fonte de legitimação da Lei.
Daremos um salto agora até o capítulo IV do Tratado Teológico
Político onde Espinosa inicia fazendo uma distinção entre as leis da natureza
das leis dos homens e embora o filósofo afirme na obra Ética que os homens
“estão determinados por leis universais da natureza a existir e agir de uma
certa maneira”,a distinção se faz da seguinte forma: a lei compreendida à
partir da razão e a lei compreendida à partir das paixões e interesses e
dentro dessa distinção que Espinosa faz existe ainda outra,qual seja, a lei
compreendida sob o prisma da razão que é chamada divina e a lei
compreendida sob o domínio das paixões que se refere a lei dos homens,se
refere aos seus desejos,medos e é essa que os conduzem a esfera da
política.
Assim, podemos dizer que a lei divina é universal, pois que sua
finalidade só pode levar ao conhecimento verdadeiro de si enquanto um
modo da substância infinita, já a lei dos homens é sempre particular. A lei
universal não requer cerimônias e nem rituais, dispensa o apelo e a fé nas
narrativas históricas, enquanto que a lei dos homens vive do imaginário, se
alimenta da fé particular e para suprir a carência de conhecimento real
acerca das coisas, se apropria das imagens que se corporificam em rituais e
cerimônias, ou seja, “todo o tipo de superstições”.
E a confusão entre tais leis se dá unicamente quando se permanece sob as
condições do imaginário. Nesse caso, o teólogo que ávido por poder se
utiliza dos textos sagrados para persuadir as massas e essas por sua vez se
apegam a tais convicções pois vêem nelas respostas para seus temores,presas
fáceis da superstição. E imersos sob este contexto imaginativo, a tendência
é mesmo de recobrir a leis humanas de transcendência para torná-las muito
mais eficazes e daí se faz todo o equívoco entre o termo “lei divina”,que
terá seu sentido alterado,pois que o termo lei “é uma regra de vida que o
homem preescreve a si mesmo ou aos outros em função de um determinado
fim” (Tratado Teológico Político, cap.IV) e não para as necessidades naturais.
Portanto, nossa intenção nesse texto é priorizar o lugar que
conhecimento imaginativo ocupa acerca da superstição e quais influências
permeiam tal questão. E como disse Diogo Pires Aurélio em sua tradução e
introdução do Tratado Teológico Político, pela Editora Martins Fontes (2003)
que: o Tratado Teológico Político “é também o que se poderia chamar um
tratado da reforma da imaginação”. Será que Espinosa proporia uma correção
intelectual daqueles que vivem da especulação dogmática: o vulgo?Eliminar
a imaginação?Acreditamos que não. A imaginação é uma forma de
conhecimento que se realiza através da exterioridade, ou seja, ela ignora

146
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

as premissas de suas conclusões porque desconhece as causas que a


produziram, ela surge primeiramente das afecções corporais que são nossa
própria vinculação com o mundo, e por isso é esse imaginário o que permite
tal vinculação entre os homens de forma a consolidar a unidade e a força/
ação de um Estado. Por isso, seria impossível eliminar a imaginação, pois
esta se estende à vida em comum entre os homens, à vida social, produzindo
a relação entre os grupos;é o motor móvel da política.
“A imaginação, efeito das afecções corpóreas, move-se numa região
de signos indicativos que assinalam a situação presente de nosso corpo,
mas que são tomados como expressão da natureza íntima das coisas, sem
relação conosco. Isto imprime aos signos uma característica própria: a
instabilidade (tantas cabeças, tantas sentenças).No entanto, o signo surgira
exatamente com a função de conjurar a dispersão espacial das coisas e a
fragmentação temporal dos acontecimentos.Sua função era essencialmente
estabilizadora. Para realizá-la,será preciso que ultrapasse a dimensão indicativa
e se torne imperativo.Graças à memória,de um lado, e às paixões tristes do
medo e da esperança,de outro,a imaginação converte os sinais em
regras,preceitos,normas e valores” (CHAUÍ, Marilena. Da realidade sem
mistérios ao mistério do mundo Ed. Brasiliense, 1983, pp.84/85)
Em verdade, existe algo de positivo na imaginação para Espinosa.E
essa,dentre outras questões,tais como: o que são os signos,as imagens, o
papel da memória? Todos esses que circundam o complexo campo da
imaginação, é o que pretendemos desenvolver no decorrer deste texto.

Marcos Ferreira de Paula / DoutorFilosofia USP / marcosfdepaula@yahoo.fr

Crítica da linguagem e necessidade em Nietzsche e Espinosa


Numa passagem de Humano, demasiado humano, lemos o Nietzsche
crítico da linguagem: “Na medida em que por muito tempo acreditou nos
conceitos e nomes de coisas como em aetrenae veritates [verdades eternas],
o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou
ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo. O criador da
linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas
denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com palavras exprimir com as
palavras o supremo saber das coisas” (§11). O problema que aparece aí é
claro: consiste em tomar as palavras pelas coisas, a linguagem pela verdade;
fazer da própria linguagem um ciência. Entretanto, a “verdade”, para
Nietzsche, confunde-se com o próprio real. Em O crepúsculos dos ídolos, de
fato, o filósofo se diz próximo de Tucídides e do Príncipe de Maquiavel “pela
incondicional vontade”, que se poderia ver neles, “de não se iludir e enxerga
a razão na realidade – não na “razão”, e menos ainda na moral” (X, 2, grifos
do autor). O que nós podemos notar nestas rápidas passagens é que a
linguagem e seu problema estão intimamente ligados à imaginação (“ele
147
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

imaginou, isto sim...”), enquanto a razão, sem aspas, liga-se à realidade. A


conclusão é que a linguagem nos afasta do real e portanto de nós mesmos.
De um lado, portanto, temos, pela via da crítica da linguagem, um Nietzsche
é crítico das ciências e da metafísica; de outro lado, temos o crítico da moral
e da cultura.
Essa mesma crítica da linguagem pode ser encontrada alguns séculos
antes, em Espinosa. Também neste a linguagem pertence ao campo da
imaginação e “a maior parte dos erros consiste apenas em não aplicarmos os
nomes às coisas” (Ética, Parte II, escólio da prop. 47), assim como razão e
verdade encontram-se no próprio real. Espinosa nos adverte quanto à
necessidade de distinguir cuidadosamente “entre as idéias e as palavras
pelas quais significamos as coisas” (Ibidem., escólio da prop. 49). Mas se
Nietzsche e Espinosa se unem numa mesma crítica da linguagem, podem,
contudo, estar unidos em suas concepções de real? O universo absolutamente
infinito de Espinosa é o mesmo que o mundo “heraclitiano” de Nietzsche,
mundo que é puro devir e que a linguagem erra ao cristalizar em “verdades
eternas”? Tentaremos mostrar que não obstante todas as diferenças nas
concepções de mundo desses dois grandes filósofos, e apesar da crítica
que Nietzsche dirige a todas as metafísicas, há, no entanto, algo que os
aproxima também nesse ponto: trata-se do fato de que o real é antes de
tudo o necessário. Se em Espinosa é o conceito de causa sui que funda a
ontologia do necessário, em Nietzsche é o conceito de eterno retorno, ao
qual se liga a idéia de amor fati. E a crítica da linguagem permite discernir o
que está em jogo: a linguagem, pertencendo ao campo da imaginação,
leva à cristalização das palavras e conceitos, que passam a ser tomados eles
mesmos como “verdades eternas” da ciência, da cultura ou da moral. Mas,
com isso, o que escapa à nossa percepção é justamente o real em seu devir
necessário, é aquilo mesmo que caracteriza fundamentalmente o mundo e
nós, a necessidade absoluta de todas as coisas, o real necessário tal como
ele é.
Mas a linguagem, em Nietzsche como em Espinosa, não é
imprescindível: pertencendo à imaginação, ela é contudo um auxiliar
indispensável do próprio trabalho de pensamento. Trata-se então, não de
expulsar a linguagem como obstáculo intransponível, mas de encontrar novas
maneiras de dizer, e, mais do que isso, trata-se de dizer o que tem que ser
dito. Que Nietzsche e Espinosa realizaram tal tarefa, seus próprios estilos
parecem mostrá-lo: um introduzindo a poesia na reflexão, o outro utilizando
o more geométrico, ambos elaboraram um pensamento singularmente crítico.

Samuel Mendonça / Prof. Dr. Filosofia PUC-Camp / samuelms@gmail.com

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Mariana Baruco Machado Andraus / Doutoranda Artes UNICAMP /


mari.baruco@gmail.com

Verdade representada, verdade artística: a linguagem como limite


e expansão do conhecimento
Há frequentemente o equívoco de se compreender as coisas por
meio de uma linguagem que, por melhor que seja, é artificial e ilusória, na
medida em que não consegue atribuir com precisão termos a fenômenos,
mas, no máximo, “representar” as coisas. Julgamos fundamental a posição
de Nietzsche, estruturada pela vontade de potência, para a crítica da
linguagem. A representação é sempre arbitrária e simplificadora, como o é
a linguagem, na medida em que criamos ilusões pelo uso limitado de nosso
intelecto, da mesma forma que a arte passa a ser uma necessidade vital de
expansão do conhecimento. A possibilidade da verdade artística, nesse
sentido, aponta para uma dimensão mais abrangente de conhecimento, se
comparada com a dimensão da representação e seus limites. Neste trabalho
pretendemos discutir o conceito de verdade para Nietzsche, aproximando-
o da arte e mostrando as limitações da linguagem para a construção do
conhecimento, rechaçando, portanto, a verdade representada. Tomando
o pensamento de Nietzsche, a verdade só existe em virtude da ilusão, da
mesma forma que a possibilidade do conhecimento só se presta ao
concebermos a ignorância. Então, a busca constante por algo que ligue,
una ou aproxime diz respeito à meta de muitos filósofos, embora operem
com os opostos, mas nunca de forma a conceber cada parte isoladamente:
englobam necessariamente o outro lado. O estatuto de ordem do mundo
está na busca do entre-dois - expressão preferida de Rogério Miranda de
Almeida quando discorre sobre o ponto intermediário da filosofia - e justifica
a verdade no dinamismo da vontade de potência. A verdade para Nietzsche
não apresenta sentido dogmático ou sectário, mas parte de um dinamismo
advindo de diferentes perspectivas. Sublinhamos que o conceito de verdade
em Nietzsche não se sustenta como um conceito fechado em si mesmo,
então, não tem acepção estanque: constitui perspectivas vivas como a
própria dinâmica das forças internas do orgânico e do inorgânico. A
metodologia utilizada na presente investigação é a de revisão bibliográfica,
e o referencial teórico refere-se ao perspectivismo, na consideração do
filósofo do eterno retorno de que não há possibilidade de conhecimento
último das coisas. O perspectivismo sustenta-se na impossibilidade de
estabelecimento do estatuto de verdade. Não se pode pretender encontrar
em Nietzsche a construção de quaisquer conhecimentos válidos de forma
duradoura, pois ele busca precisamente a revaloração do conhecimento
estabelecido e determinado. Nesse sentido, a crítica de Nietzsche ao
conceito de verdade está na mesma perspectiva de outras categorias
substantivas. A verdade é ficção para o filósofo do eterno retorno e, desta
forma, não é capaz de construir bases, edifícios ou fundamentos para ele

149
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

mesmo ou para o mundo fenomênico. A linguagem é, pois, limitadora do


conhecimento não apenas pela incapacidade de correspondência entre o
discurso e o fenômeno, mas principalmente pelo fato de que se refere à
máscara instrumental da comunicação e, como tal, muda constantemente,
como o próprio homem, dado que o dinamismo da vida inclui a forma de
comunicação humana. Com efeito, a verdade representada como verdade
linguística é limitadora, do mesmo modo que as outras formas de apreensão
do conhecimento, o que nos leva a argumentar que a possibilidade do
conhecimento deve ser questionada. Por outro lado, a linguagem artística
exprime-se de forma dinâmica por meio do corpo, imagens, sons, entre
outras mídias. O foco do presente exame na dimensão estética pretende
superar a derradeira limitação da tradição ocidental e civilizatória, qual seja,
a razão instrumental. Os resultados que esperamos alcançar sustentam-se
na busca de alternativa ao conhecimento por meio da arte nas suas diversas
acepções, especialmente a sinalização do fazer artístico como constructo
da possibilidade da verdade. Sublinhamos, mais uma vez, verdade
compreendida no seu dinamismo e não de forma estanque e derradeira.

MESA MANHÃ 14 (5ª feira, dia 01/10, 09:00h-10:40h)


Mediador: Ivo da Silva Jr. (UNIFESP)

Danilo Bilate / Doutorando Filosofia UFRJ / danilobilate@yahoo.com.br

O pathos da indiferença e o outro: a ética da nobreza em


Nietzsche
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o estatuto da ética
nietzscheana. Para alcançá-lo, todavia, será preciso enfrentar diversos
problemas e esclarecer vários conceitos de certo modo obscuros do
pensamento de Nietzsche. Em primeiro lugar, será preciso questionar se
há, nele, de fato, uma ética propositiva. Sabe-se que o termo “ética” é
pouco usado por Nietzsche, que dá preferência ao termo “moral” e que na
maioria das vezes em que ele usa o último termo, o faz com a intenção de
se opor a um conjunto de regras praxeológicas que ele identifica com a
tradição metafísica-cristã. Por esse motivo, Nietzsche provoca uma leitura
que o classifica como um “superador” da moral. A hipótese a ser levada em
consideração é a de que Nietzsche luta contra um tipo específico de moral,
mas, por outro lado, de que essa luta não negaria a possibilidade de existência
de outras novas e diferentes morais. Assim, a luta nietzscheana seria contra
qualquer tipo de moral que deprecie a vida, isto é, contra a decadência e o
niilismo. Contudo, para Nietzsche, seria ainda possível pensar em uma moral
ascendente, afirmadora e potencializadora da vida. Mais ainda, pretendemos
mostrar que há uma proposta – ainda que assistemática e dispersa – de

150
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

uma moral, contra-tradicional ou anti-metafísica, dionisíaca ou trágica, que


teria como alicerces fundamentais os conceitos de amor fati, eterno retorno,
além-do-homem, dentre outros. Inspirados por Deleuze, chamá-la-emos de
“ética” para contrastá-la com a “moral” metafísica-cristã.
Ademais, pretendemos mostrar que, para Nietzsche, é impossível
uma supressão ou mesmo uma superação de qualquer moral. Se impossível
suprimi-la, com o reconhecimento dessa impossibilidade, resta a escolha
pela ojeriza ou pelo amor a essa condição. Haveria, então, uma proposta
por um engajamento moral. Isso quer dizer, por uma assunção querida do
papel de criador de sentidos que é, por conseqüência, também a assunção
querida de uma outra moral – uma ética – que segue esse outro sentido
então criado. Esse engajamento por uma ética, proposta nas entrelinhas
por Nietzsche, é fruto desse imperativo intransponível: o de viver. Se a vida
é vontade de poder, estando vivo o homem é obrigado a não apenas
conservar suas forças mas, igualmente, expandi-las. A expansão da vontade
de poder se dá através da interpretação, ou seja, da produção de sentidos.
Aquele que se reconhece como corporização da vontade de poder, como
criador de sentidos e de valores, assume apaixonadamente e alegremente
essa condição, tal homem pode então criar uma nova moral, afirmativa e
não decadente. Tal homem deseja a condição de criador, quer produzir
sentidos porque ama o fato de não poder deixar de interpretar. Com essa
aceitação alegre, o imperativo “tu deves”, agora, é assumido, engajado,
tomado como seu, como querido e desejado. A força dessa nova moral,
desse novo “tu deves”, consiste no reconhecimento da individualidade
fisiológica, na imanência do indivíduo como corpo. Não mais uma moral que
se pretenda universal ou metafisicamente fundada. Uma ética, outrossim,
que seja estabelecida individualmente, em respeito às especificidades
fisiológicas de cada indivíduo, de cada pessoa, como corporização da vontade
de poder; uma ética que valoriza a singularidade, a diferença, a transitoriedade
e a imanência.
Aquele homem, identificado freqüentemente como “nobre” ou
“senhor” – será preciso mostrá-lo – tem como característica marcante o
que Nietzsche chama de pathos da indiferença ou pathos da distância. É
nosso objetivo final analisar o que significa exatamente esse pathos e como
se poderia acomodá-lo a uma ética da diferença. Isso porque o evidente
elogio que Nietzsche faz à indiferença e a distância parece contradizer a
proposta do amor incondicional ao real – amor fati – e do conseqüente
amor e respeito à diferença e ao outro. Cremos estar aí a explicação da
imagem do “grande nojo do homem” que sente Zaratustra e da necessidade
que ele sente de livrar-se de tal nojo. Como é possível que a nobreza
consista, ao mesmo tempo, em amar o outro e a lhe ser indiferente? Reside
aqui o impasse que pretendemos resolver.

151
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

Ildenilson Meireles / Prof. Dr. Filosofia UNIMONTES / imbarbosa@ig.com.br

Assim falou Zaratustra como propedêutica à superação de si


Para Nietzsche, Zaratustra não somente fala diferente de qualquer
‘sábio’, ‘santo’, ‘salvador do mundo’ ou outro décadent, mas “ele é
diferente”. A partir dessas indicações de Nietzsche fornecidas em Assim
falou Zaratustra, pode-se tomar o engajamento do homem sobre si mesmo
como um tornar-se si mesmo, um criar a si mesmo como liberação definitiva
de uma determinação transcendente. Não só a criação de si mesmo, mas a
do mundo, de uma nova consideração do mundo traduzem a tarefa supremo-
afirmativa da filosofia nietzscheana inaugurada, a nosso ver, como
propedêutica, pelo ensinamento de Zaratustra. É num constante jogo de
perspectivas que Nietzsche expressa a autosuperação do homem como
uma vertigem, um abismo do qual não se pode escapar tendo em vista que
a negação de Deus como valor supremo coloca o homem diante de uma
experiência de superação de si e de sua velha concepção de mundo. É
nesse sentido que o surgimento do além-do-homem depende de todo um
labor do homem sobre si mesmo, de uma incessante criação de si como
forma de se redimir de sua humanidade. A pergunta que deve ser feita é:
de quem o homem deve aprender a criar uma nova imagem de si mesmo e
do mundo? Segundo a letra de Nietzsche, Zaratustra é o primeiro a
encaminhar o homem para o sentido afirmativo de si e do mundo, uma vez
que ele é o único capaz de toda destruição dos velhos ideais e de todo
desprezo pelo homem. Zaratustra, o mestre do eterno retorno, é o tipo
niilista mais radical por enfrentar o pensamento mais abissal e tentar contornar
as implicações contidas na idéia do eterno retorno do ponto de vista de
uma afirmação incondicional do mundo. Além disso, ele é o que ensina o
além-do-homem (der Übermensch) como esperança terrena de plenitude
do humano e mostra o último homem (der letzte Mensch) como forma
degenerada do tipo homem que deve ser superada. Nesse sentido, o próprio
Nietzsche/Zaratustra/psicólogo se coloca a tarefa não somente de
diagnosticar a doença do homem moderno, mas de devolver a ele sua
saúde. Essa idéia de que o homem é apenas um momento de transição
para algo de melhor ou superior se consuma no final da seção do texto “Nas
ilhas bem aventuradas” em que Nietzsche fornece pistas de que somente o
ato de criar é capaz de redimir o homem de sua própria condição e lançá-lo
para além de si mesmo. A idéia capital no início desse discurso de Zaratustra
é a transvaloração operada em relação à perspectiva adotada para o futuro
do homem, ou seja, não mais Deus, mas o além-do-homem constitui agora
a meta a ser alcançada como “supremo brilho e potência do tipo homem”.
Nosso trabalho pretende mostrar que a superação de si proposta pela filosofia
de Nietzsche encontra no texto de Assim falou Zaratustra um
encaminhamento importante para o alcance de um outro modo de existência
para além da noção moderna de sujeito. Trata-se, a nosso ver, de um

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

empreendimento capaz de abalar profundamente a concepção moderna


de subjetividade cuja pretensão busca alcançar um estatuto definitivo para
a estrutura subjetiva incapaz, segundo Nietzsche, de criar outras
possibilidades de vida. Nesse sentido, os ensinamentos de Zaratustra trazem,
ao mesmo tempo, a ruptura necessária com os subprodutos metafísicos
remanescentes da morte de Deus e a perspectiva de uma nova consideração
do homem longe de toda transcendência que leve a ultramundos.

Leon Farhi Neto / Doutorando Filosofia UFSC / leonfarhineto@gmail.com

“Libera ingenia” e “freie Geister”


Das inúmeras interseções que indicam a aproximação conflituosa
entre os pensamentos de Spinoza e Nietzsche, investigaremos aquele
quiasma que se estabelece pelas expressões ‘libera ingenia’, no latim de
Spinoza, e ‘freie Geister’, no alemão de Nietzsche, comumente traduzidas,
a primeira, por ‘naturezas livres’, e a segunda, por ‘espíritos livres’.
A identidade conceitual das duas expressões, se houvesse,
permitiria a tradução de uma expressão pela outra. Mas a nossa questão
não é uma questão de tradução. Além do mais, buscar a identidade conceitual
significaria eliminar a diferença, o elemento conflituoso, na aproximação
entre Spinoza e Nietzsche. Um quiasma, um ‘X’, no pensamento, indica
sempre uma convergência tanto quanto uma divergência.
Acreditamos que a análise dos conceitos de libera ingenia e freie
Geister lançam luz sobre as concepções, num e noutro pensador, da relação
entre o sujeito e o poder, entre as subjetividades e os mecanismos de
assujeitamento.
Em Nietzsche, o personagem excepcional do espírito livre convive
com outros dos quais se distingue: seu irmão, o homem de ação; seu
oposto, o espírito cativo; seus próximos, o homem honesto e o espírito
científico; suas sombras, o poeta e o andarilho, seu alter ego, o sacerdote;
seu desvio, o mártir. O personagem do espírito livre erra entre a filosofia, a
arte, a ciência e a religião, e sempre esquiva o hábito e as forças
subjetivadoras da moral e da política. Numa definição inicial, Nietzsche afirma
que o ser humano de espírito livre é aquele que pensa de modo diverso do
que poderíamos esperar, se considerássemos sua origem, meio e posição
social, as opiniões predominantes em sua época e lugar, isto é, o solo e as
circunstâncias, nos quais um sujeito é criado. Pois, justamente, o espírito
livre é um sujeito que se cria a si mesmo, pelo conhecimento purificador da
verdade. Entretanto, considerado de mais perto e com maior maturidade,
absolutamente, o espírito livre é um inexistente e a verdade uma vacância.
Não há, de fato e sem ilusões, na existência, um só espírito livre, assim
como não há vontade livre nem verdade sem perspectiva. Mas, justamente,

153
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

como ilusão, na verdade de cordas soltas, o espírito livre pode apresentar


um significado positivo e afirmativo da vida criativa e de um por vir.
No tecido conceitual de Spinoza, em contexto teológico-político,
pertinente à opinião e à imaginação, o personagem de natureza livre
também convive com outros, que lhe são mais ou menos próximos e
enriquecem seu significado: o homem livre, o escravo, o cidadão, o inimigo,
o vulgo, o homem de ânimo iníquo, o de ânimo íntegro, o sui juris, o mártir.
Entre o assujeitado e o sujeito, Spinoza ressalta uma falha – todo cidadão
encobre, de fato, um inimigo hostil ao poder instituído. Essa hostilidade
irredutível do cidadão é a marca de seu engenho insubmisso, sua
singularidade, sua potência inalienável. Por mais abrangentes que sejam os
meios que o poder político dispõe para obter a docilidade dos sujeitos, a
plena obtemperação na obediência, estes preservam-se na falha que impede
a coincidência do assujeitamento com a subjetivação. Entre a dócil
obtemperação e a contumácia resistente, entre o culto externo imposto e
o culto interno vinculante, entre o artifício e a índole natural, entre as
inclinações do apetite e os ditames da razão, entre guiar-se pelas direções
da volúpia e pelo verdadeiramente útil, estabelecem-se as falhas
subjetivadoras que tornam a liberdade de opinião, de juízo e de pensamento
uma condição necessária da duração dos regimes políticos, e possibilitam,
para o sujeito, o alcance de um patamar filosófico-ético, em plena cidade,
em pleno âmbito teológico-político.
Mediante os conceitos de espírito livre e engenho livre duas ordens
do pensamento como que se tocam, mantendo-se distintas. Numa e noutra
ordem, a ilusão e a imaginação, que falseiam a concepção adequada da
liberdade, são os vetores que levam à convergência, no quiasma. O elemento
divergente fica por conta da remissão de cada um dos dois conceitos a
outros conceitos de sua ordem própria de pensamento. Isto é, no caso de
Nietzsche, a articulação da excepcionalidade do espírito livre com a
pluralidade dos impulsos no sujeito, com o espírito de rebanho predominante,
com a rejeição da democracia. No caso de Spinoza, a divergência deve-se
à articulação da irredutibilidade do engenho livre com o papel afirmativo da
razão e da consciência, com a potência da multidão e a naturalidade
normativa da democracia.

Márcia Rezende de Oliveira / Doutoranda Filosofia USP /


marrccia@hotmail.com

A possibilidade da grande saúde


“O homem considerou por demasiado tempo suas propensões
naturais com ‘maus olhos’, de tal modo que, nele, elas se irmanaram
finalmente com a ‘má consciência’. Um ensaio inverso seria em si possível —
mas quem é forte bastante para isso? [...] seria necessária, em suma, e é

154
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

pena, justamente essa grande saúde!... Isso, precisamente hoje, é sequer


possível?...” (Genealogia da Moral, II, § 24).
Em 1887, Nietzsche, ao final da segunda dissertação de Para a
genealogia da moral, arroga ao “homem do futuro” a grande saúde necessária
para irmanar com a “má consciência” todos os ideais hostis à efetividade
que foram até agora divinizados. Ou seja, ligar a uma consciência doente
todos aqueles ideais que, de alguma forma, se colocam contra a efetividade.
Nesse momento, 1887, Nietzsche parece não identificar esse homem
do futuro. Mesmo conhecendo bem as exigências àquele que irmanará a
“má consciência” com os ideais hostis à efetividade, ele não as toma para si.
Nessa obra, isso diz respeito somente a um homem mais jovem e possuidor
da “grande saúde”. Contudo, o filósofo esclarece algumas das prerrogativas
desse “homem do futuro”: encontrar-se fortalecido por guerras e vitórias,
estar acostumado ao perigo e à dor, ao gelo e às montanhas.
No entanto, nos escritos de 1888, passado apenas um ano, em
sua última obra publicada, Nietzsche curiosamente se conta a si mesmo
como aquele que encontrar-se fortalecido por guerras e vitórias, que está
acostumado ao perigo, à dor, ao gelo e às montanhas. Ainda mais o filósofo
se diz “sadio no fundamento” (Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, §2).
Nota-se aí uma coincidência com aquilo que em Para a genealogia da moral
é arrolado ao homem do futuro. Não bastasse a caracterização que Nietzsche
faz de si mesmo, o título dessa obra é ainda mais sugestivo: Ecce homo.
A expressão latina Ecce homo é uma remissão direta ao texto bíblico.
Significa “eis o homem” e encontra-se no Evangelho segundo São João (Jo.
19:4), usada por Pilatos para apresentar Cristo aos judeus durante seu
julgamento. Ao usar a mesma expressão usada por Pilatos, para dar título à
obra em que si conta a si mesmo, Nietzsche evoca a contraposição ao ideal
que por dois milênios considerou as propensões naturais do homem com
“maus olhos”, opondo-se tanto ao ideal, quanto “aquilo que teve de crescer
dele, do grande nojo, da vontade do nada, do niilismo” (Genealogia da
moral, II, §24). Nietzsche parece preparar o terreno, com esse contar-se a
si mesmo para aquilo que ele toma em 1888 como sua grande tarefa, a
transvaloração de todos os valores. Tarefa que ele acredita ter sido levada
a cabo em O Anticristo.
O propósito geral deste artigo é o de analisar Ecce Homo a partir
do parágrafo vinte e quatro da segunda dissertação de Para a Genealogia
da moral. Vale reiterar que nos dois textos Nietzsche arroga ao opositor do
ideal ascético a grande saúde, mas em Para a Genealogia da moral, esse
tipo saudável é o homem do futuro, em Ecce homo o próprio Nietzsche
parece coincidir com a descrição de um tipo saudável. Nesse sentido
acreditamos que uma análise mais detida daquilo que se coloca a partir do
cotejo dessas duas obras mais de O Anticristo, pode lançar luz a compreensão
mais adequada dos últimos escritos do filósofo. Destarte, começamos por
analisar o parágrafo vinte e quatro da segunda dissertação de Para a
155
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

genealogia da moral, passando em seguida para a relação de oposição que


se estabelece entre os dois últimos escritos de Nietzsche, Ecce Homo e O
Anticristo, para só em seguida analisarmos apresentação fisio-psicológica
que se dá em Ecce Homo.

MESA MANHÃ 15 (5ª feira, dia 01/10, 09:00h-10:40h)


Mediador: Renato Nunes Bittencourt (UFRJ)

João Evangelista Tude de Melo Neto / Doutorando Filosofia USP /


joaonetofilosofia@gmail.com

A Concepção nietzschiana de fatalismo


O fatalismo é usualmente entendido como uma concepção segundo
a qual os acontecimentos já estão fixados de antemão por um poder exterior
e superior ao querer humano. Esse poder seria o fado, uma força
independente do homem, mas que determinaria, previamente, todo
transcorrer. As ações humanas, contrapostas ao fado, seriam impotentes
para orientar o rumo do acontecer, pois tudo já estaria fixado
independentemente de qualquer escolha. Nessa acepção de fatalismo,
vontade e fado são concebidos a partir de uma dicotomia em que o segundo
pólo tem primazia de poder sobre o primeiro, pois a vontade dos homens é
encarada como estando sempre subjugada ao fado.
Nas obras de Nietzsche, entretanto, o termo aparece com outra
conotação, pois o dualismo fado e vontade não consistiria uma dicotomia,
mas uma oposição em que os pólos são necessariamente complementares.
Essa posição está presente, principalmente, nos escritos do último período.
No entanto, já em Fado e história – ensaio produzido em 1862, quando o
filósofo tinha apenas 17 anos – esboços da idéia já podem ser encontrados.
Em O Andarilho e sua sombra (1880), um dos textos escrito por Nietzsche
como uma espécie de apêndice ao Humano demasiado humano, o pensador
também já apresenta uma concepção acerca do fatalismo muito próxima à
dos livros da fase final. Na secção 61, intitulada de Fatalismo turco, o fado
é apresentado de uma forma bem diversa como é concebido pela tradição.
No trecho, a inseparabilidade entre fado e a ação humana é entendida
como inconcebível. O homem, em seu agir, não estaria contraposto ao
fado, pois seria parcela necessária à sua efetivação. “O fatalismo turco tem
o defeito fundamental de contrapor o homem e o fado como duas coisas
separadas. [...] Na verdade, cada ser humano é ele próprio uma porção de
fado; quando ele pensa contrariar o fado da maneira mencionada, justamente
nisso se realiza também o fado” (NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado
humano II. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. p. 199.) O futuro não seria determinado de antemão por algo apartado

156
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

do homem, ao contrário, a posteridade dependeria do próprio homem.


“Você mesmo, pobre amedrontado, é a incoercível moira que reina sobre
os deuses, para o que der e vier; você é a bênção ou a maldição, e, de
todo modo, o grilhão em que jaz atado o que é mais forte; em você está
de antemão determinado o porvir do mundo humano, de nada lhe serve
ter pavor de si mesmo” (Ibidem).
Nessa acepção, o fatalismo não é entendido a partir de uma espécie
de telos estipulado por uma força maior e exterior. O fado não é um alvo a
atingir, mas a ligação necessária de todo transcorrer dos acontecimentos.
Não há uma prévia determinação, conforme a qual o homem não fosse,
também uma força atuante. Nietzsche deixa claro que, no seu entender,
“contrariar” ou “resignar-se” ao fado seriam, ambas, atitudes fatalistas e,
nesse sentido, não haveria efetivamente uma oposição entre fado e vontade.
Crepúsculo dos ídolos, obra da fase final, vai na mesma de O Andarilho e
sua sombra. Na seção seis do capítulo, Moral como antinatureza, o filósofo
considera “o indivíduo [...], de cima a baixo, uma parcela de fatum [fado,
destino], uma lei mais, uma necessidade mais para tudo o que virá e será”
(NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Sousa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.37.). Na mesma direção vai a
seção oito de Os quatro grandes erros: “A fatalidade do seu ser [do homem]
não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será. [...] Cada
um é necessário, é um pedaço do destino, pertence ao todo, está no
todo” (NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de
Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.46.).
Em nossa apresentação, pretendemos examinar o que Nietzsche
entende por “cada um é necessário”? Da mesma forma, o que ele quer
dizer com: “está no todo” e “o indivíduo é uma necessidade para o que foi
e será”? E mais: qual a diferença entre o fatalismo do pensador e o
determinismo? Ao nosso ver, essas questões e conseqüentemente a
concepção nietzschiana de fatalismo, só podem ser entendidas se pensada
a partir da cosmologia do filósofo, a saber, da teoria das forças e a doutrina
do eterno retorno. Nesse sentido, tentaremos trabalhar essas questões
através do exame da cosmologia nietzschiana.

Marlon Miguel / Mestrando Filosofia Paris I – Sorbonne /


marlonmiguel@gmail.com
Daniel Nogueira / Graduado Filosofia PUC-Rio /
danielnogueira86@gmail.com

Experiência e decisão na filosofia nietzscheana


Nietzsche destruiu a concepção de sujeito tradicional resumindo-a
na fórmula do atomismo. A visão clássica metafísica se valeu sempre de
conceitos atômicos essenciais para a definição do sujeito: este é sua
157
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

consciência, alma, espírito, cérebro, ego, essência, etc... Com Nietzsche


aprendemos que o indivíduo é uma conjunção de forças caóticas, um ser
múltiplo, esquizofrênico, desregrado; um corpo partido em transformação
contínua, jamais realizado, de origem também múltipla. O (não) sujeito
nietzscheano é sempre uma resultante, um efeito da configuração dessas
forças a cada instante em um gesto. Tudo possui no fundo, um quantum
de força que é um impulso, um querer e um atuar. Tal quantum é, ao
mesmo tempo, causa e efeito. Ele é sempre absolutamente necessário –
não existe, de modo algum, a possibilidade desse quantum se manifestar
ou não; ele não é livre para isso. “Não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar,
do devir; ‘O agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo”
(Genealogia da Moral, I, §13.). A partir daí, Nietzsche procura mostrar como
o forte não é livre para ser fraco – e toda a questão moral nasce justamente
do fraco forçar o forte a um mal estar, introjetando-lhe uma “má consciência”;
é assim que o forte torna-se mau.
A questão da criação de si, do processo de transformação de um ser
em algo é delicada, intricada de problemas. Por que nos transformarmos
nisso e não em outra coisa, que papel tomamos nesse processo? O que ou
quem toma essa papel? Segundo a filosofia nietzscheana o caos (ou a
diferença, a multiplicidade) é princípio fundamental – caos que é sempre
organizado em configurações, em equilíbrios temporários. O princípio
ontológico do mundo nietzscheano é portanto duplo: por um lado diferença,
forças caóticas desordenadas, por outro lado, série, repetição, forma,
configuração; de um lado Dionísio, de outro Apolo. A mesma regra vale
para o indivíduo: este é indivíduo-forma. Mas como pode esse mesmo
individuo tornar-se ativo? Como pode ele decidir-se por si mesmo? Como
pode ele tornar sua vida consistente e não apenas um ser carregado pelas
forças externas? A filosofia de Nietzsche deve ser vista à partir de uma tal
problemática, à partir da tomada de poder pelo indivíduo de sua potência
própria. Cabe a nós a descoberta, a cada instante, de brechas que permitam
a possibilidade de se tomar decisões – e é preciso levar tais decisões às
últimas conseqüências. Em um fragmento póstumo Nietzsche pergunta:
“quanto de verdade pode suportar um homem sem degenerar? E sem ser
levado ao desespero pela contradição, hostilidade e má compreensão?”
(Fragmentos Póstumos, Primavera-Outono 1884, §26[50].). Talvez um novo
critério possa ser pensado, uma medida derivada do grau de ser que nos
reivindicamos – pelo que decidimos ser – e até que ponto podemos agüentar.
Uma tal formulação é o sumo do questionamento ético à partir de Nietzsche.
A problemática deve ser desenvolvida à partir do conceito de
experiência. Pois não havendo um significado essencial, o indivíduo precisa
se colocar por inteiro na experiência, precisa se expor. Apenas assim ele se
torna verdadeiro artista e pode esculpir a si próprio. O sujeito deve portanto
se entregar por completo, abraçar o devir e jamais permanecer estático,
pois ele jamais deixa de se tornar, embora cada vez mais o faça em função

158
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

do que é atualmente – a diferenciação radical se torna mais difícil com o


passar do tempo, visto que seu modo de ser é cada vez mais determinado
e “completo”, realizado.
Desenvolver ao máximo o Si, cultivar as paixões de modo que elas
impulsionem para mais, aprofundar-se nos lugares mais remotos são algumas
das vias que o vivente pode seguir para fazer de sua subjetividade uma de
tipo superior. Ainda mais: em vez de se deixar levar pelo fluxo da vida com
suas determinações próprias e padrões (o “você deve”), a necessidade da
diferenciação, do cultivo (o “é preciso que eu”), deve ser postulada como
horizonte para si próprio.

Rebeca Furtado de Melo / Mestranda Filosofia UERJ /


rebecafurtado@bol.com.br

Nietzsche e a ‘grande razão’: uma resposta à metafísica da


subjetividade
Na presente comunicação pretendemos comentar a posição
nietzschiana em relação à subjetividade moderna a partir da interpretação
de um trecho de Assim falou Zaratustra, a saber, Dos desprezadores do
corpo. Nessa passagem, Nietzsche apresenta uma concepção própria de
corpo; o corpo como grande razão. Há aqui, a nosso ver, uma referência
direta à modernidade que considera a ‘razão’, o ‘eu’, como fundamento
ontológico de todo conhecimento, o qual na referida passagem Nietzsche
denomina pequena razão. Ao nomear tal razão como “pequena” entendemos
que Nietzsche evidencia sua discordância em relação a esta tradição. A
filosofia moderna, considerada como um todo, parece nascer a partir de
um deslocamento da questão ontológica. Tal deslocamento diz respeito ao
aporte ontológico, o qual na filosofia medieval é entendido como ser
transcendente, absoluto e necessário, que garante a realidade independente
do sujeito; e que, na filosofia moderna é marcado pela emancipação da
subjetividade como o princípio que posiciona e possibilita o conhecer.
Descartes, por meio de seu projeto filosófico, instaura o cogito como a
única idéia suficientemente clara e distinta capaz, portanto, de ser ponto
de partida e fundamento para todo o seu sistema filosófico. Respeitando o
rigor metodológico autoimposto, Descartes chega àquilo de que não pode
duvidar, a saber, a certeza expressa pelo cogito, que passa a ser, portanto,
a condição de possibilidade para todo e qualquer conhecimento seguro e
verdadeiro. A supremacia da res cogitans, substância autônoma e promovida
ao nível da unidade imediata mais fundamental, visto que passa a ser condição
de possibilidade para acessar e elaborar qualquer tipo de conhecimento,
inaugura o que chamamos de metafísica da subjetividade. Kant com sua
filosofia do sujeito transcendental parece fazer parte de uma mesma
tradição, radicalizando e consolidando a subjetividade como medida
159
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

ontológica. O eu, o sujeito, a razão são os elementos considerados anteriores


ontologicamente, pois são o suporte necessário para o aparecimento de
todo e qualquer ente. O homem, assim, é transformado em sujeito “centro
de referência do ente enquanto tal”, e todo ente só é considerado e
estabelecido enquanto objeto, uma vez que este sujeito o representa,
conhece. O mundo, e a totalidade dos entes passam a ser, com isso,
dependentes desde sujeito que pode conhecê-lo, determiná-lo, posicioná-
lo.
Nietzsche aparece, neste contexto da história da metafísica da
subjetividade, de maneira diversa. Desde seus primeiros escritos, ele já
apresenta críticas à noção moderna de sujeito, sobretudo colocando em
dúvida a abrangência e domínio da consciência, ou da subjetividade. Em
diversos aforismos espalhados por seus livros critica a noção de livre-arbítrio,
baseada numa noção de consciência autônoma e soberana. Nietzsche
também critica a suposição da consciência como um princípio não
perspectivístico dado a priori, capaz de acessar e posicionar todos os demais
entes. E, além disso, a crença na anterioridade ontológica da consciência.
Defende, em diversos textos, que esta crença é marcada por uma “fé na
gramática” ou ainda por uma “confusão entre causa e efeito”, que toma a
consciência humana como causa, como o elemento mais simples e primordial,
enquanto, para Nietzsche, é um dos mais complexos e tardios, visto que
não há um sujeito a priori, mas que o sujeito é resultado (efeito) de um
processo incessante de autoconstituição.
Em nossa fala pretendemos, portanto, analisar essa passagem na
qual Nietzsche não só apresenta uma crítica, mas propõe também sua própria
concepção do que seja a vida e de como se dá a realidade. O corpo aparece,
então, como mais anterior ontologicamente que a razão, tal como essa é
tradicionalmente entendida. Esse corpo não se restringe, porém, ao corpo
físico, mas, se refere antes, a um processo de constituição da realidade.
Corpo é definido como uma “multiplicidade com um único sentido”, quer
dizer, corpo é a resultante de uma articulação relacional de elementos que
gera unidade. Essa grande razão ‘não diz eu, mas faz o eu’, pois é a descrição
do processo de produção incessante de vida. Tal dinâmica de produzir corpo,
ou de “corporificação”, é a descrição da própria vontade de poder. Vontade
de poder é como a totalidade das coisas se determina e se produz e por
isso, não está restrita a uma produção humana, mas é o como se dá a
realidade. Assim, percebemos nessa passagem não só uma crítica à metafísica
da subjetividade, mas, ‘contra essa pequena razão’ à apresentação de algo
mais fundamental e originário: o corpo, a grande razão. Desejamos mostrar,
portanto, como Nietzsche chega ao auge de sua crítica à filosofia moderna
por meio da elaboração de sua própria filosofia. Baseado num dos conceitos
centrais de sua obra, a saber, vontade de poder, ele, no mínimo, se distinguiria
e se destacaria nesse momento histórico, por alterar de forma significativa a
questão da subjetividade e do conhecimento, quer essa mudança seja

160
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

entendida como uma superação de tal metafísica, quer seja entendida como
uma radicalização da mesma.

Gilcilene Dias da Costa / Professora Educação UFPA / gilcilene@ufpa.br

Um novo qualitas do apetite (desejo) em Nietzsche


Como pode o homem ocupar-se tão somente da garantia do “pão
de cada dia”, e permitir que lhe falte amplidão a seus gostos e envergadura
a suas idéias, isto é, “alimento” ao seu espírito? Não seria este o maior
estado de selvageria entre os homens, o qual engendra a morte ao separar
o espírito de sua força? Não admira que o homem moderno tenha agora
um bem modesto quinhão, ao qual se apega com unhas e dentes! “Mas
quem lhe falou para engolir homens como ostras, príncipe Hamlet?”
(NIETZSCHE, F. Gaia Ciência, III, §167). Nessa prática compulsiva do “tudo
comer”, o processo é inevitável: come-se de tudo para “tudo saber”, apetece-
se de tudo para tudo conhecer. Não há recortes ou critérios, nem pontos
estáveis pelos quais se orientar. De tudo se come porque “tudo” é
absolutamente comestível para esse saber. Daí a hybris, a sanha, a volúpia,
o ilimitado do conhecimento no desejo.
De modo contrário a essa voracidade no desejo, o presente estudo
buscará discutir o conceito de desejo (apetite) numa perspectiva
nietzschiana, introduzindo um novo qualitas do apetite no desejo, isto é,
uma espécie de refinamento do gosto, sofisticação do paladar; um pathos
da distância como o diferencial do desejo entre a boa refeição (desejo
seletivo) e o simples comer. Aqui, Nietzsche nos ensina a sua “arte da
ruminação”: um comer seletivo e parcimonioso (o estômago de Zaratustra),
em contraposição ao comer compulsivo e indigesto (o estômago dos porcos).
Ruminar os pensamentos, as ações, o dia e a noite: “ruminando, eu me
pergunto, paciente como uma vaca: quais foram, afinal, as dez vitórias
sobre mim mesmo?” (NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Das cátedras da
virtude”). Por meio dessa arte, opera-se uma substancial transmutação do
alimento em algo novo, suplemento necessário para a vida (alimento para o
corpo e o espírito); uma devoração de tipo novo: “arte trágica” a ser
cultivada (“arte de si”), morte e renascimento, criação e destruição.
Nesse movimento, interrompe-se um clico de interpretações que
toma o sujeito e a subjetividade como os reais condutores do apetite no
desejo (uma vontade governada por um sujeito que deseja porque conhece,
avalia e age; que “tudo come” para “tudo saber” no inesgotável universo
do conhecimento). Na contramão da metafísica da subjetividade, o estudo
buscará constituir, com a ajuda dos filósofos Nietzsche e Spinoza, uma
compreensão de desejo que se coadune à nobre “arte da ruminação”, a
qual destitui a primazia do sujeito no campo do desejo. Em sua Ética, Spinoza
nos diz: “não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela,
161
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário,


é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la,
que a julgamos boa” (SPINOZA, Ética, III, Escólio da prop. 9). Nessa inversão,
é o desejo, enquanto esforço-necessidade, que assume as rédeas nos
processos de afecção (e não o sujeito). Em Nietzsche, o desejo é o motor
da criação do novo num duplo movimento: criação-alegre e destruição-alegre:
transmutação do peso e da dor, transfiguração do que somos ou nos
tornamos. Talvez uma aurora ou um porvir seja o novo ou, então, uma
música dionisíaca, “um canto à vida” capaz de colocar para dançar, no mesmo
movimento do pensamento e por contaminação, todo corpo educado, pouco
perceptivo e enrijecido pela moral.
Mas é bom que se esclareça: “entre apetite e desejo não há
nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo
aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite. Pode-se
fornecer, assim, a seguinte definição: o desejo é o apetite juntamente com
a consciência que dele se tem” (Ibidem). O desejo, desde que é uma lei
(imanente) que vige a existência de todo o homem, opera por uma força
irrevogável – o conatus – que é “o esforço pelo qual cada coisa se esforça
por perseverar em seu ser” (Ibidem). O desejo é a lei de um esforço
(conatus) que torna necessária toda a existência. Afinal, nos diz Spinoza,
“ninguém pode desejar ser feliz, agir e viver bem sem, ao mesmo tempo,
desejar ser, agir e viver.” É pelo desejo que buscamos diretamente o bem e
evitamos indiretamente o mal. E disso se segue um detalhe diferencial entre
apetite e desejo: “o doente come, por temor da morte, aquilo que lhe
repugna, enquanto o sadio deleita-se com a comida e desfruta, assim, melhor
da vida do que se temesse a morte e desejasse evitá-la diretamente”
(Ibidem).
Nietzsche, o desprezador do “simples” comer, extremou a sua
perspectiva fisiológica do apetite enquanto uma estética do desejo. Nesta
arte, não se come qualquer coisa, porque não se deseja qualquer coisa. A
língua e o estômago (de Zaratustra) são apurados demais para o simples
comer (o último homem). É hora do “bem comer”, comer seletivo e
parcimonioso, desfrutando-se das melhores iguarias, bebidas e companhias.
E é isto o que se propõe a desfrutar o seguimento deste trabalho.

162
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

MESA MANHÃ 16 (5ª feira, dia 01/10, 09:00h-10:40h)


Mediador: Marinê de Souza Pereira (USP)

Aldo Ambrózio / Doutorando Psicologia Clínica PUC-SP /


aldoamb@uol.com.br
Paulo Alexandre Cordeiro de Vasconcelos / Doutor Ciências da
Comunicação USP / paulovas@gmail.com

Aproximações do corpo e do pensamento em Nietzsche e


Espinosa
Explicita a identidade corpo-pensamento nas filosofias de Nietzsche
e Espinosa. Ambos os filósofos, e cada um a seu modo, lançam a suspeita
do duplo desconhecimento que temos das potências do corpo e da força
do pensamento por meio de nossa consciência. Nessa suspeita põem-se
em cheque a retórica do discurso racionalista que apontava uma pretensa
independência, superioridade e domínio do pensamento consciente racional
sobre os elementos inconscientes e perigosos do corpo e das paixões.
Tanto Nietzsche quanto Espinosa percebiam, primeiramente, que corpo e
pensamento não eram coisas duais e sim integradas e, também, que corpo
e pensamento operavam em uma região na qual a consciência poderia, no
máximo, funcionar como bússola e sinalizar o estado das composições e
decomposições que lá ocorriam caso se fizesse um bom uso da mesma por
meio da formação de idéias adequadas. O que é manifestado por ambos é
um inconsciente tanto corporal como de pensamento que: no caso de
Nietzsche é apresentado como o efeito da organização de forças que se
apropriam dos corpos lhe impondo um sentido e no caso de Espinosa é
apresentado como efeito de composições e decomposições entre os
encontros dos corpos entre si e dos corpos com os pensamentos e idéias.
Temos assim, uma perspectiva teórica que juntando as contribuições dos
dois filósofos, nos permite apreender que corpo e pensamento se tocam,
esfregam-se e fazem jogo, por meio de seus encontros, com as forças que
em uma época criam as estruturas e conceitos por meio dos quais podemos
sentir e pensar, ver e falar. E, seguindo essa orientação geral, pretendemos
problematizar a identidade corpo-pensamento partindo: primeiramente, da
perspectiva do discurso racionalista em que as noções aparecem separadas
e hierarquizadas e, em função disso, tomaremos o par corpo-espírito da
obra de Descartes como emblema, já que, o princípio do dualismo expresso
na mesma serviu de suporte desse discurso que dominou grande parte da
metafísica ocidental; para, posteriormente, num segundo momento,
traçarmos a genealogia da memória e da consciência apropriando-se das
orientações de Nietzsche na Genealogia da Moral para, por fim, expormos o
conceito de corpo e pensamento tal qual é apreendido na Ética de Espinosa
e no Assim falou Zaratustra de Nietzsche. O problema que orienta tal
empreitada nasceu de uma inquietação instalada a partir da audiência de
163
II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

um espetáculo de dança contemporânea no qual nossa observação ficou


presa aos movimentos e regiões que o corpo do dançarino criava com o
espaço e com os demais corpos e objetos que compunham o cenário e
que produzia em nós um estranhamento quando tentávamos traduzir tal
efeito por meio da linguagem consciente; tal problema pode ser sintetizado
na seguinte questão: o que em matéria corporal escapa ao visível e
cognoscível da consciência? O percurso, que se inicia com Descartes e nos
leva até Espinosa e Nietzsche, tem como objetivo apresentar, a princípio,
os contrastes das perspectivas nietzschianas e espinosistas em relação ao
dualismo cartesiano, e nesse primeiro mergulho, sinalizar as semelhanças e
identidades entre Nietzsche e Espinosa quando contrastados a Descartes,
para, posteriormente, apresentar as vizinhanças e distanciamentos que as
duas filosofias apresentam entre si. Constrói-se, assim, um trajeto em que
elementos do corpo e do pensamento são buscados na inconsciência que
temos de ambos para fazer surgir uma perspectiva que escape da idéia
reducionista em que o corpo é pensado tão somente como um organismo
composto por órgãos com funções determinadas e o pensamento percebido
apenas como uma síntese de composições lógicas explicitados pela linguagem.
E isso talvez nos aproxime da pretensão espinosista de num mesmo e único
movimento, captar a potência do corpo para além das condições dadas do
nosso conhecimento, e captar a força do espírito, para além das condições
dadas da nossa consciência.

Catarina Resende / Mestre Saúde Coletiva UFRJ /


catarinamr@terra.com.br

A consciência-corpo: movimento do corpo tornado movimento


de pensamento
O presente trabalho se propõe a fazer uso da filosofia para se
pensar uma clínica psicanalítica da potência, na perspectiva da imanência e
da afetividade. A extemporaneidade do pensamento de Spinoza nos permite
dar um uso prático à filosofia, a partir da não-separabilidade, da negação de
uma ordem moral do mundo, da afirmação da realidade que seja capaz de
lidar com os possíveis modos de subjetivação da contemporaneidade. Nosso
foco, aqui, incide sobre as questões relativas a como se dá a relação entre
consciência e corpo numa clínica da potência, da afirmação da vida, à luz do
paradigma da não-separabilidade.
A consciência de que falamos não é a do livre arbítrio, também não
é a consciência da tradição filosófica, colada à representação, configurada
como um estado do intelecto, autônoma e reflexiva. De acordo com André
Martins, a psicanálise tradicional tem o mérito de se configurar como um
importante instrumento para pensarmos a integração corpo e mente,
porém, não falamos aqui tampouco da consciência da psicanálise, seja na

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

1ª tópica – superada por Freud, e incorporada posteriormente por Lacan e


seguidores –, seja a da 2ª tópica freudiana. A fenomenologia pode ser
considerada como um inestimável recurso para se considerar o corpo no
mundo, compreendendo o corpo sensível, o corpo em relação. Porém,
como aponta José Gil, a consciência continua sendo aqui a consciência de
algo, o corpo está na relação com o mundo como obscuridade da
intencionalidade da consciência.
Não podemos nos valer dessas leituras de consciência porque
instauram uma dialética na relação entre corpo e consciência fora do plano
de imanência. A consciência que queremos pensar aqui tampouco constitui
uma oposição a essas, ela está fora dessas dicotomias. Falamos de uma
consciência impregnada pelo corpo, no ponto de imanência do pensamento
ao corpo: a consciência subvertida na sua intencionalidade; o corpo
subvertido na sua tridimensionalidade, capaz de transformar o sensível em
signo.
Fora da dialética entre corpo e consciência, nos abrimos a uma
consciência que abre espaço para um inconsciente do corpo. À luz de
Spinoza, o corpo tem pensamento. Temos uma razão afetiva: pensamento
junto aos afetos. Acessamos um corpo que tem a capacidade de elaborar
sua própria experiência. Há um uso da consciência para favorecer a
compreensão dos afetos e pensamentos correlatos. Neste sentido, já
podemos apreender um alcance clínico dessa perspectiva, pois compreender
o que está por trás dos afetos é dispor de mais recursos para se guiar
(aumentando a potência de agir) tanto em momentos em que as coisas
fluem quanto em momentos de crise.
A introdução dos afetos na consciência provoca um novo entendimento,
abre-se um plano de imanência onde o eu pode expressar o isso. Com a
noção de razão afetiva, Spinoza nos instiga a pensar o que pode o corpo e
seus afetos. Lançamos mão do pensamento de Gil para ir além: pensar o
corpo como um transdutor de signos. Ambos nos levam ao campo da arte,
para pensar um corpo que opera passagens. Para Spinoza, a arte é criação
do corpo. Se a pintura é corporal, como afirma, ainda mais o é a dança,
onde o produto é o próprio corpo.
É a partir da dança que Gil traz uma inteligibilidade à relação entre
corpo e consciência. Para o autor, a dança requer um tal desabrochar da
espontaneidade e da vida do movimento que a consciência de si, reflexiva,
configura um grave entrave ao desenvolvimento do movimento, porque
ela não permite que deixemos o corpo suficientemente livre para atuar por
si só. A consciência de si impede a apreensão de forças pelas pequenas
percepções. No seu ponto de vista, a consciência é paradoxal, está sempre
num estado de osmose com o corpo; é uma instância de recepção de
forças e de devir formas, intensidades e sentido do mundo.
O que é vivido pelo corpo está nas fronteiras entre o sentido e o
pensado. O pensamento compreende os movimentos do corpo porque se

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

tornaram, eles próprios, movimentos do pensamento. A consciência do


corpo não se limita ao corpo. Já fora da intencionalidade do objeto, não é
mais a consciência de alguma coisa, mais uma consciência-corpo. É o corpo
que, ao se abrir e multiplicar suas conexões com o mundo, permite essa
abertura da consciência do mundo.
A consciência-corpo entra em conexão com as pequenas
percepções para compor forças, tornando-se capaz de captar as vibrações
mais ínfimas do presente atual. Esse modo de compreender a relação entre
corpo e consciência permite um fazer clínico que convoca o corpo e seus
afetos à cena, na afirmação do real. A consciência-conhecimento acerca
do próprio corpo é desenvolvida num exercício árduo e diário de si, que
permitirá que o indivíduo estabeleça uma relação mais cuidadosa e potente
consigo mesmo, com o outro e com o mundo.

Daniel Figueiredo de Oliveira / Mestrando Filosofia UECE /


escolio@bol.com.br

Os afetos mal-ditos e o corpo como “máquina de guerra” – Uma


leitura mal-dita dos afetos e corpos em Benedictus de Spinoza
Uma máquina de guerra é um instrumento produzido para travar
guerras, vencer batalhas, derrotar inimigos... afetá-los. A todo o momento
nossos corpos são afetados de inúmeras e diferentes maneiras,
quantitativamente e qualitativamente, de forma a nos alegrarmos ou de
forma a nos entristecermos, de tal maneira que nossa potência de pensar
e de agir, possa por vezes diminuir, por outras aumentar. E da mesma forma
afetamos de infinitas maneiras os corpos que nos circunvizinham ou não.
Mas afinal, diante destas qualidades da natureza dos corpos, sejam eles
humanos ou não, a pergunta fundamental é: o que pode um corpo? A
partir desta reflexão, tantos outros questionamentos surgem, tais como:
De que forma pensar um corpo com aspectos maquínicos? Ou melhor,
seria um corpo uma máquina de guerra? E que guerra os corpos travam? E
contra quem? No prefácio da Parte III da Ética, Spinoza nos fala do modo
como irá tratar os afetos humanos, como partes de nossa natureza, sejam
eles ditos ou mal-ditos, vividos ou mal-vividos: E considerarei as ações e os
apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de
superfícies ou de corpos. (Ética, pref. Parte III.) pois bem, não somente o
método que Spinoza utiliza é diferente, mas toda uma construção
argumentativa apresentada na Ética é de vanguarda, já que o homem não
é mais unicamente uma alma, ou somente um corpo, nem somente idéia
ou afecção, e sim ele é íntegro, uma unidade composta de uma infinidade
de outros corpos. Este aspecto de imanência na relação entre corpos é
derivada justamente de uma metafísica fundamentada na I parte de sua
Ética, onde deus ou natureza, ou ainda substância absolutamente infinita,

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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

é causa imanente de si mesmo e de todas as coisas, sua ontologia é


imanente, o homem torna-se parte da infinitude. A transformação do corpo
em uma máquina de guerra ou seja uma máquina que deseja e quer ser
corpo, desejo de continuar existindo, de ser puro desejo de manter-se
sendo, o corpo que entrar em conflito com todos os outros corpos que
infligem sobre sua pseudo-autonomia, que pensa estar no controle de toda
sua situação de existência, de todos seus atos, desconhecem os afetos e
travam batalhas que poderiam ter sido deixadas de lado, pois não serviram
para nada a não ser se gladiar contra si mesmo. Neste devir os afetos
pertencem à dinâmica dos encontros, sejam eles bons ou maus, pois não
há bom ou mau transcendentes, a ética spinozista escapa às fronteiras da
moralidade judaico-cristã, os afetos constroem ou destroem, diluem-se com
os corpos e mentes de todos os outros corpos, perdem-se e encontram-se
na cadeia causal dos encontros, a causalidade e casualidade dos encontros,
dos desejos descobertos neste acúmulo de memórias afetivas, e no
emaranhado de encontros traçados no dia a dia descobrimos o bem e o
mal, ou seja, quando vivenciamos uma experiência de aumento de nossa
potência de agir e de pensar ou o contrário, a sua diminuição. Poderíamos
racionalizar nossas ações, mas seria impossível já que estamos tratando aqui
de aspectos interiores de nossa forma de desejar e realizar nossos laços
afetivos construindo comunidades onde a base dos liames sociais são
indubitavelmente afetos. Não podemos mais pensar o corpo como séculos
atrás, o descrevendo como corpos genéticos e objetivamente limitados à
formas comportamentais estabelecidas, temos que superar os mais variados
discursos limitadores dos corpos desejantes, transgressão dos bem-dizeres,
dos afetos bem-ditos, dos corpos sacralizados como meios de ser e de se
manifestar na ordem social imposta por um conjunto de regras e noções
moralizantes, mesmo assim os corpos teimam em ser descobertos,
encontrados nas vielas dos desejos encobertos por toda uma tradição, seja
ela religiosa como as grandes religiões ocidentais ou mesmo correntes
filosóficas disfarçadas por grandes sistemas teóricos pretensiosos. Limitar o
corpo é destruir sua ação.

Reinaldo de Souza Marchesi / Mestrando Educação UFMT /


reinaldomarchesi@yahoo.com.br
Silas Borges Monteiro / Prof. Dr. Filosofia UFMT

Nietzsche: um ensaio sobre a função da arte


Um Ensaio é um texto breve, entre o poético e o didático, que
expõe idéias, críticas e reflexões a respeito de certo tema. Consiste também
na defesa de um ponto de vista pessoal e subjetivo sobre um tema
(humanístico, filosófico, político, social, cultural, moral, comportamental,
literário, etc.), sem que se paute em formalidades como documentos ou
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II Congresso Internacional Spinoza & Nietzsche

provas empíricas ou dedutivas de caráter científico, assumindo a forma livre


e assistemática sem um estilo definido. Este proposto ensaio sobre a função
da arte discorre sobre alguns pontos daquilo que Nietzsche coloca como
sendo o papel da arte na educação alemã do séc. XIX.
O filósofo alemão Friedrich W. Nietzsche (Röcken, 1844 - Weimar,
1900), um artista que escrevera de maneira poética, além do caráter
extemporâneo e crítico, incompreendido em vida, filosofou contra seu
tempo.
Em sua juventude, quando exercia o magistério, faz diversas críticas
aos estabelecimentos de ensino na Alemanha, que podemos encontrar a
partir de textos transcritos de suas Conferências intituladas Sobre o futuro
de nossos estabelecimentos de ensino e outras dispersas em fragmentos
ao longo de suas obras. Para ele a cultura não deveria ser “serva do ganha-
pão e da necessidade”, que, tanto o Gymnasium e a universidade, haviam
se voltado para a profissionalização, pouco se distinguindo de escolas
técnicas, e ainda se ostentando como lugares de cultura. Tal tendência a
profissionalização desdobra-se na universidade. Pouco existe, de uma escola
humanista idealizada por Friedrich August Wolf (1759-1824), que fez uma
reforma no ensino secundário alemão, tendo por objetivo formar homens
cultos e capazes de exercer todas as potencialidades do espírito.
O que a universidade tem com a arte? O que a arte tem com a
universidade?
No que diz respeito à universidade (a instituição que neste ensaio
nos propomos a discutir), Nietzsche aponta para a necessidade de conter a
tendência profissionalizante e histórico-científica, e que se volte para os
problemas essenciais da condição humana, a cultura. Deste modo, sua
proposta é que seja investigado como essas questões estão sendo colocadas
no conjunto da arte e da filosofia, que segundo o próprio, as únicas disciplinas
capazes de moderar a feição histórico-científica e profissionalizante.
Educação para arte – Embora existam professores que tenham
gosto pela arte, a universidade não oferece vida para arte, onde o estudante
não recebe o “adestramento artístico” que haveria de ser útil a vida, capaz
de disciplinar o “instinto desenfreado de conhecimento” que domina todos
outros instintos a ponto de ser nocivo para vida.
Embora não se possa extrair dos textos de Nietzsche um projeto
de “adestramento artístico” do jovem universitário (pois não mostra
caminhos), mas sua exposição afirmativa indica finalidades de uma educação
para arte a qual agiria contra os efeitos nocivos da compulsão do saber a
qualquer preço, disciplinaria tanto o “instinto de conhecimento” quanto à
própria ciência, que ao querer conhecer a vida, custe o que custar, destrói
as ilusões tão necessárias a vida humana. A ciência é incapaz de dar sentido
a beleza da existência, de considerar a vida em seu conjunto, o “instinto da
ciência” revira, parte, anatomiza e vasculha a vida nos mínimos detalhes. Já
a arte, não se interessa por tudo que é real, não quer tudo ver, nem tudo

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reter, é anticientífica, ela nos liberta, embora não escape da lupa e dos
bisturis dos cientistas.
A educação para arte possibilitaria ao jovem: contestar a pretensão
científica de tudo saber; conduzir o conhecimento de modo a fazê-lo servir a
uma melhor forma de vida; devolver à vida as ilusões confiscadas; restituir a
arte o direito de continuar a cobrir a vida com os véus que a embelezam. A
universidade alemã do séc. 19 não soube, ou não quis, utilizar de um
“adestramento artístico”, não teve interesse em conter, por meio da arte, as
tendências cientificistas.
A retomada de tal problemática é extremamente pertinente e
profícua como ponto de pauta para compreendermos a gênese e rumos da
universidade hoje, em meio a uma série de transformações, embates, crises
de paradigmas e financeiras, etc. que culminaram em diversos modelos de
educação superior em nosso país.
Atualmente, aqui no Brasil a universidade, não no contexto tal
exatamente como na Alemanha do séc. 19, mas tal qual está contaminada
pela tendência histórico-científica e profissionalizante. Não que Nietzsche
tenha, ou haveremos de ter, algo contra as escolas de ensino técnico
profissionalizante, pelo contrário, elas por sinal cumprem com seus objetivos.
Agora, qual seria o objetivo primordial da universidade? Treinar? Formar?
Qualificar para o mercado? Fornecer quadros para o estado? Criar doutos
especialistas?

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