Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
PREVENÇÃO DE INCAPACIDADES NA
HANSENÍASE: UMA ANÁLISE CRÍTICA
1
Pesquisador do Instituto Lauro de Souza Lima; 2Associação Alemã de Ajuda no Combate da Hanseníase, São Luis - Maranhão,
Tel (Fax) 098-235-3627
CORRESPONDÊNCIA: Hospital Lauro de Souza Lima – Caixa Postal 62 – Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros – Km 225/226;
Bauru/SP – CEP: 17001-970 – Tel. 0142-3022-44, Tel./Fax - 0142-3047-47
VIRMOND M. & VIETH H. Prevenção de incapacidades na hanseníase: uma análise crítica. Medicina, Ribeirão
Preto, 30: 358-363, jul./set. 1997.
358
Prevenção de incapacidades na hanseníase
de controle. Desta forma, é urgente corrigir esta distor- milhões de pacientes, o uso de PQT tenha contribuído
ção, elevando as ações de prevenção de incapacidades efetivamente para a prevenção de incapacidades. Ain-
ao seu lugar de direito e necessidade, isto é, iniciá-las da que esta estimativa possa ser real, deve ser vista
no momento do diagnóstico da doença. (Tabela I). com cautela. Estando o surgimento de incapacidades
ligado ao fator tempo, entre outros, não se pode negar
Tabela I - Conceitos básicos
que o diagnóstico precoce determina um menor nú-
mero de pacientes com incapacidades. Acreditamos
Prevenção de incapacidades em hanseníase
que seja esta, inclusive, a melhor forma de prevenção
• Prevenção de incapacidades em hanseníase, me-
didas visando evitar a ocorrência de danos físicos, de incapacidades. A melhoria nas condições de aten-
emocionais, espirituais e sócio-econômicos. No ca- ção ao paciente, com a possibilidade de uma detecção
sos de danos já existentes, a prevenção significa mais precoce de eventos incapacitantes (reações) tam-
medidas visando evitar as complicações.
bém auxilia nesta redução (Figura 1). Por outro lado,
Reabilitação em hanseníase
as drogas da PQT não apresentam intrinsecamente ne-
• Reabilitação em hanseníase é um processo que
visa corrigir e/ou compensar danos físicos, emoci- nhum efeito anti-reacional ou preventivo, de dano neu-
onais, espirituais e sócio-econômicos, consideran- ral. A Clofazimina é reconhecida, pela sua ação, como
do a capacidade e necessidade de cada indivíduo, um antiinflamatório (HASTINGS, 1985)2 mas não está
adaptando-o à sua realidade.
claro seu efeito na prevenção de dano neural.
Objetivos geral de prevenção de incapacidades em Sem dúvidas, o quadro da hanseníase sofreu mo-
hanseníase
• Proporcionar ao paciente, durante o tratamento e após dificações drásticas, pois casos avançados não se en-
alta, a manutenção ou melhora, de sua condição contram com muita freqüência, particularmente aque-
física, sócio-econômica, emocional e espiritual, pre- les virchovianos suculentos e deformadores. O pró-
sente no momento do diagnóstico da hanseníase prio estigma da doença vem diluindo, visivelmente,
Prevenção de incapacidades no tratamento da han- permitindo uma busca mais precoce de atenção, por
seníase
• A prevenção de incapacidade (PI); é parte inte- parte dos pacientes. Estes fatos se explicam pelo novo
grada das ações de controle em hanseníase deve enfoque da hanseníase como doença curável, pela re-
fazer parte de todos os treinamentos e supervisões dução do tempo de tratamento, da atenção extensiva e
evitando assim a criação de programas de PI iso- ambulatorial, por parte do sistema de saúde, da hori-
lados. É uma atividade que precisa ser realizada
por todos os profissionais, responsáveis pelo aten- zontalização do programa de controle e dos esforços das
dimento ao paciente e pela comunidade. campanhas de educação em saúde, na comunidade.
Entretanto, não podemos perder de vista que, mesmo
2. INCAPACIDADES E POLIQUIMIO-
TERAPIA
359
M Virmond & H Vieth
com a diminuição destes casos clássicos de hanseníase, estes requisitos dentro do atual quadro de saúde públi-
ainda persistem alguns casos exuberantes e todos os ca do Brasil e entender-se-á parte das dificuldades em
pacientes apresentam-se sob um risco potencial de dano se fazer prevenção de incapacidades, em hanseníase.
neural e desenvolvimento de incapacidades. Do lado do paciente, há necessidade do enten-
dimento de uma nova modalidade de proceder na vida
diária. Entretanto, estas modificações podem ser por
3. A POLÍTICA DE CONTROLE DA HANSENÍASE ele entendidas como um diuturno recordar de sua do-
E AS INCAPACIDADES ença, uma afirmação do “ser” diferente. Daí, uma von-
tade enorme de negar estas ações. Por outro lado, estas
A prevenção de incapacidades sempre foi rele- modificações de atitudes interferem em grau variável,
gada a um plano secundário. A prioridade concentra- na rotina de vida. Desta forma, o paciente as encara como
va-se no diagnóstico precoce e tratamento adequado. impecilho à plena atividade social e profissional – mais
Os recursos não deveriam ser utilizados nas ações de um motivo para não executá-las.
prevenção, em detrimento do controle epidemiológi- Necessitamos, então, uma cuidadosa e correta
co da doença. abordagem, para que estas ações de prevenção sejam,
No Brasil, já, há muitos anos, as autoridades de fato, incorporadas pelo indivíduo de forma que ele
em Dermatologia Sanitária incluíram a prevenção de as considere como atividades normais de seu dia-a-
incapacidades como parte indissociável do diagnósti- dia. Estabelecer uma relação de confiança é funda-
co e tratamento (Tabela II). Na prática, esta norma nun- mental neste processo. Adaptar as atividades de pre-
ca foi efetivamente executada, ainda que não se possa venção às disponibilidades materiais e à cultura do
negar, o empenho das autoridades do Ministério da paciente é outro fator determinante do sucesso deste
Saúde na promoção das ações de prevenção, com seus empreendimento.
módulos de treinamento, nas supervisões, seus manuais
e seu apoio institucional à causa. Entretanto, o Minis-
tério da Saúde não é o efetor da prevenção. As equi-
pes de saúde o são, e estas encontram dificuldades para Tabela II - Componentes da prevenção de inca-
pacidades em hanseníase
executá-las, seja pela não priorização local destas
ações, por falta de treinamento, por falta de material • Diagnóstico precoce da doença, tratamento regu-
lar com PQT e aplicação de BCG em contatos
adequado, falta de tempo ou descrédito nas ações.
Assim, não vemos problema na normatização destas • Detecção precoce e tratamento adequado das
reações e neurites
ações. Sua consecução prática é que sofre continuida-
de e, então, ao nível local, é que devem se dirigir as • Apoio à manutenção da condição emocional e
estratégias para transformar as ações de prevenção em integração social (família, estudo, trabalho, grupos
sociais)
atividades reais, efetivas e abrangentes, envolvendo o
pessoal de saúde e pacientes, desde o momento do • Realização de autocuidados
diagnóstico, continuando durante o tratamento e es- • Educação em Saúde
tando disponível mesmo após a alta.
360
Prevenção de incapacidades na hanseníase
e, para futuro próximo, espera-se o lançamento de um técnicas de prevenção – elas estão plenamente apre-
novo manual de prevenção de incapacidades, pelo Mi- sentadas e discutidas nos diferentes manuais à dispo-
nistério da Saúde, com abordagem mais didática e far- sição. Necessitamos, sim, abordar estas técnicas com
tamente ilustrado. o escopo aqui descrito, de obter a confiança do paciente,
As técnicas, em si, são intrinsecamente efica- de ter conhecimento destas técnicas, dominá-las, re-
zes, isto é, uma vez corretamente aplicadas, dão resul- conhecer as alternativas, ter tempo para dedicar ao
tados satisfatórios. Desta forma, o problema da pre- paciente, e lutar pelo estabelecimento de instâncias
venção não está no que fazer e, sim, em como fazer. de referências para atender os casos mais especiais.
Estas técnicas têm sido insistentemente chama-
das de “simples”. Por um lado, isto foi fruto da neces-
sidade de fugir à critica constante dos gerentes de pro- 6. PREVENÇÃO DE INCAPACIDADES OCULARES
gramas que, historicamente, não querem alocar recur-
sos ou tempo para a prevenção. Assim, o termo “téc- "Não há doença que tão freqüentemente dê ori-
nicas simples” surgiu quase como uma desculpa para gem a lesões oculares como a lepra" (Hansen, 1873).
que o assunto não seja encerrado de imediato, em tais Os comprometimentos neurológicos relaciona-
reuniões. Ora, estas técnicas são simples pelo simples dos com a hanseníase podem surgir antes do diagnós-
motivo de que não há necessidade de complicá-las, tico, como também durante o tratamento e até após a
uma vez que massagem por estiramento, por técnicas cura. Freqüentes nos membros superiores e inferiores,
simples ou complicadas, dão sempre o mesmo resul- causam perdas severas da sensibilidade e deficiências
tado, desde que adequada e conscientemente aplica- motoras, o que priva o paciente de um dos mais im-
das. A hidratação da pele com vaselina e água tem o portantes mecanismos de defesa do organismo, que é
mesmo efeito, caso fosse utilizado um caro e inaces- a capacidade de sentir dor. A falta deste mecanismo
sível creme hidratante da linha cosmética. exige um maior uso da visão para proteger-se contra
O que pode não ser simples são os casos que se possíveis acidentes tais como: queimaduras, cortes e
apresentam para a equipe de saúde. Uma contratura outros traumatismos. Mas, muitas vezes, o aparelho
severa poderá requerer algo mais do que massagens visual também é atingido, quer por ação direta do ba-
de estiramento. O importante é que o agente de saúde cilo, quer indiretamente, por processos reacionais, o
tenha o discernimento de conhecer os limites das téc- que leva o paciente a uma situação em que a preven-
nicas ao seu alcance e procurar recursos menos sim- ção de mutilações se torna quase impossível.
ples, se o caso assim os requerer. Neste exemplo, tal- Vários pesquisadores têm demonstrado, no de-
vez necessitemos o concurso de um fisioterapeuta, que correr dos anos4,5, a grande freqüência dos compro-
irá aplicar gessos cilíndricos seriados. Esta técnica é metimentos oculares na hanseníase, tais como: dimi-
efetiva, apesar de ser simples e sofisticada, ao mesmo nuição da sensibilidade da córnea, nódulos esclerais,
tempo. Simples por necessitar apenas um rolo de ata- lagoftalmo, uveíte, etc., comprometimentos que levam
dura gessada, mas, sofisticada por necessitar o discer- o paciente, em último conseqüência, à cegueira.
nimento de um técnico mais preparado, para determi- Considerando cego um indivíduo com visão
nar a pressão correta de estiramento e monitorar ade- menos que 0,05 na escala Snellen (contagem de dedos
quadamente a evolução do caso, prevenindo áreas de a três metros), estima-se que 4 a 7% dos pacientes
necrose que seriam desastrosas, se não identificadas a portadores de hanseníase sejam cegos. Esta porcenta-
tempo. A complexidade aqui, em confronto com a “téc- gem se eleva para 6 a 10%, considerando-se como li-
nica simples”, está no reconhecimento da necessidade mite o valor de 0,1 na escala de Snellen (contagem de
da alternativa, para melhor resolver um problema es- dedos a seis metros). Gostaríamos de ressaltar que este
pecífico do paciente, e no conhecimento técnico mais número aumenta mais ainda se lembrarmos que, de-
aprimorado, para a aplicação desta técnica alternati- pois da implantação da PQT, o paciente, uma vez tra-
va. Como resolver isto? A referência é necessária. No tado corretamente, recebe alta por cura e não faz mais
sistema horizontalizado de saúde, a referência é a so- parte do universo estatístico dos portadores de hanse-
lução para os casos especiais e trata-se de estratégia níase, embora continue com todas as limitações e, du-
adotada pelos programas de controle de hanseníase. rante anos, ainda corra o risco de sofrer novos com-
Desta forma, não há necessidade de discutir aqui as prometimentos e, assim, novos riscos de cegueira.
361
M Virmond & H Vieth
Se o número de serviços que realizam uma Iniciou-se no segundo semestre do ano 1997, a
avaliação correta das incapacidades e oferecem um primeira fase do Projeto Nacional de Prevenção de
acompanhamento adequado, durante o tratamento e Incapacidades em Hanseníase. Pela primeira vez, to-
após a alta para os problemas dos membros superio- dos os materiais didáticos foram revisados, simplifi-
res e inferiores é pequeno, menor ainda é o número de cados e padronizados. Os materiais e técnicas peda-
serviços em que a avaliação e o acompanhamento ocu- gógicas utilizados6 foram testados a nível nacional,
lar fazem parte da rotina. Todas as equipes de saúde tanto na preparação de coordenadores e monitores es-
devem estar atentas a complicações oculares causa- taduais, como no repasse para os servidores da Rede
das pela hanseníase. Estes profissionais devem ser ca- Básica de Saúde.
pazes de avaliar o segmento anterior do olho, no dia a A avaliação e o tratamento dos problemas ocu-
dia do atendimento geral do paciente. Cabe ao oftal- lares fazem parte integral deste programa, não sendo
mologista o treinamento, a supervisão e a reciclagem mais tratados como uma parte anexa, separada.
do pessoal auxiliar, assim como a realização de pes- Temos assim, a esperança de uma mudança na
quisas das quais carecemos neste campo. visão do problema que mais atinge o paciente porta-
Baseando-se numa experiência de mais de dez dor de hanseníase, que é o estigma, problema direta-
anos de trabalho e no acompanhamento de mais de mente ligado às deformidades e incapacidades, sendo
três mil pacientes, neste período, no Centro de Pre- a cegueira, sem duvida, a pior deles.
venção Oftalmológica do Instituto Lauro de Souza
Lima, em Bauru, São Paulo, notamos que a grande 7. CONCLUSÃO
maioria nunca tinha sido avaliada, e nem tinha cons-
Felizmente, a PQT está curando incontáveis pa-
ciência dos problemas oculares já instalados. Daí, a
cientes em todo o mundo. A prevalência da hansenía-
necessidade de todos os pacientes portadores de han-
se tem diminuído devido à introdução da PQT e aos
seníase, com ou sem queixas, serem avaliados roti-
novos conceitos epidemiológicos de controle. Entre-
neiramente:
tanto o dano neural, na hanseníase, continua a ser uma
• na ocasião do diagnóstico; página pouco conhecida. Sendo este dano a base para
o desenvolvimento de incapacidades, é clara a neces-
• durante o tratamento, regularmente, num in- sidade de se expandirem as ações de prevenção, uma
tervalo mínimo de um ano; vez que não existem medidas realmente eficazes, para
• na ocasião da alta; evitar tal dano, além do diagnóstico precoce. Neste
sentido, o ideal seriam as condições de programa que
• ao sentir alterações no aparelho visual, du- permitissem o diagnóstico muito precoce de todos os
rante o tratamento e após a alta. casos. Enquanto isto não é possível, estas ações de
prevenção assumem importância fundamental para di-
Ressaltamos que, para garantir a compreensão minuir e restringir o dano secundário à integridade do
do paciente, deve-se investir, desde o início, na orien- paciente, enquanto ser individual e ser social. Neces-
tação do mesmo sobre sinais e sintomas, auto-avalia- sitamos melhor institucionalizar a prevenção, treinar
ção e autocuidados. mais, instrumentalizar melhor as equipes de saúde. As
Pesquisas realizadas no Centro de Prevenção ciências correlatas, particularmente a Psicologia e a
Oftalmológica de Bauru mostraram que o trabalho Assistência Social, devem engajar-se nesta luta para
educativo com os servidores e pacientes traz resulta- uma melhor compreensão do pensar do paciente, frente
dos positivos. O número de encaminhamentos por ou- a suas incapacidades ou deformidades. Mais do que
tros setores aumentou, como também o número de isto, devemos estudar o que se fazer no interregno en-
oftalmologistas especializados e os controles de ava- tre o não existir das incapacidades e o seu surgimen-
liação regulares. Diminuiu, entre outros, o número de to, uma vez que esta é a realidade: não podemos asse-
pacientes com córnea seca, hipoestesia da córnea e gurar a todos os pacientes que eles não venham a de-
iridociclite crônica. O paciente orientado procura o senvolver algum tipo de incapacidade, devido à Han-
serviço mais precocemente, aumentando, assim a seníase. O potencial existe e não temos condições, com
possibilidade de uma intervenção mais rápida e mais os conhecimentos atualmente disponíveis, de prever
eficaz. o futuro.
362
Prevenção de incapacidades na hanseníase
VIRMOND M. & VIETH H Prevention of disabilities in leprosy: a critical view. Medicina, Ribeirão Preto, 30:
358-363, july/sept. 1997.
363