Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
1
A motivação original para adotar os conceitos de ' imagem de natureza'e de ' imagem de ciência', e evitar
conceitos mais comuns como os de ‘ontologia’, ‘teoria’, ‘metafísica’ etc. é que estes últimos sugerem
concepções articuladas, explícitas, fundamentadas, conscientes e submetidas a critérios rígidos de
aceitabilidade e de validação. Os cientistas são, em geral, guiados em seu trabalho por concepções tácitas,
implícitas, assistemáticas e não diretamente confirmáveis. As mesmas considerações valem para os atores
envolvidos no debate público sobre a ciência (incluindo políticas científicas e educacionais) bem como para
os professores de ciências. Uma imagem admite - ao contrário daqueles primeiros conceitos que evito no
contexto desta reflexão -, um certo grau de dispersão e de imprecisão nos seus contornos, que são as
características que, como investigador do sistema ciência-sociedade, detecto em diversas concepções dos
cientistas e de outros atores sociais. Uma imagem (seja ela de natureza, seja de ciência) possui um caráter
difuso, incorporando de forma assistemática um grande número de idéias, intuições, das quais não se tem
muitas vezes consciência. Daí a dificuldade de se retraçar as suas origens. Diferentes imagens podem
superpor-se, havendo uma tolerância com respeito a inconsistências. Nenhuma dessas características que
associamos às imagens, estaríamos dispostos a atribuir a uma ‘teoria’, e muito menos a uma ‘filosofia’.
Para mais detalhes sobre o emprego desses conceitos e sua articulação, ver Abrantes, 1998.
2
i) mecanicismo / materialismo;
ii) deísmo / teísmo;
iii) naturalismo / sobrenaturalismo;
iv) ação à distância / ação contígua;
v) atomismo / plenismo (natureza como FRQWLQXXP).
Os primeiros três pares serão objeto de tratamento detalhado neste artigo, dada a
importância que tiveram para a atividade científica do séc. XVIII, e também no
balisamento do debate público sobre o caráter e escopo da educação científica.
Imagens de ciência são, de modo análogo, epistemologias assistemáticas e tácitas
que orientam a atividade científica e outras práticas sociais, incluindo a educação
científica. Imagens de ciência podem incluir concepções a respeito dos métodos
adequados para a construção do conhecimento científico e/ou para a validação dos
produtos da atividade científica (e.g. teorias). Tais métodos estão, usualmente,
comprometidos com certos valores cognitivos2 e não-cognitivos, que também compõem
tais imagens.
Exemplos de imagens de ciência, apresentadas novamente enquanto alternativas
antitéticas, incluem:
vi) descrição/ explicação (enquanto fins a serem alcançados pelo conhecimento
científico);
vii) método indutivo / método de hipótese (enquanto métodos a serem
empregados);
viii) experimentação/observação;
ix) papel atribuído à matemática no estudo da natureza (adequado ou não?) e tipo
de matemática empregada (e.g. geometria ou cálculo?);
x) uso (ou não) de modelos (mecânicos etc.);
f) ciência que é tomada como modelar para as demais (e.g. física ou história
natural).
Várias dessas imagens de ciência serão invocadas no estudo de caso que
desenvolvo na segunda parte do artigo. O diagrama na fig. 1 ilustra o modo como
concebo o envolvimento das imagens de natureza e de ciência na prática científica
(funcionando como ‘filosofias na ciência’ ), e sua relação com a prática propriamente
filosófica.
2
São valores cognitivos típicos: a adequação empírica, a simplicidade, a consistência, o poder preditivo, o
poder explicativo etc. Diferentes imagens de ciência atribuem diferentes pesos a tais valores.
3
)LORVRILD,PDJHQVH&LrQFLD
Pelas razões (a) e (b), devemos esperar que o modo e o ritmo com que as imagens
se modificam seja muito diferente da dinâmica das teorias. Espera-se que estas últimas
mudem mais rapidamente do que aquelas. Por exemplo, uma imagem de natureza - pelo
seu caráter abrangente, e por referir-se a ingredientes que consideramos essenciais à
realidade - possui, em geral, um caráter mais estável do que uma teoria científica.
Efetivamente, uma sucessão de teorias (em um programa de pesquisas, por exemplo)
pode compartilhar uma mesma imagem de natureza. Um argumento análogo poderia ser
montado para a relativa estabilidade das imagens de ciência.
No que diz respeito à caixa ‘filosofia’ , devo dizer que privilegiei duas sub-áreas
que, a meu ver, têm maior influência sobre as ciências, e/ou mais influências sofrem
destas últimas: a filosofia da ciência e a ontologia (já que estão intimamente relacionadas
às imagens de ciência e de natureza, respectivamente). É evidente que outras sub-áreas da
filosofia podem tomar a ciência como objeto de reflexão, ou interagir de algum modo
com os produtos da atividade científica (logo, também poderíamos ter incluído aí a
lógica, a ética, a antropologia filosófica etc.)
A ‘filosofia’ tem uma dinâmica própria e autônoma, mas este não é o meu foco
aqui. A caixa ‘filosofia’ indica, simplesmente, que posições metafilosóficas restringem as
ontologias e filosofias da ciência adotadas pelos filósofos. A dinâmica da filosofia pode,
além disso, ser afetada pela dinâmica da ciência (e vice-versa). As várias setas ligando as
duas caixas indicam a possibilidade dessa mútua influência.
A filosofia profissional (dos filósofos) pode estar na origem das imagens dos
cientistas. Neste caso, a influência iria, digamos, da ‘filosofia da ciência’ para a ‘imagem
de ciência’ , ou da ‘ontologia’ para a ‘imagem de natureza’ .
Mas a influência inversa também ocorre: das imagens para as filosofias (dos
filósofos). Assim, uma imagem de natureza pode motivar uma ontologia filosófica. A
influência nessa direção pode até ser mais direta, como sugere a seta indo da caixa
relativa à dimensão cognitiva da ciência, para as caixas da filosofia da ciência e da
ontologia, sem intermediação das imagens.
O estudo de caso na segunda parte do trabalho ilustrará algumas dessas
influências.3
O Sistema Ciência-Sociedade
No início do artigo mencionei o ‘sistema ciência-sociedade’ , para referir-me a
diversas práticas sociais, interrelacionadas de forma complexa e imersas num meio
intelectual. A seguir entro em mais detalhes acerca dessa perspectiva sistêmica, e indico
de que modo as relações ressaltadas no esquema anterior - envolvendo imagens de
ciência e de natureza -, poderiam ser incorporadas em um sistema ciência-sociedade mais
amplo.
4
O que chamamos de ' ciência' no mundo contemporâneo refere-se a um conjunto
de aspectos ou dimensões. A ciência pode ser considerada, fundamentalmente, um tipo de
3
Abrantes (1998) reúne outros estudos de caso que exemplificam esse esquema.
5
4
Por uma questão de simplicidade, uso o termo ' ciência'no singular. Esse uso não resulta, entretanto, de
qualquer compromisso com a idéia de uma unidade ou de uma essência, que negue a diversidade das
ciências.
5
Para uma tratamento desse sistema com uma explícita orientação evolutiva, ver Hooker (1995); Hahlweg
& Hooker (1989). Neste projeto, não pretendo reificar o que chamo de ' sistema ciência-sociedade'. Para os
meus fins, essa noção serve para integrar um conjunto de estudos metacientíficos que considero relevantes
para a compreensão da educação científica, e para melhorar a sua funcionalidade.
6
As relações lógicas entre representações simbólicas de ' alto nível'e de ' baixo nível'podem ser, por
exemplo, utilizadas em uma reconstrução filosófica do modo como teorias são aplicadas para explicar ou
prever a empiria.
7
Uma alternativa seria considerar as teorias como entidades não necessariamente linguísticas, instanciadas
nas mentes (ou nos cérebros) dos cientistas, por exemplo.
6
8
A delimitação de uma área da investigação metacientífica como tendo um caráter genuinamente
filosófico, em contraste com a esfera das ciências da ciência, não é, contudo, uma questão simples.
Acredito que essa distinção não seja tão absoluta ou nítida quanto muitos pensam. Essa posição está
incorporada nas múltiplas relações entre as ‘caixas’ representadas na fig. 1.
9
Para exemplos de valores cognitivos, ver nota 2. O título do Colóquio que motivou a elaboração deste
artigo é, no contexto desta reflexão, bastante significativo: '
Ética, epistemologia e educação' . ‘Ética’ , nesse
título, refere-se a valores (ou fins) não-cognitivos, como ‘bem estar social’ , ‘igualdade de oportunidades’ ,
‘progresso social’ , ‘harmonia’ , ‘beleza’ etc. O caso da Revolução Francesa, que desenvolverei ao final, é
bastante revelador da tessitura complexa envolvendo os três conceitos a que se refere o título do Colóquio.
10
Para um exemplo de estudo em filosofia da tecnologia, ver Gonçalves Cezar & Abrantes (2003).
11
Isso não foi sempre assim, contudo. Relativamente a outras dimensões ou aspectos do sistema ciência-
sociedade, o ensino de ciências integrou-se de modo recente ao sistema. A educação científica formal data
7
Não haveria espaço, neste artigo, para analisar cada um dos componentes do
sistema, representados na fig 2. Espero que o diagrama seja auto-explicativo com respeito
àqueles aspectos que não poderão ser tratados aqui, como os relativos ao que chamei
acima de dimensão da ' ciência-como-atividade' , que inclui as relações entre produtores e
usuários do conhecimento científico, intermediados pela divulgação científica (ver a linha
tracejada 1). No estudo de caso da segunda parte do artigo, várias dessas relações serão
ilustradas.
Também deixarei de lado as partes do diagrama que representam as relações
causais entre a atividade científica e o ‘elemento de realidade’ , bem como as relações
representacionais entre o conhecimento produzido por essa atividade e os seus objetos
(indicadas pelas linhas tracejadas 9, 10 e 11).
Vou concentrar-me no que chamei de ‘dimensão cognitiva’ da ciência e nos seus
condicionantes, bem como na educação científica como meio de difusão das teorias,
métodos científicos e valores cognitivos.
do final do séc. XVIII e início do séc. XIX, variando conforme o país considerado. Neste artigo, estudarei a
situação francesa. Estudos de caso similares teriam que ser feitos para outros países e contextos.
8
12
A despeito do papel que nele desempenha a educação científica, o modelo de dinâmica científica
proposto por Kuhn é bem mais simples do que o sugerido pelo sistema ciência-sociedade como o apresento
aqui. Aquele modelo restringe-se, em larga medida, ao sub-sistema produto-produção em seus aspectos
epistemológicos (imagens de ciência) e metafísicos (imagens de natureza).
9
13
A produção de conhecimento metacientífico em larga escala é fenômeno recente, efeito da influência
crescente da ciência em nossas sociedades a partir do final do séc. XVIII, e da necessidade de administrar o
sistema como um todo.
10
0XVpXPG¶+LVWRLUH1DWXUHOOH.
11
uma atividade sobrenatural (ou, se preferirem, para uma atividade espiritual) ordinária,
regular, após a criação.16 Descartes era, fundamentalmente, um deísta.
Já para o Weísta, Deus continua intervindo na natureza mesmo após a criação.
Newton foi um teísta típico, acreditando, por exemplo, que a força gravitacional era a
manifestação de um Deus extenso na natureza. A gravitação, para ele, era um fenômeno
‘ativo’ , que não poderia ser explicado com base nas propriedades passivas da matéria (ou
seja, no elenco das suas qualidades primárias, que incluem a inércia).17
É curioso ver como ainda no século XVIII, mesmo entre alguns representantes do
Iluminismo, a crença no voluntarismo divino ainda conduz a uma postura teísta, mesmo
que mitigada.
Num dado ponto do seu (VVDLVXUOHVHOHPHQVGH3KLORVRSKLH, publicado em 1759,
d’ Alembert pergunta-se se as leis da Mecânica são de “verdade necessária ou
contingente” (1965, p. 393). Entre tais leis ele inclui a lei de inércia, a lei do movimento
composto e a lei do equilíbrio. Mesmo admitindo que um “Ser inteligente” pode agir
sobre a matéria “ao seu bel prazer”, d’ Alembert conclui que “a matéria abandonada a si
mesma teria seguido [tais leis]” (,ELG., p. 393). Nesse sentido, elas seriam de “verdade
necessária”:
“[...] foi a sabedoria do Criador e a simplicidade de sua visão, não estabelecer
outras leis do equilíbrio e do movimento diferentes das que resultam da existência mesma
dos corpos e de sua impenetrabilidade mútua” (d’ Alembert,LELG., p. 397).
A despeito do seu teísmo, essa posição reflete o racionalismo de d’ Alembert,
característico dos seus últimos trabalhos.18 Entretanto, d’ Alembert atribui um VWDWXV
completamente diferente à “lei” newtoniana da gravitação:
“Quando nos perguntamos se as leis do movimento são de verdade necessária, só
estão em questão aquelas pelas quais o movimento se comunica de um corpo a outro; e de
forma alguma aquelas em virtude das quais um corpo parece se mover sem nenhuma
causa de impulsão. Essas são, por exemplo, as leis da gravidade [OHVORLVGHODSHVDQWHXU],
supondo-se, como muitos filósofos acreditam hoje em dia, que essas leis não têm o
impulso por causa. Nessa suposição, é evidente que as leis em questão não poderiam ser,
em nenhum sentido, de verdade necessária; e que a queda dos corpos graves seria uma
consequência de uma vontade imediata e particular do Criador [...]” (,ELG., p. 399).
O tom geral dessa passagem é, claramente, teísta.
16
É evidente que o Homem, mesmo para os mecanicistas do séc. XVII, possuía uma dupla natureza –
material e espiritual. Nesse sentido, o Homem estava, em grande medida, fora da natureza. Um tratamento
do problema mente-corpo foge ao escopo deste artigo.
17
Sobre o teísmo e o dinamismo de Newton, ver Abrantes (1988, cap. 3).
18
O teísmo (e, em geral, o voluntarismo divino) está normalmente associado a um pessimismo
epistemológico, enquanto que o deísmo favorece um otimismo epistemológico. Essas imagens podem estar
combinadas em diferentes proporções em um mesmo autor, como é o caso de d’ Alembert ao distinguir
tipos de leis em Mecânica. D’ Alembert foi um nominalista e cético em seus primeiros trabalhos, como no
'LVFRXUV 3UpOLPLQDLUH da Enciclopédia, tendendo para um racionalismo de corte cartesiano em seus
trabalhos de maturidade, em especial nos de Mecânica. Ver Harré, 1980.
13
19
O termo ‘materialismo’ veio a adquirir conotações, a partir do séc. XIX, que são estranhas a essa imagem
de natureza do séc. XVIII. Ver Bowler, 1989 e Hankins, 1985.
20
Não estou afirmando que elementos da imagem mecanicista de natureza tenham completamente
desaparecido no séc. XVIII. Ressalto que uma das vantagens de se empregar a noção de ‘imagem’ é que,
dados os seus contornos difusos, diferentes imagens podem superpor-se.
14
21
W. Paley (1743-1805) foi um padre anglicano que em seu livro 1DWXUDO7KHRORJ\ (1802), inspirado no
livro de John Ray, :LVGRP RI *RG 0DQLIHVWHG LQ WKH :RUNV RI WKH &UHDWLRQ (1691), desenvolveu um
argumento teleológico a favor da existência de Deus, usando a célebre metáfora do relógio encontrado na
praia: quando temos evidência de um projeto, isso deve remeter diretamente a um projetista. Darwin teve
contato, ainda jovem, com os escritos de Paley, que exerceram uma grande influência sobre ele;
ironicamente (e a um alto custo psicológico, a dizer pela sua biografia) veio a sepultar o argumento do
padre anglicano, mostrando que projetos podem ser engendrados sem projetistas, através de um mecanismo
exclusivamente natural.
22
O pré-formismo apresentava-se em duas versões: o ovismo e o animaculismo. Para animaculistas como
Leeuwenhoek e Hartsoeker, o esperma conteria o embrião pré-formado. Para os ovistas, o embrião, em
todas as espécies, estaria pré-formado na mãe, como uma semente ou ovo, que contém o organismo em
miniatura.
23
A epigênese é a teoria segundo a qual um embrião desenvolve-se a partir de uma massa homogênea
inicial por diferenciações sucessivas. Bowler define essa teoria nos seguintes termos: o crescimento do
embrião dá-se "pela adição seqüencial de partes e não pela expansão de uma miniatura pré-formada" (1989,
p. 71).
24
Essa descoberta colocou o problema de onde se situa a alma ou princípio regenerador nesse animal.
15
O materialismo de Diderot
Diderot passa de uma postura deísta, em 3HQVpHV SKLORVRSKLTXHV (1746), a um
franco materialismo em /HWWUH VXU OHV DYHXJOHV (1749).25 O personagem principal desta
última obra é um cego, o matemático Nicholas Saunderson, que coloca em questão, em
seu leito de morte, o argumento do plano [DUJXPHQWIURPGHVLJQ] associado ao teísmo de
Newton: como podem existir monstruosidades como ele? Esse personagem especula,
então, que na formação da Terra a natureza gerou, espontaneamente, as mais diversas
formas de vida, incluindo muitas monstruosidades, só algumas delas tendo sobrevivido.
Eventualmente, a geração espontânea de mostruosidades continua ocorrendo. Portanto, as
atuais formas vivas teriam surgido por um processo de tentativa e erro26: “ Quem vos
disse, a Leibniz, a Clarke e a Newton, que nos primeiros instantes da criação dos animais
uns não tivessem cabeça e outros não tivessem pés?” (Diderot DSXG Casini, 1995, p. 112).
Em /H UrYH GH G¶$OHPEHUW, Diderot opõe uma imagem de natureza newtoniana,
teísta e regida por leis exatas, a uma outra imagem em que “ nada é exato” , e segundo a
qual “ todos os seres circulam uns nos outros... tudo é um fluxo perpétuo... cada animal é
mais ou menos homem; cada mineral, mais ou menos planta; cada planta, mais ou menos
animal” (Diderot DSXG Casini, 1995, p. 105).
Na fase materialista de Diderot, “ ... o mundo torna-se um ser vivo, infinitamente
elástico e cheio de força” (Hankins, 1985, p. 127). Este historiador cita o trecho de uma
carta de 1775 na qual Diderot apresenta a idéia básica de 2 VRQKR GH G¶$OHPEHUW e
declara sua dívida para com Bordeu (1722-76)27, fazendo-o seu interlocutor:
“ A sensibilidade é uma propriedade universal da matéria, uma propriedade que jaz
inerte nos objetos inanimados, mas que se torna ativa nos mesmos objetos após a sua
assimilação numa substância animal viva... O animal é o laboratório no qual a
sensibilidade, começando a partir de seu estado inerte, torna-se ativa” (Diderot DSXG
Hankins, 1985, p.130; cf. Guédon, 1979, p. 198).
Percebe-se uma clara influência de Maupertuis sobre Diderot. Aquele filósofo
rejeitara a tentativa de alguns newtonianos de estender, ao domínio da vida, o modelo
mecanicista de uma força de atração gravitacional atuando entre partículas de matéria,
agora transposto a um plano microscópico.28 Em vez disso, novas propriedades são
25
Diderot foi encarcerado em Vincennes por causa desta ‘Carta’ .
26
Bowler contesta que, nessas especulações, tenhamos algo próximo do mecanismo darwinista de evolução
(Bowler, LELG., p. 78-9). Efetivamente, idéias semelhantes foram propostas desde a Antiguidade Clássica,
por filósofos como Empédocles (ver a doxografia relevante em Kirk & Raven, 1982, p. 349). Empédocles,
ao que parece, foi uma fonte de inspiração para materialistas como Diderot (ver Casini, 1995, p. 113).
27
Théophile de Bordeu foi formado na escola de medicina de Montpellier, sendo um dos articuladores das
teorias vitalistas que caracterizaram essa escola no séc. XVIII.
28
A assimilação de Newton pelos físicos e filósofos franceses do séc. XVIII foi muito seletiva, e diferente
de sua assimilação pelos seus conterrâneos ingleses no mesmo período. Vimos que Newton era um teísta, e
16
Natureza e moral
A imagem mecanicista de natureza (na qual não se percebe qualquer hierarquia na
natureza se a compararmos, por exemplo, com a imagem aristotélica de cosmo) evocava,
para filósofos como Voltaire, uma ordem social igualitária, onde não haveria lugar para
privilégios.
A tendência a vincular uma imagem de natureza a uma imagem de sociedade, e a
uma filosofia moral - concebendo a ciência em conformidade com ambas -, é também
clara em Diderot. A sua imagem de natureza não é, contudo, mecanicista, mas
materialista. Diderot foi, nesse tocante, muito mais radical e conseqüente que os seus
pares mecanicistas e newtonianos: reeditou, como vimos, uma imagem de natureza
inspirada nos estóicos.30
Essa imagem, inspirada no estoicismo, possibilita ver a Natureza (cabendo, nesse
contexto, o uso de um ' n'maiúsculo!) como fonte de virtude: a ação humana integra-se
numa finalidade universal imanente à natureza. Há uma continuidade entre o homem e a
natureza, entre a esfera moral e a esfera física. Essa concepção veio a tornar-se um traço
característico do movimento romântico.
Lenoble retratou com muita propriedade a ambivalência do Iluminismo com
respeito à relação natureza-valores:
“ À hora … em que a natureza se desagrega em fenômenos imponderáveis
agrupados sob leis manifestas, essa mecânica sem alma e sem valor próprio retoma, por
dificilmente se enquadraria no perfil de um mecanicista deísta. Defendi em Abrantes (1998, cap. 3) que
Newton era, na verdade, um dinamista, sugerindo que alguns processos naturais, como a gravitação, não
podem ser explicados com base na matéria (para ele essencialmente passiva) requerendo, portanto, alguma
fonte de atividade (em última análise, tributária do espírito).
29
Veremos que esses limites (associados ao essencialismo) ainda continuam presentes em Buffon, a
despeito do seu materialismo (ver Bowler, 1989, p. 79).
30
Sobre o estoicismo antigo e o modo como vinculou a física a uma moral, ver Abrantes, 1998, cap. 1.
17
31
Na Inglaterra, até o séc. XIX, essa área ampla era denominada ‘QDWXUDO SKLORVRSK\’ . Os franceses já
usavam sistematicamente o termo ‘physique’ ao longo do séc. XIX, distinguindo a SK\VLTXH JpQpUDOH da
SK\VLTXH SDUWLFXOLqUH. Essas expressões já são de uso corrente na (QF\FORSpGLH de d'Alembert e Diderot
(ver Abrantes, 1998, cap. 5).
32
A teologia natural era fundada no conhecimento dos fenômenos naturais através do exercício de uma
razão natural. Ela pressupõe uma confiança nos poderes da razão humana: "O equilíbrio entre razão e
revelação tinha sido tão completamente redistribuído que foi possível construir uma teologia natural, uma
defesa racional da religião, que era totalmente independente da revelação" (Brooke, 1974, p. 33). Típico
dessa motivação é o livro de John Ray (1627-1705), 7KH ZLVGRP RI *RG PDQLIHVWHG LQ WKH ZRUNV RI WKH
FUHDWLRQ (1704).
18
33
‘Biologia’ é um termo que só surge ao final do séc. XVIII, provavelmente na Alemanha. O termo já é
empregado, simultaneamente, nos trabalhos de Lamarck e de Treviranus de 1802. Ver Roger, 1980, p. 258.
34
Nesse sentido, certas imagens de natureza no séc. XVIII aproximam-se mais de imagens comuns no
Renascimento do que da filosofia mecânica que predominou no séc. XVII !
19
35
Os autores se referem às ciências que foram marcadas pela novas perspectivas abertas pela história
natural: "... a biologia evolucionista moderna, a biogeografia, a ecologia, a antropologia física, a geologia
histórica e a cosmologia..." (Lyon & Sloan, 1981, p. 3). Acho importante ressaltar, nesse cenário, a
influência de uma imagem materialista de natureza, que veio a subverter alguns das motivações da história
natural, como sugeri acima. Há, na verdade, uma ambivalência entre uma história natural caracterizada pelo
ceticismo, e uma história natural que se abre para hipóteses, influenciada por uma imagem materialista de
natureza. Chamo a atenção, nesse tocante, para interpretações diferentes propostas por Hankins, de um
lado, e Lyon & Sloan de outro. Ver, adiante, a seção em que discuto a passagem de uma ‘história natural’
para uma ‘história da natureza’ , que sugere uma resolução para essa ambivalência.
36
Aqui caberia também a distinção entre deísmo e teísmo, no que tange aos processos que ocorrem no
mundo físico após a criação. Para o deísta, esses processos são puramente mecânicos (causação
secundária); para o teísta, a intervenção divina continua se dando após a criação, ao lado de uma causação
estritamente mecânica. É importante marcar a diferença entre o materialismo e o teísmo, embora ambas as
posições apontem para as limitações de uma matéria passiva como causa exclusiva dos fenômenos naturais.
37
Inicialmente, Lineu acreditava no fixismo das espécies, de acordo com o plano divino, mas na última
edição de 6\VWHPDQDWXUDH (a primeira é de 1753) abandona essa crença, admitindo alguma evolução. Essa
evolução (limitada) seria consequência não de efeitos do ambiente sobre os organismos, mas da
hibridização (Bowler, LELG., p. 67). Um dos alunos de Lineu descobriu uma planta híbrida que podia se
reproduzir (era fértil). Lineu chegou a sugerir que Deus tivesse criado somente uma espécie em cada
gênero, e que a diversificação das espécies teria sido consequência da hibridização.
20
em consideração, ver-se-ia que as tais espécies - supostamente naturais, nas quais Lineu
havia dividido os seres vivos - são, na verdade, grupamentos arbitrários. Os indivíduos
exibem continuidade em suas características: entre dois seres há sempre algum outro que
apresenta similaridades, em maior ou menor grau, com os que lhe são próximos na cadeia
do seres.38 Dada uma particular classificação, como a de Lineu, é relativamente fácil
encontrar seres que não se enquadram nas divisões propostas, e que apresentam
similaridades com seres classificados diferentemente.
Portanto, segundo os seus detratores, as espécies de Lineu eram meramente
nominais e não, reais. É importante assinalar, de passagem, que Condorcet, com o seu
pessimismo epistemológico cultivado por seu contato com o pensamento de Locke e de
Condillac, admitia a impossibilidade de se chegar a classificações naturais. Mas
Condorcet reconheceu a contribuição de Lineu por ter lançado as bases de uma
classificação sistemática das plantas. Condorcet era um grande admirador dele,
contrariamente aos materialistas.39
Buffon atacou o sistema de Lineu (a partir de 1744), por ter este último imposto
categorias abstratas aos fatos. As espécies seriam ficções, só existindo, em realidade,
indivíduos. Vemos aqui manifestos o empirismo e o nominalismo em Buffon, associados
a uma postura cética com respeito a abstrações40:
“ Quanto mais aumentamos o número de divisões nas coisas naturais, mais nos
aproximamos da verdade, pois na realidade só existem indivíduos... Os gêneros, ordens e
classes existem somente em nossa imaginação” (Buffon DSXG Hankins, p. 149).
Buffon aderia à ‘grande cadeia dos seres’ , concepção que remontava a Aristóteles,
e que foi reforçada pela metafísica leibniziana (com seu princípio da plenitude: não deve
haver lacunas na continuidade dos seres). Diderot também defendeu uma posição
análoga.
Para Buffon, a taxonomia de Lineu “ compartilhava da fraqueza da matemática.
Ela era abstrata, artificial e precisa, porque se origina na mente, e não na natureza. Ela
obteve precisão às expensas do realismo (...) A resposta de Buffon – continua Hankins -
foi a de determinar as espécies não com base em qualquer característica, mas através de
sua história reprodutiva” (Hankins, LELG., p.150-1). Duas plantas ou animais são da
mesma espécie se podem produzir descendentes férteis.41
38
A tradição alemã (Kant, por exemplo), faz uma diferença entre 1DWXUJHVFKLFKWH e 1DWXUEHVFKUHLEXQJ,
que remete à distinção, feita por Leibniz e por seu discípulo Wolf, entre “ o mundo visível da natureza e o
mundo abstrato e ideal da mente” (Hankins, 1985, p. 156), respectivamente. A 1DWXUJHVFKLFKWH refletia o
mundo visível, registrando uma continuidade de seres e de eventos. As classificações de Lineu
representavam, ao contrário, o mundo abstrato da mente, representado pela 1DWXUEHVFKUHLEXQJ (que, JURVVR
PRGR, possui as motivações do que venho chamando no texto de ‘história natural’ ). Ver, abaixo, a distinção
que faço entre uma ‘história natural’ e uma ‘história da natureza’ .
39
Ver Baker, 1975, p. 118.
40
Ver Charlton, LELG., p. 76.
41
Sobre a definição de 'espécie'em Buffon, ver Roger, 1980, p. 280.
21
42
É sugestivo, nesse contexto, remeter às posições divergentes de Platão e de Aristóteles quanto ao papel
da matemática na filosofia natural. Sabemos que o estagirita foi muito cético a esse respeito, contrariamente
ao seu mestre, que chegou a construir uma teoria geométrica da matéria no 7LPHX.
43
A distinção entre espécies nominais e reais remonta, pelo menos, a Locke. A referência fundamental é $Q
HVVD\ FRQFHUQLQJ KXPDQ XQGHUVWDQGLQJ (1690). Condillac, na esteira do pessimismo epistemológico de
Locke, viria a argumentar que só podemos aspirar a classificações artificiais, influenciando vários
pensadores iluministas franceses, em particular Condorcet (ver Baker, 1975, p. 109 et seq.).
44
Convém ressaltar que a etimologia do termo ' história'não remete, necessariamente, a uma idéia de
tempo.
45
Segundo Roger, Buffon permanecia, contudo, um essencialista apesar das suas críticas a Lineu. O
essencialismo foi um obstáculo fundamental ao advento de genuínas teorias da evolução (Roger, 1980, p.
268).
22
[Newton] numa fase determinada da história da natureza, é para ele uma abstração
efêmera relativamente a uma escala espacial e temporal que a supera infinitamente”
(Casini, 1995, p. 113-4).
Em 'H O¶LQWHUSUpWDWLRQ GH OD QDWXUH, publicado quatro anos depois, Diderot
reafirma que “ Se a natureza ainda está em ação, apesar da cadeia que liga todos os
fenômenos, não há filosofia. Toda a nossa ciência da natureza se torna tão transitória
quanto as nossas palavras. O que consideramos como a história da natureza é apenas a
história bastante incompleta de um só instante...” (Diderot DSXG Casini, LELG., p. 114).
Nas seções precedentes vimos, contudo, que a passagem de uma história natural
para uma história da natureza envolveu mudanças tanto nas imagens de ciência quanto de
natureza: a necessidade de rejeitar o ceticismo, o mecanicismo e o voluntarismo divino.46
Ciências e imagens
A Academia de Ciências simbolizava, sobretudo, imagens de ciência e de
natureza associadas à física. Na França da segunda metade do século XVIII, a imagem
mecanicista de natureza tomou por modelo os 3ULQFLSLD de Newton e estava representada,
fundamentalmente, no domínio da então chamada SK\VLTXH JpQpUDOH, nas teorias de
Lagrange, d' Alembert e Laplace, exemplos de uma física matemática altamente abstrata e
racional. Lavoisier esforçou-se por incluir também a química no âmbito desse programa
‘newtoniano’ , que privilegiava o quantitativo ao qualitativo, a articulação racional e o
controle experimental em detrimento de uma especulação metafísica D SULRUL. Essa
imagem mecanicista de natureza traduziu-se, no plano institucional, numa ciência
profissionalizada, hermética aos não-iniciados e distante do senso comum. Veremos,
adiante, como Condorcet (1743-1794) encarnou essa imagem, ao ser eleito secretário da
Academia em 1782.
A imagem de natureza alternativa, materialista, associou-se a uma imagem de
ciência que tomava a química e a história natural como modelos, e não a física.47 Essa
imagem de ciência valorizava os sentidos como fonte de conhecimento, em lugar de uma
razão fria que abstrai, que uniformiza, que exclui da natureza as qualidades secundárias,
ou seja, tudo o que é qualitativo.
A ciência era muito popular no século XVIII, que fez da natureza palco de um
grande espetáculo, acessível a todos e não só aos especialistas. Na França, laboratórios,
herbários e coleções de borboletas são montados nos castelos. Buffon e o abade Nollet
são os grandes representantes dessa ciência, cujo propósito era o de estabelecer uma
comunhão entre o homem e a natureza.
No verbete ‘Chimie’ da (QFLFORSpGLD, Venel opõe uma física superficial a uma
química profunda (que visaria a essência dos corpos). Uma física abstrata e quantitativa é
rejeitada por Venel em nome de uma química manipulatória, empírica, que nos colocaria
46
Contar essa história - que prepara o advento do pensamento evolutivo no séc. XIX – foge, contudo, aos
propósitos deste artigo. Ver Lyon & Sloan,1981; Bowler, 1989.
47
A associação entre história natural e materialismo gerou, contudo, tensões, dado o ceticismo
epistemológico associado à historia natural e também ao providencialismo que lhe era subjacente. Ver a
esse respeito Bernstein (1978).
23
em contato direto com a vida da natureza. Esta química seria, além disso, acessível a
todos, por usar uma linguagem inteligível ao leigo. Ela propõe-se a reintroduzir as
qualidades secundárias que a física do século XVII havia extirpado da natureza - por
serem ‘subjetivas’ - em nome de uma objetividade das qualidades primárias, mecânicas e
matematizáveis.
Evidentemente, essa química sonhada por Venel não era a química de Lavoisier
(para a qual Laplace deu importantes contribuições). Era, sim, a química de um Rouelle,
dos artesãos farmacêuticos, que viam na nova nomenclatura química, introduzida por
Lavoisier, uma manobra visando a criar uma dependência dos artesãos com respeito aos
acadêmicos (o líder dos farmacêuticos, Machy, foi o porta-voz dessa versão
conspiratória).48
É importante assinalar a presença de tais temas em vários textos de Diderot49: a
mesma desconfiança com respeito à conceptualização abstrata e ao emprego da
linguagem matemática no estudo da natureza.50 No que diz respeito à sua imagem de
ciência, Diderot avaliava que “ ... o gosto dos tempos voltou-se para a química e a
fisiologia porque essas ciências lidaram com a natureza como ela existia, em vez de com
a natureza como uma abstração mecânica e matemática” (Hankins, 1985, p. 120).51
A matemática foi, então, vista como um obstáculo que se interpõe entre o homem
e a natureza, corrompendo a sua natureza. Uma matemática que é "arrogante",
"orgulhosa" porque elitista, afastando o conhecimento científico do homem comum. Sua
'HO
LQWHUSUpWDWLRQGHODQDWXUH, publicada no mesmo ano do tomo III da (QF\FORSpGLH, já
selava as diferenças entre Diderot e d’ Alembert, não somente quanto às imagens de
natureza, como já vimos, mas também quanto às imagens de ciência. Diderot
prognosticava, nos seguintes termos, o futuro da matematização no programa newtoniano
em que trabalhava d’ Alembert:
“ Estamos quase chegando ao momento de uma grande revolução nas ciências.
Pela tendência que os espíritos me parecem ter para a moral, para as belas-letras, para a
história da natureza e para a física experimental, eu quase ousaria assegurar que, antes de
48
Guédon aponta que a química de Rouelle era bem recebida pelos naturalistas do -DUGLQGX5RL (1979, p.
191). Isso só reforça a tese de que a sobrevivência dessa instituição, estrategicamente rebatizada após a
Revolução (ver nota 14) explica-se, em parte, pela imagem materialista de natureza que passou a
representar.
49
Não é possível minimizar a influência da química de Rouelle sobre Diderot. Este seguiu o curso de
Rouelle em 1754 e foi, sem dúvida, o responsável pela indicação de Venel para escrever o artigo supra-
citado na (QF\FORSpGLH. Rouelle forneceu a Diderot a chave de uma “ visão química da natureza” (Guédon,
1979, p. 197), de caráter materialista, em substituição ao teísmo mecanicista de corte newtoniano esposado
por d’ Alembert (Cf. Baker, 1975, p. 99).
50
Diderot conhecia os 3ULQFLSLD de Newton e escreveu, em sua juventude, trabalhos de matemática
motivados por essa obra. Abandonou, mais tarde, tais incursões e a elas se referiu, em 1748, como um
“ sonho do ano passado” . Casini menciona as limitações de Diderot como matemático (contrastando com a
genialidade de d’ Alembert nesse domínio), e percebe a sua “ desvalorização” da matemática como “ o sinal
de uma desilusão e de um limite pessoais” (1995, p. 114). A despeito disso, Diderot nunca deixou de
reconhecer o legado de Newton.
51
A referência de Diderot à ‘fisiologia’ nesta passagem é um tanto surpreendente, pois esta área se situava,
como disse anteriormente, no âmbito da física e estava, normalmente, marcada por uma imagem
mecanicista de natureza. Talvez possa ser uma referência aos vitalistas da escola de Montpellier, mas não
tenho elementos para demonstrar isso.
24
cem anos, não se contará três grandes geômetras na Europa. Esta ciência acabará sem
mais ninguém...” (Diderot, 1989, p. 32).52
Para Diderot, a utilidade seria o antídoto contra uma ciência abstrata. Ciência e
técnica iluminam-se mutuamente, a primeira permitindo uma "racionalização" da técnica,
e esta definindo o âmbito e a finalidade da ciência. A (QF\FORSpGLH, pela pluma de
Diderot, veicula predominantemente essa preocupação com o desenvolvimento das
artes53:
"A Enciclopédia assimila o conjunto da ciência às suas aplicações, tornando-a
somente a racionalização da tecnologia e procura, na prática, ser fiel à injunção de
Diderot de colocar o homem no centro, não somente o homem, mas todo homem. Ela
propõe o sonho de uma ciência dos cidadãos, que a Revolução traduziu em medidas
concretas" (Gillispie, 1959, p. 270).
Para Gillispie, a conjunção entre interesses políticos, de um lado, e certas imagens
de natureza e de ciência, de outro, explicaria a hostilidade dos jacobinos à Academia de
Ciências. Imagens que podem ser detectadas nos discursos de líderes políticos como
Marat, que rejeitavam a química de Lavoisier e faziam ataques à ciência oficial
(apresentada como não-democrática, tirânica, inútil, e um bastião da aristocracia). Ao
mesmo tempo, esses discursos demonstravam um entusiasmo, mais ou menos explícito,
pela história natural.
O caso Rousseau
Historiadores como Guerlac (1959), Williams (1959) e Dhombres & Dhombres
(1989), tendem a enfatizar não a influência das imagens expressas por Diderot, mas sim a
de Rousseau, para explicar a hostilidade dos jacobinos à Academia. Rousseau teria sido o
primeiro a denunciar o "ídolo da ciência acadêmica" e inspirado uma série de discípulos,
como Marat, Brissot de Warville e Bernardin de Saint-Pierre (este nomeado, como
vimos, à frente do 0XVpXPG¶+LVWRLUH1DWXUHOOH).
Bernardin e Brissot teriam divulgado o sonho de Rousseau - "um tipo de ciência
primitivista, em que o homem trabalha melhor solitariamente e em relação íntima com a
natureza" (Guerlac, 1959, p. 319-320). Essa também era a visão que Marat tinha do
trabalho científico.54 Essa ciência anti-newtoniana tomava por modelo não propriamente
a química de Rouelle, mas sim a história natural. Em 1782, Rousseau definia o botânico
52
Casini percebe a influência de Bacon nessa “ profecia” (1995, p. 114).
53
Nada mais expressivo dessa orientação ‘baconiana’ que as magníficas pranchas da (QF\FORSpGLH,
representando o estado das mais diversas artes à época.
54
Em Abrantes (1998, cap. 4) exponho a conturbada relação de Marat com a $FDGpPLH GHV 6FLHQFHV. É
importante assinalar que Brissot tomou o partido de Marat, e também de Mesmer, contra os acadêmicos,
que denunciava como aristocratas: "O império das ciências não deve conhecer déspotas, aristocratas ou
privilegiados com direito a voto. Ele oferece a imagem de uma república perfeita. Lá, o mérito é o único
título para se receberem honras. Admitir um déspota, ou aristocratas, ou privilegiados com direito a voto
[...] é violar a natureza das coisas, a liberdade do espírito humano; é atentar contra a opinião pública, que é
a única que tem direito a coroar o gênio; é introduzir um despotismo revoltante" (Brissot DSXG Darnton,
1988, p.83; Baker, 1975, p. 76).
25
como aquele que “ só estuda a natureza para encontrar, continuamente, novas razões para
amá-la” .55
Esse é o ponto de vista que Guerlac chama, sugestivamente, de "ecológico".56
Robespierre, nos seus discursos aos convencionais, freqüentemente mencionava temas
rousseauístas, como na sua crítica ao plano Condorcet, que será apresentado adiante:
“ O homem é bom saindo das mãos da natureza: quem negar o princípio não pode
sonhar em instituir o homem. Se o homem é corrompido, é portanto aos vícios das
instituições sociais que é preciso imputar a desordem” (Robespierre DSXG Dhombres &
Dhombres, 1989, p.30).
Distanciando-se dos historiadores citados acima, Gillispie (1959) é menos
taxativo ao avaliar a influência de Rousseau. A tendência da sua análise é a de considerar
essa influência como não preponderante, apesar dos laços de diversos naturalistas com
Rousseau. Para Gillispie, Rousseau teria, no máximo, diminuído a importância da
ciência, atacando-a ocasionalmente. Mas, na avaliação desse historiador, ele não
pretendia alterar a “ estrutura da ciência” , como teria sido o objetivo de Diderot.
O caso Condorcet
Figuras como Condorcet situavam-se no outro extremo do espectro. Como um dos
mais importantes porta-vozes do espírito iluminista, Condorcet defendia que o
conhecimento científico - em particular aquele produzido no âmbito das ciências
matematizadas -, deveria, em sua positividade, servir de base para uma reforma da
sociedade em bases racionais. Esse conhecimento deveria ser, em especial, o eixo de uma
educação voltada para a eliminação da superstição e do preconceito, atuando como um
instrumento privilegiado de progresso social e cultural.
Esse espírito manifestou-se, por exemplo, no julgamento de charlatanismo
envolvendo as supostas curas de Mesmer com base em sua teoria do "magnetismo
animal", e também no questionamento das teorias e experimentos de Marat. Condorcet
era o secretário da Academia de Ciências à época.
Condorcet acreditava que o ensino de ciências nos níveis elementares deveria
tornar acessível, a todos os cidadãos, uma linguagem que era hermética aos não
iniciados.57 Ele avaliava – ingenuamente, como os acontecimentos que se seguiram
55
Em /HV5rYHULHVGX3URPHQHXU6ROLWDLUH 1782 (Rousseau DSXG Dhombres & Dhombres, 1989, p.29).
56
O trabalho de Darnton também tende a ressaltar a influência de Rousseau, mostrando que a vertente
radical do mesmerismo veiculou concepções políticas e sociais de corte rousseauísta: "A idéia mística que
os mesmeristas faziam da natureza evocava Rousseau, principalmente na medida em que, freqüentemente,
comparavam a natureza primitiva à decadência da sociedade moderna" (Darnton, 1988, p.102,108). O
mesmerismo teria, segundo o mesmo autor, estabelecido uma ponte entre a era iluminista da razão e a era
do romantismo (,ELG., p.137,141).
57
Como secretário da Academia, Condorcet suspendeu a tradição do seu antecessor, Fontenelle, de resumir,
ao final de cada ano, os trabalhos publicados nas 0pPRLUHV da Academia, com o intuito de divulgar, usando
uma linguagem menos técnica, os progressos do conhecimento e suas implicações, e buscando relacionar
os resultados obtidos nas várias áreas do conhecimento. A justificativa de Condorcet para interromper essa
prática foi a de que esse esforço de divulgação havia se tornado desnecessário, seja pelo fato das ciências
26
mostraram da forma a mais cabal e brutal possível -, que o valor da ciência já era
amplamente reconhecido, na segunda metade do séc. XVIII, tanto pelos detentores do
poder político quanto pelo público amplo: “ Não existe mais necessidade de dizer aos
príncipes que eles têm interesse em proteger as ciências, ou ao público que os cientistas
têm direito à sua gratidão” (Condorcet DSXG Baker, 1975, p. 75).
O estudo das ciências desenvolveria o espírito crítico e a rejeição de qualquer
autoridade que não a razão. Desse modo, evitar-se-ia erros em moral e em política que,
para Condorcet remontavam, em última instância, a erros em física: “ A experiência ...
prova que em todos os países nos quais as ciências físicas foram cultivadas, a barbárie
nas ciências morais foi mais ou menos dissipada, e pelo menos o erro e o preconceito
desapareceram” (Condorcet DSXG Baker, LELG., LG.).
Os objetivos eram, claramente, a racionalização da ordem social e a promoção de
um progresso contínuo e cumulativo, tanto do conhecimento quanto da civilização:
“ Uma das maiores fontes de erro nas ciências morais sendo a submissão à
autoridade, uma vez que essa submissão se tornou ridícula nas ciências físicas, ela não
mais tem a sua base nas outras [ciências] e não pode se restabelecer nelas” (Condorcet
DSXG Baker, LELG., LG.).
O ‘espírito de sistema’ (que dominava, segundo ele, a metafísica) foi denunciado
por Condorcet, que pregava a modéstia epistemológica: as ciências deveriam apoiar-se
firmemente nos fatos e renunciar a busca das causas. É curiosa essa mescla de um franco
otimismo com respeito ao progresso científico e social, e um não menos enfático
pessimismo em relação ao alcance do conhecimento humano e ao seu potencial
explicativo.
Pode-se reconher, aqui, vários elementos do positivismo que viria a se afirmar no
séc. XIX com A. Comte, embora de modo mais dogmático. Sem anacronismo, há que se
reconhecer, nessa imagem de ciência de Condorcet, as influências de Bacon, do
K\SRWKHVHVQRQILQJR de Newton, de Voltaire e de d’ Alembert.58
A relação íntima entre pensamento e linguagem, que defendia Condillac, foi
também uma referência fundamental para Condorcet, e uma base para reforçar o papel da
linguagem matemática nas ciências. Condorcet acreditava que a química, com Lavoisier,
e a história natural, com a introdução de novos métodos de classificação – tarefa na qual
Condorcet envolveu-se como pesquisador -, poderiam atingir o grau de precisão que a
linguagem matemática havia fornecido à física.59
As ciências morais deveriam adotar a mesma linguagem e os mesmos métodos
das ciências físicas, aspirando ao grau de certeza que estas últimas haviam alcançado. No
caso das “ ciências morais e políticas” , os requisitos fundamentais para o seu progresso -
na interpretação de Baker -, também deveriam assentar-se no desenvolvimento de uma
estarem suficientemente consolidadas frente à sociedade, seja pela melhora na educação científica dos
cidadãos (Ver Baker, 1975).
58
Condorcet ainda fazia eco às implicações epistemológicas do voluntarismo divino apontadas por
d’ Alembert, embora tendesse a enfraquecê-las, de modo a poder afirmar um determinismo mais robusto,
antecipando-se nesse tocante a Laplace (Baker, 1975, p. 104-5).
59
Ver Baker, 1975, p. 115, 126.
27
linguagem “ ... precisa e bem estabelecida (...) obtida não através da definição arbitrária,
mas com base na análise exata e no raciocínio rigoroso. Em moral, como nas ciências
físicas (...) Condorcet nunca cessou de ver a linguagem e o método como
indissociavelmente ligadas” (Baker, 1975, p. 128).
Na próxima seção, analiso de que modo as diferentes imagens de natureza e de
ciência, esposadas de forma mais ou menos explícita pelos filósofos e cientistas
estudados nas últimas seções, permearam os debates em torno de políticas educacionais,
no que diz respeito, particularmente, ao papel atribuído ao ensino de ciências.
preferiram deixar as escolas. Mas a pá de cal foi jogada com medidas que afetaram a base
econômica do sistema que vigia no Antigo Regime. As escolas eram financiadas, em
grande parte, pela Igreja e por dotações baseadas na administração de um patrimônio
imobiliário (aluguel de fazendas, imóveis urbanos etc.), legado este que, em muitos
casos, remontava ao período medieval. A Convenção decidiu, em 8/03/1793, desapropriar
todo esse patrimônio. Até que o Estado passasse a financiar de modo eficiente e contínuo
todo o sistema, a falência foi a regra. O patrimônio das escolas - instrumentos científicos,
bibliotecas etc. - foi dilapidado (Palmer, LELG., p.117).
62
Para que se tenha uma idéia do contexto conturbado, a discussão do plano Condorcet foi prejudicada pela
declaração de guerra contra a Áustria.
30
público e centralizado. Os níveis superiores não deveriam ser controlados pelo poder
público, ficando a cargo de organizações privadas e professores autônomos.
O plano Condorcet era considerado deficiente nos níveis inferiores: a ‘educação’
universal dos cidadãos não poderia ser confundida com a ‘instrução’ , com a mera
aquisição de conhecimentos.
Um rousseauísmo, por vezes impuro, permeou as críticas, à esquerda, ao plano
Condorcet: a ‘educação’ do cidadão não deveria ter por base o conhecimento científico
ou uma moral inspirada na Antiguidade, e tampouco princípios religiosos (Williams,
1959, p. 300). A virtude brotaria ‘do coração’ , através de um contato direto com a
Natureza (uso o ‘n’ maiúsculo para destacar uma imagem subjacente de atividade, por
oposição a uma imagem de natureza passiva).
Robespierre defendeu na Convenção, em 13/07/1793, aparentemente por
conveniência política63, um plano educacional elaborado por Lepeletier (Palmer, 1985, p.
138). Esse plano propunha uma ‘instrução’ científica nos níveis superiores, mas defendia
uma instrução universal mínima (basicamente a alfabetização), aliada a uma ‘educação’
entendida como uma promoção das virtudes, através de festas que falassem diretamente
ao sentimento, e não à razão. O Estado (e não a Natureza, como em Rousseau), servindo-
se de expedientes dacronianos, passaria a moldar os sentimentos, massificando-os.
O plano Lepeletier distinguia-se dos demais pela ênfase num igualitarismo
radical, a ser promovido pela instrução universal primária, que seria universal e
compulsória. Os jovens cidadãos, de todos os estratos sociais, deveriam ser afastados dos
pais (cujos valores os corromperiam, reproduzindo a estratificação social existente) e
seriam submetidos a uma pGXFDWLRQ FRPPXQH, enquadrados em PDLVRQV G
pJDOLWp,
caracterizadas por uma simplicidade e austeridade espartanas.
A Convenção tampouco aprovou o plano Lepeletier, devido ao impasse gerado
pelo conflito entre as filosofias que fundamentavam as diferentes propostas, por um lado,
e às dramáticas circunstâncias políticas daquele período, por outro lado. Nenhum plano
foi efetivamente implantado até os tempos do Diretório, quando são criadas as eFROHV
&HQWUDOHV (lei Daunou), inspiradas naqueles ideais iluministas que haviam sido
defendidos por Condorcet, bem como nas concepções dos ,GpRORJXHV. 64
As eFROHV&HQWUDOHV foram criadas em 26/10/1795, e o seu currículo era dividido
em três seções: latim, desenho e história natural (2 anos); ciências físicas e matemáticas
(2 anos); princípios da “ Ideologia” (ciência das idéias, inspirada em Condillac). Esse
currículo refletia, por um lado, a importância formativa que o Iluminismo concedia às
ciências e, por outro lado, o predomínio dos princípios da Ideologia, que eram baseados
na psicologia sensualista de Condillac. Uma das suas teses centrais era que a origem dos
erros estaria no mau uso da linguagem, justificando uma ênfase no ensino da gramática e
no estudo de línguas. Williams sintetiza do seguinte modo a filosofia educacional das
eFROHV&HQWUDOHV:
63
Sugiro isso porque a filosofia subjacente ao plano Lepeletier contradiz o rousseauísmo com o qual
Robespierre se comprometeu em outros momentos.
64
Os chamados ,GpRORJXHV incluíam Cabanis, Destutt de Tracy, Maine de Biran, Volney, entre outros, e
consideravam-se discípulos de Condillac. Adotavam, sobretudo, o chamado ' método analítico'
desenvolvido por este filósofo, tentando aplicá-lo à educação.
31
"A eliminação do erro pela correlação mais próxima entre os significados das
palavras e as sensações que constituem seus fundamentos; a destruição de preconceitos e
superstições pela revelação da ordem física (e sensível) do universo; a criação de uma
ordem moral e social baseada num conceito materialista e utilitário de homem e de
sociedade [...]" (Williams, 1953, p. 314).
A experiência das eFROHV&HQWUDOHV foi, em muitos aspectos, um fracasso. Quando
do golpe de estado de Napoleão, em 1799, o sistema já se encontrava em franca
decadência. Napoleão rejeitou a filosofia da educação em que se baseava o projeto das
eFROHV - os Liceus napoleônicos podem ser considerados a sua antítese. O que se manteve
daquela experiência foi a ênfase no ensino de ciências, embora seu peso no currículo
viesse a ser muito inferior ao concedido nas eFROHV &HQWUDOHV. Os Liceus visavam, em
última instância, formar quadros para a carreira militar .
BIBLIOGRAFIA
65
Inicialmente, chamava-se eFROH&HQWUDOHGHV7UDYDX[3XEOLTXHV, a que fiz menção acima.
33
Lenoble, R. +LVWRLUHGHO
LGpHGHQDWXUH. Paris: Albin Michel, 1969.
Lyon, J.; Sloan, P.R. )URP1DWXUDO+LVWRU\WRWKH+LVWRU\RI1DWXUH. Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 1981.
Palmer, R.R. 7KH LPSURYHPHQW RI KXPDQLW\. New Jersey: Princeton University Press,
1985.
Radnitzky, G. )XQGDPHQWDO6FKRROVRI0HWDVFLHQFH. Göteborg: Akademiforlaget, 1970.
Roger, J. /HVVFLHQFHVGHODYLHGDQVODSHQVpHIUDQoDLVHGX;9,,,VLqFOH. Paris: Armand
Colin, 1963.
__________. The living world. In: Rousseau, G.S.; Porter, R. (eds.) 7KH)HUPHQWRI
.QRZOHGJH. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 255- 283.
Venel. Chimie. In: Diderot, D.; D’ alembert, J. (eds.). (QF\FORSpGLH RX GLFWLRQQDLUH
UDLVRQQpGHVVFLHQFHVGHVDUWVHWGHVPpWLHUV. New York: Pergamon Press, 1969.
Williams, L.P. Science, education and the French revolution. ,VLVv.44, p.311- 30, 1953.
__________. Science, education and Napoleon I. ,VLV, v.47, p.369-82, 1956.
__________. The politics of science in the French revolution. In: Clagett, M. (ed.).
&ULWLFDO SUREOHPV LQ WKH +LVWRU\ RI 6FLHQFH. Madison: University of Wisconsin
Press, 1959.