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pelo silêncio que caracterizam a técnica da escrita, o filósofo tem tempo para
refletir sobre a faculdade da visão e utilizar integralmente suas
características. Afinal, os nomes escritos estão ali, diante dele: presentes,
imóveis, permanentes. Como a ideia, o nome escrito tem uma sua fixidez.
Igualmente presente e visível é o encadeamento de verbos e nomes na frase:
o trabalho de junções “harmônicas”, típico do logos, assume uma forma
linear, organizada e passível de revisão. Retirada do evento dinâmico do
fluxo vocal e entregue à solidez do signo escrito, a linguagem se torna um
objeto de observação.
A escrita de tipo alfabético, como a grega, consiste substancialmente numa
des-sonorização da palavra. Substituindo a esfera acústica por um mapa
visual, o signo escrito traduz o som e o elimina. A leitura em voz alta tem,
nesse sentido, a tarefa de uma restituição. Ao contrário do que ocorre na
tradição hebraica, na escrita grega não há sons que resistam ao regime dos
signos. O alfabeto compreende consoantes e vogais. À voz - invocada no
próprio nome das vogais - não é concedida nenhuma esfera autônoma em
relação ao plano descrita. A desvocalização é completa. Todo som
pronunciado passa à escrita e, nesta, se congela, oferecendo-se
duradouramente ao olho.
É sabido que Platão, nos textos escritos de sua lavra, avalia negativamente a
escritura como letra morta e cópia inanimada da palavra. Essa postura, como
letra morta e cópia inanimada da palavra. Essa postura, como afirma a maior
parte dos intérpretes, tem algo de paradoxal: ao contrário de seu mestre
Sócrates, Platão não filosofa dialogando oralmente, mas sim escreve
diálogos de filosofia. Sintomaticamente, porém, o verdadeiro paradoxo está
em uma dobra mais complexa da questão: a crítica da escrita, na obra
platônica convive com a condenação da poesia, forma oral por excelência.
O filósofo tem muito claro que, em poesia, não se trata de uma palavra falada,
mas sim de um canto em que é a musicalidade da voz que domina a palavra,
arrastando poeta e público numa “absoluta coparticipação emocional no
âmbito da embriaguez e do prazer”. Encarregando-se de salvaguardar a
palavra dos efeitos mortíferos da escrita, ele se preocupa também em colocá-
la ao abrigo do predomínio da voz e de seus efeitos de prazer. Dois são, em
suma, os objetivos críticos da estratégia platônica que sai em defesa da
palavra, a segunda lhe dá um corpo demais a da mente carnal. A palavra
deve se desviar do perigo de cair no registro sonoro. Na transição histórica
da oralidade à escrita, Platão se dedica por uma oralidade que, despida de
suas implicações originárias, depende já do efeito antivocálico da escrita.
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Efetivamente, o filósofo não condena a escrita por ela calar a voz, mas
porque a pensa como cópia de segundo grau em relação à palavra como
imitação da ideia. Na origem e como origem está, para Platão, a ideia: o
significado mental contemplado com os olhos da mente. O nome, “que sai
da boca junto com a voz”, vem em segundo lugar e é seu significante
acústico. Em terceiro aparece o nome escrito, como um significante gráfico
de um significante acústico ou, preferindo-se, cópia da cópia, distanciada,
portanto, de dois graus em relação ao original. Tudo se passa como se, a
partir da ideia que funciona como origem, todo o resto seja signo, aí incluída
a voz. A condenação explícita - e aparentemente paradoxal - da escrita se
coloca ao lado de uma valorização implícita da escrita como modelo
“natural” do regime dos signos e de toda reflexão que a tome como objeto.
A uma cultura de oralidade primária faltam os requisitos elementares que
consintam pensar a voz como matéria acústica ingovernável no sistema da
significação. Uma disciplina como a linguística, cuja história é inaugurada
com grande antecipação por Platão e Aristóteles, pressupõe a escrita. A
linguística é porém, diretamente voltada para englobar a phoné dentro da
esfera do signo.
A história, ainda que complexa, tem um desdobramento coerente.
Amplamente devedora da prática da escrita e por ela encorajada, a
desvocalização platônica do logos passa por uma redução da phoné a signo
acústico da ideia. Trata-se exatamente da voz geral da linguagem, serva da
lógica videocêntrica do significado e controlada pelo sistema da significação.
A palavra falada, que Platão prefere à palavra escrita, pertence ao registro
dos signos gerado pela escritura e é precisamente signo acústico de uma ideia
que exalta o papel do olho, tal como faz a escritura. Compreende-se assim
por que a condenação platônica da escrita pode ser acompanhada de outra,
bem mais detalhada e obsessiva, da voz do aedo. Platão teme a voz do prazer
acústico, a voz que é ritmo e respiro, aquela que escapa ao controle do
sistema videocêntrico da linguagem. Teme, em outras palavras, a área
corpórea do vocálico.
Nesse sentido, refletindo sobre a épica, Havelock consegue individuar o
verdadeiro objeto da crítica platônica. A musicalidade e as iterações das
assonâncias, ele diz, incitam o prazer do ouvido, “os tímpanos dos ouvintes
são bombardeados simultaneamente por duas séries distintas de sons
organizados em ritmo concorde: o discurso métrico e a melodia
instrumental”, ou seja, a voz e a cítara. Mediante “a mobilização dos
recursos do inconsciente em auxílio da consciência”, nos ouvintes são
solicitados os reflexos “de natureza destacadamente sexual e intimamente
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A Musa - diz Sócrates no Íon - tem a mesma força do ímã. Como este, que
"não apenas atrai os anéis de ferro, mas transmite-lhes o poder de atrair
outros anéis", também o poder divino, a theia dynamis, da Musa se transmite
aos poetas e, destes, aos rapsodos. Na cadeia poética, cada poética, cada elo
tende ao outro por irresistível atração. A theia dynamis não é, contudo,
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apenas esse poder que atrai e vincula. É também, e ao mesmo tempo, uma
condição de entusiasmo que se transmite de um elo a outro. Possuído pelo
poder divino, o poeta é en theos, no deus, endeusado. Ele está fora de si: em
um estado de passividade apta a receber e transmitir ao rapsodo aquilo que a
Musa lhe doa. Assim como os anéis de ferro que pendem do ímã se
magnetizam, também os anéis da cadeia poética que pendem da Musa se
divinizam. O fenômeno de atração é também um fenômeno de divinização.
Um dom, alguma coisa diferente do puro poder de atrair, uma divina mania
passa da Musa ao poeta e ao rapsodo para depois, naturalmente, chegar ao
público.
A comparação com o imã se sustenta, porém, até certo ponto, isto é, até o
ponto em que Platão acrescenta uma modificação ao quadro "científico" do
magnetismo para justificar seu interesse pela estranha especialidade do
rapsodo que dá nome ao diálogo. A theia dynamis, afirma Sócrates, não se
transmite aos vários anéis como um poder simples e indiferenciado, tal como
ocorre no fenômeno natural do magnetismo. Ela se transmite na forma de
uma theia moira, ou seja, já de saída se transmite de modo que a cada um
caiba a sua parte (moira) da theia dynamis. O poder divino se transmite de
um elo a outro em competências diferenciadas e singulares. Na cadeia
poética, a transmissão do poder é uma distribuição de partes diferentes. O
termo moira indica a parte que vem de uma divisão: por exemplo, em língua
homérica, a moira que cabe a cada herói na divisão do butim total, após a
batalha. Isso é significativamente comprovado nos casos, bem conhecidos,
em que a moira indica a sorte, ou seja, a parte resultante do "sorteio" divino
que dá a cada ser humano o seu destino. Um análoga distribuição de partes
ocorre com a cadeia poética. Dirigindo-se a Íon, Sócrates pode então afirmar
que não a arte, mas sim uma divina divisão [theia moira] induz a cantar e a
dizer muitas coisas belas, como fazes tu com Homero: cada um é bom ao
compor unicamente aquilo a que a Musa o incita.
Como Sócrates afirma logo depois, trata-se de uma partilha que se refere,
sobretudo, aos gêneros poéticos. A um poeta ocorrem os ditirambos, a outro,
os jambos, e assim por diante. A moira divina que coube a Homero é
evidentemente a épica. O que explica por que Homero canta em hexâmetros,
mas não explica por que Íon recita somente Homero. O ponto é que a divina
divisão da Musa não diz respeito apenas aos gêneros poéticos, mas também
a cada poeta, para depois estender-se aos rapsodos. Cada um, devido a essa
divina divisão, toma parte no mundo da poesia e faz o que lhe cabe. Portanto,
não é nada estranho que Íon tenha competência exclusiva sobre apenas um
poeta e que seja magistral em Homero. Essa sua competência exclusiva é
justamente a sua moira, sua parte na cadência poética. A atração exclusiva,
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passando por Homero, estende-se a Íon: um rapsodo que é tão bom em seu
ofício que vence todas as competições de que participa.
Segundo uma imagem do Íon, que Platão toma da tradição poética, o poder
que vem da Musa como um dom consiste no mel dos divinos jardins que o
poeta transporta e transmite ao fazer (poiein) versos. Por isso ele é poeta,
poietes. No ritmo doce dos versos, sua voz coloca em palavras o mel (mele)
da Musa. No jogo etimológico que Sócrates propõe aqui, isso vale acima de
tudo para o poeta lírico, o melopoion. Mas, para além do jogo etimológico,
vale para todo tipo de poeta enquanto alguém que faz versos. O dom da
Musa, o divino néctar, está no som ritmado. A metáfora sugere que poetar
tenha algo a ver com o lado físico do som que atinge prazerosamente os
ouvidos, assim como o mel delicia o palato. Dominando-os com seu dom, a
Musa faz os poetas proferirem versos que atraem e seduzem por seu timbre
sonoro. Do mesmo modo, na República, conforma-se que o grande encanto
da poesia vem do metro, do ritmo, da harmonia. A metáfora do mel é clara:
não se trata de versos que atraem e seduzem também pelo som, além de pelo
conteúdo. Não é esta a questão dessa página do Íon. A questão é bem mais a
de um logos cuja substância fônica, rítmica e musical é doce como o mel e
passa de quem fala a quem escuta como um fluxo sonoro de irresistível
delícia. Obviamente, existe também um conteúdo, uma narrativa. Mas é,
sobretudo, o aspecto acústico que manifesta sua marca divina e o efeito de
satisfação. Na oralidade homérica, a vocalidade desempenha um papel
preponderante e perigoso. No centro da épica, existe uma questão de voz.
Homero não é simplesmente um contador de histórias. Recebendo-as da
Musa, ele as coloca na voz humana e no canto.
Por isso, no Íon, Platão parece aderir fielmente à representação que a épica
dá de si mesma. Aquilo que passa no primeiro elo da cadeia poética é um
logos divino que adquire materialidade sonora na voz do poeta. A insistência
de Sócrates sobre essa passagem do logos divino à voz do poeta é evidente.
É a Musa que fala através da voz dos poetas por ela dominados. Ela lhes tira
o juízo e os usa como meios a fim de que "os ouvintes [oi akountes] saibam
que não são os poetas, por estarem sem juízo, que fala coisas tão admiráveis,
quem fala é o mesmo deus ouvido por nós por meio deles". Algumas partes
da sentença merecem ser transcritas na língua original: Otheos autos esti o
legon - deus mesmo é falante, proclama Sócrates. Por meio dos poetas, o
deus phthengetai pros hemas, se faz ouvir vocalmente, emite um som que os
ouvintes podem escutar. Ao colocar em voz, ou seja, ao levar na sua voz o
logos da Musa, o poeta pode ser definido como o mensageiro do deus.
Os poetas são mensageiros dos deuses (hermenes erisimo ton theon), declara
Sócrates pouco depois. Poder-se-ia dizer, segundo as traduções mais usuais,
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que os poetas são intérpretes dos deuses. Mas o verbo hermeneuein não
significa propriamente "interpretar". Como aponta Nancy, citando
Heidegger, o verbo significa antes ainda e mais propriamente "levar a
mensagem", "anunciar". O canto do poeta é um anúncio de coisas de que ele
é o mensageiro. O conceito mesmo de mensagem colocada em voz implica
pelo menos um jogo a três: a fonte, o meio e o destinatário. No Íon trata-se,
todavia, de um jogo a quatro. Na poesia épica, entre o poeta e o público
intervém o rapsodo. Voz da voz do poeta, mensageiro do mensageiro dos
deuses, o rapsodo é o segundo elo dessa transmissão vocálica. No início está
a Musa, ao final, o público. No meio, estão as vozes do poeta e do rapsodo.
Canta, obviamente, palavras, mas de modo tal que, sob as palavras, como
diria Proust, seja perceptível "o ar da canção, que, em cada um, é diferente
daquele dos outros". É mesmo provável que no Íon a solução do enigma
esteja justamente aí. A divina divisão dos gêneros poéticos se especifica
como distribuição de cantos singulares: cada poeta recebe o ar de sua canção.
Em outras palavras, não só a lírica tem uma musicalidade diferente da épica
como, internamente aos dois gêneros, cada poeta tem o seu próprio canto,
seu próprio estilo expressivo acusticamente perceptível. Não fosse assim,
não se compreenderia a curiosa especialidade do Íon. Ele não ama a épica
em geral, mas sim o ar da canção homérica. A peculiaridade de Homero,
aquilo que faz dele um poeta que o ouvido treinado distingue de todos os
outros, diz respeito à modulação do canto, à especificidade de seu tecido
rítmico e de sua musicalidade. Mediante o estranho caso do rapsodo Íon,
Platão tematiza a unicidade de cada poeta enquanto vocalizador de uma
específica e singular melodia, de um estilo inimitável que é a sua voz.
Do mesmo modo que irá fazer a crítica literária, o Íon platônico se interessa
pela pluralidade das árias cantadas, não pelas vozes singulares daqueles que
as cantam. O filósofo, mais do que refletir sobre uma ontologia vocálica da
unicidade, aventura-se em meditar sobre uma estética da atividade canora. A
tese interpretativa de Nancy, porém, centrada sobre a página do magnetismo
poético, parece recuperar para a leitura moderna do Íon justamente o tema
da unicidade vocálica. Para Nancy, são sempre vozes únicas as que
interpretam a parte que lhes é assinalada pela theia moira. E é obviamente a
Musa mesma que fala por meio dessas vozes. Isso, segundo o filósofo
francês, significa que o divino é aquilo que se separa nas vozes, ou seja, é a
originária divisão da voz divina que se dá nas vozes singulares dos poetas e
dos rapsodos. Sintomaticamente, porém, a atenção de Nancy também não se
dirige à materialidade da esfera acústica. Em seu denso texto, o fenômeno
natural da unicidade de cada voz, o simples dado de que a voz de cada um é
diferente daquela de todos os outros, ainda que funcionando como tácito
suporte à sua tese interpretativa, não se transforma em explícito objeto de
reflexão. Não se chega, portanto, a uma ontologia vocálica da unicidade, mas
sim a uma hermenêutica da divisão baseada no tema do logos. A curiosa
especialidade de Íon encontra, de todo modo, uma explicação plausível
segundo a qual mesmo no elo mais "repetitivo" da cadeia poética, o do
rapsodo, o logos se dá numa voz singular. A cadeia poética se divide sempre
em uma pluralidade de vozes, aliás, a voz divina é que se divide sempre em
uma pluralidade de vozes, aliás, a voz divina é que se divide originariamente
na sua constitutiva pluralidade.
não são apenas as palavras cantadas pelos poetas e pelos rapsodos, mas é o
logos mesmo, segundo Nancy, que se divide na pluralidade das vozes. Abre-
se, assim, um possível espaço teórico - infelizmente não muito desenvolvido
- para o tema da relação entre unicidade vocálica e palavra; mas, ao mesmo
tempo, fecha-se - ou pelo menos não é valorizado o bastante - o tema da
inquietude platônica pelo fenômeno do canto. Não é necessário esquecer que
o aspecto crucial da questão apontada obliquamente por Platão está no laço
essencial entre a unicidade do canto e a unicidade da voz. O Íon parece, de
fato, intuir esse laço, mas termina por focalizá-lo como ponto de fuga, mais
do que como estímulo para uma ulterior reflexão. O que permanece, nos
fragmentos de uma trama textual talvez propositalmente incompleta, é a
intuição de que a unicidade vocálica se anuncie, originariamente, no jogo do
ritmo e da ressonância. A isso se junta outra intuição, não menos importante,
de que a palavra, longe de ser uma cópia da ideia, seja, antes de tudo,
entregue ao ar de uma canção que delicia a boca e o ouvido. As vozes
singulares em que, de acordo com a leitura de Nancy, o logos se divide são
tematizadas por Platão principalmente devido a seu timbre sonoro e a sua
pertinência à esfera acústica do prazer: além, ou melhor, antes de qualquer
separação entre expressão vocal e conteúdo do que elas dizem.