Sie sind auf Seite 1von 79

©

Maria Isabel Mendes de Almeida

Gramma Livraria e Editora


Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro
Rocha, Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Produção Editorial
Coordenação Editorial: Gisele Moreira
Revisão: Michele Paiva e Clarisse Cintra
Capa e diagramação: Luiza Aché

Gramma Livraria e Editora


Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
E-mail: contato@gramma.com.br
Site: www.gramma.com.br

Todos os direitos reservados.


A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Sumário

Apresentação
Maria Isabel Mendes de Almeida

Introdução
Das solidões deliberadas às desmobilizações táticas: rastreamento descritivo de um processo de
pesquisa
Maria Isabel Mendes de Almeida, Fernanda Eugênio & Raphael Bispo

Horizontes da finitude – desmobilização e atualizações da resistência nas juventudes


contemporâneas
Maria Isabel Mendes de Almeida & Fernanda Eugênio

Tomar distância – reinvenções do êxodo, composições situadas e resiliências


Maria Isabel Mendes de Almeida

Nas malhas da solidão-ação – vivências jovens da solitude


Raphael Bispo

Erótica das distâncias – por uma ética do bem viver junto


Raphael Bispo & Oswaldo Zampiroli

Referências bibliográficas
Apresentação
Maria Isabel Mendes de Almeida

O livro que se tem em mãos é fruto de duas pesquisas coletivas desenvolvidas de maneira articulada e por mim
coordenadas entre os anos de 2013 e 2016, originalmente intituladas “Reinvenções da solidão na juventude
contemporânea” e “Juventudes e desmobilizações da vida urbana na contemporaneidade”. Esses trabalhos tiveram
como solo institucional o Centro de Estudos Sociais Aplicados (Cesap/Ucam), que há mais de duas décadas vem se
dedicando ao estudo das culturas jovens brasileiras – cariocas em particular. Durante todos esses anos, o Cesap vem
funcionando como um observatório permanente do cotidiano urbano e das transformações na subjetividade coletiva
contemporânea, por meio do foco privilegiado nas culturas jovens que habitam o século XXI. Apostando em uma
abordagem alargada da juventude, não tanto como faixa etária demarcada, mas principalmente como estilo de vida
convertido em valor preponderante no mundo contemporâneo, o Cesap já acumula investimentos em temáticas
diversas aglutinadas em torno das modalidades de funcionamento e dos processos de subjetivação juvenis.
Cabe destacar aqui, por exemplo, que já foram objeto de pesquisa do Cesap, ao longo de todos esses anos, a
construção e a transformação do corpo (tatuagens, piercings e outras intervenções corporais), as relações de
amizade e de afeto (o zoar e o ficar), os nomadismos da vida noturna e a ocupação e ressignificação volante do
espaço urbano, o consumo de substâncias sintéticas (particularmente o ecstasy), os usos das redes telemáticas e das
tecnologias digitais, a criatividade e o desempenho profissional, as reconfigurações do capital e do mundo do
trabalho, entre outros temas.
Portanto, os resultados de nossas últimas pesquisas, agora apresentados em livro, dão sem sombra de dúvida
continuidade à tradição do Cesap em tomar as culturas jovens como âmbito privilegiado no qual ressonam e se
visibilizam vigorosamente as mais recentes transformações subjetivas, sociais e culturais brasileiras.
A equipe de pesquisadores do Cesap possui ampla experiência acadêmica e seus perfis profissionais são
complementares, características importantes para a atuação em temas interdisciplinares como o abordado ao longo
desta obra. O trabalho coletivo, em equipe, é uma das marcas do Cesap, estimulando o compartilhamento de ideias
e o pensar em conjunto, colaborativo, o que possibilita o descentramento da autoridade científica que se faz
comumente presente nas pesquisas individualizadas, “pessoais”, tão características das Ciências Sociais em
geral. Alguns desses pesquisadores fazem-se presentes como autores de artigos nesta obra, como se verá adiante.
Entre 2013 e 2015, compuseram a equipe do Cesap os pesquisadores Fernanda Eugênio, Fernanda Deborah
Lima e Raphael Bispo, a quem agradeço não só pela convivência sempre tão prazerosa e criativa em nosso dia a dia,
mas também pelas contribuições em todo o processo de construção e processamento da pesquisa. Contar com eles
ao longo desses anos foi como descortinar a cada dia uma nova descoberta, um novo achado desafiador, uma nova
camada de sugestões, que encarnam a prerrogativa de um trabalho verdadeiramente compartilhado.
Devo ressaltar que minha parceria com Fernanda Eugênio já vem de muito antes e atravessou outras pesquisas e
temas em torno dos quais trabalhamos juntas e construímos uma preciosa interlocução que até hoje contribui para
irrigar e fertilizar minha trajetória acadêmica.
Foi muito importante também a atuação e dedicação da equipe de estagiários do Cesap, composta por Daniel
Wainer, Mayra Albuquerque, Thais Mendes, Cecília Granato e Oswaldo Zampiroli. A eles um agradecimento mais
do que especial pela “força-tarefa” que conseguiram montar em todas as etapas desta pesquisa, alguns na frente mais
tecnológica, outros na recolha mais artesanal de dados, outros na montagem de nosso acervo bibliográfico, enfim
um rico “mutirão” de investimentos que foram essenciais e insubstituíveis para que esse processo fosse concluído
com sucesso!
E finalmente, na etapa final deste trabalho, contei com a inestimável ajuda das pesquisadoras Lilian Gomes e
Thais Costa da Silva – ambas do Cesap – para a revisão dos dados e complementação das fontes bibliográficas e do
material oriundo da internet. Sou muito grata às duas pela pronta solidariedade e pela extrema competência de seus
trabalhos como pesquisadoras.
Introdução
Das solidões deliberadas às desmobilizações táticas – rastreamento descritivo de
um processo de pesquisa
Maria Isabel Mendes de Almeida, Fernanda Eugênio & Raphael Bispo

Este livro procura oferecer um mapeamento vivo e dinâmico de um fenômeno ao mesmo tempo transversal e
situado, cada vez mais onipresente nas sociedades contemporâneas e, simultaneamente, rarefeito, de apreensão
fugidia, avesso a caracterizações estanques. Um fenômeno no qual a navegação analítica tem de se manter em
contínuo estado de alerta, inventariando e reinventariando o campo de modo a constantemente separar o que nele é
vitalismo e o que é captura. O que é o flagrar de novos modos de vida e o que é o reencontrar de velhas utopias
apenas recicladas por uma cultura de consumo?
Para conseguir dizer esse fenômeno, cunhamos um novo conceito, a que chamamos de desmobilização, numa
conversa em contraponto com a expressão escolhida por Sloterdijk (2002) para caracterizar a modernidade
enquanto “mobilização infinita”. Tal expressão vem sendo utilizada para descrever o processo fundamental da
chamada Era Moderna. As modernizações apresentam, sempre do ponto de vista cinético, o caráter de
mobilizações, e é neste sentido que o progresso se expressa como a utopia cinética máxima da modernidade. Esta
última caracterizou-se continuamente como progressiva e progressista, e desse modo acompanhamos com
Sloterdijk, que progressivo na sua essência é somente aquele “passo” que leva ao incremento da “capacidade de dar
mais passos”. Estamos, pois, diante das fórmulas dos processos de modernização em que progresso é movimento
para o movimento, movimento para uma capacidade de movimento incrementada (Sloterdijk, 2000, p. 32-33). A
modernidade, seria, portanto, ontologicamente “puro ser para o movimento” (2000, p. 33).
Sintetizamos, assim, em um só termo – a desmobilização – um modo operativo comum e atravessador,
manifesto em estudos de caso os mais diversos, que apontam para essa tentativa de fugir do excesso de “movimento”
tipicamente moderno: dos retiros de silêncio às saídas dos centros urbanos rumo ao campo; das reinvenções
nomadizadoras do trabalho às economias alternativas à economia monetária; dos “desencanamentos” no âmbito dos
relacionamentos afetivo-sexuais à valorização da solitude; das decisões de “desplugar temporário” presente na
renúncia à posse de telefones celulares ou de contas nas redes sociais às tentativas de frear a “dependência” do
universo on-line, entre outros casos.
A tribuna da desmobilização nos muniu, ainda, de uma perspectiva crítica capaz de expor de modo contundente
as aporias do capitalismo, a crise da modernidade e a coincidência – por vezes perversa, por outras potente – entre
o ápice do capital e o seu esgotamento (aspecto que trataremos mais detidamente no capítulo “Horizontes da
finitude – desmobilização e atualizações da resistência nas juventudes contemporâneas” deste livro).
Acompanhar as desmobilizações jovens contemporâneas colocou-nos como desafio a construção de uma
abordagem metodológica singular. Ao habitual traçado etnográfico e recurso a entrevistas abertas, somou-se uma
incursão sem precedentes às redes sociais on-line – sobretudo ao Facebook – na qual apostamos numa estratégia
inusitada: a de que os próprios pesquisados poderiam funcionar como “curadores de conteúdo” para a pesquisa, na
medida em que fôssemos capazes de ativar uma espécie de escuta continuada de suas postagens, discussões e fóruns
de conversa.
A metodologia adotada durante nossa pesquisa foi o “rastreamento descritivo” proposto por Latour (2012) com a
sua teoria do ator-rede, de modo a nos permitir ir em busca de experiências várias que tenham na “desmobilização”
o seu atravessamento comum. Diante da opção por uma abordagem nesses moldes, tornou-se quase que imediata a
emergência de um objeto que escapa aos formatos tradicionais da pesquisa em Ciências Sociais. Ou seja, em
detrimento de um pré-delineamento do grupo a ser pesquisado recorrendo a variáveis macrossociológicas tais como
classe, raça, gênero, faixa etária, nacionalidade etc., privilegiamos uma escuta apurada dos inputs que cada
pesquisado nos oferecia, movendo-nos “de perto em perto” por meio de um circuito que ligava os atores por
“similitude” operacional mais do que por “semelhança” social (cf. Deleuze, 2006). Esse procedimento nos permitiu
que seja o percurso por entre as experiências juvenis na sua diversidade de atualizações e modos de apropriação do
atravessamento comum da “desmobilização” a nos indicar, como resultado bem mais fino e sutil, o enquadramento e
a distribuição dos agentes. Um circuito, portanto, que ia se desenhando conforme avançava o processo de pesquisa.
Trata-se, assim, de um modo de operar que se revela extremamente útil no desenho analítico de um mapa não
generalizante. Ao expor os mais diferentes posicionamentos dos agentes em relação a uma mesma questão – no caso,
a “desmobilização” – tal recurso revelou-nos que pode estar na controvérsia (e não na unanimidade) a relevância dos
fenômenos, permitindo-nos fornecer uma compreensão muito mais disseminada e micrológica do socius – e mais
próxima da concretude das vivências.
Assim, por meio dessa metodologia do “rastreamento descritivo”, não apenas encontramos e reencontramos
continuamente os atores pesquisados em suas redes, acompanhando-os enquanto se moviam por diferentes posições
relacionais, como também seguimos os seus registros, ditos e escritos, recolhendo diretamente das suas timelines o
material a ser analisado – sob a forma de artigos jornalísticos, blogs pessoais, vídeos, fotos e tutoriais DIY (Do It
Yourself).
Vastas e abrangentes são as possibilidades de tematização das desmobilizações atuais junto às populações jovens
da cidade do Rio de Janeiro e das inúmeras interfaces que estas mantêm com as redes sociais. Entre essas últimas,
um amplo destaque foi conferido às postagens de jovens voltadas para propostas alternativas de composição de
outros mundos possíveis diante da mobilização infinita.
Nesse sentido, a utilização exaustiva desse material midiático ao longo de dois anos de pesquisa nos viabilizou
uma inflexão que extrapola o âmbito local, permitindo-nos maior alcance e ressonância transnacionais junto a
outras juventudes e a seus distintos projetos e arquiteturas de desmobilização. Além da extensa recolha do material
oriundo das ferramentas sociais, realizamos um conjunto de 20 entrevistas com jovens entre 20 e 35 anos,
majoritariamente cariocas (incluindo-se também uma parcela de entrevistados de outros estados). O fato de a
pesquisa “extrapolar” os trinta e poucos anos – alguns chegando aos 40 – tem em vista a questão de que os
fenômenos perscrutados estão em sintonia com o recente processo de alargamento da faixa compreendida como
“juventude”, convertida contemporaneamente em estilo de vida (Le Breton, 2003). Buscamos ainda, por meio da
proposta de ampliação do escopo de idades dos sujeitos, contemplar os rastros das desmobilizações de acordo com
as diferentes etapas ou fases da vida, aí incluindo a elaboração biográfica por parte dos jovens entrevistados, tanto
em seu traçado retrospectivo quanto prospectivo. Tal percepção permitiu refletir simultaneamente sobre as
dimensões extensivas e intensivas dos projetos de vida, em suas relações diretas com as desmobilizações.
Sendo assim, os jovens interlocutores que participaram de nossa pesquisa possuem em comum experiências de
vida cujas principais marcas vêm esboçando agendas propositivas e formas criativas de operar a subjetividade diante
da demanda constante de prontidão para a ação, da maximização da competitividade no mundo do trabalho e do
permanente estado de alerta que vem atravessando seus cotidianos. Essas interpelações expressam a maciça torrente
de um modo de produção capitalista que produz efeitos tanto no âmbito das vidas pessoais dos jovens quanto na
irradiação cada vez mais onipresente da vida digital. Os modos singulares encontrados pelos jovens para contornar
tais excessos permitiram-nos vislumbrar o despontar de uma espécie de nova epistemologia da “paragem”, isto é, da
tomada de distância frente ao turbilhão de um mundo cuja engrenagem parece se mover em direção à maximização
incontrolável do progresso e da aceleração. Portanto, é a ideia-metáfora da “paragem” que inspira de maneira
diferenciada vários jovens rumo a uma “desmobilização” e que fornece o título a este livro. Por meio da “paragem”
propomos acionar ao longo do texto um conjunto variado de “portas de entrada” a fim de desvelar as mais distintas
“desmobilizações” jovens na atualidade. Adentrar por cada uma dessas portas foi, para nós, seguir uma série de
encontros com diferentes jovens – muitas vezes uns indicados por outros, como num fio – que falavam sobre suas
experiências e, aos poucos, tornavam mais visíveis a nós o rastreamento de cada uma dessas modulações da
“paragem” e suas reconfigurações enquanto um nicho de reflexão e análise.

A escolha de pesquisar a desmobilização não se operou de forma linear. A ela se antepôs um primeiro interesse de
trabalho que se vinculava às solidões contemporâneas. Farejávamos neste projeto, sobretudo, a emergência de uma
nova forma de solidão, desatrelada dos moldes existenciais da reclusão, do sofrimento e do desamparo. Uma
modulação da solidão experimentada como solitude, que se caracterizava enquanto gesto propositado, decorrente da
escolha do indivíduo, e experimentada por este como uma circunstância positiva, satisfatória e mesmo de fruição:
um tempo de respiro e de desaceleração, uma tomada de distância, uma oportunidade para “zerar” ou “recarregar as
baterias”, a abertura de um espaço de experimentação de novas formas de vida. Chamamos a essa forma de
experimentar o “estar só” de solidão deliberada, por contraste com a figura de uma solidão acontecida, que corresponde
à imagem mais convencional de tal experiência enquanto geradora de sofrimento e de mal-estar.
Atraía-nos a hipótese de tatear essa “polissemia da solidão” como via privilegiada para afirmar e reconhecer a
multiplicidade de modos de vida que compõem o contemporâneo e que fazem a densidade deste tempo, na medida
em que uma tal investigação abria a possibilidade de questionar a construção generalizante e unívoca da imagem do
jovem, dando continuidade à marca que tem caracterizado as pesquisas do Cesap há mais de vinte anos: uma
disposição franca para abordar as culturas jovens na sua variedade não caricata, buscando sua dimensão “modal” de
acontecimento sempre singular. Isso porque comumente a associação entre juventude e solidão revela-se, no
mínimo, como algo improvável, remoto e disfuncional no âmbito da sociedade contemporânea e do espírito de
época em que vivemos. O convite, portanto, quase que onipresente a que esta sociedade nos convoca – sobretudo
no plano de sua população jovem – é o do gregarismo, o da conexão, o da participação no plano da coletividade e da
tendência permanente ao convívio interativo e partilhado. Aos estados de solidão e isolamento entre os jovens é,
portanto, geralmente conferida a pecha de estranheza e de anormalidade, no contexto daquilo que se espera de um
jovem “saudável”, “equilibrado” e capaz de “bem ajustar-se” às demandas da sociedade mais ampla.
Entretanto, conforme nos embrenhamos na rede das vivências juvenis contemporâneas, deparamo-nos com
modos de experimentar a solidão capazes de ativá-la como recurso de liberação (Almeida, 2012; Eugênio, 2012;
Almeida & Eugênio 2006b). Acionando deliberadamente a “retirada” ou a “desconexão” enquanto instrumentos para
a produção de uma “menorização” (Deleuze, 1992), as formas de vida que encontramos em campo pareciam apontar
para um fenômeno mais amplo do que aquele que poderia ser tratado apenas como solidão. Uma dimensão política
parecia manifestar-se recorrentemente nas mais diversas iniciativas de “tomada de distância” frente ao
aceleracionismo pós-moderno, marcando uma preocupação com a busca por modos de fazer e de viver outros,
apontados como cruciais para dar lugar a um coletivo dissensual (Rancière, 2012). Ou seja, a um “viver juntos”
capaz de se cumprir de modo distributivo, preservando as singularidades, tal como na figura da “idiorritmia”
apontada por Barthes (2003).
Por mais diversas que fossem, essas experiências que a princípio abordamos como solidões compartilhavam um
mesmo funcionamento, pautado pelo interjogo delicado que estabeleciam com um interpelamento comum, que
poderíamos nomear como uma espécie de “falência do mais”: a finitude iminente da “mobilização infinita”
(Sloterdijk, 2002) e ao mesmo tempo o seu chegar ao máximo do excesso.
A “subjetividade mobilizada”, no eixo de mais desdobramentos trazidos pela perspectiva de Sloterdijk (2002, p.
40), seria o tipo humano da alta eficiência, vibrante pela boa forma física, um tanto insensível à dor e extremamente
pragmático. No quadro desse modo de operar marcado pelo “mais” como valor, instauram-se regimes de urgência
que têm como motor o progresso, a superação e o acúmulo. Se nossa pesquisa nos conduzia de modo contundente a
uma cartografia do “menos”, do “mínimo” e da “menorização” diante da “mobilização infinita”, percebíamos em igual
medida que esta se erigia a todo instante em confronto com vários outros fenômenos que marcam igualmente o
nosso espírito de época: o recrudescimento cada vez mais célere do individualismo, assim como o agravamento das
normatividades modernas e das mandatórias práticas de consumo e do produtivismo que concorrem lado a lado
com o despontar dos novos cenários do decrescimento, fazendo parte do mesmo pano de fundo da
contemporaneidade.
As experiências que vínhamos rastreando em torno da solidão apontavam então cada vez mais para um processo
de “subjetividade desmobilizada”, em enfrentamento mais ou menos explícito de tal sistema que,
contemporaneamente, tem manifestado cada vez mais o seu próprio esgarçamento. Percebemos, assim, que
estávamos diante de fenômenos vários na direção do “menos”, que sinalizavam uma busca por devolver espaço à
emergência, ao não mapeado e ao ilimitado. Ao ativarmos as lentes da desmobilização para pensá-los preservando a
sua variedade, percebemos que a solidão deliberada era tão somente uma das suas modulações possíveis.

Diante de tudo que foi exposto, abordaremos neste livro a textura variada de modos de vida jovens “desmobilizados”
na atualidade, que podem trafegar ao longo desse continuum do “mais” ao “menos”. Ao refletir sobre tais modos de
vida que estão experimentando modos de frequentação do “menos”, tendo sempre como contraponto aqueles que se
posicionam na insistência do “mais”, propomos também pensar nos dilemas e nas relações-tensão entre esses dois
polos, passando por diferentes nuances do “cuidado de si” (Foucault, 1981).
Outro aspecto que se desprenderá das análises propostas nos capítulos que se seguem será as formas como as
diversas modulações da desmobilização correspondem e/ou se afastam de uma dupla lógica transversal aos processos
de subjetivação contemporâneos: entre aquilo que poderíamos nominar de lógica do endosso e uma possível lógica das
brechas – ou, para usar uma expressão de Barthes (2003), uma “erótica das distâncias”.
O primeiro capítulo, “Horizontes da finitude – desmobilização e atualizações da resistência nas juventudes
contemporâneas” – de Maria Isabel Mendes de Almeida e Fernanda Eugênio é uma espécie de ensaio em que
pensamos de maneira mais ampla o quanto a “desmobilização” e a “resiliência” tornaram-se formas de ação
contemporâneas dos jovens buscarem ser “do contra” nos dias de hoje. Ao longo do capítulo, acionamos uma
interface comparativa acerca das concepções de “resistência” e projetos de vida entre jovens das décadas de
1960/1970 e os de hoje, já que percebemos que no chamado “período contracultural” existiram maneiras muito
específicas de os jovens enfrentarem os dilemas sociais daquela época, um tanto distintas das formas como suas ações
são orquestradas na contemporaneidade.
Por sua vez, ao longo dos demais capítulos, propomos apresentar mais detalhadamente o material etnográfico de
nossos “rastreamentos descritivos” ao percorrer as diferentes instâncias da experiência juvenil da “desmobilização”,
abordando, de um lado, um conjunto de táticas de distanciamento, que buscam ativá-la por meio da regulação e do
remanejamento das distâncias (Rancière, 2007) operadas pelos jovens na vida cotidiana, num trabalho de negociação
constante de intervalos, brechas, alvéolos e respiradouros (capítulo “Tomar distância – reinvenções do êxodo,
composições situadas e resiliências”, de Maria Isabel Mendes de Almeida).
Em seguida, apresentamos também os processos de solidão deliberada e solitude que foram investigados no início
do percurso da pesquisa e que iluminam com toda força a lógica da fuga de uma “subjetividade mobilizada” pela via
de um redesenho dos afetos. Por um lado, propomos uma reflexão que incorpora as categorias analíticas
desenvolvidas em torno do que nomeamos como a solidão acontecida e a solidão deliberada, para formular a ideia de
solidão-ação (capítulo “Nas malhas da solidão-ação – vivências jovens da solitude”, de Raphael Bispo). Por outro,
dedicamos também um espaço para todo um material, também muito presente no discurso jovem on-line, que se
refere aos dilemas e desafios das vivências erótico-afetivas contemporâneas no cruzamento entre redes amorosas e
redes sociais (capítulo “Erótica das distâncias: por uma ética do bem viver junto”, de Raphael Bispo & Oswaldo
Zampiroli).
Convidamos, então, o leitor a percorrer conosco uma ampla cartografia dos contemporâneos redesenhos das
formas de vida jovens, em sua cotidiana invenção e habitação de brechas e fissuras, num inter-jogo permanente com
os mecanismos da captura capitalista instalada no âmbito da sociedade contemporânea.
Horizontes da finitude – desmobilização e atualizações da resistência nas
juventudes contemporâneas
Maria Isabel Mendes de Almeida & Fernanda Eugênio

A memória recente que temos das juventudes brasileiras nas ruas desde as jornadas de junho de 2013 até as recentes
manifestações da população contra o governo que tiveram lugar no início de 2015 revelam cruciais transformações
nas formas de expressão da insatisfação e da busca consequente por mudanças na sociedade, assim como sugerem a
verificação de seu especial impacto na composição das subjetividades na contemporaneidade.1
Abrindo um pouco mais o espectro dessas manifestações e recuando seu escopo temporal para 2011, foi possível
testemunharmos uma onda de mobilização e protestos que tomou a dimensão de um movimento global (Carneiro,
2012). Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, no norte da África; Espanha, Grécia, subúrbios de Londres, na Europa, Chile e,
finalmente, Wall Street (Nova Iorque, Estados Unidos), compartilharam cenários e circunstâncias históricas que têm
na ocupação dos espaços públicos um desenho bem diferente do passado e que possui na falácia dos partidos
políticos, sindicatos e lideranças políticas um diagnóstico comum. A quase que onipresença do sentido da ocupação
e de suas múltiplas acepções em tais repertórios de protesto é uma característica que vem assumindo particular
importância no cenário contemporâneo.
Recentemente, pudemos acompanhar no estado de São Paulo o desempenho da categoria “ocupação” como peça-
chave para a operação de mudanças na escola. Ou seja, à ocupação da primeira escola da rede pública de São Paulo
era conferida, pelos alunos que participaram deste movimento, “uma nova relação” com o ensino.2 E, dessa primeira
forma de se lidar com o espaço e com a geografia, seguiu-se um aumento exponencial dos colégios ocupados, que
chegou a 200 unidades tomadas por estudantes em todo o estado. Pensar a relação entre a ocupação e as alterações
da rotina escolar significou, no caso em questão, a assunção, por parte dos estudantes, do protagonismo nas
atividades de manutenção das unidades – como as tarefas de limpeza e aquelas relacionada à cozinha. A vizinhança,
por sua vez, participou doando alimentos e produtos de limpeza. Durante mais de um mês tal situação de ocupação
perdurou ao longo dessas áreas, manifestando uma sensível abertura de brechas capaz de colocar sobre incisivo
questionamento o modelo de ensino em que “um professor fala enquanto os estudantes anotam calados”.3 Ainda em
meio ao sentido crucial conferido pela ocupação, chama nossa atenção o quanto ela possibilita o exercício concreto
de práticas quase que performáticas, que são realizadas in acto a fim de se demonstrar outras tipologias possíveis de
funcionamento e organização de um estabelecimento de ensino. Assim, em suas estratégias “encarnadas”, tais
ocupações viabilizaram que voluntários fossem responsáveis por um currículo muito pouco ortodoxo, como aulas
sobre urbanismo e especulação imobiliária, questões indígenas, questões de gênero e movimentos negros,
comunicação não violenta, além de oficinas de estampagem de camisetas, jornalismo e dança, entre várias outras
propostas.
À ideia de “tomar lugar” é conferida, portanto, a dimensão de movimento ininterrupto, sempre e a cada vez, em
contraposição à radicação definitiva. Ocupa-se, pontualmente, o lugar no qual estão acontecendo as circunstâncias
sobre as quais se pretende operar mudanças. Trata-se, sobretudo, de um gesto de materialização da insistência de
modo tópico e ocasionalístico. Investida em corpos e ações que emergem de modo situado, a insistência perdurará
por reverberação, por fazer aparecer a questão reclamada, por produzir uma interrupção provisória em cenários que
clamam por mudanças. Destaca-se aqui a franquia concedida ao valor das aclimatações e das retraduções situacionais
das identidades, que podem ser levadas a outros solos em contínuos processos de metamorfose. “Trata-se de elaborar
um pensamento nômade, que se organiza em circuitos e por experimentação, e não em termos de instalação
permanente, de perenização, de edificado” (Bourriaud, 2011, p. 51).
Gera-se, pois, um “excesso de lugar” que convive com a contínua demanda por espaço. Como sabemos, a
própria categoria de “ocupação” é tributária do privilegiamento da noção de espaço na contemporaneidade em
detrimento da noção de tempo, registro mais familiar ao traçado da modernidade. E é nesse sentido que, no tema
em questão, as passeatas encarnavam para as décadas de 1960 e 1970 a ideia de passagem, em sua transitividade e
oportunidade temporal de desmanche, em que a imposição a todos de uma única palavra de ordem (como, por
exemplo, “diretas já!”) assumia o protagonismo dos protestos vigentes.4
A horizontalidade e a ausência de centro ou comando nas manifestações atuais dissemina e espraia,
inusitadamente, uma outra geografia do poder. A cidade acolhe uma espécie de sedentarização, ou aquilo que
consideraremos como “paragem”, do clamor que vem redesenhando, ao longo de seu perímetro, a fixação em
lugares públicos e setores estratégicos. Algo ali é cimentado, ainda que em seu “molejo” provisório e cuja memória
alude a atores outros, que multiplicam-se em inúmeros e diversificados pleitos, não mais subsumidos pela unicidade
de uma liderança, uma causa ou um apelo homogeneizante.
Cabe aqui uma contraposição entre as noções de massa e multidão (Pelbart, 2003), que também se remanejam
no cenário atual, em que esta última expande-se em sua formatação plural, centrífuga e refratária à unidade política.
Por sua vez, a massa não prescinde de um modus operandi centrado e sempre conducente à referência una e indivisível
de uma liderança norteadora e agenciadora dos rumos a se empreender.
A invenção de uma nova movência, como nos sugere Pelbart,5 parece estar em jogo. E, nela, não mais transitam
os líderes, os carros de som, os discursos, as palavras de ordem, mas acua-se o congresso, embaralham-se as
prefeituras, os roteiros dos partidos, robustecendo-se a incisiva potência criativa da multidão.
A natureza dos protestos atuais aponta para uma outra gramática política “onde a forma é já parte do sentido”. A
diluição da forma – outrora verticalizada e remetida ao centro ou comando indivisíveis – dramatizou nas
manifestações uma outra espacialização do poder, ou mesmo a sua ressignificação. Torna-se difícil nomear uma tal
mudança, e sobretudo transformá-la em pauta concreta. Como traduzir em propostas as novas maneiras de exercer a
potência, de fazer valer o desejo, de expressar a libido coletiva, de driblar as hierarquias, de redesenhar a lógica da
cidade e sua segmentação, de fazer ruptura, dissenso?6

Ápice e esgotamento: as metamorfoses do capitalismo e a emergência dos funcionamentos por desmobilização

Capitalismo Mundial Integrado, nomeou-o Guattari (1985), referindo-se, ainda em 1981, a um processo que hoje
encontra-se no máximo do seu estiramento: a hegemonização dos valores capitalistas, por meio do seu espalhamento
total, sem zonas de sombra, por todos os cantos do planeta (incluindo mesmo as regiões que haviam historicamente
se construído no avesso deste Império, como o antigo bloco soviético, China e Cuba) e da incorporação de todas as
atividades humanas à lógica da produção – mesmo as que não se encaixa(va)m formalmente nas definições clássicas
de trabalho, como o lazer, a diversão e a ludicidade; o descanso e o sono (cf. Crary, 2014); o plano das relações
pessoais e privadas; assim como a imaginação, a criatividade e a invenção.
Esse processo, como bem sublinharam Boltanski e Chiapello (2009), permitiu ao funcionamento capitalista
contornar a crítica contracultural ao sistema, capturando e instrumentalizando para o lucro (e para a construção de
uma vaga e pervasiva noção de “trabalho imaterial”), tanto os valores como a estética e os modos operativos das
resistências que emergiram nas décadas de 1960 e 1970 do século XX. Desenharam-se, assim, os contornos do
“cognitariado” como nova classe profissional privilegiada (cf. Lazzarato, 2006), no mesmo passo em que o cidadão foi
se transfigurando em consumidor (Canclini, 1997), num movimento que confirmou, por fim, a conhecida sentença
de Sloterdijk (2002) em relação ao funcionamento ocidental moderno: (já) “não há lado de fora” deste “palácio de
cristal” cuja atmosfera é condicionada pelo mercado – entidade ao mesmo tempo onipresente e não fixável em
contornos claros. Capitalismo pós-industrial, capitalismo cognitivo, capitalismo tardio, capitalismo mundial
integrado. Ou, simplesmente, no conceito ao mesmo tempo sintético e aterrador de Hardt e Negri (2006),
Império.
Por um lado, é cada vez mais explícita e ostensiva a estratégia mimética do capital, por meio da qual toda e
qualquer exterioridade (funcionamentos outros, invenções, pequenas vitalidades e respiros para as formas de vida
etc.) é sistematicamente capturada e incorporada ao sistema sob a forma de produto – caracterizando aquilo que o
mesmo Pelbart (2003) nomeou de “capitalismo rizomático” e que Boltanski e Chiapello (2009) chamaram de
“capitalismo conexionista”. Eis o perverso “controle a céu aberto” professado por Deleuze (1992b): aquele que,
agravando o poder da captura disciplinar (que agia por confinamento), passa a exercer-se simultaneamente de
maneira mais sutil e mais generalizada, infiltrando-se de modo molecular num plano individual de normatização,
por meio da exigência da “formação permanente”, da declaração apriorística da obsolescência programada e do
rastreamento invisível dos movimentos supostamente livres de cada sujeito.
Soma-se ainda a esse cenário mapeado finamente por diversos autores ao longo dos anos 1990 e 2000 a mais
recente emergência transversal de um outro avatar sem rosto – o da “crise”. E, com ela, mais uma mutação que se
vem espalhando: a da conversão generalizada do cognitariado em “precariado”. A expressão, a princípio cunhada por
Standing (2011), procura dar conta do fenômeno mundial e transversal de hordas de jovens adultos, sobretudo de
camadas médias urbanas, altamente qualificados, que se encontram em situação de subemprego ou desemprego sem
perspectivas, precariamente inseridos num mercado de trabalho estufado, neoliberal e global.
A questão da precariedade vem sendo discutida e problematizada hoje, de modo quase viral (ver, por exemplo,
no contexto brasileiro, Braga, 2012; Alves, 2011). Em suas mais recentes investidas na defesa da performatividade
de uma democracia radical, Judith Butler (2004) tem procurado mesmo pensar a condição de precariedade de modo
alargado, abarcando sob a noção de “vidas precárias” todo tipo de modos de vida queer – os LGBT, mas também
mulheres, crianças, negros, minorias étnicas, migrantes, refugiados, sem-papéis, sem-teto etc. Em suma, os tais dos
“99 porcento”, como os nomeia a expressão surgida nos primórdios dos movimentos Occupy (Chomsky, 2012) para
se referir à “multidão” (cf. Negri e Hardt, 2005) inclassificável e avessa a identitarismos simplistas que têm ocupado
ruas e espaços públicos em diversas partes do mundo nesta segunda década do século XXI. Esses precários sem líder,
e sem classe-estamento-ou-partido unívocos (cf. Harvey et al., 2012), brotaram, eles próprios, da franca habitação
de um momento – o contemporâneo – e têm sido amplamente apontados como sinal claro daquilo que gostaríamos
de abordar neste capítulo. A saber: quando o ápice da captura capitalista coincide com o seu esgotamento (Pelbart,
2013), não são apenas as mobilizações que se reconfiguram nas “explosões multitudinárias” do manifestar/ocupar,
mas, acreditamos, emerge ainda um outro modo de se contrapor à moderna “mobilização infinita” (Sloterdijk,
2002). É aquele que o mesmo Pélbart por vezes assinala com a imprecisão precisa da expressão “contragolpes
minúsculos” (idem). Tais fenômenos são mais sutis, mas não menos vivos do que as várias tentativas da multidão de
se reapropriar positivamente da mobilização – que foi, desde sempre no ocidente moderno, confiscada por uma
lógica colonizadora e imperialista de infinitude (o desenvolvimento progressista). Entretanto, em vez de investirem
numa “reocupação da mobilização”, são sobretudo manifestações de uma paragem e de uma tomada de distância
deliberadas, que procuram instalar novas formas de vida nos exíguos e por vezes temporários espaços de brecha –
nas fissuras do “palácio de cristal sem lado de fora”. Daí que, em conversa com a terminologia estabelecida por
Sloterdijk, propomos aqui abordá-los como desmobilizações jovens.
Desmobilizam – ou seja, procuram estancar a mobilização por meio da tática de habitar a pausa, o parênteses
provisório e a paragem, ou, ainda, da proposta de um recuo, distanciamento, movida geográfica que permita gerar o
intervalo. Desmobilizam porque preferem não fazer (voltaremos a esse tópico a seguir) e, nisso, desarticulam a
mobilização infinita no mesmo passo em que trabalham pela retomada da impotência – zona que vem sendo
sistematicamente confiscada de todos e cada um pelo discurso do “tudo pode”, que, atrelado à incitação ao
consumo, perfaz o ser e o pertencer (pós-)moderno (Agamben, 2014). Para Agamben (idem), na sociedade
contemporânea existe uma força crucial depositada na inoperosidade, na impotência e na potência destituinte enquanto
instâncias que, ao caracterizarem a contrapartida ao inexorável movimento da modernidade, operam como estofo
para a densificação dos processos de desmobilização. Além disso, inscreve-se aqui também a crítica ao capitalismo e
à democracia como protagonistas da potência e da ação.
É importante ressaltar, portanto, a emergência hoje de uma sensibilidade minoritária, na qual se vão assentar os
fenômenos de desmobilização aqui estudados. Uma sensibilidade que envolve não o celebrar da “potência
generalizada” (o “tudo pode” pós-moderno, como já mencionamos), mas antes uma relação bastante dedicada à
preservação de um espaço de “impotência”, tal como a concebe Agamben, para quem “impotência não significa
somente ausência de potência, não poder fazer, mas também e sobretudo ‘poder não fazer’, poder não exercitar a
potência própria” (Agamben, 2010, p. 72). Neste “poder a sua própria impotência” reside toda uma amplitude de
ação, “uma vez que [a impotência] não é só a medida do que cada um pode fazer, mas também é antes de mais nada a
capacidade de se manter em relação com a sua possibilidade de não fazer, o que define o estatuto da sua ação”
(idem).
Segundo Agamben, a perversidade do mundo contemporâneo residiria mais no confiscar aos homens a sua
impotência do que a sua potência. Quando o poder incide sobre a potência, como terá feito em outros momentos
no passado, ainda resta aos homens resistir, isto é, não fazer. Mas quando, como hoje, somos levados a crer que temos
uma espécie de “superpotência”, que tudo nos é possível, somos separados do nosso senso de impotência, o que,
antes de mais nada, nos subtrai a capacidade de resistir e, no mesmo movimento, torna o nosso agir inconsistente:
É sobre esta outra face mais obscura da potência que hoje prefere agir o poder que se define
ironicamente como “democrático”. Separa os homens não só e não tanto daquilo que podem fazer, mas
antes do mais e o mais das vezes daquilo que podem não fazer. Separado da sua impotência, privado da
experiência do que pode não fazer, o homem de hoje crê-se capaz de tudo e repete o seu jovial “não há
problema” e o seu irresponsável “pode fazer-se”, precisamente quando deveria antes dar-se conta de ser
entregue numa medida inaudita a forças e processos sobre os quais perdeu qualquer controle. (...)
Aquele que é separado do que pode fazer, pode, todavia, resistir ainda, pode ainda não fazer. Aquele que
é separado da sua impotência perde em contrapartida, antes do mais, a capacidade de resistir. (...) E
como é somente a ardente consciência do que não podemos ser a garantir a verdade do que somos,
assim também é somente a visão lúcida do que não podemos ou podemos não fazer a dar consistência ao
nosso agir (ibidem, p. 72-73).

Deixando de responder à mobilização com mais mobilização, as desmobilizações abrem espaço para a exploração
diminuta e sutil de outras formas de vida. Por vezes desafiadoramente parecidas com algumas que já viraram
produto, essas vias desmobilizadoras sabem da inevitabilidade da captura e trabalham na sua sombra, recorrendo à
própria precariedade enquanto matéria e força. Instalam-se nas gradações da passagem da economia criativa à
economia solidária; da mídia oficial à proliferação das mídias “ninjas” e tecnológicas; da agricultura geneticamente
modificada às hortas urbanas e outras táticas que visam a soberania alimentar; do sistema de compra-venda e da
obsolescência programada ao amplo leque do pós-consumo, que vai da troca ou à doação, à redistribuição e ao
reaproveitamento consecutivo.
Por desmobilizações, não as entendemos em uma acepção negativizadora ou tendente ao cancelamento da ação,
mas, sim, enquanto movimentos que são atravessados por repertórios de inoperosidade (cf. Agamben, 2014), de
potências destituintes (idem) e de ações alternativas ao capitalismo global. Tais movimentos, em sua positividade e
potência criativa, vêm dando ensejo a fenômenos os mais diversos, mas que, entretanto, são permeados pela questão
comum do cansaço em relação aos modos operativos capitalistas, pelo questionamento da sua dita inescapabilidade,
e pelo compartilhamento de uma mesma sensibilidade aos pontos cegos do próprio sistema. Um sistema cuja
falência se explicitaria de modo inegável nas mudanças climáticas e na emergência concreta, no horizonte próximo,
de um fim (do mundo humano) (cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2014). Iminência da finitude a contrariar de
modo inequívoco a autoproclamada infinitude moderna.
Com efeito, vivemos hoje o ápice da “utopia cinética da modernidade” (Sloterdijk, 2002, p. 23): um
funcionamento – o ocidental moderno – que propôs-se a si próprio como desafio “que a totalidade do movimento
do mundo deve se tornar a execução do projeto que temos para ele” (idem). Projeto civilizador, projeto de
“mobilização infinita” rumo ao progresso, entendido enquanto movimento cumulativo e sempre crescente, a avançar
sobre o mundo tornando-o território domesticado e previsível, objetificado pelo humanismo soberano.
Como nos sugere Sloterdijk, “o imperativo categórico” da modernidade reza assim: “Para atuarmos
continuamente como seres de progresso, devemos ultrapassar todas as situações em que o homem seja um ser peado
nos seus movimentos, imobilizado em si, desprovido de liberdade, deploravelmente fixado” (Sloterdijk, 2002, p.
33). O processo de aceleração, de mobilização, a utopia cinética, o ritmo inexorável do progresso – exigem de nós
alguns passos aquém, a conquista de uma retaguarda, a fim de que deles possamos nos assenhorar. De uma outra
tribuna analítica, mas que trabalha igualmente a ideia de progressão infinita da modernidade, de aprimoramento da
existência material na direção da felicidade – tema que será amplamente abordado mais à frente – Lipovetsky
assinala: “A história universal tem um sentido: ele não é mais que o progresso ao infinito da humanidade, a marcha
desta rumo à felicidade mais completa” (Lipovetsky, 2007, p. 334).
Procurar aceder o tema das desmobilizações jovens na contemporaneidade convoca-nos, necessariamente, a uma
interlocução com a era moderna e o seu estreito comprometimento com o movimento e com o progresso enquanto
utopias máximas, fundadoras e pervasivas (Sloterdijk, 2002). Tal reflexão vem acompanhada da crítica desse autor
aos exercícios subversivos contra o absolutismo da história e da socialização, permitindo-nos captar que ele não
poupa críticas às teorias da História que a encaram como uma escalada cumulativa de episódios cujo telos é
encarnado na palavra progresso. É, portanto, esse registro do progresso, da ideia de processo continuamente vertido
na direção do futuro e de sua associação com o modelo cinético da modernidade que nos servirá aqui para melhor
expressar as contrapartidas e ambiguidades que se alocam nas vertentes das paragens e inoperosidades
contemporâneas. Na “mobilização infinita da modernidade sempre se está na direção do controle do mundo”,
continuamente estribado na vontade de apreender aquilo que ainda não se pode (Sloterdjik, 2002). Isto é, no
corroborar contínuo para a utopia da modernidade cuja base ética é o movimento incessante da força a atuar sobre
o contínuo movimento dos corpos. Ao progresso, portanto, atribui-se não somente a ideia “daquele passo”, mas
apenas enquanto aquele que leva ao incremento da “capacidade de dar passos” (idem, 2002).
Entretanto, como já não se pode deixar de ver, esta ininterrupta máquina de controle do mundo, dos homens,
da natureza e dos acontecimentos tem vindo hoje a produzir, como derivado imediato do seu próprio sucesso,
também o seu inevitável esgotamento (Pelbart, 2013).
Trazendo à baila experiências-limite extraídas de Deligny e da sua própria experiência com o trabalho esquizo-
cênico, Pelbart entra em conversa com pensamentos vários – de Musil a Blanchot, de Deleuze a Agamben, de
Jünger a Sloterdijk – para perseguir os indícios de um deslocamento que já estaria em curso hoje, por vezes
propiciado pela própria obscuridade fugidia característica daquilo que, irruptivo e contingente, escapa aos nomes e
classificações. Um deslocamento não se sabe bem em que direção, apenas que esta aponta para os avessos do niilismo
político, e que vai se desenhando como cartografia coletiva, inacabada, movente, a sinalizar a liberação de energias e
mundivisões outras.
O esgotamento do possível é o esgotamento de um certo possível, aquele “dado de antemão”, o
repertório de possíveis que nos é ofertado em forma de múltipla escolha a cada dia. (...) Para Deleuze,
tal esgotamento nada tem de negativo, é apenas condição para alcançar outra modalidade de possível, o
possível como o “ainda não dado”, o possível “a ser inventado”, e a ser inventado numa situação de
“impossibilidade”, portanto, de “necessidade”. (Pelbart, 2013, p. 297)

A sensação do esgotamento generalizado instala-se hoje como ponto de convergência, lugar comum aos
diferentes modos de vida que perfazem aquilo que chamamos “sociedade”, manifestando-se como elemento
pervasivo a (des)agregar os mais diferentes coletivos, populações, estratos sociais e grupos de idade. Como se
estivessem todos exaustos, mesmo que fosse difícil apontar com precisão: exaustos de quê? Mas se, como Pelbart,
nos permitirmos escutar esta “sintomatologia molecular” na variedade de sua manifestação, encontramos, justamente
em meio às suas figuras mais extremas, a proliferação silenciosa daquilo que o autor chama de “contramovimentos
do presente”. Pelbart os toma como “pontos de inflexão” por meio dos quais se pode perceber, simultaneamente, o
horizonte daquilo que caduca e daquilo que emerge, uma vez que tais vivências ao mesmo tempo praticam outros
valores, estilos e problemas, e sinalizam novos desejos e necessidades.
A explicitação de um horizonte de finitude tem produzido tanto uma descarga explosiva de mobilizações – um
“espernear” do sistema e contra o sistema – quanto o avanço de uma grande mancha de desistência, do niilismo à
depressão, doenças desaceleracionistas derivadas da própria aceleração, traduzidas no “homem simplificado”, de
Besnier (2012), por exemplo, mas também reconhecíveis num aturdimento humano diante da máquina, no torpor e
no sedentarismo bulímicos denunciados por Agamben como versão contemporânea da “fome de boi” (2014). Mas,
lado a lado aos gritos – não raro contraditórios e mesmo paradoxais – das subjetividades sistematizadas pelo capital,
a finitude também tem dado lugar à manifestação cada vez mais explícita, de um possível horizonte do ilimitado –
aquele que se manifesta nos avessos do niilismo de que fala Pelbart.
É que, ao tornar-se explícito que os recursos, os seres e o mundo são finitos, a desimplicação e a inconsequência
individualistas – aquelas que este mesmo momento, às vezes classificado de pós-moderno, veio a radicalizar (cf. Le
Breton, 1999) – sofrem rachaduras claras. Enquanto foi de algum modo verossímil a infinitude do entorno, foi
também majoritária a tendência a operar dentro de um plano limitado – entitário e identitário, para dizer o mesmo
de outro modo (cf. Tarde, 2007; Deleuze, 2006; Simondon, 1989). A desresponsabilização generalizada pelo comum
e o entrincheiramento na individualização radical, apoiadas numa difusa e pacificada crença – fundadora da
modernidade – no “universo infinito” (cf. Koyré, 2006) ainda grassam e, quase como propagando-se em delay
(existindo na inércia do aceleracionismo falido), operam como linhas de força das mais visíveis nas sociedades
globais hiperconsumistas.
Imagens tais como a de que “estamos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freio, que vai se
arrebentar contra os limites do planeta” (Latouche, 2009, p. XII) são acionadas por teóricos do decrescimento, e não
deixam de se verem encampadas pelas ameaças apocalípticas do fim do mundo (Danowski; Viveiros de Castro,
2014) e do fim do sono (Crary, 2014). Este último aparece hoje como sendo uma última instância sob ataque do
aceleracionismo capitalista, e, recorrendo à expressão “24/7”, Crary sintetiza que vivemos em um sistema no qual
chega-se ao cúmulo de tomar o tempo dedicado ao sono e ao repouso como entraves à acumulação infinita, 24 horas
por dia, 7 dias por semana (idem, 2014).
É do interior dessa paisagem perversa, sob a forma de fissuras e infiltrações diminutas, que toda uma reinvenção
da participação, da democracia direta e do próprio “ser contemporâneo” tem se dado. Por meio do “arregaçar de
mangas” na microescala que tem tomado vulto nestas primeiras décadas do século XXI, num reinteresse claro pela
pauta do “direito à cidade” (Lefebvre, 2008) e num vivalismo exuberante de táticas as mais diversas, acompanhamos
uma espécie dos antípodas do limite: alargando o possível e o pensável, procurando novas formas de vida de modo
“metaestável” (Simondon, 1989), essas práticas frequentam claramente o terreno do ilimitado. Um terreno só
acessível quando a aceitação da finitude das coisas não é vivida como mero sinônimo de resignação, levando a um
redesenho e a uma reapropriação da responsabilidade – fora do plano de moralismos institucionalizados, mais
próxima a uma ética funcional e tática.

Da resistência à resiliência, do “contra” ao “com”: diagramando o “virar” como modo operativo nos contemporâneos processos de
subjetivação jovem

A paisagem de tais recomposições convoca-nos a uma crucial reflexão sobre as contrapartidas de sentido entre os
atos de resistência e de ruptura, característicos das décadas de 1960 e 1970 do século XX, e as manifestações deste
século XXI, que expressam condições de adaptabilidade e reinvenções contingenciais de si. Romper e resistir,
portanto, enquanto atitudes emblemáticas do repertório contracultural e das binárias políticas de “oposição versus
situação” do século XX, parecem ceder terreno e força a inúmeras outras combinatórias. Estas, cujos eixos de
ancoragem – sempre movediça – se estabelecem ao longo das adequações multifacetadas, situacionais e astuciosas
que vêm-se operando junto as populações jovens do século XXI, são marcadas por um manuseamento atento e
resiliente de circuitos e pelo redesenho de mundos a partir de abordagens locais e contingentes.
O percurso conceitual e analítico que atravessa o interjogo dos contrastes e aproximações entre o cenário
contemporâneo e a visão de mundo das manifestações contraculturais foi objeto das reflexões de pesquisa que nos
ocuparam ao longo dos últimos quinze anos no Cesap/Iuperj/Ucam. Essa insistência no mapeamento das culturas
jovens por desdobramento lento e a partir de uma presença continuada em campo permitiu-nos construir uma
perspectiva trajetiva – movendo-nos junto com os próprios processos pesquisados.
Ao longo destes anos, percorremos diferentes aspectos das formas de vida ditas “jovens” (cuidados de si e
construção do corpo e da imagem, relações afetivas e de amizade, usos da cidade e das tecnologias, práticas de
diversão e lazer, percursos de carreira profissional e modos de relação com o mercado de trabalho etc.),
permitindo-nos reabrir incontáveis vezes a própria categoria “jovem” e deixando que esta apontasse os caminhos
para a sua constante reformulação. Abordando as “culturas jovens” de modo não reificado e não identitarizante,
encontramos o seu constante refazer em funcionamentos transversais que, em conjunto, têm dado a ver os
contemporâneos processos de subjetivação na sua incessante rematerialização da consistência do que é “ser jovem”.
Durante esse extenso período, lentamente se impôs um contraponto não intencional entre esses funcionamentos
subjetivos e suas (des)continuidades frente aos modos operativos contraculturais, envolvendo temáticas e
contextualizações diversas. Tal percurso nos viabilizou construir um amplo mapa de categorias, capaz de
problematizar não somente os conteúdos, mas também os mecanismos que se visibilizam e que são acionados ao
longo do espectro de rupturas/aproximações operadas entre esses universos. Residiu, pois, no exame atento das
disjunções entre conteúdos e funcionamentos presentes nesses contextos, a chave para a compreensão das arquiteturas
subjetivas jovens em questão.
A contracultura não era o tema disparador de nossas pesquisas e, no entanto, surpreendentemente, ela acabou
por instalar-se como peça central em nossas “manobras” conceituais, que reiteradamente sinalizavam uma tendência
nos processos de subjetivação jovem contemporânea: tendência de passar do contra ao com, da resistência à resiliência,
da fuga/escape à presença, do individualismo radical ao colaboracionismo, do drop-out ao drop-in. Destacamos aqui
duas pesquisas que nos parecem paradigmáticas no traçado dessa passagem ao modo operativo do com, no qual a
marca do funcionamento jovem deixa de repousar numa “atitude contra” para construir-se, sobretudo numa
capacidade transitiva e flexível de “fazer com o que se tem”, jogando com as circunstâncias a partir de dentro, num
funcionamento por liberação, processualista, que convoca o coletivo, o juntos e a colaboração como modos de lidar
com as estratégias de captura do sistema. Gostaríamos de nos referir, portanto, à pesquisa “As substâncias e as
cenas”, que desenvolvemos entre 2003 e 2007, sobre o consumo de substâncias sintéticas entre jovens
frequentadores das cenas eletrônicas cariocas e, a seguir, à pesquisa “Profissionalização da criatividade e criativização
da profissão”, que nos ocupou entre 2008 e 2012, na qual abordamos o universo da criatividade entre jovens em
processo de iniciação de suas carreiras profissionais no Rio de Janeiro.
Na pesquisa sobre o consumo de substâncias sintéticas em festas de música eletrônica, “todo um imaginário
contracultural se apresentava como legado quando se abordava o consumo jovem de drogas e a questão de pensar as
rupturas e continuidades de um uso contemporâneo frente a esse estofo de imagens e de dizeres que se impôs como
inevitável” (Almeida; Eugênio, 2007, p. 156). Durante a realização desta investigação propusemos, então, um
exercício comparativo entre dois emblemas geracionais: um deles protagonizado por sujeitos que foram jovens nas
décadas de 1960/1970 e pelo movimento contracultural que lhes serviu de paisagem, e o outro, pelos sujeitos
frequentadores das cenas eletrônicas contemporâneas. Em ambos os casos, o recurso às “drogas” teve papel
fundamental nos processos de singularização e na apresentação de si dos sujeitos envolvidos. Dos resultados dessa
reflexão foi possível extrair importantes subsídios para as arquiteturas subjetivas jovens, que em muito extrapolavam
as suas relações com o mero consumo de “drogas”. Em outras palavras, este último serviu-nos de porta de entrada
para acessar entre esses jovens à época, inúmeros outros aspectos de suas trajetórias existenciais, afetivas,
profissionais, familiares e de suas intercessões com posturas de ruptura, transgressão, composição, continuidades,
transcendência e imanência.
Aquilo que, na ocasião da pesquisa, chamamos de “discursividade transcendente” e “discursividade imanente”,
referia-se, ainda que não de modo antagônico ou meramente opositivo, aos dois imaginários geracionais no sentido
que aqui nos interessa. Por meio do recurso a essas noções-síntese encontramos mais elementos para se pensar os
redesenhos da subjetividade nas trajetórias jovens, que vão das socializações da ruptura às novas composições
resilientes e temperadas contemporâneas, que se expressam antes por modos singulares de conciliação do que pela
negação direta. Transcendência e imanência, ainda que remetidas ao universo das drogas, dilatam em muito este
âmbito, cobrindo aspectos de economias internas atravessadoras de ambos repertórios geracionais. Assim, em seu
matizado escopo de recurso às substâncias psicoativas, aqueles jovens das décadas de 1960/1970 permitiam-nos
entrever que as drogas abrangiam em suas vidas um lastro muito mais amplo de significados, que não se reduzia à
mera relação com a substância em si. A relação com a natureza, a ludicidade, a expansão da consciência, o
autoconhecimento, o companheirismo, risos etc., eram alguns entre vários outros desses aspectos que transcendiam,
que iam além do estrito consumo da droga.
Na “discursividade imanente” – que emblematiza a geração dos jovens da cena eletrônica na passagem do século
XX para o XXI – é outro o traçado que emerge, onde a droga não ultrapassa os seus limites de fruição material,
física e motora. Nos processos subjetivos guiados pelo mecanismo desta discursividade, o corpo inscreve-se como
agente e suporte relativizador da transcendência, como conduto-chave para o acesso à experiência presentificada
com a “droga”. “Você está ali como jamais esteve”, nos disse, à época, um dos jovens com o qual convivemos. A
dimensão corporal e seus desdobramentos nos permitem inferir sobre uma espécie de “subjetividade encarnada”,
que não excede o perímetro da própria interação dos sujeitos com as substâncias.
Na segunda pesquisa a que nos referimos, exploramos os funcionamentos coletivos de trabalho em equipe entre
os jovens, a criação colaborativa e as táticas de liberação no interior de um inclemente mercado capitalista de
trabalho. Nas intercessões entre criatividade, juventude e profissionalização, foi igualmente possível captar
processos de “autonomias táticas e astuciosas” presentes nas formas de se lidar com situações, como a competição, a
normatização e o controle, e de outro lado, também com as lógicas das brechas e da liberação diante de um
capitalismo cuja captura faz-se a cada dia mais inexorável.
Ao longo, pois, de bem mais de uma década, foi se tornando possível mapear um amplo circuito de
manifestações das subjetividades jovens que hoje se traduz em um trajeto que vai da resistência à resiliência, e por
intermédio do qual acompanhamos as grandes linhas de transformação entre os legados contraculturais e o contexto
da contemporaneidade.
Todo esse percurso nos conduziu a indagar: como se configura hoje, para o contingente jovem de nossa
sociedade, a dimensão do “contra”? Que caminhos são trilhados para a expressão do descontentamento, da
insatisfação, da crítica ao sistema, da oposição? Certamente, é possível supor, numa primeira aproximação, que o
mal-estar contemporâneo não vem se expressando por intermédio dos convencionais mecanismos de resistência, de
ruptura e de oposição massivas em relação ao seu entorno. Parece-nos, ao contrário, que o próprio intercâmbio de
forças dentro/fora, interno/externo vem se reconfigurando de tal modo que hoje visibilizamos um “contra” que se
faz “com”, que se opera de dentro, na sensibilidade aos fatores e características da situação, nas conciliações
possíveis, justas e sutis. Tais modos de proceder e de operar não excluem, porém, a presença do “dissenso”
(Rancière, 2006) e das oposições, mas o que salta aos olhos é a mudança na forma de funcionamento das
subjetividades quando discordam, quando se opõem, quando reagem...7 Temperança, conciliações contingentes e
situadas, manifestações descentradas e assistemáticas são alguns entre vários outros recursos que parecem compor
esses novos funcionamentos, assim como uma dilatada clareza da multiplicidade dissensual descentrada até mesmo da
perspectiva meramente humana ou antropocêntrica, para incluir também a “natureza” e o mundo “não humano”
como componentes cruciais de todos os pleitos, mesmo os outrora “identitários”, como, por exemplo, se pode
perceber no modo renovadamente alargado como Preciado (2014) diz o feminismo, no pequeno texto O feminismo
não é um humanismo:8
Senhoras, senhores e outros, de uma vez por todas, o feminismo não é um humanismo. O feminismo é
um animalismo. Dito de outro modo, o animalismo é um feminismo dilatado e não antropocêntrico.
Não foram o motor a vapor, a imprensa ou a guilhotina as primeiras máquinas da Revolução Industrial,
mas sim o escravo trabalhador da lavoura, a trabalhadora do sexo e reprodutora, e os animais. As
primeiras máquinas da Revolução Industrial foram máquinas vivas. Assim, o humanismo inventou um
outro corpo que chamou humano: um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um
corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas e cujos desejos são os
efeitos de uma tecnologia necropolítica do prazer. Liberdade, igualdade, fraternidade. O animalismo
revela as raízes coloniais e patriarcais dos princípios universais do humanismo europeu. O regime de
escravidão, e depois o regime de trabalho assalariado, aparece como o fundamento da liberdade dos
“homens modernos”; a expropriação e a segmentação da vida e do conhecimento como o reverso da
igualdade; a guerra, a concorrência e a rivalidade como operadores da fraternidade. (...) Já que toda a
modernidade humanista soube apenas fazer proliferar tecnologias da morte, o animalismo deverá
convidar a uma nova maneira de viver com os mortos. Com o planeta como cadáver e como fantasma.
Transformar a necropolítica em necroestética. (...) O animalismo não é um naturalismo. É um sistema
ritual total. Uma contratecnologia de produção da consciência. A conversão para uma forma de vida,
sem qualquer soberania. Sem qualquer hierarquia. O animalismo institui seu próprio direito. Sua
própria economia. O animalismo não é um moralismo contratual. Ele recusa a estética do capitalismo e
sua captura do desejo pelo consumo (de bens, ideias, informações, corpos). Ele não repousa nem sobre a
troca nem sobre o interesse individual. O animalismo não é a revanche de um clã contra outro clã. O
animalismo não é um heterossexualismo, nem um homossexualismo, nem um transexualismo. O
animalismo não é nem moderno nem pós-moderno.

É assim que, por intermédio de uma longa trajetória de pesquisa, foi se tornando possível mapear as sutilezas
deste processo por meio do qual, lentamente, os processos de subjetivação têm encontrado modos de se fazer nas
brechas, na antirreprodução dos modelos do capital sintetizados pelo homem-branco-heterossexual-europeu, mas
também sem procurar substituí-lo por outro modelo: em vez de um antimodelo igualmente normatizado, o que
temos percebido nos percursos das subjetividades juvenis contemporâneas é a emergência e o espalhamento de
funcionamentos por modulação. E foi do esforço continuado em seguir os seus traçados por rastreamento descritivo
que foi se desenhando o diagrama da subjetividade jovem em sua feição desmobilizadora, o qual procuramos
explorar neste livro, enquanto formas atualizadas da resistência contracultural.
Numa abordagem ligeira, muitas vezes tais manifestações são tomadas como um mero “reviver fora de época” da
temática contracultural, mas essa aproximação se verifica meramente no plano dos conteúdos manifestos de tais
composições – se atentarmos para os funcionamentos, veremos manifesto um mecanismo muito diverso: aquele
que, como já sublinhamos, opera por “com” e não por “contra”. Entretanto, é notável a reemergência das temáticas,
e é particularmente interessante acompanhar as diferentes nuances que assumem quando são “repraticadas” através
de outros funcionamentos. Por exemplo: as iniciativas atuais de combate ao consumismo excessivo; o
aproveitamento do lixo como fonte de energia; a busca de práticas de meditação, reclusão e silêncio; a saída das
grandes metrópoles para o campo; o recurso a uma alimentação saudável, orgânica e livre de agrotóxicos etc. Ou
ainda, no plano mais próximo à esfera da economia, as iniciativas que reativam a prática do empréstimo, da troca e
da doação em detrimento da compra, a crítica ao próprio uso do dinheiro e a invenção de moedas locais e
economias alternativas; a proliferação das feiras de gratidão, onde a tônica reside na doação recíproca de bens; assim
como também a permuta de serviços e habilidades entre jovens que não são atravessadas pelo meio pecuniário; o
crescimento do número de pessoas que possuem suas próprias hortas e dali extraem grande parte de seu sustento
etc. Toda essa agenda existencial, digamos assim, em muito nos aproximaria daquilo que vários autores, entre os
quais Duarte (2004), sugeririam chamar de movimentos neoromânticos, neo-hippies ou mesmo de uma espécie de
clamor contracultural revivido. Veremos porque não é exatamente disso que se trata.
Maurice Blanchot (2013), ao interpretar, por exemplo, o movimento de Maio de 1968, nele localiza
ingredientes centrais que teriam caracterizado essa geração como a afirmação de um tipo de comunicação explosiva,
sem projeto, sem conjuração e permeada pela repentinidade de um “encontro feliz”, tal como uma festa que abalava
as formas sociais admitidas ou esperadas. Destaca-se aqui a marca da oposição a todo interesse utilitário e a qualquer
inteligência calculadora, numa ode ao primado da efervescência quase pura e ingênua. Blanchot ainda nos alerta que
essa década jamais expressou tentativas sérias de reformas, primando pelo registro de uma presença inocente, numa
palavra, na caracterização, algo jocosa, de uma “balbúrdia” (aspas nossas).
Na mesma senda interpretativa, o olhar primeiro, inocente, direto, real e espontâneo também marca
paradigmaticamente as considerações de Maciel (2007) sobre a contracultura. Seu diagnóstico prima pela ênfase na
aspiração dos jovens de construírem uma vida diferente da dos seus pais. A vida livre transforma-se no sinal de uma
vida saudável, preferencialmente afastada dos grandes centros urbanos, imersa na natureza e profundamente
comprometida com um ideário de vida de inspiração oriental, em que o controle do pensamento muitas vezes
contrastava-se com o recurso às práticas meditativas, a yoga, e a um tipo de alimentação dita natural. Em síntese, a
conquista da espontaneidade, de uma vida não intelectualizada, em que a arte colocava-se como indissociável da vida
e valores como o dinheiro e o lucro eram objeto de desprezo, associados que estavam à ganância e a um espírito de
acumulação estéril.
O drop-out foi a característica fundamental da organização social da contracultura, e, neste caso ela se contrapõe
a todas as soluções tradicionais para o conserto da sociedade, especialmente o marxismo, que era a grande influência
da época (Maciel, 2007).
Em suas análises sobre o cenário contracultural nos Estados Unidos dos anos 1960, Roszak (1972) enfatiza que a
“tecnocracia” assumiu-se, então, como a forma social através da qual uma sociedade industrial atingia o ápice de sua
integração organizacional, tornando-se “o ideal que as pessoas geralmente têm em mente quando se referem à
modernização, atualização, segurança social, procura da eficiência, da racionalização e planejamento” (Roszak, 1972,
p. 19). Esse sistema inscreveu-se, assim, como mais um fator de expressão da reação de pais contra filhos, jovens
contra adultos, encarnando para esses últimos o status quo tranquilizador e seguro contra os anseios libertadores,
ainda que mal preparados, amadores e constantemente adolescentes dos filhos jovens.
Diante de tal sistema tecnocrático, para o qual não havia meios-termos, restavam aos jovens somente as
hipóteses polarizadas de aderir ou rejeitar. Daí a figura da ruptura ter surgido como emblema daquela geração, em
um movimento de massivo drop out que, segundo Roszak, caracterizava “muito mais uma ‘fuga de’ do que uma ‘fuga
para’”. Justamente por ser movida sobretudo por um escape sem planos e sem medição das consequências, a ruptura
que marcou as gerações contraculturais caracterizou-se, sobretudo como um gesto fugaz e juvenil, logo substituído
por um inevitável aderir ao sistema, passada a “idade da rebeldia”.
Muito diferentes são as minúsculas movimentações que vemos despontar hoje nos processos de subjetivação
jovem que vêm procurando se construir nas brechas do sistema, movidas menos pelo combustível do mero escape e
mais pela busca consequente por novas formas de vida que possam ser sustentadas na duração.
Talvez não precisemos ir mais longe nas linhas de investigação e diagnósticos sobre a contracultura para termos
em mente que o privilegiamento do espontâneo, da irresponsabilidade, das resistências entre gerações, das francas
oposições entre pais e filhos, da liberdade sem freios, caracterizaram um ideário capaz de revelar acentuados
contrastes com a proposta desmobilizadora que recorrentemente tem se manifestado em nossas pesquisas nos
últimos quinze anos. Isso significa dizer que, se pudéssemos resumir o legado contracultural numa única expressão
passível de nos remeter ao âmago do contraste com os processos contemporâneos da desmobilização jovem, ela seria
a inconsequência.
Procuramos demonstrar a ampla gama de fenômenos que são recorrentes e que aproximam a contracultura da
desmobilização, mas isso apenas enquanto ambos fenômenos estejam subsumidos pelo plano de seus conteúdos. Sob
essa ótica, como foi exemplificado, seria possível alcunhar o que hoje se passa nas subjetivações jovens como um
movimento neocontracultural, se temos em mente, por exemplo, o desejo desses jovens de sair das grandes cidades,
viver com menos dinheiro e reduzir seu consumo.
Nosso alerta, porém, consiste em demonstrar que se trata agora do limiar de um novo modo operativo de se
lidar com essas questões cujas nuances se situam no âmbito da consequência, da suficiência, do “justo-meio” (Jullien,
2000), de uma tomada de distância (Agamben, 2014) tática e sutil frente ao capitalismo que nos açambarca na
contemporaneidade.
Se apostamos hoje em modos de vida regidos pelo menos, pelo mínimo, pela menorização (Deleuze, 1992), tais
buscas não expressam um veto absoluto de um mundo para se entrar em um outro. Consumir menos, por sua vez,
não significa deixar de consumir. É diante dessa decantação dos matizes que vão da resistência à resiliência que nos
debruçamos, quando tratamos de uma sensibilidade no plano de seu funcionamento, dos mecanismos que ali estão
em jogo para além das similitudes de suas formas. E cabe aqui estendermos um pouco mais o “tabuleiro” das
variáveis que compõem o modo operativo com o qual estamos trabalhando.
A resiliência como apanágio das desmobilizações, assim como aquelas situações que exemplificam a conquista do
“justo-meio” enquanto “igual possibilidade de todos os extremos” (Jullien, 2014), sem estarmos à mercê do
predomínio assertivo das normatividades intransigentes, prerrogativa das grandes mobilizações da modernidade. É,
pois, a partir dos vácuos e dos intervalos que vão se perfazendo no âmbito de tais normatividades que se procura
farejar as brechas desmobilizadoras, capazes de perfurar, ainda que contingente e tentativamente, conteúdos
previamente interditos ou prescritos para os sujeitos. Com Jullien (2014), nos sentimos estimulados pela
possibilidade de jogar com todos esses conteúdos localmente através de uma ética que se dá por regulação. Assim,
por exemplo, acompanhamos mais um passo no traçado da resistência (ruptura) à (re)existência, em que, no
gradiente do justo-meio, nada necessariamente quebra ou se rompe, e uma flexibilidade prudente e cuidadosa
parece instalar-se nas subjetividades descentradas e “astuciosas” (De Certeau, 2008).
Ao se lidar com o fenômeno da obsolescência programada, por exemplo, garimpamos casos em que uma espécie
de congruência imanente a essa situação – isto é, uma regulação como normatividade imanente – nos distancia da
ideia de que somos subjugados, necessariamente, a tal obsolescência por qualquer força heterônoma de controle ou
sufoco. Diante da asfixia do consumo e do “torniquete” do sentimento de desatualização dele derivado,
acompanhamos variadas práticas que vem sendo recentemente acionadas na direção de conciliações operadas pelos
sujeitos como vias de amortecimentos, encaixes e adaptabilidades criativas que se desenham diante das ações e do
crivo da obsolescência “calculada”. Por exemplo, a atenção dada a iniciativas como as do reparo, dos pequenos
consertos e retificações de objetos, o recurso aos empréstimos substituindo a compra ou troca de produtos e bens,
e, ainda, a proliferação das feiras de gratidão, assim como a revalorização da vizinhança como suporte e ajuda
recíprocos.
Todos esses movimentos convergem para o exercício de uma lógica consequente, em que se faz valer o justo meio
como entre-lugar em que se acompanha, por exemplo, um acoplamento entre as instâncias do prazer, da viagem e
do ganho financeiro compreendidos em um só gesto, como veremos adiante. Iniciativas como a de realização de
trabalho remoto, assim como a articulação entre trabalho e itinerância, também são manifestações das
combinatórias de singulares composições situadas, pequenas e localmente reguladas.
Num esforço de lançar um renovado olhar sobre os quase míticos personagens da literatura antropológica
clássica, os aborígenes australianos, Danowski e Viveiros de Castro (2014) sublinham aquilo que podemos aprender
com eles nesses contemporâneos cenários de esgotamento dos funcionamentos ocidentais: seus diferenciais de
resistência marcados pela singeleza, pelas soluções locais e minimalistas, mas capazes de, ao mesmo tempo, revelar a
construção de relações agenciadas e potentes. É nessa direção que os autores nos convocam a pensar sobre o quanto
as pequenas ações, moleculares, nada dizem sobre a impossibilidade ou dificuldade de ação, mas, ao contrário, sobre
o quanto são elas capazes de apontar o desmantelamento porvir da frente da modernização pela via da intensificação
não material de nossos modos de vida.
As composições ou soluções locais pertinentes a realidades menores, discretas e consequentes também se
incluem na tematização de Danoswki e Viveiros de Castro (2014) sobre as inovações técnicas para a “resiliência” da
espécie. Para esses autores, “tais inovações podem prescindir dos canais corporativos da Big Science e não
necessariamente passam pelas longuíssimas redes de humanos e não humanos mobilizadas pela implementação de
‘tecnologias de ponta’” (Danoswki; Viveiros de Castro, 2014, p. 131). Essa tomada de posição é igualmente
corroborada por Latour (2012), quando fala sobre os diferenciais de resistência entre os aborígenes australianos:
(...) Que sua materialidade seja fraca aos olhos colonizadores não diz nada sobre a inventividade, a
resistência e a durabilidade desses agenciamentos. Para conservar as chances de negociação sobre os
sucedâneos dos atuais dispositivos de produção, é fundamental restituir aos seres da técnica uma
capacidade que os libere inteiramente de sua pesada instrumentalidade. Liberdade da manobra
indispensável para inventar os dispositivos a serem empregados quando for preciso desmantelar a
impossível frente de modernização. (Latour, 2012, p. 234-235)

Essa atenção ao contingencial e esse reconhecimento da potência do precário quando este deixa de ser adjetivo
pejorativo para nomear o possível estão também presentes nas retomadas atuais da filosofia do acontecimento, onde
o possível não mais orienta o pensamento e a ação de acordo com alternativas pré-concebidas, do tipo
ou/ou: capitalistas ou trabalhadores, homem ou mulher, trabalho ou lazer etc.; trata-se de um possível
que ainda precisa ser criado. E esse novo “campo de possíveis”, que traz consigo uma nova distribuição
de potencialidades, desloca as oposições binárias e expressa novas possibilidades de vida. (Lazzarato,
2006, p. 18)

Todos esses aspectos que transitam com maiores ou menores “tropeços” da resistência à resiliência encontram no
“virar” um modo capaz de traduzir como é possível se lidar com situações a partir “de dentro”, numa nova geografia
das espacializações dentro/fora que foram astuciosamente redesenhadas na contemporaneidade.
O “virar” pode ser simultaneamente entendido por meio de três acepções fundamentais, e resume o modus
operandi que vem “tomando lugar” nas práticas desmobilizadoras contemporâneas. De partida, pode ser entendido
como “o fazer com o que se tem”, ou seja, uma disposição para trabalhar com aquilo que existe ao dispor imediato e
suficiente, transformando consecutivamente as condicionantes em condições. A seguir, esse modo operativo
também expressa “um aprender enquanto se faz”, encarnando um exercício retroalimentador entre o pensar e o
fazer. E finalmente, o “virar” também carrega uma dimensão migratória que se processa tanto nos deslocamentos
espaciais e geográficos quanto na contingência de os sujeitos “virarem” uma condição diferente daquela que os
caracterizavam até então, como, por exemplo: João, de designer, “virou” DJ e passou a organizar festas funk na cidade
sem, contudo, perder seus vínculos com a comunidade de designers.
Se retomamos o início desta reflexão e sua ênfase sobre as (des)continuidades entre as resistências – marca
emblemática dos movimentos contraculturais – e a crescente aposta nos contextos de adaptabilidade e de adequação
às situações – apanágio das reinvenções resilientes de si, vamos encontrar no modo operativo do “virar” um
protagonismo singular para a demarcação das diferenças, das aproximações e distanciamentos que transitam entre
ambos esses registros.
Se hoje é possível, por exemplo, nos darmos conta, entre os funcionamentos jovens de “gerenciamento
suficiente de si”, das conciliações e redes de adaptabilidade entre diversão e inserção profissional como mundos
retroalimentados, também é possível testemunharmos funcionamentos coletivos de trabalho em equipe, criação
colaborativa e táticas de liberação no interior de um draconiano mercado capitalista de trabalho.
Em suas ágeis, mutantes e sensíveis margens de manobra que atravessam as subjetividades contemporâneas, “o
virar”, converte-se na ferramenta tática capaz de expressar o sutil divisor entre o imperativo da “escolha que exclui
todas as outras”, preconizado pela modernidade (ou o destino militante da luta armada ou o enquadramento acrítico
ao sistema) e a “escolha que não desescolhe”, ou seja, que se remete indefinidamente à lógica das combinações
arbitrárias da pós-modernidade.
Na incursão que ora estamos realizando aos universos da desmobilização, afastados de ambos esses modos de
perceber o primado da escolha, apostamos em uma outra forma de funcionar e operar esta diferença que não se
nutre nem da escolha excludente nem da panóplia do vale-tudo. Mas, sim, da formação de uma sensibilidade cada
vez mais conducente aos fatores de situação – que tem no “virar” o seu motor principal. Este ativa a escolha de
modo transversal e situado, enquanto um atento exercício de composição que se opera através do cuidadoso
manuseamento e da contínua filtragem das peças que o integram.
Finalmente, vale aqui uma relação de aproximação entre os jovens com os quais trabalhamos ao longo desses
anos de pesquisa e o sentido do contemporâneo (Agamben, 2014) como aquele que “não coincide verdadeiramente
com ele mesmo, nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso,
exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais que os outros, de perceber e apreender o
seu tempo” (2014, p. 22). Imersos, portanto, nos modos operativos do “virar”, esses jovens tendem a não
protagonizar ou robustecer os processos de “mobilização infinita” da modernidade, ou seja, não parecem submersos
às convocatórias da ordem do dia, às permanentes atualizações das práticas aceleracionistas do consumo. Por
aderirem ao tempo por intermédio de uma dissociação e de um anacronismo – numa palavra, por tomarem
distância frente a ele – a esses jovens poderíamos chamar de “contemporâneos” no sentido de Agamben.
Estabelecem eles uma relação bastante singular com o próprio tempo: aderem, e ao mesmo tempo tomam distância
em relação a ele, o que, em muito aqui nos distancia do tempo apegado, inexorável e adesista da contracultura.
Como sublinha Agamben (2014), não se trata de atribuir ao sujeito contemporâneo a pecha da nostalgia, por mais
que ele não goste de seu tempo, ele sabe, contudo, que dele não pode escapar, pois lhe pertence
irrevogavelmente... São, pois, as brechas originárias da não coincidência entre aqueles que pertencem ao seu tempo,
mas que não estão adequados às suas pretensões – tornando-se inatuais – que vem sendo ocupadas pelas táticas do
“virar”. Nelas, acima de tudo trabalha-se com o que se tem, aprende-se fazendo, migra-se subjetivamente, na
margem do anacronismo e das dissociações, nos intervalos gerados pelas posições de desencaixe, das sobras
imaginativas, das tentativas de operar novos encaixes situacionais e contingentes...
Se, como ainda nos reitera Agamben, é o contemporâneo que quebrou as vértebras de seu tempo, mais ainda se
levanta para nós o modo operativo do “virar” como potência que trabalha na fenda, na voltagem precisa desta
espécie de “virada ontológica” que os movimentos desmobilizadores nos parecem oferecer.
Ainda na senda aberta por este autor, “é o contemporâneo que faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de
um encontro entre os tempos e as gerações” (Agamben, 2014, p. 32).

As modulações da desmobilização: tomar distância e menorizar

Num post recente, o jovem blogueiro Ícaro de Carvalho9 sintetiza a clareza molecular que tem motivado as espirais
mais contemporâneas da desmobilização. Como se, de modo descentrado e idiorrítmico (Barthes, 2003), trilhando
caminhos singulares, emergisse aqui e ali um pouco mais do que apenas o “lidar com o sistema” pela tática da
liberação que mapeamos na nossa pesquisa anterior (Almeida; Eugênio, 2012). Um pouco mais do que tão somente
ironizar o sedutor discurso de “criativização da profissão” (idem) do capitalismo rizomático – aquele que procurou
incluir a ludicidade e a imaginação contraculturais como mais uma de suas commodities. Expondo com clareza as
artimanhas contemporâneas da captura, Ícaro sinaliza também um cansaço, um esgotamento, e uma tendência a
escolher outra coisa: a construção de outros mundos possíveis através de uma eventual paragem: estancar a lógica
aceleracionista da mobilização infinita, encontrar outras formas de vida. Desmobilizar, talvez.
A geração de hoje se deixa enganar pela falsa sensação de divertimento, que nunca tem fim.
Transformaram o ambiente de trabalho em um circo, para que você ouça: “Ei, mas aqui é divertido!
Dane-se se não pagamos horas-extra ou se te colocamos para trabalhar por toda a madrugada em troca
de pizza. Aqui você pode trabalhar com boné!”. Quando nossos pais estavam em casa, eles estavam em
casa mesmo! Dane-se que o trabalho tinha sido duro, após as 18hs eles se sentavam naquele sofá da
Mesbla, abriam a primeira Antártica da noite e era a hora do futebol. Qual foi a última vez que você
esteve realmente desconectado do seu trabalho? Você tenta se convencer de que aquele Whatsapp do
cliente à meia-noite não é nada demais, que é coisa pequena, que “pega mal” não responder. E aquele
inbox no Facebook às ١h35 da manhã? “Ah, eu já estou aqui mesmo, né. Agora ele já viu que eu
visualizei…”.

Conclamando seus colegas de geração a um levante silencioso, sem líderes e sem fórmulas, o jovem Ícaro
sintetiza um dizer que vem se espalhando nas camadas que lhe são contemporâneas, e que têm começado a esticar as
táticas do virar e da liberação abordadas em nossa investigação anterior (idem), procurando outros caminhos
possíveis através da exploração dos limites de seu potencial funcionamento consequente:
Provavelmente você caiu no mito do home office libertador, que te faz perceber, anos depois, que ele só
foi capaz de te “libertar” do horário comercial. “Ah, mas você trabalha em casa!” — pronto, é sinal de
que receberá demandas ou mensagens a qualquer hora da madrugada. Provavelmente você ainda não se
ligou, mas você produz dezenas de vezes a mais do que o seu pai ou os seus tios conseguiam. Antes, para
atender um cliente, você precisava ir na loja ou na casa dele, lá na puta que o pariu. Hoje? Skype. Antes,
era fax ou mandar documentos pelos correios. Hoje? E-mail. Antes, você estava limitado à sua cidade.
Hoje? Internet, meu filho! Entretanto, quanto é que você está ganhando? Acorde para a vida! Agências
com mesa de sinuca, totó, chocolates à vontade, cafezinho espresso, pula-pula e vídeogames significam
apenas que você está pagando por tudo aquilo e que o seu salário, ao final do mês, sentirá a pancada.

Nosso tema mais amplo diz respeito justamente a essa variedade, assumida entre os jovens hoje, de
desmobilizações na vida urbana, frente a um cenário limite da aceleração, do produtivismo desenfreado, das práticas
de consumo cada vez mais ostensivas, da degradação dos estilos de vida das grandes cidades, da regência, enfim,
prometeica e do controle gerencial sobre o mundo tomado como o Outro da humanidade (Danowski; Viveiros de
Castro, 2014, p. 130). O capitalismo tem como meta eliminar as situações de força, de intensidade e de potência da
impotência, na medida em que seu eixo disparador é sempre conducente a mais e mais ação, produto, resultado e
realização. Em suma, tal sistema age como uma espécie de plantonista permanente que se dedica a evitar que tudo
aquilo que se remete a não realização seja atacado e banido do cenário atual. Para os nossos fins, merece destaque
aqui, no interjogo ambivalente e ao mesmo tempo constitutivo da potência pela impotência humana, o fato de que
esta última não é compreendida unicamente como ausência de potência, isto é, “não poder fazer”, “não poder ser”,
mas, sim, e mais ainda, como “poder não fazer”, “poder não ser”, estar apto, enfim, a poder não exercer a própria
potência (Agamben, 2014).
Na trajetória empreendida pelo capitalismo em direção à mobilização cada vez mais célere de seus movimentos,
ele procurará capturar e perseguir exatamente as escolhas de “não fazer”, como aquela do personagem de Melville, o
escriturário Bartleby, cujo “preferir não” resgata “a humanidade de negar e resistir a fazer algo” que o homem
moderno deixara de observar (Agamben, 2014, p. 72). É no âmbito dos múltiplos desdobramentos dos “jovens”
Bartleby(s) contemporâneos, assim como de suas expressões por meio da profusão de material oriundo das redes
sociais e da mídia em geral, que a reflexão de Agamben se faz oportuna na direção dos redesenhos da impotência e
de sua força criadora nas desmobilizações que nos interessam aqui. Nosso universo de pesquisa encarna, portanto,
uma tentativa de abordar e refletir sobre formas de vida que estão em constantes composições e recomposições
rumo a padrões de desaceleração, distanciamento e menorização (Deleuze, 1992) das condutas subjetivas.
Composições não radicais, mas radicantes (Bourriaud, 2011): situadas, contingentes e processuais. Marcadas por uma
atenção a uma transição, considerada cada vez mais inescapável e necessária, rumo à percepção do planeta como
organismo vivo em constante composicionismo, à revelia das modernas convicções antropocêntricas. Como salienta
Latour:10 “Continuar, hoje, tem uma relação profunda com descontinuar, interromper a continuidade das coisas,
interromper o que temos feito, o que é hábito. Continuidade, hoje, significa descontinuar e reconstruir-nos
inteiramente.”
Múltiplos e variados são os modos de vida experimentais que começam a surgir entre os jovens em resposta a
essa clareza cada vez mais aguda de que já não é possível endossar o aceleracionismo. De que para continuar é
preciso parar, desmobilizar: seja através de uma tática de tomada de distância, de diminuição ou decrescimento. São
micromovimentos de invenção que, por fazerem com o que têm, fazem também com a matéria de temas e questões
recorrentes, respondendo na mesma língua e no mesmo plano daqueles que procuram criticar. O desejo de fundar
outro mundo, ou de não depender tanto do sistema existente, produzindo alguma autonomia, está longe de ser um
rompante escapista. À aguda crítica do tempo e da qualidade de vida confiscados à sua geração pelo
“empreendedorismo” e pela “indústria criativa”, o jovem blogueiro Ícaro propondo construir ele próprio uma
empresa que funcione em outros moldes: “Faça isso ou adoeça”, sentencia ele no mesmo post que citamos há pouco.
Do mesmo modo, por exemplo, os diversos movimentos em busca da “soberania alimentar”, seja através de técnicas
de permacultura, reaproveitamento, troca de bens e serviços ou outras, propõem-se a colocar a mão na massa para
descobrir formas autônomas, locais e sustentáveis de produção – em vez de meramente bradar contra a produção.
De um modo bastante amplo, toda essa movimentação ao mesmo tempo dilatada e silenciosa tem sido
recentemente referida sob o nome transversal de transição (sendo, talvez, a mais conhecida dessas expressões o
slogan “Transição-Permacultura”). Diferentemente do efeito de impacto idealizado outrora para marcar uma
mudança dita revolucionária, esses movimentos apostam na obscuridade e na infiltração, no espalhamento lento e
imperceptível, no acoplamento de novos hábitos ao que já existe, na reversão ou reabilitação para novos usos das
consequências, mesmo que más, daquilo que conforma o nosso entorno. E, mudança notável e crucial em termos de
organização das subjetividades: em vez de se focarem no indivíduo médio e psicologizado – com seus dilemas e
vicissitudes ao escolher o caminho idiossincrático do rebelde, do artista, do único, do “diferentão”11 – constroem-se
sobretudo numa discussão do que é comum e coletivo. Numa reivindicação dos “comuns urbanos” (urban commons) –
começando por um mais alargado direito à cidade, passando pelo pleito por água potável sem custos ou pela tarifa
zero nos transportes públicos, até uma defesa indiscriminada dos direitos de existência não identitária dos muitos
diferentes (poliamoristas, transgêneros, migrantes, refugiados, sem-tetos etc.)
Um notável ganho de distância – que é característico daquele que percebe e apreende seu tempo por não estar
adequado a ele – nos envia aqui ao próprio significado do contemporâneo como o registro do intempestivo e do
deslocado, como já mencionamos no curso deste texto: trata-se, como vimos, de uma relação singular de
proximidade e distância com o nosso próprio tempo, na qual se adere a ele por desfasamento e anacronismo, tal
como o define Agamben:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide
perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências (...), mas precisamente por isso, exatamente
através dessa separação e desse anacronismo, ele, é capaz, mais do que os outros, de perceber e de
apreender o seu tempo. (...) o contemporâneo é aquele que percebe a escuridão do seu tempo como
algo lhe diz respeito e não cessa de interpelá-lo, alguma coisa que, mais que qualquer luz, dirige-se
direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe diretamente no rosto o facho de
trevas que provém do seu tempo. (Agamben, 2014, p. 22; 26)
Essa seria a matéria da “intempestividade”, simultaneamente um “muito cedo” e um “muito tarde”, “um ‘já’ que
é também, um ‘ainda não’” (ibidem, p. 27; 28). Este “não vivido” é que seria, segundo Agamben, a matéria do
contemporâneo, e abrir brecha para fazer dele e com ele novas formas de vida envolveria, portanto, voltarmo-nos “a
um presente em que jamais estivemos” (ibidem, p. 31):
Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo a escuridão do presente,
apreende a sua luz inalienável; é também aquele que, dividindo e interpelando o tempo, é capaz de
transformá-lo e de relacioná-lo com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-
la” segundo uma necessidade que não provém de maneira alguma do seu arbítrio, mas de uma exigência à
qual ele não pode responder. (ibidem, p. 31-33)

É, pois, nessa espécie de fratura gerada, como vimos, no descompasso entre a apreensão de seu tempo e a
inadequação a ele, que poderemos acompanhar manifestações jovens que mantêm distância frente ao que está
submerso à ordem do dia, à mobilização infinita da cinética moderna (Sloterdijk, 2002). É o que iremos
acompanhar a seguir, nos próximos capítulos, dedicados ao “rastreamento descritivo” (Latour, 2005) de como tais
funcionamentos têm vindo a se materializar de modo singular entre os jovens contemporâneos.

1
Cumpre assinalar aqui, a título de atualização, a diferenciação de tais movimentos frente aos de 2015/2016. Nesses últimos – onde os destaques vêm se
dirigindo às bandeiras do impeachment da presidente e temáticas afins – o elemento mobilizador volta-se para o confronto e para o ataque personalizado e seus
perímetros de ação política. Refaz-se aqui o desenho binário do “nós contra eles”, em detrimento das bandeiras múltiplas e plurais das manifestações de 2013.
2
FREITAS, Ana. 2015. As ocupações mudaram os estudantes. Agora, eles querem mudar a escola. Disponível em:
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2015/12/07/As-ocupa%C3%A7%C3%B5es-mudaram-os-estudantes.-Agora-eles-querem-mudar-a-escola.
Acesso em: 6 abril 2016.
3
Idem.
4
Vemos, entretanto, nas mais recentes manifestações orquestradas em torno do pleito da renúncia ou do impeachment da presidente Dilma, a emergência
novamente de um funcionamento via “palavra de ordem”, desta feita retomado e rearticulado a partir “de cima”, numa procura por um simulacro, por meio
do qual intenciona-se submeter a diversidade dos matizes singulares dos posicionamento individuais num suposto uníssono “Fora Dilma!”. Como comenta
em sua página do Facebook a artista da dança e da performance Flávia Meirelles: “O vídeo tutorial para a manifestação do dia 13 de março de 2016 ensina
alguns passos para uma coreografia ensaiada a ser dançada na manifestação Fora Dilma: o vídeo abre com a chamada ‘aprenda a coreografia da música, seja
patriota’. (...) A estética publicitária chupa das novas ferramentas digitais (tutoriais no youtube), do axé (com o sotaque nordestino ressaltado pelo Léo), de
levantes sociais (de extrema esquerda à direita), de cultos de cunho neopetencostal (em que a prosperidade e a alegria são caminho para Deus) e da ala mais
midiática da igreja católica. Tudo serve. Tudo condensando em 3’48”. Tudo espremido, dobrado, superposto. (...) [No] vídeo tutorial ‘seja patriota’, a
coreografia organiza uma mobilização que serve a um fim preciso: ser patriota no fora Dilma. E a coreografia, de forma geral, sempre organiza as forças do
corpo a mobilizar algo. Mas faz toda a diferença reconhecer qual sentido é esse e como essas forças estão agindo, isto é, reconhecer suas políticas e seus
modos de produção. No tutorial comentado parece-nos que o que se quer é passar um trator e atropelar qualquer dissidência, passo em falso ou passo fora do
ritmo, trazendo todo mundo. A dança e a coreografia aqui agem no risco, no fio da navalha pois cooptam o potente e o hilário a virar patético, a força dos
fracos, um afeto triste. Essa é a sensação no fim do vídeo. Os passos simples têm como premissa a vontade de mobilizar qualquer corpo, de colocá-lo em
movimento, de colocá-lo pra dançar em uníssono, da utopia do Um, ultrapassando o corpo individual e atingindo o coro. Seria isso uma forma autoritária ou
democrática?”. Na veloz sequência de acontecimentos à qual foi lançado o país logo a seguir a essa manifestação, vimos emergir um levante que, confrontado
com a perversidade do uníssono fabricado, respondeu igualmente com uma palavra de ordem, sintetizada na hashtag #naovaitergolpe, a aglutinar uma
multiplicidade dissonante de posturas políticas, circunstancialmente alinhadas em defesa da democracia – embora, neste caso, preservando a diversidade das
“coreografias”, a pipocar nas redes sociais sob a forma de múltiplas convocatórias, das diversas classes artísticas (teatro, dança, cinema, circo etc.) às
universidades, movimentos minoritários etc.
5
PELBART, Peter Pál. 2013. Anota aí: Eu sou ninguém. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-
debates/_ed756_anota_ai__eu_sou_ninguem/. Acesso em: 6 abril 2016.
6
Idem.
7
Em simultâneo à notável emergência de formas de vida inclusivas e disponíveis ao dialogo, marcadas por um empenho em tornar prática uma
conscientização mais transversal e menos autorreferida, que inclui no seu próprio dizer-se mesmo os modos de ser e de fazer que lhe são dissonantes (novos
feminismos, novos ambientalismos, novas lutas minoritárias, em que já não é preciso ser parte do grupo estigmatizado para reivindicar os direitos destes e
buscar praticar a sua inclusão concreta, seja através da adoção de novos vocabulários mais atentos, seja nos modos como se educam as crianças ou se negociam
as relações afetivas, familiares e profissionais), vemos também, como parte do mesmo cenário, um recrudescimento dos discursos de ódio e uma espécie de
revivalismo de posturas fascistas. Seguindo o mesmo percurso que aqui buscamos analisar – o de que o ápice do funcionamento capitalista é também o seu
esgotamento – parece dar-se algo similar com os funcionamentos sociais de convivência com a diferença: um último e mais estridente grito de ódio é emitido
por aqueles que reproduzem o sistema normatizador que colapsa, no mesmo passo em que se assiste à proliferação das microdiferenças, ao seu espalhamento
como modos de vida legítimos, flexibilizando o tecido social e complexificando as anteriores oposições binárias identitarizantes, sejam elas de gênero, classe,
raça ou etnia, poder aquisitivo, grau de instrução etc. Mas não se trata de uma “luta já ganha”. Sublinhamos aqui uma tendência, consoante com os processos de
desmobilização que abordamos neste livro. Uma tendência, entretanto, que se faz e refaz todo o tempo em relação-tensão com um sistema que, mesmo
exausto e visivelmente exposto em sua perniciosidade manipuladora, segue capturando. A força da desmobilização, entretanto, se nota quando esta revela que
não está adotando definitivamente a mesma tática do “contra” de outrora: mesmo com os novos fascistas ela quer conversar, como revela o recém-lançado
livro da filósofa Márcia Tiburi (2016), Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, publicado a propósito, justamente, das
recentes ondas de ódio massificado que têm assolado o país.
8
PRECIADO, Beatriz. O Povo Online, 24 de novembro de 2014, coluna “Filosofia POP”. Disponível em:
http://www.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml. Acesso
em: 24 novembro 2014.
9
Blog Medium, post: “O que diabos aconteceu com a geração Y?!?”, 12 de fevereiro de 2016.Disponível em: https://medium.com/copy-hacks/o-que-
diabos-aconteceu-com-gera%C3%A7%C3%A3o-y-73cd16ccc5c9#.e8uzflost. Acesso em: 06 julho 2016.
10
O Globo, 29 de setembro de 2014. Bruno Latour, antropólogo e escritor: “Temos que reconstruir nossa sensibilidade”. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/bruno-latour-antropologo-escritortemos-que-reconstruir-nossa-sensibilidade-
14081447#ixzz44miOkcZy. Acesso em: 06 abril 2016.
11
Gíria mais recente surgida nas redes sociais para ironizar os que ainda se focam mais em si do que no entorno.
Tomar distância – reinvenções do êxodo, composições situadas e resiliências
Maria Isabel Mendes de Almeida

O universo das desmobilizações, assim como a expectativa do decrescimento em geral podem ser subsumidos por
duas simples ações: parar e recuar. O modo como cada uma delas opera ou funciona é submetido à variação. É
possível, por exemplo, pararmos e recuarmos pela tática da diminuição, da menorização, do distanciamento, dos
intervalos e das paragens. Esse conjunto de táticas, que será objeto de nosso recorte para este capítulo, abrange um
largo espectro de questões que percorrem desde os nomadismos contemporâneos, as ressignificações do espaço
urbano, passando pelas várias modalidades de percepção das experiências sabáticas, os recentes processos de
desescolarização ou de escolarização em casa, a trajetividade como uma forma de habitar a cidade, até as saídas da
metrópole para as áreas do campo e as atuais configurações de residências moventes, onde a própria experiência
com o trabalho se vê deslocada de seu registro de imobilidade e sedentarização.
Tematizamos, portanto, um multifacetado universo de circunstâncias que vem desafiando o movimento e a
consequente tomada de distância frente a ele, como o sono, a convulsão urbana das cidades, a exaustão de vidas
consumidas pelos engarrafamentos, pelas impossibilidades de locomoção e por uma modernidade que sempre se
caracterizou como progressiva e progressista. Em síntese, com Sloterdijk, referimo-nos aqui ao “capital cinético”
como aquele “que faz explodir velhos mundos, não porque tenha algo contra eles, mas apenas porque é seu
princípio não se deixar deter” (Sloterdijk, 2002, p. 29).
Retiradas e deslocamentos frente à realidade cinética da modernidade enquanto mobilização (Sloterdijk, 2002),
processam-se de formas as mais diversas e propomo-nos aqui ir ao encalço delas, rastreando-as e garimpando-as.
Tudo isso tendo em mente o jogo das composições situadas (Latour, 2011) e das conexões parciais (Strathern, 2014)
que procuraremos acompanhar, assim como também sempre balizados pela metáfora do radicante (Bourriaud,
2011), que define o sujeito contemporâneo enquanto dividido entre a necessidade de um vínculo com seu ambiente
e as forças do desenraizamento, entre a globalização e a singularidade, entre a identidade e o aprendizado do outro.
A temática do deslocamento em muito nos familiariza, na contemporaneidade, com os contextos das
permanentes formas de reenraizamento, em contraposição a uma metafísica da raiz ou da radicalidade – tão cara ao
modernismo. Os agentes do mundo artístico contemporâneo, entre vários outros exemplos, “parecem expressar
muito menos a força da tradição”, ou seja, – a raiz “de que se originam – do que a trajetória que perfazem entre essa
tradição e os diversos contextos que atravessam, efetuando, portanto, atos de tradução” (Bourriaud, 2011, p. 50).
Onde o modernismo procedia por subtração, de modo a desenterrar a raiz-princípio, o artista
contemporâneo procede por seleção, acréscimos e multiplicações: ele não busca um estado ideal do Eu,
da arte ou da sociedade e sim organiza os signos a fim de multiplicar uma identidade por outra (...) O
radicante pode, sem nenhum prejuízo, romper com suas raízes primeiras e reaclimatar-se: não existe
origem única, existem enraizamentos sucessivos, simultâneos ou cruzados. (Bourriaud, 2011, p. 50)

Romper com as suas raízes primeiras e reaclimatar-se sem prejuízo de sua própria construção singular não
somente implica revermos nossa obstinação pela origem, pela ancoragem, mas nos faz ver “que não existe origem
única, existem enraizamentos sucessivos, simultâneos ou cruzados. O artista radical pretendia voltar a um lugar
original; o radicante se põe a caminho, e isso sem dispor de nenhum lugar para onde voltar” (Bourriaud, 2011, p.
50).
É, pois, este plano da recomposição ou ressemantização de destinos primeiros que são transformados e alterados
pelos sujeitos na busca pela tomada de distância e pela “paragem” que procuramos perseguir. Trataremos aqui da
construção de itinerários, passagens, intervalos, reorganização de trajetos, deslocamentos que se perfazem em
espirais sucessivas. Numa palavra, da figura do semionauta (Bourriaud, 2011) como aquele que produz itinerários na
paisagem de signos, que são criadores de percursos dentro da paisagem cultural, de nômades coletores de signos
(Bourriaud, 2011).
Também o sono – como último bastião sob ataque do aceleracionismo no capitalismo – é capaz de ser pensado
como uma via para o deslocamento e para a retirada. Tal estado não deixa de poder significar uma modalidade de
distanciamento e resistência ao modelo maquínico de duração e de eficiência. Em meio à mobilização cinética da
modernidade e à contínua transformação em mercadoria de necessidades irredutíveis da vida humana – como a
fome, a sede, o desejo sexual – o sono permanece à deriva de sua capacidade de virar “valor” (Crary, 2014). Para
Crary, o que marca a novidade do capitalismo do século XXI é o:
Amplo abandono da pretensão de que o tempo possa estar acoplado a quaisquer tarefas de longo prazo,
inclusive a fantasias de “progresso” ou desenvolvimento. Um mundo 24/7 (como é chamado pelo autor)
iluminado e sem sombras é a miragem capitalista da pós-história, de um exorcismo da alteridade, que é
o motor de toda mudança histórica. 24/7 é um tempo de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida
humana é cada vez mais inadequada, e dentro do qual o sono não é necessário, nem inevitável. (Crary,
2014, p. 19)

O silêncio, o sono e o “respirar” como formas de êxodo

Facebook Detox12 é o título de uma matéria autobiográfica publicada em 26 de julho de 2014 pelo colunista do
jornal O Globo Arnaldo Bloch, e que é sintomática desse distanciamento, da necessidade de “respirar”, encontrar
paz, alterar a “estadia” excessiva e frenética em determinados espaços e permutá-las por vivências de tranquilidade e
menor solicitação, distender, limpar, enfim, fazer um “detox”.
As razões que parecem conduzir Bloch a tal desenlace apontam para a “suspensão” de uma realidade que se
expressa como um fardo, conducente ao esgotamento de forças, a perda de energia. Uma “intoxicação” generalizada,
digamos assim, tomara conta de sua vida nos últimos tempos, antes de sua opção pelo distanciamento, pelo
desligamento. Assim, qualifica o jornalista o turbilhão de relações em que se vira envolvido e que o Facebook
“engendra naqueles que gostam de explorar, como ele, todas as dinâmicas de pertencimento a um universo, seja ele
paralelo, perpendicular ou oblíquo”.
Ao comentar os efeitos de sua saída do Facebook ele compara essa condição à da retirada de uma droga, – a
desintoxicação – com a diferença de que neste caso ela ocorre de modo paulatino e gradual e no caso do jornalista
tal experiência foi vivida de forma muito mais violenta, de uma vez só... Mas acompanhamos que, para a
“montagem” da nova economia interna de Bloch, esta retirada lhe devolveu aspectos da vida que desde há muito se
encontravam, por sua vez, desativados: “O céu sem fotografia, os sorrisos de toda a gente, os papos bons, mais
tempo para o piano da sua sala e para o amigo que quer conversar”. Vale insistir aqui nos efeitos de uma espécie de
síndrome de abstinência pós-detox experimentada pelo jornalista quando ele se dá conta de um “vácuo”
intersubjetivo diante de ações e gestos que não mais tinham a chance de se consumarem no seu cotidiano. Bloch,
então, nos reitera: “A todo momento, diante do computador ou do celular, na rua, no carro, no trabalho, vinha-me
o gesto automático de checar, no Face, os novos posts, os comentários às minhas próprias postagens, as mensagens
pessoais, ou o impulso de publicar uma frase, um pensamento, uma foto, uma piada, e, imediatamente, a constatação
de que não há mais um Face e que, em seu lugar, há uma vida a ser vivida sem muletas intersubjetivas”.
O blogueiro Renato Essenfelder ficou há três meses sem Facebook,13 e sua experiência também nos leva a
percorrer o traçado de um cotidiano vivido enquanto “suspensão”, alívio, diluição e espaçamento dos excessos, da
conexão irrespirável. Uma cartografia da paragem – que se desloca do frenesi da vida plugada para o recesso
meditativo – aqui se instala quando Renato diz que o “tormento” gerado pelo Facebook se reduz a dois tipos de
problema: um de escala e outro de propósito. “Excesso, quantidade de contatos, volume de postagens, a sensação de
ter sido tragado por um tsunami a meio caminho da destruição total.” A tais variáveis confere-se a condição de
insaciabilidade, de exaurimento, tentáculos em ação de um regime incontido de urgência do capitalismo, em que,
segundo as postagens de Essenfelder “tudo é demais: pessoas, opiniões, certezas, tendências, novidades, problemas,
polêmicas”. “Tudo ao mesmo tempo agora”, conhecido refrão emblemático de nosso espírito de época, é por ele
acionado para queixar-se de uma característica sua, pessoal – a lentidão para chegar a conclusões – que é
contraposta à convocação permanente do Facebook a termos opinião formada sobre o último programa de TV, a
última declaração de um político, a última partida de futebol, a guerra, a paz, cinema, bolos, armas de fogo e
cachorros...
Quanto ao propósito do Facebook – aspecto que Essenfelder elenca além da questão da escala – este não se
resume a nada que se diferencie da mera avidez pelo lucro: “Lucrar com nossas informações pessoais, com nossos
comentários, com nossos olhos, mãos e bocas, lucrar com o mapeamento de nossos hábitos, com a oferta incessante
de publicidade”.
Não muito longe da busca por “desintoxicação” empreendida por Bloch, por paragem e suspensão aspiradas por
Essenfelder é possível encontrarmos atualmente, – nos tão divulgados retiros de silêncio, os Vipassana – uma
espécie de continuidade metafórica com os modos de vida silentes e menores e cuja noção de movimento do mundo
atropela e obstrui os nossos movimentos próprios.
Jovens brasileiros e europeus vêm demandando de forma maciça tais retiros de silêncio, onde, durante 10 dias
ininterruptos, uma média de 30 pessoas se reúne em áreas afastadas da cidade sem que se verifique entre elas
nenhuma forma de comunicação verbal, escrita ou mesmo de acesso à leitura.Como vamos observar, esse modo de
funcionar traz, por sua vez, a quietude e a meditação como táticas de afastamento e de retração de arquiteturas
subjetivas que também se encontram submersas em perplexidades, desorientações e impasses existenciais de toda
ordem.
Cuscuz é um dos jovens com quem conversamos e que formata sua demanda pelos retiros de silêncio como uma
espécie de “planta baixa” regularizadora de uma vida atravessada por altos e baixos, descontroles e ausência de
rotina: o término de seu namoro, um “carnaval louco” em que ele trocara a noite pelo dia, a exigência de “colocar a
mente no lugar”, o ritmo de grande intensidade de sua vida, a necessidade de relaxar e fugir das tensões. Todos esses
aspectos acabam por desaguar na demanda por meditação, introspecção e inoperosidade. Tal como a articulação
entre festa e inoperosidade empreendida por Agamben (2014) para o caso do sábado judaico, os retiros de silêncio,
ao contrário de definirem-se como abstenção ou inércia, encarnam um novo modo de agir e de viver. Tanto para o
caso do sábado judaico quanto para os retiros de silêncio, o que importa reter é que ambas as ações como fruição
não estão ligadas a uma função ou a uma finalidade. E no cardápio de razões que levaram Cuscuz a essa experiência
de retirada não se pode traçar, de fato, uma finalidade em seu sentido produtivo, mas sim um feixe de questões que
se relacionam a uma forma de “nebulosa” imprecisa de solicitações de seu dia a dia que necessitam “dar uma parada”.
Salta aos olhos como o recurso ao mesmo retiro de silêncio por parte da jornalista Eliane Brum,14 da revista
Época, já é capaz de transitar pela ideia da “viagem imobilizada” em torno de seu próprio corpo, quando a meditação
assume uma real condição de transformação em sua vida. Nesse caso, trata-se de um distanciamento capaz de
conquistar para si a paragem e a fixação de um corpo em sua feição de interioridade e ao qual, ela, até então, não
parecia ter tido acesso. “Esta é uma expedição de dez dias, – ela assinala – mais de cem horas de olhos fechados, sem
sair do lugar e sempre para dentro. Ao avesso de qualquer outra aventura, quanto mais longe, mais perto estava de
mim. Neste mundo em que todas as geografias já foram devassadas – e a maioria delas devastada – talvez este seja
um desafio mais real.”
A conquista de um desafio real em contrapartida a tantas geografias devassadas e devastadas, os olhos por tantas
horas fechados, o corpo sem sair do lugar e sempre para dentro – são condições que trazem implícita uma bagagem
mobilizada cuja “falência” a jornalista parece estar perscrutando com o ineditismo desse encontro...
O afastamento de um estado de coisas, que até então eram compreendidas como estáveis, duráveis e
permanentes e que, além disso, eram assim consagradas pela própria profissão de jornalista que “pereniza” a
realidade por meio da escrita – encontra o seu limite, sua aporia. E ela assim nos reitera: “Era difícil tornar
qualquer coisa permanente depois de compreender – de forma tão radical – a impermanência da realidade. Eu, que
me tornei jornalista na ânsia de capturar o real, me encontrei nesse impasse. Escrever era tornar permanente o
momento, o acontecimento fugaz, era impedir que algo fosse embora. Parecia impossível voltar a fazer isso. Na
ponte aérea da volta, peguei o jornal, e nenhuma notícia parecia fazer sentido, ter importância.”
A impermanência do real que aparece aqui como positivizada e fruto de uma conquista, de uma revisão
que Eliane constrói sobre sua própria profissão, tem origem em um fator de situação – que é peça central nos
mundos internos em questão: o “achado” da meditação. Por meio do Vipassana, Eliane nos diz ter realizado uma
viagem “para um lugar bem exótico: o seu próprio corpo”. Em seguida, sob a égide de um mundo cujo ritmo de
trabalho se encontra cada vez mais precarizado, seu depoimento revela algo em torno de seu próprio corpo que ela
nunca pôde se dar conta de existir: “Na tarde do oitavo dia, consegui praticar vipassana. Em minha viagem por cada
centímetro do corpo ou apenas seguindo o fluxo de sensações, eu encontrava as regiões ‘duras’, dolorosas. Sentia,
investigava por um minuto, como se fosse uma cientista examinando um território neutro, e seguia sem desespero”.
A imposição ao corpo humano de um modelo maquínico de duração e de eficiência (Crary, 2014), na
exacerbação de consequências da globalização neoliberal e de processos mais extensos da modernização
ocidental, parece irradiar seus efeitos, assim como apontar suas linhas de fissura e percepção de brechas até então
desconhecidas... Para além do acúmulo de coisas, etapa já superada no âmbito do capitalismo tardio (Crary, 2014),
é, possivelmente, também de acúmulo que se trata quando a referência é dada por corpos e por identidades que
assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas
vezes letal (idem, 2014).Os soníferos e os antidepressivos – geralmente consumidos por Ana Luiza (outra adepta
dos retiros de silêncio e também nossa entrevistada), em momentos de grande estresse e angústia – estão na gaveta,
embora ela não mais a eles recorra, pelo menos com a mesma frequência a que estava acostumada antes da ida para o
retiro. Falta de disciplina, rotina demasiadamente burocrática, ausência de concentração, muita ansiedade,
desencanto com os métodos da psiquiatria tradicional, são algumas das razões que justificam a opção de Ana Luiza
pela retirada. Ou seja, todos esses aspectos parecem ser consequência de um estado de coisas que nos últimos
tempos vinha avassalando e tomando conta de seu cotidiano: a angústia e a pressão diante de um mercado de
trabalho competitivo e asfixiante e para o qual ela vinha se preparando na condição de “concurseira” para o serviço
público. Dessa experiência provinham “emoções à flor da pele tanto pela competitividade que a atravessava quanto
pela tristeza de estar só”.
A passagem do tempo como objeto de novas e inusitadas experimentações está na base das táticas de
distanciamento que estamos acompanhando. E, se – de um lado – a retirada pelo silêncio deságua na intensificação e
no valor de todo intervalo ou variação – de outro lado – também o sono (Crary, 2014), como último foco de
resistência diante do aceleracionismo do capitalismo, nos envia ao crucial registro do intervalo, do justo-meio
(Jullian, 2012), momento de suspensão, da suficiência, tão reivindicado pelos “engolfados” pelo tempo sem tempo,
tempo-pressão, todos eles atravessados pelo traçado também já desgastado dos dispositivos tecnológicos.
Os smartphones e as previsões de um mundo ubiquamente subjugado por seus estímulos e demandas vem dando
margem à criatividades adaptadas a um tempo de clamor pela vida off-line. Em meio a essa atmosfera em que a pausa
e a paragem vêm se tornando anseios significativos em contraposição à vida ininterruptamente plugada, a designer
polaca Agatha Nowak criou uma cadeira off-line.Por meio dela é possível se obter a tão aspirada “pausa” do mundo
on-line. A cadeira é feita de um tecido especial que bloqueia o som à nossa volta e que conta ainda com um bolso
especial que é colocado na parte interna deste dispositivo para que ali “repouse” o smartphone, impedido de contatos
com sinais wi-fi e com outros telefones celulares. Ao olharmos a imagem da cadeira – que nos dá a impressão de
assepsia, leveza, maciez e conforto, mas que, ao mesmo tempo expressa uma espécie de abrigo fechado, capaz de nos
manter protegidos do alcance das tentações e assédios do mundo on-line – damo-nos conta do quanto o significado
contemporâneo da dimensão da “pausa”, da “suspensão”, de uma forma, enfim, de époche, ativam e acionam uma nova
sensibilidade estética que encontra fonte de inspiração no próprio design. Este é balizado e situado pelo campo de
ação direcionado à proteção e ao refúgio dos sujeitos frente a uma realidade ruidosa, “viciada” e capaz de disseminar
o atordoamento nas vidas cotidianas ávidas pela paragem, por fazer deserto (Deleuze; Guattari, 1997a).
A ênfase na necessidade de respirar frente ao que a cada dia vem sendo compreendido como o “sufoco” e o
excesso das demandas e solicitações tecnológicas sobre os indivíduos também encontra forte eco em uma prosaica e,
ao mesmo tempo, eficiente propaganda de chocolate: have a break, have a Kit Kat.15 A necessidade de respirar integra-
se aqui ao espírito central de uma campanha promovida pela agência holandesa JWT Amsterdam, cuja intenção é
promover a expansão de inúmeras áreas sem wi-fi em várias partes de cidades europeias. “Kit kat nos dá um respiro
com suas novas zonas sem wi-fi.” A propaganda alude às transformações pelas quais passaram nossas formas de
comunicação – desde à época em que as famílias ficavam noites insones à espera de seus filhos impossibilitados de se
comunicarem com eles para dizerem se estavam bem, até o que seria a “asfixia” dos tempos atuais onde comunica-se
ininterruptamente, 24 horas por dia… Promove-se aqui um deslocamento ainda que temporário das chamadas
ininterruptas dos e-mails, das mensagens de WhatsApp, das redes sociais como o Facebook, o Twitter, e inúmeras
outras circunstâncias de um mundo on-line, que hoje, segundo a propaganda estende-se até o “pico do Everest”. Mais
precisamente a qualquer pessoa é viabilizado um raio de cinco metros de afastamento e bloqueio dos contatos
plugados e aí encontram-se confortáveis bancos circulares de madeira, pintados de vermelho (a cor da embalagem
do chocolate), onde é possível se sentar para ler um livro, um jornal, conversar com outras pessoas e passar algumas
horas respirando e “saboreando” um Kit-Kat…
Felicidade e itinerância: entre a cidade e o campo

Nomadismos de vários tipos, vivências de trabalhos itinerantes em que se conjugam viagem, o prazer de viver e
ganhar dinheiro, projetos de se viver em casas-móveis sob rodas que percorrem o mundo sem sair do lugar,
trabalhar em casa, a transformação de espaços mínimos de 60m² em uma fazenda urbana – configuram padrões
astuciosos de viver que promovem registros de alteração das relações entre espaço, trabalho e felicidade que
merecem ser problematizados.
Intercessões e recombinações entre tempo, espaço, trabalho, dinheiro e viagem evidenciam impactos sensíveis
sobre o plano das subjetividades e, por sua vez, também contaminam reciprocamente essas últimas no que se
relaciona a projetos de vida cujo eixo disparador é a associação com o ideal de felicidade. Como nos diz uma das
jovens que se autodefine como nômade digital: “A felicidade não é um destino, é uma trajetória”. E é, sobretudo, de
definições da subjetividade como trajetividade – deslocada de seu referencial imobilizado e sedentário – que o
manifesto Nômades Digitais,16 escrito pelo casal Eme Viegas e Jaque Barbosa, em janeiro de 2014, vem servindo
para os jovens em questão como baliza orientadora do limiar de novas cartografias da paragem. Paragem, nesse caso,
não se contradiz com o exercício do nomadismo e da trajetividade, pois como nos lembram Deleuze e Guattari, o
“nômade é aquele que não se move, mas que se reterritorializa na própria desterritorialização”. (Deleuze; Guattari,
1997b, p. 6)
O manifesto Nômades Digitais cultiva, curiosamente, padrões muito próximos à postura resiliente e
conciliadora entre o prazer, o trabalho, a felicidade, as viagens pelo mundo e a própria sobrevivência. Esse conceito
foi difundido pelo casal no Brasil por meio de seus três blogs, o Hypeness, o Casal sem Vergonha e o Nômades
Digitais. Não se trata, mais uma vez aqui, de romper com o trabalho ou mesmo de deixar de trabalhar para garantir
o sustento, mas, sim, de trabalhar em busca de um estilo de vida “menorizado”, mais dosado e prazeroso. Ou seja, o
“menos” não expressa uma forma de veto absoluto de um mundo para se entrar em outro, como também podemos
supor para o caso do consumo, a sua diminuição e suficiência, e não a sua interrupção. Uma métrica da suficiência
(Jullien, 2000) encarna, portanto, um conjunto de modos operativos dos quais se lança mão para se lidar com a
iminente finitude da mobilização infinita e do testemunho de seus transbordamentos.
Se a rotina de trabalho e os excessos burocráticos extrapolaram suas medidas, se o tédio se instala diante de
tarefas repetitivas que “desidratam” a criatividade e a expectativa de viver mais, com menos ônus de “tributação”
existencial, por que não compor com a própria precariedade, transformando-a numa espécie de trunfo para os
tempos futuros?
O deslocamento enquanto viagem pelo mundo ou no âmbito do próprio país, associado a formas diferenciadas
de trabalhar e ganhar dinheiro vem assumindo um peculiar papel nas novas agendas dos jovens nômades digitais. No
entanto, sem a internet e a tecnologia, o recurso à viagem ainda permaneceria como mero preenchimento do
tempo livre ou mesmo do tempo das férias. Todo essecontexto se modifica à luz da axiomática proposta do
Manifesto dos Nômades Digitais de “trabalhar viajando e viajar trabalhando”.
Por mais que ainda possa não se ter percebido isso, estamos na crista da onda de um movimento global
que nos próximos anos vai desconstruir a noção do que significa trabalhar e ter uma vida feliz de
verdade. As grandes responsáveis por isso? A internet e a tecnologia.17

Assim raciocina este “jovem nômade” acrescentando com muita ênfase que “a junção dessas duas coisas fez nascer
um novo modelo de trabalho e de vida ao qual cada dia mais pessoas aderem – a possibilidade de poder trabalhar de
qualquer lugar do mundo, desde que haja conexão com a internet”.18
A quase que onipresença de um modo operativo que está em jogo nos redesenhos dessas formas de vida pode ser
acompanhada, por exemplo, no depoimento de um dos autores do manifesto, ao comparar a sua vivência anterior
com as relações de trabalho, quando:
Se trabalhava cada vez mais e se submetia a cada vez mais esforços sem sentido para que se pudesse pagar
e fazer mais dívidas, instaurava-se assim um looping sem fim, também conhecido como a corrida dos
ratos. Se você se reconhece em alguns desses itens, desculpe lhe informar, mas você também é mais um
rato participando de uma corrida sem data para terminar. Igual a nós, alguns anos atrás. Se você não
escapar dela, ela não terá fim.

O looping sem trégua a que Jaque e Eme se referem é facilmente identificável, em nossos termos, ao movimento
cumulativo, do excesso unidirecional da mobilização infinita. E, para se lidar com ele, é importante, em primeiro
lugar, reconhecer o problema, acionar mecanismos de negociação astuciosa para se “evitar ter uma vida cara nos
moldes tradicionais das grandes cidades, e viajar pode ser surpreendentemente barato, se você for inteligente”.
Os nômades digitais usam o câmbio a seu favor e assim se tornam “ricos” sem ter de trabalhar mais. Como eles
conseguem, se perguntam os próprios Jaque e Eme? “Uma das formas mais eficazes é viajar e viver em países nos
quais a moeda valha menos que a moeda na qual eles recebem o dinheiro.” Reconhecer o problema, aprender a lidar
com ele, e, em seguida calcular o interjogo favorável entre as moedas na circunstância em que se está vivendo,
muito mais do que uma escolha (uma opção), encarna a detalhada e atenta observação dos fatores em jogo naquela
situação e que visam propiciar para os sujeitos soluções de adequação que são episódicas e contingenciais.
Crise e precariedade caminham na direção de inúmeras combinatórias que vêm acionando soluções muitas vezes
contingentes e temporárias, outras vezes capazes de gerar condutas mais estáveis no interior das instabilidades e das
aporias que cercam as economias monetárias e vários de seus desdobramentos… Entre esses, vêm se tornando
comum as iniciativas de se prescindir da moeda em si como elemento de troca em vários tipos de interações entre
os sujeitos. Assim, acompanhamos iniciativas tais como o empréstimo de produtos domésticos (como um saco de
açúcar solicitado ao vizinho), o escambo e as permutas entre “fazeres” e competências específicas, tais como, por
exemplo, uma aula de inglês que se “paga” com uma prática de meditação entre duas pessoas, demonstram sobre o
quanto é possível prescindir do recurso à moeda propriamente como valor de troca.
Viajar por diferentes países cuidando das casas dos outros em troca de alojamento, por exemplo, é o que
preconiza o site House Sitting19 que tem conquistado jovens viajantes de todo o mundo, sobretudo pela sua proposta
para lidar com a precariedade econômica associada ao prazer de viajar e conhecer o mundo. Nesse novo arranjo, a
troca ou o empréstimo assumem o lugar da veiculação pecuniária representada pela noção do aluguel e intensifica-se
a região subjetiva dos “cuidados”, (to take care), na direção de uma boa permuta de favores.
Os anfitriões estão ausentes e delegam os cuidados de sua casa – que vão da limpeza, manutenção geral,
alimentação e passeios com o cachorro etc. – ao novo “hóspede” viajante. Ao longo dessa relação viajantes/anfitriões
desdobram-se redes simbólicas de trocas que passam ao largo da conotação de um serviço gratuito de mão de obra e
procura-se “fechar um acordo com aqueles que nos parecem felizes também pela experiência de nos receber e de
nos proporcionar uma boa estadia, e não apenas algo que se assemelhe a uma operação comercial”. Assim se
manifestam Carlos e Larissa, que deixaram o Rio de Janeiro para atravessar a Nova Zelândia durante um ano,
praticando House Sitting.
Uma curiosa discussão travada entre Leonie Müller,20 uma inquilina alemã de 23 anos, e seu senhorio acionou na
jovem a decisão de sair de casa e, simplesmente, não reproduzir a busca por outro apartamento. Leonie deu-se
conta de que não mais queria viver em canto nenhum. A compra de um passe de trem, que lhe permitia por cerca
de 300 euros usar livremente os transportes ferroviários de seu país redesenhou seus planos e fez do próprio trem a
sua nova residência. A diferença entre o que pagava de aluguel e a inusitada opção movente foi-lhe favorável e ainda
permitiu que lhe sobrasse alguma poupança e menos contas a pagar. Mantendo consigo uma única mochila onde
guardava seus pertences, esta jovem alemã usava os sanitários dos trens para tomar banho. Nada disso manifestava-se
para ela como problema: “Sinto-me mesmo em casa e posso visitar muito mais amigos e família. É como estar
sempre em férias. Leio, escrevo, olho pela janela e conheço pessoas interessantes a toda hora”.
Essa é mais uma situação em que, do somatório de precariedades que se apresentam extrai-se um padrão de
oportunidade de manejar a vida, que a reformata com ganhos, com uma “força-invenção” (Pelbart, 2003), capaz de
dar origem a outros micromundos possíveis. Os estudos e os trabalhos para a faculdade também não são
interrompidos, pois não se lida aqui com nada próximo do rompimento ou da inconsequência, e a jovem alemã
carrega consigo computador, tablet e alguns fones de ouvido que lhe permitem isolar-se do barulho no vagão e
manter sua concentração aplicada. E isso não é tudo, pois de toda essa experiência Leonie fez frutificar seu blog e
uma página no Facebook que lhe permitiram escrever uma espécie de tese com o objetivo de questionar os estilos
de vida: “Quero inspirar as pessoas a questionarem os seus hábitos e aquilo que consideram normal”.
No entanto, ela não deixou de encontrar críticas e resistências da parte de colegas quando estes souberam que
ela vivia em um trem, e com isso Leonie “virou”essa experiência inédita em trabalho acadêmico. Em geral ela viaja
durante a noite, mas também dorme em casa de familiares ou do namorado sempre que consegue. O diagrama de
uma desmobilização tática que se assenta em sucessivos modos operativos do “virar” pode ser acompanhado por
meio do próprio depoimento de Leonie quando alude à composição que, por fim, conseguiu realizar com o
namorado: “Numa relação normal, estaria numa relação a distância com ele, mas viver em um trem permite-me vê-
lo com muito mais frequência...”

Ubiquidades tecnológicas e fluxos migratórios

A condição de migrante abriga sentidos espaciais distintos que tanto podem ser observados no âmbito do
deslocamento geográfico em si quanto naquele efetuado no interior do próprio sujeito. Este último realiza
transformações em sua composição subjetiva, revendo-se e focando composições outras na direção do “virar”
pessoal, da mesma forma que também acompanhamos migrações e “traslados” de um conjunto de valores da tradição
para algo “alternativo” a esta. Nesse caso, situam-se, embora com modulações e adaptações de várias ordens
conferidas ao sentido de “alternativo”, as práticas da educação fora das escolas.
As práticas do unschooling e do home schooling são, respectivamente, compreendidas como um conhecimento que
é pesquisado de acordo com o interesse da criança e como aquele que se baseia em um roteiro mais definido sobre a
apresentação de conteúdos de certa forma ainda remetidos a livros baseados no currículo formal escolar.
A circunstância da “deserção” (Deleuze; Guattari, 1997a) que já não se organiza por intermédio do escape ou da
resistência, mas, sim, como um ato de fazer deserto (Deleuze; Guattari, 1997a), de criar brechas, de romper com o
regime de urgência do capitalismo, é capaz de encontrar fértil analogia com o unschooling enquanto uma demanda
contemporânea – ainda que mais restrita aos setores médios – de acesso ao conhecimento. No entanto, não se trata
de resistir-desistir do padrão convencional de ensino, romper ou opor-se a ele, mas, sim, engajar-se no problema
educação em si. Atravessá-lo, percorrê-lo, como nos diz uma das principais preconizadoras desta prática no Brasil:
“Desescolarização não é uma proposta de educação alternativa, e sim, uma alternativa à educação. Desescolarização
não é a recusa de estar na escola. É a recusa de um caminho único”.21 É, pois de composição resiliente e tática, de
manuseio fino que também se trata aqui, explora-se, tateia-se o campo sem com ele estabelecer relações de
oposição, de antagonismo.
A configuração de “outros mundos possíveis” (Lazzarato, 2006), por mais que passe pelo questionamento de
padrões relacionais, não descarta ou erradica padrões de vida, mas procura fazer uso deles de maneira diferenciada.
Assim, existe aqui uma crítica a um conjunto de modos de funcionamento mainstream, mas na direção de uma
espécie de retomada de um ideal de educação que nos lembra a condição do preceptor e sua forma de transmissão
de conhecimentos, embora adaptado a circunstâncias e traços muito marcantes da contemporaneidade. São novas
composições que atentam para um manuseamento de abordagens algo sutis, próximas à dimensão de (re)existência,
da chegada a um justo-meio, onde o deslocamento em questão não fere nem quebra as propostas de referência
tradicional sobre o aprender e a transmissão de conhecimentos, mas remaneja-os à luz de um outro diapasão. Carla
Ferro investe-se de tal atmosfera quando diz: “Alguns princípios orientadores da Base Nacional Comum Curricular
são tão bons que só podem ser observados fora da escola...” (Facebook, 17 de setembro de 2015).
Apesar de ser possível acompanhar no âmbito das famílias médias brasileiras uma maciça reação à
desescolarização – desenhada sobretudo no eixo das gerações avós-netos, que vem provocando até mesmo situações
de afastamento e rompimento de laços intrafamiliares – não podemos deixar de lado a dimensão de produtiva
desorganização manifestada por esse fenômeno. Variáveis tais como: posturas competitivas, uma forte preocupação
com a diferenciação de gêneros na hora de brincar, precocidade de planejamentos em direção ao vestibular são
algumas entre várias outras razões pelas quais vem se revendo hoje os destinos da educação formal no interior da
escola. A educação domiciliar (home schooling), à qual pode ser conferido um papel intermediário entre a
desescolarização e a socialização escolar, já revela em si a entrada em cena de componentes de modulação e
adaptabilidade, variantes de tons e de circunstâncias pessoais que caminham na direção das composições situadas.
Na lógica das combinações arbitrárias, quando é possível fazermos escolhas que não mais “desescolhem” outras, a
empresária social paulista Sabrina Bittencourt, 34 anos, viu seu mundo ser virado de cabeça para baixo quando seu
filho mais velho, Gabriel, de 8 anos, pediu para sair da escola. “Ele já havia passado por oito instituições”, nos diz
Sabrina, “e seu sonho era desenvolver um trabalho sobre alimentação infantil”.22 Ter escolhido para os seus três
filhos o regime formal de educação – que na época praticavam em Barcelona, onde moravam – não impediu a
empresária paulista de enviar seu filho mais velho para estudar durante seis meses em uma área rural do Rio Grande
do Sul: “Ele precisava aprender com os trabalhadores da terra sobre o ciclo dos alimentos (semear, nutrir, colher,
preparar)”. Referindo-se possivelmente à ideia do especialista para quem a noção de carreira restringe e atrasa o agir
no mundo, assim como contrapondo o “espaço de dentro” – o da escola, ao de fora – o do mundo, Gabriel nos diz
que “não vai conseguir realizar seu sonho de levar alimentação saudável para as crianças de todo o mundo de lá de
dentro. Não posso esperar virar médico para conseguir ajudar as pessoas” (grifos nossos). Mãe e filho constituíram
uma eficaz parelha na direção da exploração das possibilidades de aprendizado mútuo fora do ambiente consagrado
para isso.
O nomadismo é outra característica central da família que vive entre São Paulo, Barcelona “ou qualquer lugar
onde consigam arrumar uma casa, de Indaiatuba a Londres”. Ao desprendimento geográfico e espacial sucede-se o
registro da vivência colaborativa para o aprendizado, além da clareza e da explicitação de suas propostas, sempre
abertas e mutáveis. Embora tal projeto pareça nos remeter, mais uma vez, para as “pegadas” da resistência e mesmo
do legado contracultural, ratificamos o seu distanciamento de tais referências ao acompanharmos o modo de operar
que o acolhe e sustenta. Como frisa Sabrina Bittencourt, o primeiro passo do método é mapear os sonhos das
crianças e entender a individualidade, a vida dos filhos como distinta da dos pais. Partindo dos quatro elementos é
elaborado um plano que visa construir estruturas colaborativas para o aprendizado (...) Começam estudando
alimentação, procurando alternativas orgânicas e estudando processos produtivos. Depois trabalham o corpo,
fisiologia e elementos da biologia. Na próxima etapa, a proposta é tentar compreender a cidade. Da cidade, o
projeto vai para o mundo e sua história.
Outro desenho migratório desmobilizador, dessa vez de natureza propriamente geográfica e espacial, é aquele
que vem se operando entre os chamados jovens criativos britânicos que, em busca de cidades mais amigáveis e
acessíveis financeiramente, vêm transformando Berlim em uma nova e atraente opção para se viver.23 Alternativas
habitacionais como antigos prédios outrora ocupados por fábricas, pequenas ruas laterais situadas em áreas afastadas
dos grandes centros desta capital revelam-nos a aporia do liberalismo em articular a relação entre fluxos
econômicos, tecnológicos e sociais com a produção de subjetividade (Lazzarato, 2014).
Tomamos aqui como referência o conjunto de razões e de justificativas elencadas pelos jovens britânicos para
decidirem partir. Dani Berg, atualmente, “pilota” uma plataforma de comida que inclui séries de performances e um
café, todos situados no prédio de uma antiga fábrica de chaveiros. Sua decisão de deixar Londres foi principalmente
financeira. Diz ela que trabalhava sete dias por semana e pagava 800 libras para dividir um apartamento em
Lewisham. A precarização de sua condição obrigava-a a recuar cada dia mais na direção do sul de Londres, até o
momento em que ela sentiu que precisava deixar inteiramente a cidade... “Sou parte de um grande êxodo”, diz ela,
alegando conhecer enorme número de pessoas que foram pouco a pouco apartando-se da região leste para a sudeste
de Londres até fixarem-se definitivamente em Berlim. Tal mancha movediça de jovens vem distribuindo-se ao longo
das recentes práticas de co-working, estratégias de absorção desta comunidade de “expatriados”, que é reveladora do
maciço crescimento do número de nômades digitais.
Aos inúmeros depoimentos desses jovens “acuados” espacial, existencial e economicamente integra-se a
justificativa de um círculo ininterrupto de exaustão e cansaço, expressão da falência de um modo de vida “mais”.
“Você vai para casa, para o seu oneroso apartamento, mas simplesmente termina apenas dormindo nele e, então,
volta para trabalhar.” Assim se justifica um jovem inglês ao comparar essa situação com aquela que hoje conseguiu
conquistar em Berlim, onde seu tempo é estendido e horizontalizado, movendo-se por espalhamento, alargando e
encolhendo as distâncias que são a todo momento por ele remanejadas e recriadas.
A geração alcunhada de millennials,24 ou geração Y, também encarna formas de lidar com a precariedade de
espaços urbanos e exiguidade econômica que vem alterando comportamentos nas frentes de deslocamento e
reespacialização desses jovens. Principal geração da força de trabalho americana, capaz até mesmo de eclipsar os baby
boomers,25 os millennials estão voltando para as cidades, revertendo as antigas décadas de maciças correntes de
suburbanização que até então marcavam suas opções de ocupação dos espaços.26 É, pois, nesse desenho de retomada
das cidades que essa geração tem marcado sua singularidade e seus ingredientes de imaginação e de criatividade. Na
nova pauta de estada nas cidades, os millenials vêm procurando, a cada dia, se distanciar dos clássicos nichos de um
estilo de vida oneroso e pleno de acenos às mais variadas formas de consumo e de gastos exorbitantes. Ao contrário
de viverem um estilo de vida mundano e perdulário, geralmente vigente em tais áreas, esses jovens vêm traçando e
alocando suas preferências de moradia em regiões que não são tão centrais, localizadas nos arredores menos
dispendiosos e onerosos em relação às áreas centrais da cidade. Esse movimento vem procurando facilitar para esses
jovens a equação entre seus fins e seus trabalhos, procurando tornar a vida mais adequada ao escopo de redução
orçamentária que passam a ter diante de si.
Além do que acompanhamos para os millenials sobre seus recentes reajustes espaciais e geográficos no âmbito do
traçado urbano, um outro aspecto que trabalha pela tomada de distância e pela opção das “retiradas” dessa geração
completa-se no campo das tecnologias e mais propriamente na tribuna do Facebook.27 “Uma ubiquidade
indesculpável” é o modo como essa geração vem se referindo às razões que outrora moveram sua incondicional
adesão ao Facebook, e que, nos dias de hoje, justificam o seu “desembarque” frente à onipresença trazida por essa
ferramenta. Observa-se, portanto, a condição da ubiquidade adquirindo tonalidades de exaustão e cansaço para tal
geração, na medida em que ela atravessa e inclui em seu escopo, sem exceções, um amplo conjunto de “sujeitos”
com os quais esses jovens não mais desejam manter socializações e contatos indiscriminados e permanentes:
parentes, professores e futuros empregadores. Os millenials vêm se referindo a uma sensação que assemelha-se ao
desnudamento de sua privacidade frente a tais agentes, e portanto, como eles nos dizem, passam agora a postar
menos e sobre assuntos não mais triviais. Um dos representantes desta também chamada geração Y sugere que tal
movimento vem se dando, talvez, pela razão de que eles estão se tornando mais velhos e mais maduros, assim como
pelo fato da onipresença do Facebook viabilizar o acesso de todos às suas vidas… Isso os forçou a criar e a manter
“astuciosamente” a sua persona pública: Millenials. E finalmente, essa retirada assume sua “derradeira” expressão,
através do que revela um dos jovens desta geração:
Muitos de nós ainda passeamos pelos nossos murais em piloto automático, mas regra geral abandonamos
as redes sociais para “arrumar a casa” e arejar as ideias. Procuramos conexões significativas e autênticas,
e rejeitamos as opiniões dos outros em prol da dos especialistas. Acabou-se a era do: “Se não está na
internet é porque não aconteceu”.28

As recentes iniciativas de deslocamento de famílias das áreas urbanas das grandes cidades para o campo aliam-se
e estão na mesma faixa de sintonia com os retiros de silêncio a que já aludimos, assim como com os crescentes
movimentos do plantar a própria comida, a permacultura, o tratamento do lixo etc. Não menos afinados com tais
práticas de “tomada de distância”, elencam-se o “desplugar” temporário ou mais contínuo, a menorização do
consumo, o revalorizar emergente da quietude, da pausa, do “zerar”. Esta última condição vem se convertendo em
frequente metáfora para o repensar decisivo sobre a aceleração e os estados de pressão permanente a que estão
submetidas as condições de vida de muitos desses jovens. Em uma de nossas entrevistas topamos com Paola, jovem
vinculada às novas práticas de parto humanizado em que ela desempenhava a função de doula.29 Surpreendeu-nos o
fato de que era a segunda vez que a encontrávamos e muito nos impactou o fato de que nesse segundo encontro ela
havia raspado completamente o seu cabelo e estava careca. À nossa surpresa, veio incontinente a pergunta: mas por
quê? E ela respondeu-nos com extrema naturalidade: “Resolvi zerar!”
Mencionada com relativa frequência entre os jovens com os quais convivemos, a circunstância do zerar abre-se
para uma instigante polissemia de perspectivas desmobilizadoras e que são pertinentes às tipologias de
deslocamentos e tomadas de distância sobre os quais nos debruçamos neste capítulo. Se existe uma tônica do zerar
ela revela-se sob a forma, por exemplo, de se “limpar a área” para ir novamente adiante, estar só durante algum
tempo, zerar para ir mais à frente, zerar o cronograma, reduzir... Não se trata exatamente de se chegar ao zero, mas
de se ter em mente uma “modulação”, que não implica uma mudança drástica ou em uma ruptura, mas mirar
brechas que sejam capazes de gerar algum acúmulo de energia para se ir adiante com cautela, para uma condição
que garanta a tomada de fôlego. Zerar, enfim, não consiste em se apagar um trajeto, mas possivelmente em se
conquistar uma espécie de esvaziamento “tático” para se poder avançar de modo reconfigurado, redesenhado. “Tentar
chegar ao nada, para se ficar no menos”, como se referiu um dos jovens com quem conversamos na época em que
resolvera partir para o seu retiro de silêncio.
Encontra-se também com frequência opções de vida cujo eixo é dado por encarar a solidão de modo positivo na
direção, por exemplo, da preservação da introversão como um engajamento no mundo com tonalidades próprias,
como aquelas que se verificam nas práticas dos “retirantes”.
Estilos de vida tradicionais deslocam-se para a montagem de espaços alternativos que se estendem da forma de
se criar filhos, aos novos formatos de Casa-Escola. Esses últimos vêm encarnando coletivos de pais e mães que têm
como objetivo construir espaços-tempos educativos e de cuidado para crianças e pais que privilegie o
desenvolvimento corporal, cognitivo e espiritual de cada participante dessas experiências, respeitando, assim, os
ritmos individuais, a diversidade e estimulando a convivência com o coletivo e com a natureza.
Retirantes de todas as ordens, deslocamentos de todos os matizes, naturezas, sentidos e direções, tomadas de
distâncias diante de realidades que, gradualmente, parecem soçobrar.
A singular relação que se estabelece com o próprio tempo, seus arranjos, suas revisões, o estabelecimento
paulatino de uma rota de chegada que se monta ao largo da mobilização infinita, são movimentos que a cada dia nos
permitem perceber um inusitado cardápio de formas de viver que vem merecendo reflexões continuadas de nossa
parte.
Nessa adesão ao tempo por parte dos jovens que acompanhamos e na sua simultânea tomada de distância frente a
ele residiu o eixo central que procuramos perseguir ao longo deste capítulo.
No encaminhamento das conclusões não podemos deixar de insistir sobre a “dobra” da criatividade singular e
indivisível que tem lugar exatamente no ponto de inflexão entre a aceitação do tempo que se tem diante de si –
incondicional e inescapável – e a medida de seus desajustes. Convivemos e lidamos com jovens que fazem uso e
trabalham exatamente em suas desmobilizações nas fímbrias desta quebra, desta rachadura entre o tempo a que se
pertence e a não coincidência de adesão a ele. Não é inexpressivo, portanto, o manancial de mundos possíveis, que
acompanhamos neste capítulo e cuja origem deriva do sentimento de inatualidade expresso por jovens que, no
entanto, ao mesmo tempo repaginam suas vidas e seus horizontes retirando do anacronismo como combustível a
medida prospectiva de sua contemporaneidade.

12
BLOCH, Arnaldo. “Facebook Detox”. O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/facebook-detox-13387509. Acesso em: 12 abril 2016.
13
ESSENFELDER, Renato. “Três meses sem Facebook”. O Estado de São Paulo. Disponível em: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/renato-
essenfelder/tres-meses-sem-facebook/. Acesso em: 12 abril 2016.
14
BRUM, Eliane. “O inimigo sou eu”. Época. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI4711-15257-7,00-
O+INIMIGO+SOU+EU.html. Acesso em: 12 abril 2016.
15
Comercial Kit Kat #MEUBREAK. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zoj1p04uf1U. Acesso em: 02 junho 2016.
16
Manifesto Nômades Digitais. Disponível em: http://nomadesdigitais.com/comece-por-aqui/. Acesso em: 13 abril 2016.
17
Idem.
18
Idem.
19
SOTTOMAYOR, Francisca. House Sitting: Quando se viaja pelo mundo a cuidar da casa dos outros. Jornalismo Porto Net. Disponível em:
http://jpn.up.pt/2015/03/17/house-sitting-viaja-pelo-mundo-cuidar-da-casa-dos-outros/. Acesso em: 13 abril 2016.
20
Diário de notícias. Férias todo o ano. Esta alemã deixou a casa para viver no comboio. Disponível em: http://www.dn.pt/globo/interior/ferias-todo-o-
ano-esta-alema-deixou-a-casa-para-viver-no-comboio-4742287.html. Acesso em: 15 abril 2016.
21
FERRO, Carla. Extra Online. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/educacao/educacao-360/desescolarizacao-nao-educacao-alternativa-uma-
alternativa-educacao-defende-pesquisadora-carla-ferro-17476079.html. Acesso em: 15 abril 2016.
22
PORTILHO, Gabriela. Educação fora da escola. Revista Crescer. Disponível em: http://revistacrescer.globo.com/Voce-precisa-
saber/noticia/2015/04/educacao-fora-da-escola.html. Acesso em: 15 abril 2016.
23
KAMRADT, Johanna.Creative young Brits are quitting London for affordable Berlin.The Guardian. Disponível em:
http://www.theguardian.com/world/2015/aug/01/creative-young-brits-quit-london-affordable-berlin. Acesso em: 15 abril 2016.
24
Termo utilizado para se referir à geração de pessoas nascidas entre os anos de 1977 e 2000. São conhecidos por serem imediatistas, informais e pelo uso
frequente das novas tecnologias da informação e comunicação.
25
Expressão utilizada para se referir à geração de pessoas nascidas entre os anos de 1945 e 1965. São conhecidos por valorizarem substancialmente o
crescimento profissional e a aquisição de bens materiais.
26
MISRA, Tanvi. Most Millennials Don’t Live Downtown. Disponível em: http://www.citylab.com/housing/2015/05/most-illennials-dont-live-
downtown/393269/. Acesso em: 27 abril 2016.
27
MATYSZCZYK, Chris. Why Millennials have stopped loving Facebook. Inc.edu. Disponível em: http://www.inc.com/chris-matyszczyk/why-
millennials-have-stopped-loving-facebook.html. Acesso em: 25 abril 2016.
28
HELPERN, Jane. Porque é que os ‘millenials’ estão a apagar os seus perfis nas redes sociais? Vice. Disponível em: http://www.vice.com/pt/read/porque-
e-que-os-millenials-estao-a-apagar-as-suas-contas-nas-redes-sociais. Acesso em: 27 abril 2016.
29
De acordo com o site Doulas do Brasil, o termo aplica-se às mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto.
Disponível em: http://www.doulas.com.br/oque.php. Acesso em: 29 abril 2016.
Nas malhas da solidão-ação – vivências jovens da solitude
Raphael Bispo

O nosso interesse específico de investigação neste e no próximo capítulo em torno do tema das desmobilizações
contemporâneas ancora-se sobre a ampliação e a ressignificação da condição de solidão entre os jovens.
Procuraremos avançar sobre as conotações de invenção, criação e potência dos modos de vida solitários da
juventude, percebendo o sentimento da solidão como mais um importante modo de paragem e de distanciamento
nos dias atuais tal como outros apresentados ao longo desta obra.
Para isso, pretendemos tornar visível um espectro de funcionamentos e formas de experimentar o mundo pela
via da solidão a partir de algumas grandes manchas etnográficas por nós estudadas: neste capítulo, conheceremos
alguns movimentos solitários a partir dos “afastamentos temporários” e da revalorização da “quietude” pelos jovens,
seja por meio da frequência a espaços de retiros, seja nas iniciativas de “saída da cidade” aliada ao resgate da vida
rural (temáticas debatidas anteriormente de forma mais detalhada, mas agora pensadas aqui pela via da solidão). No
próximo capítulo – intitulado “Erótica das distâncias: por uma ética do bem viver junto” – abordaremos a ideia do
estar só tendo como base as discussões da juventude sobre seus relacionamentos afetivo-sexuais e como tais relações
são hoje tecidas por meio das novas tecnologias de comunicação e informação.

Solidão e juventude: uma articulação improvável?

Trata-se, portanto, de uma nuvem difusa de experiências nas quais pudemos reconhecer o ativar de uma solidão
temporária entre os jovens, uma espécie de “solidão-ação”. E é justamente essa uma das razões para a execução e
investigação desses distintos campos etnográficos mencionados. Queremos contribuir neste livro sobre as
desmobilizações para a fuga de uma visão um tanto tendenciosa sobre a solidão que existe em nossa sociedade,por
meio, principalmente, da consolidação de um olhar mais apurado e multifacetado sobre do que se trata estar
sozinho nos dias de hoje. A visão consensual de que a solidão quase não existe entre jovens– como mencionado na
Introdução desta obra – acaba por tornar invisível um conjunto de fenômenos importantes nos dias atuais
diretamente atrelados a tal experiência. Por isso merecerá maior atenção e esforço de pesquisa de nossa parte os
movimentos que reformulam ou matizam a visão “sociável” da juventude, sempre entendida como gregária e em
movimento. Portanto, os retiros de silêncio, as situações de saída para o campo (capítulo Nas malhas da solidão-ação
– Vivências jovens da solitude) bem como as histórias de amor e os diferentes usos das redes tecnológicas (capítulo
“Erótica das distâncias – por uma ética do bem viver junto) tornam-se aqui as dimensões diferenciadas, porém em
articulação, que nos permitirão observar a solidão por outro viés menos maniqueísta.
Cabe também destacar que ao longo da pesquisa de campo esbarramos em inúmeras dificuldades metodológicas
para construirmos uma etnografia da solidão desmobilizada. Isso por conta da ideia um tanto “indigesta” que
rotineiramente as pessoas em geral fazem de tal sentimento. Sempre foi muito comum quando conversávamos com
uma ou outra pessoa sobre os nossos temas de pesquisa – seja ela “nativa” ou não – ouvirmos certas inquietações e
desconfortos como: “Olha, eu não sofro disso! Procura outra pessoa” ou “Eu não sou solitária, não, hein?”.
Ressaltavam-se nesses comentários uma dimensão curativa da solidão e uma espécie de fardo que poderia vir a pairar
sobre os ombros das pessoas e que nenhuma delas desejaria carregar. Essa visão negativa da experiência do estar só é
constitutiva de nossa cosmologia e será mais bem apresentada a seguir a partir de uma bibliografia especializada.
Todavia, cabe aqui destacar o quanto o eixo em torno da solidão no contexto das desmobilizações juvenis aparecia
assim para nós a todo tempo como um campo instável, arredio e de difícil composição conforme íamos desenhando
nosso tema coletivo de pesquisa.
É por isso tudo que podemos afirmar de antemão que temos aqui menos capítulos conclusivos e mais uma
experimentação sobre a solidão. É assim que definiríamos o que o leitor vai encontrar ao longo destas páginas. Mais
interessante do que apresentar as conclusões (se é que existem) sobre do que se trata a solidão juvenil hoje, o que
importa são os percursos pelos quais se tentou armar um campo de investigação, as questões que surgiram, as
perguntas que, no andamento deste trabalho coletivo, redirecionaram a pesquisa, tanto quanto os parâmetros
teóricos para lidar com as questões que se impuseram nesse percurso de prospecção dos mundos juvenis
desmobilizados. Como mencionado na Introdução, foi justamente o mergulho nas vidas juvenis solitárias que nos
permitiu compreender de maneira mais densa e profunda os processos mais amplos de desmobização que alguns
jovens têm hoje amplificado em suas práticas.
Este capítulo está estruturado da seguinte maneira: em primeiro lugar, debateremos como o sentimento de
solidão tem sido tratado pelas Ciências Sociais em geral, percebendo o quanto tal abordagem reafirma certos
imaginários acerca da “positividade” ou “negatividade” dos estados solitários, além de compreendê-la como um
sentimento que acomete o sujeito ou que parte de sua vontade tal como um projeto de vida. Em seguida, daremos
espaço para os dados que obtivemos junto a esses dois campos etnográficos específicos que nos garantiram mesmo
que de maneira um tanto instável refletir sobre tais afetividades.

Entre solidões “acontecidas” e “deliberadas”

Em nossos levantamentos bibliográficos sobre a experiência solitária no âmbito das Ciências Sociais, percebemos um
conjunto de interpretações bastante recorrente entre os autores analisados que buscava hierarquizar e valorizar as
distintas maneiras do estar só, o que só reforça a dimensão moral de tal sentimento tão bem lembrada por Wood
(1986). Faço referência aqui ao juízo de valor – do pesquisador e/ou de seus interlocutores – acerca do que é estar
sozinho, algo que se distribuía e trafegava entre qualificações positivas e negativas atribuídas ao estado de solidão,
acompanhada de uma diferenciação crucial que se estabelece entre dois modos de experimentá-lo: enquanto uma
solidão que acomete um sujeito (que chamaremos aqui de uma solidão acontecida) ou enquanto um ato de deliberação
ou mesmo um estilo de vida que é buscado pela pessoa (solidão deliberada). O primeiro modo corresponde
geralmente à imagem mais convencional e compartilhada pelo senso comum da solidão, ou seja, como uma
experiência geradora de sofrimento e mal-estar, a ser superada ou evitada a todo custo. É certamente por
compartilhar tal visão de solidão que muitos de nossos interlocutores se sentiam um tanto indispostos quando
apresentávamos nosso tema de pesquisa. O segundo modo assinala uma experiência que predominantemente é
considerada produtiva e associada a uma escolha. Em todos os trabalhos levantados, essas duas facetas poucas vezes se
mostravam articuladas. Estar só aparecia sempre como sendo algo “bom” ou “ruim”, “deliberado” ou “acontecido”.
Wood (1986), em seus estudos, por exemplo, toma sem questionamentos a solidão como sendo um sentimento
negativo, que deve ser evitado, e que se baseia em uma “persistente sensação de separação do outro” (Wood, 1986,
p. 189). Mesmo tentando fugir do senso crítico comum que se dissemina em nossa sociedade quando percebemos
alguém como “sozinho” – ao abordar o estado solitário por meio de argumentos em torno da “construção cultural”
dessa emoção – a autora não deixa de definir a solidão como uma “falta” ou “ausência” de possibilidades de
compartilhar com outras pessoas. O sujeito solitário não só não compreende os demais ao seu redor e deles afasta-
se, como também não é por eles compreendido. A solidão apareceria nessa intercessão, em que ambos os lados se
veem como refratários: aparentemente não se querem próximos, tendendo a evitar-se. Para Wood, estar só é
necessariamente algo negativo e que acomete o sujeito (uma solidão acontecida, portanto). Pais (2006) também
consolida em sua pesquisa essa via um tanto negativa da experiência solitária. “Se a solidão é um sentimento de não
pertença ao mundo, de abandono e desvinculação, muitas vezes é a dita ‘sociedade’ que lhes vira as costas, numa
‘renúncia’ feita de ‘derrotismo’, ‘quietismo’ e ‘resignação’” (Pais, 2006, p. 66). Tanto que boa parte de suas
experiências etnográficas em Portugal falam de situações limites de solidão, de conflitos familiares e afastamentos
repletos de ressentimentos. Sendo assim, as análises de Wood e Pais são pertinentes e relevantes, mas apontam para
uma faceta limitada desse sentimento. Elas pouco nos dão espaço para pensarmos a solidão como algo deliberado,
escolhido, mas apenas como uma experiência que acomete o sujeito.
Da mesma forma, a partir de entrevistas com segmentos médios espanhóis no final da década de 1980, Béjar
(1993) indica que o tema da solidão aparecia curiosamente mais entre os jovens do que os adultos e idosos por ela
pesquisados. Eles temem em demasia a solidão acontecida, ou, nos termos da autora, a “solidão como destino” (Béjap,
1993, p. 215), ao falarem sobre a ausência de uma companhia amorosa desejável pela vida toda, mas,
principalmente, quando pensavam sobre sua futura emancipação familiar.Os jovens que viveriam na casa dos pais
temeriam a solidão por verem a família como “segurança afetiva”, “refúgio de um mundo difícil”. A emancipação dos
pais surge assim mais como uma disposição interna do que de falta de possibilidades: tanto que a casa é vista por
esses jovens entrevistados como um lugar do “ruído” (das brigas e interações familiares) em contraposição ao
silêncio da vida solitária, compreendida pela ótica do “vazio” existencial e da ausência de outros. Nessa visão
negativa da solidão entre os jovens, estar só não é privacidade, esfera de construção de um eu ideal, mas, sim,
ausência de contato desejado, marco de uma necessidade e não de independência.
Em uma outra pesquisa sobre a solidão e o envelhecimento (Bispo, 2014 e 2016), eu mesmo também busquei
apresentar diferentes facetas disso que estou nomeando aqui de solidão acontecida. Ao investigar a trajetória de vida
de um conjunto de antigas dançarinas eróticas hoje com mais de 60 anos, as chacretes, dos programas televisivos de
Abelardo Barbosa, o Chacrinha – ao longo da pesquisa de campo pude acompanhar variadas experimentações da
sensação de estar só por parte de algumas dessas dançarinas. Deparei-me assim com inúmeras e diferentes
experiências de solidão na velhice, relatadas a mim sempre como algo que elas não gostariam de estar vivenciando.
Portanto, eram casos típicos de solidão acontecida estes de minha etnografia: rupturas amorosas, conflitos familiares,
o controle do marido, a ausência de amigos na “terceira idade”... Várias eram as “razões” e “causas” de um
sentimento difuso, não desejado e de bastante incômodo para as chacretes. Isso porque, como revelei mais
detalhadamente em outro texto (Bispo, 2014), considerava a solidão um tema “ausente-presente” na bibliografia
socioantropológica brasileira especializada no envelhecimento. Esse paradoxo se explica, em síntese, porque a
solidão tornou-se um assunto mais a ser confrontado do que pesquisado pelos especialistas. Rever os estereótipos
negativos da velhice, derrubando assim o que poderíamos chamar de “o mito da velhice solitária”, fez com que a
solidão tangenciasse uma ou outra passagem dessas pesquisas, sempre abordada de maneira superficial, emergindo
principalmente como tópico a fim de ser confrontando, mas nunca pesquisado. A valorosa luta contra certos
simplismos não pode significar, porém, a negligência de uma temática. Minhas pesquisas, com isso, procuraram
jogar um pouco de luz sobre essa área ainda nebulosa da solidão acontecida na velhice, focada nos constrangimentos e
negatividades de um sentimento que é bastante variável e nem sempre tão “acontecido” assim, como veremos ao
longo deste artigo a partir das vivências de certos segmentos juvenis.
Entretanto, se por um lado a solidão acontecida parece ter dominado as conclusões de pesquisas sobre o tema
durante um bom tempo, uma série de outros trabalhos buscou enfatizar justamente o contrário: estar só nem
sempre é algo ruim para o indivíduo. A solidão pode ser deliberada, um projeto de vida, algo considerado com uma
escolha pessoal, portanto, nem sempre vinculada ao sofrimento. As máximas “antes só do que mal acompanhado” e
“estar sozinho não é ser sozinho” parecem sintetizar de maneira informal as argumentações centrais desses trabalhos.
Foi o que Martins (2010 e 2015) procurou muito bem sublinhar em sua pesquisa sobre o modo como mulheres de
camadas médias do Rio de Janeiro conferem significados às suas experiências de morarem sós em uma grande
metrópole. O foco analítico da autora era a forma como cada mulher entrevistada vinculava suas trajetórias à
distinção entre a experiência de “estar só” e “sentir-se só”, ressaltando assim a forte vinculação com o tema do
individualismo metropolitano de tais segmentos sociais que uma importante bibliografia já apontava como sendo
marcante do ethos das camadas médias cariocas (Velho, 1981; Duarte, 1986).
Segundo Martins, a vontade/escolha eram as palavras síntese de um projeto de vida em que morar só tornava-se
algo valorizado. A construção de um espaço de privacidade como característica do exercício da vontade dessas
mulheres era um dos discursos mais recorrentes nas conversas tecidas pela autora com suas interlocutoras: organizar
o tempo do lar, cultivar hábitos e definir gostos na orquestração de seus espaços privados eram tópicos enfatizados.
Na época, diz Martins, os resultados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) indicavam pela
primeira vez que no Brasil o número de domicílios habitados apenas por uma pessoa tinha superado o de domicílios
com cinco ou mais indivíduos (Martins, 2015, p. 85).
O destaque dado por Martins às mulheres que moram sós também não é aleatório. Uma parcela dos trabalhos
sobre a solidão deliberada possui uma base teórica feminista, enfocando as sensibilidades femininas do estar só e
desconstruindo a ideia de que mulheres são relacionais e desejam a todo instante manter vínculos estáveis e
duradouros com outras pessoas, principalmente maridos. Uma importante coletânea que ilustra muito bem esse
campo de debate é The Center of the Web: Women and Solitude, editada por Delese Wear e composta por inúmeros
artigos de feministas acadêmicas americanas que analisam a complexidade de como a solidão é percebida pelas
mulheres nos Estados Unidos, articulando a esse tema questões para além do gênero, tal como as raciais, de classe,
de identidade cultural e mesmo sexual. O argumento central da obra é, justamente, reforçar o quanto há de solidão
deliberada em certos projetos de vida femininos.
No Brasil, trabalhos como o de Gonçalves (2009) seguem essa mesma linha e deram amplo destaque à
autonomia feminina ligada à solidão, do quanto existe um projeto de vida e de independência de gênero entre
inúmeras mulheres “solteironas”, no qual o estar só se torna uma marca preponderante e desejável da compreensão
que fazem de si mesmas. Gonçalves estudou um segmento muito semelhante ao de Martins, mulheres de camadas
médias, com alta escolaridade, profissionalizadas, solteiras, sem filhos e que moram sozinhas. Ela analisou as noções
gerais relacionadas à sociabilidade em sentido amplo, com especial ênfase à sexualidade e à amizade, e aos
significados atribuídos à solidão por essas mulheres, “problematizando o valor social concedido ao par conjugal
como símbolo de intimidade” (Gonçalves, 2009, p. 190). Porém, ressalta ela, essa positivação muito recorrente
nessas pesquisas do morar só por mulheres solteiras só parece possível pela oposição ao casamento e/ou à
maternidade. Ao se colocar as “solteiras” em contraste com as “casadas”, ambas as polaridades se tornam
homogêneas: as “novas solteiras” são tidas como independentes, libertas e autônomas enquanto as casadas são
subordinadas e dependentes. Diante desse quadro um tanto dicotômico, Gonçalves desejava, na verdade,
problematizar melhor esses dois universos e retirá-los de suas essencializações recorrentes. Diz ela em certo
momento de seu artigo:
Algumas mulheres parecem ter encontrado uma forma de reinterpretar a solidão, conferindo-lhe um
sentido de necessidade e de direito ao tempo para si. A solidão, nesses casos, não as condena ao
isolamento social, antes, permite equacionar a delicada tensão entre distanciamento e aproximação nos
diversos níveis de relacionamentos que passam por, ficam em, suas vidas cotidianas. (Gonçalves, 2009, p.
212, grifos nossos)

Reinterpretar a solidão... Reinventar a solidão! Seguindo essa linha de procurar romper com visões
simplificadoras de certos fenômenos, este capítulo também se torna relevante por visar igualmente problematizar a
perspectiva de que a solidão é necessariamente um sentimento negativo, ruim e danoso às pessoas que a vivenciam
ou, pelo contrário, algo bom e engrandecedor, resultado de um projeto individualista de vida. Perguntas que tanto
embasaram as pesquisas nas Ciências Sociais sobre a solidão serão aqui deixadas de lado. A solidão é boa ou ruim?
Ela é acontecida ou deliberada? Não é isso que está em jogo aqui neste artigo. Adiante percorreremos um conjunto
variado de experiências da juventude contemporânea que só têm lugar de existência enquanto gradações num
continuum entre a solidão acontecida e a solidão deliberada, entre o “sentir-se sozinho” e o “estar solitário”. Portanto,
observaremos experimentações de solidão que buscam borrar, e não confirmar, a recorrente classificação da solidão
como “boa” ou “ruim”. Todavia, é claro que não desejamos negar aspectos que sublinham, por outro lado, uma feição
indigesta e negativa na economia interna juvenil dos dias de hoje com relação à experiência de solidão, tais como o
recurso ao suicídio, o estilo de vida caracterizado pelos chamados “jovens gênios” (nerds) ou mesmo o estilo
romântico do artista jovem, que se isola em prol de sua própria criatividade. No entanto, dissolver esse caráter
indigesto que cerca de antemão a hipótese da solidão na juventude passa, a nosso ver, por uma disposição franca para
abordá-la na sua variedade não caricata, buscando sua dimensão “modal” de acontecimento sempre singular.
Logo, nos relatos e vivências dos jovens por nós conhecidos ao longo da pesquisa, foi possível verificar que
ambas configurações da solidão tradicionalmente abordada pelas Ciências Sociais e pelo senso comum como opostas
não se excluíam, mas, sim, interpenetravam-se. A solidão acontecida nem sempre se reduz a visão do jovem
incompreendido, inadequado, inconformado, podendo resultar em experiências não previstas e por vezes bem-
sucedidas. Já a solidão deliberada, a princípio ansiada e desejada pelo sujeito, pode também encontrar seus limites e
vicissitudes a qualquer momento.
Assim, propomos mapear a partir de agora de maneira caleidoscópica algumas diferentes experiências jovens da
solidão que se distribuem e constituem um continuum entre o “acontecido” e o “deliberado”, tendo como base suas
experiências em retiros de meditação e de “fuga” da cidade em direção a áreas consideradas “afastadas”.

Trânsitos da solidão-ação

Como pudemos observar no capítulo anterior (“Tomar distância: reinvenções do êxodo, composições situadas e
resiliências”), conhecemos ao longo da pesquisa inúmeros jovens que eram adeptos do Vipassana, uma prática de
meditação que envolve retiros de silêncio com a duração média de 10 dias e que tem se tornado muito popular na
atualidade. Se nitidamente percebemos em tais ações uma proposta de solidão que poderíamos classificar de
deliberada – jovens autônomos escolhem se desmobilizar pela via da solidão em retiros – as justificativas para isso
eram vagas e imprecisas. Nunca se sabe quando tudo começou ou se tais jovens retornarão mais uma vez a esse
estado que poderíamos considerar “de solidão”. Nas conversas que tecemos com eles e apresentadas no capítulo de
autoria de Maria Isabel Mendes de Almeida, ouvíamos muito sobre a “ansiedade”, o “carnaval louco” ou a “busca de
si”.
Entretanto, as práticas contemporâneas juvenis de solidão, por mais deliberadas que possam soar aos nossos
ouvidos, não partem necessariamente de um projeto de vida preciso, milimetricamente orquestrado por pessoas em
busca de respostas às suas agruras pessoais. São vagas e difusas tais vontades, assim como é rápido e fortuito o
abraçar-se à solidão. Há uma imprecisão como mola mestra nessa arquitetura subjetiva juvenil – aquilo que poderia
parecer como uma série de “contradições” para certas interpretações mais canônicas –, que só corroboram para uma
visão instável e desregrada dessas práticas. Simplesmente passa-se a frequentar retiros, porque “ouviu-se falar sobre
ele” e, naquele momento, o sujeito sentia-se disposto a frequentá-lo, “daí eu fui”. Voltar ao retiro e à solidão é
sempre uma possibilidade, ela está ali ao alcance, mas nunca se sabe quando isso será efetivamente posto em prática
mais uma vez.
Tal mecanismo da solidão presente na ida para retiros repercutia também entre os jovens que estavam
abandonando a vida nos grandes centros urbanos rumo ao campo ou áreas mais isoladas do país. O caso de Manuela
e sua família é emblemático nesse sentido. Eles decidiram abandonar a vida em uma cidade de médio porte de Minas
Gerais para viverem em meio à Chapada Diamantina. Suas maiores motivações ligavam-se aos modos de vida
desenvolvidos no contexto urbano, considerados por eles como “nefastos” para o crescimento saudável de suas
crianças: consumismo, violência, alto custo de vida e “falta de respeito pelo outro”. Apesar de uma intenção
deliberada de “desistir da cidade”, não sabiam muito bem como proceder quando chegaram na Chapada. Pretendiam
cultivar seus próprios alimentos, mas era preciso conhecer melhor sobre agricultura. A residência, bastante isolada
de outras, necessitava de cuidados urgentes, mas eles também nada sabiam sobre reparos domésticos. Propostas
difusas e vagas de atuação, uma “carta de intenções” que não se sabia muito bem se seria plenamente efetivada. A
escolha por se isolar repercutia também entre eles como algo bastante individual, apesar de efetuada no contexto
familiar, portanto, em companhia de outras pessoas – “uma viagem profunda para dentro de si mesmo”, disse certa
vez Manuela. “Tem sido muito bonito. Às vezes a gente ri. Às vezes a gente chora. E é isso, o processo de se
autoconhecer e de se moldar é bem isso mesmo.”
Logo, estar sozinho nesses casos de retiros e exílio voluntários não é resultado de um projeto autônomo de vidas
cujas características seriam o reflexo de um individualismo tipicamente urbano, fruto de uma insensibilidade e
indiferença modernas. A solidão desmobilizada é um princípio de economia e sobriedade. É, portanto, uma ação,
uma prática, um modo de pôr-se no mundo, de orquestrar novas subjetividades, de agir e não se fechar à diferença.
É uma solidão-ação porque operada pelos jovens de hoje em suas vidas cotidianas ao ritmo de seus interesses pessoais,
num trabalho de negociação constante de intervalos, de brechas. De sentimento, a solidão torna-se assim também
em um ato, uma forma de agir: o de jovens desenhando para si novas espacialidades psíquicas perante um mundo
considerado áspero e devastador.
Nesse sentido, acredito que o conceito de “malha” e “itinerações” desenvolvido pelo antropólogo Tim Ingold
(2012), e que inspiram diretamente o título deste artigo, é bastante pertinente para pensarmos a partir de agora tais
solidões-ações, solidões-situações promovidas pelos jovens de hoje. Em suas discussões sobre a “vida” das
“coisas”/“objetos”, o autor enfatiza a necessidade de observarmos os processos de formação em vez do produto final
de certos materiais, ou seja, seus fluxos e transformações em vez dos estados considerados finalizados. É nesse
contexto que o autor formula a ideia de “malha” [meshwork] (Ingold, 2012, p. 48), entendida como um emaranhado
de linhas de vida em crescimento e movimento. Ao falar em “vida”, Ingold propõe justamente observá-la como algo
em constante desenvolvimento, que se constrói ao longo de inúmeras linhas de fuga que não se conectam – não
sendo, portanto, linhas fechadas – e por onde as ações são promovidas e avançadas. Destacamos que “vida” aqui
preenche e ultrapassa tanto “humanos” quanto “não humanos”.
A muito citada metáfora de Ingold sobre a teia de aranha é emblemática para percebermos a atenção dedicada
pelo autor aos improvisos e imprevistos que operam nas mais diferentes vidas. A “malha” não é uma rede dada
previamente, mas se constitui tal como as teias da aranha, que saem do próprio corpo do animal. A teia não é algo
diferente da aranha, é sua condição de possibilidade, sendo seus fios feitos à medida que ela passeia pelo espaço. São
produzidos, portanto, na ação. Eles não são dados de antemão, não servem de script para a aranha trilhar seu
percurso, como pegadas que ela seguiria, caminhos cujo trajeto é visto de longe, sabendo-se aonde vai chegar. A
ideia de Ingold é destacar que nos movemos enquanto “vivos” criativamente em um espaço fluido “para frente”, isto
é, enquanto uma reunião improvisada de processos formativos, em vez de “para trás”, a partir de algo acabado e
oferecido previamente a todos nós (Ingold, 2012, p. 26). É justamente essa a ideia de “itineração” também proposta
por Ingold (2012, p. 38) ao refletir sobre a “malha”: um sistema aberto de improvisações que eclodem no desenrolar
da ação e ao longo da qual a vida se torna possível. As itinerações se dão em malhas a serem feitas tal como a teia da
aranha, e não em redes preexistentes (ideia esta que Ingold acredita ser as propostas de Bruno Latour e os
seguidores da “teoria do ator-rede”). Assim, as linhas ao longo das quais se vive a vida não preexistem, elas se criam
ao se movimentar pelo mundo; criam-se nesse improvisar.
Ler as coisas “para frente” implica um enfoque não na abdução, mas na improvisação. Improvisar é seguir
os modos do mundo à medida que eles se desenrolam, e não conectar, em retrospecto, uma série de
pontos já percorridos. (...) A vida está sempre em aberto: seu impulso não é alcançar um fim, mas
continuar seguindo em frente. A planta, o músico ou o pintor, ao seguirem em frente, arriscam uma
improvisação. (Ingold, 2012, p. 38)

O que podemos dizer é que as experiências de solidão têm dado aos jovens hoje essa possibilidade de “arriscar
improvisos”, borrando as fronteiras comumente compartilhadas entre um estado deliberado e acontecido de estar só.
Não há entre os jovens por nós pesquisados em suas formas de compor com o mundo qualquer projeto de vida mais
ou menos desenhado em torno de como é experimentada a solidão. Ao escolherem ir a retiros ou se exilar em meio
à natureza, essa juventude demonstra muito bem essa potência de ir se criando por meio do percurso, nas malhas
que tecem para si mesma. Suas ações – assim como a teia que está na própria aranha – comungam com suas
trajetórias de vida. A atenção a essa precariedade do improviso se aproxima também da maneira como Bourriaud
(2013, p. 53) formulou sua teoria do radicante, baseando-se na ideia de que os sujeitos assumiriam suas formas na
trajetória, ao longo de um percurso, existindo apenas sob a forma dinâmica de sua própria errância. A criatividade
das práticas juvenis está, portanto, em seus movimentos “para frente”, que trazem à tona “vidas” – nas palavras de
Ingold (2012) – ou nos “percursos” e “trajetos radicantes” que se constituem sempre através de uma “negociação
infinita” de cada sujeito com os lugares e situações precárias que se expõem em vida, seguindo Bourriaud (2013, p.
54). Tanto é que os jovens nunca sabem se voltarão ou não à praticarem a solidão-ação: é apenas no percurso, no
movimento, que é possível atentarem para essa proposta e responderem ou não a essa pergunta.
Depois de mais de um ano vivendo em meio ao verde na Chapada Diamantina, chegou aos nossos ouvidos que
Manuela havia “voltado para a cidade”. A notícia nos pegou de surpresa, já que nos parecia consenso o quanto aquela
experiência de solidão vinha fazendo bem a ela e a seus pares. Havia ela se frustrado? Sentiu-se mal e solitária?
Separou-se do marido? No blog que alimenta com notícias contando como era sua vida na Chapada,30 a jovem revela
as causas de seu retorno. O terreno e a casa em que viviam em meio a plantações orgânicas fora vendido. Essa causa
concreta teria levado a uma reconfiguração de seus planos. Estava no momento de um “recomeço”. “Arriscando
improvisos” mais uma vez – nos termos de Ingold (2012) – a família não sabia muito bem para onde ir. Procurariam
posteriormente abrigo na antiga cidade que habitavam nas Minas Gerais, ficando dessa vez próximos da parentela.
Então agora nos vemos diante dessa vontade de conjugar um pouco de cada coisa, de viver em algum
lugar onde possamos ter nossa horta e grama verde pra pisar sem sapato, mas também poder praticar
essas pessoas que nos tornamos depois de um ano vivendo essa escolha bonita. Ainda não sabemos onde
nem quando, estamos respirando com calma e cuidado esse novo destino. Reler esse caderno de
devaneios hoje me fez ver tudo diferente, nada melhor nem pior, apenas com a sutileza e grandeza da
diferença. Nada foi em vão, nada foi definitivamente ruim, nada foi certo ou errado. Foi como
queríamos que fosse, como demos conta de ser, como o amor nos guiou, como escolhemos viver essa
experiência. Daqui pra frente é outra história, e tenho pra mim que mais bonita ainda. Somos uma
família unida e, antes disso, somos pessoas fortes com alma inquieta e cheia de luz. Temos um pé na
terra e outro no vento, nossa vida ganha sentido na dança do destino, na turbulência das reviravoltas, na
força das escolhas, na verdade do amor que vibra cada vez mais certeiro em nossos dias. Seguimos rumo
à outra casa, seja ela qual for. Depois disso tudo fica mais forte ainda a certeza de que moramos um
dentro do outro, de que podemos ir e vir quantas vezes quisermos, de que espaços físicos são palcos
para interpretarmos nossa evolução espiritual e que nossa casa é esse ninho onde a gente se encontra, se
perde e se ama tanto.

“Temos um pé na terra e outro no vento, nossa vida ganha sentido na dança do destino, na turbulência das
reviravoltas, na força das escolhas.” A frase romanceada de Manuela nos indica que a solidão juvenil hoje é uma
experiência emocional que não é, no final das contas, tão acontecida ou deliberada assim como poderíamos supor. Ela
está aberta às constantes improvisações dos agentes: “Foi como queríamos que fosse, como demos conta de ser”.
Manuela tem “vontade de conjugar um pouco de cada coisa”. Não se pode falar, portanto, de uma emoção
racionalmente escolhida ou externamente acometida aos sujeitos. Porque a solidão não preexiste aos movimentos
desses jovens. Ela se constrói nos fluxos e processos de malhas e linhas que são por eles diariamente tecidas.Sendo
assim, abordar as vivências subjetivas da solidão com base no modo como jovens respondem a este atravessamento
funciona como mais um modo de distribuí-las, na sua variedade, num continuum mais sutil do que aquele
representado tão somente pelos extremos da “solidão negativa/acontecida” ou da “solidão positiva/deliberada”.
Observar o cotidiano de um retiro nos auxilia também a compreendermos melhor esse borrar de fronteiras
entre as solidões. Um curso como os de Vipassana requer um trabalho árduo de seus participantes a todo instante.
Por exemplo, é preciso abster-se durante dez dias de matar, roubar, manter atividades sexuais, mentir e se intoxicar.
Alunos mais antigos devem ainda acrescentar mais três exigências a essa lista: abster-se de comer depois do meio-
dia, deixar de lado entretenimentos sensoriais, adornos corporais e camas elevadas ou luxuosas. As roupas devem
ser simples e confortáveis, sem qualquer apelo sexual (como shorts, bermudas, minissaias, roupas sem mangas, tops,
leggings etc.). Todos devem também se conformar a uma simples alimentação vegetariana, sem qualquer tipo de
excessos gastronômicos. “Esse simples código de conduta moral serve para acalmar a mente que, de outra forma,
estaria muito agitada para executar a tarefa de auto-observação”, diz o site, que também informa a rotina diária do
lugar, do momento em que se acorda ao de ir dormir no retiro.

04:00 Chamada
04:30-06:30 Meditação na sala ou no quarto
06:30-08:00 Desjejum e descanso
08:00-09:00 Meditação em grupo na sala
09:00-11:00 Meditação na sala ou no quarto, segundo as instruções do professor
11:00-12:00 Almoço
12:00-13:00 Descanso e perguntas individuais com o professor
13:00-14:30 Meditação na sala ou no quarto
14:30-15:30 Meditação em grupo na sala
15:30-17:00 Meditação na sala ou no quarto, segundo as instruções do professor
17:00-18:00 Lanche e descanso
18:00-19:00 Meditação em grupo na sala
19:00-20:15 Palestra do professor na sala
20:15-21:00 Meditação em grupo na sala
21:00-21:30 Perguntas abertas na sala
21:30 Repouso. Apagam-se as luzes

Seguir as regras é imprescindível em um retiro. Mas não temos aqui uma submissão cega a elas, uma forte
hierarquia a controlar seus participantes. Elas apenas garantem um discernimento e uma melhor compreensão de
tudo ao redor, auxiliam o flanar da “vida”, a tessitura livre da “malha” – ainda nos termos de Ingold (2012) – algo
talvez próximo da tão sonhada fantasia da “idiorritmia” formulada por Barthes (2013, p. 12) em seus escritos de
aula, na qual certos grupos de pessoas envolvidos em contextos de isolamento conseguiriam encontrar finalmente o
seu bom lugar no mundo a partir da adoção de um ritmo próprio (mais detalhes sobre Barthes no capítulo “Erótica
das distâncias – por uma ética do bem viver junto”). Entretanto, como nos revelou um jovem que citamos no
capítulo anterior, Cuscuz, é comum esses participantes terem “altos e baixos” emocionais. Se por um momento estar
sozinho parece ser algo voluntário, “positivo”, e harmônico ao viver em comunidade, essa experiência torna-se
rapidamente dolorosa, “ruim”, não tão racionalmente desejável assim. Em uma outra conversa que tivemos com
Cuscuz, ele descreveu de maneira mais detalhada seus “altos e baixos” no Vipassana.
É. Na primeira noite não consegui dormir direito. Ficava me revirando na cama. No dia seguinte eu fui
meditando e me adaptando. Mas ainda estava brabo. E chegou lá para o terceiro dia, mais ou menos, e eu
fiquei ótimo. Relaxei. Falei: “Caraca, isso aqui é o paraíso. Perfeito. Estou descobrindo coisas que eu
nunca imaginei que existisse. Do meu corpo, das sensações, de dormir e sonhar. De relaxar, de pensar”.
Ali não tem nada muito físico. É físico, é meditação. Você fica parado ali. Não tem aquela yoga. Nem
pode fazer isso. Tem que se dedicar exclusivamente à técnica lá deles. Fiquei bem e depois fiquei mal de
novo. Tinha me sentindo benzão e eu pensei: “Caraca, pronto. Agora entendi. Zerei aqui”. Chegou o dia
seguinte e comecei a ficar mal de novo. Fiquei pior ainda e falava: “Caraca que merda!”. Às vezes ficava
sentado lá meditando um tempo e cheio de problemas, com dor nas costas. Mas depois fiquei bem de
novo. Então assim são altos e baixos lá. Sei lá. Depende muito da pessoa também saber se entregar e
relaxar e falar: “Estou aqui. Não vou pensar em nada. Vou só entrar na experiência do eterno e é isso”.
Até umas salinhas que são para alunos antigos, que são salas reservadas, eles chamam de cela. Pessoa fica
meditando lá totalmente isolada. Uma meditação mais profunda e tal.

Renata também descreve em termos de “altos e baixos” suas experimentações emocionais no retiro. Algo que
parece bom, torna-se ruim logo em seguida. A solidão deliberada não necessariamente pressupõe uma plenitude
sentimental e pode se transformar em uma solidão acontecida. Mesmo conseguindo atingir um estágio meditativo que
poucos alunos alcançam (por eles chamado de banga), Renata insiste ter passado por sentimentos ruins, não tão
deliberados e positivos assim, portanto, propósitos opostos àqueles que geram a busca imediata aos retiros, surgidos
ao longo do circuito.
Renata: Então eu senti isso e aí eu desenterrei uma coisa que eu nem sabia que acontecia. Na hora da
dissolução é maravilhoso e tal, você sente parece que é... Para mim, eu vou usar palavras que de repente
para outra pessoa não é a mesma coisa. Então eu prefiro não falar.

Maria Isabel: Sentiu um calor?


Renata: Não é calor. Eu fiquei primeiro... A dormência das pernas sumiu, e daqui a pouco começou a
ficar todo dormente o corpo inteiro e sumiu a dormência. E nisso que sumiu a dormência ficou tudo
cremoso. Tudo cremoso, a sensação que eu tenho é de creme.
Raphael: Provoca reações físicas, não é?
Renata: É. É átomo. Parecia que eu estava em um grande marshmallow, assim, que foi crescendo. Só
que ele cresceu um pouco, e nisso que ele cresceu um pouco eu senti outra coisa se formando. Essa
outra coisa que se formou, e aí é uma história de milhares de anos atrás na minha vida, e que eu
desenterrei e que ficou. Ficou e ficou para fora. E você só observa. Só que como eu estava muito, e aí
eu percebi que tinha dado muito valor ao banga da sessão da manhã, não é, que são três por dia. Eu
fiquei meio perdida, sabe? De noite eu tive um pesadelo, que, olha, acho que só uma vez na vida eu tive
um pesadelo tão absurdo. Absurdo. Eu acordei com um berro, acordei as meninas do quarto. Chamando
um amigo meu. Assim, do nada. E eu lembro que acordei, mas falei: “Ah, isso é um pesadelo, acabou”. E
eu não criei nenhuma sensação, mas estava com o coração disparando e tal. E aí em outro dia quando
acordei, que foi o último dia, dia 10. Eu acordei e queria ir embora, queria abandonar. Porque me fez
muito mal. Estou catalogando. Me fez mal e tal. Fiquei mal.

A vivência da solidão-ação é um processo aberto, no fluxo, em que os sujeitos improvisam a todo instante
conforme avançam seus ritmos na vida. E, se experimentar a solidão é estar em aberto, “vazando” (Ingold, 2012, p.
29) no mundo,31 não podemos pensá-la como algo infinito, durável, eterno. Nem muito algo intenso, vivido como
um dogma, repercutindo, por exemplo, na adoção de um estilo de vida baseado em um ritmo frenético de
meditações diárias ou numa rotina “de monge”, “budista” ou “eremita” – figuras-estereótipos essas criticadas pelo
excesso com que se dedicam a suas causas. Desmobilizar-se pela via da solidão a partir de uma retomada de espaço
de modo a fazer frente a uma quantidade quase asfixiante de informação e de demandas sociais que inundariam o
cotidiano contemporâneo não significa, por outro lado, mobilizar-se numa vida diferente da anterior, mas tornada
também tão asfixiante como esta. Lembremos, como afirmamos anteriormente, que tais solidões contemporâneas
são princípios de uma economia e sobriedade. É o justo-meio o mais desejável, o trafegar incessante em um
continnum, mantendo-se assim longe das posições polares, extremadas. Tanto que, diante de uma percepção de
“excessos” gerados pela vida nos retiros (controle do horário, da alimentação, do sexo, uma grande quantidade de
meditações, longo tempo em isolamento etc.), tais jovens tendem logo a reverter seus fluxos direcionados às lógicas
menorizadoras, reencontrando-se com modos de vida que eram justamente o oposto daquilo que procuravam ao
resolverem frequentar tais espaços – inclusive retomando ações que os levaram às práticas da solidão. Isso só
corrobora essa maneira “malha” com que tais pessoas têm operacionalizado suas vidas nos dias de hoje: entre idas e
vindas, construindo-se na criatividade de seus percursos.
Quando o “menos” parece ir aceleradamente em direção a um “mais”, é preciso perfazer um contorno, estender
outros fios de fuga na malha. Diante dos excessos de meditação e disciplina corporal, um desejo de alterar a
consciência por meio do recurso a substâncias químicas (o “chá de cogumelo”) ou a práticas sexuais foram desejos
de Rodrigo depois de certo tempo em solidão em um retiro. Era preciso “buscar outras coisas”. Tais práticas não
podiam reger por completo sua vida. O jovem sempre nos pareceu fazer uma espécie de contabilidade pessoal sobre
os procedimentos que pretende adotar no sentido de dosar descanso e recurso à meditação. Ele não parece ser
alguém disposto a apenas seguir as regras do retiro comme il faut (“Tem uma hora que o cara deixa você ir para o
quarto. É quando você pode dar uma fugida da meditação e descansar um pouco, deitar rapidinho para descansar”).
No mosteiro, Ana Luiza nos confessou que também “não resistiu”: acessou seu celular e postou fotos na internet dali
mesmo, para todos amigos a verem. A falta de comunicação parecia a ela um tanto demasiada já durante o momento
de isolamento. Comunicar-se com pessoas próximas tornou-se importante, não era preciso chegar ao final do retiro
para que algum tipo de contato fosse feito. E se, no caso do exílio de Manuela e família, foi a venda de seu terreno
na Chapada o estopim para o “retorno à cidade”, em seu blog ela nos revela algo menos pragmático: “Acho que
tanto tempo de isolamento trouxe a sabedoria do equilíbrio, agora precisamos de um meio termo. Alguns excessos
são mesmo reflexos da falta, acho que agora conseguimos entender isso bem. Onde sobra silêncio ecoa mais alto o
grito”. Nesse sentido, uma “dose de cidade” para Manuela e família tornou-se necessária depois de mais de um ano
afastada do “caos”, da “sujeira”, dos “males do mundo”. Era preciso mais uma vez retornar, “recomeçar”.
Diante de tais atitudes, é preciso se destacar que não se trata aqui de um retorno ao original, ao estágio de vida
outrora renegado, um “fracasso” na adoção de um estilo de vida que se descobre impossível e doloroso. Os jovens
não estão aqui voltando às primeiras instâncias de seus trajetos. Lembremos da teia de aranha de Ingold (2012), e o
eterno ato de tecê-la no próprio percurso. O que verificamos entre os jovens é, na verdade, uma arte das doses em
tais práticas de “recomeço” e afastamento da solidão. Foge-se com convicção das várias intensidades de fluxo na vida
por meio de uma combinação apurada de elementos a princípio díspares: meditação e chá de cogumelo; reclusão e
uso de celular; volta à cidade e ao caos depois de um ano em exílio.
Nas malhas das juventudes contemporâneas, a solidão só tem lugar quando se garante a existência de um “junto”
(Barthes, 2003) a respaldar o exercício de pôr-se em solidão – no caso de Ana Luiza, manifestada pelo acesso ao
celular no alto do morro, por exemplo. Mesmo quando este “junto” está um tanto distanciado, mas de fácil acesso
(nas situações de Cuscuz, Rodrigo e Manuela), o que verificamos é que a possibilidade de rever e contornar compõe
o horizonte daqueles que optam pôr-se em solidão, atitudes que buscam amenizar excessos decorrentes da situação
de estar só. Bourriaud (2003) nos lembra que é no movimento que as identidades contemporâneas se forjam, sujeito
este que “existe apenas sob a forma dinâmica de sua errância e pelos contornos do circuito de que ele traça a
progressão” (Bourriaud, 2003, p. 53).

***
Se nas malhas das solidões juvenis contemporâneas arriscam-se a toda hora improvisos, sendo a instabilidade e a
falta de previsão suas marcas centrais (avançar e retornar caminham juntos), Manuela mais uma vez nos comprova
essa impressão. Depois da Chapada Diamantina e uma temporada de alguns meses com familiares em uma área
urbana de Minas Gerais, seu marido, as crianças e ela vivem agora em uma ecovila no estado de Goiás. Até quando?
Não sabemos, obviamente. Mas sabemos que, enquanto em “vida”, a família estará sempre “vazando” pelo mundo,
tendo o isolamento e a solidão como uma forma de comporem seus sinuosos percursos harmoniosamente junto de
outras pessoas.
Nosso pouso agora é em Goiás, num Ecocentro que enche os olhos da gente toda vez que andamos pelos
seus cinco hectares de terra fértil, água pura, natureza que brilha e gente de alma transformadora. Aqui
conseguimos realizar um desejo antigo de poder trocar boa parte da nossa subsistência por trabalho, um
pulo gigante pra chegar cada vez mais próximo ao desapego sufocante da grana. A troca é um troço tão
lindo que não me entra na cartola como as pessoas ainda se negam tanto a ela! O fato é que temos
aprendido muito aqui nessa nova casa tão cheia de árvore, bicho e gente. Temos compartilhado a
educação nos nossos filhos com pessoas cheias de consciência e de alegria, gente que espalha amor e
carinho por onde eles passam. É lindo ver Tomé saindo de casa cheio de liberdade e voltando todo dia
com uma nova informação sobre um pássaro, uma planta medicinal ou uma bioconstrução. Nina se
mostra cada vez mais curiosa e atrevida em seu caminhar e na percepção do imenso entorno verde. Os
dois, assim como nós, sentem que a família cresceu, agora somos muitos dentro dessa casa e nosso lar
continua sendo onde nosso coração está.32

30
O Blog de Manuela chama-se “Notas sobre uma escolha”: https://notasobreumaescolha.wordpress.com.
31
Diz ainda Ingold (2012, p. 29): “Assim concebida, a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se situa no e contra o mundo, mas
de um nó cujos fios constituintes, longe de estarem nele contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós. Numa palavra, as coisas
vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam temporariamente em torno delas”.
32
Depoimento disponível no blog de Manuela: https://notasobreumaescolha.wordpress.com.
Erótica das distâncias – por uma ética do bem viver junto
Raphael Bispo e Oswaldo Zampiroli

Em um livro póstumo intitulado Como viver junto – fruto da reunião do conteúdo de suas aulas ministradas no
Collège de France no ano de 1977 – o filósofo francês Roland Barthes se põe ao final da vida a “fantasiar” uma das
“obsessões” que mais marcou a sua trajetória, como ele mesmo diz ao longo do texto. Trata-se da problemática da
vida em comunidade, mais precisamente, de como conseguir viver só em meio a tantas exigências de sociabilidades
na contemporaneidade. Sua utopia, todavia, não recaía em um futuro distante ou na construção de uma fórmula de
interação idealística ainda por vir ao mundo. Suas ilusões de uma ética do bem viver povoavam e passeavam pelos
corredores de um mosteiro secular no monte Atos, localizado em território grego. Na verdade, não era
propriamente a arquitetura, mas um espírito de vida ideal e admirável – na perspectiva de Barthes, é claro – que
ecoava das dinâmicas cotidianas reinantes entre os monges dali e que chamaram sua atenção: aquilo que ele nomeou
de “idiorritmia”.
Ídios (próprio) + rhythmós (ritmo) é uma palavra do vocabulário religioso que remete a toda comunidade na qual
o ritmo pessoal encontraria o seu lugar. No monte Atos, monges viveriam sós, mas estariam religados
harmonicamente no interior da estrutura eclesiástica. São ao mesmo tempo autônomos e membros de uma
comunidade. Possuem celas particulares, fazem suas refeições nesses mesmos espaços e podem conservar os bens
que possuem no momento de seus votos. As liturgias seriam também facultativas. Cada monge teria, assim, um
ritmo próprio ali dentro, mesmo numa coletividade, convivendo bem com seus pares em decorrência disso. Barthes
diz que os idiorrítmicos de Atos estariam no meio caminho entre o eremitismo dos primeiros cristãos da época
feudal (os que se afastavam plenamente dos outros) e o cenobitismo institucionalizado que marca a vida da maioria
dos mosteiros ocidentais, onde os monges fazem tudo junto (refeições, liturgias e trabalhos), mas não encontram
espaços para si próprios (Barthes, 2003, p. 13).
Sem ligação direta com a vida monasterial, a “idiorritmia” designa na proposta de Barthes todos os
empreendimentos que conciliam ou tentam conciliar a vida coletiva e a individual, a independência do sujeito e a
sociabilidade do grupo. Isso porque, na verdade, o sonho do autor era fazer do mundo um monte Atos, onde os
sujeitos conseguiriam finalmente conciliar a vida em comunidade com a adoção concomitante de um ritmo próprio.
Em outras palavras, fazer com que o “junto” caminhasse lado a lado com o “sozinho”, concretizando dessa maneira
uma plena harmonia da vida em solidão com a vida em sociedade, algo, a princípio, visto como antagônico. No
entanto, o curso ministrado por Barthes já opera desde suas linhas iniciais no sentido de não acreditar nessa própria
conceituação por ele mesmo desenvolvida, tornando-a mais um ideal ético do que uma moral a ser desenvolvida em
sua plenitude.

(Con)viver juntos

No entanto, se tudo isso pode soar distante – utopias de um filósofo – a “idiorritmia” parece ser também as fantasias
diárias de muito dos jovens de camadas médias por nós estudados. Obviamente eles não se expressavam fazendo uso
de uma categoria garbosa tal como essa de “idiorritmia”, mas a convivência que tivemos com alguns deles ao longo
da pesquisa de campo demonstrava a todo instante o quanto o estar “junto” não necessariamente significa negar o
“só”, pelo contrário, eram maneiras de se pôr no mundo que se fazem cada vez mais complementares segundo suas
visões de mundo, principalmente no campo da ética pessoal, da boa convivência com os outros.
Assim, neste último capítulo do livro, iremos analisar como as reinvenções das solidões juvenis desmobilizadas
de hoje esbarram idealmente em tais proposições que Barthes nomeou de “idiorrítmicas”. A que distância dos
outros devo manter-me para construir com eles uma “sociabilidade sem alienação”, uma “solidão sem exílio”
(Barthes, 2003, p. XXXVIII)? Como viver bem com as pessoas as quais estimo? Essas poderiam ser as questões a
nortear essa parte final em que analisamos o material etnográfico de nossos “rastreamentos descritivos”, muito cara
a inúmeros de nossos interlocutores. Se no terceiro capítulo procuramos borrar as fronteiras entre a solidão
acontecida e deliberada ao propormos a ideia de uma solidão-ação – um modo de operar e estar no mundo mobilizado
de hoje que combina escolhas com determinações exteriores – observaremos a partir de agora uma outra face dessa
moeda da experiência de estar só, cuja proposta é enfatizar que não é contraditório querer viver sozinho e viver
junto ao mesmo tempo. Para nossos interlocutores, a combinação dessas dimensões é um primado para a boa
convivência em um mundo mobilizado no qual, nas palavras de Deleuze recuperadas por Pelbart, “o problema não é
que nos deixam sós, é que não nos deixam suficientemente sós” (Deleuze apud Pelbart, 2006, p. 1).
Para isso, neste capítulo exploraremos o material etnográfico oriundo de outros eixos da pesquisa, fruto de
nossas conversas com jovens de camadas médias do Rio de Janeiro sobre o amor e a amizade. Nesse contexto da
conjugalidade, os usos das novas tecnologias surgiram como um assunto recorrente, seja para pensar os “excessos”
ligados à vida conectada pela internet (como visto no segundo capítulo), seja como um locus diferenciado a ser
acionado na busca por parceiros amorosos. Nesse sentido, nossas reflexões neste capítulo caminham também numa
tentativa de compreender os diversos modos pelos quais diferentes jovens lidam com o jogo junto/separado e geram
suas distâncias tendo como parâmetro as novas formas de comunicação contemporâneas, as trocas e os afastamentos
mediados por máquinas e tecnologias, face a um atravessamento mais amplo de “crise” decorrente da “mobilização
infinita capitalista” (Sloterdijk, 2002).

Solteiro, a dois, a três... várixs

Os relacionamentos amorosos e de amizade são, por excelência, os temas que mais remetem qualquer pessoa ao
ideário da solidão. Vimos isso no capítulo “Nas malhas da solidão-ação – vivências jovens da solitude”, por exemplo,
quando discutimos anteriormente a dificuldade enfrentada para nos aproximarmos de alguns jovens ao levar adiante
a proposta de uma “pesquisa sobre solidão”. A recusa partia de uma percepção negativa deles de que, no final das
contas, caso aceitassem participar deste trabalho, eles estariam confessando ser “carentes” de amigos e/ou amantes.
Essa associação entre amor e solidão também é muito comum nas pesquisas de influência feminista, que buscaram
desconstruir estereótipos em torno de mulheres solteiras, por exemplo, apontando para a adoção de um estilo de
vida cada vez mais “individualista” entre elas e no qual estar só não é um tormento decorrente da falta de amor mas,
sim, uma opção por uma solidão deliberada (Gonçalves, 2009; Martins, 2010).
Neste trabalho, pretendemos oferecer um percurso complementar a este como a solidão tem sido discutida nos
estudos sobre conjugalidades no âmbito das Ciências Sociais. Desejamos problematizar como nossos interlocutores
analisam a vida conjugal nos dias de hoje, suas opiniões recorrentes sobre a vida à dois, à três, etc. Logo, a
percepção de Barthes do que se trata a “idiorritmia” no campo amoroso torna-se aqui também pertinente. Nesse
nicho de sua obra Como viver junto, o autor caminha para o desenvolvimento da ideia de uma “erótica das distâncias”
(Barthes, 2003, p. 74) entre pessoas envolvidas numa rede afetivo-sexual, isto é, a necessária partilha de
distanciamentos que sejam suficientemente eficazes entre os sujeitos-amantes, capazes de manter a libido, mas que
tem por objetivo mesmo tornar a relação harmoniosa, eficaz, por conta das doses bem administradas de contatos
entre os indivíduos. Conjuga-se assim uma dimensão de solidão no âmbito de uma vida conjugal.
A “erótica das distâncias” primeiramente nos chamou a atenção quando conhecemos alguns jovens que estavam
começando a morar sozinhos, saindo ou da casa de seus pais ou de repúblicas de estudantes universitários, onde
moraram durante um bom tempo por conta de suas rendas instáveis. Segundo os jovens pesquisados, as amizades
também necessitam delinear suas distâncias, formular uma erótica, a fim de manter o viço. Este era o caso de
Rafael, 22 anos, há um ano e meio morando só em um apartamento na área central da cidade de Juiz de Fora.
Segundo ele, morar com outros amigos em espaços de universitários era valoroso por conta da divisão das despesas,
“mas também você tem que aprender a ter mais paciência porque nem sempre respeitam seu espaço”. Seus maiores
incômodos eram as festas indesejáveis ou a “invasão” de seu quarto quando seu interesse era a tranquilidade do
isolamento. Amigos, às vezes, “perdem a noção do privado e do público”, segundo Rafael. Isso o fez morar em
variadas repúblicas, em muitos casos se mudando delas quando “a intimidade começava a atrapalhar”. Ao morar
sozinho, ele tem experimentado o distanciamento ideal dos amigos com quem, no final das contas, adora estar
junto. “E nem todo mundo fica tomando relato da minha vida sexual”. Ele pode fazer sexo o dia da semana que
quiser, com quem preferir, sem ter a necessidade de contar detalhes aos amigos da casa, mesmo os mais confidentes.
“Ter seu espaço” é, assim, a maneira como o jovem vem tecendo sua “erótica das distâncias” na atualidade, buscando
regrar e combinar a vida junto aos amigos – e as indispensáveis sociabilidades e “bebedeiras” dessa fase –
concomitantemente com a possibilidade de estar só e agir no anonimato.
Entretanto, um outro comentário de Rafael nos chamou mais ainda a atenção, para além de seu prazer em morar
só na atualidade e “ter seu espaço”. É quando o relacionamento com amigos no âmbito das repúblicas torna-se
semelhante a “morar com os pais”. Ele nos disse isso ao fazer referência a tais controles quase que inevitáveis que
surgem dos relacionamentos entre amigos em casas compartilhadas, como esse de ter que “relatar” as práticas
sexuais. A nosso ver, o que se desenha no dia a dia de Rafael atualmente é uma espécie de fuga de um
“companheirismo obrigatório” (Foucault, 2010, p. 349) que está por trás de certas relações mais canonizadas, como
os relacionamentos institucionais, de família, de profissão, do amor a dois heteronormativo. Rafael se recusa a tecer
com amigos laços de obrigatoriedade e dependência extrema. Como nos lembra Foucault (2010) a partir de suas
reflexões sobre os novos modos de vida que as homossexualidades ensejam, a amizade é um bom espaço para a
criação e confecção de novas maneiras de estar junto dos outros, por conta de uma matriz relacional que não está
previamente determinada, tal como ocorre nas grades da heteronormatividade. Isso faz da amizade uma estratégia
de resistência extremamente perigosa, em que se multiplicam os campos de possibilidade de relacionamentos e,
com eles, o surgimento de novas subjetividades. A amizade, ou melhor, o seu modo de operação é a expansão das
relações, de qualquer relação, para além de suas supostas codificações. Todavia, nos termos de Rafael, a amizade
também pode ser corrompida, cooptada, perder sua potência disruptiva e vir a se assemelhar aos relacionamentos
hierárquicos e ordeiros estabelecidos, nas fantasias de muitos, no âmbito familiar. Nessa perspectiva, podemos dizer
que quando o “junto” ameaça o “sozinho” pela via da obrigação, amigos que são sempre criativos na confecção de
seus laços podem tornar-se assim tal como pais e filhos, impondo-se uma grade de obrigações que chega às vias da
extenuação, levando a um necessário e desgastante afastamento das partes logo em seguida.
A “erótica das distâncias” foi também recorrentemente trazida à baila nos relatos que ouvimos de alguns jovens
sobre suas experiências amorosas atuais. Apesar dessas conversas terem sido realizadas na grande maioria das vezes
com mulheres – e, logo, uma marca de gênero se faz recorrente e inevitável nessas narrativas – conseguimos
perceber também o quanto o “só” era valorizado por elas quando falavam de um “junto”. Primeiramente, é uníssono
entre todas que, ao estarem namorando – ou o que seria o ideal numa relação a dois – é preciso que haja um
“espaço”, um “respiro” no âmbito do casal. Podemos inferir que elas fantasiam, portanto, uma “idiorritmia” conjugal.
Algo próximo, portanto, daquilo que Rafael narra sobre seus amigos. No entanto, não há nenhuma novidade nessas
narrativas valorizadoras do “ter um espaço” no âmbito dos relacionamentos nas camadas médias de nossa sociedade,
aproximando-se, por exemplo, dos depoimentos tomados ainda no começo dos anos 1990 por Heilborn (2004) em
sua pesquisa sobre conjugalidades héteros, gays e lésbicas em “contextos igualitários”. Além disso, lembrando
Simmel (1964), há uma grande contradição na ideia de um indivíduo puramente isolado que, segundo o próprio,
não existiria em si mesmo. O indivíduo estaria sempre em relação, seja de negação, falta ou contraste, com a
sociedade.33
Nesse sentido, o fato é que todos os nossos interlocutores têm desejado enfaticamente momentos pontuais de
estar só em seus relacionamentos – sejam estes monogâmicos ou não monogâmicos. A situação de “estar sozinho” se
repete constantemente nas falas desses jovens como um objetivo na vida conjugal. Estar só surge como condição
primeira e necessária para a boa convivência. Dessa forma, a solidão é interpretada por estes jovens de maneira
muito semelhante, através de uma distinção precisa entre “ser” e “estar” sozinho. “Ser sozinho” significa perceber-se
como uma pessoa solitária. Por outro lado, “estar sozinho” se impõe como uma condição momentânea e necessária
que exige, precisamente, saber conviver consigo mesmo e com os outros. Clara, por exemplo, que sempre
estabeleceu na vida relacionamentos monogâmicos, é enfática ao constatar isso:
As pessoas se sentem sozinhas quando elas são vazias por dentro. Acho que quando você tem substância,
você tem... você não se sente sozinha. Você tem tanta coisa para fazer sozinha. Acho que você não pode
precisar do outro para não estar sozinha, entendeu? Se você precisa do outro para não se sentir sozinho
tem alguma coisa errada, né? Você precisa de alguém te completar para você não se sentir sozinho? Se
você não estiver feliz consigo mesmo você nunca estará feliz com outra pessoa.

Uma espécie de “vazio” se mostra para Clara como sentimento fundamental entre aqueles que se sentem
realmente sós. Não saber aproveitar a própria companhia ou, até mesmo, não descobrir atividades prazerosas para se
fazer sozinho são características negativas na vida daqueles que são compreendidos como solitários. “Ser feliz
consigo mesmo é saber conviver com sua própria pessoa”, na perspectiva de Clara. De forma muito semelhante, essa
diferença também aparece nas falas de Priscila, 25 anos, que se diz “poliamorista” (detalhes sobre o poliamor mais
adiante):
Eu acho que primeiro você tem que aprender a ficar sozinha. Até antes de você ter dois [parceiros], o
importante é você ficar bem consigo mesmo, gostar da sua companhia, e quando você conhece alguém,
você soma. Mas não precisar de alguém para estar feliz. Depender de alguém. Acho que é por aí.

Priscila, mesmo com horários bem marcados para conseguir dar atenção a todos os seus parceiros, deixa bem
claro que é importante ter um momento só para ela. Clara costuma dizer isso quando pensa em suas viagens
solitárias para Petrópolis. Dessa forma, estar sozinho e, principalmente, estar bem sozinho é a pedra de toque dos
nossos interlocutores para uma vida afetiva considerada por eles como “saudável”. A solidão surge assim, portanto,
como esse momento ideal da vida solteira, a dois, a três etc. em que não há alguém ao seu lado a todo instante, em
que distâncias são cultivadas. Reproduzimos a seguir mais alguns trechos de entrevistas que demonstram a
recorrência e persistência desse ideário entre as jovens pesquisadas.
E ao mesmo tempo também estar sozinha, não tenho muito uma questão, um problema. Eu gosto
também. Mesmo quando estou namorando. Gosto de ter meus espaços, ficar um tempo sozinha. Para
muitas pessoas é insuportável. Mas para mim não é nem um pouco. Gosto de ir ao cinema sozinha.
Gosto de fazer as coisas sozinha. Não tenho nenhum problema com isso. Nem quando eu estou
namorando. Então eu preciso de um espaço. Ficar em silêncio e tal. Sempre fui assim. (Carla, 34 anos)
Raphael: Qual o projeto de relação que seria ideal?
Elayne: Um assim tipo... “Ah vamos sair hoje”. Mas se amanhã eu quiser sair com minhas amigas para
comprar roupa no shopping e tal... Eu acho que eu quero uma relação assim. Poder fazer as coisas que
eu sempre fiz quando estava solteira. Não ter que fazer tudo junto. Vamos sair sexta, sábado e domingo.
Vamos nos ver todos os dias da semana. Acho que cada um tem os seus compromissos e acho ridículo
quem esquece dos amigos e fica só com o namorado. E depois quando termina, aí é que vai procurar os
amigos. Não gosto disso não. (Elayne, 28 anos)

Lembrando Pelbart (2006, p. 8), os jovens demonstram em seus depoimentos queixosos os “paradoxos da
solidão”: ao evocar o “junto”, o “coletivo” e seu peso agregador, os sujeitos são fascinados pelo escape solitário.
Porém, quando tematizam a solidão, essas mesmas pessoas recorrem ao coletivo como proteção compensatória.
Trata-se daquilo que Bauman (2004, p. 8), em tom crítico, fala dos “desejos conflitantes” contemporâneos de apertar
os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos. Entretanto, nesses mesmos depoimentos “paradoxais”, o que nos
chama também a atenção é a busca por uma ética do bem viver pela via do cultivo das distâncias, forma essa de
evitar o temor de tal peso do coletivo que é típica das experiências individualizadas de segmentos sociais mais
abastados da sociedade. Por exemplo: as jovens nos narravam sobre uma “pressão” de amigos e familiares para
engajarem-se em um relacionamento amoroso quando solteiras, mesmo que fortuito. Carla, 34 anos, namorou
durante seis anos com seu último namorado. Há três anos está solteira. Seus amigos rotineiramente insistem para
que ela não necessariamente arranje um outro namorado, mas, sim, ponha-se ativa, disposta e saia para “caçar”, ou
seja, estar com outros homens apenas por diversão torna-se algo imprescindível. “Ah, para com isso. Vai se divertir.
Vai pegar alguém, vai transar.” Sua disposição, porém, vai de encontro a tais recomendações. Não por conta de um
apego à relação anterior. Na verdade, ela sente-se indisposta a “partir para night” por não se ver como alguém capaz
de negociar afetos nos termos da diversão noturna. “Ah, não tenho talento para essas coisas” e “não estou
desesperada” são frases recorrentemente ditas por Carla para preservar sua solidão diante de uma pressão pelo estar
junto.
A “pressão” aponta justamente para a necessidade do estabelecimento de vínculos. Estar só soa algo doentio.
Mesmo que laços não se sustentem por muito tempo, que eles sejam pelo menos tentados, orquestrados, lançados
aos outros. A metáfora da “caça” parece aqui importante: que as pessoas estejam sempre dispostas a lançarem suas
lanças e redes a fim de capturar outros para o seu círculo afetivo. Nessa perspectiva mobilizada, a solidão aparece
como sendo um estado de passividade, letargia, inércia. Ela não é compreendida como um estado ativo, produtora
também de algum tipo de ética e de bem viver. Por isso o comentário de Carla sobre o “desespero” deve ser levado
em consideração. Ele aponta para um senso crítico de nossa interlocutora com relação a uma lógica mobilizada da
vida sexual de muitos jovens hoje em dia, que se põem como obrigatório para si a eficiência e a maximização de
experiências afetivo-sexuais, de fruição intempestiva pela “night”, como se o “menos” sexual fosse indício de uma
vida insuficiente e mal realizada.
Elayne, 28 anos, solteira, também se queixa da “pressão” dos amigos e se diz cansada da “night” para estabelecer
alguma relação amorosa. “Tanto que agora só tenho saído assim, aniversário de amigo e tal. Não estou mais saindo
pensando em beijar na boca. Não estou mais nessa vibe. Já estive. Todo final de semana tinha que sair sexta, sábado e
domingo. Mas agora desencanei!”. O ritmo frenético e “mobilizado” de saídas, diversões e necessária disposição ao
outro é a tônica de muitos discursos críticos de nossos jovens interlocutores. Ao mesmo tempo, eles se contrapõem
a tais exigências tal como Elayne, indicando um momento em que o ritmo intenso é freado por um movimento
subjetivo de “desencanar” que, nos termos desta pesquisa, poderíamos inferir ser uma “desmobilização” no âmbito
das conjugalidades amorosas, uma resposta às exigências de pôr-se necessariamente “junto” aos outros e com eles
tecer algum vínculo afetivo-sexual. É preciso destacar que Pelbart (2006, p. 5) nos diz que o capitalismo atual
produz “toneladas” de uma nova angústia solitária decorrente da desconexão das redes da vida, da sensação de estar
longe amorosamente dos outros. Todos reclamam de uma falta de atenção, dos laços que se rompem ou não se
concretizam como nos melhores planos românticos. Inspirado no psicanalista Chaim Katz, Pelbart nos indica
também uma resposta a essa tônica que vem sendo tecida por várias pessoas, uma “solidão positiva” (Katz apud
Pelbart, 2006, p. 5), que consiste justamente em resistir a esse “socialitarismo despótico”, um desafio a tirania das
trocas produtivas e da circulação social dos dias de hoje.
“Desencanar” pode ser assim compreendido como um movimento para o surgimento de personalidades e
subjetividades parciais no âmbito da “mobilização infinita” do capitalismo. Experiências subjetivas estas que
confrontam o ideário da maximização dos contatos, adotando estados subjetivos avessos à conectividade sem limites.
Ao se queixarem de “pressões” e falarem de “desencanações”, Elayne, Carla e outras de nossas interlocutoras tornam-
se, assim, exemplos desses estados subjetivos tipicamente contemporâneos, resultados da ação de indivíduos que
recusam uma sociabilidade excessiva, e, ao mesmo tempo, reivindicam outras formas de solidariedade, uma
“comunidade por vir” (Pelbart, 2003).
“Ficar conhecendo as pessoas dá trabalho, dá preguiça”, ressente-se Carla. Não estamos tratando aqui, portanto,
de pessoas desesperadas por amar, mas sujeitos críticos a certas matrizes de como devemos nos relacionar com os
outros. Não se trata de uma visão romântica de perder a fé ou crença no amor. É, na verdade, uma perda de
investimento na relação propriamente dita, no modelo de “viver junto” que se instituiu entre nós como a maneira
ideal de bem viver. “Não ligar para”, estar “em ponto morto”.
Segundo Barthes, um desinvestimento ocorre em certos modos de vida atuais e a esse processo o autor chama
de “acídia”, também inspirado nos sentimentos de lassidão de monges. A “acídia”, no entanto, não é um olhar mais
enaltecedor do autor para os relacionamentos críticos de hoje tal como é a ideia de “solidão positiva” de
Katz/Pelbart. No estado subjetivo da “acídia”, a vida parece monótona, sem objetivo, penosa, inútil, quando
estamos fartos do nosso próprio modo de vida, de nossa relação com o mundo. “Repetição, retorno: as mesmas
tarefas, os mesmos encontros e, no entanto, nenhum investimento, mesmo se cada parte desse programa é
suportável, ou por vezes agradável” (Barthes, 2003, p. 42-43).
A “acídia” amorosa não é o desespero do amor (não ser amado, ser abandonado, romper) mas, sim, uma perda de
investimento na relação amorosa em si mesma: o “luto no próprio investimento”, “luto do relacionar-se”, e não da
coisa investida propriamente dita (Barthes, 2003, p. 43). Logo, é o modo como se ama de maneira hegemônica nos
dias de hoje que incomoda nossos pesquisados e não alguém ou algo em específico. As narrativas juvenis amorosas
falam de uma “estafa” e ao mesmo tempo de uma “desaceleração”, um “desencantamento” com o amar – ou nos
termos de Barthes, um “estar de luto” (Barthes, 2003, p. 43) pelas formas de amar. É o modo de vida considerado
mainstream de amor – e, portanto, matricial, por tentar se impor a tudo e a todos – que tanto incomoda os nossos
interlocutores e gera essas inúmeras queixas e ressentimentos.
No entanto, poderíamos pensar que algumas formas de relacionamentos não monogâmicas poderiam atuar,
justamente, como alternativas às práticas comuns de amar que geram tanta “acídia” na atualidade. Constatamos isso
quando começamos a conhecer alguns jovens praticantes do “poliamor”.34 Esse era o caso das histórias contadas por
Priscila, 25 anos, casada e praticante do “poliamorismo” já há alguns anos. A jovem casou-se cedo. Passou a morar
junto de seu marido Izidro logo após um ano de namoro. Pouco tempo depois, Priscila interessou-se por um outro
rapaz e, imediatamente, começou a questionar seus próprios sentimentos – se ainda amava seu marido da mesma
forma, ou não. Poderíamos dizer que uma fase de “acídia” reinou em sua vida após um ano de casada. Pensou diversas
vezes em terminar o relacionamento. Num determinado dia, ao entrar em contato com aparelhos eletrônicos de seu
marido, Priscila percebeu que ele conversava sobre “poliamor” com uma outra mulher. Ela então constatou que seu
marido vivia dilemas muito parecidos com os dela: ambos estavam se apaixonando por outras pessoas ao mesmo
tempo, mas mantendo o amor que sentiam um pelo outro e se questionando sobre aquilo que vinham enfrentando.
Passado algum tempo e algumas conversas, o casal começou a enveredar em um relacionamento “poliamorista” e
foram progressivamente “se adaptando” e “se entendendo melhor” nesse novo rearranjo conjugal por meio do
estabelecimento de algumas regras de convivência para além da díade. Priscila não conhecia o termo “poliamor” até
então, contudo, já percebia por experiência própria que era possível gostar de mais de uma pessoa ao mesmo
tempo. Como nos mostra Pilão (2015, p. 396), “um dos passos de uma ‘carreira poliamorista’ é o momento do
conhecimento do termo poliamor, descrito como ‘libertador’ e ‘revelador’ de um novo mundo”.
Assim, gostaríamos a partir de agora de pensar aqui a “erótica das distâncias” da solidão para além da “pressão” da
díade por meio da figura de Priscila. É preciso ter em mente, no entanto, que os diferentes arranjos de
relacionamentos poliamoristas não são o foco desta análise.35 O exemplo de Priscila nos guiará apenas para pensar a
“erótica das distâncias” nos casos amorosos pouco hegemônicos. Isso porque os jovens que optam por uma das
diversas formas de relacionamento não monogâmicos estão buscando outras maneiras de viver em comunhão com os
outros, cujas regras e lógicas de organização tentam ser mais flexíveis do que as maneiras mais canônicas de estar
junto. O fato de Priscila e Izidro engatarem em um relacionamento “poliamorista” não mudou apenas as diversas
possibilidades de conexões afetivas com outras pessoas, mas também os variáveis ritmos de cada um deles no âmbito
do relacionamento de um com o outro.
Outras formas de se relacionar, como neste caso descrito, tentam ir de variadas maneiras em direção a um
“socialismo das distâncias” tal como o fantasiado por Barthes. Como nos mostra o autor, há em nossa sociedade
diversas formas de organização que são extremamente hostis à “idiorritmia”. O modo de vida de um casal (ou
famílias) e os macroagrupamentos (multidões, falanstérios, conventos) são exemplos disso. Em seu argumento,
Barthes ilustra a falta de ritmo do “casal” por meio da figura do apartamento, que imporia uma rigidez e
imutabilidade ao cotidiano, sendo ambos (tanto o casal quanto o apartamento) algo extremamente integrativo. Já a
“multidão”, também disruptiva da “idiorritmia”, seria estruturada segundo uma arquitetura de poder, sendo
excessivamente maleável e desintegrativa pelo excesso de pessoas que por ela trafegam (2003, p. 18). Dessa forma,
tanto o casal quanto a multidão promovem disritmias, ou como chama Barthes, uma “heterorritmia” (2003, p. 70).
Os dois modelos para o autor se confrontam com seu contramodelo ideal: o pequeno grupo, a comunidade, os quais
são atraentes por conta de sua autossuficiência e pela possibilidade da construção de um ritmo mais harmonioso
entre as pessoas. Casais, grupos e famílias são, portanto, “forças fantasmáticas” do viver junto e do viver bem (2003,
p. 10).
Logo, poderíamos especular que o poliamor, a partir do que nos foi relatado por alguns jovens, tenta estabelecer
esse justo-meio da boa convivência existente nos pequenos grupos idealizados por Barthes ao estimular em seu
interior uma “moral da delicadeza”, “uma forma mediana, utópica, edênica, idílica” de ser pôr no mundo. Para a
sociologia simmeliana (Simmel, 1964), no entanto, ao se falar de grupo é preciso pensá-lo também ao seu menor
termo: a díade. O dois pode ser a relação entre um indivíduo e a sociedade ou entre indivíduos. Mas em linhas
gerais, a díade comporta uma grande ameaça à “individualidade” das partes envolvidas, segundo Simmel, pois cada
elemento possui um papel social claro e marcado na dada relação. O casal é, portanto, tanto para Barthes quanto
para Simmel, marcado pelo forte controle das partes entre si e pela dificuldade de estabelecer uma vida harmônica.
Na perspectiva deste último autor, quando se acrescenta mais um membro ao grupo, a díade passa a ser tríade e,
dessa forma, surgem novos papéis sociais para seus membros, tornando-os, por fim, mais aptos a exercerem suas
“individualidades”, algo que poderíamos pensar aqui como viver de forma menos integrativa e dependente um do
outro.
No entanto, faz-se necessário ressaltar que a busca por uma vida mais livre para além do sufoco da díade por
meio da companhia de uma ou mais pessoas – tal como se faz entre os poliamoristas – gera também muitas tensões
entre os indivíduos, não sendo um modelo facilmente colocado em prática. No caso de Priscila, isso foi possível de
ser constatado a partir da maneira como ela geria seu cotidiano de forma rígida para conseguir dar atenção a todos
os seus parceiros. Ela e Izidro moram juntos no mesmo apartamento e trabalham durante toda a semana, vivendo
boa parte do dia fora de casa. Com isso, compartilham a vida de um casal monogâmico no cotidiano: dormem
juntos, tomam café da manhã etc.
Tem gente até que fala que é difícil você viver isso quando é casado. Se cada um morasse na sua casa.
Porque realmente, você... Já aconteceu de um achar que o outro tinha mais disponibilidade. É, porque
um [dos parceiros] queria um fim de semana. Eu disse: “Fim de semana é mais difícil. Dois dias”. E ele
disse: “Ah, mas você passa todos os dias com o seu marido. São cinco dias da semana”. Mas é diferente.
Cinco dias que eu trabalho. Tudo bem, não trabalho todos os dias, mas ele [Izidro] trabalha todos os dias.
E aí eu vou para a faculdade à noite quando ele está em casa e chego onze horas da noite ou onze e meia.
Não é a mesma coisa, não é? Então tem o bônus, mas também tem o ônus. Como toda vida conjugal. E
ele diz: “Você ficou o domingo inteiro com um”. E o outro fala: “Você ficou a semana inteira com um”.
Mas isso também já...

O relacionamento poliamorista de Priscila, em sua busca por liberdade e autonomia “idiorrítimica”, acaba
caindo num jogo no qual o viver junto e o bem viver são afetados por formas excessivamente integrativas em alguns
momentos, tal como essa dinâmica dos horários, assim como ocorre recorrentemente com a família e o casal na
perspectiva de Barthes e no âmbito da díade, segundo Simmel. A presença de outros parceiros que não
necessariamente se relacionam entre si, em vez de estabelecer um meio termo entre a integração e a desintegração,
pode vir a ser, novamente, integrativo e “heterorrítmico”. As responsabilidades profissionais e afetivas aparecem
aqui como um instrumento de poder sutil, criando um rígido sistema de horários que traz conflitos diários para os
indivíduos e seus laços poliamorosos. Alcançar a vida idiorrítimica traz também muitas dificuldades, como nos
mostra o caso de Priscila e suas tentativas de fugir de uma grade amorosa diádica. No entanto, é inegável que a
dinâmica da sexualidade serve para ela e outros jovens tentar “chegar a uma multiplicidade de relações” (Foucault,
2010), mesmo que eles não atinjam o ideal que gostariam. É importante frisar, portanto, o caráter de confecção, de
experimentação, de erros e acertos, de busca por tentativas, que revestem o exercício de fugir das formas
tradicionais de viver junto aos outros.

#Afetos <3 <3 <3

Uma outra área de manifestação desses processos de configuração contemporâneos da “erótica das distâncias” em
prol do bem viver juntos ocorre no âmbito das novas tecnologias da informação e da comunicação. Esse é o nicho
em que a juventude é mais comumente associada à ideia do “estar só”, talvez a única instância hoje em que se
reconhece mais facilmente a solidão juvenil, quando ela realmente torna-se visível a boa parte das pessoas já que,
como visto no capítulo anterior, tal emoção não é comumente associada a esse momento do ciclo da vida.
Isso porque solidão, tecnologias e juventude são maciçamente tidas como uma relação que quando se é
estabelecida, torna-se danosa para os destinos das pessoas. O jovem parece dissociar-se do todo coletivo em prol de
uma vida fechada em si mesma, repleta de sensações artificialmente construídas e ligadas única e exclusivamente
pelo maquinário por ele próprio administrado. O estilo de vida caracterizado pelos chamados “jovens gênios”
(reconhecidos também como “nerds”) ou mesmo o estilo romântico do artista jovem, que se isola em seu quarto em
prol de sua própria criatividade, são talvez as variedades mais caricatas desse imaginário.
A internet é ela mesma um espaço constante para a reprodução do estereótipo do jovem internauta solitário.
Foram inúmeras as matérias, memes36 e outros recursos que levantamos sobre esse tema no mundo virtual durante a
pesquisa, em muitos casos abordado de maneira jocosa. Entre tais matérias, destacamos aqui três que nos chamaram
a atenção e que ilustram bem o ideário da solidão associado as tecnologias.
A primeira delas nos apresenta um grupo de designers, nos Estados Unidos, que inventou um bastão de selfie
parecido com o braço humano. O produto, comumente utilizado para conseguir autoimagens de ângulos mais
afastados, ganhou novos contornos em suas mãos. Chamado de self arm, esse bastão tem como intenção, segundo seu
criador Aric Snee, dar a ilusão aos observadores da imagem de que o fotografado não está só. “Ninguém quer estar
sozinho enquanto tira fotos de si mesmo”, ele afirma.37 A segunda matéria, também sobre selfie, apresenta o diário
fotográfico de um japonês que tira fotos de si mesmo de forma tal que gera a ilusão que ele está acompanhado de
uma “namorada”. O jovem Keisuke Jinushe maquia a mão direita, para mudar o tom da pele, pinta as unhas e usa
suas mãos para fazer carinho em si próprio enquanto sua mão esquerda tira uma fotografia bem aproximada. Com
isso, ele cria assim o efeito de que está acompanhado.38 A terceira matéria, também sobre o Japão, apresenta
produtos que são feitos para aqueles que não querem mais dormir sozinhos. A empresa Bibi Lab criou uma almofada
grande em formato humano para ser abraçada na hora de dormir. Ela afirma que a almofada pode também ser usada
para fazer companhia nas refeições e ao assistir televisão, por exemplo (ver imagens a seguir).39
Figuras 1 e 2: Almofada que faz companhia a pessoas solitárias é desenvolvida pela empresa japonesa Bibi Lab.
As matérias sobre os jovens japoneses associados à solidão e isolamento social não apenas existem em grande
quantidade, como são normalmente narradas num tom de curiosidade-exotismo pelo jornalismo brasileiro. A
imagem do Japão se cristalizaria, dessa maneira, como um estereótipo do estranho (beirando ao bizarro em
determinadas vezes). Isto é, como um outro povo distante e exótico que sofre do mal da solidão em contraste a nós
que não sofreríamos. Da mesma forma que a maioria absoluta de nossos entrevistados “empurrava” o sentir-se
solitário para outros universos que não os seus próprios, a representação do Japão nestas matérias faz o mesmo ao
criar uma ideia de solidão tão idiossincrática e afastada de nossas realidades. Além do mais, cria também uma aura
negativa a qual deve ser evitada.
Ao mesmo tempo em que observávamos tais reportagens exotizadoras, acompanhávamos um grupo no Facebook
de hikikomoris chamado N.H.K. (Nihon Hikikomori Kyokai), além de um site com o mesmo nome.40 Os hikikomoris
eram o maior exemplo de estilo de vida ligado a uma estética e poética da solidão que levantamos em nossa
pesquisa. O termo em si mesmo já significa “isolado”. Eles são jovens, quase em absoluto homens, que estariam
trancados em seus quartos e não sairiam mais deles. Suas formas de comunicação com o exterior eram através das
tecnologias: smartphones e computadores com acesso à internet, principalmente. Matavam seu tempo trancados
jogando MMORPG, lendo mangá e assistindo a animes.41 As razões que levam esses jovens a se isolarem fisicamente
de seu entorno são das mais diversas. Como conseguem se sustentar financeiramente, o relacionamento com
familiares, sua “sexualidade exacerbada”, a relação com a “depressão” ou a “fobia social”, seu relacionamento com a
estética nipônica e o significado dos jogos são algumas questões que poderiam vir a ser aprofundadas em um
momento mais oportuno, centrais para entender mais completamente o fenômeno hikikomori. Por hora,
centralizaremos a análise na estética mais “extrema” de solidão que esses jovens encabeçavam em sua relação íntima
com a tecnologia.
Segundo esses sites pesquisados, o fenômeno foi primeiro visto no Japão, onde jovens já formados e que não
conseguiam se inserir no mercado de trabalho se trancavam em suas casas, abrindo mão de se relacionarem
fisicamente com as pessoas. Posteriormente o mesmo comportamento foi notado no Reino Unido, sendo
denominados NEETs (Not currently engagged in Employment, Educationor Training) pelo governo.42 Apesar das diferenças
entre as experiências hikikomori em distintos países, seus motivos para se isolarem ecoam no mesmo tom: o que
eles chamam “pressão social”.
Conseguimos uma aproximação virtual com um membro brasileiro do grupo NHK chamado Anderson, de 22
anos. Ele foi o único, dentre todos os nossos interlocutores da pesquisa, que afirmou ser sozinho. Numa de nossas
conversas ele deixou claro seu descontentamento com a “sociedade” e a “pressão” que esta exerce. “Acho que a
sociedade em si exige demais e é cruel com pessoas que buscam fazer desse mundo um lugar melhor (...) Tipo
escravos do sucesso. Para quem não consegue esse sucesso é tipo um insulto, é ser um fracasso”.
A sociedade é apresentada nas narrativas de Anderson como uma entidade abstrata e coesa que se materializa
por meio de uma intensa pressão que exerceria sobre ele e vários outros jovens. Isolar-se, portanto, funcionaria
como uma tentativa de fuga desta força grandiosa. Dessa maneira, os hikikomoris passam a se ver como solitários ao
hipervalorizarem o contato físico como materialização da sociabilidade. Entretanto, ao se resguardarem em suas
casas, criam uma poderosa rede de relacionamentos virtuais que impulsionam uma sociabilidade outra. Anderson e
assim como muitos outros hikikomoris do grupo NHK possuem namoradas e namorados virtuais, casam-se nos
jogos virtuais, criam filhos nesses espaços etc. Isto é, eles passam a escolher com mais intensidade seu círculo de
sociabilidade pelas tramas ditas “virtuais” e não “reais”. Isolar-se, portanto, poderia ser pensado também como uma
outra forma de (re)encontro com os outros?
Figura 3: Imagem de capa do grupo NHK no Facebook.
Figuras 4 e 5: Memes compartilhados no grupo NHK

Figura 6: Página do mangá NHK. “Eu não quero falar com ninguém. Eu não quero fazer nada. Eu nem quero pegar o telefone. O que eu devo fazer? Bem-
vindo à história da vida de um hikikomori”. Copyright TatsuhikoTakimoto 2004, KendiOiwa, 2004. Publicado por Kadokawashoten)
Tendo em vista o rápido – e expressivo – exemplo do mundo dos hikikomoris e somadas às conversas com
outros interlocutores, uma temática tornou-se assim inevitável quando em campo: afinal, a internet e as novas
tecnologias geram mais aproximações ou afastamentos entre as pessoas? Em certo momento da pesquisa, uma
reportagem intitulada “Dormimos juntos, acordamos separados” publicada no Facebook provocou controvérsias
entre vários amigos.43Analisando os relacionamentos “na era Tinder”,44 o autor não identificado do texto
compartilhado era taxativo: tal plataforma para encontros virtuais era um “catálogo digital das relações sexo-afetivas
efêmeras”. Ele mostrava-se preocupado com o “esvaziamento das relações” provocado pelas facilidades de contato, tal
como “não se importar com os sentimentos alheios”, “agir cada vez mais sozinho”, entre outros fatores. Em sua
perspectiva, viveríamos uma “era das vaidades” e palavras como “corpo”, “narcisismo”, “consumismo”, “egocentrismo”
e “insatisfação” eram utilizadas para ilustrar o que seria esse momento contemporâneo face o advento da internet.
Nos comentários da reportagem, os internautas dividiam-se em opiniões, estabelecendo uma conversa virtual
bastante pertinente de ser aqui sintetizada. Por um lado, vários deles concordavam com o conteúdo exposto, sendo
críticos àquilo que um deles chamou de geração “fast-food”. O debate a favor da reportagem compartilhada seguia a
tônica a seguir:
Dá um nó na garganta saber que viramos “fastfood”, e que se não atendemos às expectativas por vezes até
excêntricas de quem quer que seja, viramos poeira no vento. (Leandro, 51 curtidas)
Bela crônica, que relata exatamente o que vive a maioria das pessoas hoje em dia. Não sou assim, ou
melhor, procuro não ser assim e acho que todos que não o são se sentem como eu. Alguém nascido fora
de seu tempo. (Flávio, 39 curtidas)
Não só fora do tempo, mas como se fossemos os alienados, os errados. Se você não segue o “padrão”
atual já te julgam como o errado ou pior, não aproveita a vida. Mas como aproveitar a vida sendo
superficial assim? Melhor ser antiquado hahaha ganhamos muito mais. (Thaís comentando o que Flávio
disse mais acima, 13 curtidas)

Os jovens confirmam o “diagnóstico de contemporaneidade” do texto, apesar de muitos acreditarem não


pertencer a tal geração. Sentem-se uma exceção perante um estilo de vida atual que consideram um tanto absurdo.
Por sua vez, um grupo menor de amigos posicionou-se de maneira mais cautelosa. Mesmo às vezes concordando
com a ideia de que aplicativos de paquera geram mesmo inúmeros contatos fortuitos, muitos lembraram que seus
relacionamentos amorosos surgiram nesses espaços virtuais, não sendo eles apenas um locus para encontros repletos
de fugacidade.
Achei o texto muito bom, Denise... mas tenho que fazer um comentário. Eu conheci o meu namorado
no Tinder. Estamos comemorando 9 meses de um relacionamento tão completo que nem consigo
comparar com outros que tive com pessoas que conheci “por aqui”. Entendi o que você quis dizer com a
falta de preocupação das pessoas estão entre si e com suas próprias relações, mas a frase “Volto para o
Tinder, o catálogo digital das relações sexo-afetivas efêmeras” é generalista demais :) (Carol, 20 curtidas)

A Carol não é uma das muitas exceções! O problema maior tá aí, muitos acham que o aplicativo é um
“catálogo digital das relações sexo-afetivas efêmeras”, mas nem todos que estão lá são assim. A Carol é
mais uma das muitas “exceções”rs (risos) que eu conheço. (Mayara, 2 curtidas)

Ao acompanharmos de perto esse debate ao longo de alguns dias pudemos constatar um certo predomínio entre
os jovens em se perceberem como membros da “geração fast-food”, mesmo que dela se distanciassem em seguida. A
maioria concordava com tal perspectiva e os comentários mais “curtidos” eram os que reafirmavam essa visão.
Entretanto, as ressalvas eram bastante frequentes – como as de Carol e Mayara anteriormente reproduzidas –
lembrando que era possível construir laços afetivos mais sólidos mesmo diante de tanta “relação efêmera”.
Todavia, se esse tipo de argumentação pode parecer restrito a uma controvérsia virtual entre amigos, são nesses
termos que muitos autores contemporâneos pensam as dinâmicas do viver juntos na era da internet. Atualmente
encontramos, em diagnósticos que se destacam pela sua diversidade, uma afirmação quase consensual de que seria
um “excesso de sociedade” (e não a falta dela) a gerar a solidão amorosa. Uma espécie de “conectividade sem
tréguas”, característica das sociedades contemporâneas – para a qual a imagem da rede social é paradigmática –, tem
sido consecutivamente apontada como produtora de um “transbordamento do social” e de uma
“hiperssocialibilidade”. Entretanto, segundo tais diagnósticos, este excesso é interpretado, na verdade, como falta,
uma versão contemporânea da anomia, pois a conectividade permanente se associaria a um maior “sentimento de
vazio” e à “artificialização das relações” – exemplos emblemáticos destes tipo de análises são os escritos de Turkle
(1997; 2012) e Bauman (2004). Este último autor chega inclusive a afirmar que a “proximidade virtual” se
transformou hoje na “norma social” dos relacionamentos, instituindo formas de agir que antes eram regidas
predominantemente pela “proximidade não virtual” (contatos face a face, por exemplo). Bauman defende que o
advento dessa “proximidade virtual” tornou as relações humanas mais frequentes, porém incapazes de se condensar
em “laços”, “ao contrário daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos
por perpetrar”. Não estabeleceríamos mais entre nós, portanto, “relações sociais”, mas “conexões” (breves, fortuitas
e inúmeras). E completa: “A distância não é obstáculo para se entrar em contato – mas entrar em contato não é
obstáculo para se permanecer à parte” (Bauman, 2004, p. 82).
Reflexões mais recentes feitas por Illouz (2011) sobre o amor no capitalismo contemporâneo seguem essa
mesma linha argumentativa de tonalidades pessimistas, variando apenas no enfoque analítico proposto. A autora
defende que a proximidade gerada pelo mundo virtual de hoje promoveria uma rearticulação entre a corporeidade
dos sujeitos e seus afetos, gerando, paradoxalmente, um maior distanciamento entre as pessoas. Se antes tendiam a
se compreender nos contatos face a face por meio de elementos que surgiam diretamente da interação e com os
quais não tínhamos plena consciência (a “imaginação romântica” é aquela em que gestos insignificantes podem
desencadear uma paixão), agora, nos diz Illouz, a “imaginação da internet” é efetuada por um conhecimento do
outro que exige uma forma racionalizada de escolha do parceiro, em que o conhecimento intelectivo tem
precedência sobre os sentimentos. Por conseguinte, a internet torna-se com isso uma “tecnologia
descorporificadora” capaz de provocar como nunca antes um desvio significativo da “tradição do amor” em nossa
sociedade (Illouz, 2011, p. 113-114). “Não se trata propriamente de que a tecnologia da rede empobreça a vida
pessoal e afetiva, mas de que ela cria possibilidades sem precedentes de sociabilidade e relacionamentos, porém os
esvazia dos recursos afetivos e corporais que até hoje nos ajudam a se sustentar” (Illouz, 2011, p. 157). Assim, a
ameaça da anomia – de que perderemos o nosso “sustento” existencial fruto do contato direto e corporificado de
uns com os outros – é um diagnóstico consolidado e recorrente nas visões de Turkle e Bauman, mantendo em Illouz
todo o seu vigor.
É nossa pretensão aqui ir justamente de encontro a esta constatação banalizada. Faz parte de nossos objetivos,
portanto, olhar de maneira menos simplista para os efeitos das novas tecnologias de comunicação na vida dos jovens,
buscando aferir se estas configurariam (ou não) experiências de solidão – em vez de dar isso por suposto,
consequência inevitável de um mundo em desalinho. Vimos que até mesmo entre jovens que se dizem sós e imersos
nas tecnologias, como os hikikomoris, o mundo virtual serve também para aproximações e trocas. Logo, uma de
nossas apostas analíticas é perseguir as pistas de nossos interlocutores, a de que a pessoa não está necessariamente
solitária quando conectada a computadores ou mergulhada em plataformas móveis de comunicação, tal como
ponderaram Mayara e Carol na conversa pelo Facebook. Seguindo aquilo que nos informam Almeida e Eugênio
(2006, p. 50), podemos observar também recentes configurações dos relacionamentos pela via da tecnologia a
distância como uma “camada adicional de sociabilidade” disponível aos jovens, e não uma fuga do social em prol de
um isolamento através da máquina. Muitas vezes essa camada interativa propicia novos recursos relacionais, outras
maneiras de estar no mundo que não são necessariamente frívolas, pouco envolvidas.
Nas conversas que tecemos sobre os aplicativos de celular voltados para o sexo e o namoro – como o já
mencionado Tinder, o Grindr,45 entre outros – dois jovens gays eram enfáticos em ressaltar a “praticidade” e
“facilidade” para os encontros casuais que tais plataformas proporcionavam. “Uso de tempos em tempos. Uso quando
quero fazer sexo. Sou solteiro e sinto vontade de fazer sexo”, nos confessou de maneira direta Francisco. Oda falou
algo parecido: “É tão fácil você chegar e mandar uma mensagem. Aí vamos nos conhecer, trocar fotos. Se curtir
rola. Se não curtir, não rola. É muito prático”. Os dois jovens costumam também criticar os chamados “enrolação”,
pessoas que nesses espaços virtuais não aderem de imediato ao jogo das múltiplas conexões em prol da “praticidade”
sexual, do encontro fortuito.“Tem aquela pessoa que fica enrolando, fica querendo massagear o ego e tem o pessoal
do sem enrolação, vai direto ao ponto”, complementa Oda.
A “arquitetura” direta e propositiva desses dispositivos para smartphones é reveladora da preferência que os jovens
pesquisados têm por tais aplicativos. Os outrora típicos “sites de relacionamentos” são vistos como menos diretos e
cheios de ferramentas para o preenchimento de informações (inclusive pagamento) que tornam as trocas amorosas
mais lentas. Enquanto no Tinder em alguns segundos é possível saber se existe alguém interessado em sexo a partir
de um “cardápio” de imagens, em sites de relacionamentos a paquera pode encontrar algumas barreiras temporais,
como uma ficha de inscrição. “A verdade é que todo mundo que usava esses sites acabou migrando para os
aplicativos. E tem aquele problema... Porque no site você não tem a localização da pessoa, você não sabe a
distância”, disse-nos Oda.
O que podemos verificar a partir de nossas observações de campo é que se desenvolve hoje em tais plataformas
digitais uma forma de sociabilidade que poderia ser vista não como estando em oposição aos encontros que
acontecem de maneira inesperada nos relacionamentos face a face e no âmbito da “tradição do amor” (como se isso
também não fosse possível on-line), mas, na verdade, tal como uma “camada adicional” de novos arranjos que se
juntam a esses mais banais, concretos, “corporificados”. É um ganho extra de relacionamentos, não a sua redução ou
aniquilação pelo excesso. As pessoas não são também acachapadas por múltiplas conexões já que delas fazem um uso
tátil, “a dedo”, incorporando novas relacionalidades em seus cotidianos conforme suas vontades.
Portanto, antes de se pensar o uso da internet e das plataformas digitais como instâncias geradoras do
desengajamento e isolamento dos indivíduos, por que não as pensar como uma busca por outros espaços de troca,
até então inéditos? Para a prática casual do sexo, apenas em espaços específicos de suas cidades, “reais”, os solteiros
Oda e Francisco encontrariam pessoas dispostas a isso, por exemplo. E cabe ressaltar também que os jovens não
possuem grandes pretensões de relação com tais aplicativos. Afinal, como disse Francisco, “amigo se faz na
faculdade”. Portanto, eles não reduzem suas trocas afetivas às plataformas e nem delas são dependentes, mas as
utilizam como um complemento, um tipo de sociabilidade “prática” acionada quando desejável e para fins
específicos, um incremento de suas “relacionalidades” cotidianas.
Certamente, nos diagnósticos negativos como os de Bauman e Illouz, teríamos nas histórias narradas por Oda e
Francisco exemplos emblemáticos da “hipersociabilidade” contemporânea acompanhada do “esvaziamento” das
relações pessoais. Ressentindo-se em seus trabalhos pelo suposto fim dos relacionamentos duradouros e dos
compromissos de longo-prazo, Bauman com certeza nomearia as paqueras fortuitas pelos smartphones desses jovens
como “relacionamentos de bolso”, do tipo de que “se pode dispor quando necessário” ou relacionamentos “vitamina
C” porque “em altas doses, provocam náuseas e podem prejudicar a saúde” (Bauman, 2004, p. 10).
Logo, a partir das dinâmicas de vida desses jovens e o que tais teorias nos informam, algumas questões vêm à
baila: a “praticidade”, a “fugacidade” ou a “rapidez” dos relacionamentos amorosos atuais são sempre tidos como
experiências negativas? O máximo de contatos sexuais em um menor tempo possível e no momento mais oportuno
é necessariamente uma prática danosa à vida social, uma ameaça ao equilíbrio “existencial” dos sujeitos? Além do
mais, não há nada de novo nessas novas maneiras de se relacionar por meio das “proximidades virtuais” que certas
perspectivas pessimistas não conseguem enxergar?
O que notamos em tais diagnósticos críticos é, na verdade, um problema mais estrutural. Eles partem de uma
visão conservadora e limitada do que são as dinâmicas sociais e do que se trata viver junto aos outros em sociedade.
Tais prognósticos também escondem um saudosismo por um sentimento de “comunidade” que, no passado, teria
unido os sujeitos em prol de um bem comum mas que, por conta do advento das sociedades contemporâneas
globalizadas, teria se esvaído. Formas que outrora garantiam algo em comum entre as pessoas e asseguravam alguma
consistência ao laço social teriam entrado em colapso na era da internet. Entretanto, nos alerta Pelbart (2003), a
“comunidade” nunca existiu nesses termos. São “clichês daquilo que nos liga no mundo” por defenderem uma forma
de vida dita “comum”.
No entanto, sabemos bem que esta “vida” ou esta “forma de vida” não é realmente “comum”, que quando
compartilhamos esses consensos, essas guerras, esses pânicos, esses circos políticos, esses modos caducos
de agremiação, ou mesmo esta linguagem que fala em nosso nome somos vítimas ou cúmplices de um
sequestro. (Pelbart, 2003, p. 28)

Essa perspectiva da “crise da comunidade” é cativa também de uma visão de que a sociedade é um ente sólido,
constituída por uma trama relacional de vívidos laços.Ademais, sua existência “saudável” só é possível quando esse
todo social se mantiver coerente e estável, enredando e englobando os indivíduos, algo que teria existido nesse
nostálgico passado comunitário. A internet e as relações amorosas “frouxas” – a “conexão” nos termos de Bauman –
são assim ameaças a esse ordenamento pacificado dos sujeitos que apenas um retorno à “comunidade” pode
ocasionar. Tanto é que, para Pelbart, o “solitário clássico” (2003, p. 31) é aquela pessoa que no interior da sociedade
de hoje desejaria ser cidadão de uma comunidade livre e soberana, precisamente aquela que essa mesma sociedade
em que ele vive arruinou. Nessa visão de mundo, segundo Pelbart, quem pensa em sociedade pensa também em
degradação da intimidade, fim da busca de um comum. Portanto, “a comunidade é aquilo que a sociedade destruiu”
(Pelbart, 2003, p. 31), tendo esta última na “proximidade virtual” de hoje uma de suas principais armas de guerra.
Ora, nos termos de Strathern (2014), essa perspectiva saudosista também pode ser vista como resultado de um
investimento há mais de um século na ideia de sociedade como uma entidade. Investimento este que não ocorre
apenas nos debates acadêmicos, mas que é, na verdade, indício das marcas cosmológicas da cultura ocidental
moderna em várias narrativas do que seria viver junto. Isso teria provocado consequências nas nossas vivências mais
banais já que o conceito abstrato apaga a real importância das relações no interior das quais as pessoas existem.
Assim, em vez de considerarmos as “relações”, as “socialidades” (Strathern, 2014, p. 239), como inerentes à nossa
noção de pessoa, colocamos para segundo plano essas relações em prol da sociedade e seu inevitável correlato, o
“indivíduo”. Ao falar de “indivíduo” e de “social”, portanto, pensamos em uma unidade, uma entidade em si mesma,
deixando de lado as relações que são intrínsecas aos sujeitos. Por isso a autora defende o abandono do conceito de
sociedade, por ele ser reflexo de uma perspectiva limitada e que não deixa espaço para outras potencialidades
humanas.
O que percebemos nas práticas das desmobilizações juvenis contemporâneas – apresentadas ao longo de todo
este livro – e, particularmente, nas “camadas adicionais de sociabilidade” amorosas resultados das interações pela
internet desenvolvidas nesta última seção é justamente a confecção de uma rede de afetos que busca tornar as
relações algo importante, e não mais secundário, na vida das pessoas. Se, para Strathern, “as pessoas têm potencial
para se relacionar e estão, ao mesmo tempo, sempre incorporadas em uma matriz de relações com outros” (2014, p.
239), o que os jovens desmobilizados fazem hoje é ir adiante com este projeto de vida mais relacional, recuperando
aquilo que a autora diz ser a intenção original da abstração de “sociedade”, desvirtuada pelos ideais modernos de
totalidade: transmitir a importância das relações na vida e no pensamento humano.
Logo, a “hipersocialidade”, as “conexões frouxas” assustam aqueles cativos de uma visão que leva em conta um
projeto moderno de sociedade como um todo coerente, este que Bauman e Illouz, por exemplo, se apegam e
buscam defender. Porém, se passarmos a observar o “social” pela via das relações constataremos que tais jovens dão é
vigor às suas tramas sociais, demonstrando que elas são intrínsecas à existência humana e não algo secundário e
externo a ela. Há, portanto, em suas ações uma afetação recíproca, uma produção constante de novos desejos e
associações, intensas formas de cooperação pelas vias virtuais. “Pôr em comum o que é comum, colocar para
circular o que já é patrimônio de todos, fazer proliferar o que está em todos e por toda parte, seja isto a linguagem,
a vida, a inventividade”, poderia sintetizar Pelbart (2003, p. 29) sobre tal solidão-ação dos dias de hoje. Isso é
justamente o oposto da noção apresentada mais acima do autor acerca do “solitário clássico”. Constatamos ao longo
deste trabalho um redesenho da ideia de solidão, em que os jovens se ligam muito mais a ideia de uma “comunidade
possível por vir” (Pelbart, 2003, p. 41) do que a uma nostalgia por interações passadas e laços comuns perdidos há
tempos.
De maneira “idiorritmica”, portanto, a juventude contemporânea baseia suas práticas virtuais numa “erótica das
distâncias”, erótica esta que não alude à dispersão e à desintegração, mas, sim, a uma forma diferenciada de
pertencer “em comum” ao mundo. São novas formas de associar-se que estão emergindo nos contextos mais
diferentes possíveis, objetivando preservar uma dimensão singular no coletivo e proliferar mais “socialidades” e
menos “sociedades” totalizadoras. Portanto, tais práticas podem nos ajudar a “descobrirmos comunidade lá onde não
se via comunidade” (Pelbart, 2003, p.41), matizando argumentos pessimistas sobre as novas tecnologias de
comunicação. Auxiliam-nos também a olhar para a solidão hoje como um modo de rematerializar um “junto” vital e
dissensual, uma ação positiva de cuidado da diferença pela via da formulação de uma ética do bem viver em que o
“junto” caminhe lado a lado com o “sozinho”. Por meio de uma dosagem dos distanciamentos, portanto, novos
mundos são possíveis de serem gradativamente cultivados, e não destruídos.

33
De acordo com Simmel (1964, p. 119): “The mere fact that an individual does not interact with others is, of course, not a sociological fact, but neither does
it express the whole idea of isolation. For, isolation, insofar as it is important to the individual, refers by no means only to the absence of society. On the
contrary, the idea involves the somehow imagined, but then rejected, existence of society. Isolation attains its unequivocal, positive significance only as
society’s effect at a distance – whether as lingering-on of past relations, as anticipation of future contacts, as nostalgia, or as an intentional turning away from
society”.
34
“Poliamor é uma categoria nativa que designa a possibilidade de se estabelecer simultaneamente mais de uma relação amorosa com a concordância dos
envolvidos. Segundo o blog Poliamores, existem basicamente três tipos de arranjos poliamoristas: a “relação em grupo”, quando todos os membros do arranjo
têm relações amorosas entre si; a “rede de relacionamentos interconectados”, quando cada membro tem relacionamentos poliamoristas distintos daqueles
dos parceiros; e a “relação mono/poli”, quando, em um casal, um dos parceiros é poliamorista e o outro, por opção, não é. Os modelos se dividem em
“aberto” e “fechado”. No primeiro caso, está colocada a possibilidade de novos amores e, no segundo, é praticada a “polifidelidade”, restringindo as
experiências amorosas àquelas já existentes.” (Pilão, 2015, p. 393).
35
Para uma análise mais detalhada sobre a diversidade poliamorosa, ver Pilão, 2015.
36
Meme se refere a uma imagem ou expressão que “viraliza” nas redes sociais, isto é, seu uso se espalha muito rapidamente pela web. Essas imagens ou
expressões são usadas de modos repetitivos em diferentes contextos de forma majoritariamente jocosa.
37
Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/04/braco-de- selfie-promete-acabar-com-solidao-em-fotos-sem-companhia.html.
Acesso em: 6 abril 2016.
38
Disponível em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/bombou-na-web/noticia/2013/08/japones-tira-bfotos-da-propria-maob-para-simular-
cenas-com-namorada.html. Acesso em: 06 julho 2016.
39
Disponível em: http://www.ipcdigital.com/japao/empresa-vende-esposos-de-algodao-para-pessoas-solitarias-no-japao/). Acesso em: 06 julho 2016.
40
O grupo contém 900 membros e reúne hikikomoris de todo mundo. Tanto o site quanto o grupo possuem o nome inspirado em um anime que conta o dia
a dia de um jovem rapaz Hikikomori.
41
MMORPG, Massively Multiplayer Online Role-Playing Game são jogos on-line com múltiplos jogadores no qual você assume um papel para si e constrói
um personagem mitológico que ganha progressivamente mais experiência e talentos. Mangá e Anime são gêneros de quadrinhos e desenho animados,
respectivamente, com uma estética similar que foram originalmente criados no Japão.
42
Atualmente sem emprego, sem estudar e sem estágio. Tradução livre.
43
Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/dormimos-juntos-acordamos-separados-sobre-relacionamentos-na-era-do-tinder/.
Acesso em: 06 julho 2016.
44
Tinder é um aplicativo de celular para encontrar possíveis parceiros e parceiras. É apresentado um catálogo de pessoas que você julga com apenas um clique
se gostou ou não (através de um “x” para não ou de um coração para sim). Há a possibilidade de filtrar o catálogo por gênero, idade e distância. Quando duas
pessoas “dão match”, isto é, marcam o coração no perfil um do outro, abre-se na lateral direita uma janela que possibilita que ambos conversem privadamente.
Dentro de cada perfil no catálogo é possível coletar algumas informações sobre a pessoa, como foto, uma pequena biografia, amigos em comum no facebook
e páginas (de artistas, jornais, blogs etc.) que “curtiram” em comum.
45
Diferentemente do Tinder, o Grindr é voltando apenas para o público gay. É igualmente um aplicativo de catálogo que otimiza a busca por relacionamento,
entretanto, ele costuma ser usado mais para buscar encontros efêmeros do que duradouros. Possui similaridade com o Scruff e Hornet, enquanto o Tinder
assemelha-se mais com o Happn.
Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes. “Criatividade contemporânea e os redesenhos das relações entre autor e obra: a
exaustão do rompante criador”. In: ALMEIDA, M.I.M; PAIS, J. M. (Orgs.), Criatividade, juventude e novos horizontes
profissionais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes; EUGÊNIO, Fernanda. “O espaço real e o acúmulo que significa: uma nova
gramática para se pensar o uso jovem da Internet no Brasil”. In: Nicolaci-da-Costa A. M. (Org.). Cabeças digitais: o
cotidiano na era da informação. Rio de Janeiro: Puc-Rio, 2006.

________. “Paisagens existenciais e alquimias pragmáticas: uma reflexão comparativa do recurso às ‘drogas’ no
contexto da contracultura e nas cenas eletrônicas contemporâneas”. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes; NAVES,
Santuza Cambraia. Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2007.

ALVES, Giovanni.Trabalho e subjetividade. O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo:
Boitempo, 2011.

BARTHES, Roland.Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAUMAN, Zygmunt.Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004.

BÉJAR, Helena. La cultura delyo: pasionescolectivas y afectos próprios em la teoria social. Madri: Alianza Editorial, 1993.

BESNIER, Jean-Michel. L’homme simplifié. Paris: Fayard, 2006.

BISPO, Raphael. “Retratos da solidão: sofrimento e moralidades femininas na velhice”. Sociedade e Cultura, v. 17, n. 1,
2014, p. 41-50.

__________.Rainhas do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. Rio de Janeiro: Mauad
X/Faperj, 2016.

BLANCHOT, Maurice. A comunidade inconfessável. Brasília: UnB, 2013.

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève.O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.
BUTLER, Judith. Precarious Life. London: Verso, 2004.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.
São Paulo: Edusp, 1997.

CARNEIRO, H. Rebeliões e ocupações de 2011. In: Occupy movimento de protestos que tomaram as ruas. São Paulo:
Boitempo: Carta Maior, 2012.

CHOMSKY, Noam.Occupy. Londres: Penguin Books, 2012.

CRARY, Jonathan. Capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução de Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naïf, 2014.

DANOWSKI, Debora; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins Desterro.
Florianópolis: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014.

DE CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. vol. 1. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

_________. “Os intercessores”. In:_______ .Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.

_________. “Sociedade de controle”. In:_______ .Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.

___________; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997 v. 4.

___________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997 v.5.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

EUGÊNIO, Fernanda. “Criatividade situada, funcionamento consequente e orquestração do tempo nas práticas
profissionais contemporâneas”. In: ALMEIDA, M.I.M; PAIS, J. M. (Orgs.). Criatividade, juventude e novos horizontes
profissionais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

FOUCAULT, Michel; SENNETT, Richard. “Sexuality and Solitude.” In: London Review of Books, n. 21, May/June,
1981.

__________. “Da amizade como modo de vida”. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos – volume VI: repensar a
política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

GONÇALVES, Eliane. “Nem só nem mal acompanhada: reinterpretando a ‘solidão’ das ‘solteiras’ na
contemporaneidade”. Horizontes Antropológicos, n. 32, p. 189-216, 2009.

GUATTARI, Felix. Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
HARDT, Michael; Negri, Antonio. Multidão. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.

__________.Império. Tradução de Berilo Vargas. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

HARVEY, David et al. Ocuppy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

HEILBORN, Maria Luiza. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond,
2004.

ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

INGOLD, Tim. “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes
Antropológicos, n. 32, p. 25-44, 2012.

JULLIEN, François. Um sábio não tem ideia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo finito. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

LATOUR, Bruno. Enquêtesur les modes d’existence. Une anthropologiedês Modernes. Paris: La Découverte, 2012.

____________. Il n’y a pas de monde commun: Il faut Le composer. In.: Multitudes. n. 45. Special, été 2011.
Disponível em: http://www.multitudes.net/il-n-y-a-pas-de-monde-commun-il/. Acesso em: 29 abril 2016.

____________. Reassembling the social: an introduction to Actor-Network-Theory. London: Oxford University Press,
2005.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

____________. Signos, máquinas e subjetividade. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

LEFEBVRE, Henry.O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus, 1999.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Relógio D’ Água, 1989.

____________. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

MACIEL, Luiz Carlos. “O tao da contracultura”. In: ALMEIDA, M. I. M.; NAVES, Santuza Cambraia (Org.). “Por que
não?”: rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2007.

MARTINS, Isis Ribeiro. 2010. “Só há solidão porque vivemos com os outros...”: um estudo sobre as vivências de solidão e
sociabilidade de mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado. PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ.

__________. Ser ou estar só na metrópole? Diálogos e inspirações no processo de pesquisa”. In: C. Castro; G. I.
Cordeiro (Org.). Mundos em mediação: ensaios ao encontro de Gilberto Velho. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

PAIS, José Machado. Nos rastos da solidão: deambulações sociológicas. Porto: Ambar, 2006.

PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

___________. “Como viver só”. In: Seminários Internacionais para a 27ª Bienal de São Paulo, 2006.

___________. Vida capital: ensaios sobre biopolítica. São Paulo: Editora Iluminuras, 2003.

PILÃO, Antonio. “Entre a liberdade e a Igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista”. Cadernos Pagu, p.
391-422, 2015.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

___________. O dissenso. In: NOVAES, Adauto. A crise da razão.São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ROSZAK, T. C. A contracultura. Petrópolis: Vozes, 1972.

SIMONDON, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Aubier, coll. Res.L’invention philosophique, 1989.

SLOTERDIJK, Peter. A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.

STANDING, Guy. The Precariat. The New Dangerous Class. Londres: Bloomsbury, 2011.

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naïf, 2014.

TURKE, Sherry. Life on the screen: identity in the age of the internet. New York: Si​mon & Schuster, 1997.

________ . Alone together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2012.

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1981.

WEAR, Delese. The Center of the Web: Women and solitude. Albany: State University of New York Press, 1993.

WOOD, Linda. “Loneliness”. In: R. Harré (Ed.). The social construction of emotions. Oxford: Basil Blackwell, 1986.

Das könnte Ihnen auch gefallen