Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
O romance Boa noite, senhor Soares foi lançado em 2008 e publicado no Brasil em
2009, pela 7 Letras. O livro traz um belíssimo prefácio de Maria Theresa Abelha Alves
que efetivamente apresenta a obra ao leitor, de um ponto de vista da crítica literária:
campos temáticos, personagens, espaços, tempos, ideologias, nada lhe escapa. A obra
tece um jogo intertextual com o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. O diálogo
entre um e outro texto se estabelece: Bernardo Soares, personagem da ficção
heteronímica pessoana em prosa, referido como semi-heterónimo ou personalidade
literária, torna-se duplamente fictício ao integrar agora o espaço do romance criado
por Mário Cláudio. Este jogo de personas e máscaras não poderia deixar de nos
lembrar José Saramago, em O ano da morte de Ricardo Reis. Tais estratégias ficcionais
evidenciam o interesse que a obra e a própria biografia de Pessoa despertam em
escritores e pesquisadores.
Boa noite, senhor Soares se organiza pelo filtro da memória de António da Silva Felício,
narrador em primeira pessoa que vai paulatinamente construindo uma narrativa
entremeada de “causos”, alguns vistos, outros ouvidos no murmúrio das personagens
ou ainda imaginados, casos de “que nunca mais me esqueci” (p.23), “E nunca mais me
esquecerei” (p.49), donde a abundância dos verbos lembrar, recordar, saber. Tal como
Mário Cláudio, que do presente resgata Pessoa, a personagem narradora vai relatando
suas impressões, suas vivências. O passado dialoga com o presente narrativo,
entrecruzando tempos e visões: “Um ror de perguntas assaltou-me nesse momento, e
ainda hoje me envergonho delas” (p.50) ou “cem anos que eu viva, jamais hei de
esquecer o sonho que tive” (p.53). A expressão “ainda hoje”, várias vezes empregada,
marca a permanência desse passado recuperado e ainda vivo em meio a um presente
asfixiante. O tempo indeterminado – remetendo ao “era uma vez” mítico - aflora em
diferentes sintagmas como “Naquela manhã”, que inaugura a narrativa; “recordo-me
de uma manhã” (p.26); “foi nessa ocasião” (p.32), “Foi então que ocorreu o fenômeno
extraordinário que jamais se me varreria da memória” (p.70) ou “Foi então que se deu
o acontecimento que haveria de determinar o resto da minha existência” (p.73).
110
O significado, para o narrador, da convivência com o senhor Soares parece se explicar
por pequenos grandes gestos, como o barquinho de papel dado a António com o nome
do rapaz no casco; a forma como Soares recebe o jovem em sua casa e,
principalmente, o abraço dado em António quando este resolve voltar para a aldeia
onde crescera. Há uma passagem, porém, em que essa importância se revela mais
clara nas palavras do narrador: “Mas naqueles meus sonhos acordados eu conferia ao
senhor Soares a missão que nunca professor algum desempenhara a meu favor, a de
explicar ao moço simples que eu era, (...) quanto de facto me importava decifrar sobre
os mistérios da Terra.” (p.75). O título reforça o respeito que António dedica ao amigo,
expressão reiterada na narrativa, às vezes pronunciada (p.30, 95), outras proferidas
com os olhos, numa mudez eloquente (p.51, 67). O senhor Soares, porém, dirige-se a
António em dois episódios. O primeiro, quando vê os folhetos do rapaz sobre lugares
que este gostaria de conhecer, “andarilho parado” (p.66), momento em que António
encontra a cumplicidade nas lentes dos óculos e nas palavras do senhor Soares, “Boa
noite, meu viajante” (p.67). O segundo, na cena de despedida do caixeiro, quando o
senhor Soares murmura: “Até sempre, António” (p.95).
O narrador António registra sua história e nela insere, em lugar de destaque, o senhor Soares,
“relato” que se encerra com a informação do nome do neto que nascera: Bernardo, o que se
deduz ser homenagem a esse senhor por conta da intertextualidade com o Livro do
desassossego, de Pessoa, pois o primeiro nome do senhor Soares não aparece na narrativa. No
meio da história, António já anuncia que anda a contar as histórias a um escritor, material que
“servia para um romance” (p.59). No final, dá-se o encontro de um e outro e António aceita o
acordo feito com um escritor que lhe assegura ser impossível narrar os fatos tal qual lhe estão
sendo passados, com fama de “se aproveitar das histórias alheias, transformando-as em suas”
(p.97) – clara alusão ao autor da obra, Mário Cláudio, segundo Maria Thereza Abelha Alves –,
pacto firmado, história a se realizar ainda – “veremos agora o que dali irá sair.” (p.98).
Uma obra tece a outra, que se entretece nos cruzamentos forjados, fingimentos literários que
marcam heterônimos e pseudônimos, “horizonte sempre ilusório, mas sempre promissor de
eternidades” (p.56).
Fernando Pessoa continua a fascinar. Mário Cláudio não escapou e vai fascinar o leitor com
esta revisita ao heterónimo Bernardo Soares. Aliás, um semi-heterónimo, como o próprio
Fernando Pessoa o definiu, na célebre carta a Casais Monteiro que aqui vou lembrar: «O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de
Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco
suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É
um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha,
mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.»
Bernardo Soares é portanto uma personalidade reservada e enigmática que se esconde atrás
do seu criador e com ele se confunde. E, se no prefácio de Fernando Pessoa, ele mesmo, ao
Livro do Desassossego, afloram elementos que permitem vislumbrar o seu autor, talvez esses
elementos conduzam o leitor a concluir que o traço central da personalidade de Bernardo
Soares seja precisamente a sua recusa em expor a circunstância da sua vida.
Tomá-lo para personagem central de uma história, como Mário Cláudio faz neste livro, poderia
sugerir uma quase total reinvenção. Mas não me parece ter sido essa a opção do Autor.
Preferiu enveredar por um caminho bem mais difícil, mas muito mais consentâneo com o
semi-heterónimo de Pessoa.
Para se manter fiel, em primeiro lugar ao criador, Fernando Pessoa, e em segundo lugar a
Bernardo Soares, o autor baseou-se em referências dispersas no Livro do Desassossego. E
recorreu a um artifício engenhoso, que vai envolvendo o leitor. Um processo de aproximação
progressiva, em que o visado (Bernardo Soares) quase sempre joga às escondidas, protegendo
a sua privacidade de um olhar directo, mas que atrai irresistivelmente a curiosidade.
Mário Cláudio escolheu para personagens alguns nomes que surgem no Livro do
Desassossego, e passo a citar: «Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava
grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde,
mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira,
do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório.»
Para narrador da história Mário Cláudio escolheu o moço do escritório, António, talvez por ser
o mais novo, o mais ingénuo e por isso mais capaz de ser tocado por aquele ser estranho com
quem convive à distância no escritório do patrão Vasques.
Em Boa Noite, Senhor Soares recebe um nome completo — António da Silva Felício — e é um
jovem acabado de chegar da província, mais precisamente de Escalos de Cima, concelho de
Idanha a Nova, para se empregar como aprendiz de caixeiro no escritório de um armazém de
venda a retalho da baixa lisboeta, na prosaica Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é
tradutor.
Com a simplicidade própria de quem nada conhece, António tudo e todos observa com
atenção. E limita-se a descrever o que presencia, como se o fizesse quase apenas para si
próprio, sem emitir juízos.
Desde o primeiro momento que o rapaz fica preso à figura do Senhor Soares que, segundo
diziam os seus colegas, «embora não se distinga de qualquer outro sujeito, a verdade é que
deu sempre mostras de ser um bocadinho esquisito» (p. 18).
No escritório todos sabem que escreve e que é poeta, e sem que António compreenda bem
porquê, o certo é que goza de um estatuto especial. Incluindo para o patrão Vasques e para o
guarda-livros, o senhor Moreira, que teoricamente ocupa o lugar de chefe do tradutor, mas
aceita de bom grado a alcunha de Dom Barómetro que o senhor Soares lhe atribuiu devido à
constante preocupação do guarda-livros com as condições atmosféricas.
Ao inserir-se no seu pequeno círculo de relações, António relata pormenores da vida de cada
um, sobretudo aqueles que se vão tornando motivo de conversa dos outros. E desenrola
perante o leitor um tecido urbano pardo, onde tudo remete para uma Lisboa murcha e
tristonha, fechada sobre si mesma, onde nada acontece, nada é dramático, nem exaltante.
Uma Lisboa onde o tempo não corre e, cito, «o dia seguinte seria de trabalho, igual aos da
semana anterior, e da próxima» (p. 31), e em que uma mediocritas nada áurea todos invade.
Todos não. Um ser escapa, um ser especial, que suscita a curiosidade do rapaz, por motivos
que ele próprio não entende.
E à medida que avançamos na leitura, a fantástica mestria de Mário Cláudio vai-nos permitir (a
nós, seus leitores) apreciar o modo como o rapaz se deixa tocar pela personalidade daquele
enigmático senhor Soares. O leitor só tem acesso ao discurso interior do rapaz, que revela a
sua total candura, a dificuldade em interpretar a sua própria experiência e os sonhos de
viagens que não fará.
Para além do convívio distante no escritório, António, compraz-se em avistar o Senhor Soares.
Observa-o com um fascínio de adolescente. Uma noite nas ruas mortiças da cidade, uma tarde
nas hortas onde, seguindo o cortejo dominical que arrasta os lisboetas para o inevitável
piquenique ao ar livre, o surpreende, em mangas de camisa a comer figos e a beber pelo
«gargalo das garrafinhas» (p. 31), acompanhado por outro senhor, médico, de seu nome
Ricardo Reis.
Tal como o avista noutra ocasião, e cito, «acompanhado por um sujeito, seu amigo, que (eu)
sabia chamar-se Vicente Guedes» (p. 42), um terceiro misterioso heterónimo, que sempre
surge associado a Bernardo Marques e ao Livro do Desassossego. Um belo dia o patrão
Vasques manda-o a casa daquele homem que tanto o impressiona e assim surge uma nova
expectativa de aproximação que o quase silêncio maladroit do senhor Soares deixa malograr.
De repente, vira-se a página e passaram 52 anos. António recorda vagamente a cidade, o seu
antigo local de trabalho, os sons que já não se ouvem… mas o que evoca com mais nitidez é o
Senhor Soares, que tão mal conhecera e que afinal tanto o marcara. A sua vida é um arco entre
a juventude e a velhice. Como na epígrafe de Shelley que abre o livro: «Youth will stand
foremost ever» («A juventude permanecerá para sempre, acima de tudo»).
Evocação pessoana ou alegoria sobre a juventude, ou ambas, este livro é para ler, suavemente,
da primeira à última página, sem parar.
O Retorno
Miúdo expedito e travesso que relata o que lhe acontece com uma leveza crua que magoa. Sai
de Angola rapaz, chega a Portugal chefe de família. Rui, Milucha e dona Glória são
encaminhados pelo IARN – Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais – para um hotel de
cinco estrelas no Estoril. Um edifício de luxo a abarrotar de pessoas desoladas, onde tem de
dividir o quarto com as duas mulheres, célere se transforma em prisão que asfixia Rui.
Repete amiúde, talvez para se consolar: «Um quarto pode ser uma casa e este quarto e esta
varanda de onde se vê o mar é a nossa casa.»
Faltavam-lhe o pai, os melhores amigos Lee e Gégé, a cadela Pirata, inclusive as vizinhas
coscuvilheiras que maldiziam a mãe. As referências de outrora foram-lhe arrancadas à pressa e
não houve tempo para se habituar ao frio, ou às pessoas que os acolheram desconfiadas.
Algumas hostis. Era, todavia, tão vulnerável quanto resiliente e acompanhamos o seu
recomeçar ao longo do período, que excedeu 365 dias, em que se encontrou naquelas
circunstâncias. Cruzamo-nos com novos amigos, com pessoas que o intrigam, com as paixões
que alimenta. Somos cúmplices nas transgressões. Na inocência também. Ouvimos-lhe o léxico
à moda de lá. - Geleira, cacimbo, ginga-ginga, dar maca, são exemplos. - Conhecemos os
hábitos que os desterrados trouxeram procurando, como podiam, reproduzi-los em parcos
metros quadrados. Ser-vos-ão apresentadas inúmeras personagens. Apaixonante(s). Trata-se
de viagem no tempo. Estamos em 1975. Temos quinze anos.
“O Retorno” é um romance que aborda o tema delicado e polémico que foi para Portugal a
descolonização, o fim do Império Ultramarino e o conturbado regresso dos Portugueses que
habitavam as colónias, após a Revolução de Abril de 1974.
A trama do romance é desenvolvida pela voz de Rui, narrador auto-diegético, cuja missão é a
de relatar o regresso da família de Angola, no período “quente” em que ameaça explodir a
Guerra Civil mediante a cisão política que grassa em Angola, após o fim imediato da Guerra do
Ultramar. No discurso de Rui está patente sobretudo uma perigosa dose de inconformismo,
que ameaça transformá-lo um ser inadaptado, ao chegar à capital portuguesa, mas que acaba
por se sublimar num implacável instinto de sobrevivência. Este inconformismo provém-lhe
sobretudo do facto de milhares de portugueses residentes em Angola serem condenados ao
exílio, para não morrerem às mãos dos locais, destacando o sentimento de impotência do
narrador face à fragilidade física e psíquica da mãe, agravada ainda mais pela sensação de
desenraizamento e perda de todos os bens.
Outro problema vivido na época por quem regressava das ex-colónias e equacionado pela
Autora é o violento choque cultural face à forma de viver na metrópole e que se encontra
patente no discurso de Rui ao qual está muitas vezes implícito um certo desprezo pela forma
de viver, de ser e estar dos portugueses da metrópole – habituados a meio século de
austeridade, repressão e pobreza, preconizadas pela ditadura do Estado Novo, forma de viver
que contrastava fortemente com o estilo de vida dos portugueses das colónias, pautado por
padrões de comportamento que implicavam uma maior liberalização de costumes, que se
refletia até no vestuário, sobretudo das mulheres.
O romance inicia com a exaltação do contraste resultante entre o diferencial de expectativas e
realidade com que se deparavam à chegada. O imaginário do Portugal bucólico de Rui,
polvilhado de belas jovens dríades com cerejas no lugar de brincos dos postais ilustrados, dá
lugar a um Portugal de gente cinzenta de ar anódino e triste que opta quase sempre pela
ausência de cor no vestuário.
A dor de deixar uma vida e uma casa para trás como os refugiados de Gomorra está
alegoricamente representada no pungente abandono de Pirata, a cadela que era como um
membro da família, dada a impossibilidade de transportá-la no avião sobrelotado. A isto junta-
se a incerteza quanto ao paradeiro do pai com forte suspeita de este já não constar no mundo
dos vivos.
Mal chegam a Portugal, Rui e a família e milhares de refugiados vêem-se obrigados a habitar
por tempo indeterminado um hotel de cinco estrelas no Estoril, disponibilizado pelo Governo
para receber os “retornados”.
Aumenta o sentimento de raiva, revolta e desprezo social por parte de Rui, fruto de um
sentimento íntimo de espoliação, sem conseguir interiorizar os motivos que conduziram à
situação que está a viver.
A mãe de Rui só sai do estado letárgico a partir do momento em que a estabilidade regressa e
o país assiste à lenta retoma económica nos anos que se seguem, já no dealbar dos anos
oitenta...
No epílogo, a voz do narrador transmite uma certa nota de esperança embora sempre com a
perspetiva de que nada é garantido.