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Primeira parte
Lúcia vive num tempo e num espaço concretos:
vive no século, retirada do século, mas com ligações estreitas ao século
1 Eric Hobsbawm, A era dos extremos: breve história do século XX, 1914-1991, Lisboa, Presença, 1996
(tradução da obra de 1994). O autor coloca as datas extremas deste «século entre 1914 e 1991» (p. 15) e refere que
«o mundo que se esfacelou no final dos anos 80 foi o mundo formado pelo impacte da Revolução Russa de 1917» (p.
16).
2
globais de informação que criaram pontes cada vez mais eficazes: todos estes acontecimentos
são pertença desse século XX. Assim foi o século em que a ciência formula a teoria da
relatividade, mas também a bomba atómica e as armas nucleares. Um século que também o
historiador poderia percorrer desde a gripe espanhola à sida, passando pelo antibiótico e por
tantas outras formas de controlar as doenças.
Nesta ladainha de acontecimentos, está ainda esse tempo de violentas formas
de governo, ditadas por regimes musculados e ditatoriais que conduziram ao holocausto e aos
gulags; está o tempo de colonialismo e de descolonização, de prisioneiros políticos e de uma
cortina de ferro que dividia a humanidade e se tornou símbolo da Guerra Fria, tempo em que
acontece também o debate em torno da paz, da solidariedade internacional e da democracia.
Este é o tempo de Lúcia, também pontuado pela ação dos papas, homens tão importantes para
aquela criança, com quem vai, no decorrer da sua longa vida, corresponder-se.
O conhecimento sobre o século XX está cheio de silêncios e de ruídos muito
expressivos, que conferem a este tempo uma fisionomia muito especial, ainda objeto de
múltiplos estudos, porquanto a distância temporal merece ainda prudência nas conclusões que
só podem tomar-se como provisórias, até que os desconhecidos dados que os arquivos
guardam venham a ditar renovados olhares.
O século XX é também responsável por uma nova abordagem do estudo do ser
humano, gerando novas formas de conhecimento: herdeiro da revolução científica do século
anterior, a centúria de Novecentos olhou para o homem e para a mulher como nunca antes
havia acontecido, pois as chamadas Ciências Humanas e Sociais (a Psicologia, a Psicanálise, a
Antropologia, a Filosofia, a Sociologia, a Economia, a História) trouxeram para o universo da
investigação temas nunca antes pensados ou, pelo menos, nunca cientificamente pensados
desta forma. Por exemplo, fazer a História do século XX é, pois, não estudar apenas as guerras,
as geografias, as instituições e as decisões políticas. É também olhar para cada ser humano que
deixou um trilho peculiar que é hoje vestígio muito concreto desse século multicolor, qual
mosaico de pequenas tesselas que compõem um cosmos habitado por acontecimentos de
impacto ao nível político, económico, social, religioso e eclesial, para apenas citarmos alguns.
Aquela personalidade histórica que nascera em Aljustrel e morrera em Coimbra
vive, de forma longa, neste século breve, o mesmo é dizer, se quisermos fazer uso da aceção
religiosa que este termo também comporta: vive no “século”, retirada do “século”, mas com
ligações estreitas ao “século” durante aproximadamente 100 anos (97 anos, 10 meses e 16 dias,
para sermos mais específicos).
3
Segunda parte
O que a historiografia ignora se não estudar a vida da protagonista de Fátima
4
do voto de obediência. Deixou por isso memória viva na comunidade em que viveu, na
sociedade em que agiu.
Cabe, assim, a pergunta que indaga até que ponto Lúcia encarna o papel dos
“heróis coletivos”, que nas palavras de Fernando Catroga são «emanações subjetivas da
consciência de um povo, de uma nação, de uma classe, da própria humanidade» 2. Evocando a
síntese de Hegel, o historiador que agora citamos, ao analisar os problemas que subjazem à
crítica histórica, fixa:
«tais indivíduos não tinham consciência da Ideia geral que desdobravam enquanto perseguiam os
objetivos deles [...]. Mas, ao mesmo tempo, eram homens de pensamento, com apreensão das
necessidades da época [...]. As individualidades histórico-mundiais — os heróis de uma época —
devem portanto ser reconhecidos como seus filhos de mais ampla visão: as suas ações, as suas
palavras, são as melhores desse momento»3.
Assim é considerada por muitos membros da geração que convive com Lúcia e
da geração que lhe segue, dentro e fora da sua comunidade, esta mulher cuja biografia é
manancial de informação. Assim se poderá falar da sua fama ou ‘exempla virtutis’, analisável
aqui não apenas segundo o tema que a Igreja Católica Romana inscreveu na “Sanctorum Mater.
Instrução para a realização dos inquéritos diocesanos ou das eparquias nas causas dos santos”4,
mas também no que respeita à ‘societas’ que vive num específico espectro do tempo5.
O que tentamos demonstrar com este itinerário é o seguinte: se Lúcia tivesse
vivido na Idade Média, o autor de “As Damas do século XII” tê-la-ia incluindo na sua obra,
juntamente com “Heloísa, Leonor, Isolda e algumas outras”6. E se o mesmo Georges Duby
(1919-1996), que quis rasgar horizontes na historiografia sobre a Idade Média, se se dedicasse
ao século de Lúcia e escrevesse um ensaio sobre as mulheres do século XX, teria incluído Lúcia
diocesane o eparchiali nelle cause dei santi, Roma, Tipografia Nova Res, 2007. Veja-se também Vincenzo Criscuolo,
Daniel Ols, Robert J. Sarno, Le Cause dei Santi. Sussidio per lo “Studium”, III edição, Vaticano, Libreria Editrice
Vaticana, 2014.
5 Conscientes de que os estudos sobre a santidade possam ter deixado «há muito de interessar ao
pensamento» (Augusto Joaquim, Estratégia do papado e mutações da santidade: alguns dados e reflexões a partir do
texto hagiográfico, em Georges Daix, Dicionário dos Santos do calendário romano e dos beatos portugueses, Lisboa,
Terramar, 2000, tradução do original francês, de 1996, p. 239-250; veja-se a p. 240), sublinhamos, com Maria de
Lurdes Rosa, que, ao menos o ramo do saber da historiografia, não tem deixado de trabalhar esta temática (veja-se
Maria de Lurdes Rosa, Historiografia da santidade no século XXI: percursos prévios, problemáticas atuais: balanço e
reflexão, em Lusitania Sacra, 2.ª série, n.º 28, julho-dezembro de 2013, p. 215-237). Permitimo-nos apontar para
uma súmula das leituras da santidade ao longo dos séculos: Marco Daniel Duarte, Paradigmas da santidade ao longo
da História: ao som da ladainha, breve história da santidade, em José Eduardo Borges de Pinho, Santificados em
Cristo: Dom de Deus, resposta humana, transformação do mundo, Fátima, Santuário de Fátima, 2016, p. 49-81.
6 Georges Duby, As Damas do Século XII. 1. Heloísa, Leonor, Isolda e algumas outras, Lisboa, Teorema, 1996
5
entre Jane Addams, Corazon Aquino, Coco Chanel, Hillary Clinton, Marie Curie, Aretha Franklin,
Madonna, Indira Gandhi e Teresa de Calcutá. Servimo-nos da lista que, em novembro de 2010,
a celebrada revista “Time”, a partir das representações do mundo feminino, cujos critérios,
obviamente, aqui não analisaremos, publicou sob o lema das mais importantes mulheres do
século XX7. Por esses dias, de forma cândida, um jornal nacional admirava-se por não se
encontrar um nome português entre as assinaladas8. É óbvio que os critérios passam pelo que a
historiografia já chamou de história da condição feminina (critérios que Lúcia não preencherá),
mas também é óbvio que a historiografia se tem preocupado mais em destruir mitos e se tem
demitido em relevar, necessariamente usando as ferramentas de crítica epistemológica, o que
esses mitos têm de realidade e de importância histórica9. A ciência médica apelidaria este
comportamento de “síndrome”; a ciência da psicologia juntar-lhe-ia um epíteto relacionado
com a identidade negada ou atacada. Assim se tem construído o que poderemos começar a
designar por silêncio epistemológico em torno da figura de Lúcia, desculpável pela proximidade
temporal relativa ao período da sua vida, mas sem desculpa quando lida a História Religiosa do
século XX a uma escala maior, como será a do catolicismo perspetivado em panorama
verdadeiramente mundial. Com efeito, atestar-se-á o impacto mundial desta figura quando o
investigador se der conta de que o registo do arquivo do Carmelo de Santa Teresa de Jesus
assegura que esta religiosa portuguesa recebeu incontáveis cartas oriundas de, pelo menos, 66
países10.
Ainda que Lúcia não preencha todos os requisitos para que os selecionadores
da conhecida da revista coloquem o seu nome entre as mulheres que colaboraram na Medicina,
na Assistência Social, na nova forma de encarar a sexualidade ou a imagem feminina, na
Economia e na Política mundiais, será de perceber se esta figura reúne ou não uma série de
características que a tornam notável no exame a que há pouco aludíamos com as esclarecidas
7 Cf. The 25 Most Powerful Women of the Past Century: Jane Addams (1860-1935), Corazon Aquino (1933-
2009), Rachel Carson (1907-1964), Coco Chanel (1883-1971), Julia Child (1912-2004), Hillary Clinton (1947-Present),
Marie Curie (1867-1934), Aretha Franklin (1942-Present), Indira Gandhi (1917-1984), Estée Lauder (1908-2004),
Madonna (1958-Present), Margaret Mead (1901-1978), Golda Meir (1898-1978), Angela Merkel (1954-Present),
Sandra Day O'Connor (1930-Present), Rosa Parks (1913-2005), Jiang Qing (1914-1991), Eleanor Roosevelt (1884-
1962), Margaret Sanger (1879-1966), Gloria Steinem (1934-Present), Martha Stewart (1941-Present), Mother Teresa
(1910-1997), Margaret Thatcher (1925-Present), Oprah Winfrey (1954-Present), Virginia Woolf (1882-1941).
8 Citamos o jornal “Expresso”: http://expresso.sapo.pt/as-25-mulheres-mais-poderosas-do-seculo-
xx=f616330#ixzz3Q1G3Iar0, consultado em 2016.11.27.
9 Não estaremos à espera que o papa João Paulo II ou que Pio XII, apenas para citarmos alguns, sejam
estudados por historiadores portugueses que não têm acesso facilitado aos arquivos que custodiam a informação
sobre estas personalidades da História.
10 Contem-se: África do Sul, Alemanha, Angola, Argélia, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Brasil,
Bruxelas, Canadá, Checoslováquia, Chile, Colômbia, Croácia, Cuba, Egipto, El Salvador, Equador, Eslováquia, Eslovénia,
Espanha, Estados Unidos da América, Filipinas, França, Gana, Gibraltar, Grécia, Guiné, Havai, Holanda, Hungria, Índia,
Inglaterra, Iraque, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Jugoslávia, Líbano, Malásia, Malta, México, Moçambique, Nigéria, Nova
Zelândia, Palestina, Panamá, Peru, Polónia, Porto Rico, Portugal, Quénia, República Checa, Rússia, São Tomé e
Príncipe, Sibéria, Singapura, Síria, Sri-Lanka, Suíça, Tanzânia, Uruguai, Vaticano, Venezuela, Zimbabué.
6
palavras de Fernando Catroga (1945-) acerca dos heróis de uma comunidade. Entrarão aqui os
problemas relativos à História do Presente ou de um Passado muito próximo e da dificuldade de
discernir o papel do historiador no que respeita a esse tempo tão imediato11, nomeadamente
no que respeita à vigilância sobre a instrumentalização do seu labor.
A distância necessária para a abordagem destas realidades, e bem assim a
dificuldade em “agarrar” temáticas que, de forma preconceituosa, os historiadores, para esta
época, querem ainda votar a outros cientistas sociais12, levam a que o específico olhar desta
particular forma de entender o decurso dos tempos — a forma de olhar do historiador — não
seja chamada a construir a maneira de estruturar o próprio pensamento humano.
Com efeito, os estudiosos de idades históricas mais antigas não têm receios em
perceber quais eram os protagonistas do tempo que analisam, sejam esses protagonistas mais
ligados à sua forma de entender o mundo ou mais afastados das mundividências do
investigador. Isto é, não será necessário termos uma afeição maior ou menor por Filipa de
Lencastre, por Brites de Almeida, por Mariana, de Évora, Joana de Aveiro, Beatriz da Silva, Isabel
de Aragão (ou de Coimbra), ou pelas santas de Lorvão e de Arouca para justificarmos a
existência de estudos sobre estas figuras, as últimas citadas, como sabemos, ligadas à ‘res
religiosae’. Todas elas se apresentam, ao olhar da historiografia atual, como figuras
controversas, vindas de um universo feminino envolto em construções mitográficas, mas sem
que isso afaste biógrafos e historiadores. E assim, na senda do que a história preconizada pelos
grandes estudiosos do século XX defendia, entrecruzando as fontes documentais, se evitarão
vazios históricos, ainda que, inevitavelmente, surjam zonas de dúvida e de lacunas.
Os discípulos desta forma de pensar a construção histórica foram, de facto,
fixando que todos os comportamentos humanos são historiáveis, desde que o conhecimento
esteja alicerçado em fontes criticamente avaliadas. José Mattoso (1933-) di-lo claramente:
«outrora, “factos históricos” eram só as acções dos chefes políticos, dos génios ou dos heróis.
Desde que a História da humanidade se alargou, tudo tem dimensão histórica: desde a forma de
enterrar os mortos até à conceção do corpo, desde a sexualidade até à paisagem, desde o clima
até à demografia»13.
11 São muito pertinentes as reflexões de Rui Bebiano, Temas e problemas da história do presente, em José
d’Encarnação (coord.), A História Tal Qual se Faz, Coimbra, Edições Colibri / Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, 2002, p. 225-236.
12 Continuamos a seguir as conclusões de Rui Bebiano.
13 José Mattoso, A Escrita da História. Teorias e Métodos, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 17.
7
taxonomia que bem pode ser usada no contexto de estudo da figura de Lúcia, justificação que,
mesmo longa, merece ser apreciada:
«[a História opera] uma observação que procura captar todas as suas dimensões: não apenas as
aparentes e imediatas, mas também as ocultas, não apenas as mensuráveis, mas o que as coisas
evocam ou simbolizam, não apenas o que nelas é classificável segundo os parâmetros das
diversas taxonomias científicas, mas também o que só pode ser captado num registo poético. A
apreensão do real em todas as suas facetas implica que se ponham em jogo todas as faculdades
de observação, não apenas as racionais, mas também as volitivas, o que corresponde a dizer que
os sentidos do corpo e do espírito se deverão ‘abrir’ de tal modo ao real, que ele seja como que
interiorizado, absorvido, captado em nós mesmos»14.
«Este exercício é, por isso, um ato de amor. Um amor na plena aceção da palavra, isto é, que não
é contaminado pela tentação de possuir, dominar ou destruir, mas que mantém intacta a
alteridade, a radical separação do sujeito e do objeto, e que tenta estabelecer a relação com ele
através do verbo interior, em todas as suas dimensões: o cântico de admiração, o diálogo do
gesto, a descoberta do símbolo, o desencadeamento da palavra poética» 15.
em 1992; vejam-se os capítulos, precisamente sublinhadores da importância dos primeiros estudos sobre relevantes
figuras que a historiografia ignorava, mas fundamentais para o pensamento: O homem, a lenda e a obra. Sobre
Rabelais: ignorâncias fundamentais, p. 9-28; Ressurreição de um pintor. Georges de La Tour, p. 83-91.
8
Façamos, de forma rápida, esse exame, firmados na lição de Mattoso que
advoga uma História não contaminada pela «tentação de possuir, dominar ou destruir, mas que
mantém intacta a alteridade, a radical separação do sujeito e do objeto, e que tenta estabelecer
a relação com ele através do verbo interior, em todas as suas dimensões»17.
Se pudermos confiar que as categorias temáticas que o Repertório Bibliográfico
da Historiografia Portuguesa (1974-1994)18 colhe são as que interessam aos historiadores em
Portugal19 — e elas estão fixadas nas que têm interessado à comunidade científica internacional
— divisaremos diversas áreas em que Lúcia pode vir a ser um verdadeiro caudal de informação.
Para já não referir o que possa ser produzido em obras enciclopédicas, dicionarísticas e de
carácter instrumental como são as cronologias (muito úteis e pelas quais todos esperamos),
fixemo-nos nalguns pontos como são, a começar, as “Biografias e genealogias”, temática da
qual, inclusive, a própria Lúcia foi cultora, como se vê nas suas “Memórias”, principalmente na
primeira, em que escreve sobre Jacinta, na quarta, em que biografa Francisco, na quinta e na
sexta dedicadas a fazer a História da Família, concentrando o seu esforço, sobremaneira na
figura do Pai e da Mãe, respetivamente20.
Continuemos a seguir o temário estabelecido pela comunidade dos
historiadores. Não causará estranheza, certamente, se iniciarmos o estudo pela “História
religiosa”, “da Igreja”, das “Ordens, congregações, abadias e conventos”, assim como das
“Hagiografias”. Mas falta então que apareça esse biógrafo informado para que possamos ler o
itinerário de Lúcia, para que possamos, inclusivamente, chegar à sua geografia. Saberemos nós
qual é, efetivamente, a geografia de Lúcia? Será Fátima, e dentro desta a Cova da Iria ou os
Valinhos, Aljustrel ou a sede paroquial, ou será Ourém, Leiria (Cortes, Reixida), Torres Novas,
Lisboa, Santarém, Porto, Tui, Pontevedra, Braga, Coimbra? Ou será também Roma, as cidades
da Rússia e tantos outros lugares onde a figura é conhecida ou onde o seu nome consta dos
arquivos, orais ou institucionais, que dela guardam informações, como Nova Jérsia nos Estados
Unidos da América e Bérgamo em Itália, mas também em Espanha, no Brasil e tantos outros
lugares, de pelo menos 66 países diferentes, onde inspirou homens e mulheres?
E, assim o conseguimos prever, para outras áreas temáticas Lúcia contribuirá
quando na sua documentação se lê, por exemplo, sobre “transportes e comunicações”, outra
zona temática que a historiografia contempla:
a nota da p. 669).
20 Lúcia de Jesus, Memórias, edição crítica de Cristina Sobral, apresentação de Marco Daniel Duarte, Fátima,
9
«De Espanha oferecem-nos umas imagens para o presépio do Natal se nós conseguimos meio de
elas virem: Nossa Senhora e S. José tamanho de 0.70c., o Menino Jesus, o boi e a burrita de
tamanho proporcionado a Nossa Senhora. Caso V. Ex.cia nos possa fazer mais este favor pedimos
ao Sr. Alcalde de Avilés o favor de entregar tudo na Embaichada [sic]: não é preciso vir tudo junto
nem temos preça, poderá vir uma figura de cada vez e vindo no carro poderá vir sem caixote que
é o que mais avulta, se assim poder ser digo para as entregarem simplesmente bem embrulhadas
e cada figura separada»21.
«Essa Senhora faz-me o favor de os passar na fronteira e remete-los no correio de Valença, assim
chegam cá sem complicações de Aduanas»22.
«Precisava umas meadas de seda azul celeste vivo e encarnada, da classe da amostrazinha que
envio, se fosse possivel encontrar-se ai em Lisboa? aqui em Coimbra já mandamos procurar e não
conseguimos encontrar. Caso encontre, podia mandar só uma meada de cada côr, isto é azul e
encarnada a vêr se o tom da côr serve e caso sirva, digo então a quantidade que preciso, é para o
paramento. Desculpe-me mais esta massada sim?»25.
21 Arquivo do Santuário de Fátima [doravante, ASF], fundo António Maria Martins, núcleo 1, cx. 6, pasta 14,
1950.07.30.
10
E tantos outros objetos fizeram parte deste universo, como os socos que ao
claustro chegaram acima do tamanho desejado:
«Agradecida pela sua carta e pelos socos que chegaram muito bem, Deus lhe pague. São um nº
maior que nós pedimos, isto é de 39 e desejavamos 38, mas não faz mal, há cá Irmãs que gastam
este numero e bom geito lhe fazem, assim que quando poder manda-nos outros 2 pares nº 38
isto é um numero para mais pequeno, a diferença é pouca mas a calçar sente-se bastante» 26.
«agradeça por mim [...] todos os mimos com que beneficiaram a Comunidade. Os rebuçados, não
sei dizer quais são melhores, gostei de todos. Sou como os golosos que gostam de tudo o que é
doce: mas é preciso fazer penitência que está o mundo muito precisado... Só em algum dia de
fésta muito grande, nos podemos permitir algum regalito assim. Diga isto a seus bons Pais para
que não estejam a gastar em coisas demasiado bôas para nós»27.
E tantos outros temas poderíamos aqui integrar, com a cautela que teremos de
ter para usar documentação inócua, uma vez que estes testemunhos escritos estão ainda sob a
proteção dos cânones civis e eclesiásticos.
Será importante a perceção que Lúcia teve dos “Movimentos e conflitos sociais”
que pontuaram esse século breve, ficando, assim, demonstrado que essa “etiqueta” ou, como
se diria hoje, essa ‘tag’ “História económica e social” tem cabal pertinência no estudo desta
figura.
Também a “História política e institucional” poderá ser avaliada a partir da
biografia de Lúcia de Jesus, na sua relação com o mundo da política e, inclusivamente, com os
seus agentes, mas também ao nível da chamada “História cultural”, nomeadamente no
respeitante ao mundo da “Imprensa, livro e meios de comunicação social em geral”, assim
como o universo do “Ensino. Instituições culturais e educativas”. A sua carta para um rapaz que
pensa sair do seminário onde estudava é bem elucidativa, por exemplo, do papel
importantíssimo que as instituições de ensino ligadas à Igreja, nomeadamente os seminários,
tiveram na promoção da educação entre as camadas cultural e economicamente mais
26 ASF, Caixa Teresa Rodrigues Fonseca, Carta e Cartão de Lúcia a Teresa Rodrigues Fonseca, 1958.01.29.
27ASF, AMM, núcleo 1, caixa 8, pasta 19, doc. 75, Carta de Lúcia para Isabel da Silva Marques Pinto,
1950.07.30.
11
desfavorecidas da sociedade nos anos meãos do século XX português. Começa assim este
documento:
«[...] escrevo-te esta carta porque chegou-me cá a noticia de que não te estás a portar lá muito
bem! então que é isso?».
«[...] tu pegas numa enchada e vais todo o dia a cavar a terra para junto do teu pai, á chuva e á
torreira do sol ganhar o pão que hás-de comer. Vê lá o que será mais pezado, a enchada ou livro?
cavar ou ler, não penses que vais ficar toda a vida a comer do trabalho dos teus pais, não se fores
para casa has-de trabalhar para ti e para os outros. Queres então ver os teus irmãos todos
sacerdotes só tu aldeão com uma triste enchada ás costas comendo o pão com o pó da terra? —
Olha, todos os que se portaram mal e por isso sairam do Seminario agora arrependidos choram e
pedem para voltar, mas não se lhes concede. Queres também ser um desses? [...]»28.
28 ASF, Coleção Documental Lúcia de Jesus, caixa 1, doc. 32, Carta de Lúcia para o seu sobrinho Manuel,
1957.04.07.
29 Tarcísio Bertone, Giuseppe de Carli, A Última vidente de Fátima, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007, p. 58-
61; veja-se também Fátima: Uma mensagem para a Igreja, um apelo à comunidade e à humanidade. Tarcisio Bertone
entrevistado por Aura Miguel, em Fátima XXI. Revista Cultural do Santuário de Fátima, n.º 1, maio de 2014, p. 92-103.
12
feminino português30. E facilmente passamos, no caso de Lúcia, de uma microescala para uma
escala universal, da “História local” para a “História do mundo”, não faltando temas,
acontecimentos, episódios e cenários históricos capazes de caracterizar, não apenas uma
específica mulher, mas também, através dela, o próprio século XX ou, com maior justeza, uma
parte desse século tão plural.
A somar a todas estas temáticas, ou, talvez melhor, a antecipá-las, estão
também os estudos ao nível da “Edição de fontes históricas”31, dos “Inventários de arquivos” e
outros catálogos e índices de instituições que custodiam a documentação que esta mulher
produziu32 e dos museus e outros lugares de caracterização museológica que guardam objetos
que lhe pertenceram33.
Poderá a historiografia prescindir de fontes tão ricas para a história do século
XX? Certamente que não, pois na busca incessante que os historiadores hoje levam a cabo, na
procura de fontes documentais que permitam aceder à ação e pensamento humanos, veria em
Lúcia um abundante repositório de informação. Ou estaria este tema inscrito no célebre livro de
Marc Ferro (1924-) intitulado “Os tabus da História”34? Em Portugal, parece ainda haver um
30 Veja-se Não quero vulgarizar Fátima, sabe? quero sentir Fátima. Maria José Paschoal entrevistada por
Carla Abreu Vaz e Cláudia Rocha, em Fátima XXI. Revista Cultural do Santuário de Fátima, n.º 2, outubro de 2014, p.
108-119.
31 António Maria Martins, Memórias e Cartas de Lúcia, Porto, s.n., 1973; Idem, Novos Documentos de
Fátima, Porto, Liv. A. I., [1984]; Lúcia de Jesus, Memórias, supracitado; Documentação Crítica de Fátima. I –
Interrogatórios aos Videntes - 1917, Fátima, Santuário de Fátima, 1992; Documentação Crítica de Fátima. II –
Processo Canónico Diocesano (1922-1930), Fátima, Santuário de Fátima, 1999; Documentação Crítica de Fátima. III –
Das Aparições ao Processo Canónico. 1 (1917-1918), Fátima, Santuário de Fátima, 2002; Documentação Crítica de
Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano. 2 (1918-1920), Fátima, Santuário de Fátima, 2004;
Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano. 3 (1920-1922), Fátima,
Santuário de Fátima, 2005; Documentação Crítica de Fátima. IV – Do início do Processo Canónico Diocesano à criação
da Capelania. 1 (3 Maio. – 12 Out. 1922), Fátima, Santuário de Fátima, 2006; Documentação Crítica de Fátima. IV –
Do início do Processo Canónico Diocesano à criação da Capelania. 2 (13 Out. 1922 – 12 Out. 1924), Fátima, Santuário
de Fátima, 2007; Documentação Crítica de Fátima. IV – Do início do Processo Canónico Diocesano à criação da
Capelania. 3 (13 Out. 1924 – 31 Dez. 1926), Fátima, Santuário de Fátima, 2007; Documentação Crítica de Fátima. IV –
Do início do Processo Canónico Diocesano à criação da Capelania. 4 (1 Jan. 1926 – 12 Jul. 1927), Fátima, Santuário de
Fátima, 2009; Documentação Crítica de Fátima. V – Da criação da Capelania à carta pastoral. 1 (13 Jul. 1927 – 31
Dez. 1928), Fátima, Santuário de Fátima, 2010; Documentação Crítica de Fátima. V – Da criação da Capelania à carta
pastoral. 2 (1 Jan.– 30 Jun. 1929), Fátima, Santuário de Fátima, 2010; Documentação Crítica de Fátima. V – Da criação
da Capelania à carta pastoral. 3 (1 Jul. – 31 Dez. 1929), Fátima, Santuário de Fátima, 2011; Documentação Crítica de
Fátima. V – Da criação da Capelania à carta pastoral. 4 (1 Jan. – 30 Abr. 1930), Fátima, Santuário de Fátima, 2011.
32 Citamos alguns lugares onde se custodiam essas memórias, quase todas por trabalhar: Arquivo do
Carmelo de Santa Teresa (Coimbra), Arquivo da Companhia de Jesus, Arquivo da Congregação da Doutrina da Fé
(Vaticano), Arquivo da Congregação para a Causa dos Santos (Vaticano), Arquivo da Congregação das Irmãs de Santa
Doroteia (Província Portuguesa), Arquivo da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria,
Arquivo Distrital de Santarém, Arquivo Distrital de Leiria, Arquivo Episcopal de Coimbra, Arquivo Episcopal de Leiria,
Arquivo da Fondazione Papa Giovanni XXIII (Bergamo), Arquivo Histórico Municipal de Ourém, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, Arquivo Paroquial de Fátima, Arquivo Particular de Maria de Belém, Arquivo Particular de Maria
Rosa Vieira, Arquivo da Postulação de Jacinta e Francisco Marto, Arquivo das Reparadoras de Nossa Senhora de
Fátima, Arquivo do Santuário de Fátima, Arquivo da Secretaria de Estado (Vaticano).
33 Sónia Vazão, Os testemunhos materiais dos videntes de Fátima: o olhar da Museologia, em Fátima XX.
13
silêncio sobre Lúcia, não apenas o silêncio típico da clausura, mas um enorme silêncio da parte
da comunidade dos estudiosos e das academias.
O seu percurso biográfico, longe de se poder resumir numa conferência,
mostra-se de uma grande riqueza, porquanto se cruzou com milhares de pessoas, abraçou a
vida religiosa em duas ordens distintas, optando pelo silêncio da clausura que, não obstante, se
mostrou, nalguns temas, grito de veemência quando se fez por diversas vezes portadora de
pedidos junto dos maiores protagonistas do mundo católico novecentista.
E desse percurso ficaram testemunhos, escritos e materiais, orais, oficiais e de
informalidade, públicos e privados, marcas lavradas em diversos materiais, sobretudo através
da força da escrita que fixa, “preto no branco”, como dizem os cultores da História da Escrita, as
formas de pensar, de refletir a realidade. Seria estudo do maior interesse perceber que tipo de
relação Lúcia tem com a cultura escrita, com as margens do papel, com as linhas regradoras,
com o importante tema da própria identidade, isto é, de assinar ou não os documentos que
produz35.
Ainda da Lúcia escritora, falta analisar que metonímias usou, que comparações,
que metáforas e de que repetições se serviu para transmitir os conteúdos ligados à experiência
sobrenatural que afirmou ter vivido e que dela fez uma das mulheres mais conhecidas do
mundo católico contemporâneo36. Falta analisar, ainda, o contributo da Lúcia “antropóloga”, a
quem se deve a recolha de muitos costumes da aldeia em que nasceu, designadamente de
alguns cantares da sua terra e a quem se deve o conhecimento de que, naquele lugar, se
cantava a “Salve, nobre padroeira”, a “Virgem Pura” e “[Ó] Anjos cantai comigo”37. Adivinhá-lo-
ia o historiador da música que quisesse transpor o que os cantorais daquele tempo fixaram, mas
a certeza de que aqueles sons ali eram levantados, ainda que o relato seja já dos meados dos
anos 30, vem-nos de Lúcia quando escreve a sua “Primeira Memória”.
Efetivamente, Lúcia, para além de ser protagonista ou figurante de uma
específica narrativa histórica, é lugar de memória, de uma memória tantas vezes interrogada
através da tão importante técnica do questionário, como refere Georges Duby38 nas suas
35 Sem propósito de explanar esta temática, lembramos que Lúcia não assina as cartas que endereça ao
bispo (que, mais tarde, ficariam conhecidas pelas primeiras quatro “Memórias”), não assina a Terceira Parte do
Segredo de Fátima, diz ao bispo que não quererá assinar alguns dos interrogatórios a que é submetida.
36 Maria Luísa Malato Borralho, “O elogio dos lugares. As Memórias de Lúcia”, em Alfredo Teixeira (coord.),
em Quereis oferecer-vos a Deus? Ciclo de conferências 2011-2012, Fátima, Santuário de Fátima, 2013; veja-se
também da mesma Autora, “Isto sim, que a gente nunca pode dizer!”. O Segredo e a Literatura, em Fátima XXI.
Revista Cultural do Santuário de Fátima, n.º 1, maio de 2014, p. 55-63.
37 Lúcia de Jesus, Primeira Memória, p. 14 (124 da edição crítica supracitada); veja-se ainda, Sexta Memória,
p. 127-128 e 172.
38 Georges Duby, Para uma História das Mentalidades, Lisboa, Terramar, 1991, p. 21 (tradução do estudo
de 1971).
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reflexões sobre as ferramentas da História, e a quem se deve a fixação do que os outros não
viram39.
Poderá o historiador ignorar as fontes que tem disponíveis? E deixar lacunar a
História que constrói sem aquilatar esses especiais informes, sejam eles sobre os primeiros anos
de Lúcia, sejam eles sobre as diferentes etapas da sua vida que termina no Carmelo de Santa
Teresa de Coimbra, onde tem morada por bem mais de meio século?
Como vivia uma postulante da Congregação fundada por Paula Frassinetti
(1809-1882), na primeira metade do século XX? que pensamento tem a noviça doroteia sobre o
seu tempo? e como seria a vida de uma carmelita que recebia inúmeras cartas oriundas de
tantos lugares do mundo? como entendeu, no claustro de um carmelo, o maior acontecimento
eclesial do século XX, o Concílio Ecuménico do Vaticano II? como é que se posicionou no
contexto desta reunião magna, no contexto do ‘aggiornamento’ com que a Igreja lia o mundo
de uma forma nova? como viveu a subida à cadeira de Pedro de Albino Luciani, que a visitara no
ano anterior no seu carmelo, em Coimbra? que reação teve à conjuntura histórica inaugurada
no dia 25 de abril de 1974? como reagiu à notícia de o papa, no dia 13 de maio de 1981, ter
caído perante a bala que o atingiu, nesse preciso dia em que, com toda a segurança, Lúcia há de
ter lembrado a experiência inefável que afirmara ter vivido com seus primos, 64 anos antes?
como terá relacionado esse acontecimento com o que, quatro décadas antes, havia escrito num
papel de carta?40 como apreendeu as guerras, a queda desse muro que dividia dois mundos
com os quais Lúcia estava tão familiarizada através da sua insistência relativa à mensagem de
que se achava depositária?
Serão todos estes aspetos o que a historiografia ignora se não estudar a vida da
protagonista de Fátima, se não estudar a vida da vidente, da doroteia e da carmelita. Abrir esse
tema de estudo é contribuir, também, para a própria historiografia do século XX. E assim
poderíamos ver o tema da escolaridade em meios rurais, da forma de uma mulher que aprende
a escrever muito tardiamente ultrapassar essa limitação ao ponto de não mais cessar de
escrever, ao ponto de manter uma correspondência epistolar com todos os patamares da
sociedade, correspondendo-se com seminaristas, religiosos e religiosas, presbíteros, bispos,
cardeais e, até, com os próprios papas.
39 Maria Luísa Malato Borralho, Realismo e aparição: as memórias da Irmã Lúcia, em Notandum 33,
CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto, set.-dez. 2013, p. 23-34. Ainda sobre a questão literária dos textos de
Lúcia, veja-se Maria de Lourdes A. Ferraz, A linguagem verbal das aparições. Uma aproximação à Mensagem de
Fátima do ponto de vista da Literatura, em Fenomenologia e Teologia das Aparições. Actas do Congresso
Internacional de Fátima, Fátima, Santuário de Fátima, 1998, p. 439-453.
40 Sobre esta peça leia-se Maria José Azevedo Santos, Por todo o escrito passa o mistério até ser lido: o
Segredo de Fátima, em Fátima XXI. Revista Cultural do Santuário de Fátima, n.º 1, maio de 2014, p. 54; Cristina
Sobral, Terceira Parte do Segredo, em Lúcia de Jesus, Memórias, supracitado, p. 47-49 e 251-252.
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Pode fazer-se a historia da epistolografia portuguesa sem passar por Maria
Lúcia das Dores, por Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado de Maria? pela sua forma de
escrever, analisando as linhas e as entrelinhas, as saudações e os tratamentos de deferência, as
condições materiais da escrita41, o tipo caligráfico que usava ou, melhor explicado, os dois tipos
caligráficos que usava, um mais cursivo e outro, que consideraria solene, mais desenhado para
ser empregado nas citações bíblicas ou nas cartas mais distintas que endereçava aos altos
dignitários da Igreja42.
E que dizer acerca de uma outra temática, relativa ao papel da mulher na
Igreja? não deverá o historiador do papel da mulher e das ordens religiosas no século XX passar
pelos escritos de Lúcia para deles perceber a singularidade de uma personalidade, mas também
o que tem em comum com tantas mulheres que, ao longo de Novecentos, vivem no claustro?
que imagem tem Lúcia da vida religiosa e da vida secular, percecionada através da grade da
clausura? Com efeito, se o investigador se quiser aproximar de uma Lúcia institucional, verá a
sua ligação ao Carmelo e às carmelitas, mas também a verá, sublinhamos a ideia já salientada,
como conselheira de tantos que a ela recorriam; contactará com as famílias com que se
escrevia e verá a relação que teve com os objetos que dela fazem memória, legendando o
espólio que dela falava.
Esta figura foi também verdadeiro motor para a fixação iconográfica do que a
historiografia já começou a apelidar de “subtipos da Virgem de Fátima”, isto é, do modelo
“Virgem Peregrina” e do “Imaculado Coração de Maria”43. A quantos autores respondeu,
oralmente e por escrito, sobre a fisionomia das aparições, nomeadamente sobre a questão
principal de como pode ser apreendida pelas artes plásticas a, nas palavras de Lúcia, «Senhora
mais brilhante que o sol», que apenas deveria ter «somente uma tunica o mais simples e branca
possivel e o manto caindo desde a cabeça até ao fundo da túnica»; e, nesses quadros, Lúcia,
«como não poderia pintar a luz e a beleza que a adornava, suprimia todos os enfeites á
excessão d’um fiinho dourado à volta do manto»44.
41 Maria José Azevedo Santos, De joelhos: rezar e escrever. A Terceira Parte do Segredo de Fátima: análise
paleográfico-diplomática (no prelo).
42 Veja-se a já citada edição crítica das Memórias de Lúcia de Jesus, na qual Cristina Sobral estuda muitos destes
temas.
43 Marco Daniel Duarte, Fátima e a criação artística (1917-2007): o Santuário e a Iconografia – a arte como
cenário e como protagonista de uma específica mensagem, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, 2013, volume II, p. 11-267. Um resumo desta informação pode consultar-se
em Marco Daniel Duarte, Fátima, lugar da iconografia mariana, em Fátima para o Século XXI. Congresso
Internacional, Fátima, Santuário de Fátima, 2008, p. 611-679, e, do mesmo autor, A iconografia da Senhora de
Fátima: da criação “ex nihilo” às composições plásticas dos artistas, Cultura, 2010, n.º 27, p. 235-270.
44 Arquivo Episcopal de Leiria, Dossiê Fátima, B1-46, 1937.12.05. doc. 2585.1, Carta de Maria Lúcia de
Jesus, r. S. D., para D. José Alves Correia da Silva, 5 de Dezembro de 1937, p. 2-4 (publicámos o fac-símile desta carta
no catálogo Memórias. Sinais. Afectos. Nos 90 anos das Aparições de Fátima, catálogo da exposição com o mesmo
título, Lisboa: Nova Terra, 2007, p. 76).
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Falta saber que livros leu e que livros fez aparecer a justamente designada
protagonista das aparições de Fátima. Com intuito meramente exemplificativo, a Biblioteca do
Santuário de Fátima tem, sobre Fátima, 5309 títulos45. São feitos a partir das suas palavras e das
palavras que as suas fizeram aparecer46. Falta ainda perceber que reação teve com tantos
ruídos que, à sua volta, se levaram.
Há dez anos atrás, um investigador, num jornal nacional, não deixando cair a
oportunidade noticiosa da morte de Lúcia, apelidava-a de «precioso peão ao serviço de um
ambicioso e permanente movimento de renascimento católico de dimensões nacional e
mundial»47. Perguntará o investigador mais informado se a metáfora para Lúcia não estará
menos relacionada com a imagem do peão e mais com essoutra imagem como é, antes, a de
uma outra peça do xadrez, porventura uma torre, ponderadamente posicionada como baluarte
de uma específica forma de ver o mundo. Confiada de ter sido tocada por uma graça especial,
Lúcia terá sido, de facto, uma torre-sentinela, ao mesmo tempo defensivo baluarte e ao mesmo
tempo custódia guardiã do que entendia ser um tesouro. Com os bispos e restantes peças do
tabuleiro, para continuar a usar a metáfora que queremos remir, foi guardiã do que considerava
ser realidade maior — uma rainha (uma mulher vestida de branco com um coração cercado de
espinhos que entendeu e apregoava como refúgio e caminho para o seu Deus — e de um rei —
qual imagem do Deus por si seguido e por miríades de tantos seres humanos que se dizem
assistidos por um dom de acreditar na sobrenaturalidade que a leitura católica do cristianismo
plasma —; em conclusão, de uma rainha e de um rei portadores de um coração onde Lúcia lia
inscritos os destinos da História.
Terminemos a reflexão voltando ao silêncio. Façamo-lo com um episódio muito
peculiar e vejamos, à luz dos três patamares que nortearam as diferentes formas de fazer
história timbradas, agora, por Fernand Braudel (1902-1985) (micro-história, história conjuntural
e história estrutural), como a diacronia de Lúcia de Jesus é complexamente rica. Fixemo-nos na
Lúcia que pede um pedacito de lacre, que ajoelhada escreve sobre a cama, que sela uma carta e
que envia essa carta para o seu bispo48. Estaremos na micro-história, onde vemos o
45 Este número está em atualização permanente, porquanto, ainda que aproximado, não representa nem a totalidade
dos artigos sobre Fátima que se publicaram no passado nem os que de um modo muito prolífero se continuam a dar
à estampa.
46 Procedemos a uma recente avaliação, a vários títulos experimental, no trabalho Epistemologia de Fátima: ouvir,
narrar, ler e interpretar Fátima ao longo de um século, em O Acontecimento Fátima Cem Anos Depois. História,
Mensagem e Atualidade – 24.º Congresso Mariológico Mariano Internacional (entregue para publicação).
47 Veja-se Luís Filipe Torgal, Os depoimentos contraditórios da irmã Lúcia sobre as "aparições de Fátima", em Público,
ano 15, n.º 5448, 2005.02.21, p. 29; veja-se também a réplica de Bruno Cardoso Reis, Fátima: uma história simples?,
em Público, ano 16, n.º 5459, 2005.03.05, p. 8.
48 Com muito interesse para incitar ao aprofundamento do que, na vida humana, é considerado gesto
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comportamento humano nos seus gestos mais simples, mas depressa passamos para uma
História mais lata, porquanto este comportamento deriva da forma de o mundo pensar e, ao
mesmo tempo, influencia a forma de o mundo pensar: depressa falamos de um mundo dividido
em dois blocos, do posicionamento católico sobre essa divisão, dos regimes político-ideológicos
subjacentes a essas cisões e de tantos outros comportamentos que chegam a fazer
protagonistas os mais altos dignitários da Igreja Católica ou que chegam a transformar aquela
carta num objeto cultural que o saudável ‘voyeurismo’ da museologia também já quis tratar49.
Se há elementos da mensagem de Fátima que a historiografia não pode
abarcar, porque são da ordem metafísica e por isso não interessa aos estudos do
acontecimento visível, há outros que, relacionados com estes, tem obrigação de fixar,
designadamente os comportamentos que dali derivam: o sentimento de dificuldade de uma
mulher convicta de uma visão ter receio de escrever que o papa morreria, isto é, a dificuldade
em colocar essa informação por escrito e de a fixar para todo o sempre. Contrasta esta sua
atitude com outras que, na mesma figura histórica, se podem percecionar, como são o levantar
a voz em prol de causas que considerava fundamentais: a importância da oração do rosário, a
importância da moral católica, a aflição de uma mulher, com as chaves de leitura que tem para
a sua vida, que são sobretudo espirituais, que quer tocar o tema da paz no mundo. Lúcia é
ricamente poliédrica, assim o queiram estudar os investigadores.
Termine este excurso com as suas palavras, extraídas do primeiro depoimento
escrito, por mão própria, que sobre as aparições lhe conhecemos; palavras que bem podem
aplicar-se ao historiador:
«Parece-me que já disse quase tudo[;] se me falta alguma coisa [...] para escrever não me lembro.
Peço desculpa de ir tão mal escrito mas não sei melhor. Ainda ando a estudar»50.
Quando esse estudo avançar, será Lúcia uma mulher lida sem preconceitos,
sem tabus e sem mistificações, mas antes usando as metodologias da ciência. O nosso
conhecimento sobre o passado continuará a ser — inexoravelmente o será — fragmentário e
fragmentado. Mas será ainda mais se desperdiçarmos as fontes de informação. Assim se fazem
os tabus e assim a ciência tem obrigação de os desfazer, pois, se é legítimo o silêncio da
49 O Santuário de Fátima levou a cabo uma exposição sobre o Segredo de Fátima, intitulada Segredo e
em Documentação Crítica de Fátima, III-3, supracitado, doc. 685, p. 265-270 (p. 270).
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clausura, não é legítimo, no contexto dos avanços epistemológicos, esse outro silêncio que é o
silêncio da historiografia.
Com a delicadeza da análise das fontes e sempre com o cuidado que o rigor
exige, rompa-se esse silêncio, averiguando com toda a atenção e cruzando todas as
informações que ajudem a historiar o acontecido no tempo. Também desse labor e dos perigos
a ele inerentes Lúcia parece estar consciente. Escrevendo a Maria Teresa Pereira da Cunha
(1906-1988), importante promotora da viagem pastoral que em 1947 a imagem peregrina da
Virgem de Fátima inaugura, dizia:
51Arquivo do Santuário de Fátima, Espólio Maria Teresa Pereira da Cunha, Carta de Lúcia a Maria Teresa
Pereira da Cunha, Coimbra, 28-31de julho 1969. Transcrevemos a carta que já noutro lugar citamos, por nela
encontrarmos sumamente relevante o olhar reflexivo de Lúcia sobre a construção histórica.
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