Sie sind auf Seite 1von 10

Concepção jurídica de povo

(Estado do povo ou o povo do Estado?)

Carlos Roberto M. Pellegrino

Sumário
1. Introdução. O sentido de povo. 2. O senti-
do social. 3. O elemento pessoal do Estado: o
pré-Estado. 4. Povo, Estado e governo. 5. Da
soberania do povo à idéia de nação. 6. A dinâ-
mica do povo e a coerência constitucional (o
Estado nacional em mudança). 7. Aldeia global.

1. Introdução. O sentido de povo


Na delimitação do tema proposto para
exame, importa considerar o homem na sua
dimensão social, na expressão política do
povo, e o quanto essa realidade coletiva re-
percute no dizer da sua concepção jurídica.
Nessa perspectiva de indagação, nenhuma
outra ambiência situacional é mais própria
que o Estado, enquanto expressão dessa
vontade articulada. Que seja esclarecida,
preliminarmente, a impertinência de toda
insinuação que pretenda a sobrevalência do
Estado sobre a manifestação legítima da
vontade determinada do povo, na medida
em que este é elemento e razão do Estado.
Estabelecidas as premissas analíticas
(porque fundamentais), havemos de sempre
relembrar que, a partir da ilustração etimo-
lógica dos vocábulos República e Democra-
cia, é realçada a riqueza significante eviden-
ciadora do elemento povo como expressão
da vontade coletiva maior, conformadora do
Estado. De então:República, deres publica res
Carlos Roberto M. Pellegrino, Docteur populi, a coisa do populus, o que é do povo1.
d’Etat, é Professor Titular da Universidade de Não menos eloqüente é o vocábulo (também
Brasília. composto) gregodemocracia, empregado no
Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 167
referimento ao exercício da autoridade (cra- nos particulares4. Assim, por não empres-
tos) pelo povo (demo). Convém, desde então, tar sentido unívoco, o termo povo é sempre
assentar-se a exata medida conceitual que empregado para evidenciar conceitos ou
se estabelece entrepovo epopulação. realidades claramente delimitadas pela in-
Na perspectiva de uma outra considera- tencionalidade – implícita ou explícita – do
ção, tributária da sociologia, povo não se re- autor, quando não convém o emprego depaís,
duz a mera referência do coletivo de homem, nação, Estado ou sociedade, ou quando pre-
porquanto, além desse elemento material, tenda, em um só termo, dois ou mais senti-
existe o ânimo psicológico de com-vivialida- dos referenciais, temporal ou espacialmen-
de (cum vivere) entre os indivíduos perten- te, com respeito a seus conteúdos, seja de
centes a um mesmo ambiente cultural. Essa ordem econômica, jurídica, política, religio-
disposição com-vivencialé o dado fundamen- sa ou cultural.
tal conformador do Estado. O contínuo es-
vaziamento do sentido de povo causado pela 2. O sentido social
banalização reducionista do termo leva,
Como salientado, nada é mais evidente
muita vez, ao menoscabo da importância do
que o sentido com-vivencial humano para a
fator povo para a força constitutiva de sua
expressão jurídico-política, sem embargo do
organização social e política. Sem critérios
fator social da experiência comunitária cul-
científicos rigorosos são, de certo modo,
turalmente estável, forma ingrediente essen-
compreensíveis os motivos da sinonímia
cial de nossa própria existência.
vulgar no emprego depovo e população sem
A manifestação existencial do homem
maiores preocupações conotativas. Contu-
nos moldes da vida objetivada5, com vista ao
do, apesar da proximidade conceitual, es-
atendimento das necessidades, organiza-se
ses termos possuem evidentes traços discri-
na expressão de caráter normativo formal
minantes, como, aliás, distingue Costanti-
para regular as ações coletivas ou sociais. O
no Mortati. O termo população encerra idéia
fenômeno jurídico situa-se, portanto, na re-
menos ampla, referindo-se, mais particular-
lação conseqüente,povo-Estado.
mente, aos cidadãos de uma comuna2. Dizer
Na visão de alguns dos filósofos, como
do povo é aludir ao conjunto de todas as
Locke, Rousseau, Hobbes, ou até mesmo os
pessoas. Não há dúvida, porém, que no
teóricos anarquistas como Godwin, Stirner,
emprego de quaisquer das expressões é sem-
Proudhon, Bakunin, Kropotkine, a dinâmi-
pre possível constatar-se a repercussão ju-
ca do fenômeno relacional – povo-Estado –
rídica, na medida em que se busque estabe- encontra fundamento enquanto realização
lecer relação com um determinado tipo de dos ideais de supremacia individual pelo
instituição politicamente organizada, seja consenso, sendo que para outros estudio-
a população de um município para efeito de sos, da vertente hegeliana de pensamento, é
estimativa de coeficiente eleitoral, seja o povo incontestável a supremacia do Estado, com
brasileiro, na expressão da legitimidade o caráter de coerção legítima (Weber) sobre
constitucional. Autores há para quem o con- o povo. Certo é, contudo, que, na prática, tais
ceito de população evoca princípios de natu- distinções confundem-se, quando não, de-
reza demográfica ou econômica3, elementos saparecem6. Esse é também o quadro no con-
esses insuficientes para a explicação do Es- texto das relações públicas internacionais,
tado, como ente político. De qualquer modo quando o Estado deixa de ser o órgão exclu-
é sempre imprestável confundir-se povo com sivo para dividir espaço com as organiza-
país, nação, Estado, sociedade, religião,etc. ções internacionais.
Cada uma dessas realidades há de sempre Uma vez rememorados esses aponta-
ser tomada em conta na especificidade con- mentos teóricos, importa reparar no momen-
textual reveladora de aspectos mais ou me- to histórico atual, as conseqüências do

168 RevistadeInformaçãoLegislativa
surgimento de uma nova ordem mundial possui a unidade e a individualidade em
calcada na idéia, em certos aspectos falaci- virtude das quais merece o nome de ordem
osa, daglobalização. jurídica nacional, unicamente porque numa
A ação concertada no ambiente globali- ou noutra forma se acha referido a um Esta-
zado tem feito reafirmar certas tendências do institucional e a sua realidade social pre-
de vocação hegemônicas em detrimento das existente8. Somente depois de haver a coleti-
sociedades economicamente periféricas, vidade humana estabelecido as bases insti-
francamente incapazes, por razões conjun- tucionais do ordenamento político estável,
turais, de fazer frente à ofensiva dos centros regido por normas de um direito público
mais fortes e, com isso, atender aos interes- interno (e, em alguma medida, a partir de
ses locais e hiperlocais. Alterações como es- disposições do direito internacional), é que
sas do quadro econômico internacional, ja- repercutem as conseqüências jurídicas. Des-
mais observadas em período histórico tão se acervo regulamentar depende a coletivi-
curto, expõem as conseqüências da rápida dade para o desenvolvimento estável das
superação de algumas instituições jurídicas suas relações de direito.
e conceitos do direito que se mostram ina- Abstraindo-se de certas construções ar-
daptados para as circunstâncias emergentes tificiosas, próprias à inteligência humana,
do processo de globalização. Registra-se, por é permitido dizer que assim como o Estado
exemplo, a peculiaridade da expansão das não cria o seu povo, tampouco o povo cria o
relações de natureza privada, sem que acon- Estado, isso pela simples evidência do ca-
teça, em contrapartida, uma contração do ráter de relação essencial dos três elemen-
público com a constante intervenção tutelar tos imediatamente concorrentes para o sur-
do Estado 7. A necessidade de constantes gimento da organização estatal. Do mesmo
adaptações e diversificações parece ser mais modo, Estado, povo e poder (exercício da au-
aguda para os serviços públicos, que dei- toridade estatal) se interferem reciprocamen-
xam de ser geridos pelo Estado para serem te e são formados no mesmo instante por
efetivamente por ele regulados. virtude do fato constitutivo do Estado9.

3. O elemento pessoal do Estado: 4. Povo, Estado e governo


o pré-Estado Conquanto concorrentes para o atendi-
No processo social da agregação huma- mento do bem comum, do ponto de vista téc-
na, o momento pré-estatal antecedente à ple- nico-jurídico, povo, Estado e governo mos-
na caracterização do Estado tem repercus- tram-se conceitualmente díspares.
são meramente sociológica. O complexo das Do paralelismo que se estabelece entre
identidades étnicas, geográficas, lingüísti- as noções de povo e governo, emergem, com
cas, religiosas e políticas somente ganha exatidão, os contornos elementares que com-
contornos definitivos nos moldes de estru- põem a realidade organizacional do Esta-
tura estatal quando ocorre a positivação da do. Partindo-se da constatação do Estado,
ordem constitucional. Nessa dimensão, povo projeção de uma realidade política, esta en-
e Estado estabelecem definitivamente as con- contra fundamento na solidariedade do gru-
dições de correlação jurídico-política con- po social (povo), fixada por vínculos cultu-
seqüente. De acordo com o registro de Kel- rais gestados nos limites da porção territo-
sen, não se pode compreender a essência de rial precisamente delimitada.
uma ordem jurídica nacional, seu principium É certo que nem mesmo na visão doutri-
individuationis, sem que se pressuponha a nária clássica encontra-se unanimidade
realidade social subjacente no Estado, o povo quanto aos elementos que concorrem para o
sujeito de direito. Um sistema de normas surgimento do Estado. Para alguns estudi-

Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 169


osos da questão, tudo se resume à pretensa povo não pode desatender às determinações
simplicidade conceitual da soberania e da constitucionais, também as instituições go-
territorialidade (Santi Romano). É suficien- vernamentais não podem, a nenhum pre-
te que se constate o império soberano de uma texto, desatender ao que manda o direito,
ordem nacional sobre um território para que ignorando os legítimos anseios dopovo.Este,
haja o Estado. Outros (Ataliba Nogueira) o elemento significativo e preponderante do
entendem ser necessário acrescer às três ex- valor do povo, sentido que não pode ser vul-
pressões de herança clássica: o povo, territó- garizado, porque tributária a idéia de Esta-
rio e soberania(aí compreendidos opoderea do. De ser frisado, com a visão kelseniana,
autoridade) um quarto elemento, opoder.Sem que o povo constitui-se no âmbito pessoal
pretender espichar a polêmica, até porque de aplicação do direito do Estado10, ou seja,
inócua, temos que o poder é intrínseco ao o conjunto dos destinatários, por excelên-
exercício da soberania, daí o seu destaque cia, da ordem jurídica estadual11. Do quan-
injustificado. to se viu, resta que, para conceituar o Esta-
Na expressão de sentido político, povo do, é necessário estabelecer referência às re-
são as pessoas (indivíduos) que com-vivem lações políticas mantidas entre os homens.
em um determinado espaço físico sob um Desde o ponto de vista tanto da ciência po-
sistema de organização política e adminis- lítica e da filosofia política quanto do direi-
trativa. Dessa interação de individualida- to constitucional, a população, aqui toma-
des, na força de sua manifestação coletiva, da no sentido amplo de povo, compõe-se de
sobrelevam os cidadãos, que são os titulares indivíduos. Esse enfoque conduz a filosofia
de direito público subjetivo que lhes asse- política a estudar os direitos que o homem
gura o direito de interferir no processo deci- “deve ter” frente ao Estado. Ao direito cons-
sório da organização política (ius honorum). titucional comporta o exame das caracterís-
Essa ação concertada no agir responsável e ticas formais dos direitos e deveres consa-
livremente expressado pelo exercício pleno grados no acervo normativo estatal. À ciên-
da soberania nacional é decisiva para o aten- cia política toca indagar como a ação con-
dimento das necessidades comuns da soci- certada do homem é determinante para o
edade. exercício do poder ou é, por ele, afetado. Mas
A co-participação das responsabilidades também, a filosofia política, a ciência políti-
nacionais ganha disciplina tanto ao nível ca e o direito constitucional referem-se ao
do reconhecimento de uma tábua de direi- homem participante de um grupo mais am-
tos e deveres individuais quanto de parte plo. Surgem, então, as diversas possibilida-
daqueles que recebem – do povo – a mani- des metodológicas acerca da caracterização
festação da legitimidade da representação dos grupos sociais.
política, fazendo-se, institucionalmente, go- O emprego generalizado e comum, pe-
verno. A isso resulta o Estado de Direito. los cientistas sociais, do designativo povo
O submetimento da administração ao enquanto idéia de nação não encontra mais
direito, uma das formas mais originárias de cabimento científico porque dado absoluta-
garantia dos direitos do povo, foi incorpora- mente dispensável à concepção de modelos
do pelo Estado constitucional de Direito analíticos de verificação empírica. A ênfase
como expressão particular de alguns de seus atual desloca-se para a consideração da re-
princípios constitucionais (a supremacia alidade interativa das classes ou grupos de
constitucional e a rigorosa sujeição do Esta- interesse (pressão) classificadores da popula-
do ao direito). O imperativo de que o poder ção, esses sim, próprios para efeitos de aná-
se expresse mediante leis genéricas, abstra- lise política.
tas e vinculantes para o povo também é váli- A distinção possível de ser estabelecida
do para os poderes públicos. Assim como o entre o povo – elemento essencial de titulari-

170 RevistadeInformaçãoLegislativa
dade da soberania – e oEstado – realidade Categoria descritiva, denomina-se nação
política juridicamente organizada que se brasileira o conjunto daqueles que recebe-
manifesta pelos seus órgãos habituais (le- ram do Estado essa nacionalidade. A coleti-
gislativo, executivo e judiciário) – encontra vidade dos cidadãos é conjunto tão particu-
fundamento para a determinação da estru- lar que a palavra “nação” não se aplica,
tura básica da positividade constitucional generalizadamente, à população de todos
(especialmente na legitimação das ações os estados outros de expressão cultural di-
administrativas) e suas características es- versa. A nação se define como fundadora
truturais da organização estatal12. Nos Es- do Estado, em vez de ser constituída por ele.
tados ocidentais, salvo algumas raras exce- Na perspectiva da moderna observação
ções (Cuba), a Constituição resulta do sociológica, conceitos antigos ganham novo
exercício de um direito subjetivo e sobe- tratamento descritivo, embora seu conteú-
rano imanente ao povo soberano para dar do permaneça inalterado. Assim pode ser
molde a uma expressão política com efei- avaliado o posicionamento de Alain Tou-
tos jurídicos. raine (1996), que, sem embargo da perspicá-
É certo que o Estado não existe em si e cia e agudeza de espírito, justifica o fenôme-
por si; a sua porção de autonomia reflete o no sócio-político na relação Estado-nação,
grau de autonomia de seu povo, que, de acor- mas não chega a explicá-lo em termos de
do com sua tendência ideológica, estabele- superação conceitual. Em outros termos,
ce livremente os princípios reitores de sua mudam-se os ângulos de visão, mas os su-
organização política e escolhe seus repre- jeitos permanecem os mesmos. As questões
sentantes. Esse processoeletivo feito de modo são as mesmas, embora vestidas de novas
a assegurar livre participação do povo em cores. De acordo com o conceito clássico de
geral e com igual peso participativo chama- nação, expressão do coletivo político e cultu-
mos: democracia. ral, essa figura está associada não somente
Governantes e governados (povo)têmqua- à atividade instrumental de realização do
lidades específicas na separação de funções, bem comum, mas também a uma identida-
ainda que os governantes tenham origem no de cultural ao constituir-se em espaço de li-
povo (governados). Os governantes gover- berdade. Essa concepção básica, de moldes
nam na conformidade disposta na Cons- tradicionais, caiu em franco descrédito na
tituição e nas leis às quais devem estrita medida em que a realidade da ambiência
observância. política é sempre fortemente marcada pela
O elemento democrático do estamento determinante ideológica e por forças mobi-
governamental se encontra no exercício da lizadoras da opinião pública, desvirtuan-
dúplice virtude: governar mediante estatu- do inteiramente o verdadeiro sentido de na-
to ditado pela Constituição e igualdade dos ção, como expressão da identidade cultural
governantes aos outros cidadãos, de onde, do povo. Na realidade, a idéia de nação mos-
aliás, provêm. O Poder é atributo de mando tra-se tão estreitamente associada àquela de
outorgado aos governantes por ordem dos Estado que já não se pode distinguir, com
governados, o povo. princípios de certeza, um e outro. O Estado,
ao mesmo tempo em que manifesta o poder
da nação (pela ação de sua força militar, pelo
5. Da soberania do povo à complexo administrativo, a implementação
idéia de nação de sua política educacional), tem no elemen-
Sendo possível falar do Estado em ter- to populacional (povo, nação, população)uma
mos de organização política e inclusive de de suas características físicas.
tipo de autoridade ou legitimidade, sobre o Países como a França e os Estados Uni-
conceito de nação, o mesmo não acontece. dos da América tendem a considerar – na

Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 171


proclamação de suas Constituições – que a “Não se trata de designar, com esse
nação é a expressão de valores universais, termo, uma realidade definida e incon-
de modo que o interesse superior do Estado fundível da vida social, para efeito de
deve corresponder ao conjunto dos interes- classificação sociológica, por exemplo,
ses particulares. Essa concepção muito pró- mas sim de encontrar um sujeito para
xima à da economia liberal, desde Adam a atribuição de certas prerrogativas e
Smith até Bentham, está fundada na corres- responsabilidades coletivas, no uni-
pondência do interesse particular e interes- verso jurídico-político”.
se geral ou o bem comum graças à ação de Ainda no século XIII, influenciado pelo
uma mão invisível. Como sociedades políti- neo-aristotelismo que, à época, influencia-
cas, esses países correspondem completa- va nos círculos do pensamento vivo, Marsí-
mente a essa ideologia que traz em si um lio de Pádua (cerca de 1275-1342), anteci-
risco de estatismo republicano. pando-se em alguns séculos os argumentos
Em qualquer dos sentidos que se possa rousseaunianos, ensina que a autoridade
emprestar à noção, o povo é não apenas in- política fundamental não é do governo, mas
dispensável, mas essencial para a existên- do povo, o “legislador humano”, o conjunto
cia e compreensão do Estado, na medida em dos cidadãos, que detém o poder soberano
que este é a realização da vontade coletiva para estabelecer as regras de convivência
dos indivíduos13. De modo geral, pode-se política e social. NoDefensor Minor(Cap.XII),
conceituar povo como oconjunto de indivídu- Marsílio prescreve que
osconvivendoemumdeterminadoterritóriosob “O supremo legislador humano,
o comando de um governo próprio organizado desde a época de Cristo, e talvez mes-
em um ordenamento jurídico originário(ubiso- mo há algum tempo antes, até hoje foi,
cietas ibi ius). Toda sociedade requer um di- é e deve ser o conjunto de todos os
reito, normas e instituições, mas a consciên- homens ou sua parte mais relevante
cia de um povo, enquanto magnitude jurí- em cada uma das regiões e provínci-
dico-política, dá-se predominantemente no as, os quais têm de estar subordina-
marco estatal. dos aos preceitos coercitivos da lei”15.
No âmbito do Estado, o elementoperso- Na constatação de Rousseau a respeito
nalista, humano (povo), manifesta-se como do povo na perspectiva de sua inserção no
titular do poder constituinte, cujo exercício Estado,
dessa autoridade soberana se dá mediante “antes, pois, de examinar o ato pelo
procedimentos e critérios democráticos – no qual um povo elege um rei, conviria
sentido rigoroso do designativo grego – pre- examinar o ato pelo qual um povo é
conizados numa Constituição. Senhor ex- povo, pois esse ato, sendo necessaria-
clusivo de seu destino, expressão legítima mente anterior ao outro, constitui o ver-
de todo poder e autoridade, o povo estabele- dadeiro fundamento da sociedade”16.
ce os contornos institucionais de sua orga- Depois de consideradas as condicionan-
nização política por meio de representantes tes sociais e políticas acerca de povo e Esta-
(Preâmbulo da Constituição brasileira: do, sobreleva, pela oportunidade do momen-
“Nós, representantes do povo brasileiro...”. to histórico, a indagação prospectiva de Fri-
O povo não se resume, portanto, à simples edrich Müller (1998): quem é este povo e qual
referência conceitual descritiva, mas é su- a sua participação nos atos do Estado em
jeito operacional14, credor único e insubsti- face do fenômeno daglobalização?
tuível dos benefícios alcançados pela comu- Respostas a tais perguntas constituem-
nidade estatal e objeto de toda proteção. Na se, sem dúvida, graves desafios para os es-
observação de Konder Comparato (1998, p. tudiosos de uma Teoria do Estado no portal
14), do novo século. Mesmo os teóricos do Direito

172 RevistadeInformaçãoLegislativa
Constitucional procuram explicações em 6. A dinâmica do povo e a
face da dogmática constitucional de diver- coerência constitucional (o Estado
sos países que, na literalidade da determi- nacional em mudança)
nação de suas Cartas fundamentais, reme-
Sendo a soberania um poder absoluto,
tem ao povo a titularidade do poder estatal,
supremo na ordem interna e não subjugado
inaugurando, assim, um Estado constituci-
na ordem externa, é fácil perceber que não
onal de Direito. A referência a essa titulari-
podem coexistir dois poderes no mesmo ter-
dade, como também lembrada por Friedrich
ritório ao mesmo tempo, pois apenas aquele
Müller (1998, p. 47-53), vem, entre outras
que tiver capacidade de impor suas deci-
Constituições, na do Brasil e na Lei Funda-
sões será realmente um poder soberano, não
mental de Bonn, de 1949.
o outro. Dessa forma, como há incompatibi-
Na condição fundamental para a defini-
lidade entre o poder do Estado nacional e o
ção do Estado, o elemento povo, consolida-
poder do bloco regional, apenas um deve
do titular do poder estatal, sempre exerceu
prevalecer.
fascínio no contexto científico da Teoria do
Como o Estado nacional baseia-se em
Estado. Ora, se efetivamente opovo detém a
vínculos muito mais fortes e duradouros –
titularidade do poder e o Estado Moderno
até porque naturais – que os vínculos que
exerce-o sob as condições e limites conven-
agregam os blocos regionais, é notório que o
cionados numa Constituição, entende-se
poder soberano deve ser titularizado pelos
melhor o Estado constitucional de Direito a
Estados nacionais, não pelos blocos regio-
partir do fundamento da segurança jurídi-
nais, pois sua força é momentânea, lastrea-
ca e da previsibilidade das ações estatais,
da em fatores dinâmicos e frágeis, não resis-
como lembra Geraldo Ataliba (1985, p. 144 -
tindo ao confronto com os sentimentos na-
152), um dos pilares da submissão do Esta-
cionais.
do ao Direito.
Ademais, além do Estado nacional ser
Contudo, a incidência e destaque dou-
um imperativo natural, pois as nações são
trinários acerca do fenômeno da globaliza-
muito deferentes umas das outras e tendem
ção, notadamente da econômica, sugerem
a preservar seus costumes e tradições, a
novas reflexões acerca dos elementos carac-
manutenção do Estado nacional representa
terísticos do Estado contemporâneo, com
uma questão democrática, uma vez que o
especial ênfase ao atributo da soberania, en-
povo pode escolher os comandantes dos
quanto manifestação do poder estatal, o qual
Estados, mas jamais escolherá os diretores
é exercido em nome do povo, sob sua legiti-
mação e delegação. Qualquer ensaio tenden- de empresas, razão pela qual o estabeleci-
te à descaracterização da soberania estatal mento de uma ordem global baseada no
como elemento essencial na definição do Es- poder econômico jamais será uma ordem
tado não parece correto, mesmo em virtude democrática.
das conseqüências admitidas como inexo- Aliás, Claude Raffestin (1993, p. 155)
ráveis resultantes dos destemperos cometi- bem observou que “a grande diferença en-
dos a pretexto da globalização. Não se per- tre malha política e malha econômica está
ca de vista que a manifestação da soberania no fato de que a primeira resulta de uma
de um Estado decorre de sua Constituição decisão de um poder ratificado, legitimado,
feita pelo povo, instrumento, por excelência, enquanto a segunda resulta de um poder de
de legitimação das ações estatais, e o que fato”. De concluir que não existe soberania
somente poderá ser retirado de um povo pela que seja estranha à realidade nacional do
violência das armas, com a instalação da Estado.
tirania, significado antinômico do Estado Colhe-se de estudos recentes que a efici-
de Direito. ência de um Estado homogêneo, universa-

Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 173


lista, compreendendo umpovo que se expres- ca interna, fundada nos direitos e garantias
sa no mesmo idioma, com tradições comuns constitucionais, como os direitos políticos,
e um território definido, que não experimen- os relativos à seguridade social, enfim, aque-
ta situações como aquela dos povos maias, les que são intrínsecos ao exercício constan-
que vivem no sul do México e no norte da te da cidadania perante o Estado, beneficia-
Guatemala, ou dos mais de duzentos e cin- dos pelas ações estatais, posto que são des-
qüenta grupos lingüísticos que situam-se no tinatários naturais destas. Ao contrário, os
território de Ruanda, Burundi, Zâmbia e estrangeiros, provisoriamente albergados
Congo, parece desgastada, inoperante. Tam- pela tutela de um outro Estado que não o
bém o conceito de soberania, tanto na sua seu de origem, porém sob as vistas da or-
manifestação interna (autonomia suprema dem internacional, ainda não gozam ple-
de decisões no seu território), quanto na ex- namente das mesmas prerrogativas dos ci-
terna (independência e igualdade em rela- dadãos nacionais do país. Essa constata-
ção aos outros Estados), parece enfrentar ção é, sem dúvida, preocupante, sobretudo
uma “crise de identidade”. E não é sem nesse quadro da história.
motivo. A tipificação conceitual do povo como
Conseqüência do processo da globaliza- sujeito de dominação decorre da idéia de
ção, acontece o fenômeno da desterritoriali- consentimento, surgida na Inglaterra, no
zação e a fragmentação do poder estatal, en- século XII, em período próximo à edição da
quanto reflexo da progressiva e maciça in- Magna Carta, com a eleição pelo povo, ou
fluência do capital externo, empresa e enti- parcela significativa deste, pelo menos, dos
dades internacionais com repercussão di- representantes para comporem o Parlamen-
reta (e imediata) no quadros políticos naci- to, os quais tinham a função (que guardam
onais. A soberania, alvo de críticas e acomo- ainda hoje) de deliberar sobre as relações
dações conceituais, tem sido objeto de cons- sociais e limitar as ações estatais pelos cri-
tantes tentativas de “relativização” que, térios da legalidade, da moralidade e da
embora ainda tida como um elemento do probidade estatais.
Estado, suas características são cada vez Essa participação do povo na definição
mais discutíveis e discutidas, e sua aplica- dos fins do Estado não se restringe apenas
ção limitada por temperamentos de conve- a eleição de seus representantes para o ór-
niência. Os Estados, sobretudo os periféri- gão legislativo, mas também como destina-
cos das grandes potências, longe de serem tários dessas mesmas deliberações legisla-
uma realidade unívoca em sua dinâmica tivas (normas jurídicas). Nesse raciocínio,
estrutural, apresentam-se no contexto de um não estão excluídos os não-eleitores, ou seja,
processo político dialético, cujos momentos os indivíduos que têm direitos políticos re-
lativos de elegerem ou serem eleitos repre-
resultam na acomodação ou justaposição de
sentantes do povo.
interesses díspares, mas de forte conotação
Last but not least, se a Teoria Geral do Di-
multinacional.
reito observa que as normas jurídicas são
genéricas e abstratas, vedando-se destaques
7. Aldeia gloal individualizadores e direcionamento man-
Do ponto de vista da organização esta- damental, sob a ótica do plano estático da
tal, a distinção entre os indivíduos nacionais norma, essa generalidade é entendida como
e os estrangeiros encontra justificativa ape- sendo a destinação a todos os indivíduos
nas para caracterização do que Friedrich tutelados pela ordem jurídica vigente no
Müller (1998, p. 55-58) chama de povo ativo, Estado.
ou seja, o conjunto dos indivíduos titulares Ao se pretender a eficiência do Estado
de direitos e deveres perante a ordem jurídi- contemporâneo, sucessor do modelo liberal

174 RevistadeInformaçãoLegislativa
do agonizante Estado Moderno, não há fu- 2
“b) L’altro elemento costitutivo è dato dalla popo-
gir da constatação de que o povo vem tri- lazione, cioè da quei cittadini italiani i quali risiedono
stabilmente nem comune, sono perciò iscritti nei suoi
lhando um caminho ainda tortuoso na con- registri anagrafici e si chiamano “comunisti” o cittadini
quista de sua autodeterminação como soci- comunali.” Mortati, 1976, p. 996.
edade civil organizada e detentora do po- 3
Caetano, 1983, p. 123.
der estatal. Mas de toda análise resulta a 4
Caetano, 1983, manifesta sua preferência à
certeza de que, ínsito ao conceito de Estado, “palavra Povo para designar a colectividade hu-
mana que, a fim de realizar um ideal próprio de
o povo no sentido amplo da expressão, ou justiça, segurança e bem-estar, reivindica a institui-
como querem outros, a nação, acomunidade ção de um poder político privativo que lhe garanta o
ou simplesmente os cidadãos, mantém-se direito adequado às suas necessidades e aspirações”.
como fundamento sólido de toda sociedade Interessa, ainda, transcrever trecho do pensa-
soberana frente ao ordenamento jurídico in- mento sempre lúcido do neotomista Jacques Mari-
tain, para quem, “no que toca à própria noção de
ternacional, quanto mais a um processo de povo, diria eu que o conceito moderno de povo tem
globalização das relações entre os Estados. uma longa história, derivando de uma singular di-
Na perspectiva da globalização dos mei- versidade de significados que se fundam entre si.
os de produção e informação – à exclusão Considerando, todavia, apenas o significado polí-
de toda extensão que se pretenda com a so- tico da palavra, basta-nos dizer que o povo é a
multidão de pessoas humanas que, reunida sob o
berania dos Estados –, é crescente a relação império de leis justas, por uma mútua amizade, e
de intersubjetividade entre indivíduos de para o bem comum de sua existência humana, cons-
diversos Estados soberanos. Desse fato, é titui uma sociedade política ou um corpo político.
inegável que a expressão povo começa a ga- A noção de corpo político significa a unidade total
nhar nova dimensão em conseqüência dos composta pelo próprio povo. A noção de povo sig-
nifica o conjunto de membros organicamente uni-
efeitos jurídicos mais abrangentes, na me- dos que compõem o corpo político”. MARITAIN,
dida em que os direitos e garantias consti- 1966. p. 32.
tucionais inerentes à pessoa humana, como 5
Cf. Ricasens Siches, 1952, passim.
assegurados pelas ordens nacionais, são 6
“Mesmo que a autoridade do Estado reine de
progressivamente estendidos aos indivídu- modo absoluto, tipificando uma relação de superi-
oridade, tramitação entre Estado e sociedade civil
os de origem estrangeira momentaneamen- envolve uma certa dosagem recíproca de interes-
te presentes no território do Estado hospe- ses”. Wolkmer, 1983, p. 39.
deiro. Ao menos do ponto de vista dos direi- 7
Moreira Neto, 1995, p. 28.
tos humanos, o momento da globalização 8
Kelsen, 1969, p. 216.
terá significado incontestavelmente positi-
9
Miranda, 1973, p. 206.
10
“El pueblo del Estado son los individuos cuya
vo; a consagração efetiva dos direitos huma- conducta se encuentra regulada por el orden jurídico
nos, como preconizado pelo ordenamento nacional: trátase del ámbito personal de validez de di-
jurídico internacional. cho ordem.” Kelsen, 1969, p. 276.
11
Miranda, 1973, p. 211.
12
Gordillo, 1984, p. 45 e ss.
13
Canotilho, p. 105.
14
Cf. Comparato, 1998.
15
No mesmo sentido escreve em Defensor Pacis,
Notas
parte primeira, Cap.XIII: “A autoridade para instituir
1
Cicero, DE RE PUBLICA, I, XXV. (...) respubli- leis e dar preceito coativo pertence unicamente à totali-
ca res populi; populus autem non omnis hominium coe- dade dos cidadãos ou a sua parte mais relevante, como a
tus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis sua causa eficiente, ou àquele ou àqueles que os cidadãos
iuris consensu et utilitatis communione societatus. autorizarem para tal”. Cf. Pádua, 1989; Pádua, 1991.
“A república coisa do povo, considerando tal não 16
Avant donc que d’examiner l’acte par lequel un
todos os homens de qualquer modo congregados, peuple élit un roi, il seroit bon d’examiner l’acte par
mas a reunião que tem seu fundamento no consen- lequel un peuple est un peuple; car cet acte, étant
timento jurídico e na utilidade comum”. – tradu- nécessairemente antérieur à l’autre, est le vrai fonde-
ção por Amador Cisneiros. São Paulo, Ed. Abril, ment de la societé. Ile contract social. Livre I, chap.V.
1973. p. 155. (Coleção Os Pensadores). (francês da época, NA).
Brasília a. 37 n. 148 out./dez. 2000 175
Bibliografia brasileiro no processo de globalização. In: Re-
vista da Faculdade de Direito Cândido Mendes.
ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Cândido Mendes : Imprensa Universitária, a. 1,
Paulo : Revista dos Tribunais, 1985. n. 1, 1995. Nova Série.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5. MORTATI, Constantino. Istituzioni di Diritto Publi-
ed. Coimbra : Almedina, s./d. co. 6. ed. Tomo 2. Padova : CEDAM, 1976.
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e MÜLLER, Friedrich. Quem é povo?. Tradução por
Direito Constitucional. Tomo 1. 6. ed. Coimbra : Peter Naumann. São Paulo : Max Limonard,
Almedina, 1983. 1998.
COMPARATO, Fábio Konder. Prefácio. In: MÜL- PÁDUA, Marsílio. El defensor de la paz. Madrid :
LER, Friedrich. Quem é povo?. Tradução por Peter Tecnos, 1989.
Naumann. São Paulo : Max Limonard, 1998. PÁDUA, Marsílio. Defensor menor. Petrópolis : Vo-
GORDILLO, Agustín A. Teoria general del derecho zes, 1991.
administrativo. Madrid : Instituto de Estudios REFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder.
de Administración Local, 1984. Tradução por Maria Cecília França. São Paulo :
JACQUES, Maritain. O Homem e o Estado. Tradu- Ática, 1993.
ção por Alceu Amoroso Lima. 4. ed. Rio de RICASENS SICHES, Luis. Vida humana, sociedad y
Janeiro : Agir, 1966. derecho. México : Ed. Porrua, 1952.
KELSEN, Hans. Teoria General del Derecho y del TOURAINE, Alain. Podremos vivir juntos? : el des-
Estado. Tradução por Eduardo Garcia Maynez. tino del hombre en la aldeia global. Tradução
3. ed. México : UNAM, 1969. p. 216. por Horácio Pons. México : Fondo de Cultura
MIRANDA, Jorge. Sobre a noção de povo em direi- Econômica, 1996.
to costitucional. In: Estudos de direito público em WOLKMER, Antônio Carlos. Sociedade, Estado e
honra do professor Marcello Caetano. Lisboa : Áti- o Direito. In: Revista de Ciência Política. Rio de
ca, 1973. Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, n. 26, v. 3,
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O Estado set./dez. 1983. p. 39.

176 RevistadeInformaçãoLegislativa

Das könnte Ihnen auch gefallen