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Sumário
1. Introdução. O sentido de povo. 2. O senti-
do social. 3. O elemento pessoal do Estado: o
pré-Estado. 4. Povo, Estado e governo. 5. Da
soberania do povo à idéia de nação. 6. A dinâ-
mica do povo e a coerência constitucional (o
Estado nacional em mudança). 7. Aldeia global.
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surgimento de uma nova ordem mundial possui a unidade e a individualidade em
calcada na idéia, em certos aspectos falaci- virtude das quais merece o nome de ordem
osa, daglobalização. jurídica nacional, unicamente porque numa
A ação concertada no ambiente globali- ou noutra forma se acha referido a um Esta-
zado tem feito reafirmar certas tendências do institucional e a sua realidade social pre-
de vocação hegemônicas em detrimento das existente8. Somente depois de haver a coleti-
sociedades economicamente periféricas, vidade humana estabelecido as bases insti-
francamente incapazes, por razões conjun- tucionais do ordenamento político estável,
turais, de fazer frente à ofensiva dos centros regido por normas de um direito público
mais fortes e, com isso, atender aos interes- interno (e, em alguma medida, a partir de
ses locais e hiperlocais. Alterações como es- disposições do direito internacional), é que
sas do quadro econômico internacional, ja- repercutem as conseqüências jurídicas. Des-
mais observadas em período histórico tão se acervo regulamentar depende a coletivi-
curto, expõem as conseqüências da rápida dade para o desenvolvimento estável das
superação de algumas instituições jurídicas suas relações de direito.
e conceitos do direito que se mostram ina- Abstraindo-se de certas construções ar-
daptados para as circunstâncias emergentes tificiosas, próprias à inteligência humana,
do processo de globalização. Registra-se, por é permitido dizer que assim como o Estado
exemplo, a peculiaridade da expansão das não cria o seu povo, tampouco o povo cria o
relações de natureza privada, sem que acon- Estado, isso pela simples evidência do ca-
teça, em contrapartida, uma contração do ráter de relação essencial dos três elemen-
público com a constante intervenção tutelar tos imediatamente concorrentes para o sur-
do Estado 7. A necessidade de constantes gimento da organização estatal. Do mesmo
adaptações e diversificações parece ser mais modo, Estado, povo e poder (exercício da au-
aguda para os serviços públicos, que dei- toridade estatal) se interferem reciprocamen-
xam de ser geridos pelo Estado para serem te e são formados no mesmo instante por
efetivamente por ele regulados. virtude do fato constitutivo do Estado9.
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dade da soberania – e oEstado – realidade Categoria descritiva, denomina-se nação
política juridicamente organizada que se brasileira o conjunto daqueles que recebe-
manifesta pelos seus órgãos habituais (le- ram do Estado essa nacionalidade. A coleti-
gislativo, executivo e judiciário) – encontra vidade dos cidadãos é conjunto tão particu-
fundamento para a determinação da estru- lar que a palavra “nação” não se aplica,
tura básica da positividade constitucional generalizadamente, à população de todos
(especialmente na legitimação das ações os estados outros de expressão cultural di-
administrativas) e suas características es- versa. A nação se define como fundadora
truturais da organização estatal12. Nos Es- do Estado, em vez de ser constituída por ele.
tados ocidentais, salvo algumas raras exce- Na perspectiva da moderna observação
ções (Cuba), a Constituição resulta do sociológica, conceitos antigos ganham novo
exercício de um direito subjetivo e sobe- tratamento descritivo, embora seu conteú-
rano imanente ao povo soberano para dar do permaneça inalterado. Assim pode ser
molde a uma expressão política com efei- avaliado o posicionamento de Alain Tou-
tos jurídicos. raine (1996), que, sem embargo da perspicá-
É certo que o Estado não existe em si e cia e agudeza de espírito, justifica o fenôme-
por si; a sua porção de autonomia reflete o no sócio-político na relação Estado-nação,
grau de autonomia de seu povo, que, de acor- mas não chega a explicá-lo em termos de
do com sua tendência ideológica, estabele- superação conceitual. Em outros termos,
ce livremente os princípios reitores de sua mudam-se os ângulos de visão, mas os su-
organização política e escolhe seus repre- jeitos permanecem os mesmos. As questões
sentantes. Esse processoeletivo feito de modo são as mesmas, embora vestidas de novas
a assegurar livre participação do povo em cores. De acordo com o conceito clássico de
geral e com igual peso participativo chama- nação, expressão do coletivo político e cultu-
mos: democracia. ral, essa figura está associada não somente
Governantes e governados (povo)têmqua- à atividade instrumental de realização do
lidades específicas na separação de funções, bem comum, mas também a uma identida-
ainda que os governantes tenham origem no de cultural ao constituir-se em espaço de li-
povo (governados). Os governantes gover- berdade. Essa concepção básica, de moldes
nam na conformidade disposta na Cons- tradicionais, caiu em franco descrédito na
tituição e nas leis às quais devem estrita medida em que a realidade da ambiência
observância. política é sempre fortemente marcada pela
O elemento democrático do estamento determinante ideológica e por forças mobi-
governamental se encontra no exercício da lizadoras da opinião pública, desvirtuan-
dúplice virtude: governar mediante estatu- do inteiramente o verdadeiro sentido de na-
to ditado pela Constituição e igualdade dos ção, como expressão da identidade cultural
governantes aos outros cidadãos, de onde, do povo. Na realidade, a idéia de nação mos-
aliás, provêm. O Poder é atributo de mando tra-se tão estreitamente associada àquela de
outorgado aos governantes por ordem dos Estado que já não se pode distinguir, com
governados, o povo. princípios de certeza, um e outro. O Estado,
ao mesmo tempo em que manifesta o poder
da nação (pela ação de sua força militar, pelo
5. Da soberania do povo à complexo administrativo, a implementação
idéia de nação de sua política educacional), tem no elemen-
Sendo possível falar do Estado em ter- to populacional (povo, nação, população)uma
mos de organização política e inclusive de de suas características físicas.
tipo de autoridade ou legitimidade, sobre o Países como a França e os Estados Uni-
conceito de nação, o mesmo não acontece. dos da América tendem a considerar – na
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Constitucional procuram explicações em 6. A dinâmica do povo e a
face da dogmática constitucional de diver- coerência constitucional (o Estado
sos países que, na literalidade da determi- nacional em mudança)
nação de suas Cartas fundamentais, reme-
Sendo a soberania um poder absoluto,
tem ao povo a titularidade do poder estatal,
supremo na ordem interna e não subjugado
inaugurando, assim, um Estado constituci-
na ordem externa, é fácil perceber que não
onal de Direito. A referência a essa titulari-
podem coexistir dois poderes no mesmo ter-
dade, como também lembrada por Friedrich
ritório ao mesmo tempo, pois apenas aquele
Müller (1998, p. 47-53), vem, entre outras
que tiver capacidade de impor suas deci-
Constituições, na do Brasil e na Lei Funda-
sões será realmente um poder soberano, não
mental de Bonn, de 1949.
o outro. Dessa forma, como há incompatibi-
Na condição fundamental para a defini-
lidade entre o poder do Estado nacional e o
ção do Estado, o elemento povo, consolida-
poder do bloco regional, apenas um deve
do titular do poder estatal, sempre exerceu
prevalecer.
fascínio no contexto científico da Teoria do
Como o Estado nacional baseia-se em
Estado. Ora, se efetivamente opovo detém a
vínculos muito mais fortes e duradouros –
titularidade do poder e o Estado Moderno
até porque naturais – que os vínculos que
exerce-o sob as condições e limites conven-
agregam os blocos regionais, é notório que o
cionados numa Constituição, entende-se
poder soberano deve ser titularizado pelos
melhor o Estado constitucional de Direito a
Estados nacionais, não pelos blocos regio-
partir do fundamento da segurança jurídi-
nais, pois sua força é momentânea, lastrea-
ca e da previsibilidade das ações estatais,
da em fatores dinâmicos e frágeis, não resis-
como lembra Geraldo Ataliba (1985, p. 144 -
tindo ao confronto com os sentimentos na-
152), um dos pilares da submissão do Esta-
cionais.
do ao Direito.
Ademais, além do Estado nacional ser
Contudo, a incidência e destaque dou-
um imperativo natural, pois as nações são
trinários acerca do fenômeno da globaliza-
muito deferentes umas das outras e tendem
ção, notadamente da econômica, sugerem
a preservar seus costumes e tradições, a
novas reflexões acerca dos elementos carac-
manutenção do Estado nacional representa
terísticos do Estado contemporâneo, com
uma questão democrática, uma vez que o
especial ênfase ao atributo da soberania, en-
povo pode escolher os comandantes dos
quanto manifestação do poder estatal, o qual
Estados, mas jamais escolherá os diretores
é exercido em nome do povo, sob sua legiti-
mação e delegação. Qualquer ensaio tenden- de empresas, razão pela qual o estabeleci-
te à descaracterização da soberania estatal mento de uma ordem global baseada no
como elemento essencial na definição do Es- poder econômico jamais será uma ordem
tado não parece correto, mesmo em virtude democrática.
das conseqüências admitidas como inexo- Aliás, Claude Raffestin (1993, p. 155)
ráveis resultantes dos destemperos cometi- bem observou que “a grande diferença en-
dos a pretexto da globalização. Não se per- tre malha política e malha econômica está
ca de vista que a manifestação da soberania no fato de que a primeira resulta de uma
de um Estado decorre de sua Constituição decisão de um poder ratificado, legitimado,
feita pelo povo, instrumento, por excelência, enquanto a segunda resulta de um poder de
de legitimação das ações estatais, e o que fato”. De concluir que não existe soberania
somente poderá ser retirado de um povo pela que seja estranha à realidade nacional do
violência das armas, com a instalação da Estado.
tirania, significado antinômico do Estado Colhe-se de estudos recentes que a efici-
de Direito. ência de um Estado homogêneo, universa-
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do agonizante Estado Moderno, não há fu- 2
“b) L’altro elemento costitutivo è dato dalla popo-
gir da constatação de que o povo vem tri- lazione, cioè da quei cittadini italiani i quali risiedono
stabilmente nem comune, sono perciò iscritti nei suoi
lhando um caminho ainda tortuoso na con- registri anagrafici e si chiamano “comunisti” o cittadini
quista de sua autodeterminação como soci- comunali.” Mortati, 1976, p. 996.
edade civil organizada e detentora do po- 3
Caetano, 1983, p. 123.
der estatal. Mas de toda análise resulta a 4
Caetano, 1983, manifesta sua preferência à
certeza de que, ínsito ao conceito de Estado, “palavra Povo para designar a colectividade hu-
mana que, a fim de realizar um ideal próprio de
o povo no sentido amplo da expressão, ou justiça, segurança e bem-estar, reivindica a institui-
como querem outros, a nação, acomunidade ção de um poder político privativo que lhe garanta o
ou simplesmente os cidadãos, mantém-se direito adequado às suas necessidades e aspirações”.
como fundamento sólido de toda sociedade Interessa, ainda, transcrever trecho do pensa-
soberana frente ao ordenamento jurídico in- mento sempre lúcido do neotomista Jacques Mari-
tain, para quem, “no que toca à própria noção de
ternacional, quanto mais a um processo de povo, diria eu que o conceito moderno de povo tem
globalização das relações entre os Estados. uma longa história, derivando de uma singular di-
Na perspectiva da globalização dos mei- versidade de significados que se fundam entre si.
os de produção e informação – à exclusão Considerando, todavia, apenas o significado polí-
de toda extensão que se pretenda com a so- tico da palavra, basta-nos dizer que o povo é a
multidão de pessoas humanas que, reunida sob o
berania dos Estados –, é crescente a relação império de leis justas, por uma mútua amizade, e
de intersubjetividade entre indivíduos de para o bem comum de sua existência humana, cons-
diversos Estados soberanos. Desse fato, é titui uma sociedade política ou um corpo político.
inegável que a expressão povo começa a ga- A noção de corpo político significa a unidade total
nhar nova dimensão em conseqüência dos composta pelo próprio povo. A noção de povo sig-
nifica o conjunto de membros organicamente uni-
efeitos jurídicos mais abrangentes, na me- dos que compõem o corpo político”. MARITAIN,
dida em que os direitos e garantias consti- 1966. p. 32.
tucionais inerentes à pessoa humana, como 5
Cf. Ricasens Siches, 1952, passim.
assegurados pelas ordens nacionais, são 6
“Mesmo que a autoridade do Estado reine de
progressivamente estendidos aos indivídu- modo absoluto, tipificando uma relação de superi-
oridade, tramitação entre Estado e sociedade civil
os de origem estrangeira momentaneamen- envolve uma certa dosagem recíproca de interes-
te presentes no território do Estado hospe- ses”. Wolkmer, 1983, p. 39.
deiro. Ao menos do ponto de vista dos direi- 7
Moreira Neto, 1995, p. 28.
tos humanos, o momento da globalização 8
Kelsen, 1969, p. 216.
terá significado incontestavelmente positi-
9
Miranda, 1973, p. 206.
10
“El pueblo del Estado son los individuos cuya
vo; a consagração efetiva dos direitos huma- conducta se encuentra regulada por el orden jurídico
nos, como preconizado pelo ordenamento nacional: trátase del ámbito personal de validez de di-
jurídico internacional. cho ordem.” Kelsen, 1969, p. 276.
11
Miranda, 1973, p. 211.
12
Gordillo, 1984, p. 45 e ss.
13
Canotilho, p. 105.
14
Cf. Comparato, 1998.
15
No mesmo sentido escreve em Defensor Pacis,
Notas
parte primeira, Cap.XIII: “A autoridade para instituir
1
Cicero, DE RE PUBLICA, I, XXV. (...) respubli- leis e dar preceito coativo pertence unicamente à totali-
ca res populi; populus autem non omnis hominium coe- dade dos cidadãos ou a sua parte mais relevante, como a
tus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis sua causa eficiente, ou àquele ou àqueles que os cidadãos
iuris consensu et utilitatis communione societatus. autorizarem para tal”. Cf. Pádua, 1989; Pádua, 1991.
“A república coisa do povo, considerando tal não 16
Avant donc que d’examiner l’acte par lequel un
todos os homens de qualquer modo congregados, peuple élit un roi, il seroit bon d’examiner l’acte par
mas a reunião que tem seu fundamento no consen- lequel un peuple est un peuple; car cet acte, étant
timento jurídico e na utilidade comum”. – tradu- nécessairemente antérieur à l’autre, est le vrai fonde-
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