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“Agir contra
a consciência
não é seguro
nem honesto”:
uma opinião sobre
Martinho Lutero,
um Destino,
de Lucien Febvre
Lauri Emilio Wirth
daquela triste juventude” (p. 29). Foi quando bio, um dos eleitores do imperador do Sacro
estudou na Faculdade de Artes, tornando-se Império Romano Germânico. Aos poucos
bacharel, em 1502, e mestre, em 1505. Lutero ganharia espaço e notoriedade no
A opção pela vida monástica na ordem interior da ordem. Seu carisma como prega-
dos agostinianos, em Erfurt, não decorre dor e como perspicaz explicador dos textos
apenas da trágica experiência de quase ter sagrados chamava a atenção nos círculos que
morrido numa tempestade. Foi o gesto radi- frequentava. É no confronto com o texto bí-
cal de fugir de um Deus terrível, mensagem blico que se forma a convicção que o jovem
central dos mestres da vida cristã de então: monge tanto buscava. O cerne da questão:
“[…] tudo, até as obras de arte nas capelas a justiça, não a justiça formal das leis e dos
ou nos pórticos das igrejas, falava ao jovem ordenamentos jurídicos, a justiça de Deus.
Lutero de um Deus terrível, implacável, vin- Ao contrário do que ensinava a teologia
gativo, que contabilizava rigorosamente os normativa de sua época, Lutero se convence
pecados de cada um para jogá-los na face de que a justiça de Deus se revela no texto sa-
aterrorizada de miseráveis fadados à expia- grado e só é acessível pelos caminhos da fé.
ção” (p. 30). De certa forma, Febvre esboça A justiça de Deus não dependeria de méritos,
no perfil de um personagem específico o es- mas é absolutamente graciosa. Não se trata
pírito de uma época que Jean Delumeau ca- de convencimento racional e lógico, mas de
racterizou como a “desvalorização espantosa uma revelação, a descoberta que fundamenta
da vida material e das preocupações cotidia- um perfil de vida. O Deus tirano e implacável
nas”, para dar lugar ao “horror” do pecado e agora se revelaria como o espírito do amor
à “obsessão” da danação2. incondicional, do altruísmo absoluto, uma
Contudo, a vida monástica apenas apro- verdade definitiva a ser propagada sem con-
fundou essa percepção de estar irreversivel- cessões. Deus, um juiz severo, sim, mas que
mente entregue a um juiz implacável e insen- não imputa aos humanos os seus pecados.
sível aos esforços por merecer a misericórdia O ser humano, tocado por essa realidade,
divina. É o que Febvre garimpa em reflexões aceitaria sua miséria moral e saberia da sua
retrospectivas do próprio Lutero, mas prin- incapacidade de superá-la por suas próprias
cipalmente nas conversas à mesa, anotações forças. Descobrir-se-ia injusto quando refe-
de terceiros sobre diálogos informais, alguns renciado em sua própria racionalidade, quan-
deles revistos posteriormente pelo próprio do cativo de seus próprios desejos, quando
Lutero e publicados com sua anuência: “Fui, dependente de seus limitados méritos. Ao
durante vinte anos, um monge piedoso. Re- mesmo tempo, pela fé, alcançaria a confiança
zei a missa diariamente. De tal maneira me na misericórdia de Deus, que não lhe imputa-
esgotei em orações e jejuns que não teria vi- ria suas limitações e o libertaria para tornar-
vido muito mais tempo, se lá tivesse perma- -se um Deus para os outros, como veículo
necido”. Ou ainda: “Não fosse eu libertado e sinal da graça divina, um carregador de
pelas consolações de Cristo, com a ajuda do cruzes alheias, como expressão de liberdade
Evangelho, não teria sobrevivido nem mais de quem se sabe dependente incondicional-
dois anos, de tal modo estava crucificado e mente da graça de Deus. Uma inversão total:
fugia para longe da ira divina…” (p. 30). a salvação perseguida como meta pela teolo-
Mas eis que, em certo sentido, surge gia normativa de então agora se revela como
uma nova Ursula Cotta na vida de Lutero: fundamento idealizado e absoluto de um per-
Johann von Staupitz, vigário-geral dos agos- fil de vida a ser trilhado cotidianamente, em
tinianos na Alemanha, tornou-se conselheiro total liberdade, com a total certeza de que
2 Jean Delumeau, O
Pecado e o Medo: a de Lutero. Percebendo o potencial do jovem nunca seria atingido plenamente.
Culpabilização do Oci- monge, encaminhou-o para uma docência na Eis, pois, o ponto de partida que impul-
dente (Séculos 13-18),
v. 1, Bauru, Edusc, 2003,
Universidade de Witemberg, recém-fundada siona o profeta rebelde e sua impressionante
p. 12. pelo príncipe da Saxônia, Frederico, o Sá- produção teológica a partir de 1517, escolhi-
cou o debate para esclarecer o real valor A Alemanha de Lutero era uma região
das indulgências, motivado pela campanha fértil, no sentido lato do termo: “terras for-
arrecadatória instituída pelo jovem bispo de tes, recursos materiais poderosos, cidades
Magdeburgo e Mogúncia. Segundo Febvre, orgulhosas e esplêndidas; trabalho por toda
essa é a ocasião em que, “perante o hediondo parte, iniciativa, riquezas…”. Sua carência
tráfico, perante a afirmação cem mil vezes fundamental: a falta de uma “unidade moral
proferida por traficantes vestindo o hábito e política” (p. 119). Mesmo assim, pode ser
religioso, de que, com dinheiro, os piores considerada uma nação “no sentido medieval
pecados podiam ser pagos, Lutero clamou do termo”, pois seus habitantes compartilha-
enfim, com voz vingadora, uma indigna- vam de usos e costumes idênticos e falavam
ção havia muito tempo reprimida” (p. 35). dialetos próximos.
Coerente com o fundamento que orien- Nesse contexto, o verdadeiro poder esta-
tava sua rebeldia, a crítica de Lutero não se va na mão de príncipes e das cidades. Quan-
voltava contra a venda das indulgências em do Lutero entrou em cena, estava em curso,
si, mas atacava a falsa segurança que através “mais ou menos em toda a Alemanha, um vi-
delas se propagava aos fiéis. Já em 1516 essa goroso esforço de concentração política e ter-
crítica é formulada de forma cristalina: ritorial”. Concorrendo entre si, várias regiões
perseguiam “estados sólidos e menos frag-
“Os comissários e subcomissários incum- mentados” (p. 122). Nesse ambiente, não raro,
bidos de pregar indulgências, nunca fazem príncipes eram sagrados bispos e podiam es-
mais que alardear seus benefícios ao povo e tender seu poder para mais de um bispado.
incitá-los a comprá-las. Jamais os ouvimos É o que ocorreu com a sagração do jovem
explicar a sua plateia o que é de fato a indul- príncipe Albrecht de Brandenburgo, como
gência, a que se aplica e quais são os seus arcebispo de Magdeburgo e de Mogúncia.
efeitos. Pouco se lhes dá se os cristãos iludi- Um mundo paralelo e, não raro, em con-
dos acreditam que já estão salvos tão logo ad- flito com o poder dos príncipes se configura
quirem seu pedaço de pergaminho” (p. 110). nas cidades autônomas: Augsburgo, centro
de comércio exterior e do capital financei-
No âmbito das 95 teses, a crítica avança em ro; Nürnberg, avançado centro tecnológico
radicalidade e perspicácia: “Muito cruel será focado nas navegações mundiais; Frankfurt
o papa se, tendo de fato o poder de libertar as e suas feiras, entre várias outras. A burgue-
almas do Purgatório, não conceder gratuita- sia emergente nessas cidades se beneficiava
mente às almas sofredoras aquilo que outorga da perda de hegemonia das cidades do norte
por dinheiro às almas privilegiadas” (p. 111). italiano no comércio mundial. Investimentos
Está implícito, portanto, que, para Febvre, alemães se espalham por toda parte, como
a conjuntura política, econômica e eclesiás- os Welser, de Augsburgo, ativos na navega-
tica da Alemanha de então, como da Europa ção portuguesa, inclusive com embarcações
de forma geral, é insuficiente para explicar o engajadas no comércio das Índias e com
protesto de Lutero. Contudo, ela é decisiva possessões na Venezuela. Os Fugger, gran-
para a repercussão de suas ideias, na medi- des comerciantes e financistas poderosos,
da em que encontram “[…] uma Alemanha pretendiam estabelecer-se no Chile, etc. Ou
inquieta, surdamente palpitante de paixões seja, a expansão da Europa como um todo,
mal contidas, que esperava apenas um sinal, seu deslocamento para o centro do mundo,
um homem, para revelar em público seus parece ser um aspecto decisivo para influir
secretos anseios”. Essa conjuntura é funda- nos rumos da Reforma Protestante então em
mental para se entender certa simbiose entre curso, o que exigiria uma mirada para o pa-
o monge e o “homem alemão” (p. 116), mas pel da América Latina, da África e da Ásia
também para testar, segundo Febvre, o real nesse novo sistema mundial em gestação,
alcance do idealismo de Lutero. tema nem mesmo tangenciado por Febvre.
O historiador
francês
Lucien Febvre
No plano estrito do contexto alemão que Média entra em crise e abre espaço a relações
delimita o recorte do nosso autor, as cidades de troca típicas do capitalismo emergente,
livres, politicamente independentes, rivaliza- mas que ainda não são percebidas como tal:
vam entre si e com os príncipes em fase de
consolidação do seu poder, mas deles depen- “Quantos homens e mulheres, nas cidades, vi-
diam para garantir as rotas comerciais. Não vem da agiotagem, enriquecem pela abominá-
raro podiam tornar-se reféns “do fidalgote vel exploração dos camponeses, praticam com
de província que as despoja e escarnece do sorrateira tenacidade as mais novas formas de
alto do seu ninho de águia inexpugnável para roubo e, no entanto, dominados pelas antigas
milícias burguesas” (p. 125). As cidades con- ideias, sem ter ideia da coesão que une todos
figuravam, assim, “civilizações de oásis”, cir- os meios da exploração capitalista, são os pri-
cundadas por “camponeses incultos e gros- meiros a clamar contra os grandes banqueiros
seiros, miseráveis às vezes, prontos para a e os grandes comerciantes, seus legítimos lí-
revolta, rosnando sob o jugo, de todo modo deres, seus pretextos vivos, mas que eles ainda
estrangeiros à cultura urbana…” (p. 124). não sabem reconhecer como tais…” (p. 132).
Está em curso, portanto, um processo
propício para inquietações sociais, na medida Segundo Febvre, nesse “amálgama con-
em que a velha mentalidade artesã da Idade fuso de cidades autônomas e dinastias mais
ou menos poderosas” era praticamente im- “A menos que me convençam, por testemu-
possível pensar numa reforma da nação me- nhos das Escrituras ou por uma evidência
diante a conquista do poder político. Mas é da razão (pois não acredito apenas no papa
justamente nesse “mapa moral e político” da e nos concílios: está provado que por vezes
Alemanha de então que o protesto de Lutero demais erraram e se contradisseram), tenho
assume uma função catalisadora. A noção um compromisso com os textos que produzi;
do sacerdócio universal de todos os crentes minha consciência é cativa das palavras de
erodiava a legitimidade de velhas hierarquias Deus. Não posso e nem quero revogar o que
religiosamente legitimadas e colocava todos quer que seja, porque agir contra a própria
em pé de igualdade, não na vida real, mas no consciência não é seguro nem honesto. Que
plano subjetivo, ontológico, enquanto dignos Deus me ajude, Amém!” (p. 201).
diante de Deus:
Lutero foi banido e excomungado, con-
“[…] a afirmação de que todos os cristãos tou com a proteção do príncipe Frederico,
possuem, em verdade, condição eclesiástica; o Sábio, de quem era súdito, que o enviou à
de que são todos consagrados padres, bispos clandestinidade, por cerca de um ano. Mas
e papa pelo batismo; de que a ordenação não a essas alturas o processo desencadeado em
é um sacramento que confere aos padres um 1517 já havia se generalizado. Um emissário
caráter indelével, e sim mera designação de enviado à Alemanha para publicar a bula de
função, revogável ao sabor do poder civil: excomunhão fazia a seguinte constatação:
suficiente para contentar os burgueses, tão “Nove em dez alemães estão gritando: ‘Viva
orgulhosos de sua dignidade, tão impacien- Lutero’, e o resto, embora não o seguin-
tes com qualquer intermediário entre eles e do, junta-se ao corpo para gritar: ‘Morte a
a divindade” (p. 180). Roma’” (p. 181). A conjuntura, contudo, não
era promissora. O movimento começava a
A defesa da liberdade de pensar e escre- expor suas fissuras internas, como o mos-
ver encanta intelectuais e humanistas, o que, tram, entre outros, a ruptura entre Lutero e
num primeiro momento, aproxima Lutero e Erasmo e a clara opção de Lutero pelos prín-
Erasmo, cidadão da cristandade erudita, que cipes no massacre de um levante camponês
pretendia reformar pela Filosofia de Cristo. sem precedentes na história da Alemanha.
Os camponeses rebeldes veem nele um con- E Lutero? Extrai das adversidades sua força
selheiro em suas reivindicações por mais para avançar. É o que revela a seguinte passa-
liberdade e direitos aqui e agora. gem, de 1518, exemplar para muitas outras de
No início de 1519, morreu o imperador semelhante sentido: “Quanto mais fúria eles
Maximiliano. A disputa por seu sucessor, demonstram, mais eu avanço! Abandono mi-
que já estava em curso, agora se radicaliza, nhas primeiras posições para que eles latam
mas era justamente essa indefinição política para elas; transfiro-me para as mais avança-
que impedia as autoridades de agir contra das, para que latam também”. É o que Febvre
Lutero, conferindo às causas dos protestan- parece identificar como o destino de Lutero:
tes um espaço de manobra fundamental. Em a obsessão de saber-se possuidor de uma ver-
28 de junho de 1919, Carlos de Habsburgo dade absoluta, não sua, mas revelada por uma
é eleito imperador, com o título de Carlos força superior: “Longe de conduzir-me, meu
V. Depois de várias idas e vindas, Lutero é Deus me arrasta, meu Deus me impele para
chamado a se explicar diante do imperador, frente. Não sou senhor de mim mesmo. An-
mais precisamente, é intimado a renegar seio pelo repouso, e eis-me empurrado para
seus escritos. É quando teria pronunciado a o centro da peleja…” (p. 138).
célebre frase, disponível em diferentes ver- Mas qual era mesmo o projeto histórico
sões ao longo da história. Febvre considera de Lutero? Segundo Febvre, nenhum. Segun-
esta a mais plausível: do nosso autor, apesar de seu muito citado