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No zunir das balas dois homens se atracavam no chão com facas. O menino
passou por eles temendo ser visto. Não devia ter mais que uns 13, 14 anos. O
sol que aparecia no horizonte ao fazer luzir em seu pescoço o estranho
crucifixo paralisou os contendores.
Marcelino ergueu seu copo de suco de manga e tirou Alice Eiko para
dançar. Dançaram até próximo da manhã. O exemplo animou outros casais,
como Maria Yukie e Alonso que havia tempo se entreolhavam. Ela chegou
até ele. Fez uma mesura zombeteira e o puxou para o centro do salão.
Ele não sabia dançar
– O que é preciso saber? relaxe e deixe seu corpo acompanhar o
ritmo.
Acompanhar o ritmo tudo bem. Duro foi relaxar com o contato da
irmã de Alice quando a viola parou de tocar rapidamente e ela decidiu
demonstrar como era aquele outro tipo de dança com música lenta de
bandolins.
Sabedor de que falhara demais como pai Takeda pedia a Deus que
suas filhas realizassem seus sonhos. Foi um grande sacrifício educar as
meninas depois da morte da mulher. O ar feliz que as duas exibiam. Ainda
assim preocupou-se quando Alice Eiko desapareceu do salão. Walter teria
visto sua filha?
- Sabemos exatamente onde e com quem ela está.
O casalzinho estava à beira do regato de mãos dadas sentados nas
pedras e os pés imersos na água. Alice Eiko tomou a cruz na palma de sua
outra mão. --É linda -- É sua --Não posso aceitar. É em você que protegerá a
todos de todo mal.
Em si mesma a joia não é nada. Para ele o que havia de sagrado no
mundo era Alice.
-- Você mal me conhece -- ela disse. Ela mesma não se conhecia
direito.
Ele insistiu fazendo menção de tirar a corrente do pescoço. A menina
o impediu. -- Não posso aceitar mas estou envaidecida.
O beijo se alonga. A brisa encrespa a superfície das águas. Hino de
jovens apaixonados. Não podiam imaginar o inferno que os esperava.
Dois anos depois. Meio-dia.
Takeda toma sua sexta dose de aguardente. Amor, por que beber
assim? Não há o que possamos fazer. Não trará nosso menininho de volta.
Deus quis assim. E nos deu como conforto essas duas meninas tão lindas.
Serão a alegria de nossa velhice. - Voce voce voce também me abandonou.
- Desculpe-me, meu velho, disse o forasteiro - mas eu estava sentado
aí.
- Viva Marcelino! - gritou o pai de Alice Eiko e Maria Yukie - Viva
os índios!
- Meu velho, por favor...
Takeda encarou-o e perguntou com os olhos muito vermelhos se ele
não gostava de índios. - Pois saiba que Marcelino é descendente de japurás.
Como Yokomit. A lembrança que supunha esquecida retornava
quando bebia para esquecer, o que aos poucos fez nascer em Takeda um
outro homem, que bebia para lembrar dessa outra encarnação, quando o
casal exultava com os três filhos correndo pela casa.
Também não sabia quem era Marcelino,?
-- Não, não sei quem é Marcelino Só sei que o senhor está sentado em
meu lugar,
Takeda deu uma gargalhada e perguntou se o estranho comprara
aquela banqueta,
--Não, não comprei, mas sentei nela primeiro que o senhor, com
licença...
Segurando Takeda pelas axilas o forasteiro colocou-o sobre a
banqueta ao lado. O velho, tonto, desabou no assoalho. Alice vinha chamar o
pai para o almoço e deparou com o final da cena.
- Covarde! - dirigindo-se ao estranho ela gritou
Ele virou-se. Os olhares se cruzaram em algum ponto além deles daí
resultando um longo silêncio de fascínio.
Takeda deitado resmungava. Os dois se abaixaram para ajudá-lo. O
barulho de passos, solene, precedeu a entrada de Marcelino. Alonso vinha
logo atrás.
- Os tempos estão realmente violentos.-- Marcelino encarou o
estranho. --Não se respeita mais um velho mesmo estando ele em sua própria
cidade e o outro um completo desconhecido.
O estranho diz que nada havia feito de mal.
-De onde você veio derrubar um velho embriagado não é nada?
O estranho diz que não fez isso..
Alice diz a Marcelino que pare. Estava decepcionada com a postura do
forasteiro. Um covarde.
--Acabou, Marcelino - disse ela. -- Está tudo bem,
-- Não, Alice, nem começou você filha relevará a ofensa; eu genro,
não.
Futuro genro, ela pensou.
O estranho perguntou o que Marcelino pretendia fazer a respeito de
tão grande afronta .
-Se vier para fora, saberá.
Um homem que não se conhece. Tinha de sair de casa? Tinha de
matar um homem? Matar. Com que simplicidade se fala disso, se escreve
sobre, como se alguém pudesse - decerto podem - tirar a vida de um
semelhante e seguir a própria vida como se tivesse sido apenas um acidente
de percurso, um dado estatístico. Como é hoje estatística a fuga de uma
esposa com o amante deixando uma criança à mercê de um pai violento.
Essa mesma santa que ajoelhada rezava à beira da cama de um menino que
virá a ser um homem que não se conhece.
O estranho disse que não estava disposto a brigar sem motivo --
Disposto ou não, é o que lhe resta. Eu decido se há ou não motivo. Porque
você está em sua cidade e eu sou um forasteiro --exatamente, --A vergonha
será sua, -- E problema meu, amigo -- Nao tenho amigos. Fez-se silêncio.
A tensão tem poder. Takeda quase sóbrio faz eco às palavras de Alice.
-- Marcelino, pare.
O estranho tem razão. É mesmo um confronto absurdo. Uma loucura.
Apenas Olavo, que fora avisar Marcelino sobre o que estava acontecendo no
bar, parecia disposto a ver o resultado do duelo.
A arma brotou engatilhada. O cano na direção do rosto de Marcelino.
- Quem poderia me culpar? Todos são testemunhas de que você me
provocou.
.Pois atire, desafiou Marcelino. Vê a noiva e o pai implorarem que
não. O estranho afasta a arma. Jamais o faria. Persigna-se a mulher nos
fundos. Guardará na memória o golpe que derrubou o filho de Crisóstomo.
Como um pode um homem erguer-se após? O crucifixo. O crucifixo no
aperto da mão direita.
Marcelino levantou-se e desferiu o golpe. Todos ali terão a sua
história. De como o estranho perdeu os sentidos. Junto ao baque no assoalho,
o arrependimento tardio. Alice se abaixou junto ao corpo.
- Ele dizia a verdade, nada fez de mal
-- Está morto?
Eternidades antecederam a resposta de Alice. Pronuncia a frase que
rezava para ouvir. Graças a Deus não.
- Ele vive.
.
Depois que os outros saíram da sala, após uma aula de Man'yōshū que
ministrava, Maria Yukie aproximou-se de seu aluno predileto. -- Estou
grávida - ciciou. E, antecipando-se à reação de Marcelino: -- Mas não se
preocupe. Alonso virá amanhã comunicar nossa partida para nos casarmos.
Portanto, não vá insistir para que fiquemos. Estabeleceremos família na casa
dos pais dele. Bem longe daqui.
Alice Eiko, numa carroça guardada por Hilson e Maria Yukie, entraria
dali a uma semana no centro do complexo das áreas marcelinas, Nova
Lábrea, fundada poucos meses depois. A chegada aconteceu numa noite em
que as águas do rio estavam agitadas pelo vento - era uma noite escura,
muito escura, como a madrugada que precede com a treva mais densa o
amanhecer.
O verão partira. Não havia sido tão árduo como aquele em que se
conheceram, Marcelino e Alice, agora diante do padre Oziel, saudados por
toda aquela gente na cerimônia de sua união. No lugar onde a igreja seria
erguida, eles diziam sim um para o outro. Ela pensou num último olhar de
solteira na direção de Hilson e Hilson assistia a cena como quem morria.
O gutífero arvoredo testemunhou a chegada de uma mulher. Walter
foi discretamente a seu encontro. Cumprimentou-a. Sabe quem sou? Ele
apertou os olhos tentando reconhecer. Ana Carolina Cornwall.
-- Sim, são os olhos Crisóstomo. Como pode ser?
-- Genética, disse ela. -- Você levou meu irmão.
-- Imagino que você está aqui porque quer muito revê-lo.
-- Com certeza.
-- Quem era tua mãe?
Ela contou. Havia mulheres nas terras de Crisóstomo. Um coração
enorme do tamanho de seu apetite sensual. Dentro dos olhos e nos
movimentos da boca da jovem mulher também desabrochava uma velada
concupiscência. Ela balançou a cabeça e os cabelos demonstravam toda a
textura de seda.
-- E havia mulheres. Mulheres dos outros, é claro. E havia crianças.
Alguma teria de ser dele. Pelo menos quanto a duas ela tinha certeza. Uma
delas sou eu mesma. Veja. Herdei muita coisa de meu pai- passou os dedos
nas sobrancelhas.
-- Por acaso você não inveja a celebridade de seu irmão, provinda do
pai de vocês? afinal você é a mais velha.
Ana abriu os braços. O que poderia invejar? Sou apenas uma mulher.
Maria Yukie está entre os melhores homens do grupo, disse Walter. E é uma
mulher atraente.
-- Não faço esse gênero, só quero o que é meu.
-- E o que você julga ser teu?
-- O nome. Um lugar junto a meu irmão.
-- A vida de seu irmão será dolorosa.
-- Ele terá poder.
-- Quanto mais poder, mais dor no final.
-- Mas antes alegria e toda sorte de gozo.
-- Tudo passa.
-- A dor também. Sei que você sofre por causa da solidão.
-- É a vida.
-- Posso amenizar a tua dor. Temos sofrido demais -- ela abaixou o
decote e colocou a mão de Walter em seu seio. -- Faça me sentir bem. Eu te
farei muito bem também -- as mãos de Walter pareciam independentes dele.
-- Me faça uma mulher feliz. Eu te farei o homem mais feliz.
-- Deixa de ser louca. Estamos no meio do casamento.
-- Então depois da recepção. Encontre-me aqui.
Alice Eiko correu para fora ao saber que a irmã estava partindo e foi
surpreendida pela presença de Hilson. Seus olhares se cruzaram. Ana
observava. – Que bom que veio, Hilson – disse Marcelino. – Junte-se a nós
nos festejos.
Era uma pena mas ele não podia ficar
– Mas acabou de chegar
–Vim apenas mostrar o caminho ao jovem.
Marcelino se virou para mim. – Seja bem-vindo – disse. E, tornando
o rosto para o amigo, perguntou o que o impedia de ficar
– Estou no tempo de meu retiro.
– Tenho certeza de que Deus não é tão rigoroso. Pernoite hoje e
amanhã retorne a suas orações. Tem certeza de que não quer ir ao médico?
Não havia medicina humana capaz de curar seu ferimento.
– Suas palavras são duras. Sinto-me culpado pela sua dor.
– Você não é culpado.
Ele cresce contra o sol no horizonte. O tempo passou, disse. Agora só
resta conviver com a dor. Abraçou o amigo. Uma lágrima insistia em descer.
Disse adeus a Marcelino, que respondeu Adeus, querido amigo. Uma nuvem
prateada os envolvia, como a deuses.
Hilson convalesceu durante dez dias. Sua ferida piorara após a luta.
Pensou-se que ia morrer. Um dia ele acordou com Alice Eiko sentada a seu
lado. Acabara de ter um de seus pesadelos e despertou com um grito. A
palma da mão amada pousada sobre sua chaga.