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ELA NÃO FALA há dias. A última conversa foi com a moça que viajou a
seu lado. Saiu do ônibus sentindo o esforço. Seu duplo exausto passou pela
vitrine enquanto lá dentro a vendedora apanhava um par de sandálias. Parece seu
número. Tiras e ligas, do tipo que ela gosta. A atendente é bem bonita mas que
vale a beleza? Dinheiro é o que vale. Um após outro eles passam. De Darken
Pöbel a Öffner Hilo. Com um ficou na ponta dos pés e com outro deixou o
celular cair. Permitirá tudo. Pomba gemendo em círculos sobre o farelo de
tempos de um mundo inóspito mais inóspito quanto vivos os sonhos.
O sol da tarde nos cabelos faz de Alice uma santa aureolada. O ombro
esquerdo no lado direito do peito rígido. Não é um rapazola nem tão mais velho
como ela a princípio imaginou. O tecido da blusa lhe cai bem. O que estou
dizendo? Não o conheço.
Visto do vão dos prédios o trânsito se arrastava. Ele apanhava papéis de
bala e maços amassados no chão e colocava nas lixeirinhas. — Após o teatro a
primeira rua à esquerda. Do outro lado aparecerá uma padaria. Costuma ter
muito movimento.
Está escuro mas os usuários não percebem ou não se importam. Lado a lado
cada um olha seu monitor como se contemplasse o nascimento do mundo. A cor
no rosto de Alice vem da tela. Uma e outra vez sem virar a cabeça ele vê o perfil
de beleza e serenidade entre cortinas ruivas. O sol se pôs atrás dos prédios
laterais no reflexo d vidro escuro que os separava da rua. O som da geladeira
onde estão os refrigerantes se confundia com uma chuva que de há muito não
caía. O rapaz que a seguia se imagina com Alice pelas ruas do entorno. Chegou a
pensar num motel mas descartou a idéia. Então por que está ali — perguntou-se
sem resposta. De moças bonitas seu trabalho está cheio.
Dentro do fusca havia uma espécie nobre de silêncio nobre que não
incomodava. Haviam passado pela ponte, estrutura sáxea correndo ao longo do
asfalto lá embaixo. Ela pensou o quanto tivera sorte. Levou a mão à parte de trás
do pescoço e abaixou os olhos e apertou-os e abriu-os de novo e, como não
tivesse sido nada, levantou o olhar para as janelas e telhados recortados de frio
azul esmaecendo, esmaecendo até a aparição de Darken Pöbel, em quem pudera
um dia confiar. Dirão o seu primeiro amor. Pode ser.
Darken... Mas qual a relação entre ele e esse salvador com quem saíra do
café direto para o apartamento? Darken. Um rapaz de bem. Ali está. O carro
descendo a rua sinuosa. Pede uma informação ao pedestre e segue. Ela olha e há
o instantâneo Devia ter o quê, uns quatorze anos? Viu quando ele parou e
tentou estacionar quase em frente ao prédio. De perto parece mais velho, mas
que importa? Rapazinhos têm de se estabelecer na vida. Melhor um homem
estabelecido com dinheiro suficiente para levar a namorada a qualquer
programa que ela invente, um restaurante, um show (e o teatro que ela adora
anda tão caro) — incluindo o motel ou, melhor ainda, o apartamento. Mais um
ou dois anos e ela seria uma mulher feita com esse tipo de necessidade que um
menino de sua idade não poderia bancar. Mesmo depois de um ano ou dois ela
ainda será menor — pensou Darken após algum tempo de contemplação. Pode
ter sido a causa da ligeira batida no carro da frente. Tomara que não tenha
amassado. É o que menos ele precisa num dia cheio de chateações. Dá-se ao
luxo de contemplar a menina numa tarde tão pálida e morna em que não se
poderia afirmar que o céu limpo estava azul ou era uma variação do branco.
Uma mulher que passa leva as mãos à barriga: é o neném chutando; outra, um
pouco mais jovem e menos bela, leva o carrinho de bebê. Darken fala sozinho. A
menina pode perceber. Quem sabe — pensou ela — não esteja justamente
falando dela e abre um sorriso que (embora estivesse mesmo) ele não chega a
ver.
Pedro era um homem alto e magro com cerca de quarenta anos, a mesma
idade de Darken quando ela o conheceu. Os cabelos lisos são castanhos e os
olhos verdes faíscam. Há uma estranha delicadeza em seu nariz grande e isso a
impressionou logo no primeiro momento. Pedirá ou terá mandado que ela
estendesse a curva da praia erma, refúgio perdido do resto do mundo. Pedirá —
não ordenará embora ela até preferisse — que surjam as rochas altas e
redondas em meio àquela tempestade. E terá tudo o que pedir e mais teria se
quisesse e sabe-se lá por que não quis. Por que em determinado momento seus
olhos se cansaram. Surgiu um horizonte descorado como o que lá fora há pouco
baixou do céu e se amassou nos lençóis para frustração e culpa. Nisso os dois
homens foram iguais embora a sequência diferisse: Darken não demorou nada e
estava de novo pronto; Pedro demonstrou com o convite que outra coisa
naquele momento não mais queria ou não podia.
A curva sabe Deus para onde. Está para acontecer o inevitável e isso
basta. Ao lado de Pedro ela se dá conta de como se viciara. Justo ela, ansiosa
dos direitos do livre arbítrio. As sombras vespertinas dos prédios baixos se
desenhavam sobre o bairro operário onde ele teve a idéia de alugar o imóvel na
tarde de uma quinta-feira chuvosa. A dimensão do asfalto era discernida pelas
imperfeições onde os pneus passavam.
Eles falam pela mesma boca, Darken e Pedro. Coisas nem tão diferentes.
Na verdade Darken não procurava. Hoje ela sabe que ele tem essa
artimanha de sedução. Conseguiu. Não era exatamente no que ela própria estava
pensando momentos antes?
Falaram o que falaram por falar, como acontece sempre antes do sexo.
Escolhas afetivas deviam ser feitas numa pirâmide inversa, da afinidade para os
encantos, e só então chegar debaixo de um casaquinho. Sonja passa a flanela e
Pablo se aproxima. Nunca mais. Mas, se não vai vê-lo de novo, pensa num outro.
Rua afora em busca do amante morto. Do início do bairro aos primeiros brilhos
da baía, recebe os sinais. O que dependa de dinheiro não será obstáculo pois
Pedro foi generoso no divórcio.
Ela não era da cidade, ele teve a certeza. Suas chances cresceram.
Ninguém sabe ao certo mas ele arrisca que é basicamente um clamor por
serviços públicos de qualidade. - Ademais — acrescentou ele — é mesmo meu
caminho. Alice lê o olhar e vê o quanto é gentil e romântico. Um passante
contempla os belos olhos da moça. O que não é prático a desaponta. Foi assim
com Raphael Pendant.
Num primeiro momento o que mais poderia uma mulher desejar? Ele
sabia conquistar. Mas, como um revolucionário (que em muitos sentidos era),
não sabia administrar a conquista. Ali está diante do pai de Alice. Submetendo-
se ao interrogatório.
Por que um cara assim se interessaria por uma menina como ela, Alice
não sabia. Nem por que ela aceitou o convite De perto Pablo não discerne nada
especial. Os cabelos ainda são lisos e brilhantes mas o olhar é banal atrás dos
óculos embaçados.
Há quanto tempo ela não se sentia assim? Estava tentando ser boa. Se ele
fosse atencioso ela não iria se aproveitar. Voltou a ser a menina sempre
disposta a ajudar um colega de classe (um colega menino de preferência) mas
não negaria ajuda a uma menina. Estava tão cansada, tão cansada.
O vagão quase voa. Comum ela se tornara, pensa ele, valerá a pena?
Num sacolejo chegaram a se tocar mas ela entendeu que era normal num metrô
em horário de rush. Ele se mantém calado concentrado em não errar. Quando
chegaram a uma estação que parecia de pequeno movimento aí ele falou.
- É aqui.
Sílabas que não se tornaram sua voz. A moça olhou em seus olhos. Ele
pensou na menina.
Ela deveria procurar trabalho. Disse que faria isso. Até o encontrar na
empresa, era o que pretendia. A luz filtrada pelos vidros escuros naquele espaço
de dia concedia a Pablo sua face mais atraente. Formado decerto. Doutor em
tecnologia ou algo assim.
- Olá?
- Aqui pode ser verde. Aqui você quer assim arredondado? - Pedro não
fala mais com o rapaz mas com a mulher que se instalara entre eles.
Ela faz de propósito. Deixa que ele entre antes. Dirigem-se a ele e ela
aparece em seguida. Sou eu quem manda. Está se acostumando. Não vê mais o
projeto estendido na mesa. Olha a moça que veio trazer café. Lembra-se de
Alice. Era o problema dela. Nunca ter trabalhado duro. Nunca ter sido a moça do
cafezinho mas sempre a moça dos filhinhos-de-papai. Que não tardaria a ser
dos próprios papais. Apertou os olhos e a viu.
Ao virar o rosto, viu a placa do café que não conhecia e pensou que seria
uma boa ideia. Duas moedas não fariam diferença. Colocou o troco na carteira
que devolveu ao bolso lateral e seguiu por aquele caminho não habitual. Quase
outra cidade. Quase outro tempo. Está no grupo de estudantes e é quem fala
agora. O som de sua voz é firme, másculo, fascina as meninas. Conforme os
passos o afastavam, as buganvílias grenás perdiam a cor e contraste.
Uma vez Alice viu sua mãe no mato seco amarelado. Longe o verdor mofo
do bosque que se adivinhava na neblina. Deve ter sido uma bela mulher. Nem
tanto talvez, mas cheia de artifícios. Deve ser hereditário. Fazer alguém como
seu pai se casar. Alguma coisa ela deveria de ter. Azul. Um manequim ao ar
livre. Azul — espantalho de grife. Um vento. Um som. Se quisesse poderia ter
parado o sol naquela posição em que sua sombra não mais que borrava o
estalante chão. Foi aqui.
Ele está calado. Seu beijo é tão ousado quanto quieto. Homem experiente,
ela te compreende. Um filho será estorvo também para você. Um dia teve vida
própria. A filha observa e admira e inveja e não inveja a mãe. A mãe (outro som)
num passo de estranha dança.
Alice escutava um piano: sua mãe tinha esse poder. Não quer porém
terminar como ela. Estavam cheios de resquícios do mato ao saírem pela trilha
de terra. A mulher nem se lembrou de passar na escola como prometera à
professora. O aproveitamento escolar da menina estava em franca decadência. O
traje de mãe se torna um vestido de chita. A mulher descalça como Alice
escondida e pensativa providenciando um borrão móvel para o chão seco e
amarelado.
Luz cortante sobre eles. Sob as árvores que parecem falar umas com as
outras. Olhem. Ficarão juntos. Haverá um final feliz. As árvores do outro lado
da rua concordam, farfalham logo acima de um olhar deliciado que atravessa o
olhar de Alice. Está mais e mais agitada. Oh calma — diz o gato sobre o muro
com um levíssimo tremor de pelos. Pablo põe o casaco sobre os ombros dela.
Você parece estar com frio — diz. Não tanto assim, mas sorriu e agradeceu. Ele
ia falar alguma outra coisa quando passou um carro zunindo. O que ia dizer?
Esquecimentos o incomodam como se significassem idade. Como se estivesse se
aproximando do momento inexorável em que se veria em situação similar à do
malfadado pai. O motorista imagina que já a viu antes. Hoje mesmo. Estava na
biblioteca. No setor de literatura francesa. O carro passou. Não deviam estar
muito longe agora.
Na loja, ela acaricia a lingerie. A atendente olha para ela, inequívoca, mas
ela não percebe. Os dedos no caleçon tremem.
O vidro a reflete. Ela tapa os ouvidos com as luvas. Diz para si mesma
qual foi a última vez, mas quando chegou em casa ergueu a perna esquerda, a
sola para o teto, depois o peito do pé na panturrilha direita, como uma jovem
tímida que um dia foi. Na curva do corrimão um brilho azul torna-se referência
para os movimentos da sombra na medida em que os sons se aproximavam dos
significados das palavras murmuradas Porque está namorando. Com ninguém, é
apenas outra vida.
Ao se aproximar do reflexo ela era pura prata pronta a ser derramada nos
olhos de um recém-nascido do anseio de apaziguamento, como ela, com seus
seios apontados para quem questionasse sua. A penumbra dividiu seu rosto,
absorvendo metade.
Amanhã não mais estará aqui. Porque está namorando, mas não é mais o
bastante. O corredor vazio é branco como um túnel.
Cai em si. Só pode ser. O namorado que Alice deixara em sua cidade no
interior. Os dois homens saem juntos.
- Tem certeza? O nome Ananda não diz nada? Outro nome para o temor.
Não o namorado de Alice, mas o marido — o pai? — de... Ananda? Na entrada do
prédio, deixou que o outro passasse com quase uma mesura e ao defrontá-lo
sentiu-se gelar e pareceu uma boa idéia a bebida quente. Desceram um pequeno
trecho da avenida no sentido contrário das pessoas que entravam na estação e
logo estavam diante do bar e se sentaram. O estranho tinha o olhar fixo em
Pedro. Mundo brumoso que não mais revela ninfas, mas dragões.
Pelo vidro, o café está quase vazio. Menos mal no caso de uma cena. -
Amigo, dois cafés em xícaras grandes, por favor. As folhas rodopiavam e os
cacos no calçamento luziam, do outro lado da vidraça. -Linda noite, não é
mesmo? Pedro assente. Imagina o que o homem pretende, pois sabe que ele
esteve com a jovem, mas não usa isso como ameaça. Era muito mais velho do
que ela, de quem enfim se lembra. Homens muito mais velhos costumam ser
muito ciumentos. Homens-pais também. O fundo vazio das xícaras fumegava.
As pessoas que passam veem dois vultos contra um céu noturno muito
vermelho. A torre da igreja se junta ao desenho. Alguém achará que lembra uma
cena de filme daquelas que indicam passagem do tempo — um casal e a torre da
igreja, depois a cidade vista do alto, depois uma rua específica e um prédio
específico nessa rua. Subindo as escadas, a porta de um específico apartamento.
Alice se virou para o fundo da sala escura. Os papéis de Pablo estão espalhados
pela mesa. A sombra na metade de seu rosto. Ele a vê num dourado escurecido
delineado por ouro luzente. No lusco-fusco a blusa se solta aos movimentos.
Contato gelado das mãos com a lisa barriga e resultado visível no brilho
da pele. O sorriso de Alice pode ser de cócegas ou prazer ou pode não ser nada.
Riso nervoso que ainda a acomete depois de todos esses anos. Dezenove. que
ela começou cedo. Todas começam cedo hoje em dia. Depois, onde antes o
sorriso, a mordida no lábio inferior. A cólica está passando na suspensão
perfeita da dissipação de uma dor. Os olhos apertados. Os lábios entreabertos.
Ele concede valor a cada movimento como notas de avaliação. Face pálida vívida
de quem não sofreu o bastante, mas pensa que sim. Cheiro de banho tomado.
Trouxe decerto algum perfume. Os braços cruzados sobre os seios.
- Permita-me.
Mas Pedro não pôde. Não quero mais sentir arrependimento, pensou. E
seu corpo atendeu.
Acordei no meio da noite, sufocado por tua ausência. Não importa o que
dizem, mas o que dizem carrega essa sentença. Traz teu corpo macio e o leva de
volta. Então me levanto como se alguns passos pela sala pudessem dar algum
alívio e não podem. E eu que sempre pensei que a solidão é algo abençoado.
Os escritos que me pediu, Beatrice, estão anexos; mas não fazem mais
parte de mim. Estão ligados ao vigor que me abandona.
A senhora Chiem diz que a filha não precisa ir fazer as compras. Estude e
passe de ano. Não seria nada mal se ela aprendesse um instrumento. A mãe era
formada e trabalhou fora antes de se casar. Não queria isso para Alice. Melhor é
ter um diploma e se casar com um homem de bem e viver no estrangeiro. Então
Alice foi passear para os lados do lago e no caminho viu a queimada. Por que as
pessoas fazem isso? Queria viver num mundo diferente. Mais verde e mais
justo. Viu de longe a mãe tomar o ônibus para a cidade. Não esqueça essa
imagem. Você também não quer ser igual a ela. Que o de bem signifique um
homem que possa lhe dar o que ela precisa, de outra forma como poderia
refletir sobre as coisas essenciais, como a justiça? Esse homem não tem rosto,
mas pode imagina-lo. Tal prazer não combina com nada que conhece. Escreva
um poema. Vaivém lento o bastante para favorecer o devaneio. Nessa posição
Pablo não consegue se controlar. Pergunta se ela já. Alice preferiria que ele
continuasse calado.
— Pablo? Tudo.
Ele pergunta, mas sabe o porquê. Deixou claro. Só uma noite. Ou não? Ele
paga o lugar para que eu o deixe em paz.
— Nunca -
— Mas quero -
— Onde?
— Passo aí às oito.
— Tudo bem.
— Até. Um beijo.
Parou junto à porta na tarde de outono. Não fazia sentido estar ali, e
todavia... Colar os pedaços de um vaso cujas linhas proclamarão sempre a
ruptura. Antes teria recomeçado noutro lugar, sozinho. Agora a ideia nem chega
a se cristalizar. Até o suicídio ficou para trás. No quarto as batidas e a voz
produzem nas feições da mulher deitada uma desanimada excitação. Não
adianta, pensa. Ainda que fique tudo bem de novo, não vai durar. Ela estava
cansada como ele. Pabloentende o que aconteceu com o pai e consente em viver
a mesma situação.
Deixou para outro dia mas não pode demorar. Uma jovem como ela não
fica muito tempo sozinha. Tomará alguma coisa antes para dar coragem. Por
que ela o intimida assim? Não pode mais refugar. Como está linda! Uma rosa
vermelha no meio da mesa. Dizem perto dela era uma safra ótima. Casais à
beira do compromisso em restaurantes sofisticados parecem crianças nervosas.
Ambiente avermelhado contido no sorriso tímido com que Alice abaixa a cabeça.
Não tem roupa adequada mas se sai a contento com as que tem. Bebe do cálice
com olhos num nada à esquerda, quase acreditando. Mesmos olhos o encaram
enquanto ela fala e depois cala e sorri num mesmo ricto. A rosa e o cálice e a
luz avermelhada. Um mesmo enlevamento. O efeito do álcool, o desejo, a beleza
de uma mulher. Folga no dia seguinte. Quem sabe nova vida a partir do dia
seguinte.
Alice tem um irmão menor. Não tem certeza se falou acerca dele para
fugir do assunto ou desabafar a saudade ou as duas coisas. O prazer da
ociosidade com o caçula. A cadeirinha de dois lugares na varanda. O assovio
displicente se misturando ao canto dos sabiás segundo o chamado da espécie e
a gaiola do melro sobre eles no mesmo ritmo da cadeira de balanço vazia ao
lado. O vento suave do amanhecer também embalando como um gigante cuja
função era acalentá-los não para o sono. Para o dia inevitável e sem descanso
mesmo em se tratando de dois adolescentes de classe média duma cidade do
interior da rica província. Jonas e Alice acordavam juntos muito cedo e desciam
os degraus do andar de seus quartos um após o outro lentamente como se
cuidassem para que ninguém os ouvisse. Normalmente naquela cena fios dos
cabelos de Alice dançavam sobre sua testa não chegando a incomodar, como se
fizesse parte da canção assoviada que transportava o menino para muito longe.
Olhos entorpecidos confirmam a impressão da irmã. Em algum momento ele
tentava acompanhar o assovio mas saíam apenas sons ocos e desarmônicos.
Sopros apenas que enterneciam Alice quando olhava para ele. Outro órfão de
pai vivo sobrevivendo num mundo sem regras.
— Você está implicando com a idéia. É meu irmão.
Sonja sabia.
Ela sabia.
Será por isso que sou assim? Pelo que aconteceu a meu irmão? Faz
diferença se for? Se amo em Pedro meu castigo como poderei amar a felicidade
com ele? Uma morte entre outras a ser abafada como tantas nos subterrâneos
do metro ou nos corredores da escola. Um aluno qualquer; um irmão qualquer,
de outra espécie. Ninguém precisa dele. Até Alice tem se afastado ao perceber
que as brincadeiras estão indo longe demais. Jamais me afastarei de você.
Talvez seja fruto da culpa em seu coração que também existe no meu. Mas
precisamos superar. Precisamos viver. Preciso de você. Não me abandone. A
irmã notou que algo estava para acontecer. Na rua nas coisas que aconteciam.
Nas cores do céu um presságio. O sistema de som está dizendo que estamos
esperando o vagão à frente concluir uma manobra. A escola dirá que lamenta
pensando em formas de manter ocultos os casos ocorridos com outros alunos
sob o peso do rigor do colégio. Pelo menos a motivação de Jonas terá sido outra.
Pelo menos isso.
Ele adiantou-se e passou por ela. É por aqui. Alice o deteve num abraço
por detrás, deu a volta e passou a desabotoar a camisa dele. Você é um homem
muito atraente. Não a cozinha mas o quarto. Para alguma coisa ela tão jovem
tem tanta experiência. Mas ainda será um homem sem função. Ela não o
condenava. Sequer parecia decepcionada. Por que achei graça em teus olhos? Se
você está como fome a hora é essa. Oh me perdoe. Tudo bem. Vamos sair e
comer alguma coisa. Uma coisa ela sabe: se tivesse uma renda poderia talvez
amar e então existiria amor. Um trabalho gratificante como sua escrita. Poderia
amar. Não é tão má. Vejam, está até chorando. Quando descem para que a leve à
pensão, será a primeira coisa que o porteiro notará. Os olhos vermelhos.
Primeiro imagina que tem a ver com gás lacrimogêneo. Logo descarta a hipótese.
Brigaram com certeza. Nunca esteve antes com mulheres e não soube como
tratá-la. Ou ela descobriu a homossexualidade — no caso a bissexualidade. Alice
não foi nem um pouco com a cara do homem. Não gosta de gente intrometida.
Pablosequer o viu, cumprimentou-o sem olhar. Pensava em como iria viver sem
aquela sensação percorrendo seu corpo todas as noites. Aquele bem-estar. Tudo
o que se subtende do pleno prazer sexual. Não é por isso que homem e mulher
se juntam? O porteiro não acha isso. Embora há vinte anos casado jamais sentiu
nada parecido.
O espelho do hall distribui luzes e sons.
Que tipo é esse Pablo? Como qualquer homem bem adaptado ao mundo
resume a vida entre casa, trabalho e restaurantes nos dias úteis e seus finais de
semanas de presumido descanso são gastos na lascívia de pretextos que se
sustentam até o usufruto. Freqüenta o salão nobre de clubes quando de alguma
confraternização da empresa. É discreto. Suas pequenas aventuras ninguém as
nota. As maiores tampouco. Não tem opinião formada além do juízo geral e
mantém perfis em todas as redes sociais. Ali é plenamente feliz e faz questão de
que todos o saibam. Exulta quando percebe a aproximação de um ou outro
contato. Não acredita que se possa usar os dados privados exceto para
personalizar a publicidade. Acredita que tem escolha; que quem só vê TV aberta
é que não. Se a linha dos lucros continuar em queda lenta mas regular será pior
que a inconstância dos ganhos e perdas alternados a cada mês, augúrio de
inflação ou coisa pior. Bom que tem enfim um bom salário reajustado pela
mesma inflação. Há um destino pessoal ou todos estamos agregados num
mesmo link? Um destino para os países além do crescimento? para seus
habitantes individualmente? E os que não tem mais essa necessidade, como os
nórdicos? Um homem comum, enfim. Desses para quem a questão deixou de há
muito a carência mas como o administrar o excesso. No fundo concorda com o
pai. As palavras dele estão cheia de uma sabedoria em cuja eficiência todavia
não consegue crer. Balança a cabeça e seus olhos brilham esverdeados como o
alto da ponta de um mamão que acabou de ser cortada. A menina à frente, cuja
blusa azul se amarfanha em atabalhoados movimentos que acentuam a forma
dos seios e as marcas, balança a cabeça afirmativamente para a colega, vendo
com o canto olho que ele a olha enquanto espanta a dúvida de que foi injusto o
que fizeram com o velho. Jamais maltrataria qualquer criatura. Quanto mais
uma humana feminina adolescente. Pisca e entorta o corpo para o lado direito
onde apanha o outro volume sobre a mesa. Logo abandona a compaixão
incômoda e volta a pensar que a vida é um excesso mais do que se pode
administrar.
Sou tua amiga, ela costumava dizer. Sou tua amiga, você não está
sozinho. Não sabe quanto tempo acreditou. Tempo demais. Bastante para
chegar nessa encruzilhada. Há meses teria saúde para recomeçar. Forças de
arrumar a bagagem sem se cansar desse jeito. Não é uma encruzilhada. Não há
caminho. Mesmo para trás se fechou. Renascer é licença poética proibida.
Cinqüenta e cinco anos sem amanhã. Você não está velho, ela costumava dizer.
Você não está velho. Entrou numa idade em que são necessários cuidados. Só
isso. Um clique estranho. O computador reiniciou sozinho. Desconcentrou-o e
sentiu a coluna. Minimizava. Nunca disse a ela. Se disssse ela acharia que era
ainda menos. Ela acreditava piamente em Savone como escritor.
Caminham para pegar o metrô. Ele está fazendo isso para se livrar dela
como antes o objetivo era levá-la para casa dele. Mesmo assim disse alguma
coisa com suficiente graça para que ele abrisse um sorriso com olhos
semicerrados fixando os lábios dela. Um cara tão gentil. São todos iguais. O céu
se desbotava como se fugisse do fogo duplamente visível nos olhos que levavam
Pabloa pensar. Bonita. Culta. Inteligente. Por que uma moça assim permanece
sem trabalho? O mesmo que ela pensou há pouco. O que há de errado com o
mercado de trabalho hoje? Tinham alfinal afinidade.
Para trabalhar tanto assim deve ter em casa uma mulher gastadeira. Só
Pedro sabia o quanto Sonja era simples. O quanto seu coração era generoso.
Bem verdade que houve mudanças. Desde quando e por que, não sabia. Agora
um fato novo, pensou ao olhar as gotas reluzindo nas cores do letreiro. Após
levantar a porta de ferro para a ampla sala que a lâmpada fria iluminou e deixar
o empregado entrar dois passos, não dispunha de outros argumentos para
justificar seus casos e os via se aproximando perigosamente de sua vida. Da
tranquilidade de sua vida apesar de tudo. Do amor que sentia pela esposa. Vira-
se para a rua. Ainda é noite. A massa de ar polar determinou uma noite de
tempo nublado e temperatura em declínio. Agora são 06:09h e os termômetros
registram 10.4°C. A tendência é que a temperatura caia mais. O trânsito na
avenida está fluindo como não costuma nesse horário. Por que esse rapaz
precisa ligar o rádio tão cedo e tão alto?
Há movimento na rua. Gente que começa o dia cedo como ele. Quando os
funcionários estiverem entrando no emprego que deixou na Imprensa Oficial, o
sol já estará alto caso a garoa realmente pare no meio da manhã. Tem receio de
que o tal namorado de Alice apareça. Ou o pai da Ananda. Tem receio de si
mesmo, claro. Aproveite o alerta antes que o momento passe. Nada é tão
tentador quanto a paz.
Não soaria autêntico. Precisa antes afastar-se das tentações. Por que
então está lembrando o momento em que viu Alice entre as pessoas e a chamou
para um café e seu coração se alegra ao lembrar o beijo? Segura-lhe o queixo e a
puxa para si. Seu polegar aperta-lhe a face. Intensifica-se a sombra ao longo da
maçã de seu rosto. Ele está dizendo Vamos, gostosinha? Inacreditavelmente
vulgar. O segredo. Amor camaradagem não é sensual. Em algum momento é
preciso mudar a estação. Onde ela estará agora?
Alice escuta a voz como num sonho. Eu queria que você fosse morar
comigo. Mal pode acreditar. Toque-me. Veja a minha mão perto da sua. A vida
que sonhou. O lar tornado realidade quando menos esperava. O trabalho está
mudando — pensara Pabloao conseguir seu primeiro emprego formal. Não faz
sentido duas horas gastas numa condução e o estresse que daí advém. Por que
não se permitir então amar essa mulher assim jovem experiente submissa?
No fundo sou uma pessoa boa. Não quero enganar ninguém. Quero fazer
um homem feliz. Sou responsável. Não era pretexto quando disse que viria
procurar trabalho. Procurei. Quando encontrei Pedro tinha procurado. Na
semana depois da noite com Pablo. Em que dia deixei de sair e correr atrás?
Meus documentos estão em ordem; abri a conta no banco; tirei passaporte, caso
a oportunidade surgisse em outro país. Tentei. Por que me sentirei culpada se
encontrar um homem que cuide de mim e me dê o teto em que eu possa
trabalhar de verdade?
Sim, e ele? Muito bem. Em que estaria pensando? Sonhei, ele quase disse.
Mas nem se quisesse poderia dizer com certeza o que sonhara e o que era
simples recordação.
A parte em que ele abre a porta para Alice naturalmente era do sonho. O
coração dispara. Ou ela estaria mesmo ali, a amiga, a companheira de viagem?
Recentemente chegara. No mesmo dia em que a encontrou? Não. Já recusou a
idéia. Pense com clareza. As coisas que chegam desse outro mundo se originam
no temor. O olhar de Sonja inquisidor paira no quarto. Força passagem pelas
fraquezas de Pedro e esbarra em seus pensamentos. Diariamente um
pouquinho. Ele não tem a menor idéia do que ela sabe. Por que teme tanto
assim? É porque a amo e o amor começa no respeito. Então é isso. Amor.
Tudo passou. Não foi esquecido mas passou. Pode ser lembrado mas não
assusta.
Alice não faz idéia do que possa ser um presente com tais dimensões e
formato. Há algum tempo ela foi abordada na rua por um rapaz elegante e não
soube o que fazer quando ele se apresentou e disse que, se ela permitisse, iria
lhe mandar flores e alguma coisa mais. Devia ter se antecipado à empregada que
duas vezes por semana fazia a faxina e visto ela própria quem estava batendo.
Agora é tarde. Desliza pela sala com o embrulho.
- Cheguei a pensar em me matar mas não sabia como, não suporto dor.
— Não. Ainda não hoje tenho. Mas então entrei — continuou — com o
endereço da moça que veio comigo. Fui pro computador saber pelo site de
mapas onde ficava a casa. Quando descobri, já não sabia se devia mesmo ir.
No bar, olhando através da janela, Pablo pensa que ela não o amava mais,
que ela nunca o amou. Que essa é a razão de sua frieza. Mas ela o ama tanto
quanto pode amar. Passou sim a ter repulsa ao sexo. Preciso esquecer — pensou
ela, levando as mãos ao rosto num gesto de quase devoção. Quando ela ficava
assim, Pablo tomava suas mãos e as beijava em lágrimas. Tantas que em algum
momento não mais a comoveu.
- Como? — perguntou.
- Não sei nada exceto que jamais vi amor tão grande — respondeu Pablo. -
Você tem sorte — enfatizou.
— Não com tanta frequência, meu irmão. Por isso fui num médico amigo
meu e ele disse...
- Não preciso.
- Aceite.
- Não, obrigado.
- Como sabe?
- Toque sua vida, mano. Vou me virando. Sério. É tudo uma questão de
perspectivas.
O nascimento da noite.
Depois que Pedro saiu, o dono do bar pediu por favor que o irmão
batesse a porta com força pois a fechava com demasiada delicadeza e nao
fechava.
Sim: precisa que ela pose. Precisa tomar coragem e lhe pedir.
Olhos fechados. As mãos no rosto. Dedos finos. Unhas discretamente
tratadas. Apertou o canto dos olhos. A língua antes em seu ouvido agora luta
contra sua própria língua. As unhas discretamente tratadas cravadas nos
cabelos espessos. O prisioneiro ocupado com a blusinha branca de decote em V
e logo com a fivela do cinto em L.
Ela entra na sala. Quase negra. Fecha as cortinas. Negra. Senta-se. Azulada
pelo monitor passa as fotos. A determinação a inspirará caso do trabalho não se
afaste. Nasceu muito tarde. Cresceu com os que apostam na felicidade e
partilhou o deleite dos sentidos pelas mesmas redes sociais. Por volta da
vigésima foto, Pabloentra. Resolveu a meio caminho. A menina não atendia o
celular e ele achou melhor deixar como antes combinado. Por agora de novo a
taquicardia e a falta de ar e suor frio e dor no estômago. Não é nada e de nada
valerá se queixar com ela. Não pode tomar o comprimido que lhe dará
segurança. Seria a morte perfeita. Riu negro. Quando faltou energia por alguns
minutos, os dois estiveram frente a frente iluminados apenas pela lua.
- Oi, amor.
Por que logo hoje resolveu me chamar de amor? Está inclinada, quase
decidida, decidida, a se encontrar com o pintor.
- A que horas Na mesma em que eu estiver indo ver esse homem você vai?
Não sei como lidar com isso — pensa. Apesar de respeitar o marido, tem
esses rasgos de conhecer outros homens, como quem gosta de ficar em casa
mas não resiste a um convite sair. Para ele, ou se amava ou não. Ela discordava
calada. Agora esse elemento novo. Conhecer outro como ela. Como ele (Pablo)
não era. Assim próximas essas árvores formam alguma coisa tão familiar a
ponto de inquietar.
Sonja com muito sono mantém o olhar nos prédios pontilhados de azul
claro caminhando na direção deles com a taça em uma das mãos e a garrafa na
outra como se fosse servir alguém. Está com muito sono, tem tanto a fazer e
nada fará direito por causa do sono. Sente no cristal as mãos cada dia mais
ásperas. O som dorido e insistente é o canto de um curioso pássaro entrando
pela janela, retângulo de luz que não ilumina.
Com ternura perdida sorriu ao lembrar-se de Pedro. Um moribundo que
caminha sem saber ou talvez acredite piamente num milagre. Demora-se ante as
paredes de quadros e pôsteres. Vasos e toda a tranqueira que em tese deveria
encher a casa e dar a cara de um lar. Mulher é competente nisso. Ela nunca. Não
depois de certo dia. Olha os vários pares de óculos escuros sobre o móvel como
se pudesse fazer brotar deles um novo olhar e renovados dias de sol. Com uma
empregada e com Pablo casado deve ter mais tempo livre para redescobrir o
marido. Não redescobrir o príncipe pois ele jamais será um. Mas olhe que leva
jeito. E que vigor para as coisas práticas! para o cotidiano estafante duma
pequena empresa. Fornecedores, clientes e com quem mais é preciso lidar.
Outro tipo de príncipe.
Se sou inocente perante minha consciência mas não perante a lei ainda
sou inocente?
Alice fazia algum esforço para ser merecedora do tanto amor que ele lhe
dedicava? Estará ele com algum problema que não quer contar? Não quer que eu
me preocupe. Deve ser isso. Se a menina for ao menos boa e precoce o bastante
para o confortar... É bem capaz que seja isso. Não quer que eu me preocupe. Ele
é tão diferente de Pablo, Pablo só pensa em si mesmo. O pensamento confortou
Alice da nova ausência do marido sem um aviso que justificasse possuir um
celular. Não iria dizer naturalmente que estava tendo um caso; mas podia pelo
menos dizer que está bem, que está vivo.
Pablo notou que Sonja havia emagrecido e reagia com menos fervor as
suas carícias. De todos os seus casos era aquele de que não poderia prescindir.
Pareceu-lhe razoável pedir a ela, sussurrando. Devolveria sua autoconfiança. Os
olhos dela o encaram e depois se fixam num nada adiante e novamente nele e
agora cabisbaixa ela parece cansada ao dizer que ele não precisa se esforçar
tanto.
Ela está distante. Magra, fria e distante. Poderiam ter se casado. Teria
sido melhor. Ela pisca e seu olhar agora se perde com tamanho desdém que
dignifica seu rosto até então apenas lascivo. É tarde. O que poderia ter sido feito
não foi e a vida pune. Parece ter sido num outro mundo que se conheceram e se
amaram e foram tão gentis um com o outro. É pouco — pensou ele quando ela
em silêncio consentiu.
Há um ano.
Os olhos de Alice deram com uma caixa grande e prateada que da estante
refletia como um espelho, onde podia observar cada movimento dele. Via com
alguma clareza que parecia mais velho e taciturno. amadureceu desde que ela
esteve no seu apartamento.
Ele pensa que desde aquele dia seus sentimentos acerca das coisas eram
apaixonados, inclusive no que dizia respeito a Sonja. Mesmo quando pensava
em Alice. Teria ela encontrado trabalho? Ele ainda precisava de uma assistente.
Não. Seria loucura.
Seria loucura — pensou ela — esperar ainda que ele lhe oferecesse
trabalho? Porque é evidente que faltava isso em sua vida. Uma renda. Não
depender de Pablo e tirar qualquer resquício de vínculo entre seus escritos e
subsistência. Ele mergulhou num silêncio sem vestígios e quando voltou a si ela
já não estava lá. A mão direita se abriu sobre o banco do carona ao longo do
percurso entre o Centro Cultural e o apartamento. A maciez do acolchoado e a
textura do revestimento o fascinaram como se estivesse tocando a pele de uma
mulher. A pele de Sonja. Não se tratava apenas de fidelidade, mas o som do
vento e os pés na terra. Das estações.
Duas dimensões: numa ama e noutra vive. Querer que coincidam é pedir
demais.
— Sonja?
Ele pergunta se ela quer que ele faça algo para comerem. É demais. Por
que está fazendo isso com ela?
- Não chore.
Ele não disse isso. Quando ele se afastou para a cozinha, ela bateu a
porta de leve. Abaixou a cabeça, respirou fundo e pensou quando e como isso
aconteceu. Por que deveria acontecer? aonde ela pretendia chegar e — Sonja
disse a si mesma que talvez tivesse sentido atração pelo irmão mais novo
mesmo antes de conhecer Pedro. Se foi ou não assim, qual a relevância?
Ela está cansada — pensou ele. O trabalho doméstico exercia sobre a
mulher um poder terapêutico. Por que abriu mão dele? Isso de trabalhar fora e
procurar emprego e isso de empregada — tudo isso vai acabar com ela.
Pergunta-se se não está ficando sério demais. Passa pela rampa que leva à
biblioteca e segue para a rua. Vira à esquerda e entra no metrô pensando o
quanto deprime esse apego ao que não pode durar. Pensando o quanto seria
bom se não fosse proibido. Talvez o ser proibido seja a única coisa que em meio
a tudo se sustente apesar do preço a ser pago. Que pode ser perdição ou puro
tédio ou a lembrança vívida do que não se viveu. Sem esperança nem receio nem
confiança nem desespero. Nem liberdade nem a falta dela pois a cela está
aberta. A consciência disso é descoberta constrangedora denunciada pelo olhar
impudente com que Sonja sai do metrô e sob o sol se revela ao longe.
Há quanto tempo está deitada? Talvez uma hora. Nem meia quem sabe.
Deitada satisfeita da satisfação vespertina, não é difícil imaginar o marido. Pelos
movimentos sabe que ele está acordado e pela respiração que está olhando para
o teto. Tudo o que ela vê é a noite na janela aberta. Amor — dizia Pedro nos
primeiros meses — é essencial para a gente dormir bem. Nunca será sono
suficiente para impedir as impedir as sombras do pecado. Contorna a imagem
Pablosem desfazer o espaço mútuo a que não podem renunciar, por exemplo —
pensa Pabloao descer as escadas do metrô —, como renunciei à menina. Ela hoje
faz dezessete anos. Arruma sua cama com os movimentos delicados e os olhos
perdidos e a máscara de sorriso que se tornaram típicos após a tragédia. Ele
realmente não a tem visto mas a rejeitará, se acontecer? A garçonete também
viu Pablo e Sonja. Não na lanchonete mas entrando num hotel na periferia. Na
verdade também Pablo e Sonja fazem um belo casal. Mas ele é bem mulherengo
— riu consigo mesma.
Ele não é mulherengo. Se tivesse alternativa não trairia o irmão. Por que
ela ficou com ele e não comigo — perguntava repetidamente. Ela sorria e dizia
que foi pela mesma razão que ele, mesmo se encontrando regularmente com
ela, casou-se com outra. Não sabia que era possível esse tipo de ciúme e era
mais que possível: comum. O pior dos dois mundos. Olhando para o teto Pablo
naquela tarde viu o filme de seu encontro e namoro com Alice, o que Sonja
imediatamente suspeitou e de pronto decidiu que isso não permitiria. Já se
sentia humilhada demais.
Ele perdeu um tempo enorme com contatos de rede social. Não lembrou
da hora do almoço. É solitário comer entre deliciosas mulheres fúteis e homens
sofisticadamente grosseiros. Onde encontrar Sonja? Hoje é o dia em que ela
disse teria um compromisso? Tampouco lembra se é hoje que a menina disse
estar de novo livre porque o pai ia viajar. Foi a primeira vez que falou do pai.
Quando disse que ele estava na maior parte do tempo fora pois era
caminhoneiro. Deu uma ligada para ela quando a página demorou a carregar por
conta de tantos acessos simultâneos. Ela se levantava da cama larga no quarto
feito dia. Inundado duma luz que realçava por todos os lados tanta juventude.
Caminhou colocando a camiseta sobre a calcinha, desengonçada e rosa no
equilíbrio de pato de típicas e petulantes adolescentes. Derramou café do bule
na xícara ainda bocejando e antes de atender o telefone discretamente
silencioso olhou na direção da cama ressoando discreta como um bicho. Ah. Oi.
Ele percebeu o abismo.
Ouviu sem prestar atenção nas razões por que ela hoje não podia.
Desligou e não passou pela cabeça ligar para Alice. Não lembrou de médico ou
problemas de saúde. Poderia encontrá-la para almoçar. Não pensou nisso exceto
muito mais tarde quando a noite caía e transpirava o novo projeto. Pensou para
avisar que ia chegar mais tarde. E que ela não pensasse que havia mulher
envolvida. Era trabalho mesmo. Trabalho que a sustentava. Alice não tinha do
que reclamar. Entendo. Fica tranquilo — dirá Alice e irá para a cozinha deixar a
comida pronta para quando ele chegue.
O negror do café reluziu e pareceu a ambos um sinal. Ela sabe. Não por
intuição admissível, ela sabe e está perto de ter o conforto da convicção do que
se sabe e a segurança do que se faz. À vontade como um menino tímido se
transforma no piano que domina. Eu o amo. Não como amo o filho que não
deveria amar. Mas amo. Não como o pai que não tive — até porque tive. Amo a
dor em seu olhar. Amo a pessoa com um passado que um dia eu serei. Num
tempo e lugar pouco antes inimaginável ele viu movimentos femininos em sua
casa anacrônica e as mãos de dedos compridos e cruciais atravessando em sua
frente e a sombra dos braços esfriando a luz do sol obliquo sobre seus braços
em repouso sobre a mesa.
Mantendo-se ereto Pablo olhou mais acima. Céu acinzentando. Depois viu
o carro estacionado sob árvores, um perigo nesta cidade. Entrou e foi direto ao
fogão. A mesa da sala o duplica agora a partir do braço forte e dos músculos
realçados pela camiseta. Escuta passos no corredor sem mover a cabeça. Estão
muito próximos agora. O vulto se move à janela. Ah, você está acordada. Ao se
olharem viram um no outro muito de si mesmos. Silêncio no mundo não
significa paz. Sequer ausência de ruídos. Remorsos.
— Por favor...
Quanto tempo depois de tirar a poeira dos móveis e pensar na moça, ela
viu Pablo naquela situação nova? Ele lhe dirá que ter uma empregada faz toda a
diferença para um homem sozinho. Para uma mulher também. Ela corre em sua
direção. Abraça-o. Beija-o. Quando o solta, ele ainda sente as marcas do aperto
nos braços. Solitário menino perdido. Desvia o olhar. Esses arroubos de Sonja o
incomodam. Não pretende uma vida assim intensa. A lógica do projetista
determinou um futuro calmo. Sem inquietações evitáveis. Mas está ali. Se
encontram há seis semanas mais ou menos. Cinco semanas e meia, ela sabe:
anotou em algum lugar. Ainda de pé ele recompôs a camisa com um sorriso
que era um pedido de desculpa, mas ela não notou. Na verdade também está
ajeitando o cabelo. Resta saber quem tomará a iniciativa óbvia e como. Então ela
se virou e foi para o quarto e ele a seguiu. Como se houvesse nisso uma
metáfora.
Ele não parecia interessado no que ela sentia, pelo menos não agora, e
Bianca mal sentia a insistência das carícias, imersa que estava nos seus
pensamentos. Ele se deu por vencido. Seria a terceira vez aquela tarde embora
nunca de modo completo. Bianca : estátua de moça sob a chuva do entardecer.
No corpo resquícios da segunda vez. Cansada. Nem decidira se gostava dele
tanto assim. Era um bom amigo, o melhor. Raramente se transformam em outra
coisa. A meia-luz incide ao longo da parte abaixo dos joelhos que naquela
posição crescia e brilhava. Talvez fosse melhor de novo puxar conversa. Mas
como foi — perguntou ele.
— Minha mãe chegou no mesmo ônibus que Alice. Deixou com ela o
endereço caso ela porventura precisasse de alguma coisa e era muito provável
que precisasse pois viera procurar trabalho numa cidade em que não conhecia
ninguém. Mas por uma ironia do destino conheceu meu pai também...
Quase se arrependeu de ter dito aquilo mas entendeu que não precisava.
Ele era um bom amigo. Rapaz de inteira confiança que levava a sério quando ela
falava. As coisas que contava não deviam sair do quarto mas não podia
simplesmente deixar de contar. A vida que viveu. Menor que qualquer das que
imaginou. Viveu-as ambas como uma só. Pensando no quanto os céus
quiméricos eram mais azuis do que esse à janela, pensou que não. Que a cortina
que filtra a luz também será palpável caso ela se levante. Caso aceite as cores
vívidas do sonho pela natureza febril do respirar humano, a maça firme e
vermelha que aplacar a fome será o ovo do pássaro do sonho colocado na
fruteira. E o rapaz de calça jeans áspera e camiseta cinza justa assumirá as
imagens dos rapazes de seu sono. A alça do sutiã pendia na cadeira e a blusa
escorregara até o assoalho.
— Meu tio a conheceu na rua alguns dias depois de ela ter estado com
meu pai e acabaram se casando.
— Seu avô não é aquele professor que teve problemas na escola com uma
aluna?
Ela não irá responder toda a verdade. Omitirá o que julgue denegrir a
imagem do velho que adora. Sentada na cama, as mãos entrelaçadas pendem
entre as coxas morenas. A luz incidindo sobre a pele elástica dos joelhos
luzidios exceto pelo arroxeado de uma queda quando lavava o piso da cozinha.
Diz que o avô amava mesmo a garota e mais não digo por que não entendo
direito esse desejo dele de que ela fosse — não, não é isso
— Ele amava mesmo a menina e achava que poderiam viver uma história
de amor e cumplicidade antes de ele morrer e depois ela ainda teria toda a vida
pela frente algo assim, nunca vou conseguir expressar o que sequer consigo
captar
O assunto havia ido longe demais mas agora já disse que vovô conheceu
Alice e se deixar assim no ar aí é que ele vai mesmo pensar mal deles...
— Ele a conheceu numa biblioteca Parece que toda a família dela carrega
essa sina de conhecer Alice numa biblioteca e ficaram muito amigos.
O rapaz diz que Bianca quase não falava da mãe nem da avó. Ela
admitiu de imediato. Pensou que realmente tinha esse bloqueio. Estragaram as
vidas de seu pai e seu avô mas se uma pessoa não confiar em alguém nessa vida
e se não tiver um confidente acaba enlouquecendo. Então ela contou sobre a
separação dos avós e sobre a relação difícil do avô com os filhos e questionou o
argumento de que envergonhou os dois diante dos colegas. Para dar também
um fim à conversa que tinha ido longe demais ela disse:
Não iria falar mais. Subitamente viu o rosto fresco do amigo e nos olhos
dele a frescura do próprio rosto e dos próprios olhos. Eram tão jovens...
— Você me ama?
Essa menina é mesmo bem louquinha —se preocupa com isso um minuto
depois de me rejeitar?
— Me ama?
Ele não respondeu logo. O que eu posso dizer? Ela aproximou os lábios
dos lábios dele. Acho que amo apesar desse jeito amalucado dela. Ele
correspondeu de um jeito mais delicado do que de costume. Parece que ela
gosta de delicadeza; quando sou afoito me dou mal.
— Bem, ela disse — Vou acreditar. Preciso. Podemos ir até o fim agora.
Ela tentava se afastar para outro corredor. Ele a olhava sereno. Ela não
consegue simplesmente não consegue se afastar. Se houvesse alguém do lado
oposto da estante entre dois livros inclinados veria o rosto dela fresco e quieto
igualmente inclinado. Após alguns ensaios os olhos se desviam para o lado onde
sente a presença do professor. Essa pessoa do outro lado da estante não o
estaria vendo exceto pelo pestanejar e pelos rictos dela mas não saberia que
tipo de sentimento expressavam porque ela havia retirado do rosto qualquer
esboço confessional. A mão quente em seu ombro só depois na cantina
produzirá um choque de futuro. Sombra sobre sombra nas lombadas. Ela não
escutou direito mas acredita. Na história da vida dele há visões. Humilhação e
lágrimas. Inconformismo. Ela acredita que não há segunda intenção em seu
convite. Mas será ela capaz? É só uma mesa num evento literário com
estudantes do segundo grau. Mesmo assim um desafio. Quando deixaram o
balcão, Alice afinal sorriu. O professor estava realizado. Conseguira a
palestrante para antigos alunos. A sombra no espelho será iluminada quando
mãos preparadas abrirem a janela no momento devido.
O que pode interessar o que eu acho? Se você insiste, meu filho, acho
naturalmente que você poderia ter ajudado e dado a ela um lugar na gráfica até
porque o primo de Sonja não é uma pessoa de confiança e sequer estava
interessado no lugar e no final você teve mesmo de contratar um estranho. Deu
sorte pois Raphael é um ótimo rapaz. Mas não teria sido o mesmo com ela? Ela
também não está demonstrando o quanto é de confiança e competente em tudo
o que faz, sem falar na virtude misericordiosa com que suporta a instabilidade
emocional de seu irmão? Eu diria que não é tarde. Eu diria que se não foi tarde
para mim não pode ser para você. Eu diria que você teve essa sorte de poder se
redimir.
Seu pai pensaria decerto, ao saber que ele ergueu as mãos contra uma
jovem, que gerara um monstro. Monstro! Podia ouvir sua calma voz veemente
enveredando pelos labirintos da alma lacerada. Isso ele não imagina: que desde
que a reviu sem conseguir lhe falar está assim. Pungido. Lacerado. O professor
não saberá nada além de que ela se apaixonou desde o primeiro beijo. O tapa —
como furacões rebaixados a tempestade tropical — não será digno de menção.
Ele foi à janela e viu a rua molhada. Um transeunte olha para cima e se
assusta. Pensava ninguém morasse ali. Mas o telefone toca e ele atende e se
esquece do homem à janela. Com a rapidez de raciciocínio e sagacidade
necessárias para se ganhar o sustento num mundo tecnológico e competitivo em
que nem a privacidade dos presidentes está preservada, ao ouvir a voz do outro
lado sugerindo a compra do dispositivo, disse que seria melhor esperar pois
pelo tempo que foi lançado decerto está próximo da obsolência. Você sabe —
diz ele caminhando mais rápido e já fora do campo de audição de Savone — que
essas coisas nascem para morrer.
Ao evitar olhar para ela mais ele a imagina, a pele fria e macia luzindo, e
com esses outros olhos a vê com a expressão improdutiva que caracteriza a
dúvida que não será dirimida. Ambos escapavam. Ele não mais ela sabia de que.
Ficava confuso ao pensar que afinal foi melhor assim tanto em relação à mulher
como em relação a Beatrice, foi melhor a separação precoce que uma decepção
depois que a expectativa crescesse em demasia e se frustrasse como se
frustraria decerto e ter sido expulso lhe possibilitou outros caminhos que um
dia dariam fruto. Como melhor se uma vida inteira estava desperdiçada? Sem
uma renda regular justo nessa fase da vida em que logo estaria descartado
inclusive dos trabalhos eventuais com que subsistia. Quanto a ela, sabia a quem
amava e com quem se casou e isso era praticamente tudo. Mas na vida dele
amor e casamento não eram palavras adequadas. Todavia amainou a febre de
Alice, coisa que nem Pedro em seus melhores momentos conseguiu. Vultos à
sua volta.Ela no vidro da janela e no espelho e no bule sob a lâmpada e na
própria superfície do biombo. Anjos de sonho protegendo sua nova existência
quase missionária.
Em algum momento ela sentiu que ele estava chorando. Que ele estava
chorando por dentro. Pode ter sido quando ele abriu a porta e eu vi a sala e a
janela no lado oposto. É. Foi exatamente naquele momento. Mais tarde ela
saberia que era ali que ele costumava ficar horas e horas. A casa de um homem.
A porta fechada e nenhuma implicação. Cheiro de homem, de coisas de homem,
de casa de homem. Agradeço por você ter vindo, gostaria de saber o que dizer
agora, mas não sei. Chegara a ensaiar. Alice, eu... Sabe, queria... Quando vi você
pela primeira vez... Mas há algo a dizer. Leu livros e livros e ainda no sábado
passou a tarde e um pedaço da noite na biblioteca e não descobriu. Ela
respondeu que sabia ser algo assim. Que ele estava chorando por dentro por
ainda não saber, ela sabia mas não disse. Apenas sorriu e se sentou. Ele pegou
um copo de água e colocou na frente dela. Estarei por perto quando você
descobrir. Quando realmente souber. Estarei aqui quando precisar. Ele tocou a
mão dela quando soltou o copo. Olhou nos seus olhos. Vem aqui na janela um
pouco —pediu. Debruçaram-se. O sol na vermelhidão do céu. Próximos a ponto
de sentirem a presença um do outro sem se tocarem. Ela nunca esquecerá esse
momento. Será a primeira coisa que dirá à senhora na praça. Uma vez um
professor pediu para que eu fosse em sua casa e ficamos debruçados na janela
até a noite descer dos céus. A mulher olhará para ela sem mover um músculo
dos que denotariam sua incredulidade. A casa em que ela viu uma lareira e um
biombo. Como se fosse ontem — disse ela. A mulher sorriu e disse que era uma
bela história.
Murros na porta. O namorado violento. Por favor, ele não deve saber que
estou em casa. A progressão das batidas repercutindo no coração dela.
Esconda-se — diz a amiga, atrás do horror de testemunha.
Ela acabara de chegar. Veio de avião. Para ficar na casa da amiga. Faz
treinamento numa empresa de aviação. Mal chegara e o namorado da outra
apareceu, sabe, justamente quando ela estava me contando que precisava
descobrir um meio de se livrar dele para voltar a viver. Disse isso sem perceber
que falava de si mesma. Que precisava encontrar alguém com quem partilhar a
vida. Sentia-se insuportavelmente sozinha mas lamentava ter magoado Sonja
saindo com o marido dela, um homem tão bom. Depois dele ninguém. Chegou a
pensar que poderia perfeitamente ter incluído essas confissões no que contava
para o rapaz havia minutos um estranho e agora e agora o que exatamente, se
pergunta, decerto tem a ver com sua carência pensar assim, pensa sem
naturalmente ter a menor ideia que era mais ou menos o que ele estava
pensando, ou seja, como podia ouvir de uma desconhecida esse tipo de palavras
que nem das namoradas escutou.
Quando a viu, meu Deus — pensou — não posso mais viver assim. A
segurança material alimenta esses conflitos embora se julgue maduro e seja tido
como um exemplo de maturidade. A jovem anterior estava certa quando o
alertou vendo a situação de fora. Você é um homem bom e acabará arruinando
sua vida. Porque é o que as pessoas fazem: usufruem de sua bondade, mas
estarão a postos para acusá-lo e mulheres como eu estarão na linha de frente.
Não haverá misericórdia. Estava certa e não estava. A presença da empregada o
declarava. Alice era toda bondade e talvez estivesse até grata por ter sido
Darken e não um cafajeste que à época não saberia discernir.
O despertador tocou. A cidade azul apareceu com pontos amarelos na
janela. Parou a campainha com a mão direita azul como o quarto. Silêncio abriga
a respiração e as pombas e as mãos pousam no rosto e os dedos nos olhos em
meio a um bocejo. Movimentos pelos quais Darken pela primeira vez acordando
a seu lado se apaixonou. Como a seduzira facilmente. Ele que nunca foi bom
nesse tipo de coisa apesar das tentações, graças a Deus. Ela aproximou a face da
janela como um cãozinho temeroso de trovões cheira a chuva. À porta do
apartamento olhando a empregada ele percebe o quanto envelheceu. Mais do
que ele. Quanto deve ter sofrido. Se é que a dor envelhece. Está pensativa agora
sentada na cama. Cedera tão facilmente. Faz tanto tempo. Castidade não há
mais mas sim o sangue.
Cedeu fácil demais. Como era ingênua. Um dia mais cedo ou mais tarde
todos pensamos assim. Os maus e os bons. Todos atribuem à passagem do
tempo essa duvidosa virtude de nos tornar realistas. Entreolham-se e retornam
à mesma lembrança. Com poucas modificações foi a cena do amanhecer de hoje.
A cidade azul. O quarto azul. Alice esfregando os olhos. O que até ali era um
vício se cristalizou como virtude no fundo dessa xícara, a alma.
Depois, naquela manhã, Alice saiu de casa e entrou no azul mais claro
cada vez e de pontos amarelos menos brilhantes cada vez. Levava Bianca meio
adormecida nos braços e os passos ecoavam na calçada como um reloginho
ignorado. A cidade não é grande, mas é famosa pela qualidade de vida. Uma das
primeiras da região a ter uma creche. A tia deixa a menina com a outra tia.
Deixa, com o coração apertado. Nesse momento ela é a mãe, com todos os
direitos e todas as dores. Bianca despertou e está chorando mas Alice aprendeu
que é melhor que Gracile a acalme.
— Não, não, não chore. Mamãe virá te buscar de tardinha. Você sabe. Hoje
tem aquele papá que você gosta. Hoje a gente vai brincar de...
Uma vez Gracile imaginou uma criança dela. Esqueceu. Do jeito que era
desastrada com as próprias coisas. Um bebê: medo só de imaginar. O namorado
também deixou claro que não queria. As crianças dos outros passaram a bastar.
Encarou com valentia o último tabu. Uma mulher bonita que ama crianças mas
não quer ser mãe. Ainda jovem e nem tão desastrada, nunca mais gostou de
alguém a esse ponto. Depois soube que ele havia morrido e desistiu de formar
família. Sua família estava ali na creche.
Alice aperta o botão do interfone outra vez. Agora Martha atende e ela
entra. Depois o senhor Pöbel. Ela acha ao vê-lo que está envelhecida pois ele não
mudou nada. O que foi querido, você voltou? Esquecera as chaves do escritório.
O carro amassado. A mulher grávida. A jovem mãe. É de você que Martha fala.
De como é uma mulher virtuosa. Mãe extremada. De você, imagine. Se ela
soubesse. Mas aí está você em silêncio, virtuosa sem dúvida. Porque tenho
condições perfeitas para ser vítima de chantagem. E aqui estou em silêncio te
dizendo que sei que não fará. Está em seus olhos. O olhar de Alice está mudado.
Com ela, ele aprendeu. Quanto economizou em comprimidos e poupou em
saúde.
Não sabe onde e quando começou. Sabe naturalmente que não começou
num lugar ou tempo determinado mas dentro de si havia feito isso e
compactado a vida pregressa — assim, como se fosse uma criminosa — a partir
de um vago evento que mesmo imaginário não conseguia ser claro sequer para
sua mente bem como o futuro que não começa tinha seu dia marcado na
esperança sem fundamento. Subitamente de algum ponto de si mesma e de sua
trajetória houve a destruição e dos entulhos renasceu ora pássaro ora fogo ora
mulher das ruas em que andou e das casas em que entrou para zelar. O brilho
da mesa de café na cozinha. Um espelho em forma de L. Os armários luzentes
guardam irrepreensíveis louças e talheres. Com grandes olhos atentos escuta as
recomendações da senhora Martha. Não sabe mais quem foi um dia — um rosto
que se esquece ao deixar o espelho — ela própria uma casa com paredes
espelhadas. Não sabe mais exceto por eventuais referências: o primeiro amor; o
beijo abissal; o homem; o pai; a filha (que é sobrinha). O que não foi destruído
pelas tormentas é forte o bastante para servir de apoio no tempo que restar
entre o gozo e a agonia.
A porta ecoa pela casa. O casal saiu. O homem não é sequer um espectro
dos antigos anseios de conforto e posses e status e garantia de futuro com
bônus de algumas horas no presente em alguma cama ou sofá ou mais
provavelmente no banco do carona passando para o do motorista. Sequer
mantém a diferença de idade. Os tais vinte anos que na verdade nem significam
tanto assim pelo menos não enquanto, embora muito mais velho, o homem no
que interessa ainda é suficientemente ou talvez plenamente jovem mais até que
um jovem literal. Desde que solteiro mas não era mais o caso e não havia mais
caso algum. Na luz que entra há um prenúncio de tempestade que se repete em
feições no semblante de Bianca, que tem pavor delas. Um coração confrangido e
logo um choro levam Alice sobressaltada ao quarto de uma criança. Filha de
Darken, imagine. Terá saído um bom pai? Levantar-se-á à noite para dar uma
mamadeira ou ver a razão de um choro como outrora fantasiara? Caminha pelo
corredor ressonante e abre a porta e entra mas não se demora muito nada mais
que o tempo do choro parar. Deixará o jantar pronto. Deverá ser reaquecido se
vierem almoçar — diz no bilhete. Amanhã precisará faltar.
Naquele dia. Quando saía da casa de Darken e Martha. Sem imaginar que
haverá uma outra noite. A caminho da creche. Em frente da locadora.
Lembrando. Com a mesma risada infantil após algum gracejo nervoso quando
ele sentia a pele da coxa e a trama muscular e ainda assim era menos óbvio e
menos rude do que ela. A marca da meia escura junto ao elástico na lateral
ainda intacta parece adquirir alguma misteriosa importância. Quando a mímica
se esgotou no silêncio a voz dela soou em meio ao pano entre as palavras, havia
ainda os risinhos carentes e contíguos, o revirar que poderia passar por
desconfiado dos olhos quando apenas pensava o que não dizia. Ela havia
permitido por conta talvez da natureza de presa e atributo de caça mas havia
permitido talvez até provocado a menos que se controlasse como nunca antes.
Pedro estava ouvindo tudo como se fosse um relatório imprescindível a que se
obrigasse. Ela nem imaginava. Quando as vozes se cruzavam cuidava sim que
também os pensamentos o fizessem, apenas isso, se cruzassem sem qualquer
relação uns com os outros, como os carros na esquina lá embaixo. Não se
olhavam mais mas ele guardara a expressão tímida e voluntariosa como quem
guarda um tesouro ainda que buscasse um thesaurus outro que justificasse
palavras e pensamentos em tamanha desconexão na velocidade das mãos agora
conhecendo a contextura da calcinha iluminada exceto pelo sulco logo
magnetizando e distribuindo tracejados negros no algodão. Correspondiam às
dobras forjadas nas meias pelo vergar rígido dos dedos dela após a curva das
próprias solas e às marcas causadas pelo morder dos próprios lábios
comprimidos. Não era necessário que houvesse nada além disso. Cumpriam
suas incumbências de acordo com os serviços informativos. Absurdo despontar
do nada qualquer coisa próxima da culpa mesmo em se tratando de uma
menina e ainda que alguém um dia pudesse dizer que ela só estava atrás do
dinheiro dele e embora ela tenha jeito de menina e ele aparente estar
estabelecido na vida. Despertaram com o movimento do tráfego e se olharam de
novo depois de horas. Um horário familiar aos dois. Uma luz familiar. Familiar
um ao outro não por qualquer relação com o passado. Ele apanhou o celular na
mesinha. Olhou a hora mas embora estivesse atrasado permaneceu quieto e
respirando com cuidado como se caso contrário a pudesse incomodar. Não
havia mais nada porém que a pudesse incomodar e caso ainda houvesse ela não
mais se importaria.
Ananda saiu do hospital faz sete dias e Öffner ainda não passa de uma
criança assustada. Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Não
sabem o que a levou àquele ato. Levantou-se. É quase de manhã mas não há
indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e indecisos passos no corredor.
Terá ela voltado ao trabalho — imagina. Öffner? Sai e a escuridão torna-se mais
vívida e tolerável embora não menos densa. As flores lentamente tornam-se
visíveis e o aroma delas a atmosfera respirada e são as flores que ladeavam o
caminho pelo qual passaram naquele primeiro dia. Ela pergunta e ele responde
com um sorriso indulgente. Demorei? A mão toca-lhe no ombro suave e fria e
branca a não ser pelas veiazinhas azuis.
Pedro preferia que ela não tivesse vindo mas o que poderia fazer? Cerca
de um ano depois antes a encontrou vagando na cidade à procura da amiga que
mal conhecia. Sem ter para onde ir. Agora tem. Ao menos acreditou que sim e
ali estava. Está escrito nas paredes chispadas de sombras.
Está viúva há não muito tempo e se sentia de certo modo culpada. Há não
muito tempo Pedro soube do caso da mulher mas impediu-se de qualquer
palavra de acusação e se ela mesma não tivesse pedido o divórcio ainda
estariam juntos. O homem com quem se envolveu (culpa que o próprio Pedro se
atribuía) na consumação de um sentimento antigo — seu próprio irmão —
estava morto. De resto, se alegrava em dar à ex-companheira uma vida digna.
Um sentimento verdadeiro um dia os uniu. Um dia. Hoje a porta do elevador se
abre espelhada mostrando a jovem que ao reflexo dele se uniu. Metálico som
profético. Em um ano quanta coisa aconteceu. Realmente preferia que ela não
tivesse vindo mas a beija em desespero. Alfazema não mais gardênia e um olhar
cuja experiência não se acresce de mediocridade.Como me achou aqui ou
perguntas tais são irrelevantes pois esperava teu olhar e aqui está. Não devia ter
vindo mas veio e se alegrará por ela ter vindo e pelo tempo em que ele ainda
viver estarão juntos.
Um olhar sobre ela atento. Continuou. Falou então sobre Ernesto Savone.
Ele espera que eu escreva com o corpo todo e com toda a alma. Do jeito que
segundo ele eu vivo sobre coisas em que acredita embora seu corpo não o
confirme. Não há mais tempo. Arqueou as sobrancelhas e inclinou a cabeça.
Pediu-me. Seu olhar é doce e parece saber mais de mim do que seria possível.
Digo-lhe que um dia também acreditei em algo assim. Não mais? — ele
pergunta. Não sei o que responder. Estávamos jantando. Ele acabara de pôr a
panela na mesa e se sentar. Ainda hoje ando em busca da resposta. Disse-lhe de
uma outra forma. Disse que esperava algo mais do que escrevia e vivia. Como se
ao escrever vivesse e não pudesse viver se não escrevesse mas vida no caso seria
mais que vida e do que a própria escrita. Como se ao escrever estivesse morta.
O olhar dele era atento como se eu fosse proclamar o sentido do silêncio
infinito dos universos. Mais tarde me diria que era isso mesmo. O sentido que se
procura na beleza e na arte ou dele se foge pela distração ou trabalho. O
mundo não existe. O mundo consiste das pessoas e de como elas o vêem.
Naquela noite ele chegou a ensaiar esse argumento. Naquela noite seus filhos
ainda viviam. Mencionou-os uma ou duas vezes de passagem. Mas por que
procura essas coisas em mim? Na minha sombra. No meu olhar. Ela sabe porque
assim passou a também a vê-lo e ouvi-lo. Não: nunca houve outra intenção entre
nós. Digo com isso que não havia um desejo? Havia sim um desejo, mas não
tinha relação com a atração. Com um fim definido e pelo qual em tudo nos
enganamos dizendo coisas que não visam exceto a satisfação desse desejo. O
desejo que havia, para permanecer, não devia ser satisfeito.
Então apesar de todo o amor ela percebeu que as diferenças precisam ser
absolutamente respeitadas e não é questão de sentimento. O amor pelo pai dela
era autêntico. Diferia em que, exatamente? Também amava sua sombra
precedida por passos igualmente amados. E o som de sua voz e os nós de seus
dedos. Mas esse amor era o amor cujo desejo para se renovar precisa morrer ao
ser satisfeito.
Ele se encaminha para ver se realmente a chuva parou. Ela ainda não
sabia que seria seu chefe e que assim que estivesse se estabelecido sua mulher
viria também. Tudo o que sabia dele se resumia no dorso cujos músculos eram
visíveis sob a camisa e a pele queimada com que a luz da janela se chocava.
Vira-se. O beijo até então contido. Há uma fronteira que os iniciados em Beatrice
nunca passaram. Já esteve até com as pernas para cima como um bebê e assim
tocada ali perto de onde a vermelhidão arada de coçar mordidas de mosquito na
pele das coxas aparecem mais. Onde o dedo arranca sons ignotos e farpados e
provoca o transbordamento desmaiado com inaudíveis palavras de repúdio
seguidas de aperto nos olhos e mãos nos joelhos. Daí os iniciados em Beatrice
nunca passaram. Mas ela está disposta a que afinal aconteça. O que esse homem
tem de tão especial para tanto? E o que ela tem de especial? Não sabem. Ele diz
a si mesmo que prefere não saber. Que seu casamento é sólido. Que é a primeira
vez. O que não impede que o sentimento transborde limites determinados.
Apesar de insistir que ela é vulgar por ter se entregado tão facilmente. Não foi
tão facilmente. É como se houvesse camadas de entrega e resisti o tanto
legítimo em cada uma delas. Beatrice imagina a lua lá fora enquanto ele dorme.
Um dia inteiro. 24 horas. O tempo em que está ali. Parece uma eternidade. Amor
e trabalho: estrutura da vida. Um mandamento divino partilhado por toda a
terra. Coisa sagrada. Durante o café na mesa da cozinha quase caseira ela
pensará no quanto havia de luz naquela proximidade de manhã. Uma luz
avassaladora permeando sua insônia num momento em que deveria estar
entorpecida e satisfeita mas não — estava desperta e ansiosa como se em si
mesma houvesse um pouco daquela escuridão prestes a ser dissipada.
Alice digitou a senha no caixa eletrônico pensando que devia ser mais
cuidadosa ao manusear documentos na bolsa aberta. As preocupações mudam
apenas mudam nunca terminam. Uma vez sonhou que ele ressuscitara. Ainda
sóbria sua aparência era mais jovial do que nunca e a elegância aureolada pelo
cheiro de sempre. Banho tomado e hálito aromático. Lenta sublime respiração. O
tempo cura tudo e transforma o que não pode curar.
Aura luminosa contra a vidraça do banco. Busca sem saber o que a não
ser que tem a ver com vozes que se recusam a calar mesmo não sabendo o que
dizer e ainda amando o silêncio. Mulher única. Ele não percebeu logo. Aquela
por quem sempre procurou. Melhor estar só. Agora ali de novo recebe seu novo
beijo. Deveriam viver juntos, por que não? Não seria tanto tempo e a susteria
nas épocas más do futuro. Seria transformada — ou curada? — pela lembrança
do filho e pela sabedoria do pai. Ele estenderá a mão no leito de morte. Não fale
— ela dirá. Não se esforce. Mas sabe que chegou a hora. Savone vê a cena da
porta do quarto. Olha para eles e para ela. De quem precisa para sobreviver seus
últimos meses.
Pedro e Alice se reencontram. Ele divorciado; ela viúva. Beijam-se. Não se
põe mais a questão se ela devia ou não estar ali. Está e estará por quase três
anos. Durante esse tempo pouco escreverá. Vez por outra ele entrará e ela
estará diante do computador traduzindo alguma coisa para enviar antes da
noite. Ela lhe pedirá apenas mais uns minutinhos com um sorriso irresistível. Ele
responderá. Não se preocupe. Que faça de conta que ele não chegou ainda.
Contemplando o ar sério e sexy que o cabelo preso e o coque e a concentração
lhe davam. Não se esquecendo do avanço das negociações para a venda. A visão
dela ali sem preocupações materiais e portanto com tempo para a saudade que
de algum modo o eternizaria enquanto ela vivesse.
Tempos atrás queria tirar uma foto com o celular e postar na rede para
criar um significado mas agora estar ali transcende essa outra presença hirta
como o viaduto. A sombra se derrama na calçada e tinge as pedras do tênue
acinzentado que faz a curva dos seios no tremor da blusa. Movimento de pintor.
Morena como nunca foi. Deliciosa, segundo o pedestre que passa por trás. A rua
se alonga ante seus passos na descida iluminada. Depois de pegar Bianca irá
para onde, agora que os três estão mortos?
Ali. Sobre a ponte. Vi o mundo que deixava e o por vir em pouco mais de
meia-hora como quem passa fotografias de uma mão para outra. Pesquisei para
saber os passos que deveria dar para encontrar Pedro e o que diria.
Caminhamos juntos pela noite deserta. Estávamos de braços dados e eu me
sentia totalmente feliz sem sombra de tristeza pela morte de Pablo. Um homem
bom a quem seria sempre devedora. Mas eu não estava triste. Pedro pouco
falava e quando o fazia dizia coisas engraçadas, pelo menos me davam vontade
de rir, e eu estava adorando rir, rir tanto, rir com tamanho prazer. Ele estava
com a barba por fazer. Um detalhe muito para mim. Era outro homem. O mesmo
mas agora o meu amor. Também ele ria e também o riso eu não conhecia em
sua face. Tomamos refrigerantes e conversamos até cerca de meia-noite. Foi
quando ele me falou de você, Bianca. Você estava com uns dois anos. Não fique
com raiva de sua mãe. Por que uma mulher seria necessariamente perversa por
deixar a filha com o pai? Sei que ela voltaria pra você se não tivesse sido
assassinada.
Naquela manhã tomei um susto. Ouvi um barulho e não vi teu pai a meu
lado. Ele tinha caído da cama. Rimos muito de novo. Ele ficou algum tempo
estendido no assoalho e eu com a cabeça reclinada. Perguntei sobre como
descobriu meu endereço para mandar aquele tablet. Disse que não descobriu.
Que deixou com o rapaz da lan-house para que me entregasse. Tinham meu
endereço mas ele não queria que lhe dissessem. Você precisa deixar isso de lan-
house — disse um dia. Era verdade. Cansei de internet. Pelo menos da internet
como um substituto da vida. Quem sou eu para que me sigam e saibam de meus
pensamentos? se há algum que mereça não será usufruível em meio a uma
avalanche de entretenimentos obscuros e em meio a tamanha dispersão. Eu e
você caminhando agora em silêncio após a cerimônia em que nos despedimos
de Pedro. Você tem nove anos e é uma menina saudável mas logo te perderei
para as mesmas tentações que na adolescência me tragaram. A moça escuta e
sente medo da mulher que a criou. Prefere assim. O medo à apatia da sua
geração. Esse terror que impulsiona do que simplesmente estagnar.
Foi como se naquele dia tivesse sido retomado o dia em que procurava
minha companheira de viagem para me hospedar por uns dias. Meu sorriso
restaurado. Porque eu desaprendera de sorrir quando esbarrei com teu tio na
saída da biblioteca e notei que estávamos com um mesmo título nas mãos. Hoje
acho que aprendi que afinidades não levam a grande coisa nos relacionamentos.
Acontece é claro como o contrário acontece também. Cheguei a temer que se
tratasse de um tarado ou coisa assim quando ele se encostou em mim no metrô.
Olhei uma ou duas vezes e lá estava atrás de mim quando eu ia para a lan. Meu
Deus, era o que faltava... Mas não. Ele foi muito gentil. Ofereceu-se para me
acompanhar embora não quisesse subir quando sua mãe nos convidou.
Entre essa noite e o dia em que jantamos passei uma noite com um
homem que dizia me conhecer. De onde? Era um empresário que me vira entrar
na lan-house quando ele saía. Um homem charmoso calado porque quando
falava só falava em como a Grécia era apenas a ponta do iceberg e tudo iria ruir
cedo ou tarde, sobre o perigo dos crescimento econômicos acompanhados de
perspectivas desmedidas mas ninguém deixa de jogar na Bolsa por causa disso
nem de gerar a euforia dos mercados por meios artificiais ou apostar no
dinheiro como em tulipas. Que o mundo como o conhecemos podia mesmo ruir,
pensava e que bom o mais cedo possível, assim cada um se vê diante de si
mesmo e o pecado deixa de ter essa conotação despersonalizada de hoje
quando há humor de mercado e as pessoas parecem que o perderam. Bianca
pergunta se ela tornou a vê-lo, ao tal executivo, com olhos dum interesse que
Alice podia imaginar.
— Obrigado, Eña.
Assim que chegaram ao ponto mais alto deram com o horizonte aceso do
outro lado. Não conversavam propriamente: alternavam murmúrios. Tudo ia
ficar bem apesar da lama que se pegava nos pés delas. Não imaginavam que
ainda pudesse existir um lugar assim deserto em pleno sábado. Podiam ficar
mais um pouquinho. Então sentaram sobre um se tronco sentindo vivas e
amadas. Eña e Maria sentadas num azul que não existe. Uma ao lado da outra e
abraçada à outra partilhando o sonho. Quem as visse do mar (a sereia do sonho
por exemplo) veria que a outra olhou mais além quando Eña disse como agir em
relação à opinião das pessoas. Seu vestido se quebrou à altura das coxas. Passos
na areia. Linha das ondas. Com os pés molhados elas se olham e entendem que
precisam voltar. Os perfis se sobrepõem. O olhar de Maria busca mais longe e
Eña segura sua mão e a aperta e a traz para junto do seio. Dois céus, como no
princípio. Dois mares. Uma coisa só.
Imagina que o tempo irá firmar à noite mas prefere não pensar na noite.
Uma manhã assim se parece com a hora temida da volta para casa. Não pode se
dar ao luxo de uma crise noturna pois esse trabalho precisa ser entregue no dia
seguinte. Por quê? Se pudesse responder a sapatilha de balé não guardaria
aquela paixão furiosa e o carro semelhante não atrairia seu olhar. Dever nos
pingos que escorrem na janela. Não mais prazer, apenas dever.
Nada mais foi como antes desde o dia em que Raphael a conheceu.
Todas as coisas renasceram após a presença dela em sua vida emprestando luz
de seu olhar a cada nuance do que o cercava. Era musicista. Ele o soube-o
quando voltavam da primeira aula de dublagem. Ela o convidou a entrar na casa
de seus pais após um pequeno contato por um motivo qualquer durante o
percurso do estúdio ao bairro em que viviam. Estão sentados longe durante a
explanação do professor. Comentando a aula falam de cinema e de arte em
geral. O que realmente o levou ao curso foi o desemprego e a falta de
profissionais naquele ramo mas esqueceu isso. Contempla-a recortada pelos
cenários à janela.
O rosto dela se destaca como flor num terreno baldio. As mãos muito
alvas contrastam com o sol e os pés nas sandálias são suaves cordilheiras
enevoadas. Ele que estar em seu quarto e descobrir seus segredos. Não sei o
que é vida ou o que desejo mas sei é o sol de um sonho antigo. A fachada do
prédio é amarela. Essas linhas são os raios oblíquos. A luz viajou desde muito
longe até se chocar com o cimento. Jardim limítrofe.
Não que seja novidade mas nada é como antes pois jamais viu uma tarde
sob essa luz rósea fulgindo do arvoredo ou essas frestas atravessadas que
pulsam e erguem a imensa barra de ouro. A umidade da grama fala alguma
coisa que diz respeito a mudança e beleza. Deixa de separar e passa a ser
referência de união. Entrando os passos ecoam no vestíbulo espelhado.
Renascimento. Tantas as partes dele morrendo em Aleksándra. Ela pergunta o
que ele faz e ele diz. Trabalho em uma gráfica. Como o patrão em depressão
pelo recente divórcio disse que procurasse um outro emprego na verdade não
está trabalhando.
Ele a abraça com seus olhos com tal intensidade que a sente estremecer.
Está de costas à janela e ali bate o seu coração ligado à realidade apenas por
meio daquele corpo. Vozes. De onde? Se indagar de si mesmo dirá que os pais
dela não estão em casa. Que são empregados na cozinha. Quarto diáfano
azulado pelo filtro de cetim. Ao lado da janela esperando alguém cansado como
ele, uma cadeira de balanço de madeira nobre; na mesinha de tripé duas xícaras
de chá e um bule sobre a toalha branca de crochê. Um vaso de flores
multicoloridas. Caminhando próxima ela marca o tapete com suaves círculos.
Adianta-se até o peitoril onde findam os taques revestidos e os músculos das
pernas se colocam em descanso.
Distraída pelos sons que executa ela permite que ele a contemple. Um
colo tão branco. Disse que era uma família de artistas. Um pintor e um escritor e
a mãe pianista. Saberão algo? Não encontrará o essencial em uma biblioteca.
Nem em Mozart. Mas aqui há alguma coisa além. Seios cuja engenhosa
redondeza o próprio Deus será incapaz de recriar. Tremores de vestido à
aragem nas cortinas. Limite do tecido na coxa levemente pressionada onde
repousa o instrumento. Virginal melodia de apetência. Quando ela se inclina sua
sombra alcança os pés de Raphael. Subindo ao ponto.
Mais tarde Raphael saberá que ela havia chorado por causa do filhote de
pastor belga que ganhara em seu aniversário — era o tema da conversa dos
empregados quando entraram, como iria ela reagir — e ele ficará sem saber da
reação de Aleksándra diante da sua declaração de seu amor. Duas semanas mais
tarde ela conseguirá uma bolsa para estudar música em Milão e ele não mais a
verá. Quando soube da noticia nos estúdios fulminado saiu da sala e tomou o
mesmo ônibus onde seu amor encontrou campo para se desenvolver ao saírem e
passarem aquele tempo juntos no primeiro dia.
As aves cujo canto lembra um mantra são as de que Bianca mais gosta.
Evocam concentração e disciplina e paciência — virtudes que tão dispersa
persegue. Essa que chilreia agora ela não conhece. Assim que ouviu não gostou.
Sofisticada sonoridade sinuosa em busca de novas oitavas procura seu máximo
e não usufrui do mínimo alcançado.
Ela está com Elisuki —está sempre com ele. O mundo é outro quando
estão juntos, há uma aspiração de vida melhor e mais árdua. O sol se põe no céu
próximo e no remoto trovão há um presságio adicional. Elisuki está calado. Não
quer mais falar sobre o assunto. É desgastante. Arfam e os pés agora suados
estavam enfim aquecidos dentro dos tênis. Aí estão eles por toda a parte, os
normais, fazendo planos e se dando bem. Está esfriando. Você vai para casa?
Um sorriso em resposta. Quando voltar ali Bianca lembrará. São o lar um do
outro. Suplica. Não me abandone. No canto dos pássaros também o presságio.
Ser amada tem um preço. Não irá decidir agora mas apenas manter esse contato
com o verde até a saída. Pensará em alguma coisa. De um modo ou de outro
todas as coisas passarão. Não tem certeza de nada mas vale a pena seguir o
caminho. Está escrito no dia vacilante entre os prédios. Chegaram. Ele
prossegue.
— Obrigado.
— Pareço doente?
Ele diz que sabia. Que a conhecia e ela não seria capaz. Mas ele teria
merecido. Parece um sonho. Com a morte do irmão e da mulher, ainda que não
estivessem felizes (antes culpados), respiravam juntos. Eram livres. Se
abraçaram e se olharam nos olhos. Vamos resistir. Vamos começar uma vida em
comum. Vamos ao centro ver se aquele apartamento ainda não foi alugado.
O que acontece na imaginação tem que relação com a vida real? Criar é
quase recriar a vida. É a própria vida essa criação. Quando aos 18 anos eu queria
casar com uma menina legal a quem fosse fiel e leal, por exemplo, o quanto
havia de sonho? Muito decerto, pois jamais encontrei tal menina e a bem da
verdade nunca fui um menino assim. O tempo passou e talvez eu tenha me
aproximado daquele ideal. Bem, então ficamos assim, pensei. Atingi um objetivo
que não faz o menor sentido. Nem era totalmente isso. Uma das coisas era a
partilha desses mundos neste mundo. Não era idealizada a emoção que senti ao
ler sua primeira mensagem, nem tinha qualquer relação por mais vaga que fosse
com isso a que chamam amor, mas tocou algum nervo desse outro ser, desse tal
que não vive no mundo e portanto em tese não deveria ser atingido pelo que
nele acontece. Então por que me afetou tanto? Não sei. Posso dizer de coração
aberto e com toda sinceridade que jamais tive — nem tenho — porque não
posso, nem devo — de que mundo são esses verbos? — jamais tive nenhum
pensamento inadequado.
Pensarei na decisão que não tomei porque a outra vida que tinha não era
vida. E claro que pensarei na pele e nos olhos, nos lábios e na voz, nas conversas
e nos silêncios, e sobretudo no que, nesse caso, não precisaria ser aliviado uma
vez a cada determinado período de tempo, porque o tempo em comum não é
dividido ou pelo menos não deveria ser ou pelo menos nos sonhos daquele
menino de vinte anos que naturalmente não podem ser os meus. Quem sabe
para isso eu tenha existido em sua vida - a irreal, porque na normal amanhã
você será uma escritora (ou o que seja) de sucesso, realizada, e provavelmente
lembrando com certo sentimento de menosprezo ter se permitido uma vida que
não a única. Quem sabe não. E então me compreenderá ao viver a mesma
circunstância.
Mas ela não sabia — ninguém sabia exceto a enfermeira que deveria
acompanhar Pedro ao estrangeiro. Rasgo de generosidade ciente de que estava
condenado e a filha estaria melhor com Alice. Que Alice estaria salva de todos
os seus males materiais e que poderia a partir daí ser enfim ela mesma. A partir
do momento em que fosse a responsável por Bianca, o que Sonja a cada dia
deixava transparecer que não seria. O que nem ele próprio em seu delírio
poderia supor é que aquele vôo teria seu nome na lista de passageiros mas não
sua presença na poltrona do avião.
Para ela ter um lugar como sempre sonhou. Para que pudesse escrever e
não precisasse se submeter a humilhações.
Epílogo
- Você vai?
- Posso esperar?
Longe disso.
- Você é tão bonita — disse Sonja. Um ardil para não ser esquecida.
FIM
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Junho 2001
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