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DIANTE do postal de Kleber, no delírio de ter uma cidade sob o sol nas mãos
e estar sob o sol de outra cidade, evocou o dia em que conheceu Francesca,
levado pela relação entre a reminiscência e os dois sóis, relacionando
Francesca com sua ida de um para o outro. Na margem do Tejo o vendedor de
haxixe abordava os estrangeiros. Eflúvios de tágide emanavam do outro
envelope, a carta de Katia. Fala de trabalhos e estudos em Milão e de sua vida
solitária e de todo o seu tempo tomado mas dera assim mesmo um pulo até
Moscou após um giro pelas capitais da Comunidade Europeia. Era o início da
livre circulação de pessoas e mercadorias. Ela falava. Ele podia ouvir a sua
voz. Soava com a naturalidade de quem diz que viu o crepúsculo da varanda
de casa. É o mundo de camponeses e reis e dos pedestais da aristocracia
feminina. De ternos vagabundos sob o sol.

Os pés no rio são peixes.

Viram que ele virou o papel de seda e pensaram em pedir um pedaço.


Um rapaz alto e ruivo de bermuda e camisa floral chegou a se levantar mas
desistiu quando percebeu a caligrafia de Katia, inclinada e tensa de sua
síndrome. Letra elegante e bonita como ela própria a se movimentar pela
Praça de São Marcos entre homens de terno como se estivesse em Piumhi
conversando com a velha senhora que foi para ele uma segunda mãe. Carta e
postal próximos como se não houvesse distinção entre as ruas de café e o
percurso das gôndolas.

Então se viu na carta. O papel fino o reflete contra o trânsito que flui
para o Porto. Acinzentado brilho imperial cobre o casario nas ladeiras ao
redor. Cheiro de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Francesca na
memória de sua língua. Tamborilam as águas da fonte nos ladrilhos rangentes
à passagem dos bondes. O prédio na esquina do paço ergue-se triste em
cicatrizes e olhos duplicado ao longo da água no meio-fio. A gola azul de
zuarte levantada até as orelhas. As sobrancelhas se encontram na glabela.

Ergueu os olhos. Dragas empurram as ondulações contra a superfície


sáxea que margina a avenida até a torre de Belém. As moças não sabem o que
são aquelas coisas e sua utilidade. No sol miríades de diamantes. A cidade na
largura do rio. Conforme desce a noite o tráfego na ponte aumenta e as linhas
douradas na outra banda se dissiparão; mas na perda do fulgor as pessoas
estarão em casa.

Lisboa. Repartida entre portugueses e turistas à vontade em leves


roupas coloridas ao chamado do sol ibérico e negros provenientes das ex-
colônias africanas sentados atrás da igreja de São Domingos logo depois da
Praça da Figueira ou defronte da estação Restauradores do metrô. A
primavera traz o humor de seus dias tanto do inverno que passou quanto do
verão por chegar. Estamos num desses últimos.

- Give me light? pediu a jovem cujo vermelho da pele acusava a


palidez congênita. Os mochileiros se movimentavam como em uma festa
íntima e sua indolência contrastava com os lisboetas fardados de
sobrevivência na Praça do Comércio.

Calçou os sapatos e desceu do muro de onde sentado via os cacilheiros.


Apanhou a mochila preta e jogou as alças no ombro. Está cedendo na costura.
Dá para ver uma camiseta azul e um desodorante em bastão. O ruído dos
tecidos é tipo o chiado de um disco velho, chiado de um disco velho, chiado
de um disco velho. Caminha no sentido de Santa Apolônia. À meia-noite
pegará o trem para a Espanha.

O caminho era feito de incisões que costuravam as semanas


imediatamente anteriores às imediatamente seguintes porque nunca teve
memória ampla o bastante para lembrar fatos antigos nem esperança tão
grande que compreendesse o futuro distante. Tentava juntar os dias em que
Francesca participou do torneio em Barcelona com as possibilidades ao
receber o pagamento do artigo e quem sabe a encomenda de outro ou ser
efetivado na revista. - A estação está longe, senhor?

- Ali, depois daquele prédio.

Anoitecia e esfriava e sequer frequentou uma universidade e não fazia


sentido o legado de seus escritos dispersos mas aceitou a encomenda do texto
sobre a passagem dos vinte anos do Maio de 68 e vai entregá-lo pessoalmente
na revista espanhola. Depois passeará em Madrid e sentirá a respiração de
uma mulher de fala cantada e longos cabelos negros. Pele clara. Branca por
assim dizer. Coxas brancas exceto pelos arrepios e as veiazinhas entre o azul
e o vermelho. Sol numa cortina de tule. Ele tem desejo de Espanha e das
pessoas e coisas da Espanha porque não está na Espanha.

Entrou na estação. Burburinho. Frio e fome. Sangue aquecido e


preparado, grosso. Não voltará ao mundo. Não voltará. E se não voltará por
que olha tanto para o céu e se importa tanto com a opinião das pessoas- De
nada valeu a vivência exceto para descrevê-la- Estava cansado de lidar com
palavras. Não voltará. O que é tempo? O sopro de vida em mim será tirado
como esse trem da plataforma um. Exceto suas ações nada restará. Com
lábios trêmulos chegou a dizer "Estou com frio". O homem a seu lado não
entendeu ou não se interessou porque decerto não estava com frio.

Na cabine solitária chegam cheiros de todas as casas na escuridão.


Camas rangendo. Armários abertos rangendo. Relógios refletindo o luar. Sons
noturnos. Sim, meu amor. Outra camada do tiquetaquear do trem na noite. A
mulher se ajoelha e o homem por trás segura os seus seios. Ofegavam. O leite
ondulou no copo à cabeceira e pingos encheram o vidro da janela do trem e
escorreram pelas pernas trêmulas.
Estação de Atocha. Madrid pela manhã. ¿Por favor, donde un hotel?

-Hay un bar cercano con abundantes raciones y buenas tapas. Tienen


buenos platos combinados y camareros dispuestos.

Ficou com o quarto. Lá fora trovejava. Solidão. Solidão. Rodinhas no


piso. O carrinho gemia. Mas o corredor não era acarpetado? A voz (do
gerente talvez) diz à camareira que - passos arrastados e outras vozes na
janela. Ecos. Enchem o quarto mas estão por toda parte. Quando era pequeno
tinha vezes que sentava no assoalho e tapava com forca os ouvidos, a cabeça
entre as pernas, e chorava em desespero durante um tempo enorme ate que
aos poucos as vozes iam se calando como agora. É como se o carrinho do
setor de limpeza do hotel as tivesse levado. A voz no corredor se desliga dos
ecos e silenciam.

EU disse ao Sr. Jean: "Pai, precisamos fazer alguma coisa. Ele parece
tão boa pessoa e assim vai enlouquecer". Talvez eu já estivesse apaixonada e
fosse um pretexto mas talvez nao e só estivesse se manifestando o forte
instinto maternal que eu nao imaginava viesse a ter um dia e talvez nem
precisasse porque nao queria ser mae mas depois que dei aa luz entendi o
que significa o ditado "do homem sao as disposicoes do coracao mas Deus
direciona os caminhos".

Acho que o sr. Jean me atendeu porque no fundo temia que eu tivesse
puxado a ele e logo sumisse no mundo e quando me arrependesse fosse tarde
como foi para ele e acho que estar ali diante de mim de um lado e de sua
noiva do outro deixava isso bem evidente e doloroso para ele e eh possivel
que ali tivesse tido a ideia de me dar o apartamento de presente se o que ele
imaginava estivesse certo como estava porque tanto me segurava perto
quanto protegia o patrimônio. Foi mais ou menos o que fez quando entregou
a administração da fazenda ao Kleber. Acho que todo pai é assim. Mas
olhando para a Mae e para mim mesma hoje vejo que as mães são bem
diferentes entre si por mais que tenham pontos em comum.

Sentiu desconforto nos pés e tirou os sapatos e experimentou o alivio


dando uma volta no quarto. O ar que entrava pela janela era do mesmo azul
ferido do céu. A calca apertava e estar de cuecas o remeteu de imediato a uma
Blandine rósea que soh na roça existira. Fazia cinco minutos que a moca da
limpeza passara com o carrinho mas parecia noutra vida em que as pessoas
eram boas e o sofrimento nao era requisito para se tornarem melhores.
Demorou para entender a relevancia do caderno agora em seu colo para que
tivesse com ele tanto cuidado a ponto de notar que as folhas estavam dobradas
no canto superior. Precisava comprar um novo.

– Pensei que ele estava – disse a camareira.

– Não, acho que nao. Por que?

– Parece que há um recado.

Os olhos nublados doíam. Bem que seus pais avisaram. "Você precisa
fazer uma faculdade". Profetizavam essa ereção inútil.

Caminhões municipais escovavam o asfalto. A janela enquadrou o céu


e uma estrela apareceu imponente ou simplesmente só em sua solidão como
um sinal. O relógio e o jornal que ele lia na cama apoiado num cotovelo
registravam o final de abril. Havia tensão no avião árabe sequestrado. Na copa
das árvores o verde muito escuro retém pelas nuances a luz do sol imerso no
abismo. As vozes no corredor se distanciam. Crescem os sons do vizinho.

Em torno da lâmpada mariposas. Com as mãos na parte de trás do


pescoço ele as olhava boquiaberto como se visse fantasmas e lembra. Cartas
caídas no chão e recortes de jornais velhos; fotos; papéis voam da mesa e
alguém exulta -- um livro! Se esvaiam na noite as luzes e restava colocar o
coração bem irrigado por exercícios e alimentação balanceada a serviço do
que deve perdurar.

Uma camareira rendeu a outra. Passava pelos quartos abertos


recolhendo a roupa de cama usada. Lembra da cara do marido quando ela
finalmente tomou coragem e disse "Vou sair de casa, não preciso de você para
sobreviver". Recorda a cara da filha. O orgulho da moça escondida atrás da
enorme barriga. Passou com o carrinho pelo balcão vazio da portaria. Quadros
da Inspeção Sanitária. Advertência contra crimes sexuais. O espelho e o
quadro das chaves.

A que saiu se encontrou com o namorado. Seguiram pela Gran Via e


entraram no prédio e depois no apartamento. Mais tarde comeram as iscas de
fígado que ele preparou e voltaram para a cama e no dia seguinte acordaram
quase meio-dia.

O porteiro voltou. Cantarolava a música que encerrou o show da noite


anterior. A movement is accomplished in six stages. Banda fantástica. Era
como se todas as coisas boas que deveriam acontecer ao longo do dia – as
gorjetas e a pausa do almoço, o flerte com as hóspedes – tudo estivesse ligado
aos acordes e aos rifes e ao delírio.

As escadas desciam em voltas. Em passos normais pelo corredor uns


cinco minutos dos quartos até a rua agora visível. A luz fazia com que a
pessoa apertasse os olhos e transeuntes se aproximavam então de quem saía.
Há dois casais parados em frente ao prédio. O ônibus ronca e retoma seu
trajeto.

VALERIE queria fazer amor com seu professor . Longe de estar


apaixonada, ela o admirava. Saboreava a intensidade desse desejo sem culpa
enquanto suas amigas acendiam e quando o baseado fez efeito passou pela
sua cabeça a reação de Hans se soubesse e certamente haveria de saber. Em
nenhum momento sentiu menor o seu sentimento por Hans desde que viu o
outro no campus e quis estar com ele ao menos uma noite.

- Ele é muito lindo! - Você só pensa nisso, amiga... - Por que outra
razão eu me ligaria ao movimento estudantil? - disse ela. E deu risada.

Ele chegou e disse "Oi pessoal". Ela já tinha tudo planejado e pouco
depois estavam no alojamento. Do outro lado da parede tocava Beatles. Os
outros deviam estar tagarelando Well you know sobre sistema educacional e
política e Vietnã mas no fundo diziam que Valerie tinha o direito de fumar
unzinho e depois fazer sexo com aquele homem.

PELOS labirintos do metrô, ele chegou ao outro lado da cidade no


princípio da noite. Arrefecido o horário restou a oferta de corpos e o
burburinho nos bares e adolescentes discutindo qualidade e preço. Apertos de
mão em código. Socos de camaradagem e beijinhos. Ao se dispersar um
grupo alguém deixa um pedaço gratuito como prova de amizade.

Estava sentado sob o toldo no degrau diante da porta comercial de


enrolar e rabiscava a página do caderno. Durante tanto tempo sonhou estar no
lugar em que estava mas isso não significava mais nada. Pouco depois estava
na avenida de Daroca e ventava. De Vicalvaro a Las Musas entrava no mundo
que nasce quando morre o diurno e sua retidão.

Apanhou a linha sete até Pueblo Nuevo e a cinco até Ventas. Havia ali
cinemas e sopas e madrugadas segundo o suplemento. Viu o cartaz e entrou.
A inverossimilhança do castelhano perfeito de Sting e Kathleen Turner fez da
sessão um tipo estranho de terapia e saiu sereno e bem disposto. Não lhe
ocorreu qualquer associação entre o filme e Blandine mas havia Trieste. Se
relacionasse os cenários com os arredores da Via della Sorgente onde ela
vivia e caminhava ao sol e aquele mar do filme com o mar que agora a
extasiava, teria ficado ansioso e triste. Mas não lhe ocorreu qualquer ligação e
saiu ileso graças a esses complexos mecanismos mentais que nos protegem de
nós mesmos.

Meses depois quando voltasse a assistir o filme em Lisboa numa sessão


reservada a jornalistas para mostra dos processos de Alta Definição, por causa
de um detalhe - o espaço entre as casas, de que Francesca não gostava por
achá-los grandes demais, agente de isolamento - ele pressentirá Trieste e
confirmará a intuição. Nessa sessão em que os cuidados técnicos subtrairão do
filme o halo de magia substituindo-o por tipo um vídeo-tape (algo como
trocar a pintura de um mestre pela foto da paisagem que o inspirou), nessa
outra sessão, quando Sting falava com sua própria voz o inglês original do
filme, ele experimentou imensa angústia porque, se aceitamos as horas que
passamos numa sessão de cinema como um tempo vicário onde a ilusão
assume o papel da realidade com o nosso aval, quando voltamos a nos deparar
com o filme depois de ver os atores recebendo prêmios ou em entrevistas
egocêntricas ou simplesmente em outros papéis, perde-se a dimensão de
sonho da primeira vez e detemo-nos nos detalhes e tudo se torna evidente
como fruto de uma humanidade vã, verossímil demais para ser verdadeiro.

Não era assim após o filme em Madrid. Estava cheio de esperança.


Com postura e respiração de peito caminhava para a região das tavernas. O
rapaz pediu um cigarro e propôs depois de acendê-lo um chocolate. Michel
foi até um vulto na transversal do outro lado da rua sem dizer palavra e ao
voltar preparava o baseado.

Michel era inglês embora tivesse nascido na Suíça. Pronunciava o


espanhol tão corretamente quanto Sting no filme porém ele é real como minha
alma dilacerada. Cantava o lhú de lluvia (começava a chuviscar) e o lhê de
calle (convidara-o para ir tomar sopa num clube noturno e explicava o
caminho) diferente dos latino-americanos que dão aos eles som de jota.
Juntaram-se no percurso pelo cheiro um italiano e um português. Um veículo
pesado faz com que a avenida estremeça. Um sino. Meia-noite. Tudo o que
um segundo comporta.

Luis, o entroncado moreno do Porto, está falando sobre mulheres. Diz


que sexo e sentimento são para elas a mesma coisa. Quando sentem prazer
elas estão amando. O homem não associa assim. Admitimos que a imagem
da amada possa se apagar e o coração transmitir outras imagens.

Talvez por isso o espírito possessivo toma conta das mulheres - o


italiano que vivia em Barcelona, Tomás, fez uma pausa e ia concluir mas Luís
conclui ele próprio. – Como uma possessão mesmo.

Para elas uma amante eventual é definitivamente traição mas so prova


uma tendência polígama primordial.

Um caso sempre significa alguma coisa, pensou Andrei.

Passam três moças em sentido contrário. Michel se virou e as seguiu


durante uns passos. - Mujeres, vosotras las chicas no valéis nada y no sois
nada y no tenéis sentimientos ni corazón ni entrañas; no queréis ninguna salir
conmigo? A mulher escolhe sempre um homem que desperta a atenção de
outras - o rico e charmoso, o bonito e inteligente, o protetor, o sedutor - mas
só leva em conta que se ela é fiel garantiu o direito de exigir fidelidade.
Escolhe e se entrega logo antes que surja a questão de sua própria beleza e
charme e meiguice que desperta o desejo de proteger. Não preserva seus
encantos e exige fidelidade independente desses encantos.

NO SOBRADO que atendia pelo nome de pub ao longo da noite


branco como as outras casas da rua os ciganos se divertiam cheios de brincos
e pulseiras, gargalhadas e olhares. Num canto quatro estrangeiros bebem
refrigerantes potencializados pelo haxixe.

Fazia um calor fora de época, sufocante. O suor escorria pelas veias


saltadas semelhante às folhas nos vasos do parapeito. Água da rega
escorrendo nos limbos. Suor nas mãos que seguravam os tacos como mangais
de faraós. O cheiro de uma cozinha próxima serpenteava sob os narizes
substituindo o cheiro de maconha.

Num momento Luis respirava fundo perto da janela. A planta suando


parecia um chapéu; noutro, ele havia levantado e gritava. - Minha carteira!
Alguém roubou minha carteira! – Tomás discretamente conferiu os
bolsos. Uma sirene disparou. Andrei pensou na polícia e no haxixe. O barulho
insistia e aumentava. O porteiro suplicava que saíssem.

Nas escadas a ponto de sair claustrofóbicos esbarraram em uma tranca


de bronze. A passante solitária virou o rosto e ao olhar para a casa admirou o
porte viril do rapaz que saía. Luis tornara a subir os degraus de dois em dois e
lá embaixo os outros ouviram sua voz desesperada e enérgica e um botão
atuou no circuito. Depois ele próprio apareceu, respirando fundo com um
meio sorriso que em seguida estendeu à mulher que passava.

O frio lá fora se misturou ao relaxamento do haxixe. Michel, antes da


confusão e de seu sumiço, fará confissões. Tinha uma linda casa em Londres.
Era sócio de uma próspera loja. Optara por viver na Espanha por se relacionar
com a resistência basca em nome da memória do avô, um basco francês. A
madrugada madrilena distribuía luzes e sombras pela amplidão de suas
avenidas iluminadas e nevoentas ruelas sempre dando em alguma praça ou
entrada de metrô ou em outra avenida iluminada. Lâmpadas de postes
traspassavam a bruma e entranhavam no asfalto as encompridadas sombras.
Luis abriu o papel e Tomás colocou a mistura.
Que significado teria o Maio francês para os bascos, perguntei-me ao
pegar o ultimo pedaço recusando a tentação de guardá-lo para depois
escrever na solidão do quarto. Aspirávamos o máximo mas não era tanto por
ser fortíssimo o tabaco negro. Eu era adventício, todo homem é forasteiro,
uma sombra em vão se afana. Eu preferia estar descansando em frente a uma
televisão ou ver um vídeo ou ler um livro, ouvir música, discutir filosofia em
alguma culta cama continental e depois de amar e dormir sem me preocupar
com a refeição seguinte. Eu preferia a normalidade, a prosperidade, o
conforto; e quanto mais os preferia, os abominava mais.

Procuramos um lugar sem vento. Descemos na entrada do metrô.


Tomás desfez a barra aquecida sobre a moeda na palma da mão. Dois
policiais surgiram de um descuido. Olharam e se aproximaram. Mandaram
gentilmente que mostrássemos os documentos. Um deles se deteve em minha
credencial. “Jornalista, hen?. Acaso trabalha melhor drogado?” A voz se
elevou quando me encarou, encostado em sua insígnia.

Eu trabalhava melhor despersonalizado. Quando minha consciência


fazia parte de um todo em que eu era parte insignificante. Quando eu, autor,
me afastava dessa função e permitia que os fatos (no caso do jornalismo) ou
os personagens (no caso dos livros de bolso) existissem sem noção de bem e
mal, sem opinião. Mas não deviam ser o texto acabado, antes passar pelo
crivo abstêmio, íntegro em suas limitações – eu. Nisso o bagulho fazia seu
papel mas eu preferiria que não fosse assim porque todas as coisas são lícitas
mas nem todas convém e eu queria ser minhas próprias transgressões sem a
ajuda de deuses caídos ocultos na erva. Que cérebro em mim o faria, ou que
coração?

Portanto, no dia em que do navio panamenho eram arremessadas ao


mar latas e latas de maconha embebida em mel, nesse mesmo dia, três jovens
com os olhos muito vermelhos na noite madrilena caminhavam conversando
alto num tom de voz típico de exaltação contida. Um deles acabara de chegar
de Lisboa para entregar um “freela” em uma revista e nas próximas horas terá
se envolvido em um caos de dolorosas coincidências de um ou outro modo
envolvendo os outros, inclusive o francês que um pouco antes sumira.
Quando restou a acidez do cartão que servia de filtro para o cigarro que
fumavam, o que se chamava Luis pressionou-o entre o polegar e o indicador e
lançou-o longe e disse que tinha de ir e deixou seu endereço no Porto. – É só
pegar o autocarro 57.

Ficaram os dois outros, Tomás e Andrei. O vento frio parecia outro e


eles mesmos outros também. O que pode enlevar, sim seu guarda, é incapaz
de modificar. O tal espelho que amplia é ainda um espelho. O sábio será
sempre sábio e o tolo cada vez mais. Andrei falava a respeito quando passou
uma jovem pequenina roliça e castanha. Dix-neuf ans. Olhos verdes. Lábios
rosa escuro. Os cabelos caíam pelo rosto. Um blusão surrado aberto o
bastante para a visão de um seio, o bico revelado na transparência da
camiseta castanha como o blusão e ela mesma. A cintura Deus ali se demorou
um pouco mais. A expressão inteligente; frases curtas, divertidas; supergata
charmosa. Chamava-se Isabelle. Seu gerúndio tinha acento sublime. Sorrindo
disse um smiling cantando o g e depois Tomás assim abrindo o a e
derramando o Sena dentro dele e claro Tomás se desinteressou do espelho.

ESTAVA novamente sozinho. Sentia-se bem. A fome e sobretudo o


sono carregavam ainda o prazer da viagem. A noite era branca mas as ruas
amarelas. Apertou o olhar e viu Tomas e Isabelle sumirem nos pontos
esverdeados. Tentou imaginar a distancia dali ate o hotel e espantou-se com a
nitidez com que o numero nove apareceu no poste da iluminação publica
associado a quilômetros. Sorriu mas era so um ricto desvinculado da imagem
em sua mente que representava a percepcao de um patetico e amorfo
descompromisso com a realidade. Seu rosto amarelo como as lampadas. Os
sons so os que vinham de dentro e nada de nada sobre aonde ir agora. Pois o
hotel tinha sido um sonho e despertara como um animal marinho desperta na
areia e os quilometros imaginados se confundiram com o preco da entrada
para o pinguinario. Ate o seu andar parecia. Ele riu e a moca em sentido
contrario balancou a cabeca penalizada.

Um bar aberto. Além do peso dos olhos tremeluziu o fantasma de um


proprietário gordo e barbado diante do qual passando pediu dois pães com
manteiga e um bolo e um café com leite. A cadeira ficava embaixo do 7 do
ano da inauguracao ao lado da foto de um frequentador celebre e isso dava a
ele uma estranha, morbida e infeliz importancia. Abriu o caderno de notas.
As conversas cruzadas dos outros clientes nao so comecaram a chegar como
atravessavam seu cérebro. Na mesa em frente um velho de barbas brancas
divaga diante de um copo de vinho pela metade há muito intocado.

O movimento da caneta foi inicialmente lento cobrindo como uma


capitular toda a pagina e parecia ter de fato aberto um tunel no tempo pelo
qual ele viu jovens dizendo num québécois orgulhoso por onde deveriam ir
e deram os bracos em fileiras de cinco, a da frente com tres mulheres de cerca
de vinte anos e o rapaz numa ponta mais velho um pouco talvez uns trinta
anos bem pesados de desencantos ambiciosos.

O segundo traco emendava as letras na grafia ininterrpta unindo as


passadas da manifestacao pelas reformas e so esbarrando num ponto final
quando a greve comecou e a partir da repressao aa passeata a caneta vazava
de sangue azul as linhas que passaram para a pagina seguinte num movimento
desmobilizado pela manobra de DeGaule. Andrei tirou os olhos dali mas
continuou escrevendo na mente. Que foi feito das profecias nas paredes?
Onde está a sociedade que em 68 se pensou? Em Paris não é vista e em
Nanterre não está. O mundo nao precisa mais disso. Nao eh sequer o mesmo
mundo. Mas ele precisava embora o texto devesse ao contrario sofrer cortes
como um casal que ja disse tudo para chegar aa cama e que nao tem mais o
que os una ali porem ainda assim falam e falam mas nao dizem, ai, nada mais.
Tudo com muita civilidade. Num tom ameno que nao eh outro porque nao
tem mais impeto para ser. Um mundo no final das contas. Soluções literárias
para problemas reais.

ENTROU no bar uma jovem de olhos grandes em nada semelhante a


uma mulata do interior de Minas. Todavia, é Blandine. - Jag vill gärna... –
falava com o atendente loiro quando se percebeu observada. Está de costas
junto do balcão e os cabelos escorrem pela camisa azul-claro. Perfeição
geminada no jeans. Ele ergue a cabeça, displicente. O texto diante. O fundo
de café com leite. Hesita e quando de novo a procura ela não está mais e ele
fica com a caneta na mão. Pássaros matinais à janela. Rasurou uma vírgula. A
matéria é sobre o maio mas é da morte dele que trata na verdade. De sua
morte miserável. Que diferença faria se a fome ou o frio ou ele mesmo a
provocasse?

Amanhecia. Blandine e o lago no espelho do bar. Foi ali. No lago.


Porque ate então eu nao tinha percebido que ainda era um homem e ainda era
jovem. Trinta anos. Na sala da pensão acho que nao a vi direito. Só pode. Tão
imerso em mim mesmo. Todos os sinais. E pensar que eu tinha sido casado.
Que tive um numero normal de namoradas. Mas nao, nada parecido.
Nenhuma pele escura e brilhante ou lábios grossos tomando a iniciativa.
Porque aquilo era iniciativa e me deixava realmente pronto como nunca.
Pronto, nao preparado, como nos deixa a passividade dúbia ou obediente de
uma mulher branca. Blandine. O nome europeu sofisticado nao faz justica aa
sua simplicidade devoradora. Filha de Lizt ela disse mas nao, antes filha da
pancadas na porta da quinta de Beethoven, filha de meu sonho, nao, filha a
mais legitima do destino. Vinte anos de puro deleite sem qualquer pudor. Foi
ali. Chegando de cavalo com as marmitas prateadas mal cobertas pelo pano
de prato florido junto ao seio que exuberante escapava.

O KLEBER parece que gostou do rapaz e isso para mim sempre é um


bom sinal porque eu sempre tive essa proximidade com ele desde pequeno e
sempre o que ele sente é o que eu sinto ou vou sentir, então estou contente por
causa de Blandine porque se continuar assim essa menina vai dar muito
trabalho ainda e esse rapazinho de Belo Horizonte pode ter lá o seu dinheiro
e dar o conforto que ela quer mas está na cara que passado um tempo ela vai
achar um motivo para largá-lo e dar outros vôos até porque esse tipo de
emprego do menino em uma empresa pública, com a segurança que dão e tudo
mais, pode ser bom para na parte financeira mas na hora agá de viajar, que é
o que essa menina tem no sangue como o pai, com certeza ele não vai ter toda
essa disponibilidade e aí já viu o que acontece, ela acabará indo de um jeito
ou de outro ou não irá e uma mulher frustrada eu sei bem do que é capaz. O
Kleber me contou que demorou para voltar e quando voltou eles estavam em
pleno clima, queria ter sido uma abelhinha lá e ter visto, porque clima é algo
de que Blandine nunca precisou para chegar a seus objetivos, embora seja
uma menina decente, você não me interprete errado por favor, ela é sim uma
menina muito sensível e decente; mas tem lá suas ambições e aliás tem o
seguinte: sim, gostei do rapaz e o Kleber também e parece ela mesma, que no
fim das contas é o que interessa, agora há uma distância entre a gente gostar e
ele ser mesmo o que aparenta ser e ainda que seja é outra distância ter
caráter e a melhor das boas intenções e a coisa dar certo, é só ver o caso do
pai deles e eu, um homem bom e compassivo, trabalhador e até onde eu sei
fiel, tirando decerto seus pensamentos (mas aí é querer demais, não é
mesmo?), e aí está, a dias de se casar com outra, porque realmente não deu
certo e não adianta perguntar por que não deu, ninguém pergunta quando as
pessoas se juntam por que se juntam, então deixem para lá quando se
separam, casamento não é coisa para amadores, como eu ouço dizer por aí.

“OI ANDREI, como tem passado? Por onde anda que só agora mandou
notícias?” Ele conquistara o amor de todos e a mãe esperava em Deus. Mas da
filha não falava. A porta da casa estaria sempre aberta para ele mas Blandine
não estava mais lá.

Minha mãe era mineira e meu pai era francês. Estavam desquitados. Eu
e minha irmã nunca tínhamos saído de Piumhi na época que Andrei chegou.
A mãe vivia doente mas nunca era vista prostrada numa cama. Acordava às
quatro da manhã. Tratava dos animais, tirava leite, moía café, limpava a
casa. O pai morava em Ribeirão e quando fiz vinte e um anos deixou a
fazenda comigo. Eu tinha planos de estudar na capital, fazer uma faculdade,
mas ele me convenceu e me preparou desde os dezoito. As coisas estavam
nesse pé quando Blandine foi tirar o título de eleitor e se encontrou com ele
para voltarem juntos. O pai estava preparando o novo casamento com a dona
de uma pensão, que era a pensão em que Andrei estava. Nessa época ele
escrevia para o diário local. Acertou um salário baixo porque estava na pior
mas logo percebeu o quanto era baixo mas aí o dono do jornal nem quis ouvir
sobre aumento dizendo que o combinado não é caro. Sei disso porque meu
pai e o senhor Ubiratan eram amigos. Na verdade, ele achava que seria bom
para Andrei, porque dizia que ele tinha sido muito mimado pelos pais e
parece que continuou sendo por patrões, porque era de fato muito inteligente,
mas o que tinha de inteligência tinha de susceptibilidade e se magoava por
qualquer coisa. Para mim era ótimo que minha irmã se apaixonasse por
alguém assim pois ela era muito ambiciosa e até insensível e quem sabe o
amor fizesse bem e ensinasse a aos dois que toda moeda tem dois lados.
Quando Blandine apareceu na sala com o pai, Andrei via televisão na
sala. Antes, o senhor Jean e a noiva faziam planos na cozinha e debruçada
na janela Blandine esperava. Quando ela viajou de manhã, pôs na mala
aquele estojo de maquiagem e loções e perfume e logo vi que ia acontecer
alguma coisa do tipo. Quando meu pai os apresentou, Andrei fez uma
observação sobre como o nome dela era bonito e o pai explicou que gostava
de Liszt e que se eu tivesse nascido primeiro teria me chamado Franz. De
noite, antes da viagem para cá, foram jantar e convidaram Andrei. Ele
confessou que estava bebendo demais, que as coisas não estavam bem, mas
não falou de dinheiro, o que meu pai achou elegante e acho que aí começou a
gostar dele. - São os males da cidade grande - disse o senhor Jean. - Por que
você não vem conosco e passa um tempo na roça, lá em casa? – Pode
trabalhar nos cafezais - disse Blandine, sorridente. - Será uma ótima terapia.
Ela costumava levar a comida quando a gente trabalhava no milho
antes da panha. Então peguei o trator e fui levar algumas sacas. Eu não
gostava nada do cara bonito e rico da cidade. Estava na cara que em um ou
dois anos estariam separados e minha irmã ia ficar ainda mais difícil do que
antes. Daí demorei o suficiente. Pensava rindo que ia medir o tempo pelo café
que Blandine trouxera, quando chegasse queria um golinho. Não me importo
com café morno, até gosto, não queima a língua.
Estavam juntos há uma semana e eu e a mae felizes. Pareciam mesmo
feitos um para o outro e que seriam felizes para sempre na casa que papai
prometera como presente de casamento. Andrei não sabia. Blandine a
princípio não contou. Uma e outra coisa e o casamento e a nova vida iam
ficando para mais tarde. Minha irmã me contou um dia disse para ele -É que
você se sente dividido porque gosta da roça mas não esquece as facilidades
urbanas. Pode ser. Ou era ela quem queria viver longe da roça e daquele
ambiente de fofoca, e eu nem a posso culpar.
Em 1986 o amor e o ciúme tinham crescido muito entre eles e acho que
por volta dessa época começou a pesar mais o fato de que ele era um cara
pobre e inseguro do que ser um cara legal e bondoso e trabalhador. A mãe o
adorava porque ele era mesmo um genro atencioso e dava muitas mostras de
amor a todos nós, mas ele não ia casar com a mãe. Quem imagina que
alguém se decide por um tipo de vida por causa de um cheiro, no caso o
cheiro da terra e do café? Assim que se separaram, o pessoal começou a
perguntar por que isso e aquilo mas eu acho que nesse tipo de coisa não há
resposta e nem pergunta devia haver porque ninguém pergunta por que as
pessoas se juntam, uns dias antes de a mãe morrer a gente falava sobre isso.
Ele adorava uma santa e no fim os defeitos dela apareceram com tudo.
Ela não era santa e talvez sequer mulher, é minha irmã mas sempre foi uma
menina mimada. E ele talvez não tenha tido nunca aquele tipo de atitude
máscula e meio canalha que atrai as mulheres. No começo ela se deliciava
com a presença dele e ainda mais com a ausência, a presença imaginada, é o
que me dizia. O homem não mais era mais uma espécie hostil para ela e isso
de algum modo me aliviava. Ela até mudava e ficava meiga ao lado dele.
Vozes ao longe. Apanhadores. O sino da igreja dá seis horas. Arrasta
a memória em cada badalada.
Ele foi um apanhador calado deslocado no canto da carreta, o que era
chamado de “jornalista”, torcendo para que não puxassem conversa sabendo
que iriam puxar. A gente imaginava o que ele teria feito para terminar assim
empoeirado e suado como todos e mais pobre do que todos e sem casa para
morar e sem parecer ter morado em uma casa algum dia, sem amigos e sem
parentes, como se a vida houvesse se desfeito dele e por alguma razão o
tivesse lançado no mato para menos que morrer - para regredir ao tempo
anterior a seu nascimento.
Não era comum e por isso me espantei quando Blandine veio certa
manhã e começou a fazer confidências. Ela disse sobre um dia em que
deitados na relva ao lado da casa desabitada conversavam sob o sol frio e
baixo do começo de junho e ele perguntou sobre o namorado dela e ela
respondeu com o motivo da segurança material. Entendi que foi naquele dia
em que saí com o trator.

ELA DISSE que disse que não reprimiria seu desejo a não ser que eu
não a quisesse. Eu a queria. Não desejá-la seria não estar ali; o lago ao lado,
os patos. A brisa encrespando as águas. Não desejá-la seria não existir. O
corpo não formigar na grama. A vegetação não receber a tarde da inesperada
quinta-feira de um agosto logo tornado mais distante do que deveria pelo
efeito da saudade.

EU CHEGAVA a temer tanto prazer. Seria lícito? Não por ser solteira.
Seria lícito tanto prazer, em qualquer circunstância? Mas ah quando ele
chegou da lavoura com os olhos caídos e cheios de si!... As feridas da mão
como medalhas e suportando meu olhar com uma expressão altiva e cansada
como um menino que tivesse passado de ano com média cinco diante de sua
mãe. - Você está bem? Deu tudo certo? Vai conseguir voltar amanhã? - Sim e
sim - respondeu ele. - E sim.
- Você tem um riso bonito – agora é tarde. Eu não devia ter dito isso
mas já disse.
Agora eu era ele capaz de acreditar, como um gato sente a presença
humana sem ver, como um cego. A aura que o envolvia. - Olá! Arrumei teu
quarto. - Não precisava se incomodar. - Não foi incomodo algum - eu disse,
quase completando -Foi um prazer – mas não ia pegar bem.
Quando nos reencontramos no Rio, eu me lembrei que pensava como
ele trabalhava duro, como era bondoso e desprendido. Dava o dinheiro todo
para minha mãe. Puxava as cerejas com as grandes e amorosas mãos cujas
palmas não mais ficavam em carne viva embora fossem de certo modo carne
viva. Com a dedicação com que possivelmente qualquer monge faria caso o
café guardasse o significado da vida e o segredo do Tempo.
Lembrei de mim mesma com a palha do chapéu preso à cabeça pela fita
vermelha. O contorno dos montes do sul de Minas correndo na linha do
horizonte com o frescor azulado do inverno. Lembrava e pensava
"reencontrar alguém assim depois de anos numa cidade desse tamanho" e me
via como num filme quadros depois: as cestas resvalando na parte externa de
meus joelhos e certo desconforto da palha tornado um simples sentir como
acontece com as dores crônicas. Se esticasse uma linha de seu olhar até o
rosto de Andrei subitamente oculto pela saca que levava - sessenta quilos bem
pesados como eu disse quando ele lhe perguntou- a linha acompanharia o
caminho de terra pelo qual se chegava à casa principal. A luz dourada de um
rio calmo.

Não falávamos. Ele estava saindo do cinema e eu entrando na loja de


ferragens do shopping. Não falávamos. A gente se olhava e se aproximou. O
que está fazendo aqui, pensei mas mal conseguia pensar como um bloqueio
entre consciência e pensamento. Ele me olhava tentando desviar dos seios
sem conseguir e esperando que isso não me constrangesse. Está tudo bem,
pensei em dizer, por que me constrangeria- E assim do nada nos beijamos
porque não havia nada mais a fazer exceto se a gente tivesse falado e não
falamos, como se há três anos tivéssemos perdido a voz, como quem se desfaz
de algo que não serve mais. Porém alguns dias depois abrimos as bocas e
usamos vozes burocráticas, sobretudo um pouco antes de nos separarmos de
novo. Então falamos, falamos montes de coisas além do que o outro poderia
perceber.

VEIO O FIM da safra e eu quis partir. O interior está mudando mas não
o bastante. As luzes da casa estão acesas e há cintilações no telhado. Questão
de pouco tempo. A queda do muro de Berlim será o fim de uma era e a
perestroika varrerá o leste europeu e promoverá fartura para os povos
soviéticos independentes. Mandela liberto e de volta à harmonia familiar mais
que do apartheid é o fim do racismo no mundo. Pinochet permite um
plebiscito sobre sua permanência no poder e aceitará o não. A transição
política brasileira se consumará graças à pureza dos partidos de esquerda e à
sublime Constituição de 88. Enfim a justiça social. Um jornalista precisa
participar de tão singular momento, é missão. Então numa manhã úmida
fechei a mochila e parti.
No dia em que eu ia, segundos antes de ir (pegarei o ônibus que leva
dos cafezais ao centro de Piumhi), ela apareceu à porta do alojamento. Tarde
demais cai em mim. Como quem não quer, como que agindo sob o pano de
fundo da segurança que o namorado de BH proporcionava, ela santificara o
desejo e revelara uma face definitiva do amor, a certeza de que a vida passa.
O calhambeque da empresa mineira de transportes buzina ao longe,
buzina para trazer a morte revestida de resto de vida e de saudade, de vocação
literária. Traz um epílogo descendo pontual a sinuosa encosta ladeada de
ravinas buzinando buzinando. Por que não sofreu uma avaria- Por que não
houve uma greve de motoristas- Por que o governo não proibiu o êxodo rural-
O olhar molhado de Blandine me acusa cheio de dor e altivez. Contra a
luz seu queixo adquire um duro contorno de seios. A manhã treme em seus
lábios. Em suas olheiras a noite. Não poderia ter vindo antes me deter-
Amor pode ser apenas isso. Alguém que supere o amor-próprio e se
antecipe ao erro contra o qual será o futuro implacável.
Mas não, não quis. Preferiu me punir assim segurando o vestidinho de
popelina contra o peito e assim enquanto vivesse ele guardaria a lembrança;
enquanto vivesse, ela estaria ali.

- Desea usted alguna cosa más?


Encarou com uma ecpressao estupida a garçonete que veio para que e
desocupasse a mesa. Contou mentalmente as pesetas e viu que dava para mais
uma xícara de café. Blandine anotava o pedido com cara de poucos amigos.
Escorre enfim a ressentida lágrima que retém à porta como o mar numa
pequena onda busca a manhã para salgá-la. Saiu agora da entrada do
alojamento e se foi, em silêncio de miragem.

Ele foi embora de Piumhi em 1983. Foi para o Rio de Janeiro.


Um dia minha irma apareceu lá por lah. Tinha ido fazer a faculdade.
Trabalhava num Curso de Idiomas. Era atendente. Era o início de 1986.
Um dia ele se matriculou no curso e ficaram juntos de novo. Ele
começou a trabalhar num jornal em São Jose dos Campos e passava os finais
de semana no Rio.
Um dia ela disse. Ia para a Europa. Um aluno do Curso de Portugues
para estrangeiros pagou a passagem. Ofereceu a casa dos pais para que ela
ficasse um semestre. Disse que achava que ela precisava descansar. Qualquer
homem desconfia de um gesto desses e toda mulher dirá que é sem qualquer
segunda intenção. Ele chegou na sexta para passar o fim de semana e ela
contou. Estava com a viagem marcada. Minha irmã...
Em fevereiro de 1987 ele pediu a conta. Em abriu foi para Luanda mas
só soubemos um ano depois, quando chegou sua primeira carta de Lisboa.

Os relacionamentos em geral e os amorosos em particular nos anos


oitenta longe de terem sido libertos de velhos preconceitos como de idade e
raça haviam como que abarcado todas as contradições da revolução contra
cultural dos sessenta. Era uma coisa bem obvia na Espanha como olhavam a
invasão de latino-americanos com desconforto, para dizer o mínimo, por
estarem suposta.ente roubando vagas de trabalho e por outro lado liberação
das escandinavas era tomada quase sempre como caminho livre para as
aventuras sexuais de um espanhol. Nessa Europa dos doze em que Portugal e
Espanha debutavam havia também trafico de mulheres e escravidão sexual. E
havia a literatura, a agencia Balcells e o Nobel de um colombiano exportando
um novo gênero. Paremos por aqui porque eram de fato tempos muito
estranhos e qualquer conclusão poderá se mostrar precipitada sobretudo se
tiverem envolvidos uma estrangeira de países nórdicos moradora de Madrid
num bar lançando olhares para um homem obviamente nao-europeu entretido
em compor um texto e ele rapidamente como um cachorrinho a um assobio
corresponde. Ai estão os dois. Quando saiu do banheiro, ele a viu no balcão.
Campos e prados e habitantes de montanhas e pântanos e bandos de pombos
escurecendo céus incendiados. Sob a árvore o potro relincha. Luzes na pedra.
Sem que nada pedisse o atendente a serviu. O homem ao lado diz alguma
coisa e ela responde. Sem pressa percebeu a saia presa - renda e poros no
rumor em que se intrometia a cidade lá fora - motores e vozes, martelos e
serras.
Havia em Madrid quiosques que vendiam livros. Em geral antigos
livreiros. Feirinhas de livros em praças. Pessoas em torno olhando
agradavelmente surpresas folheando. Naquele da esquina era um homem forte
e grisalho. Olhos pretos e a voz firme de quem sabe o que está falando. O
cheiro de leite morno era mais forte que os outros cheiros. Ela estava de pé
junto à janela do bar. A silhueta desenhada pela luz de um dia inexistente.

Rapazes e moças com folhetos se aproximavam e quem estava feliz


com o espairecimento terá agora de escutar a velha conversa religiosa. Uma
das moças olhou para o livreiro por cima do ombro de seu par de pregação.
Disse com movimento de lábios: - Ela está naquele bar. O velho virou o rosto
e olhou e fez sinal de afirmativo. Lá dentro Andrei esbarrou numa das mesas
de seu caminho até o balcão. O proprietário fez uma piada racista
relacionando pesetas e cruzados. Andrei jogou outra moeda no balcão e saiu.

O coração disparou. Ela sentou a seu lado no vagão. Seus olhares


tinham se cruzado um pouco antes por sobre a aglomeração na estação Tirso
de Molina. O trem rangeu e um soco inclinou os passageiros. O braço dela o
pressionava enquanto lia sem cerimônia as anotações. Ajeitou-se no assento
calada e ao levantar parou o trem. As portas se abriram e ele a seguiu.

Não será imediatamente. Levará um tempo até que ele tenha


consciência do quanto estava perdido e o quanto estava sem rumo e o dano
que uma mulher pode causar a um homem perdido que causa danos estáveis a
si mesmo.
Caminham lado a lado. Ela um pouco à frente. As paredes pichadas e o
casario cinzento. A cidade nervosa desapareceu. Ela precisa entregar um
trabalho na biblioteca e ele de fato pensa ter visto uma biblioteca por ali. Ruas
secundárias ludibriam a onipresença do metrô madrileno. Os homens viram o
pescoço.
Poderiam almoçar juntos, que tal?
Haviam descido na Gran Via. Calle 12 del octubre. Ela diz que precisa
mudar de roupa. E você descansar um pouco.
Ele sugeriu que ela também.
- Descansarei de tarde.
Enquanto falava ela girou a chave e subiu um cheiro de apartamento. O
seu cheiro. Ao lado da poltrona a contar histórias obscuras uma pilha de
jornais velhos - Portugal e Espanha integrados na CEE deverão – todas as
onze vítimas eram imigrantesA menina está desaparecida desde - Passos
sedutores em torno.
- Prazer. O meu é Oleana.
Nasceu numa casinha vermelha de madeira em Linkoping, filha de um
empresário da indústria alimentícia. Foi criada em Madrid. Soltos como boas
novas os cabelos esvoaçavam. Seu pai é representante de uma empresa
espanhola em Londres e ela passava lá as férias, em uma casa num bairro da
zona Oeste, de gente rica e afetada. Era vizinha de uma mulher casada que
ficou grávida de homem e caso ele prometesse assumir a criança ela se
separaria e ficaria com ele, embora fosse mais novo e menos rico.
Oleana continua contando: Um dia ela ficou. Tem alguma coisa de
inglesa. Ele olha sem ver a janela e boa parte do bairro e um pouco de céu.
Sente o cheiro do xampu. O óleo na pele. Especiarias no hálito. Madrid é
outra.
Mascando um chiclete encostada no umbral ela o encarou como se
esperasse ser surpreendida e ele sorriu o mesmo sorriso tímido que já a
aborrecia. Unhas vermelhas e sandálias e pulseira azuis.
Ela deixou é claro amigas na Suécia mas se sente espanhola. Nao era
inglesa? - pensou ele muito de passagem retirando qualquer relevancia do
questionamento
- Fiquei por causa do calor humano- disse. Pelos valores que o conforto
sufoca na península escandinava ou no Reino Unido. Circunscreveu o sexo à
sua experiência sexual.
Ele viu um biquíni sumário a partir das marcas na roupa e esboçou um
sorriso que ela devolveu lendo pensamentos. Oleana. Em que momento
mesmo disse esse seu lindo nome?
Cabelos de navalha em largas mechas respondem aos movimentos de
sua cabe a graciosa. Nao há homem ao longo do rio Tamisa que sequer pareça
com Andrei. O sol da meia noite nunca iluminará alguém como ele.

Uma estante divide as salas. A de estar por entre um e outro livro. A


janela dá para outras janelas. Uma pia embutida no armário da cozinha - no
armário que é toda a cozinha. Junto à torneira ele observou o sofá branco
gasto e em algumas costuras roto e desfiando. Ela bebe água no copo em uso.
Jag är en ond kvinna.

A sombra de sua mão se define no mármore ao pousar o copo. Ao lado


do sofá duas poltronas. No centro sobre a mesinha de mogno o telefone e um
bloco de anotações. Ele pisa a nave viking contra o sol e absorve a luz quente
no tapete. Eram poucos móveis e pequeno o espaço para se deslocar.
- Wow! - ela havia olhado o relógio. - Desculpe - disse. Distraíra-se na
conversa e nem o convidara para sentar. Disse que ele ficasse à vontade. Ela
não ia demorar.
Abriu a porta defronte da estante e letárgico ele pensou no que dizer
quando ela voltasse e qual o gesto adequado como se tudo não passasse
mesmo de uma encenação. Fechou os olhos.

- Você se aventurou - diz o homem. - Então por que não tem a mesma
determinação para refazer a vida em Lisboa ou conseguir o dinheiro da volta-
É que ele ouviu dizer que o homem ajuda imigrantes a achar trabalho.
- É verdade. Mas só em ocasiões especiais e em casos especiais, que
não é o seu. Agora se me dá licença.
- E a publicação de um livro em baixa tiragem?
- Antes de gostar de você como escritor eu precisaria gostar como
pessoa.
- Passaria a gostar em circunstâncias especiais?

Sao quase 11 horas de uma manha de maio de 1988 e Retiro tem um


movimento comun de sabados de sol. Por pouco eles nao haviam dado com
criancas escandalosas e maes que acreditavam piamente no poder de
argumentos sensatos durigidos accriancas escandalosas. "Nao de jeito
nenhum", pensara Oleana aliviada por ter chegado incolume ao elevador, "ele
nao vai me convencer". E lembrava descuidadas das criancas que Andrei nao
viu ou ouviu. Ouvir so ouve sapatos, portas de armário, vizinhos, elevador.
Patas de de cao derrapando no andar de cima. Oleana levantou a voz
arrastando a primeira e a última sílaba sobre os demais sons e disse que se ele
quisesse ler havia otimos livros. Ele relanceou os olhos à estante e ela
continuou falando. - Vou deixar minhas chaves com você.
Ele se levantou e andou até a porta aberta. Ver, ainda nao vira nada.
Oleana estava de frente para o armário. Prendera na liga as meias de
nylon que envolviam suas pernas até o meio das coxas. Braços pálidos entre
os cabides. A luz do basculante delineia a manhã e molha a pele nua.
- Deixará as chaves? Os sul-americanos não tem boa fama na península.
O assoalho reluzia e a multiplicava. Ela se virou e ele desceu pela
encosta. Pela prateadura a que ela era submetida. Enquanto ela estendia a
peça na cama e colocava um par de sandálias altas junto à cadeira ele media
os músculos trabalhados anos a fio pelo ciclismo.

– VOCÊ TEM algum documento? Alguém para quem possa ligar?

A CAMA ARRUMADA de ontem é o motivo dos olhos sonolentos.


Três almofadas descansam em cetim sobre a colcha mole e peluda, verde. Um
banquinho forrado de crochet Na cabeceira um maço de cigarros, Le temps
retrouvé e um exemplar da Times. Nas paredes quadrados em quadrados e
retângulos em retângulos e triângulos em quadrados e metempsicoses em
metempsicoses inscritos no papel creme e atravessando-o ao infinito. E
Oleana, a existência de Oleana, diante da qual se reduziam à insignificância os
móveis e os desenhos e a cortina e o tapete e sobretudo eu mesmo. Pelo menos
agora ele notou que a idade deles regula e que seu cabelo marrom escuro e
graciosamente cacheado. Ate percebeu a cor do caderno vermelho de capa
dura tendo na capa Napoleao e seu cavalo.
E nao pode deixar de ver simetria entre os tracos de seu rosto e os
predios na janela atras dele. E ouviu seu suspiro abafado que interpretou a seu
belprazer. Deve ser argentino. Deve ter vindo fazer um mestrado. Quem sabe
passar um semestre. Um leitor recorrente de rayuela. Deve ser bom de cama.

Ela diz que não é da península. - Não ligo a mínima para a fama das
pessoas - diz. Seus olhos se distraem no espelho.
Suspirando ele contemplara os sofisticados predios que junto a
conztrucoes antigas constituiam o bairro e agora a nevoa os ocultava na amena
tenperatura da manha mas ele estava longe, no quarto ao lado.
Ela disse que não lidava com povos, lidava com pessoas; não com a
fama delas. - Se fosse perigoso deixar as chaves, seria perigoso ter trazido
você.

A gaveta range ao ser aberta. Um vestido. A lingerie sobre o vestido --


oceano escurecido por nuvem cremosa. Quando ela se curva para as sandálias
--pedestal negro-- ele cresce com a manhã: sol no sentido do dia pleno. Retine
a medalhinha num cordão de ouro - prados longínquos e trote distante. Um
detalhe em seu braço, sombra de volume e força e também juventude.

Ela sentou e prendeu a meia na liga e colocou uma das sandálias num
equilíbrio sutil de colibri e apanhou a outra, as costas delineadas pela lâmpada,
e a segurou por trás apoiando o bico na beira da cama. Os dedos forçam os
músculos da panturrilha; o pé se amolda ao calçado. O vestido sobe e
acompanha a coxa lenta, um rochedo. Um pouco acima e ao lado um ossinho
saliente na marca alinhado com o culote.
De repente, cédula de moeda nova que tem o mesmo valor apesar do
diferente layout, outro prazer subiu pelos nervos do rapaz, como se sua reação
tímida tivesse valorizado a oferenda.
Ela apoiou o antebraço direito no alto dos arrepios no jogo de luz e
sombra. O indicador e o polegar forçaram o elástico em pressão discreta e a
peça esticada se deteve e acomodou. O vestido desceu Estava pronta. O
mundo a teria assim.
Permanecia a advertência vaga como uma coisa viva. Num futuro
próximo será necessário sair da pintura. A decoração da casa de Oleana será a
decoração da casa de Oleana e não haverá eternidade. Ela será o que é e ele
igualmente. O livro nas mãos será o mesmo velho livro contando as mesmas
velhas histórias. De resto, quando a viu novamente vestida ( última aparição
de uma Oleana a quem podia ainda imaginar recatada), quis guardá-la assim,
como são guardados os autógrafos de artistas no ostracismo.

- Raramente faço as refeições em casa. Mas deve ter alguma coisa na


geladeira.
Os vizinhos do andar de cima se perguntavam quem era aquele rapaz.
Ele mal percebeu o casal que o encarava concentrado em respirar fundo.
Oleana abriu a bolsa e retirou as chaves. Depois de entregá-las apertou o botão
do elevador.
Lembrou-se que estava devendo uma visita ao casal. Caso ela ficasse
mesmo desempregada precisaria do marido. Sorriu e a porta do elevador se
fechou.
Em frente à porta ele olhava a lâmpada da sala imaginando que estava
na própria casa que nunca teve mas tão bem conhecia. Sua casa. De todo sua
em todos os sentidos. Havia uma aureola dourada e ondas de luz crescendo em
intensidade a partir dos filamentos como os movimentos de uma pessoa em
relação a outra que está ao lado. Um dia as pessoas não sentem mais, acontece
sempre. Quando acontecer talvez eu venha, pensou medindo a distância entre
as ondas, talvez eu venha a achar que vir para a Europa foi uma grande
loucura.
Talvez tenha sido nesse momento. O ar começou a faltar. Tentou
nomear o objeto que olhava. Lustre. Lustre. Mas não pensava na palavra
lustre, era outra coisa. Um mundo escuro escorrendo de sua mente para a
absoluta treva de onde vinha o sufocamento e o pânico, como se a treva
tivesse controle de tudo o que existe no mundo sobretudo seu coração
disparado e o lustre para o qual olhava. Seu rosto dividido em dois pela luz da
lâmpada.

O primeiro livro em que bateu os olhos foi a uma velha bíblia azul
antiqua version Casiodoro de Reina marcada num trecho dos salmos. Apertou
os olhos e nascendo nítida dessas falsas lágrimas a cidade se derramou nas
douradas letras da lombada. Abriu o volume entre três e dois dedos. Acariciou
a lombada de couro. “A jovem era muito bonita e vir-gem; nenhum homem
tivera relações com ela. Rebeca desceu à fonte, encheu seu cântaro e voltou”.

É de manhã e ao sair para o trabalho eu disse a Blandine que


poderíamos jantar juntos. Ela responde com um sorriso e marcamos. Ela
contou sobre o convite do italiano. Não sei o que sentir ou dizer. Ela diz que
era uma oportunidade única. Que sempre quis conhecer a Europa. Voltará em
um mês. - Passa rápido –eu não respondi. Fechei a cara. Ela fez um carinho
em meu rosto. - Deixa de ser bobo.
Os dedos dela estão frios mas atenuam súbito horror e o amor desde
então passou a se resumir nesse episódio que repito e repito para mim mesmo.
Ela dizendo -Tenho uma coisa para te contar-. Eu nada tendo que dizer a
respeito.
Passava os finais de semana na casa de Donda Maria. Um mês passa
rápido e de fato. E dois. Três. Aí chegam as cartas. Ela vai se casar com o
italiano, é claro. Diz que pensou muito depois da minha atitude ao não levá-la
ao aeroporto e não querer se despedir, que isso significava alguma coisa, que
não havia nada mais entre nós. - Não há mais esperança – disse.

Eu estava sentado perto da janela e Kleber via o futebol pela TV. Passei
os olhos vezes sem conta pela carta. Pensei em algum momento na unificação
da Europa dos doze. Que quem estiver em Portugal estará na Europa. Na
facilidade de ir de Luanda para Lisboa e talvez do Brasil para Angola.
Segunda à noite na redação ainda pensava nisso. Olhava os ombros da
menina na prancheta à frente mas é em Angola que pensava, em Luanda, em
embondeiros à beira-mar, no rio Cuanza, no valor da moeda na Europa, em
encontro de Países de Língua Portuguesa. A situação política piorou mas dá-se
um jeito. A questão é mesmo o dinheiro mas posso vender os móveis, fazer
acordo no DP. E tem o apartamento. Acho que deve dar, pensei.
- Quem vai atender?- ouvi uma voz na redação.
O editor estava ligando de casa; perguntava se a página três foi fechada.
Eu disse que sim. As vaidades ficaram nos textos e o pessoal foi esquecer as
diferenças no bar da esquina. Eu poderia encontrá-los quando terminar. Não
vou. A colega das costas e ombros insiste, diz que eu estava precisando
espairecer. - Quem sabe eu vá.
Quando fala, a moça abre uns lábios muito vermelhos, faz gestos largos
que os seios acompanham.
Digo que nunca foi muito social - Não que não goste de convívio.
Enquanto escuta ela meneia a cabeça como quem diz “Entendi” E não
insiste mais. Sai balançando os quadris e a dispo devagar e beijando-a toda a
possuo. A porta bate e retomo o trabalho.
Apago as luzes ao sair da sala do Past-up. Sigo a silhueta de longe pelo
corredor. Faltam uns minutinhos para a meia-noite.

“Não dês às mulheres a tua força, nem os teus caminhos ao que destrói
os reis. Não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes o desejar bebida
forte” Fechou a Bíblia. Oleana saiu faz uma hora mas seu cheiro perseverava
na sala. Sem ela por perto ele pode trazê-la à distância que quiser e levá-la
aonde quiser e fazê-la rainha ou escrava.

Sem a pressao de sua presenca, ele viu em retrospecto sua aparicao.


Como estava sentada no balcao do bar e seus olhares se cruzaram ou pelo
menos ele achou que sim. Como tambem mais achou do que teve conviccao
de que ela havia desviado o olhar para o barman por um reflexo de pudor. Era
dificil inclusive para ele afirmar que manteve um tipo qualquer de flerte
porque desde Luanda jurara a si mesmo que nunca mais o faria. Lembra que
foram duas vezes. Uma quando ela vinha de noitada e estava de jeans e outra
quando vestia uma saia sobria de travalho pouco depois. Teve impressao que
da primeira estava acompanhada de um rapaz bem vestido que a trouxe de
carro. Mas nao se falavam apesar do inelutavel peso de relacionamento entre
eles. E depois sozinha, pronta para tomar um cafe antes de ir para o trabalho.
Isso foi entre a entrada e a saida de Andrei no bar. O burburinho e o tilintar
tinham aumentado substanciosamente. As pessoas adquiriram prrsonalidades
que os ponteiros do relogio sobre as estantes de bebidas se encarregavam de
desenvolver como um autor meticuloso e como um autor preguicoso os
abandonaria em favor de acao Andrei afastouse para a rua onde depois de
caminhar alguns metros entrou na estacao do metro.

Acima da estante de oeana ele em algum momento da manha percebeu


que havia um relogio muito semelhante. Ele havia tirado a camisa e a calca e
se enfiado na cama por fazer e dali a visao da estante era obliquamente
prazerosa. Ele observava a dispisicao do mobiliario como a procurar uma
brecha para algum que pudesse fazer por Oleana como um gesto de gratidao
mas nao conseguiu pensar em nada. Era o lugar de uma moca moderna, culta,
independente. Pelo contrario, sua presenca ali so podia trazer contrangimentos
para ela.

Nesse espirito passaram as horas que nem por isso deram ao lugar
alguma familiriaridade. Exceto quando quis se levantar para ir ao banheiro e
nao conseguia abrir os olhos e a vontade se aplacava num sentimento
conhecido e ainda sem abrir os olhos mas ouvindo vozes antigas. – Coracoes
ao alto! - ja os temos no Senhor.- Nao nos deixe cair em tentacao. - Va em pax
e o Se.ngor vos acompanhe.
Depois o velha voz da dor que dissesse o que dissesse sempre concluia
n tom ameno quase amigavel "Nao se esqueca que eu estou aqui" e concluia
gargalhando. Foi por volta desse momento que deve ter adormecido e ao
despertar descoberto que se aproximava a hora do almoco. A sesta depois. A
cidade dormiria. Um e outro carro, os últimos por um tempo. A face dura de
um Cristo de lábios ressecados o encarava na quase tarde. Na assinatura de
Oleana o O envolvia as outras letras. A caderneta no bolso do blazer.
Respirou fundo ao passar em frente à janela. O lápis cadenciado no papel, seus
esforços tornavam-se caracteres de uma carta que o correio devolve porque o
destinatário se mudou.

A larica garante que o haxixe é parte de uma madrugada longínqua.


Aproximou-se do armário onde viu batatas. Sua sombra na parede vence
limites. Acaso haverá uma máquina de escrever na casa- um processador de
texto- Os eventos históricos o ultrapassam, como a sombra.

Ela diz que não era para ele saber. Não queria que decidisse ficar a não
ser pelo amor. - Você está grávida! É nosso filho, não poderia ter escondido
isso de mim.
Ela diz que ia contar. Ele diz que a ama.
Ela pergunta sobre os planos dele para depois da safra. - Vai voltar para
o jornal?
Ele pergunta se ela iria junto.
Ela responde. - Você não ficaria?
Começou a chover. Deveriam falar com o Sr. Jean agora?
Talvez seja melhor esperar.
A mãe ficava até tarde fazendo crochê quando não tinha sono. É difícil
precisar o que isso significa em termos de horário mas simples quando se
pensa que tarde era sempre mais próximo da insônia rebote que ela costumava
ter após o primeiro despertar noturno. Variava nesse sentido mas permanecia o
fato de que esse crochê significava um dia anterior mais produtivo e um dia
seguinte mais exausto. E no fundo pouca diferença fazia porque em algum
momento, de um modo ou de outro, ela daria um jeito de fazer o seu crochê,
enquanto o feijão cozinhava ou quando o Pai tinha dores de cabeça, que
depois de uns anos de casamento passou a ser algo muito freqüente e se não
estava exausta o bastante ao longo de um dia, saía à cata de uma reforma no
dormitório dos apanhadores ou limar os cascos de um cavalo ou ver em
boletins agropecuários e nas rádios locais quais eram as tendências sociais e
ambientais ou tecnológicas do mercado. Sabia que a morte não tardaria e tinha
horror em pensar que pudesse apanhá-la ociosa, errando sabe Deus por onde.
Eventualmente, poupava seu próprio tempo mas tão-somente para pensar
como ajudar a filha, que estava naturalmente grávida e que não menos
naturalmente iria abortar se não se cuidasse, como nunca se cuidava. Pensava
por pensar porque sabia que a filha era igual ao pai e não iria seguir conselhos
por razões mais ou menos nobres, mas gostava de se sentir preocupada, era
como se colcasse a si mesma no mundo das normais que tanto invejava, essas
que se preocupam com o futuro dos filhos. Mas tudo o que gostaria de dizer
para Blandine era “Filha, faça o que a faça se sentir feliz, o resto se arranja”.
Andrei a princípio se chocou com tal visão de vida e mundo da sogra mas logo
se acostumou e na verdade deu-lhe razão ou pelo menos entendeu-a com toda
a empatia possível. E pensar em Donda Maria era sempre acabar pensando no
lago e nos pássaros, nos cheiros - ele correu para a cozinha do apartamento de
Oleana, espetou o garfo em duas das batatas na panela e diminuiu o fogo e
colocou um pouco mais de água.

Em Angola não me aceitaram como cooperante. Disseram que eu


estava mal informado. Insisti e perguntei se a marinha mercante nao estava
contratando. O homem perguntou se vim sem checar essa informação. Até
existe trabalho, disse, mostrando alguma simpatia; mas era melhor desistir
dessa idéia. – Eu não posso voltar para o Brasil. Quero trabalhar em Angola e
fazer algum dinheiro e ir para a Europa.
Se eu queria isso, era melhor, segundo ele, ir para o sul e lutar.
--Com licença, senhor. Aqui é Maianga?
-Sim, estamos na Maianga.
-O senhor conhece uma obra aqui por perto onde estejam contratando?
O homem disse que havia obras por toda parte em Luanda mas era
melhor desistir dessa idéia. Parecia um refrão local para estrangeiros. Lembrei
então do que o outro dissera.
- Senhor, e como eu faço para chegar em Cuito Canavale?

Luanda, das acácias e embondeiros.


Era um homem branco não-europeu cujas mãos estavam sempre a
procura de um lugar para se enfiarem.
Atravessou a rua na direcao do seu carro. Ignorou o homem que a
olhava fixo. Portuguesa criada na capital angolana conheceu o marido no
golfo de Nápoles ao som de Caruso. Antes de casar se certificou do clima do
soldato innamorato no Teatro di San Carlo não vielas onde à janela as
mulheres estendem roupas de varanda a varanda sob as bênçãos de Santa
Lucia.
Arranjou-se além das expectativas. Uma casa em Nápoles, onde o
marido trabalhava. Saiu da universidade para adornar com sua elegância e
cultura as relações sociais de Franco Roseto, que a dispensava de outras
relações, e cada vez mais escapava para um fenômeno anterior, de sua
adolescência. Francesca, a que estava disposta a se envolver sob o sol com
ternos vagabundos sob o sol.
Viera visitar os pais portugueses vivendo em Angola graças à influência
de um tio que mexia com diamantes. Eles ainda moravam em Alvalade. Não
fugiram nem se tornaram "retornados" embora retornassem a Portugal sempre
que lhes aprazia.
-Depois da ponte. Seguindo a vala do rio Cambamba para a jusante até
cruzar com a Avenida Pedro de Castro van-Dúnem.
- Obrigado, senhor. Tenha um bom dia.

Na avenida Andrei a viu pela primeira vez. Era a tarde do dia em que
vencia seu visto. Ela saía do banco. O guarda de trânsito com capacete de
caçador sobre uma armação circular pintada de vermelho sinalizava para que
ela passasse e distraído ao contemplá-la por trás ouviu uma buzina. Ele e o
motorista discutem em língua estranha apesar das palavras portuguesas.
Não era bonita. Tinha uma beleza nascida um pouco da elegância e
outro da riqueza e um tanto ainda da sensualidade. A idade deles regulava.
Tailleur caqui de gabardina e cintura marcada, bainha italiana. Scarpin preto.
Rica, estava claro. -Que olhar persistente-, pensou. -Deixa-me nua-. Todavia
um olhar triste. Não é angolano. Nem parece português.
Lábios finos. Os olhos nunca olham diretamente para o que vê - lentos,
ligeiramente estrábicos. Uma aliança exagerada parece respeitosa Entrou no
carro e antes de dar a partida achou que ele estava desolado.
Talvez tivesse sido melhor ele ter continuado no jornal e lutado pela
carteira provisional. Talvez a tenha deixado se afastar demais antes de encará-
la. Doravante será a estranha que passou, mulheres que poderiam ter sido na
vida de um homem e não foram. Por timidez, por unilateralidade, por soberba,
por inadequação, por martírio.
Ela olhou para ele com o tipo de olhar dirigido que se declara inocente
ao captar tudo à volta. Um brinco em forma de folha responde aos mais leves
movimentos de cabeça. Grafite no muro enquanto ele caminha. MPLA. Ele
aproximou-se.
- Com licença - disse ele. - Para onde você vai?

Sabiam que nunca mais. Que tudo o que tinham de verdadeiro estava –
Perdido? Então se permitiram. Para ele, perdido em Luanda, perdido onde
fosse. Dependente. Ou aceitava a profissão. Ficar rodeando autoridades
corruptas em busca de uma declaração mentirosa em primeira mão. Comentar
a declaração mentirosa como alguma coisa de suma importância. Fazer
espetáculo da dor alheia. Aí descobriu. Não era o diploma. E no mercado
literário seria igual. É só fazer as contas, como se diz, na ponta do lápis. Então
os dois. Não têm mais alternativas de arbítrio. Querem uma vida que não
existe e sabem. Podem enfim ter aquele caso.

Pernoite em Mussulo. Uns vinte minutos de barco, talvez menos.


Palmeiras na penumbra lunar. Havia muitas mulheres lá. Havia muitas
mulheres na ilha..Três para cada homem, calculava-se. A areia lembrava ouro
e o mar era um espelho.
- Mas não se esqueça de que é um país destruído.

Era quinta-feira quando olhando o tremeluzir do mar decidiram num


pacto silente que tinham vivido tudo o que o lugar podia lhes proporcionar e
quiseram partir. Mas nada disseram. Apenas foram para o quarto e ela
começou a fazer as malas e ele a dar um jeito na mochila. Costurou-a onde
estava descosturando. De tarde ela foi obter permissões e vistos. Ele estava
ciente de que era seu último dia e chegou a dormir depois do almoço. Tudo o
que falavam tinham uma conotação positiva. Ele falou dos pais e o quanto lhe
deram bagagem para situações extremas como a que acabara de viver. Ela
também era grata porque os pais a criaram num país em guerra sem nunca
perder de vista que o mais importante para uma mulher não é sobreviver num
mundo de homens mas destacar-se nele. Por um lado estavam sendo
verdadeiros; por outro, eram verdades com quês de manipulação. Mas talvez
não soubessem disso. Sabiam apenas que estavam de partida e deveriam
usufruir aqueles últimos momentos e o fizeram.
À noite se amaram na varanda. Quem olhasse de longe acharia que
estavam apenas contemplando o luar exuberante e redondo e talvez estivessem
também. Rapidamente se adaptaram um ao outro dessa maneira. Estavam se
acariciando e dizendo canalhices com a maior desfaçatez. Em última análise,
outro tipo de sinceridade. Mas seus rostos se bem observados ainda
guardavam anos de sofrimento que pretendiam esquecidos. Eram como o país,
destruído. Todavia, onde mais existe um céu assim?
FICARAM em Lisboa apenas o tempo entre os vôos. Remaram no lago
escuro cujo cheiro liquefazia os sentimentos em notas fenólicas de uma tarde
brilhante e oleosa. Na mesa da esplanada ouviam os gritinhos das crianças
como se saíssem direto das xícaras de café pela metade, as bicas. Com sua
voz se misturando à fumaça ele disse que assim mal dava para sentir o gosto,
no Brasil as chávenas vêm cheias, disse. Ela respondeu com a naturalidade do
sol entre as copas que era só pedir “bica cheia”, amor. Na praça do Campo
Pequeno ela se aproximou de um grupo de jovens num banco de jardim
sentados no espaldar e pediu três “pintores” - trezentos escudos de haxixe,
explicou ao apanhar o embrulhinho de onde saiu o cheiro de um dia futuro
junto aos pequenos quadrados de uma ganza densa e úmida, maleável, e de
súbito ele percebeu que pessoas passavam em volta.
–Você fuma? –Raramente, ela disse. – Mas agora está-me a apetecer
viajarmos.
Sentaram num outro banco mais próximo da praça de touros. Ela fez
habilmente o cigarro e fumaram ao som da conversa dos garotos que em cada
frase inseriam um "pá" e um "caralho" e um "foda-se". --Adoro o submundo -
disse Francesca. Aproveitam os mesmos bilhetes de metrô. - — Não é ótimo
transgredir, my dear?

Desceram na estação dos Restauradores e subiram as escadas para a


avenida da Liberdade. Também aqui “Foda-se” e “Caralho”. Uma menina
esmurrava o peito do homenzinho careca. -E aí ó pá? Fodeste e não vais
pagar? - Essa não tem chulo - explicou Francesca. Depois ela quis que ele
conhecesse um bazinho onde costumava se refugiar quando era adolescente..
Comeram pastéis de nata com bicas duplas. Ela lamentou não haver mais
tempo para andar de eléctrico.
-De quê?
Sim, estava louca para andar de bonde.
- Adoro Lisboa -- disse ela na poltrona do avião.

Um problema de teto e o atraso na descida e entre Montfermeil e


Meudon manchas verdes intervalavam aglomerados de casas. Fleuve la Seine.
O impacto da pista. Marcaram um local de encontro para alguma
eventualidade. Ela abriu um mapa que não teve paciência de consultar. -
Monsieur- Rue des Francs-Bourgeois s'il vous plaît?-- perguntou ela
pronunciando os erres no fundo da garganta e alongando as vogais. Na
troisième a gauche, ela virou para um compromisso que ele não se deu ao
trabalho de questionar.
A luz do sol no Sena tingia de ouro o teto do barco de turistas. Uma
esquina num V sem ponta. Pombos e bicicletas. Cercas de ferro ao longo de
uma rua que dará em uma igreja. Toldos vermelhos. Uma livraria. Música de
acordeom. Um cão branco. Folhas pelo chão, folhas em pedaços - em Portugal
se diz “partidas”. Braços, paletós dobrados, um rapaz correndo. Outra ponte.
Cintilações da água do rio. Limo nos pilares. Um rouge-gorge. Pichações. O
arco. Latas de cerveja, grafites bêbados e luz oblíqua entre os túmulos. This is
the end. Um busto de Jim “Je t'aime toujours”. Entre Yves Montand e Joachim
Murat, pedra e vento. - Estou cansado. Você não? - Cansar-se em Paris? Não é
possível! E estou a me apaixonar - Ouvi dizer que Nápoles é a cidade mais
romântica da Europa.
Era a exuberante tarde de terça-feira e estavam refletidos nas vitrines da
rua Condotti . -- Meu Deus, as coisas aqui estão mais caras que nos Estados
Unidos! - dizia ela e repetia. Deixaram a bagagem no hotel e saíram. Até o
café na rua Frattina não foi um longo percurso. - Paris é para meu lado fresco
. Roma é calorosa, para meu lado emocional.
-Ah, como adoro Roma, amor!

Caminhos de vinhedos, sanduíches ao longo do Tibre. Francesca


renovava a imagem de menina pelo calçadão da piazza San Lorenzo e ele
apanhou um papel com entrevistas que fizera no aeroporto e no avião e
começou a rabiscar um fio condutor para o artigo. - Preciso de um
complemento que mostre outro ponto de vista - disse o dono da revista. –
Quanto? - quis saber Francesca. Tantos dólares, ele respondeu. - Quanto dá
em liras?
Então ela abriu um sorriso radiante que guardava para momentos
especiais e parecia o sol nascendo em seus dentes. - Olha só - disse ela. - Não
se deixe impressionar, Andrei. São muitos zeros mas na verdade é pouco para
um trabalho assim. - Francesca... – ele disse baixinho. Ela o ignorou e
continuou fazendo contas.- - É pouco, fumamos a metade, estás a ver? -
Francesca, deixe que a gente se acerta. Na pior das hipóteses, seriam umas
tantas porções de haxixe como aquela.

Enquanto esperava Oleana, arrumando a mesa para o almoço, via


Woody Allen e Diane Keaton na TV do quarto romano. Francesca dissera que
voltaria para passarem juntos um tempo e procurarem um apartamentinho em
Lisboa para Andrei fixar residência. Ele sugeriu esperá-la em Veneza. - Tudo
bem - respondeu ela. Estava mesmo querendo ver um balé no Fenice.

No dia seguinte ao balé, eles se despediam. Ela insistiu para que ele
ficasse num hotel. - Ficarei melhor entre os mochileiros - ele respondeu. Ela
compreendia mas o Franco tem relações com políticos contrários a esse tipo
de turismo. - O Franco - suspirou ele. - Não fique assim - disse ela. Tudo ia
terminar bem. Por agora, que se divertissem. Para isso ela se casara com um
homossexual rico. - Vamos mudar de assunto - disse ele. - Então você
conhece Friul-Veneza- Palmanova, Udine... Trieste?

Dessas viagens ele começou a entender que a diferença de classes que


até então tanto o incomodava na verdade nada significava e que o abismo de
deixa de existir no momento exato em que emergia dos envolvidos a
humanidade. No próprio luxuosos hotel de Roma as pessoas não pareciam
felizes e no snack bar sua capacidade para desenvolver a matéria apagava
para o editor da revista as demais pessoas da mesa a que num primeiro
momento ele achou que nunca se equiparia. E convivendo com essa gente era
com ele que Francesca estava. Foram dias bons, pensou então ao esticar as
pernas na baqueta. Apesar de tudo, foram dias bons. Alisou a capa
plastificada do livro de Oleana como se acariciasse ela própria. Levantou
lentamente o volume até diante dos olhos e começou a passar as paginas,
inquieto. "...quand je n'allais pas errer seul dans Venise".
FRANCESCA acabara de partir para Nápoles. Ele subiu escadas e
desceu. O homem com acordeom acena com a cabeça. Dobrou uma ruela e
deu com um leão de pedra. No colo, o gatinho ronrona. Um bêbado dorme
ignorado. São Boldo. Casas velhas e crianças pobres. A praia vazia. San
Zacaria e o vaporeto. A mochileira arrumava suas tralhas e um determinado
nó resistiu. - Posso ajudá-la? - Não, obrigado - disse ela e ele disse que era
mochileiro quando ela ainda estava no jardim de infância e era perito em nós.
- Eu só quero ajudar - Não quero sua ajuda, merda! - desatou a rir. - Só faltava
essa, nostalgia hippie! - disse. O que ele continuava fazendo a seu lado? Ela
não quer porra de ajuda nenhuma!

Cercas vivas. Além, por detrás dos telhados, no azul se espalha a


fumaça negra de um cargueiro. Ele lhe pergunta a idade.

Era um crente querendo converter a pecadora? Só podia. Mas não tem


como. Ela é autêntica e não se troca por mil evangélicos hipócritas.

Ele tem dificuldade para entender o que ela diz e teria mesmo se falasse
português, tal o modo pastoso e arrastado com que falava. Não sou de
nenhuma igreja não, disse, só queria uma amiga. Antes que terminasse a frase
ela está gritando. - Quer saber? Não estava em nenhum jardim de crianças
quando você se aperfeiçoava em nós! “- A idade de pessoas como eu se mede
em séculos.” Alivia o suor num largo movimento da mão direita. Inclina o
rosto, chora.

– Ei, tudo vai ficar bem.. – acariciou os cabelos dela.

– Olha, te odeio. Odeio todos os homens. Pode esquecer, não vou com
você, não de graça, de graça só com mulheres!
MASSIMO BARZAGHI deixou para trás três restaurantes no interior
de São Paulo com uma cartela segura e foi para a Itália morar com a avó e
assumir um restaurante na região de Chiant. A vista maravilha os clientes e a
comida é deliciosa, o atendimento excelente. Produtos locais escolhidos por
ele em pessoa. O fato de não ter sido fácil conseguir uma partida IVA como
teria talvez sido um CNPJ ele acredita que foi benéfico pois preparou-o
melhor para o empreendimento. Durante o processo fez amizade com figuras
importantes da República, inclusive um ministro que passava as férias com a
esposa em sua casa de campo ao pé dos Alpes Julianos cerca de duas horas da
fronteira com a Eslovênia. Trabalhava com uma tia e um sobrinho e mantinha
um empregado temporário por chamada que estava há um ano com ele e era
garçom mas eventualmente lavava louça e fazia compras.
Mas no ano passado resolveu fazer diferente. Alugou um luxuoso
apartamento na Via Amedeo d'Aosta. A principio foi pela proximidade com o
estadio Giusepe Meaza mas logo estar perto da zona vermelha se mostrou
muito mais importante. Era um imovel perfeito e Massimo nao ligava a
minima para as insinuacoes de alguns conhecidos e para provar que nao ele foi
naquela tarde e entao a viu e a partir dai sua vida estava transformada.

Ela no começo dizia antes do sexo que ele iria acabar se apaixonando
depois não vá dizer que não avisei. Massimo mal ouvia atônito com a beleza
da nudez fresca que aparentava ainda menos idade peça após peça e recusa
após recusa. Ele nao saber se tinha a ver com necessidade de dinheiro ou medo
ou uma inocente perversidade.
O caminho que leva do bairro granfino aa zona de prostituição estava
carregado de um pudor absurdo com ruas comportadamente carregadas de
turistas e milaneses timidos que chegavam a ruborizar quando uma das
meninas mais afoita fazia com os dedos o sinal classico de telefone querendo
dizer "me liga" e alguns chegavam a olhar para o lado ou dizendo "eata
falando comigo?" ou talvez para ver se alguem estava olhando. Havia
pizzzarias e lojas de roupas e ouviase um bonde que passava perto do
cemiterio e quase em frente do hipodromo. Foi o verde da vitrine que chamou
a atencao de Massino antes de ele se deparar com a visao - um verde berrante
de mesa de poquer com nuance de semaforo. Nao sera mentira dizer que o
vermelho lhe passou despercebido. E ouvir, ouvia vozes contidas talvez
curiosas mas muito discretas com o tom de que informa alguma coisa por
meio de uma pergunta..

NO FIM DA RUA em que os pais de Antonio moravam havia uma


igreja antiga mas que nao parecia tanto assim dando a ideia de que o proprio
Deus cuidava de sua conservacao o que para a mae do rapaz significava que se
Deus se preocupa assim com a pedra e a madeira muito mais com um menino
que certamente se desviou do bom caminho mas tinha ainda um bom coracao
e ali ela ia todas as tardes apos seus afazeres e perdia a nocao de tempo no
genuflexório enquanto o pai ficava em casa para o caso do filho voltar sem a
chave, que sempre perdia, e para cuidar da janta.

Antonio portanto não era órfão. Não passou por uma infância difícil. Ao
contrário. Nascido em bom berço, teve tudo o que quis. Demorou mas enfim
seus pais admitiram. - Ele não tem mais jeito, querida. - Bobagem - dizia a
mãe - é só uma fase. Quando sentiu alívio ao deixar Antonio a casa, ela deu o
braço a torcer. O pai se refugiou no quarto. - Meu filho - lamentava. - Meu
único filho...
Ali estava, às margens do golfo.

– What is happening here?

MILÃO TESTEMUNHA a decadência. Olhava o cliente e não


conseguia mais ver o dinheiro e o que fazer com o dinheiro, como no começo.
Katia, a infeliz, a que não tem mais caminho de volta. Os braços manchados,
corroídos de dor. Então chegaram ao quarto, ela e a companheira de sonhos e
de vida e de agulha e as mãos fracas se procuraram. A cama no meio do
quarto e os homens no meio das duas. Não me chamem de lésbica. Me
chamem de puta, poetiza e puta. Ela, Katia, e sua amiga querida. Quem quer
que fosse a outra, sua amiga mais querida.

- Só com mulheres! - tornou a rir enquanto permanecia chorando. Aliás


você não tem cara de quem possa pagar cinco minutos com a deusa Kátia! -
gargalhou. Cenas assim não deviam ser incomuns pois a maioria das pessoas
passa e os ignora.

- O que está havendo, gata? - disse o rapaz com sotaque inconfundível


para quem tivesse ouvido uma angolana falando inglês.

Dez anos antes dois homens estavam agitados embora imóveis dando
impressão que é apenas mais uma discussão de negócios no centro de Milão. -
Você não está cumprindo nosso trato, Antonio. - Trato? que trato? - Você
sabe. - Ó Massimo foda-se! estou a gostar da chavala! o trato está cancelado.
- Você não é capaz de gostar de ninguém. - Foda-se pá! meu jeito de gostar
não é da sua conta! - Se gostasse não teria levado a coisa tão adiante. - Você
está é com ciúmes porque ela gosta de mim. - Só está contigo por causa da
droga. -Foda-se! Caralho! Não pá ela faz o que gosta e adora dinheiro e vai
com muitos mas só comigo goza. — Tanto que precisa de mulheres... -
Deixo-a livre. Ela adora ser livre. - E as drogas- Estão acabando com ela. -
Não fui eu quem fez a vida humana curta. Mas a dela será intensa. - Você
está louco. —O pá basa foda-se você é que iria dar o que ela precisa- Um
fodido de um escravo do trabalho-

Antonio se virou e pegou o bonde alaranjado como se fosse um turista


qualquer e deixou Massimo falando sozinho.

- What is happening here? – repetiu. As pessoas paravam e mantinham


distância prudente. - Che cosa è?

A luz do sol é a mesma para os três. Os reflexos do estilete se repetem


no canivete. Antonio avançou ameaçador. - Outro brasileiro! - abriu o
canivete. -Foda-se! Caralho! - Andrei tirou o estilete do bolso da jaqueta. –
Acha que me assusta com esse chino ridículo? Foda-se! Caralho! Enfia esse
chino no cú!
O DIA SERÁ LONGO, pensava ao pegar o avião em Lisboa. Escolheu
a melhor roupa porque nunca se sabe o que um dia longo nos reserva. Cada
aeromoça que passava fazia o seu rosto se virar. Quando levantaram vôo
adormeceu e sonhou que o ultimo passageiro descera os degraus em chapa
xadrez na pista do Marco Pólo e ele nao estava entre eles. - Foda-se!... -
murmurou ao acordar. - Caralho...

AS PESSOAS ao redor paravam por causa da cena. Do chão António


amaldiçava e dizia que Andrei era um gajo morto. Avançou furioso com Katia
entre os dois. Os policiais abrem caminho. Luzes girando, uma sirene e -
Foda-se! - a lâmina rasgou o ar. - Polizia!

Pagarão caro, não sabem com quem estão mexendo, Antonio garante.
Os policiais não entendem ou fazem que não e os turistas voltam ao passeio e
os nativos a seus afazeres. Acabou.

Havia um bosque próximo e uma lancha voava diante deles. Além, uma
cúpula. São os arredores de um lugar chamado Giudesca, Giudecca, algo
assim, se ele entendia os circunstantes. - Lamento - disse ela. Ele não
respondeu. Sorriu. Fez que não, não tinha importância. - O que você vai fazer
agora- - Vou voltar para Muggio -Ah. -Minha cidade. - Muggio... Muggio é
longe de Trieste- - perguntou Andrei. - Muggia é que é perto de Trieste -
respondeu ela. - Minha cidade é Muggio, como quem vai para Verona.
Sim, voltará a Muggio. Retomará a vida de onde foi interrompida há
dez anos quando conheceu Antonio.Queria haxixe. Experimentou heroína
gratuita. Ele estava encantado. Então lhe propôs riqueza. Por falar nisso, Katia
precisava um pouco de pó agora ou enlouqueceria.

Um hotel. Trieste esquecida.

No balcao o porteiro olhava uma revista como se as paginas


contivessem a revelacao de todos os segredos do universo. A boca
ligeiramente aberta. Uma remela no olho direito. Eram mulheres nas fotos. O
halito eh azedo e o alto da cabeca gorduroso. O casal se entreolhou num meio
sorriso partilhado. A respiracao pesada de noite mal dormida. Tinha um jeito
tipico de alguem que poderia em outros tempos ter sido um hospede
renomado de hotéis assim. Eles pediram um quarto e ele lhes deu a chave.

A sombra dos dois flanando sobre a colcha se torna essencial ao quarto.


Onde ela deixara os cigarros? - Você não viu? – No segundo seguinte a
propria sobra da mochila bruxuleia. As divisões freneticamente vasculhadas.
Poderiam ir tomar um café. Contariam um ao outro suas histórias. Os olhos de
Katia são muito verdes e claros. Então ela mostraria os poemas que escrevera
em sua agenda nova. - Tome um dos meus. - O quê?- Você não queria um
cigarro? - Ah.. - diante da casa coberta de hera ao lado uma caminhonete
estacionada na bela noite outonal, ela disse:. - É que às vezes fico sentimental
demais - caso seguissem no sentido apontado iriam parar na França mas esse
dedo quer apenas mostrar onde há um lugar que vende leite e pão.
Quando encontraram o prédio da polícia no dia seguinte ele pediu que
ela prometesse. O que perderia se tentasse?. No visor de seu relógio os
ponteiros estão fora de foco. – Tenho medo – ela respondeu.

Passaram as primeiras quarenta e oito horas passeando sem romance


apesar das reticências aqui e ali e em todas as ruas passavam por mochileiros
em trailers ou carros e até pequenos caminhões e também a pé, naturalmente.
Quando os olhares se cruzavam eles se sentiam compreendidos. As coisas
espalhadas retiravam a impessoalidade do aposento. A blusa de Katia muito
branca cheirando a limpa energizava o ar duma nota luminosa de neve ou sol.
A primeira coisa que ele fazia era conferir o conteúdo da bagagem para ver se
não faltava nada. O odor quente do amaciante o acompanhava como aura de
santidade. Pensou na simplicidade de ter maquina ou mesmo um tanque
disponível. Como muda a filosofia mais profunda sobre o viver. Chegou à
janela e viu o homem preparando o vidro para o que ele pensou seria um vaso
mas ao final se mostrou um cavalo. Então se aproximou de Katia e a tomou
pela mão dizendo: – Olhe só – mas ela não olhou. Lágrimas represadas
enchiam a parte inferior dos seus olhos.

Na manhã do terceiro dia pediu para ser amordaçada. Seus gritos


poriam tudo a perder. Na mochila um velho vestido largo. Um espírito a
arrasta para o banheiro. As mãos na borda da privada com os polegares para
dentro. Ele diz - Posso fazer alguma coisa?- - Que tal achar e restaurar a
minha infância? - respondeu ela e sinalizou para ele tirar a mordaça.

Vômito pelos braços. Deus misericordioso! Ela voltou para a cama


curvada sobre sua sentença e na cama abraçou com força os joelhos. Nas
solas dos pés os pontos de pressão. Os dedos se contraíram. Depois se
aquietou. Não será capaz.

Mas, pensou ele, e a codeína na mochila, por causa da gripe pouco


antes da viagem-? Uma -duas cápsulas para cada um. Ele se multiplica em do-
in nos pulsos e na nuca de Kátia e na rígida região dos ombros. Deu-lhe
banho. - Sou do Espírito Santo - respondeu. Quase um pentecostes.

Estão com as mãos livres agora pela primeira vez pelo que ele se
lembra desde que se conheceram. Sem mochilas ou nós ou estiletes.

Um gato. Um cartaz descolado. Folhas. Poças. Então ele retirou a


correia do relógio e as fitinhas e miçangas. Ela é quase da altura dele mas
deitada parece maior A respiração se alterava de novo e de novo.

Desse jeito. Até o sexto dia.

O sono nas feições ela dormia e lentamente a noite avançava. Ele


recostou a seu lado e segurou sua mão. Silêncio. A maciez alta do travesseiro
esconde o rosto da moça, a menina de Muggio. Acima dos cabelos a guarda
da cabeceira se entrelaça em palha.

Houve aquele momento de cuja espécie são feitas as decisões mais


nobres.. Ele a olhava e disse baixinho que ela se livraria. Aproximou o olhar.
A exaltação cresce e o desejo se consolida.

Acordou sobressaltado. A luz do sol lá fora e todos os objetos dentro do


quarto tinham seu duplo cinzento em meios às cores vívidas de Giudecca. Os
móveis do quarto saíam de si mesmos e ganhavam vida como num desenho.

Ela acabou de acordar também. Queria dar uma volta. Em Veneza há


um lugarzinho ao lado do canal, em frente do r8elógio da igreja, quase junto
às escadas. Comidinha boa, caseira. Lembranças de infância.

A ladeira que subia era a mesma que descia e produzia efeitos inversos
nos que subiam ou desciam em meio aos toldos coloridos. Os duplos
cinzentos se movimentam agora no chão. Ela se detém nos doces.

São cinco horas. Amanheceu e havia um motivo para se levantar. A


morte não a atraia agora nem a vida a assustava. Ele abriu um sorriso e tocou
a testa como se fosse de louça. - Você está com uma aparência muito boa -
disse - ótima na verdade.

Se ele estava dizendo, ela acreditava.

Então ela o tocou, não como se toca um amigo. Talvez como a um


irmão mais velho. Sim. Uma agradecida irmã caçula..

Ele escreve. Ela torna a se deitar. Faz silêncio como os silêncios que
antecedem depois dos largos os alegros de Vivaldi.

Ela diz que se sente estranha. O quarto parece estranho. Um lugar


como esses que a gente sabe que conhece embora nunca tenha estado lá. Está
feliz - é possível- Está viva. Sentada na cama.

- Nossa!
Perguntou se o relógio estava certo. Ele fez que sim. Quase um novo
dia.

- Estou ótima.

Abraçaram-se.

Sem a droga tudo se tornará mais fácil. Ela tentará se manter limpa
cada dia, como os anônimos. Era mesmo o único jeito - concorda ele
pensando em como se tornaram próximos e como ela estava próxima,
cheirando a sabonete, com sua coxa encostada na eletricidade do braço e a
renda brotando como um sol de cós da bermuda. Foi assim desde sempre. Ele
nunca cresceu o bastante. Nunca acordou completamente.

A paisagem transitou entre tons de azul. Mar e céu intervalados pela


faixa amarela. Ainda é Veneza- - Sim, acho que sim. Mas diga. Você é
homossexual? - Por quê- -Me viu nua e me deu banho. Dormimos juntos.

Alfazema. Quando era menina no sul da França. Uma perfeita


aristocrata... Azulíssimo mar de lavanda. Poderíamos fazer uma viagem,
pensou ele, depois de comprometidos. Disse a ela que estava enganada. - A
gente acabou de chegar do Inferno e não há mais trens para o Paraíso hoje. -
Acho que senti o trem - disse ela.

Na janela um ramo de flores brancas se abria e o sol nas copas em


frente alternadamente aparecia e era ocultado. Pássaros se pegavam e
despegavam e ninguém poderia imaginar que ali fizessem ninhos revelando
antes a algazarra alguma coisa lúdica e passageira. Kátia moldava um vestido
de cetim godê branco que usava quando saiu de casa. O corpo mais cheinho
do que dias atrás. Estava em pé, direita, ao contrário do tempo recente,
sempre curvada como uma idosa. - O trem está na estação mas não há mais
horários. Imagino que você esteja exausta.

- Você é muito bondoso.

Depois de passar a manhã ao sol e o tom róseo se sobrepor à palidez


doentia, Katia se arrumou, excitada. Iria finalmente reencontrar a mãe. Ele
perguntou se ela estava zangada. Ela disse que não. - Tanto que gostaria que
viesse comigo.

Para ser apresentado como um bom amigo- e a seus amigos como um


novo- Entre eles um namoradinho de adolescência e um novíssimo flerte em
cujos braços se jogará amanhã. Ele podia ouvir os risos e as lágrimas e a
noitada de comemoração e ele acabrunhado num canto. - Não, Katia. Mas
obrigado. - Ao menos me deseje sorte.

Recebeu a primeira carta ainda em Veneza. O remetente dizia Muggio-


Mi. Ela havia refeito a vida. Começara a trabalhar e estudar. Noutra carta, já
para a posta-restante de Lisboa, está nadando e viajando novamente e tocando
num clube de jazz e batendo fotos para uma revista e escrevendo uma peça.
Tocando a vida. Pretendia fazer esportes de inverno.

Respirou fundo e enfiou nos cabelos os dedos que haviam dobrado a


carta. Os mesmos dedos antes introduzidos nos cabelos de Katia. Passou as
mãos pelos braços como se pudesse retirar do corpo o mal-estar. Ouvia
nitidamente os sons à janela como se de súbito tivesse recebido a faculdade da
audição. Adormeceu segurando a folha.

A CAMPAINHA atravessa a tarde entre as paredes. O ruído do


elevador subindo após o soco tornou-se a cantiga dos cabos brincando.
Depois a porta da sala destravada rangeu metálica e definitiva e eles ficaram
se olhando. - Que cheiro bom! - exclamou Oleana. A timidez que o vidro da
janela refletia o detinha apesar do cântico de primórdios e do homem
primitivo.

O cheiro dela quando passava. Perguntou se ele queria tomar alguma


coisa. Se ele queria vinho tinto ou verde.

Ele pergunta se ela quer mesmo almoçar agora.

Na verdade ela não estava com fome mas a comida ia esfriar. Além do
mais o cheiro já começara a abrir seu apetite.

Talvez ele esfriasse também.

- Calma. Temos a tarde toda e -

- Tarde toda coisa nenhuma. Comida se requenta. Adoro comida


requentada.

- Eu não - disse ela num tom de raiva contida que se alarga pelos gestos
e cria tiques no olhar - Onde está o menino comportado que deixei aqui de
manha?-

- Viajou -- disse ele. - Voltou ao Brasil. Esteve na África. Voou até


Paris. Passou por Roma. E agora há pouco estava num maravilhoso idílio em
Veneza, interrompido por uma ridícula falta de trens.

Ela estava preocupada. - Você se drogou na minha ausência?-

Respondeu altivo: - Olhe nos meus olhos.

Ela estava olhando e garantia que isso em nada ajudava. Queria que
eles sentassem e conversassem.

- Mentira!

Sim. Era mentira.

Ela jogou a bolsa na poltrona e deu três passos. Havia uma luta de
toques febris nos corpos unidos e desmascarados pelo mesmo beijo refletidos
na faca com fiapos de cebola no corte. Ele deu uma olhada na direção da pia e
se orientou. Ouvem o som tremido de metal no mármore. Ela enlaçou o
pescoço dele e cobriu seus lábios (Ja fucks mig så !).

Foi um beijo longo cheio de alternativas. Ofegante ele fez o vestido


acompanhar o braço que a envolvia. O quanto de espécie? Arbítrio algum. O
outro braço dobrou os joelhos dela e ele a pegou no colo. Encontraram o
caminho do sofá sem interromper o beijo e ouvindo sandálias ecoarem no
assoalho. Davam a quem porventura olhasse a impressão de uma coreografia
bem ensaiada. Os cabelos se misturavam numa única massa amarelo-escuro.
Ele se confessava e a respiração o reconhecia pecador diante da divina
anatomia e ela libertou o pulsar como uma hóstia e ele a contemplou em
suspenso. O tapete marcado pelas pisadas. Ele pensou ter visto o pôr-do-sol
na janela mas não, não era isso; mas uma força da natureza e ele um homem
ou talvez menos, uma virilidade avulsa à espera.

A nuvem sombreou a sala. Ele se lembrará como de um espetáculo no


qual os atores existem apenas em função da peça que representavam e seu
outro ser alheio ao corpo ator deduzia que a realidade não estava ali mas em
um depois mais cedo ou mais tarde. O vestido amarrotava-se nas costas de
Oleana e ele descia a trilha onde o umbigo era referencia e seus dedos
brincaram com o elástico. Um cheiro forte e doce. Um toque que se demora.
Uma profundeza esperada. Aliviou o aperto até restar a marca estriada na
cintura. ¡Sí! ¡Sí! O outro dedo é como um homem preocupado numa sala. Jag
är din tik nu. Que não estragasse tudo com carinho. Ele prova um gosto de si
mesmo e a cada descoberta latejava e latejava mais a ponto de...

— O arroz!

– Vou achar um trabalho de meio período e voltar a escrever.

UM CHEIRO de queimado se sobrepõe aos demais e a agua transborda


sobre o ferro enferrujado. Segurou com o sacrifício do operário ao som do
despertador o rosto de Oleana e levantou e tentou andar tropeçando na calça.
Conseguiu chegar junto ao fogão e desligou a chama. Podia jurar tinha
desligado. Ela podia jurar que ele só a andara atiçando. Contemplou-a
descalço e retirou toda a calça antes de voltar.
ELA DISSE: "Estamos juntos? Apenas dormimos na mesma cama. E é
tão bom. Ademais, ninguém proibirá se acaso você quiser vir".

– Não, obrigado. Vou ver um filme – disse ele. Que ela fosse
sossegada.

-Quando voltar, não estará nada mudado em nossa cama, não é?

-Como você mesma disse, é tudo o que temos.

DE VEZ EM QUANDO o homem diante dela transformado em borrões


desaparece em meio aos móveis. Em nenhum momento ela pensou em tanto
mas seu gemido a traiu e abriu os braços de Andrei contra o tapete e depois
soltou mas continuaram abertos. Ele viu mundos a que o sol ibérico não tinha
acesso. Ela sussurrou o nome dele e depois gritou. Andrei. Limpo e liso.
Quase uma criança. Acolhe-o agora sem o lapso do outro jeito. Às suplicas
ele se apressou e um rio brutal nasceu no leito em Oleana preparado.

A seu lado na cama ela dormia. Quando anoiteceu parecia uma chuva.
Carros no asfalto separavam os níveis de realidade e sonhos se confundiam
em preguiça ou receio de abrir os olhos. Vizinhos chegando e batendo portas
e chaves girando. E vozes. E vozes. Ele saiu primeiro da coberta e caminhou
pelo quarto como se procurasse alguma coisa. O ruído do prédio assim como
cresceu agora amaina. Ele voltou a se deitar e olhou a mulher adormecida e
encolhida. As costas expostas. Dormiu de novo.
A noite insone, o haxixe, Oleana e o almoço - adormeceu
profundamente.

AS PERSIANAS BATIAM. Um miado atravessou o silencio sobre o


casario. Pombos repentinos tocavam e abandonavam o parapeito e lentamente
o amarelo cintilante cedeu primeiro a um alaranjado pálido e em seguida ao
azul escuro em que quinas e portas negras se destacavam. Súbito um outro
caminho, ladeado de árvores. Acordou sobressaltado tentando discernir quem
era ou o quê. No rosto de Oleana, a noite. Nos lábios entreabertos. Nem num
nem noutro mundo o coração de Andrei se acalmava. Não havia mais sonho
ou despertar que o valesse. E ela, ela sonhava com tempestades. Está nua
exposta aos trovões e o namorado bate na porta. Uma sombra. Depois num
elevador ela conversa com um estranho acerca do tempo. Suas feições tem
alguma coisa dura, militar.

Ele quase pegara em armas quando pouco mais que um garoto mas não
era ainda um homem e as tinha abandonado sem usar. Costumava lanchar
misto frio e coca com seus colegas de redação à sombra de um enorme
flamboyant laranja-avermelhado diante do prédio do jornal. Série harmônicas
de sabiás tardios e pares de saíras-amarelas.Uma loja na esquina havia sido
inaugurada na semana anterior à sua contratação. Importavam vinhos de mais
de dez países. Dois dos homens eram antigos andarilhos. Quando se está em
cidades do interior faminto do lado de fora de um muro o chão fica coberto
dos frutos de repente e o mochileiro mata enfim a sua fome. O cheiro,
entendeu, era de manga.
Teve um primeiro contato visual com Rachel no trem de Buenos Aires
para Santa Fé. Havia dureza em seu rosto mas logo se mostraria falsa; era ao
contrário terna como uma menina. Isso ficou claro quando apareceu de
surpresa no apartamento de Andrei no Rio, onde fez medicina na UFRJ que
então era referência nesse curso. Depois sumiu para os lados da região dos
lagos. Suas sobrancelhas eram escovadas e suas pálpebras lisas e alongando
seu olhar nos cílios curvados. Diluída nos alto-falantes Joan Baez enchia a
comunidade de Rosário como o canto de uma voz de metro. Ali Andrei e
Rachel começaram o namoro mas se conheceram mesmo na Ciudad de los
Ninos. Ela estava com uma sobrinha e ele escrevia um poema quando o
agarraram e exigiram dissesse o significado dos versos. Ele perguntou se
gostavam de poesia. Os dois riram muito quando Rachel explicou.

Fizeram amor no dia 1o. de maio de 1974. A questão entre Perón e os


imberbes no rádio como pano de fundo. Namoravam entre pássaros e
borboletas e entre abelhas enquanto as folhas caiam das árvores. "Nunca mais
o vi-, pensou Rachel. -Dizia coisas engraçadas e era muito meigo. Sentia
muita falta do feijão. Eu sabia que era virgem pois me contou".

- Como você consegue esse cheiro gostoso de homem saído do banho?


Um homem cheirando mal é quase tão repugnante como um homem sem
cheiro. Ela dizia coisas inesperadas pela alameda que serpenteava até o
portão. Flores durante as passadas e à tardinha sombras argentinas sobre a
casa. Onde estará?, pensou Rachel, ao ouvir o baque no chão. 1988. Ainda
há de ser ainda um bom ano.

Cheiro de manga quando estavam deitados na rede da varanda. Eram


muitos amigos e sexualmente muito cúmplices mas isso não foi o bastante
nem o anseio de justiça ou as lágrimas comuns. Não: nada disso era o
bastante. Estava sozinha. Nasceu assim e assim morrerá. Assim vivemos.

OLEANA DESPERTOU e disse “Olá”. - Olá - respondeu ele. -Que


horas? perguntou ela e ele respondeu. – Ainda? Vou dormir um pouco mais.
Ele lhe deu um beijo na testa. Deu uma última olhada antes de sair e saiu e
sua última sensação é um mal-estar indefinido. No final do corredor a ânfora
no suporte lembra vasos de Veneza.

KÁTIA PARTIRA e Francesca regressara conforme o combinado.


Estava rosada e o lenço com que prendia os cabelos realçava sua beleza, a
beleza do pecado sem futuro. Em torno deles no restaurante do hotel as
pessoas não estavam impressionadas por ela usar uma aliança e ele não mas
em que ela, tão europeia, estava com um evidente sudaca.

Ao saírem, seguiram por ruas escuras que se encompridavam. Estava


bem perto. Perambulava pela Riviera Triestina durante meses a fio desde que
ela partira e ali ficava ao sol. Súbito Blandine surge sozinha. Olharam-se uns
segundos e correram um para o outro. Francesca olha para ele com expressão
conformada.

MADRID. EDIFÍCIOS assombrados. Os passantes olham para ele com


suspeita. Sente-se desaparecer. Eu. Quem- Perambulando perto da Caja de
Pensiones. O parque não está longe. Um parque é sempre um alívio. Um
telefone público.

Havia em algumas cabines telefônicas de Lisboa um orifício pelo qual,


ao se introduzir um arame, se estabelecia ilimitada chamada internacional.
Assim ele soube da morte de Donda Maria. Perguntou por que não lhe dissera
quando mandou o postal. Ela morrera dormindo. - Está melhor que nós -
respondeu Kleber. - De nada adiantaria te dizer. A vida é assim mesmo. A
gente começa a morrer quando nasce.

QUANDO ELE começou a escrever o livro, Andrei e Francesca viviam


na periferia, em Linda-a-Velha. Ao contar em lágrimas sobre a morte da mãe
de Blandine, depois de um silêncio emburrado ela disse que ele ficava
ridículo a chorar por uma velha que de qualquer maneira não veria mais. -
Francesca, acho que devíamos dar um tempo. - Devíamos? Claro. Que
momento melhor? Você refez sua vida... - E você mantém a sua - disse ele.

A que ele se referia?

Ela sabe.

- Tudo bem, sei. Não falei antes porque queria te poupar.

- Do que? vê-la na cama com outro?

- Como você é ingrato! Mesquinho! Como é cruel! – ela nada sentia


por Jacques.

- Quem?
- O gajo que eu precisava ver em Paris. Estamos falando dele, não é? -
disse ela. Disse que nada sentia por ele e se metera naqueles negócios por ele,
sim, por você, Andrei! - Só me realizo com você mas você parece só se
realizar com o que escreve. Tive ciúmes dessa tal Donda - abraçou-o. - Quem
dera chorasses por mim! - levantou a voz. Só se realizava com ele! nada
sentia com os outros. Além do mais, era passado.

- O pub é bem presente.

Ela suplica. Que ele a liberte dos outros. – Ti amo e voglio dirti tutto....

FRANCESCA O ESPERA na galeria em Milão para irem ao teatro.


Tomam um café e vão. Ao chegarem em Lisboa passarão na casa dos tios dela
em Povoa de Santa Iria pois ela disse a Franco que estaria ali . Ele pensou que
era um casamento aberto tão cheio de mentiras mais até do que um casamento
normal. Ela temia perder a fonte de renda, explicou.

Numa quinta-feira quase oito da noite de uma que ainda não aparecera
no céu outonal, apresentou Andrei ao tio. Disse que era amigo do padrinho,
um sujeito que negociava diamantes na África. Trataram-no com reverencia.

Francesca diz que estará treinando equitação nos dias seguintes.


Passam em Cascais ela onde apanha a égua. Precisa depois encontrar um
amigo, o Miguel. Ainda fala enquanto sobe para tratar com a proprietária da
pensão. Andrei assiste um julgamento embaixo na TV. Toni Ramos é o réu e
Fernanda Torres surge numa cadeira de rosas, testemunha inesperada. O
sotaque brasileiro sob os quartos.
Casais enamorados a buscar o fado para os lados da editora até o
mirante onde reina o gigantesco pôster do Rambo num cartaz na boca dos
Restauradores. O bar da sopa vinte e quatro horas e cerveja com tremoços.
Descem a ladeira trôpegos e risonhos. Há sempre briga por causa de mulher.
As vezes o ofendido tirava o cinto da calça para surrar o outro com o risco de
terminar de fazê-lo de cuecas. Ternos impecáveis gritavam o gol de Mozer.
Da janela ouvem-se imprecações diversas - brigas de amantes ou de gigolôs
com clientes ou de meninas com gigolôs ou de meninas com meninas ou de
vizinhos de porta.

- Ó pá te basa! - O que, caralho?

Na saída do cine Quarteto um dia sons de sino na travessa da Gloria


onde Francesca dissera Essa não tem chulo. Ele entrou no sebo. Não deveria
estar aberto mas estava. Crime e Castigo num exemplar italiano. Comprou o
livro e voltou pelo longo caminho até a pensão, quase feliz.

Preparavam-se para a viagem. Uma ideia insiste. Um romance. Um


romance de verdade em meio a tanta mentira. Por que não? - Não perca
tempo quando voltar de Barcelona , amor - disse Francesca. Que se dedicasse
apenas ao livro. - Não se importe com mais nada.
Passaram pela praça. Era a descida mais curta do Bairro Alto para o
centro. Passavam as pessoas. Se amam e se odeiam perante ele. A Catalunha à
espera. - Mas nada é perfeito, será nossa despedida por um tempo.

Antes de partirem, ela insistiu em rodarem por Lisboa para tirar umas
fotos. Levou quase o dia inteiro.

AS FOTOS ESTAVAM com os outros papéis que caíram e se


espalharam. Ele na Rua da Prata com um pesado casaco de Francesca e ao
fundo o relógio tocado pelo dia e dentro do arco pétreo a mancha esverdeada.
Dom Jose em seu cavalo. Ele pelos lados da Porta do Sol em uma sacada.
Prédios envelhecidos embaixo e além o Tejo, cacilheiros e um navio. Ele
tomando água num bebedouro constante a céu aberto perto do zoológico onde
as vozes de animais se cruzavam. Crianças ao redor indiferentes rodando no
brinquedo do parquinho riam e gritavam.

Em frente do jardim, na boca do metrô. Sentado numa mureta ele lia o


semanário que trazia bela e poderosa a ministra da saúde na capa. A tarja
diagonal no canto superior esquerdo anuncia matéria sobre a feitura do filme
em que dividam a cena atores e desenhos com requintes de realidade, como a
sombra, semelhante a essa que ele deixa a seu lado na mureta. Os macacos
chamam a atenção desde as jaulas. Sem o casaco, Andrei com a jaqueta preta
cheia de bolsos e um tecido pregueado usado como porta-caneta. Na escada
sob o rei João Primeiro pela graça de Deus, a montaria com crina de
passarinhos. Beijando na palma da mão o canário da casa dos avós de
Francesca, manso como um rapaz que condescende com caprichos da amante
por medo da miséria. Os braços sobre os ombros frios de Fernando Pessoa.
Na areia cascalhenta à beira do Tejo o vulto de um barco no fundo espectral.
Desejando os produtos dos livreiros do Chiado. É um registro histórico, mas
ele não sabe.

No Hospital do Câncer sob o sol que oculto retirava o brilho das


arvores e prédios em volta ou deveria dizer a luminosidade talvez o lustro ou
o fulgor que a luz do dia emprestava às coisas mesmo aos lugares
malcheirosos.

- Mais para cá, meu lindo.

Com os papéis e fotos caiu também uma esferográfica preta quicando e


sumindo debaixo da cama.

Diante do viveiro espelhado dos peixes róseos no Centro Cultural.


Começava a fazer um friozinho. Dirigindo o carrinho do jardineiro da
Fundação alguém de quem ele nada sabe, nenhum daqueles homens parecia
amar uma camponesa que partira para longe ou por causa da camponesa
algum deles deixará um país. Esse homem não ama ninguém além de si
próprio. Estavam porém todos vivos e sabiam de coisas interessantes coisas
que o rapaz que olha as fotos desconhecia.

Um bonde. O cartaz publicitário no corpo do bonde. Crianças de rua ao


redor da estátua no Paço. Andrei iluminado pelo flash quase noite na Baixa.
De novo olhos vermelhos ajoelhado (rezou) na igreja de Madalena. Molhando
os pés à beira do rio sentado no degrau de musgo, firme no musgo. No museu
de Lumiar não desejou mais a memória do mundo mas a sobrevivência.

Não sabia onde estava. Pernas trêmulas e dor de cabeça. Dói mais no
shopping. O rapaz que não se reconhecerá nas fotos fala. - Vou ao banheiro -
diz. O alívio é maior porque na volta a sessão de fotos terminou.

Conheceu Madrid quando foi de trem. Agora passando e cochilando


ignora a cidade sacolejando sobre o motor. Não conseguira pegar no sono na
noite anterior porque sonolência não acompanhou o cansaço das fotos e
Francesca inteira na vigília também contribuíra. Nada a cansava.

Quando meio que acordou Madrid dizia adeus e Miguel acelerava. Ele
escutou longínqua a discussão sobre que caminho tomar até Barcelona. Ao
lado da estrada corriam faias num biombo transpassado pelo arrebol e como
se mão insana tivesse rasgado o biombo de papel dava para ver um lago em
torno do qual azevinhos e freixos cirandavam. Ele imagina ou sonha
majestosa em seus oito anos Girl na picape. Joelhos baixos. Peito forte.
Voluntariedade nas obedientes espáduas. A tarde caminha quieta e calma para
Logroño, onde vivia a namorada de Miguel, razão da sua insistência pela
opção de percurso.

Enfim chegaram.

A MULHER ESTAVA SENTADA no sofá de colchões na varanda.


Levantou com gritinhos acastelhanados de alegria. Miguel desceu e Rachel se
jogou e enlaçou seu pescoço. Rodada e rosada a saia de linho e rosadas as
suas faces argentinas. - Acho que a gente fica mais bonita com a idade,
Andrei - disse ela. Vinte anos há vinte anos e daqui a outros vinte quem sabe.

Na achilea a mesa de madeira pesada apoiada na terra pelas mesmas


mãos que levaram as cadeiras e as encostaram de forma casual o bastante para
fazer supor que tinham sido recentemente usadas. Aí ele sentou. Olhava o céu
pensando em como a vida pode ser maravilhosa. Rachel e Miguel
permaneceram abraçados após o beijo e assim se aproximaram da janela da
picape. - Olá, tudo bem? - Fizeram boa viagem? - Vamos entrar – Rachel
iria preparar os quartos. Francesca disse não, obrigado, iremos para um hotel.
Ah nada disso. Rachel não iria permitir. Será uma desfeita. Etc.

Francesca e Andrei caminharam para dentro da casa, espécie de naveta


moderna longe de ser mórbida abraçados trocando beijos na quietude quase
catalã. Esfriara um pouco. O quarto na cave em que se chegava depois de
cinco degraus. Janela de caixilhos azuis a suportar o vidro batido. Acima da
cama de mogno uma janelinha circular que dava para um corredor branco
cheirando a vindima. Pés-de-pato no rodapé junto à máscara de mergulho. No
exíguo aposento Rachel conseguira acomodar muito livros e “La ciudad de
los prodígios” estava sobre a cabeceira que fazia parte da cama. Sombra
serrilhada de folhas quando Andrei passa curvado por causa do teto baixo.

Naquela noite dormiriam em paz e imediatamente após o amor


abraçados parecendo uma única pessoa. A mesma montanha se alongando
para o sul.

Uma luminária com cabeça articulável e interruptor de correntinha


vermelho. A única capa visível era de Aranjuez. De um vaso vermelho
vivíssimo salta o cacto que lateralmente se propaga. - Amor, vou tomar um
banho.

Depois do jantar de novo os cinco degraus num corredor agora cinza-


escuro. Não há lua. Ela se trocou atrás do biombo cantarolando em italiano e
depois sentou na cama e sorriu separando saturnal as sílabas do conhecido
convite: - Anda cá...

QUANDO APARECEU na porta a primeira impressão que a figura de


Andreia passou foi a de ser mais nova que Rachel. Tinha uns vinte e três anos
e havia conhecido Miguel pouco depois da faculdade, onde estudaram juntos.
Seu sobrenome era o de gente importante na Catalunha, empresários do ramo
de hidrocarbonetos mas o apartamento em que viviam, próximo ao hospital
era em termos de Barcelona até modesto. - Entrem, por favor, fiquem à
vontade - disse Andrea. Depois, baixinho, quando Miguel passou: - Tudo
bem, amor- - Tudo bem. - Me perdoa por domingo- - Claro, amor, relaxa.

- Olhem a vista - disse ele, erguendo a voz como se mostrasse um


pedaço de sua alma ao abrir as cortinas. -- É lindo - disse Francesca. --- Que
lugar! Quando ela e Andrei passaram pela porta, Andrea juntava dois ovos ao
trigo e uma colher de manteiga mais uma xícara de açúcar e um copo de leite.
Limpando as mãos no pano de prato beijou o marido. Deu dois beijinhos em
Francesca e ofereceu a Andrei pela mão macia o calor de seu corpo. Ouvia
mentiras sobre a viagem quando pediu licença para voltar à cozinha.

No dia seguinte Andrei acordou antes de todos e saiu. Para ir à casa do


amigo de Tomás tinha mesmo de passar na avenida da agência. O velho que
mostrou o caminho reclamava da unificação européia e da unificação
espanhola. Da prosperidade desigual do mundo.
No dia seguinte estavam nos cavalos. O lugar era uma meia hora fora
da cidade e ali viviam 52 caballos na finca de 11 hectares com espaco
equipado de 10.000 m2. O dia inteiro entre os picadeiros e os boxes. Ele fez a
cama de Girl e no dia seguinte ele também a levantaria. Deu-lhe a mistura de
cenoura e cevada. Escovou-a conforme lhe ensinaram. Ela deu um show no
treinamento sob a rédea firme de sua dona. Espora atrás da cilha no trote
diagonal. Aproxima-se do obstáculo, estende e alonga a coluna para frente ao
intuir a intensidade do esforço. No fim Francesca sofreou e desceu, levando-a
para o boxe. Anoitece no bridão e no freio. Ele acarinha Girl, que puxa sua
camisa. Francesca rindo dá o digestivo; mas é um riso nervoso.
A noite desceu sobre Madrid mas ele não sabe onde está. Precisava
desesperadamente encontrar alguém que fosse referência, testemunho do que
era e do que fez, do tempo que gastou fazendo. Que elucidasse fatos sobre os
quais hesita. Mas quem poderia ser, se chegara a Lisboa após as provas de
equitação há muitos (quantos-) dias, sozinho, e sozinho ficava horas a fio na
pensão onde alugara o quarto a tentar em vão sair do primeiro capitulo do
romance, circulando nos intervalos com a caneta vermelha os anúncios do
Diário de Noticias e indo, sozinho a redações e editoras receber padronizados
nãos e sozinho viera a Madrid no dia em que recebeu o postal e sozinho... -
Não... o breve período no Campo Pequeno... - não não... - com Francesca,
alguém num café, um espanhol - sim, uma revista espanhola, um poema... a
noite madrilena. Havia um postal. Deve estar junto com o de Kleber. Onde os
pusera- Os bolsos. Não neste. Nem aqui. Noche. Madrid. Ele passa pelas
jovens, os olhos perdidos. Deusas- O tecido das roupas, os perfumes que
usam, a casa diante da qual subitamente parado sonha. Contempla-as ainda
quando as perde de vista em coisas diversas - carros, muros, postes, janelas.
Uma pergunta algo à outra.- Viu os olhos dele, tão arregalados- Decerto está
drogado.

Resta a imagem etérea dum vestido florido e o aroma da alfazema se


confundindo com a casa azul. Sobre a lâmpada do poste rodeada de mariposas
o céu era azul escuro quase negro como os olhos de... Deus!... O postal ajuda
mas não é suficiente. Ele precisava de alguém referente a si mesmo dentro da
noite madrilena. Precisava de...

- Andrei- - depois da exclamação de Tomás, Isabelle sussurra: - Que


cara...

Defronte do prédio, olhavam para Andrei. A lâmpada se acendeu sobre


eles e Isabelle percebeu o tremor em suas mãos. Abstinência sim mas algo
além, mais ligado ao caráter que aos nervos, talvez à timidez e à má
alimentação. Que magreza... O céu contrasta com a lâmpada.

Perguntaram se ele já havia apresentado a matéria.

- Matéria-

- Maio de 68, não é-

Ah. - Não, não entreguei.

Um carro passou chiando no asfalto molhado.

- Haverá alguém lá num sábado-

Ar molhado na avenida, tênis emborrachados na calçada, ao fundo das


vozes enrouquecidas. Ele diz que o endereço do espanhol podia ser também a
sua casa. - Não é incomum. - Que tal - diz Isabelle - irmos agora-

Sim, deveriam ir.

Mas ele não terminara. - Não digitou.


-E o tamanho-

Conforme pediram. -Vocês vêm comigo-

Sorriram. - Claro que sim.

Diante da casa do editor atentamente eles o olhavam quando a


l^mapada da rua (especificar) se acendeu e isabelle viu a magreza mórbida e
percebeu que as mãos dele tremiam e logo pensou em síndrome de
abastinência mas tomás foi além e ligou o tremor aos nervos sim mas num
sentido de caráter, talvez à má alimentação tabém mas sem dúvida ligado a
timidez ou ansiedade. O céu pesado (detalhar) contrastava com a lâmpada.
Lá dentro, enquanto Andrei e o editor acertavam, o casal trocava baixinho
essas impressões que podiam ser resumidas em que havia algo trágico em sua
figura. Ao concluir assim, Mario tocou os lábios de Isabelle com a ponta de
dois dedos.

O telefone começou a tocar no momento em que Oleana acordava se


perguntando onde estará esse louco. Ela chegou no lugar marcado junto com
calafrios de amnésia. O peso escuro e gotas no cabelo. Grossas coxas saindo
majestosas do short verde de cós alto reluzindo à rotação, músculos que
sobem e descem sob o olhar de Mario. Mon Dieu... Não estrague tudo, pensa
Isabelle, Ne fait pas comme sa. Andrei o conmhecia há pouicas horas e era a
segunda vez que via aquele seu jeito de olhar, a primeira justamente quasndo
a própria Isabele se aproximou horas atrás (...) s'il vous plaît, mon amour...
Era como uma canção conhecida na voz de outro cantor.
Ele explica a situação com voz afetada. O casal ia fazer uma viagem e
quem sabe Oleana não queria ir junto. Com Andrei, é claro. Para onde, ela
pergunta.

- Portugal.

- Por quanto tempo-

- Uma semana mais ou menos.

- Vocês estão de carro-

Oleana esperava desde o inicio que Andrei fizesse um convite desses,


afinal ele morava em Lisboa, mas não quis saber a razão de Mario tê-lo feito,
possivelmente aqueles ridículos acessos de timidez do brasileiro. Mas tudo
valia a pena por um bom sexo e valeria a pena prolongar a aventura sexual
noutro pais mas tem receio de deixar Madri agora e o que foi uma briga de
momento, normal entre amantes, se prolonguar e de em separação, isso
Oleana não queria.

A saída do trem não tardaria mas tardaria o suficiente para


aproveitarem um pouco da noite. A bagagem ainda estava por fazer mas
Oelana garantiu que a bagagem não era problema, meu amigo. Minha
bagagem, a velha mochila, que bom ainda tenho esse pertence, uma
testemunha, que bom ter coisas. Minha Oleana. Digam-me se não sou
patético. Ela correspondeu ao beijo e depois disse que gostaria muito de ir a
um lugarzinho maravilhoso cujo ponto parece que está vendido. Poucos
depois os passos ecoavam na região da Praça de Espanha. Fazia um friozinho.
Nas vitrines a roupa de enfermeira e o vestido de noiva, algemas ou a capa
dura de um livro. Os reflexos são de rostos simpçáticos e nos pés sandálias
prontas para fugir ou voltarem para casa.

Em cerca de meia hora de caminhada chegaram ao tao lugar. Um


garçom com cara de índio indicou gentilmente uma mesa e continuou a tocar
sua flauta. Pediram cerveja e Andrei e Isabelle que tinham pedido refrigerante
acabram pedindo outros copos. Isabelle, tensa, musa subitamente encurralada.
Paredes de madeira, janelas sem vidro. Os corpos, a música. O propriétario
queria que ficassem.

- Voltem então. Voltem um dia.

Quando pegou o relógio percebeu que voltara a funcionar. Oleana dizia


que ele havia esquecido papéis na casa dela. Mario sorriu malicioso pensando
em cocaína mas eram dois cadernos e papéis soltos, não é bem que deixei,
disse Andrei, eu esperava voltar. A mão dela com dedos sem anéis
culminando em unhas retas segurava o copo. - Isabelle bebeu um grande gole
e estremeceu. Unidos pela sétima cerveja, a raça humana se resumia aos
quatro e cantavam um canto alegre e tranqüilo envolvidos pela aura dos
druidas saídos da mágica de uma flauta.

Chegam em Portugal quando o domingo declina. Apanharam as


mochilas no chão e seguiram pelas ruas da Baixa o paladar sabendo a bicas e
bolas de creme. A primavera se aproximava e o frio esmaecia numa brisa que
podia ser interrompida com a palma das mãos. Isabelle é causa de algo
próximo da angústia, alguma coisa bela e dolorosa, ao afivelar as sandálias
em frente ao correio na Praça do Município. Os pezinhos, ligeiramente
inchados, despem-na de seus segredos. O maléolo lateral, com jeito de cúpula,
seguia na linha que levava às pequenas rugas da sola rósea na sandália, em
toda a extensão ao longo da qual iria nascer como uma frutinha o dedo
mínimo.

Ali estão os quatro à sombra da estátua, agora com uns dez graus
menos de inclinação, proporcionalmente acompanhada pelas sombras de cada
um.

Ele ouviu na gaivota a respiração de Claudia. Em algumas passagens de


espontaneidade ofegante, noutras pausadas de cálculo, a lentidao com que
desenhava certos trechos e os cobria e recobria com a esferográfica num
negrito artesanal, ou a velocidade de um pensamento por demais caótico para
ser devidamente expresso por meio de uma única tentativa nítida, sob um
longo suspiro, atropelamento, vontade de dizer pela censura de si mesma
recusada.

- De quem é essa carta- Deixa eu ver. Tá bem, tá bem, é um direito seu,


todo mundo tem seus segredos.

Outras passagens estavam descaracterizadas, sua letra corrompia a


escrita.

Mario está feliz, não se agüentava de tanta felicidade, o que significava


num tipo de eufemismo pactuado que não via a hora de chegar num hotel, ele
era muito criativo nessa espécie de coisa. Sentei-me a seu lado, sob a estátua,
em frente ao consulado brasileiro. Parece bem cansado para tão propalada
energia. Lera em algum lugar sobre certas pílulas, mas não creio que
estivessem disponíveis. Perguntou-me se ainda faltava muito. Nada, eu disse.
Está bem pertinho.

O rio estava cintilante com marolas monótonas e ouviam-se as batidas


de barco na beira do cais. O cacilheiro rangia e as gaivota gritavam. Os quatro
à sombra da estátua agora com uns dez graus menos de inclinação do que há
cinco minutos quando desceram do taxi. Sentaram-se sob a estátua em frente
ao consulado brasileiro. Fumaça de cigarro se misturando à das refeições de
restaurantes vizinhos. Oleana, depois de dar fogo para um segundo grupo, ao
terceiro se negou.

Procuravam um alemão que conheceram no trem, para pegar a chave de


seu trailer num camping. O frescor dos corpos comprometido pela nova
caminhada. Voltam pela escadaria, esbarrando em copas muito verdes e
baixas, num farfalhar suave, imperceptível exceto para sentidos de haxixe.
Na estação do Rossio, entre réstias que atravessam os telhados além dos
trilhos e batem douradas na parede úmida dos sanitários, juntando-se aos
passageiros com destino a Aveiros e Óbidos, dobram à esquerda e continuam
descendo, passando uma impressão de blasé (mas estão apenas cansados).
Atravessaram a Avenida Liberdade à altura do obelisco. Dormiram num hotel
em frente ao coliseu. Cartazes de Leonard Cohen à janela e fotos de Rebeca
deMornay nas revistas espalhadas. Oleana e Andrei exaustos escutavam os
gemidos de Isabelle pela parede ao adormecerem.

Estiveram toda a semana no camping. Andrei nadou, nadou muito,


como se gozasse o velho mar pela ultima vez, partilhando-o com um e outro
adepto do windsurfe.

Oleana na mercearia escolhia a marca da massa para o almoço. Tudo


tão junto nas prateleiras. Aquele molho de tomate, esqueceu o nome. O tempo
todo esquecia também o nome de Andrei. Agora ele saiu do mar e a luz
inundou um mundo esquecido no olhar de Tomás que o espelhava. Viu de
longe Oleana na calçada com as sacolas e, pontos ao longe, as casas banhadas
pela tarde no silencio.

Isabelle embrulhou-o na toalha. Discreto sinal afirmativo e uma passa


no SG Gigante que Tomás colocou em seus lábios, preparado. A praia de São
Martinho do Porto sobe para a falésia à esquerda. O azul do céu se escurece
na linha do horizonte e se adensa ao negro no mar além do U largo e
esverdeia nas ondas mas o branco sobre o verde prevalece.

Pilastras e pessoas e postes à janela têm pressa. A composição


chacoalhava. Os amigos, a amante, o livro. Os planos. Copenhague,
Amsterdã, Paris de carona num caminhão da TIR. Falavam a respeito quando
Andrei foi acompanhá-los à estação no dia da volta deles para a Espanha. Um
rosto no burburinho depois que partiram.
-- Desculpe. Com licença.

Francesca se aproximava. Vira a ternura no abraço de Isabelle e Tomás


e Oleana agora a viam de dentro do vagão. O ritmo cresceu e preencheu a
nave da estação. Melhor tudo terminasse ali. Ao relento talvez passando fome
e frio mas livre. E quem ela é que acha que pode aparecer de surpresa e fazer
uma cena de ciúme na estação- Perder tudo, não a liberdade. Explodirá à
primeira palavra de Francesca e a voz dela se faz ouvir. -- Querido! -- disse
ela. E o abraçou com os olhos cheios de lágrimas.

Ele pensava em procurar Luis. Telefonou para Oleana. Ela tinha


acabado de acordar. A voz que ele escuta é um rio entre mundos. Havia em
seu sonho muitas pessoas em grupos - apenas ela estva sozinha. Sente-se
doente, é tão raro. Não ligava pra essa coisa de estar mal ou bem. Vivia. Mas
então por que sonhar assim-

- Oleana- Está escutando- A ligação está ruim.

Estoy tan cansada...

Ela disse que tinha de entregar as chaves do apartamento. Não


mencionou detalhes nem ele pediu. Se endireitou e esfregou os olhos;
pigarreou. A idéia de viverem com o dinheiro que tinham,aproveitando-o ao
máximo e encararem depois as vicissitudes de sua falta isso caberia bem num
escritor despojado buscando vivências, mas partiu de Oleana.

Ele desligou o telefone e escreveu o bilhete.


Pegaram o último trem para o Estoril. Recomendam determinado hotel,
cinco estrelas no monte. Ele ponderou mas Oleana insistiu. Recebera, disse
ela, uma boa indenização; e há o ganho pelo artigo. Também pedras de haxixe
dadas por Tomás.

Era um apartamento com vista para o mar; espelhos sobre o console na


saleta aprofundando o corredor; banheiro de granito; a cama larga de mogno
arrumada com colcha de couro chinês e na varanda cadeiras e mesas de
varanda em madeira branca. Oleana fez amizades que rapidamente se tornam
íntimas.

Oito da noite passou pelas risadas lúbricas e bêbadas decidido a mandar


um telex para seu antigo editor. Tantas coisas acontecendo. Oleana passa no
corredor em sentido contrário. Oi ufa uau estava doida por um banho. Com
ela um rapaz que embora encoberto Andrei julgou conhecer.

- Você está com a cara abatida - diz o rapaz para Oleana. - Venha ao
meu apartamento, descanse um pouco.

Chamou o serviço de quarto que em seguida chegou. Ela está com


muita fome. Ele percebe. Segura os dedos dela.

- Olha só - o rapaz sorriu ao mostrar um objeto redondo, de vidro, com


algo dentro, comprado na feira das pulgas.

- Guardaste! - ela se emociona.

- Preciso de um banho, ela diz. - Claro, vamos, ele responde e pede: -


Me perdoe...
Michel exclama - Chico! - e abraça Andrei. Jura que nada sabe acerca
da carteira de Luis. Inclusive, diz, ele me deu um endereço. Passará lá e
esclarecerá tudo. Andrei diz que está tudo bem.

Completada a ligação na sala de telex, lutando com o teclado


AZERTY, falou com o senhor Matias.

- Ah claro que gostaria que você trabalhasse de novo pra mim. Mas
sabe como é, a empresa está em contenção.

Lamentou e desejou sorte.

Andrei ouvia seus próprios passos ressoando no corredor antes do ruído


da chave na fechadura, imerso no cheiro de roupa passada dobrada no
carrinho e na aura da enxaqueca.

Ao entrar, viu Oleana enrolada na toalha branca em que se destacava o


emblema do hotel. Goteja no tapete.

- Tudo bem-

- Tudo bem - respondeu ele.

- Vou com Michel ao cassino; você não se importa, não é querido-

- Por que deveria me importar, só por estarmos juntos e você sair com
outro-
- Estamos juntos-

O luar traça uma linha lilás de horizonte na varanda. Oleana está


ajoelhada sobre a toalha. Hóspedes vão e vem pelo corredor. O resto de luz
natural se funde com as paredes. A pressão das mãos aumenta e a ponta da
língua se distrai.

- You are dead - diz na TV a garçonete amiga da protagonista. A


musica toca, grandiosa.

Cascais à janela.

- Levanta, Andrei. Vamos à piscina. Anda.

Michel já havia ligado. Oleana sacode Andrei. Semicerrando os olhos


por causa do sol que varava as cortinas, ele consultou o relógio.

- Ah, vão vocês, eu queria ficar e escrever.

- Escrever- é isso que tenciona fazer de sua vida- e para que isso
serve-

Os dias se passavam. Oleana de manhã ia à piscina, à tarde dormia e de


noite voltava ao cassino. Que mulher admirável, pensa Michel ao deixá-la na
porta do quarto, a chuva chicoteando os vidros. Um trovão. Decide ali mesmo
e faz o convite.
- Entendo - disse ele.

A súbita falta de energia no hotel logo é sanada pelo gerador. Ela não
recusará o novo convite.

Quando acabasse o dinheiro, Andrei profetizava, estaria sozinho pelas


ruas de Lisboa, ao relento. Não foi surpresa quando ao pagar a conta no
saguão do hotel tirando as tres ultimas notas da a carteira (e Oleana não
precisava de carteira), ela sorriu amarelo e pigarreou. - Michel convidou para
passar um tempo na casa dele em Londres.

- É claro.

Ela havia aceitado.

Andrei sorriu. - Ótimo - disse. Iam no carro dele-

Ela disse que sim.

- Então imagino que não será problema me deixarem em Andorra.

Andorra-

Michel concordou e perguntou se Andrei estava pronto.

- Mas não temos pressa.

Oleana aparenta serenidade. Iam passar na casa de um amigo em


Toulouse. -Você aproveita, diz Michel, e conhece meu avô.

Andorra... Tinha tudo para ser uma bela matéria.


Ao atravessarem a ponte, todos os sonhos se faziam possíveis.

Estão em Badajoz. Uma represa passa ao largo na amplidão romana da


Extremadura. Luz após o aperto nos olhos sonolentos, o ar parado, sufocante,
quente, quente, ufa, e nem é ainda verão, suavam quando sugeriu o caminho
das uvas. Tenho uma amiga que pode nos hospedar, o que acham- Poderiam
ainda passar na casa de Tomás em Barcelona. Michel acha tudo ótimo.
Oleana, ele espera que esteja doente de raiva. E sorria, impressionado consigo
mesmo.

No sofá rústico, Rachel se diz apaixonada. Jamais esquecera. O sol


imprime nos beirais o dia agonizante. Na sobreposição, o azul se juntou ao
rosa. Carregava, portenha, ao dobrar o ele e pedir que ele se aproximasse.
Oleana na cave com Michel.

Alguém arrasta um móvel.

O céu estrelado troveja.

Él estaba desnudo con el pene erecto. estaba asi cuando entré en la


habitación. es lo que habíamos combinado. él debería ser el esclavo y hasta
tomó la iniciativa de se agarrar a la cama con unas medias en el papel de
cuerda para yo sentarme en la cama y torturarlo chupando. incluso yo lo
intenté pero alguna cosa no funcionaba aunque yo podria sentir o pene
cresciendo dentro de mi boca, pues, a modestia aparte, es mi especialidad.
Entonces le quité la venta de sus ojos y la entregué en su mano y él
inmediatamente me dijo: -Virate y vendó mis ojos con la media un cinturón en
mis cabellos un poco debajo de mis orejas y luego pasó al otro lado y se
quedó de frente. Sentarse en la cama le hacía levantar o rostro ligeramente
hacia arriba. - Pon las manos en la cabeza - dijo con un tono que no parecía
broma y yo obedezco como quien está creyendo. desabotó mi blusa y la sacó
dando una lamida en el hombro derecho que dijo suave cuando por allí pasó.
la media estaba apretada bastante para el propósito pero flouxa para que yo
viera él mirando extasiado a los senos mitad fuera del sucio fino pero no de
todo transparente y agarró con las dos manos el elástico del lado izquierdo y
terminó de liberar el pezón que comenzaba a quedarse muy duro y puntito,
pero aún rudo. repitió el movimiento del otro lado lentamente pero no
demasiado, a un ritmo ideal para que creciera poco pero sin interrupción. yo
estaba con un poco de barriga lo que hacía más acentuada la curva de la
cintura morena. entonces él desafiñó el cinturón de mi jeans y desabotó el
botón de metal y abrió primero un poco el ziper en un primer momento pero
después continuó de nuevo lentamente, casi enganchado por enganche
pasando los pulgares por dentro del cós y bajando los pantalones que en la
altura del medio de los muslos se cayeron y se volvieron un montón en el
suelo sin la vida que me gusta pensar que los pantalones tienen en mi cuerpo.
la mancha negra en medio de la braga rosa era llena y apuesto menos áspera
de lo que él esperaba. él se quedó a mi espalda y yo lo imaginé admirando las
curvaturas lisas y blancas de mi culo, la apertura del cofito dividiendo el
relleno de la malla. colocó cuatro dedos de cada mano por dentro del elástico
y se tiró hacia sí sin bajar, lo suficiente para que el pene entrase y se
acomodara en la partición y sosteniéndolo llevó el glande desde abajo hasta
el final del rego, una y dos, y tres veces y en la tercera yo gemí.

Él dijo "Quédese callada, sólo abra la boca cuando yo diga " y se hizo
entonces de nuevo el silencio. él dio la vuelta y de nuevo de frente agarró mis
muñecas y las sacó hacia abajo y cogió otra media detrás en la cama lista
para eso y me ató y con la punta suelta y me tiró cerca del cabaret junto a la
puerta y me colgó allí.

pero él no me dejó pronto descalza. me dejó allí, de bragas y con el


sujetador ejerciendo apenas la mitad de sus funciones y el pantalón embolado
en mis pies. sólo unos dos minutos después bajó y soltó el par izquierdo del
tenis y lo arrojó lejos y luego el derecho. hizo lo mismo con las medias. pasó
primero una después otra pierna de los pantalones por los pies y sentí una
gran gratificación cuando abrió el cierre y soltó los pechos pero sin quitar de
todo el sujetador. sólo de bragas yo era una visión realmente bonita, él dijo
eso para mí pero luego cómo cayendo en sí dio una palmada sobre la frase,
corringéndola. después me agarró por la cintura y me dejó inclinada con los
brazos presos hacia arriba. colocó la mano derecha por dentro de las bragas
y el dedo anular encontró lo que buscaba, enfadándose allí. puede gemir
ahora, dijo él, y él le obedecía con sonidos altos que no eran fingidos. La
erección, después de momentos inestables que constaté cuando lo chupaba,
ahora se mantenía todo el tiempo y a toda hora me tocaba con la glande, en
el culo, en los muslos, y me masturbaba con el pene. El dedo iba y venía y
giraba melancándose y el olor se hacía cada vez más fuerte. él colocó el pie
derecho por dentro junto al mío y forzó a la derecha abriéndome. la braga
resistió más para salir a los tirones y apretaba y marcaba los muslos pero
finalmente, pasando un determinado punto, se liberó de las piernas y se
quedó suelta y él la sacó por el pie izquierdo. Seguía de nuevo por las
caderas y acercó el culo pero de repente se alejó y me soltó asim, desnuda,
atada, vendada, abierta, inclinada.

¿Dónde estás -, pregunté. Donde quisiera que yo estuviera, él preguntó.


Dentro de mí, dije. ¿vas a ser una buena niña para siempre- siempre,
respondí. ¿será siempre mi esclava- siempre, respondí. él acercó el pene de
donde había salido el dedo y lentamente entrando, sintiendo que era fácil por
lo tanto de mojado que todo estaba por allí. y de hecho el pene rizo lleno de
venas entró con mucha facilidad, la misma con que salió y luego entró de
nuevo y luego salió de nuevo y así sucesivamente hasta el olor estar tan fuerte
y el dedo que media el clítor en algún momento dejó de ser es necesario a
medida que el vaivén se ha bastado.

O armário aberto estava cheio da noite. Sim, pois já amanhecia. Rachel


lhe deu uma camiseta para dormir. Do cinza denso à pálida prata dos
contornos o sofá no canto traz odores de passado. Ha rubor nas cortinas. Ela
disse que preferia que ele dormisse no quarto de hospedes e ele concordou
sem ficar ofendido ou algo assim mas ai veio outro rompante.

Num primeiro momento ela nao acreditou no que estava ouvindo mas
quando entendeu que ele falava sério passou a ponderar e acabou achando que
podia ser uma boa ideia. Vámonos entoces disse ela.

Os cabelos de Rachel esvoaçavam ao vento que vinha de Vitória, talvez


de mais além. - Então você não perdeu essa fixação pelos Pireneus. -Somos o
que somos -respondeu ele. Ela colocou uma blusa de couro e sairam.

- Não me diga que nunca sonhou com algo assim- ele disse.

— Si - disse ela sorrindo- Era realmente algo así

Não existe nada tão belo quanto a fúria do mar nos despenhadeiros ou
tão terrível quanto ondas que sobem e arrancam pedaços de muretas e cospem
nos carros que passam lá em cima. Parece querem lambê-los para as
profundezas. Na beira da estrada uma mulher rega um jardim com cuidados
de proprietária. - Ali no porta-luvas - disse Rachel. Ele olhou dentro dos
olhos dela e estremeceu de prazer ao roçar com as costas da mão esquerda a
pulseira no braço quente enquanto a direita quase em simultâneo fechava o
porta-luvas. O revolver trêmulo quase caiu.- - Vejamos - - disse ela, abrindo o
mapa.

Quase 150 por hora. Escurece rápido. O céu se misturou com a náusea
e ele lutava para sentir a passagem do ar no ponto da respiração em que havia
o desconforto, logo abaixo da garganta. Não era nada, estava bem, se não
estivesse não suportaria a furiosa inclinação da curva.

Hondarribia entre mar e montanha e entre nações. Como um homem


entre a vida e a morte. - Não seja dramático, Andrei, vai dar tudo certo.
Vamos comer - disse Rachel. Desceram do carro.

O portugues de Rachel era horrivel e havia contaminado seu belo


castelhano. O resultado foi um portunhol lastimavel. O espanhol de Andrei
um dia tinha sido bom a ponto de uma familia que o hoapedou em Rosario
pensar que ele era um subversivo argentino passando por brasileiro como
tinha acontecido com os homens da policia de Peron na ciudad de los ninos;
mas agora isso era passado e sua pronuncia doia nos ouvidos. Entao
decidiram conversar em ingles, onde nao eram nada melhores mas pelo
menos treinavam. Estão falando sobre todos esses anos, sobre como ela
conheceu Miguel, sobre como Blandine o deixou. Em determinado momento
ele desviou os olhos como se a contemplasse num ponto separado, ela mais
jovem em numa árvore. -- Será que você ainda a ama, Andrei- Será que um
dia a amou-

Estavam sentados em uma mureta de onde viam o penhasco e ouviam


os respingos e os estrondos. A águas profundas e terríveis. Permaneceram de
maos dadas todo o tempo. Ouviam o mar e o vento n um mesmo bramido. No
fundo do som um zumbido qual uma queixa vinda de um tempo que nao
haviam partilhado. Ela lhe contou sobre a vida afetada por acordos de
expropriação de um pacote acionário envolvendo Argentina e Espanha, e
seus tios e tambem Miguel. Ele disse a ela como os jornalistas se preocupam
com censura e vivem sob rigida autocensura e conflitos de interesses e sutis
desvios éticos e ele no fundo estava aliviado com a lei da obrigatoriedade do
diploma, tinha sido a libertacao de uma atividade que o constrangia. Quando
voltaram para o carro ele ajeitou os ombros da blusa em frente ao retrovisor.
O mar estava cinza e a propria espuma nao era branca. As pessoas
caminhavam tranquilas pela avenida embora parecesse que o mar a qualquer
momento ia passar pela mureta e invadir as casinhas.
O rosto de Andrei ao amanhecer nos contornos que substituem os
moveis escuros. Na mesa de cabeceira uma foto de Rachel numa ponte. O
abajur insone perante os rostos no espelho. A torre da catedral de Santa Maria
de Logrono. Fora da cidade, peregrinos retomam viagem. - Não entendo
você, Andrei. Gostaria, mas não entendo. Você é um homem bom. Um,
homem raro, no melhor e no pior sentido - disse ela. Apesar da tristeza e
apesar de estar precisando de alguém para ajudá-la e achar que ele cumpria
os requisitos, ela não pediu para que ele ficasse.

- Lembra daquele domingo na praça, dos mercados- - perguntou ele.


Claro que ela lembra, mas do que adianta- Ele vai partir. Todos partem. Eu
mesma. Meus tios pediram para que eu não saísse de casa. Não vá para a
Espanha, diziam. - Eles ficaram lá, sozinhos, e eu ficarei sozinha. Todos
ficam.

Ele colocou a foto que ela lhe deu na carteira e ficou olhando como se
indagasse da foto uma outra decisao. Quando se beijaram mal usou a lingua,
apenas o necessario para reter uma lembranca. Prestou-lhe a homenagem de
uma lágrima quando ela acenou. Ela pairou assim em sua vida, com jeito de
anjo da guarda, que quer o nosso bem mas não é Deus.

Cerca de duas horas depois que deixaram Logrono, Oleana disse para
Michel parar num posto e saiu do carro. Michel contou então do mau-humor
dela à noite, e eu é que estou pagando, acrescentou rindo. -Não pude evitar,
Michel - disse Andrei; me desculpe.

Michel riu e disse que estava tudo bem. Quando brigaram naquela
festa, antes de Oleana conhecer Andrei, ele estava desistindo. Idealizara a
mocinha tímida de mochila às costas, tomando água com as mãos em concha
numa nascente suíça. Idealizara. Mas agora só existe a mulher nórdica.

— Tive sorte. Você foi bom para o nosso relacionamento - disse. - Só


tenho a lhe agradecer. Michel cercou e cercou e enfim chegou ao ponto:
Oleana pressionava.

- Vamos a dejarlo en el camino

— Não podemos fazer isso com um amigo.

— Apenas lo conoce! YO apenas lo conozco!

Michel teve de concordar mas disse que não precisavam deixá-lo à


própria sorte e a idéia passou a ser deixá-lo sob um teto, sob o teto de Tomás
e Isabelle.

— Você está certa. Pensando bem, ele bem podia ter ficado com a
mulher de Logrono.

Oleana falava animadamente com Isabelle quando entraram. Andrei a


cumprimentou com um sorriso. Michel se apresentou. Isabelle pergunta quem
ele é, o que faz da vida, o que faz ali. Tomás recostado na pia da cozinha
esperava a água do café ferver. Não estava à vontade. Não gosta de visitas
inesperadas. E havia o caso da carteira. — Cara, deixa disso. — Deixo porra
nenhuma! é sacanagem.

Sob as estrelas, à fumaceira de peixe na brasa e tilintar de garrafas do


Rioja, Isabelle também estava desconfortável. Chamou Andrei num canto
para pedir que entregasse, se não for incômodo, umas coisinhas para a mãe
em Paris. Se for domingo ele iria encontrá-la na igreja. Isabelle, vejam só,
filha de crentes. Ele sorriu e assentiu com a cabeça.

Tomás e Andrei ao passar da varanda para traziam fumaça na roupa e


Isabelle fechou depressa a porta corrediça de vidro. Oleana era agora
imigrante em Minnesota e depois na gélida Quebec. Alguns de seus
antepassados ali chegaram e se estabeleciam e casavam com belas nativas
mohank. Mas os imigrantes que falam português, disse ela, são uns tolos e
não sabem nada e ficam só preocupados com discriminação e não tratam da
vida para prosperar e que importa os outros, dizia ela, com a fala cada vez
mais arrastada e tropeçando nas coisas. Assim ela atravessou o oceano e
voltou a Estocolmo e chegou a Madrid.

Que ficasse entre eles: ela teve uma experiência homossexual num
hotel próximo da estação, sabe Michel, aquele que uma vez pagamos oitenta
dólares a diária, caramba, a mulher da portaria era uma indiana deslumbrante,
uma pérola verde na testa, que Michel a desculpasse. Falava. Repetia.
Isabelle e Tomás balançando as cabeças sorriam para Andrei e um para o
outro.

Disseram antes de ir para o quarto que ele poderia ficar o quanto


precisasse. Isabelle acrescenta que a encomenda podia esperar, não era nada
de urgente. Andrei agradeceu mas disse não, mas mesmo assim muito
obrigado, estava comovido. Pensava como o pequeno apartamento suportaria
a madrugada embriagada de Oleana. Passará várias vezes pelo corredor para o
banheiro após as luzes apagadas. Diante de Michel e Oleana no sofá virava o
rosto decidido a ignorá-los deitado até de manhã. Chegou por um momento a
pensar em ficar, mas não. Partirá. É a sua escolha padrão.

Campos sombrios e uma ideia de geleiras que convive com turismo de


surfe. O sol havia se posto sobre um dia cansativo. Em algum momento a
viagem idealizada se tornara uma viagem qualquer num lugar qualquer que
não era nem França nem Espanha. Michel falava de picos nevados e de
guildas e de uma praia inesquecível em um Atlântico esquecido. Com o som
da voz, a brisa nas flores do campo deixavase arranhar entre cactos floridos.
Um enterro. Carreiros e artesãos. Uma noite entre pescadores. Casas de
telhados íngremes e caimento inclinado. Para aquela gente era um final de
semana como qualquer outro e os estrangeiros em nada mudavam isso. Na
terra batida junto aos jardins de íris, jipes sofridos prontos para o que viesse.
Um pouco depois o carro diminuía a velocidade e apareceu numa varanda o
casal de idosos.

O avô de Michel saiu ao encontro deles pelo caminho estreito e longo


entre a cerca e a casa onde o som das vozes se comprimiu e ecoou e logo foi
seguido pelo barulho de copos e talheres e depois uma outra voz feminina,
mais fina do que as outras duas, mais baixa e generosa. A avoh abriu e fechou
duas gavetas e secou as mãos no pano de prato e no último momento de uma
quase agonia se virou para Julie e disse alguma coisa como Sente-se, minha
filha mas não esperou para ver se o convite havia sido aceito e foi na direção
da tábua sobre a pia e continuou esticando a massa no longínquo entardecer.
O tremor nas mãos era perceptível.

Precisava de um banho, precisava de uma cama. Tentou lembrar do


rosto de Blandine porque pensava que a simples visão lhe restituiria um
sentimento feito em pedaços. Blandine, disse. Blandine. Mas não aconteceu
nada além de uma reconstituição inócua de momentos mortos ilustrada pelo
rosto etéreo. Voltou ao lugar em que deixara Michel, mas ele havia sumido.
Por baixo dos arcos da ponte ele viu o rio muito lento como se quisesse se
rebelar contra a ordem natural das coisas. As cores aos poucos saturavam e
logo ele se viu sozinho na margem enlameada. - Onde você estava- -
perguntou. - Eu ia te fazer a mesma pergunta - disse. Mas a pergunta que
gostaria de fazer era onde estava Oleana. Não fez e não teria outra
oportunidade de fazer.

Julie pediu carona não muito longe da ponte. Havia flores azuis e
alaranjadas ao lado do caminho. Ao longo da tarde na estrada outra vez
depois do lanche, começou a chover forte sobre o caminhao enquanto ela
contava. Era de Miramas e estudava na universidade de Toulouse. Ia para
Paris mas por causa da carona resolveu passar uns dias na praia. Pau passava
à janela que à esquerda olhava a cordilheira. Saint Jean de Luz mais à frente
da paisagem visível. Donibanetik e Anglet, Bayonne. Quando anoiteceu os
dois estavam quase dormindo. Antes Julie olhava excitada o movimento pela
janela com as mãos nos bolsos do blusão acolchoado e tinha dito o quanto era
feliz por ser jovem na década de Michael Jackson e Prince, Madonna e
Whitney Houston, e ter visto Guerra nas estrelas, Indiana Jones, Exterminador
do futuro e ET no cinema.

Parecia que a vida voltara no tempo. A chegada a Lisboa em meio ao


burburinho do aeroporto. As pessoas vestidas de gala em qualquer roupa. As
vozes fora do aeroporto se desfazendo no dia muito luminoso e azul de
jacarandás. Os passos ecoando acolchoados como se estivessem percorrendo
um sonho. Francesca dissera então - -É um sítio muito calmo, seguro-. Ruas e
avenidas com nomes de cidade. Então os bondes amarelos e sua imensa rede
ao longo das avenidas - complementam as rotas do metro e dos autocarros,
dissera ela. E dias depois Paris. E outros dias mais, uma Veneza residencial e
os gatos de Giudecca. E cheiro de Katia, o doce cheiro de Katia. Uma fruta
madura resplandecendo ao sol. Maças verdes caindo do pé. E uns quantos dias
depois, as fotos em Lisboa e o vento através das árvores em torno do haras e
os golpes do pica-pau num tronco vibrando pelo trote dos cavalos. Era fim de
maio. Francesca estava convicta de que devia fazer o impossível para que
Andrei tivesse tudo o que necessitasse para escrever. Acreditava piamente em
sua intuição e se cercou de providências para que tudo corresse como ela
acreditava que deveria correr e ele ficou no confortável quarto de pensão com
todo silêncio de que precisava mas não parecia adiantar porque não tinha
nenhum talento. Convenceu-se disso e agora a situação está assim, ele se
enredando mais e mais num mundo perverso em meio a pessoas maldosas.
Um dia viu a mulher estendendo a roupa na janela. Ele pensou que em
Nápoles devia ser igual e pensou como Francesca fazia com seus braços não
muito compridos. Imaginou que em alguma momento ela teria de fazer. Não
poderia depender de empregadas cem por cento do tempo. Ninguém pode
depender de ninguém cem por cento do tempo. Então colocou uma muda de
roupa na mochila e saiu para pegar o trem. Antes passou na posta-restante.
Quando saiu tinha o foco bem direcionado, ir para Madrid e entregar a
matéria. Depois de ler a carta de Katia e o postal de Kleber porém ficou
disperso. Pensou que se desse certo poderia escrever outras matérias e talvez
ter um cargo fixo naquela ou em outra revista, na Espanha ou em Portugal
mesmo. Todas essas idéias num momento se dissiparam numa nuvem de
sonhos luminosos como o sol do meio-dia ofuscante. Se um mínimo de
concentração se mantinha, foi desfeito pelo haxixe e se ainda um resquício do
mínimo sobreviveu engolido como ele mesmo pelo corpo de Oleana.

Não estava tão quente no entardecer do dia 6 de maio e Lisboa era de


novo uma novidade, um caderno em branco como costuma ser o amor, porque
o homem, o jornalista que exercia a profissão há dez anos mas não
freqüentara uma faculdade, acabou de chegar e é a primeira vez que chega
sozinho e é uma sensação gratificante. Daquela primeira chegada com a
mulher angolana tinham se passado dois anos.

Em certo momento da passagem por Dordogne, Andrei e Julie se


perderam nos arredores medievais com pés silenciosos. As sombras se
misturavam num balé na parede lateral de uma das raras casas na neblina.
Estavam fazendo um lanche sentados na grama acinzentada na grama quando
pássaros malhados de castanho e manchados na cauda voaram baixo e em
seguida o caminhoneiro apareceu para chamá-los. Ele estava sem ânimo de
contar sobre o casal que o trouxera mas acabou contando de passagem. Ela
ouviu sem dar muita atenção.
Em Marais, Paris à tardinha, subiram de mãos dadas as escadas da casa
da mãe de Isabelle. Na janela tulipas vermelhas e amarelas. Não, a senhora
não está e, se podiam esperar, esperaram no vestíbulo. A empregada serviu
raclette e café. A senhora não costuma receber e pouco pára em casa. Agora
foi visitar uma amiga e na volta passaria no mercado. Não se lembra do
telefonema da filha e não se preocupa com a hora de voltar. Prefere evitar a
mesa.

Quando desciam as escadas, os papéis de Andrei caíram - esboços


sobre Harlem Desir, Loyers libres, Sous le cieul de Novgorod, Sylvie Guillen.
Houve uma acentuada queda da pressão atmosférica durante o fim de semana
em que estavam viajando e o meteo-france fizera um alerta para o risco de
chuva forte e volumosa naqueles dias.
Andando devagar dobraram uma esquina e deram com um céu rosa
sobre os prédios de uma Paris quase deserta. As pernas pesavam, e
ameaçavam dobrar. Faziam alternadamente sombra um para o outro e mediam
as palavras com o cuidado dos ansiosos. Julie passa a impressão de
serenidade; se ele a visse numa biblioteca ficaria impressionado. Com licença,
diria, querendo passar para o outro lado no corredor entre as estantes. E
sentiria esse cheiro.
Meu Deus, pensou ele olhando as mãos dela enquanto falava das
diferenças entre Paris e Toulouse. Há um pedaço do sol em cada unha. E além
disso o tom da voz dela comenta os reflexos. Vou a Toulouse, Miramas, até lá
a diferença de idade perderá a importância. Não imagina outro cenário.
Havia chovido e estava quente e as nuvens passavam. Eh um sonho de
Paris, diz Julie, sem parisienses. Em frente a Baudelaire na vitrine, ela fazia
confissões discretas de bom tom entre recém-conhecidos que mostram
afinidades. E se mantiveram naquele nível em que se fala sobre a vida de
forma vaga e teórica como se opina acerca de livros e filmes e se partilha o
gosto musical mas as revelações pessoais são contidas, casuais.

Le plus bas prix. Seria uma boa idéia comprar alguma coisa mas o
preço mais baixo era caro para eles. Como se tivesse sido combinado
apertaram o passo. Julie lembra como era uma estudante de arquitetura
fascinada pela nuance rósea dos tijolinhos aparentes de Toulouse. Ele não
notou o pavor nos olhos dela. Um ponto de ruptura. Ia pedir que tomasse
cuidado ao atravessar, como quem diz "Leve um casaco que vai esfriar".

Dois dias e duas noites Andrei errou sozinho por Paris. A enxaqueca
voltou. Não sabia o que faria quando chegasse a Trieste, que voltou a ser
meta, como um regime a que se está disposto e, embora nunca concretizado,
sempre é recriada sua expectativa. Degraus sem fim que nunca encontram
uma porta. E essa dor. E essa dor.

Vosges. Toda essa gente. Voltará à casa da mãe de Isabelle, levará a


encomenda. Homens de névoa, mulheres do bairro, cães, crianças. Flores,
canteiros e jardins exuberantes, bandeiras, o teatro. Sentado num canto da
Praça, a senhora apareceu com a menina.

- Ela está perguntando se você gosta de vídeo-game.

- Não muito. E você, assim pequenina, já gosta- - a senhora traduz.


A menina ri e esvoaça, pipilando. Bruce Willis tem uma filha assim no
filme que estreou. Acompanha mãe e filha até a casa, ali perto. A menina
chama, a senhora convida. O senhor insiste que ele fique para o jantar. Podia
trabalhar com eles como sanduicheiro, sabe o que é-

Não sabia.

Eles tem uma confeitaria ao lado da casa.

No final de um mês, tinha dinheiro para ir ao sul, até Marseille.


Compreendem como ele se sente.

- Calme-toi, chérie, il va revenir.

Pagaram o dobro do salário combinado. Nunca recebeu tanto como


escritor ou jornalista.

O homem passa e Andrei pergunta pelos Wingran. Ah claro, são gente


muito boa, você é parente- -- Muito prazer. Meu nome é Andrei. Falam dela,
de Julie. Consolaram-no. Ele não devia se culpar. Choraram.

-- Ele é como nossa filha -- disse a senhora Valerie. O marido a


abraçou sentindo o cheiro dos cabelos que ela usava soltos como quando o
conheceu. -- Oh meu amor, não chore -- disse Hans, chorando.

Valerie sugeriu a Holanda. Julie ficou lá recentemente. Passou as férias


num barco e fez bons amigos. -- Ah, sim, tenho dinheiro, eles foram muito
generosos.

Foi na Bélgica, caminhando por ruas limpas ladeadas por canteiros, ao


distinguir uma moça no sentido contrário, imaginou voltar para Paris e
procurar a senhora Hélenè, trabalhar com os Peyroux mais um tempo, uma
ultima baldeação antes de Trieste.

Em Paris, quem diria, estava em casa. Pessoas com malas, de lá para


cá, carregadores, táxis. No céu uma lua se intromete no dia. A azáfama não
causa medo: tinha para onde ir, não dependia de ninguém. Não restava muito
dinheiro, quase nada na verdade, mas tudo bem, tem para onde ir. Marais
envolta numa luz pálida, abandonada.

Então a velha empregada explica. Eles não estão. Não sei quando
voltam. A mulher não é rude nem simpática, apenas informa. Agora você
está de novo ao relento, amanhã poderá comer ou não.

- Obrigado - disse ele.

- De nada, senhor.

A rua é selvagem; os carros monstros; luzes, instrumentos de tortura.


Senta-se no mesmo banco de praça. Os vizinhos acham que eles não voltarão.
Parece inclusive que venderam a padaria. Segundo o cliente de um antiquário,
foram para Milão.

Olhava as pessoas com perplexidade e terror. Como os que acordam de


um pesadelo gritando e descobrem que o despertar não traz consolo, salvo a
fome.

Os lustres pendem em losangos. Olha e vê a si mesmo no reflexo do


vagão. Ainda bem que não está frio. Tremem as pedras do Maio: era a
perspectiva do Pink Floyd. Caminhou uns três quilômetros movido pela
disposição do medo. A amplidão de alma a que se pode chamar fadiga o havia
envolvido. Os passos se apressam e, como sempre quando se está vulnerável,
surge uma igreja.

Entrou e sentou-se no primeiro lugar vago, na ânsia de alívio para as


pernas; esperou que o sermão durasse o bastante. Tocava de leve o lábio
inferior. O pastor se inflamava, gritava, cuspia, dizia que os prevaricadores
estão com os dias contados e os que tendem para a sensualidade arderão todos,
eu disse todos, e socava o púlpito, erguendo a bíblia equilibrada na mão
direita. Depois mais calmo fala das bênçãos do dízimo e das ofertas.
Aproximava-se a hora em que os pecadores arrependidos se adiantam e
aceitam Jesus e recebem na frente de todos o perdão dos pecados. As olheiras
de Andrei contrastavam com seu rosto muito branco de doente. O vitral à
esquerda, que ardia, estava esmaecendo com a proximidade da noite.
A seu lado, à esquerda, a bela mulher transgride a orientação bíblica
sobre atavios e maquiagem. Os dedos longos encimados pelo carmesim se
ramificam no couro da capa do livro. Pergunta baixinho, sem olhar, de onde
ele é.
- I am Brazilian. I do not speak French.
- I like Brazilians.
Saíram no carro. Ele respondeu às perguntas com franqueza.
Os jovens, comentou ela; sempre se aventurando.
Não sou tão jovem.

Você deve estar com fome, claro.

Claro.
Estavam no restaurante a cerca de meia hora quando ela pediu licença,
tinha de dar um telefonema. Voltou, pediu que a desculpasse.

- Preciso dar preciso dar uma saída - disse. Pediu que a esperasse.

Ele sentiu um medo físico de que ela não voltasse. Na ausência dela há
um corpo rígido no burburinho de gente jantando. Ele retinha a idéia de lar,
adorada, com a qual não saberia subsistir caso se tornasse real. Quando
Beatrice reaparece, traz consigo o alívio.

Na época dos cafezais, subsistia graças à codeína. Após o primeiro dia


na panha, fraqueza, mal-estar, vômito e diarreia. Imaginam que é falta de
costume. Mas depois, na seqüência, o trabalho árduo se mostra benigno,
calmante, e no decurso dos dias ele fica corado, engorda.

Na crise de Kátia, para ele próprio suportar, retoma o hábito. Agarra-se


à economia das ultimas cápsulas. Volta e meia sente-se sem forças de se
manter em pé, torna-se bem penoso respirar. Fora o terror.

Agora, a solidão, fome, relento, e tardios os sintomas da abstinência se


manifestam. Músculos repuxando, rigidez facial, tremores nas extremidades,
movimento involuntário das pálpebras.

Tomara a ultima cápsula no dia anterior presumindo da nova estada em


Marais, do trabalho na confeitaria, de uma nova caixa de cápsulas. Ah o alivio
quando a mulher passou francos e dólares sob a mesa. Junto, num envelope,
um papel carbonado.

A moeda francesa era para cobrir as despesas em Paris; a americana, o


valor de uma passagem de avião de Portugal para o Brasil. Mas ele mal se
conscientizou da viagem. Pensava na farmácia. Aos poucos despertou do
alivio. O sud-express, o trem Paris-Lisboa, sem crise de abstinência.

- Obrigado, senhora, obrigado...

Sabe que tem a aparência mórbida. Porque tanto quanto na fome, talvez
mais, na síndrome de abstinência não existe mal ou bem, culpa ou inocência.
Não sublimação, nem arte, nem amor, sem dilemas existenciais ou destino.
Por mor dessa dor jamais anjos. Só o vazio. Suplicando outra dose. Cold-
turkey, o cold-turkey.

- Ei, onde você está- - Beatrice passa a mão direita diante do rosto dele.
Pediu que pagasse a conta. Vamos - disse:l ela.

Ao entrarem no prédio, ele viu as tulipas vermelhas.

Lá em cima afundou as mãos numa caixa e de dentro trouxe um


envelope. Seus olhos brilham; sua boca, num instante breve, se transforma na
boca materna. Seus seios logo satisfarão a pequena Isabelle. - A senhora deve
com razão me achar um oportunista.

- A maldição humana - respondeu ela - é julgar.

Deixou as coisas e saíram de novo para uma volta. O caminho produz


um olhar agradecido. Atrás deles a rua se estreita. Se afastam do rio. Ele conta
de Blandine. Está fazendo uma temperatura agradável. As pessoas usam
casaquinhos. Ela conta que se apaixonou por um canalha. E sente-se à
vontade para dizer que por causa disso a filha é quem mais sofreu.

As sombras se misturam. Cheiro forte na escuridão, iluminada quando


passava um carro à janela jorrando a luz dos faróis. Um mundo que só
funciona em solidão plena. Quando não há outro morador nem perspectiva da
chegada súbita de um, ou quando o outro morador irá decerto se tornar um
contigo - sem outras pessoas nos outros quartos, sem outros destinos,
perspectivas e direções, meu querido.

Ele levantou a cabeça e ela percebeu os olhos sonolentos e tristes. E


mediu a escuridão, calculando os movimentos para que nenhuma bonequinha
de louça quebrasse.

Beatrice viu que ele estava dormindo. O lento movimento do lençol


dizia o quanto o sono era profundo e calmo. Sentiu-se tentada a verificar o
quão calmo e profundo. Porque ele partirá, não há qualquer dúvida a respeito.
Antes de dormir costurava a camiseta, de quando em quando a levando ao
rosto e mantendo-a pelos segundos necessários para aparecer o vulto.

Há uma mariposa na parede e eles a olham maravilhados. Caso


chegassem à janela veriam um carro azul na entrada da curva. Ruídos na
cozinha. Ele fecha a janela para quando ela voltar. Ela volta sorrindo e se se
aproxima. - Olhe. Você gosta- - O que você fizesse agora seria minha comida
favorita.

Muito de madrugada, três e meia no relógio da sala, quando ia ao


banheiro, tateando no corredor junto à espiral da escada, o luminoso repetia-
se lá fora. O dia na janela. Desce a escada após ter deixado o bilhete.

O farmaceutico não atendeu de imediato. Há um médico no sobrado


que deve autorizar a venda. Ttoldos verdes na rua que desemboca na
pracinha, uma bicicleta e pingos do sol que atravessava a copa da árvore onde
a mulher estava encostada à espera. Tomou uma cápsula a seco e depois
outra. Quando comprava o refrigerante, o rapaz passou em frente apressado
seguido pela mochila de rodinhas.

A não-chegada da crise de abstinência. Sentia-se outro, como se seu eu


profundo fosse exterior. Está seguro com a cartela no bolso da jaqueta. Foi
feliz dois dias.
Envolto na fumaça, o trem deu o tranco. Sentado à janela, espalma a
mão no vidro. Da plataforma, ela pergunta se ele escreverá.

- A senhora gostaria-

Ela disse que não.

Talvez ele escrevesse.

A dificuldade do adeus. Alguém pode indagar por que a dor. Ele não
sabe. Mas à medida em que Beatrice vai ficando pequena, menor cada vez ao
ritmo do ferro, é sofrendo que ele soletra, tocando os dedos na frase, um
último protesto de amizade e admiração. Ela disse algo que Andrei entendeu
como Adeus, querido, vá e encontre teu mundo. Duas lágrimas azuis
encheram os seus olhos.

Na plataforma de desembarque de Lisboa, Andrei viu Francesca e ela o


viu e acompanhou os últimos metros da composição. Eu desceu e ela foi
sorrindo a seu encontro. Onde a esperada ira- Ele a abandonara... Não estava
sozinha.
- Olá. Sou Franco Bellini!

Percorrer com Francesca os mesmos caminhos que percorreram


quando ele estava na miséria era andar por caminhos novos. Lugares em que
o menino costumava brincar mas temia a chegada da noite enquanto o homem
se afadiga no dia e regozijará com as sombras do crepúsculo.

Montes de mãos, rios que escorriam pelos dedos, impulso primário de


todas as formas satisfeito. O céu estrelado sob o vulto da árvore contorcida e
o ribombar regular dos trens passando pela guarida do manobreiro. Andrei e
Francesca ocultos pela copa próxima à Torre.

Ela deitou na coberta retirada da mochila. Margens sujas de lendas.


Castelos. Ele se abaixou junto às águas de um Tejo adormecido. Só irão
dormir quase na manhã de domingo no gramado ao redor da igreja lá em cima
após o sol secar o orvalho

Cansados e famintos procuram uma pensão que o dinheiro que sobrou


possa pagar. Acabam no velho hotel defronte do coliseu. Um luxo perigoso,
sempre. Chegaram assim a semelhante situação:

Andrei nada dissera sobre a volta ao Brasil, sobre o dinheiro que para
isso a mãe de Isabelle lhe dera. Nunca falaram sobre nada relativo ao tempo
da ausência. Francesca está tranqüila em relação à parte financeira, por causa
de Franco. Além disso tem amigos anteriores ao marido, os quais não vira
após o casamento, em sua maioria portugueses retornados de Angola.
Passaram maus pedaços na volta, após a independência da colônia, mas
conseguiram se restabelecer em Portugal. Tenho certeza, disse ela, que nos
receberão enquanto as coisas se acertam. A pomba no parapeito do hotel
geme e estala as asas.

Pois bem. Os tais amigos recusarão guarida um após outro. Exceto


Hilda. Ela e o novo marido, Garlos. Hospedam a amiga e seu companheiro na
casa em Alcobaca. As duas recordam passagens da adolescência enquanto ele
e Andrei acertavam o emprego do brasileiro na fábrica de móveis.

Começou a trabalhar como montador. Uns achavam que era um


empregado eficiente e outros que só estava empregado por ser amigo do
patrao. Garlos estava a pensar em colocá-lo no escritório central, disse depois
do jantar de sábado do primeiro final de semana, tocando as tacas de vinho
verde.- Serviço braçal não combina contigo.

Andrei adorava. Cadeiras e mesas para acoplar a Tv aos modernos


aparelhos de vídeo Vhs, escadas graduáveis e a preparação das embalagens.
Pode-se dizer que se tornou aí um perito em nós.

Foi um tempo de calmos dias uteis e finais de semana agradaveis em


que os casais iam ao barzinho onde serviam bebidas quentes ao lado da
lareira. -A única coisa que me incomoda, Garlos, é incomodar vocês. -
Incomodar nada. - Tirar sua filha do conforto do quarto para nos instalar.

Não era nada, disse ele; era um prazer, completou Hilda. Mas de fato
mudaram a rotina da casa. Horários de banho e refeições, lugares à mesa.
Perderam a privacidade, enfim. - Não é verdade meu amigo. Estamos
optimos!

Mas um dia a tensão à mesa do jantar ficou incontrolável - Não fale


assim, miúda! Somos teus pais e eles são nossos amigos.

Francesca sugeriu que ficassem na casa de praia não usada por conta de
uma reforma. Hilda e Garlos ofereceram uma resistência não-convicta.
Sandrine olhava os amigos dos pais agradecida .

-- Amanhã estaremos à beira mar -- alegrou-se Francesca.

O sol buscava no mar seu reflexo e sombras pesavam em torno do


prédio. Tinham acordado e olhavam a cidade lá embaixo. O rio, os cacilheiros
pequeninos. Houve um casamento e as pessoas saíam ao gramado a
confraternizar. Da distancia em que estavam naquele dia, dormindo no
gramado, aos olhos dos convidados eles faziam parte da vegetação que
ladeava a rua até a igreja. O menino de terno disse: - Olhe ali. A irmã num
vestido rosa respondeu: - Parecem mendigos. - Vamos lá. - Melhor não -
Você tem medo- - Não tenho medo mas melhor não.

Viram o casal se levantar e sacudir os vestígios de grama da roupa e ir


embora descendo a encosta ao som de uma canção triste nos fones de ouvido
que os unia. Era a mesma canção que escutavam no aparelho de som do filho
de Garlos. Os transeuntes lá embaixo formam uma mancha esverdeada e
escura, móvel, nas cercanias na Torre. Se tudo parece novo, é a vantagem de
estar dormindo na rua e um dia em cada lugar.
Desviou os olhos na direção de Francesca, embaçada. Quando ela
acordar lhe direi que há dinheiro suficiente para o hotel. Contemplou de novo
o rio, a cidade, as pessoas pequenas, a mancha móvel e depois deixou a
varandinha e entrou no quarto do hotel e fechou a porta pensando na epoca
da casa de praia.

Nos finais de semana era sempre uma festa. O filho de Hilda e meio-
irmão de Sandrine, Felipe, tinha dezesseis anos. Descobrira facilmente que o
hóspede era um apreciador de haxixe e, consumindo-o ele mesmo
desbragadamente, sem que a mãe ou o ocupadíssimo padrasto percebessem,
introduzia as madrugadas de sábado a buzinar sua moto com a namorada
eventual na garupa. Vinham sempre com irmãos de CBX200. O que a mãe
haveria de dizer. Sua comportada amiga de Luanda!... E Francesca ria.

Era uma segunda-feira em nada diferente de qualquer outra segunda e


nao tinha dado ainda nove horas da manha quando Hilda telefonou. Sua voz
puxava para tons agudos no final das frases curtas a que as expressoes do
rosto de Francesca correspondiam como augurios. A secretária do escritório
de Garlos em Lisboa pedira demissão e Hilda usara meias e ligas para
convencelo a dar a vaga a Francesca. Conforme a ligacao avancava atraves da
manha em meio ao frenetico canto nupcial dos chamarizes que borboleteavam
na janela, Andrei entendia que ia perder o lugar na fábrica de Leiria pois só a
parte administrativa funcionava em Lisboa.

- Eu posso continuar aqui e você ir para Lisboa e passaremos juntos os


finais-de-semana. Alugaremos uma casa numa cidade intermediaria.

Ela perguntou por quê. Disse que ele queria se ver livre dela.

Ele disse claro que não, Francesca, seja razoável, estou bem em meu
trabalho, não é só uma questão financeira.

Era como a brasa de um cigarro girando no escuro.

No último dia na casa de praia, lentamente o sol surgia na névoa.


Ventava muito, como sempre. Pegaram o trem em silencio. De Caldas da
Rainha para Lisboa demoraram cerca de uma hora ao longo do entardecer
num carro da empresa. Assim que bateu a porta de seu lado ele viu o perfil de
Francesca e entendeu mas era uma compreensão que chegava tarde demais.
Porque era a primeira vez que via Francesca sem maquiagem e a única vez
que ela nao lhe dirigiu um olhar obsceno de cumprimento e que ele lembrasse
ela antes nunca havia repetido a mesma roupa dois dias seguidos.

O apartamento era mobiliado e nao precisaram fazer mudanca .


Entraram no elevador quando um outro casal que saía como de hábito
olharam detidamente para ele. Era um condominio num subúrbio de alto
padrao, com gramados muito verdes em torno dos blocos. Parados diante da
porta como se estivessem a ponto de transpor o portal do inferno, evitavam a
primeira palavra porque sabiam que seria a primeira de uma serie
interminavel e quando enfim as acusacoes mutuas se misturaram ao estalar da
madeira e o barulho das caixas de roupas houve uma disticao clara de que eles
juntos nao eram eles mas a imagem de seres transtornados e inexistentes.

– Ah, Andrei, vê se pára de reclamar, estás a encher o meu saco,


caralho! Saí, me deixa em paz, porra!

Ele se dirigiu para a porta sem olhar para ela e torcendo para que ela
nao se arrependesse quando a ouviu:

- Não, por favor, não vá...

E como sempre nesses momentos se atracaram e num primeiro


momento algum eventual vizinho nao saberia dizer se estavam lutando e se
aqueles eram sons de socos e tapas ou o que e de que especie de gemidos mas
como sempre nao demorariam para descobrir.

Sexta à noite Francesca chega e sem preâmbulos diz que brigou com
Garlos, quem está ele a pensar que é para falar daquela forma comigo na
frente de todos- Pedira demissão. Mas não se preocupe, amor. A casa fazia
sim parte do contrato mas telefonará para Franco no dia seguinte, pedirá
algum dinheiro. Alugaremos então um apartamento. E tenho certeza o próprio
Franco nos conseguirá trabalho junto às suas relações em Lisboa. Um miado
agudo se ouviu do telhado.

Ali. É ela. Uma mulher maravilhosa. Com a roupa do corpo, um belo


corpo. Agora esta ligando de novo para a Itália. A mesma roupa, um pouco
suada, a blusa ligeiramente encardida na gola, amarelada debaixo dos braços e
nos punhos. O mesmo corpo, um tanto cansado.

- Ele não está em casa, foi para Nápoles.

Não. Ninguém sabe onde. Claro que há uma explicação. Enquanto isso
poderiam recorrer aos avós dela em Póvoa. Não era caso de desespero.

Os navios passam ao longo do Tejo e os cacilheiros o atravessam. Ali


está de novo. Estão. Duas pessoas sem nada em comum mas, pensa ele, não
posso abandoná-la numa situação em que se meteu por minha causa.

Um casal em Cascais, da agenda de retornados de Francesca precisava


de caseiros. - Melhor do que sermos constrangidos a hospedá-los - disse a
mulher - o marido faz que sim com a cabeca embora passasse pela sua cabeca
a imagem da esposa angolana do amigo italiano nas ferias da riviera e ao
enxugar o rosto nao achava que seria qualquer constrangimento hospeda-la.

Na quarta seguinte, ultimo dia de Francesca no escritório de Garlos,


haviam mudado para a linha do Estoril, no fim da qual o casal tinha a
chacrinha.

Quinta-feira entre as árvores que farfalhavam, Francesca chegou pelo


caminho verde que leva à habitação dos caseiros. Andrei está cozinhando
batatas na lareira porque o gás acabou e só poderá buscar um novo botijão no
dia seguinte. Ela esteve durante todo o dia e parte da noite na casa principal
servindo os convidados. Desabou chorando sobre o sofá e disse que não
agüentava mais, era superior às suas forças, não estava acostumada, não
agüentava mais.
O senhor Couto compreendeu e a senhora Couto lamentou. Partiram no
dia seguinte à tarde. Durante o percurso de volta a Lisboa, ela escondia os
olhos. Quando na penúltima estação as pessoas começaram a apanhar suas
coisas para descer no Sodré ela tomou as mãos dele e o encarou, por favor me
perdoe. Ele estremeceu.

Ao descerem na estação do cais estavam na rua e sozinhos,


amaldiçoados. Então ela fala. É hora de começar a aprender a viver sem o
Franco, disse. Não iria atrás de advogados ou detetives até porque não tinha
dinheiro para isso.

- Eu tenho -- disse ele.

O burburinho eh como a voz de uma besta insondavel. Ele falavam alto


mas sem gritar, categoricos apenas, e calaram quando o trem em que vieram
tornou a andar ou quando o aeguinte chegava. Depois recomecavam.

-Não te incomodava tanto a dependência- - disse ela. Agora ele estava


livre, não dependia mais. Anoitecia e ele tomou consciência da noite. O vento
continuava a soprar.

Naqueles dias em que o dinheiro escasseara a ponto de terem que


economizar deixando para ir dormir pela manhã no relvado da igreja no alto
da rua da Torre de Belém, ele foi à posta-restante e ela ao Ministério das
Finanças onde tinha esperança de encontrar uma última amiga de infância. Há
uma carta. Ele rasga o envelope com mãos trêmulas e o coração disparado.
Francesca se aproxima. - Não trabalha mais aqui, pá. - diz. Ele guarda a
carta. Não estava mais a agüentar, ela diz, precisava de um banho, tomar uma
bica, comer uma comida decente. - Quanto você tem-

- Dois mil dólares.

- Ô pá tudo bem. Vamos para um hotel. Amanhã é outro dia.

Massageava os meridianos do sistema nervoso sob a pele úmida à


altura dos ombros de Francesca na banheira e imergiu junto dela. Os lábios
procuraram o lábio inferior da mulher e as pontas das línguas criaram a
expectativa. Deslizou no fundo sob ela.

No dia seguinte Francesca ligou para um anúncio classificado que


pedia funcionárias de fino trato para trabalharem num pub. Inferninhos em
ruelas escuras nos fundos da avenida luminosa. Hah estrelas sobre o rio quase
mar.

Uma semana. Duas. Três. Em um mês ela tirou mais que ele em quatro
ou cinco na fábrica. - Não disse- - dá risada. - Sei o momento de agir, ó pá.

No calor da noite enevoada as sombras de Lisboa. No final da estação,


onde se não insistirmos em comparar o clima com o calendário, acharemos,
vejamos, o hotel modificado pela mudança do pagamento de diário para
mensal, sim, mudou mesmo meu querido, estão a nos tratar melhor. Dentre
outras coisas.

A luz da manhã também mudara. Os corredores. Um espírito se move


entre Andrei e seu sósia, o Outro que protegia Francesca dos assédios das
quatro da manhã. Escreve para Barcelona dizendo à agente literária o que
poderia ter dito pessoalmente.

- Um dia quando voce for reconhecido terei orgulho de dizer que voce
era o melhor namorado do mundo, nao gigolo.

Ele a escuta olhando o largo pela janela e pensando que ele na verdade
era e pensando que o que os outros pensam eh um lugar muito descpnfortavel
para se viver.

O calor se estabeleceu em Lisboa seco e pegajoso. Durante esses dias


ele escrevia na biblioteca municipal e para chegar ao Campo Pequeno evitava
caminhos antigos. Amigos e inimigos de haxixe e o próprio. Isso aconteceu
no decurso de muitos dias. Tinha regularizado sua situacao e aberto uma
conta no banco mas nao usava os cheques ou o cartao exceto no mercado que
ficava no caminho. No amplo jardim com mesas de tampos vítreos e cadeiras
brancas de ferro havia sombra e a temperatura era agradável.

No quarto de noite, Francesca estava sempre estava bonita e ele lhe


disse. - Gosto tanto de seu perfil, fique assim, vou pedir alguma coisa.

Passara a fase em que as culpas pedem responsáveis e as coisas boas


não são notadas. Tinham entrado na parte da vida em que tudo adquire
tamanho real. As escadas externas dos prédios à janela se comunicavam com
as roupas estendidas; não é uma visão propriamente agradável mas se tornou
familiar e assim amiga. Escuta-se todo o tempo a camada sonora dos carros
distantes e vozes incompreensíveis e uniformes, queixosos.
Que aconchegante calor na pele em tardes frescas à mesa vítrea do
jardim da biblioteca!. Ali escrevia também artigos não mais para vender a
jornais mas a jornalistas sem tempo. Não dependia do dinheiro de Francesca
mas não mexia nos dólares. Os francos, convertera e usava nas despesas
diarias. Tinha crises de ciúme e volta e meia discutiam. Parecia que se
suportavam mas ha pessoas com que lidavam diariamente que podiam jurar
que eram muito amigos e nao raro era no que eles proprios acreditavam.

Saíam do quarto um depois do outro com os mesmos olhares para os


lados. Quem olhasse acharia que escondem algo. Ele não perde um único
movimento que ela faz, como se disso dependesse a própria vida. Sofriam o
relacionamento porque o destino os empurrava um para o outro na ausência
de antigos amparos.

- Boa noite, senhor - disse o porteiro quando Andrei entrou. Eram nove
da noite. Na penumbra da sala de TV esperou o documentário sobre vida
animal. Como terminasse a novela e todos haviam deixado a sala, ele mudou
de canal. Ao sentar-se de novo, passou uma mulher azulada e mãe morena
solta no vestidinho branco. A criança em seus braços dormindo. Não olha
para ele. É como se ele fizesse parte dos móveis.

De costas ela passa para a outra extremidade do sofá. Seria indecoroso


se deleitar nessa visão. Quer contar a ela, contar tudo, a vida toda. Pènsou
então se era tanto assim. Respiram fundo ao mesmo tempo. Ela sentou-se,
calada. Lançou na penumbra um olhar pelo espelho lateral. Dedinhos na
sandália de pelicato. A sinuosidade prática do abotoamento. “Angustio-me
por ti”, diz a voz da personagem na televisão. O peito é oferecido ao bebê.

- Eu te amo tanto, filhinha, muito, muito querida, muito, queridinha da


mamãe, é sim minha pequenininha, a pequenininha da mamãe, meu
amorzinho...

Ele suspirou incrédulo. --Blandine!

CAMINHÕES DE ÁGUA da Câmara de Lisboa lavam as ruas da


Baixa. Espelhos turvos no asfalto devolvem a lua do chão. Ele mantém no céu
um olhar fugidio. Caminhava ereto com ombros para trás e abdômen
recolhido. Um homem lhe perguntou as horas e ao passar disse às duas
colegas de trabalho que o acompanhavam: “Morava na rua. Dormia por aí.
Não o reconhecem-” “Acho que sim” - disse uma das mulheres. “É um que
passava todos os dias na porta da loja". Sabem que é brasileiro mas não que
veio de Angola. Uma das moças é amiga do porteiro do hotel e sabem que ela
mora na Itália e o marido é um empresário do ramo imobiliário . Agora acham
que são cumplices de alguma coisa, nem imaginam o que mas não tem duvida
de que são cúmplices.

- O que você disse?

- Nada, estava pensando.

Andavam um ao lado do outro mas era como se estivessem sós.


Quando passaram por um vão entre as pedras do calçamento, como num
movimento ensaiado, olharam juntos para baixo. Era cerca de oito horas de
uma noite calma e tão clara que nem noite parecia. Havia pássaros e orvalho.
Movimento nas ruas luminosas. Era uma época em que se vendia de tudo nas
ruas de pedestres e não se dava um passo sem tropecar em objetos os mais
diversos e inesperados exibidos em mantas coloridas esticadas no calçamento.
Õnibus seguidamente faziam a curva próxima do monumento. Filas na porta
do cinema. Gente humilde nas ruas secundárias onde se pede sopa de cabeça
erguida.

Como num movimento ensaiado, levantaram simultaneamente o olhar


do calçamento. O ruído do motor do caminhão dá a idéia do minuto passado,
uma canção que insiste na mente ao adormecermos. Uma ave noturna revoou
sobre eles. Andrei cobriu os ombros da mulher com um abraço antigo e
brusco e ela sorriu e pousou a mão sobre a mão dele. Pronto. E agora o quê?

Adoro esse trecho da cidade, ela diz, ele também, responde. - Adoro.
Sobretudo o contorno da ponte ao longe.

Subiram a viela. Uma ratazana passou célere. Surgindo do nada o gato,


que havia pouquinho recebia o afago de Blandine, saltou e a abocanhou.

- O Kleber devia ter dito que você estava em Lisboa.

- Se tivesse dito, você deixaria de vir? Aliás, o que te levou a se


hospedar num hotelzinho como aquele?

- Está querendo dizer que vim na esperança de encontrá-lo? Sua


pretensão não tem limites! É maior que a sua memória!

- Não maior que o meu amor.


Como se ela não tivesse ouvido, disse: - Esqueceu que estivemos no
Rio em hotéis muito piores?

- Como poderia esquecer?

- Achei simpático, entrei. Se estivesse com o Octavio, seria diferente, é


claro. - É claro. - Ele não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele. Acha que
deve oferecer à esposa todo conforto. Eu concedo a ele essa alegria, por que
não? - Onde ele está agora? - Tem uns assuntos no Porto.

O garçom chegou. Ela disse "Eu te amo" e circundou a mesa e se jogou


em seus braços. Poderia ter sido assim, por que não? O garçom derramou o
vinho nas tacas, pensando na namorada brasileira, se devia mesmo trazê-la e
morar com ela. Sempre há o receio de que estejam dando um golpe mas nao
parece ser o caso e ela é tão mais quente que qualquer portuguesa que ele
tenha namorado. E esse é também o problema. Andrei tocou na sua mao e ele
num susto ergueu a garrafa e a afastou da taca pequena e cristalina.

ANDREI OLHOU para o relogio. Identificou afinidades com seu


coraçao em pelo menos dois sentidos. Os abajures das mesas ao redor
velavam as conversas murmuradas. Era hora de Francesca pela rua em lento
declive chegar do pub. Aos ruídos óbvios da noite juntam-se as sombras nos
telhados. Contra o branco da parede ao lado as olheiras de Blandine estão
mais fundas e seus braços mais carnudos; a forma como depilava agora as
axilas era outra e a pele ali se tornara mais clara e não se pode imaginar que
ali um dia tenha havido pêlos. Há uma mulher de óculos à frente deles; uma
outra, de blusa vermelha, se aproxima da mesa ao lado sem dizer nada. Do
lado oposto um rapaz segurou os cabelos da namorada e quando soltou
voltaram aos ombros em câmara lenta e em câmara lenta ela se virou para ele
e lhe prometeu aquela noite enquanto os outros sorriam para a foto que
alguém irá bater. Blandine segura o antebraço esquerdo como de costume
quando está inquieta e não sabe o que fazer das mãos. Uma das moças ao lado
tapa o rosto e diz que está com a maquiagem borrada e não quer sair assim na
fotografia. A noite de agosto não é tão quente.

Ele pede para ela bater uma foto.

Passar-se-ão os anos.

Na pista de dança a moca que parecia mais velha mexe os ombros ao


acompanhar uma música que eles não ouvem. As mãos tricotando no ar.
Blandine diz que quer perguntar uma coisa. - Você esteve em abril, maio, em
Madrid?

- Podia jurar que era você.

- Entrou num hotel em Atocha.

- Deixei um recado na portaria.

- Estive mas não deram o recado.

- O que dizia?

- Foi me ver? Ainda me ama?

- Sou uma mulher casada.


Acima deles o cartaz do cine Éden anunciava vibrante o terceiro
Rambo, tremulando e estalando como uma imensa bandeira. Jovens vestidos
de negro subiam a ladeira da Glória a pé embora ainda fosse hora do
bondinho. O electrico está avariado, comentam os que passam. O céu
estrelado sobre eles.

Estão próximos à travessa da Boa Hora. O grupo passou e veio a idéia.


Por que não irmos- E dançarmos- Nada de adultério, só um passeio. Escutar o
fado. A bebida fazia efeito nos corações. Ela concordou, mas não deveria
esquecer que eram apenas bons amigos.

- Minha vida hoje é o Octavio.

Um beijo. Um beijo de consolação em meio aos sons da noite com


gosto de vinho entre o prazer do primeiro gole e a náusea disfarçada pelo café.
A nuca de Blandine fortuitamente exposta. Antes seus joelhos, numa curva do
táxi.

Ela entrou no saguão e apanhou sua chave na portaria. Tremia. Se ao


menos tivessem feito esse tipo de coisa mais vezes. Noitadas e sorvete, andar
de mãos dadas. Se as coisas não tivessem se resumido a tanto sexo...

Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores. Quantas vezes


ele me deu flores- Ele me deu flores alguma vez? Bombons? Ele esperou
alguns minutos na friagem que despertava o ouvido, resfolegando de
fraqueza. Caminhou e entrou.

Blandine está no quarto 203; Francesca acabou de entrar no 404. Ele


continuou subindo as escadas pesadamente até o quarto andar e depois desceu
descalço com os sapatos marrons de camurça gastos na mão esquerda. A porta
se abriu. Ângela está em seu próprio quarto, contíguo; Blandine recostada nos
travesseiros superpostos. O bebê dorme a seu lado. Andrei sentou na beira da
cama.

– É, eu sei, o Kleber me contou. Ela era minha segunda mãe.

Blandine diz “Você leva jeito. Olha só a carinha que ela fez”. “Que
neném mais linda que ela é”. Talvez tenha visto algum detalhe mas isso não
estaria certo. Então se calou diante do seio em que tantas... - Qual a idade
dela? – não deveria pairar nenhuma dúvida a respeito.

- Ela tem um ursinho de pelúcia. Você não pode adivinhar o nome dele.

- Posso adivinhar.

- O ursinho garante sonhos bons.

Sim. Por isso era tão fácil amá-lo nas noites. - Nas responsabilidades
cotidianas melhor não que não esteja por perto.

- Há tantas responsabilidades no seu cotidiano? Ela sabe o que estou


perguntando.

- Responsabilidade demais - disse ela. Não vou dizer o que ele quer
ouvir - É preciso ambição. Ter metas e lutar para atingi-las. Estou viva apesar
de todos os sonhos que ficaram para trás com sua partida de Piumhi. Estou
viva.

A mão de Blandine descansou na própria coxa. Dedos de asiática que


nao faziam sentido em suas mãos. -Questionamentos, o sentido da vida,
dilemas, poesia, tudo isso é retórico e irreal demais para se conciliar com os
dias e com o dia-a-dia real. Trabalho e subsistência, manutenção da saúde,
família. Ambição. De ter uma boa casa e comer bem e usufruir de lazeres
interessantes e ser respeitado na sociedade e (claro) viajar. Os
questionamentos e o sonho cabem bem na noite, como voce, como eu mesma
agora há pouco. Não nos dias. E o dia sempre chega.

- Quem sabe num livro - concluiu ela.

TUDO ACONTECIA tão rápido . A explosão hormonal subiu ao rosto


e o peso do útero desceu. Tanto xixi. O enjôo, a tontura, a fome, a falta de
fome. Coisa lunar, só podia ser. A crescente dizem é ótima para começos. O
desconforto, a dor nos seios, tanto chorava, inchava. Com o humor oscilava a
pressão arterial e as expectativas. O ardor da pele e o aumento da barriga.
Contaria. Estava excitada. Será ótimo. Se fosse menino, ia sugerir Diego. Se
fosse menina... Não.

BRUNA É um bebê muito meigo, bonita, inteligente. Mostra a foto


quando ela recém-nascera. - Estamos pensando em mandá-la para Londres
quando ela estiver na idade de escola. Octavio conheceu um casal de Finchley.
Estiveram lá em casa esses dias. Vão arranjar uma vaga, quando ela estiver na
idade.

- Um internato?.. - Porque não? Você mesmo viveu em um. - Eram


outros tempos.

– Decerto Bruna já mostrou interesse por piano. - Você está zombando,


Andrei; mas sei que no fundo se importa.

Ele não disse nada. Ela falou, quase para si mesma: - O que afinal você
faz na Europa?

- Escrevo um livro.

Bruna dormia para a parede. Voltou o rosto. - Olha. Não é igual


mamãe?

Ele não pôde verificar a semelhança. Bateram à porta.

- O senhor pode vir aqui um momento, se faz favor?

- Sim? - Andrei pisou fora da soleira e encostou a porta.

O porteiro sussurrava. Disse: - Sua mulher procurou o senhor várias


vezes.

- Minha mulher? – ouviu Blandine acarinhando Bruna.

- Ela está bastante perturbada, se me permite dizer - continuou o


porteiro. - O que devo fazer?
A fúria que o impulsionou escadas acima arrefeceu. Parou à porta ao
ouvir o sono de Francesca. Voltou às escadas. Desceu devagar. Entrou de
novo no quarto de Blandine. A água de uma descarga corria pela parede.
Ouviu o canto de pássaros e apesar da escuridão entendeu que a noite acabara.
Ela sussurrou. Estava quase dormindo. Ele queria dormir também. Deitou-se a
seu lado e ela recostou a cabeça em seu peito. Foi assim, uma distração do
destino.

Não deviam se expor assim. Ângela pode entrar. Esse jeito eu não
lembro.

DEZ HORAS da manhã no aeroporto.Enquanto esperam, o que fizeram


por cerca de meia hora, Andrei avistou um rosto conhecido.

Octavio viu dois. Abraçou Blandine e a beijou.Pegou Bruna de Ângela


para seu colo.

- Octavio,esse é o...

-Octavio?

Com uma risada discretíssima,Octavio perguntou, num português


carregado: -Vocês se conhecem?

– Vocês se conhecem? – repetiu Blandine.

Nunca fui de ir a festas no período de provas e não sei direito o que me


deu para naquele dia aceitar o convite de umas colegas de curso na
universidade. Além disso sempre fui muito cautelosa com relacionamentos
até aquela noite em queconheci Luis e aceitei sua sedução sem grande
resistência.Pode ser que eu quisesse essa realidade que temo e mais que tudo
abomino.Eu sabia por minhas amigas que ele havia herdado uns
apartamentos do pai e não fazia idéia do significado de especulação
imobiliária salvo o risco de ter uma vida confortavel e mal tive tempo de
tomar consciência das pessoas desalojadas de suas casas e tinha sido
introduzida no mundo de um conforto ainda mais duvidoso,o mundo do
usufruto econômico do vicio de outros. Logo eu que abandonei o curso de
teatro em Recife porque uns diretores inseriam cenas de nudez nas pecas sem
qualquer propósito alem da satisfação própria que provavelmente não
conseguiriam de outro jeito e a relação entre essas coisas eh isso, não a
nudez mas o u so da nudez para ganhar dinheiro; não ganhar dinheiro com
investimentos próprios num imóvel mas apostar no investimento de terceiros
na região em que esta localizado sem misericórdia de quem ali tenha
consfruido uma vida mas não pode Ra lutar com as grandes construtoras;e
não as drogas ilícitas em si mas o dinheiro do trafico.Nao tenho certeza mas
acho que comecei a me dar conta dessa contradição perversa que minha vida
se tornara quando Andrei bateu em minha porta procurando Luis.

-Acho que ele chega amanha ou depois.

-Sou o brasileiro que ele conheceu em Madrid.

-Claro! Ele falou muito acerca de ti..

Perguntei se ele estava a querer entrar no negócio e ele disse que


sim,infelizmente. Eu disse que ia arrumar a cama para ele no sofá. -
Nãoqueroincomodar. –Não é incômodo. Sou a Filomena.- Muito prazer. Luis
também falou muito de você.
Estava com Luis há quatro anos e nos dávamos muito bem e eu nunca
parei para pensar sobre a natureza do negocio. Mas em 1987 ele arrumou
uma cena no estrangeiro, na Itália, para lavar papel,eu acho.E suas
ausências comecaram a ficar mais longas. Não sou uma mulher ciumenta
mas aquilo parecia fora de quaisquer princípios .Para tudo há hum limite.

-Nós nos conhecemos em Madrid – disse Octavio – quando fui tratar


daqueles imóveis com o Paco, lembra?

- E você não sabe da coincidência maior- disse Blandine. Luis Octavio


ouvia atento.-Ele é o rapaz que eu namorava no Brasil. Aquele.

Portanto não era, por exemplo, um policial do Departamento de


Narcóticos se passando por viciado. O assunto naturalmente se afastando da
noite madrilena, de Gaia.

– Pois, chaval. Ela ficou louca porque descobriu que assumi com outra
(que aliás é brasileira também)um compromisso que ela esperava eu
assumisse com ela. – Eu não saberia viver sem Filomena .Seria capaz de
matá-la se ela me deixasse.

– Minha esposa, não a mataria.

- Eu nao saberia viver sem Filomena. Seria capaz de matá-la se ela me


deixasse. Minha esposa,não a mataria.
Um tempo depois que Andrei dormiu em minha casa, talvez um ano
depois, talvez mais, eu estava na cozinha separando uns temperos em potes
quando bateram na porta. Eram umas batidinhas frageis que mal se ouviam e
eu me assustei. Era ela.A crianca em seu colo balancava a cabeca como se
pedisse que tivesse calma, quen ao fizesse nenhum mal para elas. Eu jamais
faria. Nao foi uma historia agradavel de se ouvir mas eu podia entender o
que ela estava passando. Podia entender completamente.

-Encontraram seu endereco nas coisas dele. Pensei que talvez pudesse
saber alguma coisa.

Fui pegar agua com acucar para ela. Ela nao parava de tremer.
Peguei a crianca no colo Eu sentia como se tivesse perdido alguma coisa e
ao procurar tivesse achado outra, muito mais importante. Ela falava baixo
com se pedisse desculpas e era mesmo um tipo de desculpas mas nao
precisava. Ela tinha sofrido muito mais do que eu, que afinal de contas nunca
fiz nada na vida ou deixei de fazer por causa de homem. Vim a trabalho,
fiquei por causa de trabalho. Todas as promessas que Luis me fez e tambem
as que nao dez mas eu propria tinha imaginado na minha cabeca, nada se
cumpriu. No Porto pode se dizer que o custo de vida é baixo e a vida cultural
intensa sem contar que pude escolher as disciplinas e sobretudo havia aulas
em inglês. Por isso quis fazer aqui o intercâmbio. A vida quase bucólica e a
educação das pessoas me fez ficar. Em Lisboa se algo assim acontecesse
talvez eu tivesse mesmo ultrajada que continuar com um homem para nao
passar fome ou vender o meu corpo. Nao sei alias qual é a diferenca entre
essas situacoes. Talvez a prostituição seja menos ultrajante, nao sei nem
quero pensar a respeito. O fato é que eu a compreendia, compreendia
completamente. Mas nao iria aa procura de outro homem como ela esta
fazendo. O fato eh que gostei dela e a menina eh tao pequena e tao linda e
merece ter a chance de um começo de vida digno. Ajudar a mae com a
viagem eh o minimo que eu podia fazer. Talvez eu tambem devesse voltar
para Pernambuco. Talvez devesse. Luis eh o tipo de homem que cedo ou
tarde irá atrás cometer uma violencia. Mas viu correr o risco. E o filho é dele
tambem. E ele nao precisa saber sobre Blandine, do mesmo jeito que durante
todo esse tempo eu não sabia. Um pouco antes que ela partisse, comemos um
bacalhau com crosta de broa e fiz francesinha com pouco molho para ela
levar As crianças brincando no chão era bonito dever. Eu nao posso julgá-la
As pessoas são diferentes. E ela nao tem preguiça de trabalhar isso nao da
pra dizer, que ela se meteu nessa situação por preguiça. Durante o almoço
ela me convidou para ficar na casa dela em Minas, trabalhar com ela, ajudá-
la a tocar a fazendinha. Olha, cheguei a pensar em ir. Talvez fosse melhor,
inclusive pro meu filho. Mas foi muito difícil vir e muito difícil conquistar
tudo que conquistei e no final das contas as atividades do Luis foram mais
motivo de constante inquietação do que segurança financeira. Não devo
absolutamente nada a ele.

Vou ficar. Mas entendo ela. Entendo completamente.

No piso espelhado diante de vitrines luminosas pessoas se cruzam e se


esbarram como num jogo dramático íntimas pelos pés em sandálias e as
mulheres pelos ombros nus. Fragmentos de frases.

O verde e negro dos táxis. A luz dos letreiros nas vidraças escapa
sobre a fila sinuosa. A jovem de short com o joelho apoiado na bagagem. A
bermuda do rapaz se confunde com o vermelho da fita divisória. O olhar
amarronzado de Luis.

–Querida, está na nossa hora - aproximou-se e a beijou.- Adoro-te!-


completou baixinho.

Ela apertou a mão de Andrei e recebeu Bruna do marido, que a


abraçou.–Adeus!

O estalido da mudança de minuto estala no relógio. Luis Octavio e


Blandine com Bruna no colo se aproximam do embarque e Sandrine os segue
serenamente submissa. Uma familia. Andrei os olhava por cima de uma
grande mala vermelha num carrinho de bagagem e a visão escurecia o mundo.
Quando se aproximavam do avião a menina viu os braços que se agitavam e
junto aos sinais Andrei gritou alguma coisa.

Acordei de madrugada gritando num pesadelo. Chorava. Sentei-me


na cama e vi as horas no luminoso vermelho do despertador. Calcei os
chinelos e levantei, fui ate ha janela e acendi um cigarro e na primeira
baforada tive o esboco de decisoes importantes para o dia seguinte. Sou um
homem publico, um empresario, um politico. Lutei muito para chegar à
minha posição. Tive as oportunidades que o mundo democratico proporciona
e não as desperdicei. Sempre fui grato e generoso com os que de alguma
maneira me auxiliaram na escalada. Nunca fiz de conta que não conhecia
alguém. Crescia nas campanhas eleitorais em virtude de minha opção pelos
pobres. Sou um patrao que trata os empregados como seres humanos e um
homem que cre na educacao como o unico caminho para o desenvolvimento
de um pais. Porque então acordo de noite gritando?

António parece rude mas é confiavel. Bem, ele na verdade é rude.

- Eu mudei,doutor. Quero umamulher. Quero ser um homem de


respeito. Quero conquistá-la.

-Vou dizer duas coisas, António: Primeiro, você não é nsubstituível.Não


vou ameaçá-lo com seu passado, pois seria uma ameaça para mim mesmo,
estamos juntos nesse barco. Mas se você morrer,quemchorará? E se você
morrer hoje mesmo eu chamei a meu escritório um rapaz, um brasileiro.Tudo
o que ele quer é um trabalho. Ou ainda menos, um livro publicado. Estou
pensando seriamente. Não faça que me sinta desconfortável.

Eu estava tomando banho. Tinha esquecido o pesadelo. Tinha


esquecido de António. Estava cantarolando. Esse Andrei no fim das contas
tinha caído do céu.Eu estava cheio de planos e daqui a segundos não serei
mais. Estava tomando banho,feliz, quando vi o vulto e dentro em pouco não
verei mais nada, nunca mais.

O hotel em Madrid era um bom lugar para trabalhar mas no prédio em


Lisboa eu ganharia mais e teria ainda outros benefícios, então eu fui e acho
que foi uma decisão acertada; acho que o que aconteceu naquela noite
poderia ter acontecido em qualquer lugar, inclusive no hotel. Não tive medo.
Hoje estou assustado sim mas porque num país que não e violento possa
acontecer esse tipo de coisa. –Imagino que todos os assaltos se pareçam e
todas as invasões de domicilio.

– O assaltante não teria de passar pela portaria? –perguntou o


policial. –Não necessariamente – disse o porteiro. -Poderia, por
exemplo,estar no carro de um morador.

Atenção daqui pra frente comparar com texto sem separação no final e arquivo antigo e
FRAGMENTOS FINAIS.doc

Atravessou a transversal. Passou por uma cabine telefônica e pela


Estação Areeiro. Entrou num barzinho da Almirante Reis. Havia ficado numa
pensão cuja referência era a Igreja dos Anjos. No dia em que alugou o quarto,
esse mendigo pediu um cigarro nessas mesmas escadas. É esse homem.Chega
a ressonar nas escadas aquecido pela sopa da Assistência Social. Deu uns
cinco passos e tomou um gole no bebedouro. Enxugou os lábios e a barba
com a manga.

O prédio está imerso num efeito sombrio de aquarela. Desceu nos


Anjos. O vento encanado dos subterrâneos. Passageiros esparsos na
plataforma. Apanhou o trem. Jogava dum lado para outro na dança de truques
e trilhos. Estados Unidos. Saiu.
A lua bate num telhado a noite ali se condensa enquanto a sombra
repete a nuvem. Na segunda hora da terceira sessão a pesada porta se abriu.
Pessoas entrando e saindo esbarram na funcionária. Apagam-se as luzes de
novo. Pernas vacilantes, desconforto, dor de cabeça, espasmo extrapiramidal,
o ouvido eterno, a dor na coluna, a fraqueza mórbida. Eram os dias em que o
papa João Paulo II excomungou o bispo. O chiado do rádio ficou para trás
quando ele se aproximou da janela. O assoalho estalava sob seus passos.
Raios revelavam o pó que seus movimentos levantam. O sino badalou na
noite e sagraria a noite enquanto vibrasse.

A cabine

- Querido!

Elo inquebrantável, Francesca e Andrei se encontraram de madrugada.

Som forte de chuva.

-Mulher tu não sabes!

Risadas altas. Francesca.

- Vou ter que caminhar até a pensão debaixo dágua.

- Poderia pedir boléia - argumentou a amiga.

- Não pegaria bem.

- Ai que esse brasileiro é uma doença, mulher!

Acabara de sair do pub, ligou avisando.


Sobre a suave aspereza do cobertor, as mãos ágeis e ardorosas. A roupa cheirava bem, pela bondade
de funcionários do comércio que permitiam os banheiros e pela dona da pensão que deixou que usasse a
máquina e o varal.

Os fios de cobre, encostados na janela, não haviam chamado a atenção da vez anterior.

Ela está linda assim toda produzida. Está feliz.

Ele abraçou o corpo molhado. Como ela se calará se ele não a beijar?

- Senti tanta tanta saudade, querido! pensei que não te veria nunca mais!

As mulheres vivem em chamas. Elas sabem o caminho.

Os dias passam. Agosto chega e nada muda. De novo juntos na pensão. Ele escrevia e cuidava dos
afazeres domésticos.

- Estás estranho, estou a me preocupar, está tudo bem, amor?

- Sim, claro - disse ele. - Tudo muito bem.

Costumava dormir oito da noite. Acordava à meia-noite. Acordava, se arrumava e ia buscá-la.

Quando voltavam e ela logo adormecia. Lá pelas quatro da manhã, refugiava-se na varanda. Nas
madrugadas em que Francesca dorme ou naquelas em que a leva ao longo da Avenida Liberdade, nos bares
do parque até fecharem, na volta da avenida no inicio da noite ou a esperando à saída, indo e vindo pela
avenida esvaziada, escrevia desesperadamente pelo direito de escrever a palavra Fim.

A avenida iluminada como quando voltava outro dia com Blandine.

- Vê como o meu italiano está ótimo? - disse Octávio. Putana! Acaso achou que não percebi?

Seu rosto no espelho da penteadeira, Francesca se perguntou o que fazia num relacionamento que da
fidelidade de antemão havia prescindido. Não se incluía no rol das mulheres que se conformam em estar com
um homem dividido, que ama outra, das mulheres que toleram a relação assim maculada. No inicio, quando
soube de Blandine, pensou que fosse apenas uma forma de ele se defender da existência de Franco.

Na verdade, quando soube, pouco se lhe deu. Andrei, era apenas uma aventura, como os outros.
Olhou-se mais, fundamente. De seus olhos, a lâmpada escorria pelo quarto. Talvez verdadeiramente o
amasse e precisasse dele para ser feliz; e Blandine passou a ser ameaça à felicidade.

Então ela dormiu pensando que, a partir do dia seguinte, seria a mais amável das mulheres.
Controlaria seu gênio, seu ciúme, seu desejo. Tentaria descobrir onde havia no sentimento dele a mágoa de
Blandine e se superaria para agir de modo oposto.

Mas não se mostrará subserviente. Não se deixará envolver por suas emoções. Esse tipo de coisa —
essas pequenas determinações — são eficientes mas pouco perduram, pensou Andrei pela avenida.

Queria paz com Francesca; era o que restava. E ela estava disposta.

Irá encarar seus defeitos, ser positiva, otimista, alegre. Conseguirá outro emprego.

Devotar-se-á. Por amor dele e dela mesma, que teria assim ao lado o seu homem, inteiro. Parará de
se comparar com outras mulheres: aquela é mais magra, essa tem um bom salário, o trabalho dessa outra não
é estressante.

Agora ele pensa que ela dorme.

Ao amanhecer, com a camiseta rosa e o par de tênis novo, daria sozinha uma caminhada até a
empresa de Cintia.

- Claro que sou capaz! Claro que aceito! obrigado, obrigado! — disse Francesca, feliz como uma
criança.

- Te espero então amanhã - disse Cíntia no abraço.

O mundo era belo e da beleza do mundo ela se impregnou.

Dormiu.

Ao aproximar o rosto do rosto dela não sentiu o familiar alento e sentiu um calafrio. Não levava a
sério quando Francesca dizia sofrer do coração, pois ela era muito hipocondríaca.
- É claro que seu coração sofre: sofre por me amar!

Segue-se o ritual. Chama por ela, sente o pulso, cobre os lábios dela com a mão direita. Fim do
ritual. A transitoriedade se transforma em imortalidade. Descanse, então. Que o hades seja um lugar melhor.

Soube na recepção que ele também deixara o hotel no dia em que ela saiu. Foi ao Palácio Foz, à
Universidade, à Fundação, a todos os lugares mencionados desde que se encontraram na sala de TV. Nada.
Na policia tampouco. Ficaram com o telefone dela, para o caso de alguma novidade. No consulado disseram
que oficialmente ele jamais esteve em Portugal. E ela? Estava com a situação regularizada? Blandine
empurrou o funcionário e saiu. Começou a se desesperar.

Chegara de Trieste, pela manhã. Quando decidiu vir a Lisboa, não pretendia abandonar o marido.
Havia justificado a necessidade da viagem dizendo que não era justo que Andrei ignorasse acerca de Bruna.
Estava certa de que Luis Octavio compreenderia. Estava errada.

Luís não imagina que ela terá essa coragem. O alerta se acende quando Michel o visita no
escritório.

- Negócios ilícitos? Ora, não me aborreça! Aliás, fique quietinha e arrume tuas coisas. E se me
denunciar nem vai ter tempo de se arrepender.

- Você está fora de si, Octávio.

Estava fora de si, responde ele, quando não percebeu que ela apenas o usara para ter uma vida
confortável na Europa. - Sua puta! Vagabunda!

Blandine está próxima da janela. Venta muito. É possível que neve, mais hoje mais amanhã.

- Aliás, salvei a vida desse veado e agora ele cospe no prato. E por causa de uma putinha que nem
você. Vocês se merecem! Agora some!
Em Lisboa, antes de procurar Andrei, ela vai para o quarto de hotel. Está exausta. A menina ressona.
Deita-a e fecha as cortinas, depois se deita ela própria e fecha os olhos.

Eram três horas da madrugada. Ela se virou de lado, de frente para a lua pela fresta da cortina. O
peso da cabeça afunda o travesseiro. Houve então o silêncio pleno que liga um dia ao outro.

Desci as escadas com os olhos ardendo por ter chorado tanto. Bati a porta da dona da pensão, bati,
bati. Não atenderam. Sai sem destino pelas ruas de Lisboa.

Ao atravessar a praça da igreja, ali estava ele. Não o reconheci a principio, de terno e gravata. Com
ele, dois sujeitos igualmente elegantes. Vendo-os, veio a velha vontade de ser normal, próspero, feliz.

Pedi fogo.

- Mas claro! És um gajo queimado.

Ao sinal, os dois outros o agarraram e levaram para o beco. Um dava pontapés; o outro, socos no
ouvido. Afinal ele não teria a chance de saber se era eficaz a receita de Beatrice, dissolver camomila em óleo
de cozinha, coar e pingar umas duas gotas.

— É um anti-inflamatório natural.

E para os males do tratamento anterior com antibióticos, própolis e muito sol antes das nove e
depois das três. E abusar de iogurte.

Do galinheiro, Blandine escutou o choro da filha. Correu, atravessou a horta, chegou ao lugar onde
a menina estava.

- Mamãe, se Deus realmente ouvisse as orações, o gatinho não teria morrido.

A menina orara por ele a noite inteira.


- Deus deve ter coisas mais importantes com que se preocupar.

A mãe sentiu o choque. Novamente o corpo.

Debruçada sobre o animalzinho, diz à filha que traga leite pois o gatinho estava vivo. Bruna
obedece, tremula de expectativa. Blandine usufrui o momento de tornar a presenciar os acontecimentos.

- Mami! ele tá bebendo!

Blandine agora deve voltar ao trabalho. A chuva parara.

Ainda bem. A umidade é ruim para o gatinho doente.

O mendigo fazia sinais. O guarda se limita a olhar. O homem atravessa a avenida. Há firmeza nos
passos andrajosos.

- Ali, nos fundos do prédio!

Sim. Realmente. O corpo ensanguentado. Logo as sirenes. Aumentam. De todos os lados. Os carros
da televisão chegam ao local da tragédia.

- Aqui, aqui!

- Que horas são?

Amanhecia.

Como assim Não venham para a Baixa? E que caminho vou tomar?

O rio. Uma mulher acena. — Oh meu Deus! Que horror...

- O que é isso, está louco?

Outro carro e outra manobra arriscada. Mais bombeiros.


Ah se você soubesse, se ela soubesse — Tomás dizia — o quanto ele a amava e o quanto a vida
passara a valer a pena desde que a conheceu. Isabelle sabia, ela sentia o mesmo.

- Nunca acreditei que isso pudesse acontecer.

Estavam mesmo mais e mais apaixonados. Mas agora ela está triste por causa de sua mãe, uma
mulher generosa, mas não tinha sorte no amor, sempre atrás de relacionamentos impossíveis. Tomás pára e
pensa em dizer alguma coisa mas não diz nada é o tipo do assunto. E como sempre acontecia depois desses
silêncios, eles se beijaram e de tudo se esqueceram.

Mesmo se estivessem atentos à TV e tivessem o pronunciamento do presidente da União Europeia,


não teriam pensado no amigo.

O fogo se reanima e alastra ao fundo da rua Garret. A tóxica fumaça se concentra na zona do
Camões. Todos os haveres do homem estão ali, milhares de contos incinerados.

- Está lá? Quem? A neta? Um brasileiro?

O homem segura o pulso da esposa.

- Mulher, não sabemos.

- Sim sabemos.

- Querida...

- Me deixa!

O homem se afasta, deita-se no sofá; num instante estará dormindo. Acordaram muito cedo, como já
não costumavam acordar desde que se mudaram para Póvoa.

- Acalme-se, minha senhora,

O cenário é dantesco, mas isso é tudo.

Um homem pára agora e se inclina no miradouro. Lá embaixo o bombeiro vai entrar por uma janela,
a água das mangueiras como uma chuva de filme. Parece que o vento está mudando. Súbito a cinza é varrida
em rodamoinhos. Muito plástico por aqui. Uma profissão dessas.
O homem no miradouro vê que o bombeiro já entrou, imagina como conseguirá respirar naquele
inferno e pensa em sua própria vida. Jamais devia ter se aproximado daquela mulher, sempre soube o que
acontece quando um homem se envolve com essas mulheres de pub.

Cíntia inclina um pouco o pescoço para ver pela janela do carro. Lembra-se. Francesca não morava
aqui perto?

Alguém começa a tossir. Dá para ouvir de dentro da sala da pensão onde a mulher fala ao telefone.

- Aquele rapaz não foi para lá, aquele que teu marido hospedou uma época?

- As pessoas aí no Brasil se iludem, a situação em Portugal não é bem assim, sobretudo em relação a
emprego.

A fumaça entra com maior intensidade, o homem tosse mais alto e ao desligar o telefone a mulher
vai à janela e fecha a fresta que havia.

O homem não gosta de acordar tão cedo, está com um mal humor dos infernos. Vê a mulher no
carro, avalia o quanto é bonita. Acha que a viu no pub. Mas parece uma mulher fina, não é possível que
trabalhe ali, um ambiente no mínimo tão masculino.

Quando os carros se cruzam, escuta a voz, é contralto, combina com ela, mas parece que fala de
outra dimensão. Diz para o homem que está dirigindo que ele não se preocupar, tudo vai ficar bem, eu
mesma tratarei de tudo. Lá fora o fogo crepita ao fundo da chegada ruidosa de mais um carro dos bombeiros
ao sul do elevador de Santa Justa.

Focos de fumaça súbitos ressurgem em labaredas.

- Calma, calma.

A mocinha conforta a senhora, passando a mão pelos cabelos dela.

- Minha filha o que será de mim?

Sua loja estava a arder.


-Deixem-me passar! - gritou o homem com a cabeça para fora do carro.

- Aguente firme, já vai chegar ajuda.

Outra explosão. Pode ser gás ou um aparelho de ar condicionado.

Na pensão o telefone não pára. - Não, ele não voltou, deve chegar logo. De nada. Na verdade, a
proprietária não sabe a que horas ele voltará, nem mesmo se tinha saído. Repete-se, enfadada. - Não, não
está.

- Sim, um jornal do Brasil.

- Senhor, o senhor sabe que horas são aqui?

Uma hora dessas e o número não pára de dar ocupado. Maria das Dores teria uma oferta irrecusável,
caso tivessem atendido. Mas não é tão grave, há montes de jornalistas por aqui; cobrarão mais, mas é um
momento único, vale a pena.

De longe e do alto, do castelo de São Jorge por exemplo, a visão parecia maquete a que uma criança
tivesse deitado talcos. O vento sopra em direção ao sul. Umas quatro e meia da manhã. O inferno em directo
da rua Garret. Os prédios cospem labaredas.

- Agora vou pá li a ver se de facto.

Mas não, não dá para entrar pela Rua do Carmo.

A fumaça aumentou e há pouco as chamas tornaram a lavrar no primeiro quarteirão à esquerda. Os


prédios cospem labaredas, o rio ao fundo. Um ardor imenso e ruidoso. Que cenário!

Como chegou a tanta amargura esse homem que dá a impressão de ter sido outrora feliz? Bruna se
pergunta por que tanta dor, por que erra assim, sem amigos, por que não tem descanso exceto talvez essas
horas que passa no cybercafé.

O terror noturno todas as noites. O terror, a vontade de morrer. Tenta pensar que logo, quando
amanheça, estará lá, perto dela, que tanto o ajudou no comecinho, quando nada sabia sobre computadores.

Além das seis horas na loja, ela trabalha como voluntária. Sua roupa é simples, muito limpa. Não
usa maquiagem. E o homem outrora feliz está por assim dizer esfarrapado — não tem proteção social, não
tem renda ou trabalho. Mas a culpa é dele mesmo.
Ela não entende nada dessas coisas

Algo os une. Bruna. É esse seu nome, ontem ele ouviu alguém dizer. Cheia e forte, contornos
forjados pelo trabalho doméstico, talvez até na roça. E, como a massa de pão, será coberta e crescerá. De
noite ele a cobrirá também, caso ela se descubra. Fica observando como ela dorme, tão serena. A filha que
não teve, a mulher que fugiu. Nem a presença súbita do noivo para buscá-la o desperta. Ela está ainda
deitada, um ligeiro tremor nos olhos fechados, depois vai até ele, que está lendo na sala, e lhe dá um
beijinho no rosto. Tem um copo de leite nas mãos, pergunta se ele quer também.

Bruna o vê, a rua escurecida, o dia ofegante, os efeitos da insônia. Ninguém à volta deles. Não, não
há esperança. Ele é a rua, o cansaço, o sono que não concilia; ela, a loja, o trabalho, a luz.

— Oi, como vai o senhor?

Eram vinte para as cinco, quando o homem se deu conta, era numa montra, num buraco, não pela
janela - pela montra - tem essas montras corridas, o senhor sabe, e aquilo era tipo duma turbina que estava a
puxar o fumo para fora, antes dessa hora não percebi nada, quem chamou os bombeiros foi o polícia lá de
serviço, mais ou menos cinco para as cinco, mas os bombeiros só chegaram entre cinco e um quarto e cinco e
vinte. Quando lá chegaram o fogo já estava em grandes proporções, os armazéns praticamente destruídos.

- Aqui, aqui!

- Deus de misericórdia, o corpo está todo queimado...

- Vai ficar tudo bem. Já está chegando ajuda.

O que esse senhor está dizendo? já o vi por aqui.

- Calma, vai ficar tudo bem - repete o mendigo.

Não consegue articular palavra, quer perguntar o que é essa claridade, esse sangue, mas não
consegue

- Não fale - diz o mendigo. O policial se agacha e repete


- Não fale. A ambulância já vai chegar.

Em algum momento começou a se ouvir o murmúrio das tempestades que se tornam chuva, após a
ventania e as trovoadas. O momento em que o fogo abranda e se percebe que legara faces fantasmagóricas
aos edifícios. As pessoas atingidas devem se dirigir às juntas de freguesia, entrar em contato com a Câmara
Municipal ou com a Casa de Misericórdia. Podem eventualmente olhar para trás.

O homem não faz idéia do que ainda pode acontecer. Nada de nada, não vi o administrador, não vi
ninguém; do total eram quinhentos ou seiscentos empregados dos armazéns, ninguém sabe o que será deles;
mas pelo menos ninguém morreu, quero dizer, aquele vigia parece que não resistiu às queimaduras, e aquele
bombeiro, mas enfim, é pouco pelo que poderia ter sido — como se a tragédia pessoal fosse um mal menor,
como se males pudessem ser menores porque atingiram um número menor pessoas.

Lisboa, as velhas casas de Alfama. Sobre o rosto transparente e o sol nos cabelos negros, os frames
na janela do carro com destino ao cais se multiplicavam com os números do taxímetro. O Tejo passa do lado
esquerdo, se confunde com a bruma, retira contornos, perde-se na transitoriedade do motor e na pele de
Blandine. As mãozinhas de Bruna aparecem no reflexo e se penduram na blusa azul esgarçada. Logo
descansariam, descansariam em casa. Na mochila umas poucas roupas, cadernos e blocos de notas. Poemas,
artigos, crônicas, um diário e até o esboço de um romance, manuscrito.

Quando despertou, o sol oblíquo traçava um caminho desde a janela sobre o berço até a porta,
chegando quase ao fogão, junto à lenha. Ela herdara a terra e possuía quatro mil pés que ela mesmo plantou.
É ela quem decide se vai ter uma poda ou o tipo de capina. Faz o trabalho todo da lavoura, das carpas até as
colheitas, a adubação, tudo é ela que faz. De seu jeito exigente resulta um café de melhor qualidade. Uma
vez a terra não estava produzindo; devido à sombra, as folhas estavam velhas. Aí a gente tira, disse ela, e vai
dar mais força para a planta. Naquele ano, produziu trinta sacas. O processo da industrialização agrega valor
ao produto. Ela seleciona os melhores e a torra é leve, quando o café é bom não precisa queimar. Não fica
amargo. É suave e tem um fundinho adocicado.

O calor das lembranças vivifica os pés de café, à luz do dia pleno cintilando, rios verdes que
sombreiam as ruas de café à frente. Do delírio europeu se originou essa realidade de que seus olhos podem
ser editores; cada flor invisível na mata possui um aroma, uma beleza e um significado. Na ultima curva há a
visão da luz enquadrada na janela ao longe. A terra exala cheiros de amada satisfeita. Outros pingos
tamborilam no telhado a percussão de uma remota cantiga infantil. Um sentimento fecundo se reflete nas
poças e no riacho — as águas, as águas — as águas correndo límpidas entre a florescência, levando as folhas
do bosque para a cidade. Um dia, a ausência consentirá na sinfonia que só ali existe. O vento leva o que se
vê e verá o vento quando não mais a olho humano for possível — quando as folhas secas, partidas,
misturarem-se ao pó. E a vida gesticulará em ciclos como notas de suítes assistidas pelo tempo. E o tempo
caminhará largo para a eternidade, vendo a vida como a vê um adágio.

Os apanhadores de café subiam na carreta engatada ao trator, prontos para mais um dia de trabalho,
em meio à algazarra com que zombavam da faina diária. Ao avistarem a mulher e sua filha, calaram-se.
Depois que elas passaram, até não mais que pontos no pó da estrada, emaranharam-se num crescendo os
mexericos.

Uma lenda se fizera em torno da mulher por causa de seu isolamento desde que voltou com a criança
da viagem misteriosa e foi viver na chácara de seu pai — sozinha, exceto pela menina e os bichos. Com sua
loucura. Sua história, os camponeses adaptavam à própria capacidade de compreensão, o que multifacetava a
lenda. Mas em nenhuma versão se achava a verdadeira historia.

E os jovens ou os velhos, os nativos ou os aventureiros do café, os que pensavam de um modo ou


de outro e falavam de diferentes maneiras — todos concordavam em que havia na mulher uma aura de
pérola.

O trator começa a se deslocar e nas conversas outros temas se entrecruzam. A luz da manhã se
derrama na bruma sobre os cafezais — a manhã se derrama, como todas as manhãs. E todas as águas — todos
os oceanos do mundo e todos os riachos do bosque —, todas as águas sobre a face da terra entendiam.

E o universo.

Em 2008, no dia de seu aniversário, tão logo Isabelle desligou, o telefone tocou. Não é possível.
Mas reconhecia a voz, se reconhecia nela. E quem fala um inglês tão peculiar? Lágrimas azuis como há vinte
anos naquela plataforma.
Vosges. Ele não vê ninguém, exceto pelo ruído das pedrinhas, mais perto cada vez, mais perto cada
vez. Sente a mão em seu ombro. Levanta-se e a acompanha. A noite desce no frio de dezembro.

Não percebem o quanto andaram, ou percebem, mas passam pelo prédio — estão quase na ponte. O
rio ao anoitecer, um cenário esperado.

As nuvens passam mas as ruas estão vivas. Eles não dizem nada. Não dizem nada há vinte anos.

FIM

@2017

RicardodeAlmeidaRocha

Atravessou a transversal. Passou por umacabinetelefônicae

pelaEstaçãoAreeiro. Entrounum barzinhodaAlmiranteReis.Havia

ficadonumapensãocujareferênciaeraaIgrejadosAnjos.Nodiaem

quealugouoquarto,essemendigopediuum cigarronessasmesmas

escadas.Éessehomem.Chegaaressonarnasescadasaquecido

pelasopadaAssistênciaSocial.Deuunscincopassosetomouum

golenobebedouropúblico.Enxugouoslábioseabarbacom amanga.

Oprédioestáimersonum efeitosombriodeaquarela.Desceunos

Anjos.Oventoencanadodossubterrâneos.Passageirosesparsosna
plataforma.Apanhouotrem.Jogavadum ladoparaoutronadançade

truquesetrilhos.EstadosUnidos.Saiu.

Quegentetodaéessaempurrandopedrascom ospeitosem

carneviva,uivandodedor,expoentesoutrora-Aluabatenum telhado

eanoitealisecondensaenquantoasombrarepeteanuvem.

Nasegundahoradaterceirasessãoapesadaportaseabriu.

Pessoasentrandoesaindoesbarram nafuncionária.Apagam-sea

luzesdenovo.Pernas vacilantes,desconforto,dordecabeça,

espasmoextrapiramidal,oouvidoeterno,adornacoluna,afraqueza

mórbida.

Eram osdiasem queopapaJoãoPauloIIexcomungouobispo.

Oschiadosdorádioficaram paratrásquandoeleseaproximava

dajanela.Oassoalhoestalavasobseuspassos.Raiosrevelavam opó

queseusmovimentoslevantam.Osinobadalounanoiteesagrariaa

noiteenquantovibrasse.

Saiueentrounacabinetelefônica.-Querido!

ParameumaridotínhamosdetrocaroPortoporLisboa.Acho
queoverãomaisquenteemaissecoqueonormalafetavaseu

discernimentoporqueocalorfazisso.Achoquedevetersidopor

issoporquederestoestávamosbem.Gentequeprecisadeumpouco

defrioedechuvaparapensaresentircomclareza.Eeledisseque

eraumaprendaqueiamedardeaniversário. Eláfuieufazeras

malas,porqueconheçoogajoeéimpossíveltirarumacoisaqueele

pôsnacabeça.SemcontarqueelenempensounaPSPquedepoisde

16dejulhoachaquetemdeseraguardiãdatodasascoisas enem

todasascoisasnapensãosãotãovirtuosas.

Diadessesumaamigafoidetidaporquegeriamaisqueuma

pensãooualgumacoisaquesequererapensão.Acontecedevezem

quando.Mesmoqueeunãofossepresa,nãoqueropassarorestoda

vidaindotodasemanameapresentaràsautoridades,nãoiapegar

nadabemetenhoumareputaçãoazelar.Maseleparecequesóestá

pensandoemcoisasclássicasemodernasemumamesmacidadeou

oslugareshistóricosouandarapéouosespaçosverdeseavida

cultural,essetipodecoisa.Nuncadeveriatermecasadocomum
ativistaintelectualmasdemoreiaentender.Enuncadeveriaterme

casadocomumbrasileiroqueéativistaeintelectual.Também

acontecedevezemquando.Enãosócomumamulherdopovo

comoeu.Aquelaitaliana,porexemplo. Mulherelegantérrimade

gênioforteetodaviaescravaservindodetapeteeescada.Enãoacho

sequerqueogajofossebonitoecomcertezanãoerarico.Simpático

nomáximomasissoéclaro quenãobasta.

NaquelediaestavafazendovinteeoitograusemLisboa.Eram

8emeiadanoiteeaindanãotinhaescurecido.Duranteodia,o

melhorquempudesseeraseaproximardorioecolocarospésna

água.Eraoqueelecostumavafazersobretudoquandovoltavade

algumadasmuitascaminhadasoudaBaixaparaosAnjosoudos

CorreiosparaoParqueEduardoVIIoudoBairroAltoparaos

restauradores.Naquelediatinhacaídoenãotinhacertezadomotivo

daquedamascaíraepareciaterquebradoomindinhomaspreferiu

antesdohospitalpassarnumacabinetelefônica.

–Mulhertunãosabes!

–Vouterquecaminharatéapensãodebaixodágua.
–Poderiapedirboléia–argumentouaamiga.

–Nãopegariabem.

–Aiqueessegajoéumadoença,mulher!

Acabaradesairdopub,ligouavisando.

Otalbrasileirovoltousozinhoeficousozinhoduranteuma

semanamasdecertonãosuportouafaltadaboavidaporquea

italianaapareceudiasdepois,nodiaexatoemquemeumarido

resolveuapendênciadonúmerodeidentificaçãofiscaleda

autorizaçãoderesidênciaeeuestavademuitobomhumoremedei

aesseluxoderepararnogajo.Senãoestouenganada,eraramente

estou,chegueiavê-lohánãomuitotemponumatascadaPascoalde

Melocomumalouraoxigenadaeumoutrocasalquefalavafrancês.

Éclaroque,senãobastassesersustentadoporumamulher,sequer

comogratidãolheerafiel.

Sobreasuaveasperezadocobertorasmãoságeiseardorosas.Aroupa

cheiravabempelabondadedocomércioquepermitiaosbanheirosepela

donadapensãoquedeixouqueusasseamáquinaeovaral.Osfiosdecobre,

encostadosnajanela,nãohaviamchamadosuaatençãodavezanterior.
Assimquesevirameledissecomoelaestava lindaassim toda

produzidaElarespondeuéporqueestáfeliz.Eleabraçouocorpomolhado.

-Sentitantatantasaudade,querido!penseiquenãoteverianunca

mais!

Asmulheresvivem em chamas.Elassabem ocaminho.

Osdiaspassam.Agostochegaenadamuda.Denovojuntosna

pensão.Eleescreviaecuidavadosafazeresdomésticos.-Estásestranho,

estouamepreocupar.Estátudobem,amor--Sim,claro-disseele.-Tudo

muitobem.

Costumavadormiroitodanoite.Acordavaàmeia-noite.Acordavae

searrumavaeiabuscá-la.

Quandodeitavam,elalogoadormecia.Eleialápelasquatrodamanhã

paraavarandacomocaderno.Nasmadrugadasem
queFrancescadormiaou

naquelasem quealevavaaolongodaAvenidaLiberdade,nosbaresdo

parqueatéfecharem,navoltadaavenidanoiniciodanoiteouaesperando

àsaída,indoaindanotumultoevindopelaavenidaesvaziadaeleescrevia

pelodireitodeescreverapalavraFim.
Aavenidailuminada.Comoquandovoltavanooutrodiacom Blandine.

-Vêcomoomeuitalianoestáótimo--disseOctávio.-Puttna!

Acasoachouquenãopercebi-

Seurostonoespelhodapenteadeira,Francescaseperguntouoque

fazianum relacionamentoquedafidelidadedeantemãohaviaprescindido.

Nãoseincluíanoroldasmulheresqueseconformam em estarcom um

homem queamaoutrae toleram orelacionamentoassim maculado.No

inicioquandosoubedeBlandine,pensouqueeraumaformadeelese

defenderdaexistênciadeFranco.

Naverdade,quandosoubepoucoselhedeu.Andreieraumaaventura

comoosoutros.Olhou-sefundamente.Deseusolhos,alâmpadaescorria

peloquarto.Talvezverdadeiramenteoamasseeprecisassedeleparaser

feliz;eBlandinepassouaserameaçaàfelicidade.

Entãoeladormiupensandoqueapartirdodiaseguinteelaseriaa

maisamáveldasmulheres.Controlariaseugênioeseuciúme,eseudesejo.

TentariadescobrirondehavianosentimentodeleamágoadeBlandineese

superariaparaagirdemodooposto.

Nãosemostrarásubserviente.Nãosedeixaráenvolverporsuas
emoções.Essaspequenasdeterminaçõessãoeficientesporumtempomas

poucoperduram --pensavaAndreipelaavenida.Queriapazcom
Francesca

eelaestavadisposta.

Iráencararseusdefeitos,serpositiva,otimista,alegre.Conseguirá

outroemprego.Devotar-se-á.Poramordeleedelamesmapoisassim teria

aoseuladooseuhomem,inteiro.Pararádesecompararcom outras

mulheres:aquelaémaismagra,essatem um bom salário,o trabalho

dessaoutranãoéestressante.

Agoraelepensaqueeladorme.

Aoamanhecer,com acamisetarosaeopardetênisnovo,daria

sozinhaumacaminhadaatéaempresadeCintia.

-Claroquesoucapaz,Cintia!Claroqueaceito!obrigado,obrigado!-

disseela,felizcomoumacriança.

-Teesperoentãoamanhã-disseaoutraaoseabracarem.

OmundoerabeloedabelezadomundoFrancescaseimpregnoue

dormiu.

Aoaproximarorostodorosto,elenãosentiuofamiliaralentoesimo
propriocalafrio.Nãolevavaasérioquandoeladiziasofrerdocoração,ela

eratotalmentehipocondríaca. -Éclaroqueseucoraçãosofrepormeamar!

Segue-seoritual.Chamaporelaesente-lheopulsoecobreosseus

lábioscom amãodireita.Fim doritual.Atransitoriedadesetransformaem

imortalidade.Descanse,então.Queohadessejaum lugarmelhor.

Eusoubenarecepçãoqueeletambémdeixaraohotelnodiaemque

euviajeicomOctavio.FuiaoPalácioFozeàUniversidade,àFundaçãoe

todososlugaresmencionadosdesdequenosencontramosnasaladeTV.

Nadadenada.Napoliciatampouco.Eutinhaficadonomesmohoteleeles

ficaramcommeutelefone.Noconsuladodisseramqueoficialmenteele

jamaisesteveemPortugal.-Easenhora-Estahcomasituaçãoregularizada-

-escuteiasecretariadoconsuleoempurreiesaí.Comeceiamedesesperar

masestavaexaustademaisequandoBrunadormiueudormitambem.

TinhachegadodeTriestepelamanhã.QuandodecidivirparaLisboa,

nãopretendiaabandonaroLuis.Haviajustificadoanecessidadedaviagem

dizendo amimmesmaquenãoerajustoqueAndreiignorasseacercade

Bruna.

Eunaoimaginavaqueelativesseessacoragem.Oalertaseacendeu
quandoMichel veioaomeuescritório.

-Negóciosilícitos-Ora,nãomeaborreça!Aliás,fiquequietinhae

arrumetuascoisas.Esemedenunciarnem vaitertempodesearrepender.

-Vocêestáforadesi,Octávio.

Estavaforadesi,respondeele,quandonãopercebeuqueela

apenasousaraparaterumavidaconfortávelnaEuropa.-Suaputa!

Vagabunda!

Blandineestápróximadajanela.Ventamuito.Épossívelqueneve

maishojemaisamanhã.

-Aliás,salveiavidadessepaneleiroeagoraelecospenopratoque

comeu.Eporcausadeumaputinhaquenem você.Vocêssemerecem!

Agorasome!

Desciasescadascomosolhosardendoporterchoradotanto.

Batiaportadadonadapensão,bati,bati.Nãoatenderam.Saisem

destinopelasruasdeLisboa.

Demoreiparameligaremquenaopodia,quetinhaa

obrigacaopordemaisterrenaquesaoosmortos.Precisavadescobrir

ondeficavaoRegistoCivil,enaofaziaideiaseeraigualo
procedimentoquandosetratavadeestrangeirosenumhorarioem

quetudoestavafechado.Talveznumhospitalhouvesseumsetor.

Emqualquerhospital- EFrancescanaoeraestrangeira.Sequerera

Francesca,masFrancisca.Emeocorreuquedeveriaterinsistidona

portadadonadapensao,certamenteeladeveriaatestaroobitoe

suascondicoes.Talvezapolicia.Adelegacianaofecha.Soubeque

naoquandofomospegosnometrocombilheteforadavalidade.

Deveriatersimplesmentechamadoumaambulanciaenaoter

confiadonosteoricamentepateticos oupateticamenteteoricos

conhecimentosdeumjornalista.

Aoatravessarapraçadaigreja,aliestavaele.Nãooreconheci

aprincipio,deternoegravata.Comele,doissujeitosigualmente

elegantes.Vendo-os,veioavelhavontadedesernormal,próspero,

feliz.

Pedifogo.

-Masclaro!Ésum gajoqueimado.

Aosinal,osdoisoutrosmeagarraramelevaramparaobeco.

Umdavapontapés;ooutro,socosnoouvido. Afinaleunãoteriaa
chancedesaberseeraeficazareceitadeBeatrice,dissolver

camomilaemóleodecozinha,coarepingarumasduasgotasparaa

otite.

-Éumanti-inflamatórionatural.

-Eparaosmalesdotratamentoanteriorcomantibióticos,

própolisemuitosolantesdasnoveedepoisdastrês.Eabusarde

iogurte.

Dogalinheiro,Blandineescutouochorodafilha.Correu,atravessoua

horta,chegouaolugarondeameninaestava.

-Mamãe,seDeusrealmenteouvisseasorações,ogatinhonãoteria

morrido.

Ameninaoraraporeleanoiteinteira.

-Deusdevetercoisasmaisimportantescom quesepreocupar.

Amãesentiuochoque.Novamenteocorpo.

Debruçadasobreoanimalzinho,dizàfilhaquetragaleitepoiso

gatinhoestavavivo.Brunaobedece,tremuladeexpectativa.Blandineusufru
i

omomentodetornarapresenciarosacontecimentos.
- Mami!eletábebendo!

Blandineagoradevevoltaraotrabalho.Achuvaparara.

Aindabem,pensou.Aumidadeéruim paraogatinhodoente.

Omendigofaziasinais.Oguardaselimitaaolhar.Ohomem

atravessaaavenida.Háfirmezanospassosandrajosos.

-Ali,nosfundosdoprédio!

Sim.Realmente.Ocorpoensanguentado. Logoassirenes.

Aumentam.Detodososlados.Oscarrosdatelevisãochegam aolocalda

tragédia.

-Aqui,aqui!

-Quehorassão-

Amanhecia.

Comoassim "Nãovenham paraaBaixa-",pensouomotorista,"Eque

caminhovoutomar-"

Orio.Umamulheracena.--OhmeuDeus!Quehorror...

-Oqueéisso,estálouco-

Outrocarroeoutramanobraarriscada.Maisbombeiros.

Ahsevocêsoubesse,seelasoubesse,Tomásdizia, oquantoelea
amavaeoquantoavidapassaraavalerapenadesdequeaconheceu.

Isabellesabia,elasentiaomesmo.-Nuncaacrediteiqueissopudesse

acontecer.

Estavam mesmomaisemaisapaixonadosmasagoraelaestátriste

porcausadesuamãe,umamulhergenerosa,masnãotinhasortenoamor,

sempreatrásderelacionamentosimpossíveis.Tomáspáraepensaem

dizeralgumacoisamasnãodiznadaéotipodoassunto.Ecomosempre

aconteciadepoisdessessilêncioselessebeijaram edetudose

esqueceram.

Mesmoseestivessem atentosàTVetivessem ouvidoo

pronunciamentodopresidentedeJaquesDelors,nãoteriam pensadono

amigo.

OfogosereanimaealastraaofundodaruaGarret.Atóxicafumaça

seconcentranazonadoCamões.Todososhaveresdohomem estão ali,

milharesdecontosincinerados.

-Estálá-Quem-Neta-Um brasileiro-

Ohomem seguraopulsodaesposa.

-Mulher,nãosabemos.
-Sim sabemos.

-Querida...

-Deixa-meempaz!

Ohomem seafastaesedeitanosofá.Logoestahdormindo.

Acordaram muitocedo,comojánãocostumavam acordardesdequese

mudaram paraPóvoa.

-Acalme-se,minhasenhora...

Ocenárioédantesco,masissoétudo.

Um homem páraagoraeseinclinanomiradouroealaembaixoo

bombeirovaientrarporumajanela.Aáguadasmangueirascomouma

chuvadefilme.Parecequeoventoestámudando.Súbitoacinzaévarrida

em rodamoinhos.Muitoplásticoporaqui.Umaprofissãodessas.

Ohomem nomiradourovêqueobombeirojáentroueimaginacomo

conseguirárespirarnaqueleinfernoepensaem suaprópriavida.Jamais

deviaterseaproximadodamulher,sabe-seoqueacontecequandoum

homem seenvolvecom essasmulheresdepub.

Cíntiainclinaum poucoopescoçoparaverpelajaneladocarroese

lembra-se.Francescanãomoravaaquiperto-
Alguém começaatossir.Dáparaouvirdedentrodasaladapensão

ondeamulherfalaaotelefone.

-Aquelerapaznãofoiparalá,aquelequeteumaridohospedouuma

época-

-AspessoasaínoBrasilseiludem comessahistoriadedentistae

jogadordefutebol.Asituaçãoem Portugalnãoébem assim.

Afumaçaentracom maiorintensidadeeohomem tossemaisaltoe

aodesligarotelefoneamulhervaiàjanelaefechaafrestaquehavia.

Ohomem nãogostadeacordartãocedoeestácom um malhumor

dosinfernos. Vêamulhernocarroeavaliaoquantoébonita.Achaquea

viunopub.Pareceumamulherfina.Naoépossívelquetrabalheali.

Quandooscarrossecruzam,escutaavoz.Contralto.Combinacom

elamasparecequefaladeoutradimensão.Dizparaohomem queestá

dirigindoe queelenãosepreocupe.Tudovaificarbem,eumesmatratarei

detudo.Ofogocrepitanopanodefundodachegadaruidosademaisum

carrodosbombeirosaosuldoelevadordeSantaJusta. Focosdefumaça

súbitosressurgem em labaredas.
-Calma,calma!

Amocinhaconfortaasenhorapassandoamãopeloscabelosdela.

-Minhafilhaoqueserádemim-

Sualojaestavaaarder.

-Deixem-mepassar!-gritouohomem com acabeçaparaforado

carro.

-Aguentefirme...Jjávaichegarajuda

Outraexplosão.Podesergásouum aparelhodearcondicionado.

Napensãootelefonenãopára.-Não,elenãovoltou,devechegar

logo.Denada.Naverdade,aproprietárianãosabeaquehoraselevoltará,

nem mesmosetinhasaído.Repete-se,enfadada.-Não,nãoestá.

-Sim,um jornaldoBrasil.

-Senhor,osenhorsabequehorassãoaqui-

Umahoradessaseonúmeronãopáradedarocupado.Mariadas

Doresteriaumaofertairrecusável,casotivessem atendido.Masnãoétão

grave,hámontesdejornalistasporaqui;cobrarãomais,maséum

momentoúnico,valeapena.
Delongeedoalto,docastelodeSãoJorgeporexemplo,avisão

pareciamaqueteaqueumacriançativessedeitadotalcos.Oventosopra

em direçãoaosul.Umasquatroemeiadamanhã.Oinfernoem directoda

ruaGarret.

-Agoravoupáliaversedefacto.

Masnão,nãodáparaentrarpelaRuadoCarmo.

Afumaçaaumentouehápoucoaschamastornaram alavrarno

primeiroquarteirãoàesquerda.Osprédioscospem labaredas.Orioao

fundo.Um ardorimensoeruidoso.Quecenário.

Eumepergunteicomochegouatantaamarguraessehomem quedáa

impressãodetersidooutrorafeliz- porquetantador,porqueerraassim

sem amigos,porquenãotem descansoexcetotalvezessashorasque

passanocybercafé.

Oterrornoturnotodasasnoites.Oterror,avontadedemorrer.Tenta

pensarquelogo,quandoamanheça,estarálápertodelaquetantooajudou

nocomecinho,quandonadasabiasobrecomputadores.

Além dasseishorasnaloja,elatrabalhacomovoluntária.Suaroupaé
simplesemuitolimpa.Nãousamaquiagem.Eohomem outrorafelizestá

porassim dizeresfarrapado. Nãotem proteçãosocialnemtem rendaou

trabalho.

Masaculpaédelemesmo.

Elanãoentendenadadessascoisas

Maseusintoquealgonosune.Bruna.Éesseseunome,ontem euouvi

alguém dizer.Cheiaeforte,oscontornosforjadospelotrabalhodoméstico,

talvezaténaroça.Comoamassadepão,crescerá.Taoserena..Afilhaque

nãotive.

Nemapresençasúbitadonoivoparabuscá-laodesperta.Ela

vaiatéele,queestálendonasala,elhedáumbeijinhonorosto.

Temumcopodeleitenasmãos,perguntaseelequertambém.

Brunaoviunaruaescurecida.Ninguém àvoltadeles.Não,nãohá

esperança.Eleéaruaeocansaço,osonoquenãoconciliaeelaaloja,o

trabalhoealuz.-Oi,comovaiosenhor-

-Boanoite.Vocetambemmoraporaqui-

Eram vinteparaascinco,quandoohomem sedeuconta.Eranuma


montra,num buraco,nãopelajanela-pelamontra.Tem essasmontras

corridas,osenhorsabe,eaquiloeratipodumaturbinaqueestavaapuxaro

fumoparafora,antesdessahoranãopercebinada.Quem chamouos

bombeirosfoiopolícialádeserviço,maisoumenoscincoparaascinco,

masosbombeirossóchegaram entrecincoeum quartoecincoevinte.

Quandoláchegaram ofogojáestavaem grandesproporções,osarmazéns

praticamentedestruídos.

-Aqui,aqui!

-Deusdemisericórdia...

-Vaificartudobem.Jáestáchegandoajuda.

Oqueessesenhorestádizendo-jáoviporaqui.

-Calma,vaificartudobem -repeteomendigo.

Nãoconseguearticularpalavra,querperguntaroqueéessaclaridade,

essesangue,masnãoconsegue

-Nãofale-dizomendigo.Opolicialseagachaerepete:-Naofale.

-Aambulânciachegou-dissealguemnaruavaziaesilenciosaexcetopela

sirene.
Em algum momentocomeçouaseouviromurmúriodas

tempestadesquesetornam chuvaapósaventaniaeastrovoadas.O

momentoem queofogoabrandaesepercebequelegarafaces

fantasmagóricasaosedifícios.Aspessoasatingidasdevem sedirigiràs

juntasdefreguesia.Entrarem contatocom aCâmaraMunicipaloucom a

CasadeMisericórdia.Podem eventualmenteolharparatrás.

Ohomem nãofazidéiadoqueaindapodeacontecer.Nadadenada,

nãovioadministrador,nãovininguém;dototaleram quinhentosou

seiscentosempregadosdosarmazéns,ninguém sabeoqueserádeles;

maspelomenosninguém morreu,querodizer,aquelevigiaparecequenão

resistiuàsqueimaduras,eaquelebombeiro,masenfim,époucopeloque

poderiatersido,diz.Comoseatragédiapessoalfosseum malmenore

malespudessem sermenoresporqueatingiram um númeromenorpessoas.

Lisboa,asvelhascasasdeAlfama.Sobreorostotransparenteeosol

noscabelosnegros,osframesnajaneladocarrocom destinoaocaisse

multiplicavam com osnúmerosdotaxímetro. OTejopassadolado

esquerdoeseconfundecom abrumaeretiracontornos.Perde-sena
transitoriedadedomotorenapeledeBlandine.AsmãozinhasdeBruna

aparecem noreflexoesependuram nablusaazulesgarçada.Logoelas

descansariam,descansariam em casa. Namochilaumaspoucasroupase

cadernoseblocosdenotas.Poemaseartigos,crônicaseum diárioeatéo

esboçodeum romance,manuscrito.

Quandodespertou,osoloblíquotraçavaum caminhodesdeajanela

sobreoberçoatéaporta,chegandoquaseaofogão,juntoàlenha.Ela

herdaraaterraepossuíaquatromilpésqueelamesmoplantou.Éela

quem decidesevaiterumapodaouotipodecapina. Fazotrabalhotodo

dalavoura,dascarpasatéascolheitaseaadubação,tudoéelaquefaz.De

seujeitoexigenteresultaum cafédemelhorqualidade.Umavezaterranão

estavaproduzindo;devidoàsombra,asfolhasestavam velhas.- Aía

gentetira-disseela- evaidarmaisforçaparaaplanta.Naqueleano,

produziuoitomilsacasesohnaolucroumaisporqueaindausavaapanhadore
se

naocolhedeiras.Masoprocessodaindustrializaçãoagregavaloraoproduto
e

elaselecionaosmelhoreseatorraéleve,quandoocaféébom nãoprecisa
queimar.Nãoficaamargo.Ésuaveetem um fundinhoadocicado.

Ocalordaslembrançasvivificaospésdecafé.Aàluzdodiapleno

cintilando-riosverdesquesombreiam asruasdecaféàfrente.Dodelírio

europeuseoriginouessarealidadedequeseusolhospodem sereditorese

cadaflorinvisívelnamatapossuium aromaeumabeleza,um significado.

Naultimacurvaháavisãodaluzenquadradanajanelaaolonge.Aterra

exalacheirosdeamadasatisfeitaeoutrasgotastamborilam notelhadoa

percussãodeumacantigainfantil.Um sentimentofecundoserefletenas

poçasenoriacho-aságuas,aságuas-aságuascorrendolímpidasentrea

florescêncialevandofolhasefloresdobosqueparaacidade.Um diaa

ausênciaconsentiránasinfoniaquesóaliexiste. Oventolevaoquesevê

everáoventoquandonãomaisaolhohumanoforpossível:quandoas

folhassecasepartidasmisturarem-seaopó.Eavidagesticularáem ciclos

comonotasdesuítesassistidaspelotempo.Eotempocaminharálargo

paraaeternidade,vendoavidacomoavêum adágio.

Osapanhadoresdecafésubiam nacarretaengatadaaotrator

prontosparamaisum diadetrabalhoem meioàalgazarracom que


zombavam dafainadiária.Aoavistarem amulheresuafilhaelessecalaram.

Depoisqueelaspassaram atésetransformarememnãomaisquepontosno

pódaestrada,emaranharam-senum crescendoosmexericos.

Umalendasefizeraem tornodamulherporcausadeseuisolamento

desdequevoltoucom acriançadaviagem misteriosaefoivivernachácara

deseupai,sozinha,excetopelameninaeosbichosesualoucura.Sua

históriaoscamponesesadaptavam àprópriacapacidadedecompreensão,

oquemultifacetavaalendamasem nenhumaversãoseachavaa

verdadeirahistoria.

Eosjovensouosvelhos,osnativosouosaventureirosdocafé,os

quepensavam deum modooudeoutroefalavam dediferentesmaneiras,

todosconcordavam em quehavianamulherumaauraterriveldepérola.

Otratorcomeçouasedeslocarenasconversasoutrostemasse

entrecruzaram.Aluzdamanhãsederramavanabrumasobreoscafezais,

sederramava,comotodasasmanhãs.Etodasaságuasetodosos

oceanosdomundoetodososriachosdobosque-todasaságuassobrea

facedaterraentendiam.
Eouniverso.

Em 2008,nodiadeseuaniversário,tãologoIsabelledesligou, o

telefonetocou.Nãoépossível.Masreconheciaavoz,sereconhecianavoz.

Equem falaum inglêstãopeculiar-Lágrimasazuiscomohávinteanosna

plataforma.

Vosges.Todaessagente.Elenãovianinguém excetopeloruídodas

pedrinhasmaispertocadavezmaisperto.Sentiuasmãosem seuombro.

Levantou-seeaacompanhou.Anoitedescenofriodedezembro.

Nãopercebem oquantoandaram,oupercebem,maspassam pelo

prédio.Estãoquasenaponte.Orioaoanoitecer.

Asnuvenspassam masasruasestãovivas.Elesnãodizem nada.Não

dizem nadahávinteanos.

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