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SÃO LUÍS
2015
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SÃO LUÍS
2015
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122f. : Il.
Impresso por computador (fotocopia)
Orientador: Alexandre Guida Navarro
Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado em História
Social da Universidade Federal do Maranhão, 2015.
CDU
4
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Alexander Guida Navarro(Orientador)
Universidade Federal do Maranhão
________________________________________________
1° EXAMINADOR
________________________________________________
2° EXAMINADOR
5
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
.The study of gangs in this time requires patience, dedication and courage.
These three practical foundations were essences for the progress of this research,
which was conducted through interviews with former taggers ludovicenses 1990s and
printed material of that historical period and place cited. In the current study, we seek
to discuss about the graffiti in the city of St. Louis in the 1990 decade, and how this
application on walls and canopies of that city is seen through the eyes of taggers and
local journals. Thus, understanding that an academic work requires theoretical
contributions, the related research was supported in urban anthropology Joseph
Magnani, in the analyzes of youth gangs Miriam Abramovay and Glory Diogenes, in
oral history and cultural history of Sandra Pesavento Urban in order to make a
consistent and compatible arguments with the latest historiographical discussions.
FOTO 4 – Reportagem sobre pichação como sujeira pública. Fonte: jornal O Estado
do Maranhão............................................................................................................104
10
LISTA DE SIGLAS
CE- Ceará...............................................................................................................
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 14
4.5 Quando a marca vira gangue de pichadores: o caso de Augusto três .. 108
1INTRODUÇÃO
“Mas me diz uma coisa: o que tu ainda quer com isso? Deixa isso pra lá!
Quem foi preso foi, quem morreu e quem tá quer esquecer disso”. Esta foi a
declaração proferida por Augusto três, na primeira entrevista formal que foi realizada
com ele. Em uma análise preliminar, para um mestrando em História, a indagação
do entrevistado teria uma resposta simples, isto é, porque isso é História! Porém, no
que diz respeito às testemunhas oculares do evento, o fato de recordar e narrar este
processo histórico se torna uma questão delicada e até mesmo difícil de ser
relembrada.
No que concerne ao tema deste trabalho, frisa-se que a pichação é
situação cotidiana em minha vida desde quando eu cursava a 5ª série na Unidade
Escolar General Artur Carvalho, localizada no Bairro de Fátima, em São Luís. Em
qualquer canto da escola, eram visíveis as marcas de identificação das galeras de
pichadores. Mas somente na 7ª série, no ano de 2001, que despertou uma espécie
de curiosidade, mesclada com uma sensação de “estranheza” e medo à pichação,
após um episódio.
O fato aconteceu no turno matutino, quando ocorria uma reunião rotineira
entre pais e professores, no instante que os alunos saíam da unidade de ensino, por
volta das 9h30. A minha sala de aula, de nº 302, era formada em sua maioria por
integrantes de gangues, dos quais muitos eram pichadores. Nela, havia um aluno de
nome Wescley, de 13 anos, que riscou a pichação de outro aluno, chamado Nitão,
do Centro de Ensino Médio Gonçalves Dias1, que fica em frente àquela escola.
Assim, os alunos estavam agrupados na porta da escola, aguardando o
fim da reunião. Nitão, que teve sua pichação “queimada”2, esperava Wescley, o
autor da façanha. O matriculado do Gonçalves Dias estava acompanhado de cerca
de cinco rapazes; todos munidos com pedaços de madeira e uma arma branca. Em
seguida, ocorreu o conflito, sendo que Wescley sofreu perfurações nas regiões do
fígado e rim. À época, ele não morreu, mas possui sequelas decorrentes do
1
A escola fica localizada na Avenida Kenedy.
2
Termo do grupo de pichadores referente à riscar a pichação de outro pichador.
15
atentado. A partir daquele dia, percebi que pichar significava muito mais que uma
óbvia inscrição em paredes.
Em 2011, anos após o referido episódio, iniciei a minha pesquisa
monográfica, que discorre sobre os Garotos da Bota Preta3 (GBP), sempre
recordando o desentendimento que culminou na agressão física ao estudante do
Artur Carvalho. Durante o levantamento de dados para o meu trabalho, observei a
grande quantidade de matérias em jornais veiculados em São Luís enfatizando a
pichação e a consequente preocupação do poder público em combatê-la. Embora
procurasse reportagens sobre o grupo Garotos da Bota Preta (GBP), eu me
deparava com textos jornalísticos abordando a pichação. Desse modo, cataloguei
matérias acerca desta temática, a fim de, em momentos posteriores, realizar um
trabalho abordando a pichação.
O desejo acadêmico e individual em pesquisar sobre a temática foi
reforçado depois de o professor Flavio Soares4, orientador da minha monografia,
pontuar algumas questões e, simultaneamente, realizar indagações pertinentes
referentes à pichação ludovicense. Uma de suas colocações foi a seguinte: “Onde
está essa galera toda da década de 1990 que pichou a cidade quase toda?! Eu me
lembro que a cidade era quase toda pichada!”5.
Logo após a defesa do meu trabalho de conclusão da graduação,
disponibilizei a monografia em formato virtual6, numa tentativa de expandir as
produções acadêmicas para além das fronteiras da Universidade. Então, houve
comentários de leitores que se indagavam sobre a pichação em São Luís da década
de 1990, mencionando pichadores como Augusto Três, Lando, Pastor, Cacau e
Black. Explicitamente, eles desejavam ser informados e esclarecidos sobre a
situação atual dessas pessoas.
Portanto, convém salientar que a motivação surgiu após as ponderações
do professor Flávio e os comentários nas redes sociais. Contudo, a faltava a
oportunidade, que se concretizou com o mestrado em História na UFMA. Na
elaboração do projeto para ingresso no processo seletivo do referido programa de
pós-graduação stricto sensu, planejei de maneira sistemática e coerente um possível
3
Monografia apresentada em 2011 pelo curso de História da Universidade Federal do Maranhão.
4
Docente do curso de História da Universidade Federal do Maranhão.
5
Tradução que fiz da frase do professor Flávio Soares.
6
Costa, Antônio Marcos Melo. Os garotos da Bota Preta: entre práticas de visibilidade pública e de
delinquência, 2011. Disponível em http://www.ebah.com.br/content/ABAAAe_RYAC/gangue-bota-preta
16
7
Localizada na avenida Ivar Saldanha.
17
procura e entrevistei Costelo. Este transmitiu que Augusto Três poderia ser
encontrado a poucos metros do local em que conversávamos.
Assim, soube que ele trabalhava próximo de onde ocorria a entrevista
com Costelo. Consegui, então, o número do celular de quem eu procurava e agendei
uma conversa. No entanto, houve muitos desencontros. Em duas ocasiões, falei ao
telefone com um rapaz no qual eu acreditava ser Augusto Três. Por alguns
momentos, concluí que o ex-pichador estava se esquivando da entrevista. Dúvida
esta que se dissipou quando ele me ligou, perguntando sobre o porquê eu não
comparecia aos locais sugeridos para o diálogo entre nós, explicando que, na
verdade, o autor deste trabalho conversava ao celular com um companheiro de
trabalho dele, cujo nome é similar ao seu.
A aguardada entrevista se concretizou em meados de junho de 2013,
sendo que ocorreram três conversas; o que me possibilitou o levantamento de
informações e dados referentes à pichação em São Luís na década de 1990 e,
também, sobre a percepção que a mídia inferia sobre sua imagem enquanto
pichador e membro de uma gangue. Mas ele não foi o último a ser entrevistado para
a pesquisa, pois ainda mantive contato com Kaká e Júnior Enrolado. Conheci este
casal ao comentar acerca da minha dissertação com uma professora, que declarou
ter dois amigos, hoje cônjuges, que foram grandes pichadores daquele período.
Então, entrevistei ambos, em dias distintos. Durante os diálogos, a filha
deles, de 14 anos, contribuiu ao comparar a época juvenil dos seus pais com a atual.
Percebi, naquele momento, que não havia segredos na referida família no que
concerne à temática da minha dissertação, isto é, Kaká e seu marido interagiam com
a adolescente suas vivências na década de 1990 em São Luís. Isto, portanto, para
mim, era um fato inédito em meus estudos práticos sobre pichação e gangues, uma
vez que, desde a minha monografia, os entrevistados escondiam de seus filhos o
que fizeram enquanto integrantes de “gangues”8.
Depois de Kaká e Júnior Enrolado, ainda entrevistei dois de meus amigos,
Rataí e Dost. Descobri, por meio das conversas informais, que eles também eram
atuantes como pichadores da década de 1990 e ponderei que seria relevante
entrevistá-los. Dos meus diálogos com Dost, deduzi que ele se sentia satisfeito por
ter sobrevivido naquela fase de sua mocidade, agradecendo, de maneira explícita,
8
Será problematizado de forma mais detalhada o uso e abuso do conceito “Gangue” para as Ciências Humanas.
18
por estar vivo. Já Rataí demonstrou ter vivenciado uma etapa juvenil da qual soube
usufruir dos momentos, mas alertou que eles devem ser observados como “fases”,
onde não é recomendável se tornar estático, senão “você vira paisagem” (Rataí,
2014).
Prosseguindo o processo de entrevistas para a pesquisa, encontrei um ex-
integrante do grupo Mensageiros de Cristo (MC). Ele pediu sigilo em seu nome e
alcunha no trabalho, embora tenha contribuído para o assunto abordado nesta
dissertação. Salienta-se que a conversa foi marcada por momentos de tensão, tendo
em vista que o entrevistado, a quem denominei de Anônimo MC, deduzia que eu
fosse agente do sistema de segurança pública do Maranhão.
Por fim, entrevistei Pernambuco e Pig City, ambos em suas residências. O
primeiro se mostrou arrependido por sua vivência juvenil ter sido marcada pela
pichação; o que levou a concluir que, caso pudesse retornar àquela época, se
comportaria de outra maneira. Com PigCit, por sua vez, que era grafiteiro, e, não,
pichador na década 1980, me possibilitou analisar a pichação a partir do prisma do
grafite. Ao entrevistá-lo, senti como se estivesse assistindo a um filme narrado em
primeira pessoa, com imagens e palavras interagindo em minha mente, de forma até
emocionante.
Assim, as entrevistas com ex-pichadores da década de 1990 na capital
maranhense foram bastante úteis, embora eu não tenha conseguido conversar com
outros personagens marcantes da época no que diz respeito às inscrições em
prédios públicos e privados ludovicenses. Dessa forma, ocorreram muitos percalços
em minha pesquisa, como ocorre em todas, exemplificados por pessoas que se
recusaram a manter contato sobre o assunto em questão. Nesses instantes, percebi
que era o momento de parar e planejar alternativas e escolher outras fontes.
desistir de entrevistá-lo. Concluí que ele resistia em não resgatar seu passado;
demonstrado desde o primeiro dia em que o encontrei.
Depois de Loro, entrevistei Pernambuco, ex-integrante da gangue “Ratos
do Barulho” (RB), que me disponibilizou contatos de outros ex-membros desta
“galera”, que foram procurados no bairro da Divineia, que fica perto do Sol e Mar, e
no município de Raposa. Nessas áreas, as pessoas realizaram declarações como
“eu não sou essa pessoa que tu tá procurando” e “quem foi que te disse que eu fui
da RB?”. Outros dois resistiram, apesar de eu explicar os pormenores da pesquisa.
Soube, então, de outras pessoas que poderiam contribuir para esta
dissertação, mas fui aconselhado pelos entrevistados a não procurá-los. Nesta linha,
citaram Nanda Kiss, com quem gostaria de conversar, a fim de examinar a visão
feminina sobre a pichação. O diálogo com ela, porém, não se concretizou, pois me
relataram que Nanda evitava falar sobre o assunto, devido a situações das quais a
possível fonte demonstrava não querer recordá-las.
Esta entrevista seria importante porque forneceria uma visão mais
aprofundada da vivência feminina no que tange à pichação. Além dela, não foram
possíveis conversas com Lando e Pastor, que, segundo opinado por ex-pichadores
entrevistados, estavam no mesmo patamar de Augusto Três. Frisa-se que eles não
são descritos na pesquisa, na parte das entrevistas, devido a informações distintas
transmitidas pelas fontes sobre suas situações atuais. Salienta-se, contudo, que os
procurei, mas não os localizei, pois determinadas pessoas comentaram que ambos
já estavam mortos e outras disseram que eles haviam migrado da capital para o
interior maranhense ou demais estados da federação.
Assim, entre encontros e desencontros, a pesquisa foi realizada. Destaca-
se, como ponto positivo, no que diz respeito à sua redação, a produtividade de
informações e, também, o aspecto emotivo manifestado durante as entrevistas.
Entretanto, convém ressaltar que um trabalho acadêmico que tem como
componente a oralidade não é possível somente por meio de entrevistas, como,
também, a partir de uma abordagem teórica e metodológica que guie a escrita, a fim
de se obter a configuração sugerida para uma produção universitária; o que é
tratado a seguir.
Como abordado, uma parte considerável deste trabalho foi feita tendo
como base as entrevistas realizadas com os ex-pichadores. Assim, pelo uso deste
tipo de fonte, para fins históricos, esta pesquisa se inscreve nos domínios da
chamada História Oral. Mas, pelo tipo de tratamento dado a essas fontes,
relacionando-as com outras, a dita pesquisa passa a ser categorizada como fazendo
parte do ramo da Nova História Cultural.
O trabalho em questão tem como alicerce metodológico o campo
historiográfico denominado de Nova Historia Cultural (BURKE, 2005), em especial
um dos seus desdobramentos, a História Cultural do Urbano (PESAVENTO, 1995) e
a abordagem da Antropologia Urbana (MAGNANI, 2002). Já como técnicas, a fim de
tecer uma melhor compreensão das fontes, tem-se a análise do discurso produzido
pela mídia escrita e a história oral, sobretudo, em relação aos informantes orais.
A chamada Nova História Cultural é datada do final da década de 1980 e
se caracteriza por novas abordagens no seio da História. Dentre essas abordagens
tem-se a chamada História das Cidades, que tem como preocupação, “[...] as
subculturas urbanas, em particular com a cidade grande como palco que oferece
muitas oportunidades para a apresentação ou mesmo a reinvenção do eu [...]”
(BURKE, 2005, p. 69).
Neste sentido, como forma complementar e desenvolvida da História das
Cidades, tem-se a História Cultural do Urbano que, de acordo com a historiadora
Pesavento (2005), teria como função resgatar os inúmeros discursos sobre a “cidade
do desejo”, a cidade que se quer elaborar e as representações sobre aqueles atores
e práticas que devem ser excluídos deste projeto. Dessa forma, Pesavento (1995, p.
284)aponta que
Ler a cidade dos excluídos, pobres e marginalizados conduz o historiador a
‘escovar a história a contrapelo’, como diz Benjamim, buscando os cacos,
vestígios ou vozes daqueles que figuraram na história como ‘povo’ ou
‘massa’ ou mesmo que se encontram na contramão da ordem, como
marginais
[...] observa-se a ausência dos atores sociais [nos estudos sobre a cidade].
Tem-se a cidade como uma entidade à parte de seus moradores: pensada
como resultado de forças econômicas transnacionais, das elites locais, de
lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros
fatores de ordem macro; parece um cenário desprovido de ações,
atividades, pontos de encontro, redes de sociabilidade. [...] Já os moradores
propriamente ditos, que, em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade,
estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., constituem o elemento que em
definitivo dá vida à metrópole, não aparecem, e quando o fazem, é na
qualidade da parte passiva (os excluídos, os espoliados) de todo o
intrincado processo urbano [...]
9A Escola de Chicago teve suas origens nos Estados Unidos, na década de 1910, por iniciativa de
professores americanos de Sociologia da Universidade de Chicago. Por esse termo, entendesse um
conjunto de trabalhos de pesquisas sociológicas realizados no período compreendido entre 1925 e
1940, por professores desta localidade. Sua maior relevância foi no campo da criminalidade, ao trazer
discussões sobre a temática das gangues como fruto da desorganização social. Essa escola foi,
também, responsável por um estudo mais detalhado a respeito de fenômenos sociais que ocorriam
na parte urbana das metrópoles norte-americanas, devido ao aumento na imigração para o centro e
sul dos Estados Unidos (BECKER, 1996).
25
Por outro lado, Szacher (2012, p. 24) aponta outro aspecto ao tratar das
inscrições em paredes públicas e privadas da cidade de Nova Iorque, em 1965
Esse ato de pichar muros como sinal de protesto também foi utilizado no
Brasil, sendo difundido no período da ditadura militar (1964-1985), e, de acordo com
Sousa (2007, p. 10), essa “[...] prática fora utilizada como veículo de contestação do
regime e eraabsolutamente intolerada [...] pelo regime dos militares”. Frases
clássicas de “abaixo a ditadura” e outras que pregavam a luta armada como único
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Os autores Sousa (2007) e Soares (2008) observam que este fato ocorreu
em virtude de uma maior repressão à prática da pichação nas grandes cidades,
tanto por parte do aparato legal repressivo, a polícia, como por parte da sociedade
civil, que passou a analisar a pichação não mais como forma de protesto, e, sim,
como uma forma de “sujeira urbana”. Já Diógenes (1998) abrange essa discussão
ao discorrer que as gangues juvenis estavam se difundindo nas grandes cidades
brasileiras entre as décadas de 1980 e 1990, e que existia uma grande competição
entre elas, sendo a pichação, aqui, um meio motivador e, também, estimulador desta
disputa.
Como consequência, a motivação para se pichar sofre alterações, tanto
por parte dos aparatos repressores como em relação aos seus novos agentes
utilizadores, jovens integrantes de gangues de rua. A juventude das grandes cidades
brasileiras das décadas de 1980 e 1990 vai experimentar uma nova forma de
sociabilidade, convívio e conflito, que é o cotidiano em “galeras” de bairros, sendo
estes os responsáveis por um novo sentido à pichação, que é o da divulgação da
sua marca e de seu grupo. Esta modificação abrangeu toda uma geração de
pichadores das décadas de 1980 e 1990, com pequenas, mas significativas,
mudanças de formato em algumas regiões do Brasil.
Como exposto anteriormente, as pichações brasileiras das décadas de
1980 e 1990 se diferenciam de períodos anteriores por utilizarem as letras com
menos frequência. Entretanto, dentro desse conjunto de pichações, há distinções,
que correspondem às peculiaridades de algumas regiões do país. Sousa (2007, p.
26-27) aponta que
escrita, com o uso de letras grandes, médias, pequenas; e outras que, por serem
inelegíveis, dificulta sua leitura até mesmo para aqueles que integram grupos de
pichadores.
Resumidamente, como pontuado anteriormente, a pichação foi se
transformando desde a Roma antiga, passando pelos séculos XIV, XV e XVI, como
também, nas décadas de 1960 e 1990, modificando formatos e significados. Além de
um espaço de frases longas, curtas, apelativas, emotivas ou de insultos, os muros
serviram para essas gerações como um espaço de visibilidade pública e de
sociabilidade por meio das letras.
Esta visão sobre as gangues defende ainda que elas “[...] reúnem
indivíduos sádicos que extravasam seus instintos por meio da violência”
(JANKOWSKI, 1997, p. 29.). Outro ponto abordado é a falta de uma perspectiva
escolar e a ociosidade no tempo livre apontada pelos integrantes destes
agrupamentos jovens, que, ao renunciarem à escola, têm o tempo preenchido com
atividades descritas como típicas de gangues.
Jankowski (1997) percebeu que os argumentos alusivos à formação de
gangues norte-americanas consideram também que suas origens estão
relacionadas à desestruturação das famílias:
10Caracterizada “[...] pelo comprometimento com uma atividade criminal para ganho econômico,
particularmente o tráfico de drogas” (ABRAMOVAY, 2010, p. 56).
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decorrer das épocas, porque seus membros não possuem o laço de longevidade no
grupo.
Assim, os atos delinquentes dos jovens das gangues brasileiras são
efêmeros e são cessados quando o indivíduo atinge a faixa etária adulta. Entretanto,
apesar dos aspectos particulares no contexto nacional das teorizações sobre as
gangues, permaneceu o estigma da delinquência e da marginalidade presentes nas
realidades norte-americana e latino-americana.
Pesquisando sobre gangues na realidade da cidade de Fortaleza/CE,
Marinho e Bezerra (2008, p. 5) traçam um quadro de causas motivadoras para o
aparecimento deste tipo de agrupamento jovem, tomando como referência seu
espaço de análise. Assim, por suas investigações, tem-se que
11 Todas as citações diretas a CarlesFeixa (2006), colocadas neste trabalho, são traduções livres do
original em espanhol.
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Pode-se afirmar que até o final dos anos 60, seja pelo foco do desvio que
marcou a Escola de Chicago, seja pelo teor transformador/revolucionário
que marcaram as análises das manifestações estudantis, seja pela ideia de
fomentadora de uma contracultura e de crise social, a juventude está
profundamente associada ao referente da rebeldia.
12 Esse estilo cultural surgiu em Londres em meados dos anos 70. Essa cultura jovem tem como
característica estética o vestuário com as calças jeans justas, rasgadas, jaquetas de couro, coturno,
tênis converse, correntes, os cortes de cabelo no estilo moicano ou um pouco comprido e uma
agressividade simbólica, para a sociedade daquele espaço, ao usarem símbolos nazistas e
comunistas. Sua filosofia baseava-se no lema “faça você mesmo”, como crítica à política vigente
naquele contexto. (SOUSA; FONSECA, 2009).
13Skinhead (em inglês: Cabeça raspada) é uma cultura jovem originária da classe operária no Reino
Unido no final dos anos 60, e mais tarde espalhada para o resto do mundo. No contexto do
desenvolvimento da cultura Skinhead, a Europa estava passando por uma crise econômica, com
altas taxas de desemprego, que foi acentuada com a inserção de minorias étnicas, sobretude do
norte da África. Como característica de vestuário, tem-se a cabeça raspada, calças com
suspensórios, botas, coturnos e jaquetas (ARAÚJO, 2005).
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segmento jovem. Assim, este conceito seria caracterizado pela “[...] fluidez, pelos
ajustamentos pontuais e pela dispersão.” (MAFFESOLI, 1998, p. 107)
Para o autor, os novos agrupamentos humanos estariam inseridos na
chamada “comunidade emocional”, que teria como características “[...] o aspecto
efêmero, a ‘composição cambiante’, a inscrição local, ‘a ausência de uma
organização’ e a estrutura quotidiana.” (MAFFESOLI, 1998, p. 17).
Nesta realidade, as emoções seriam compartilhadas. Os sentimentos,
então, teriam como principal característica a coletividade. Os indivíduos antes
restritos nos seus lugares, agora, passariam a contemplar os momentos de forma
coletiva, de acordo com a tribo inserida.
Essas novas configurações humanas nas cidades, denominadas de
“tribos urbanas”, seriam formações passageiras e teriam sua inscrição de acordo
com o local ocupado pelo indivíduo. Assim, como forma de melhor entender a
inscrição humana nas tribos urbanas, Maffesoli (1998, p.108) utiliza a denominação
de “socialidade”, como:
tempo livre, nos espaços intersociais da vida institucional.” (FEIXA, 1998, p. 84,
tradução nossa).
Nesta senda, os agrupamentos jovens urbanos denominados por Feixa
(1998) como “culturas jovens”, e teriam como característica a experiência coletiva de
vida, que se expressaria nos tempos livres desses jovens, tendo como espaços de
visibilidade os de grande mobilidade humana. Como componente, os estilos de vida
diferenciados.
Neste entendimento, Feixa (1998, p. 85, tradução nossa) salienta a
utilização do termo “culturas juvenis” no plural e não no singular, como forma de “[...]
enfatizar a heterogeneidade interna das mesmas [...]”. Dessa maneira, este enfoque
permite ao autor perceber o universo jovem sob outro aspecto, pois, “[...] transfere a
ênfase da marginalidade para a identidade, das aparências para as estratégias, do
espetacular para a vida cotidiana, da delinquência ao lazer, das imagens aos atores.
” (Ibid., p. 86).
Assim, Feixa (1998) rompe com alguns paradigmas de Maffesoli (1998), o
qual, dentre outras coisas, busca enfatizar o espetáculo das tribos urbanas com as
múltiplas aparências em que o indivíduo assumiria, de acordo com a tribo
pertencente. Em outra perspectiva, Feixa (1998) propõe um deslocamento do
conceito de “tribo urbana” para o de “cultura jovem”, transferindo, assim, a direção
da análise para as identidades que os atores sociais, jovens, assumem ao montar
estratégias distintas de lazer na vida cotidiana.
Outra análise importante do autor em sua definição de cultura jovem é a
sua relação com o território. Assim,Feixa (1998, p.96, tradução nossa) fundamenta
que
A emergência da juventude, desde o período pós-guerra, se traduziu em
uma redefinição da cidade no espaço e no tempo [...]. Deste modo, a ação
dos jovens serve para redescobrir territórios urbanos esquecidos e
marginalizados, para dotar de novos significados uma determinada zona da
cidade, para humanizar praças e ruas através das festas, das rotas de lazer,
mas também do grafite e sua demonstração, diversas gerações de jovens
estão recuperando espaços públicos que se haviam convertido em
invisíveis, questionando o discurso dominante sobre a cidade. [Desse modo,
se] por um lado as culturas jovens se adaptam ao contexto ecológico [por
outro] as culturas jovens criam um território próprio, apropriando-se de
determinado espaço urbano que distingue com suas marcas.
[...] a ideia era levar em conta tanto os atores sociais com suas
especificidades [...] como o espaço com o qual interagem – mas não na
qualidade de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada
desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas,
54
[...] alô galera, atenção rapaziada, se ligue nesse rap, nesse som da
pesada. O rap fala de muita pichação, pois é a única coisa que me dar mais
emoção. Eu sou garoto rebelde e gosto de pichar, pois a tua cidade nós
vamos detonar. Com uma lata na mão e a galera a agitar a galera tá em
peso e eu vou mesmo é detonar. Não picho muro, nem casa de família, eu
só picho órgão público pra poder prejudicar esses políticos corruptos que só
querem é roubar. Quando eu saio com uma lata pra poder detonar! Não tem
civil, nem federal pra me parar! Ecologia, ecolegete, gloralite ou chiclete!Iê,
iê, eu sou Garoto Rebelde (informação verbal)15
É com esta letra de rap que iniciamos este capítulo, que tem por objetivo
analisar a experiência de ocupação, demarcação e de visibilidade pública dos
pichadores no espaço urbano de São Luís da década de 1990. Para tanto, é
utilizada como fonte histórica a memória dos ex-pichadores e de indivíduos que
tiveram um convívio próximo ao mundo da pichação. Estas pessoas serão de
precípua importância para se pontuar as seguintes questões: as influências para o
surgimento da prática da pichação na cidade; motivos para se tornar um pichador; o
cotidiano desses jovens com suas famílias e colegas praticantes das inscrições em
ruas; a pichação como uma linguagem pública, mas somente visível aos seus
praticantes e às representações femininas para os adeptos desta escrita
“marginal”16.
A fim de situar o leitor, listou-se, assim, os nomes dos entrevistados e de
suas “galeras” da década de 1990; como, também, seu tempo de permanência no
mundo da pichação: Dostdos Falange Negra (1998 a 2000); Ratai dos Novos
Terroristas (1997 a 2000); Pig City (Mess/Gana); Júnior Enrolado,ex-integrante dos
Garotos Cruéis (1992 a 1995); Pernambuco, ex-integrante dos Ratos do Barulho
(1994 a 1996); Kaká Kiss (Vários grupos, 1990 a 1996); Augusto Três dosGarotos
Rebeldes (1988 a 1998); Hallytambém dos Garotos Rebeldes (1991 a 1995);
Costelo,ex-integrante do mesmo grupo(1992 a 1995); Robocop e Hipólito,ex-
participantesdo Garotos da Bota Preta (1991 a 1993); Bob, Garotos da Bota
Preta(1991 a 1994) e Anônimo ex - componente do Mensageiros de Cristo (1992 a
1995).
15
Rap feito por Costelo, provavelmente, entre 1993 a 1994, que demonstra as proximidades entre a
pichação e os integrantes do grupo Garotos Rebeldes (GR).
16 Aqui entendido como sendo uma escrita não legalizada e que mesmo visível a todos fica à margem
do entendimento da sociedade.
57
17
OS SELVAGENS da Noite.Direção de Walter Hill. Disponível em:<http://pt.fulltv.tv/the-warriors.html.
Acessado em: 10 out. 2014.
59
a violência física e a competitividade entre eles, foram fatores motivadores para uma
nova configuração e semântica na realidade da pichação.
Pigy City, lembra um momento em que a pichação já não era inscrita com
frases longas, ou de críticas políticas, bem características da década de 1960 e
1970 (SOUSA, 2007). A fase de maior desenvolvimento da pichação em São Luís,
na década de 1990, foi aquela em que se colocava o nome do pichador e a sigla de
sua galera18. Percebemos, ainda, pelas memórias de Pigy City e de Bob, que as
festas promovidas pelos produtores musicais da capital (seguindo uma tendência
nacional?), também serviram como meio propício para a proliferação de “galeras” em
bairros; consequentemente, de pichadores. Assim, as reportagens sobre pichadores
no sul do País e os eventos em boates em São Luís foram importantes canais para o
contato da juventude ludovicense com as “galeras” e com a pichação.
Em uma terceira linha de análise para o desenvolvimento da pichação em
São Luís, temos esta prática como algo exterior à realidade desta cidade. Assim,
Hally, ex-pichador do grupo Garotos Rebeldes (GR), ressalta que:
Tinha um pessoal que veio de fora, tipo do Ceará, que vinha pichar aqui.
Tinha um menino chamado PASTOR, que veio do Fortaleza, veio morar
aqui na Macaúba e ele formou a GG, Garotos Grafiteiros. A pichação dele
era mais enrolada. Não era igual à do AUGUSTO TRES, que era visível. Ele
fazia um estilo de letra arredondada, umas mais juntas da outra.
(Informação verbal).
18
Ressalva-se aqui que as pichações feitas por Augusto Três, Fiel e por outros pichadores que, em
algumas ocasiões, colocavam frases de amor para sua amada ou de provocação aos seus inimigos.
19 Pichação feita por Hally no período da realização da entrevista.
61
Quem começou a pichar em grupo, essa pichação de grupo, foi MEL da GR.
Até antes, o pessoal pichava, mas tipo, eles colocavam apelido de guerra,
mas não com esse lance de colocar o nome da galera. Quem começou com
esse lance de começar essa pichação com o nome da galera foi MEL, que
se eu não me engano era de Belém ou Fortaleza, mas ele não era daqui.
(Informação verbal).
As gangues sempre serão caracterizadas pelo forte elo que une seus
integrantes,que se protegem, se ajudam e brigam uns pelos outros: ‘É tipo
uma família’; ‘O quero lá pra um, rola pra todos’; ‘Todo mundo considera o
outro’. A ideia de solidariedade,construída em torno das noções de
fraternidade, lealdade e fidelidade, damotivação de responder pelo coletivo,
encontra-se ressaltada em frases que serepetem e que indicam que a
mesma é condição essencial para a existênciadas gangues. Ou seja, a
solidariedade entre os pares, como elemento decoesão, é uma das
referências centrais no processo de construção daidentidade do grupo e de
sua instituição diante dos demais.
Agente era aqui do Bequimão, mas, cara, tu ficava o dia todinho sem ter o
que fazer. Teus pais passavam o dia no trabalho, quando não no bar e tu
ficava assim com o dia pro sol. Ai nós nos juntamos e formamos a MC
(Mensageiros de Cristo), que ao meu vê, hoje, foi mais uma forma de te
ocupar.Eu não tinha assunto com meu pai e nem com minha mãe; até
porque, pelo que eu me lembro, eles já chegavam cansados e o final de
semana deles era no bar. Aí, cara, tu não tem como ser alguém que preste
mesmo! (Informação verbal).
Bota Preta, ao salientar que o grupo Mensageiros de Cristo (do mesmo período de
atuação do GBP) se formou após vários encontros entre adolescentes de um
determinado bairro de São Luís, no caso, o Bequimão. Seguindo esta mesma linha
de argumentos, Andrade (2007, p. 146) analisa que as “[...] gangues, usualmente,
surgem de modo quase espontâneo, não deliberado. São formadas por grupos de
amigos nas quadras [de bairros, condomínios]”.
As gangues ludovicenses, “família de rua”, inicialmente, serviam como
meio de ocupação de uma lacuna familiar. Assim, Hally relembra que
A família pouco sabia. Não era aberto. Eles sabiam que eu saía de noite.
Uma vez eu cheguei em casa todo quebrado; papai perguntou o que foi e
eu disse que caí jogando bola. Eu caí naquele barranco do Castelão, todo
ralado, fugindo dos seguranças da Coca-Cola que tavam atrás de mim,
porque eu tava pichando lá. (Informação verbal).
[nós] eram só dois irmãos. Eu e uma menina. Só mãe. Pai fez e saiu fora
[...] Nossos pais não tinham acesso à informação. Nossos avós, piorou. Na
escola era uma droga. No bairro que tu mora era quase todo mundo de
gangue. E aí, sem chance! A não ser se teus pais tivessem visão. Foi o que
não aconteceu comigo. Nem pai eu tive. Minha mãe, ambulante [...] A gente
se espelhava em quem tava mais perto. Então, a gente se espelhava
naqueles garotos [de galera] e achava eles o máximo. Aí a gente queria ser
igual a eles. Muitos desses da 1ª geração [da FN] já tinham saído, por
conflitos com outras gangues; outros morreram e muitos foram pra cadeia.
Alguns tiveram que ir embora. Então, a gente foi vítima do meio. A gente foi
se infiltrando e começou de novo a FN. (Informação verbal).
universo das gangues, quando não existe uma relação afetiva com pessoas do
mesmo grau de parentesco. Como aponta Andrade (2007, p.145).
Desse modo, pelo que foi percebido nas entrevistas, houve no cotidiano
desses jovens uma ausência de diálogo familiar. Contudo, não se deseja afirmar que
esse processo “esvaziamento da família” deve ser concluído como uma justificativa
para que indivíduo se filie a uma gangue ou pratique pichação. O que se pretende
destacar neste trabalho é que esses adolescentes não entraram em contato com a
pichação/galeras por um simples ato volitivo, e, sim, que este processo ocorreu por
meio de fatores estimuladores.
20São duas pontes conhecidas popularmente como Ponte do Caratatiua e que, na verdade, são
denominadas pela Secretaria de Infraestrutura do Estadodo Maranhão de pontes Hilton Rodrigues e
Governador Newton Bello, que interligam os bairros Ipase e Alemanha.
67
Desse modo, a pichação foi utilizada por alguns grupos de São Luís como
meio de aceitação ou rejeição de indivíduos em suas turmas. No entanto, esta
atividade não era única no que diz respeito às condições para que um jovem
integrasse uma “galera”. Augusto Três, ex-pichador do grupo Garotos Rebeldes
(GR), faz sua colocação sobre este assunto
Ele descreve outra etapa de inclusão de uma pessoa no grupo, que era
obter latas de spray aos pichadores já membros da “galera”. Essa condição a qual
Augusto Três destaca sobre os candidatos, e futuros integrantes da GR, podem ser
compreendidas como uma atividade de fácil execução. No entanto, como expõem os
ex-pichadores, Pig City e Costelo, respectivamente
Tu tinha que analisar bem o lugar antes de tu ir pichar, ainda mais quando
era pra subir. Eu me lembro do Colégio Santa Teresa, lá no Monte Castelo.
A gente sobe pelo lado, pendura na caixa de ar-condicionado, sobe pra
casa do lado correndo o tempo todo. Sobe pro Santa Teresa e joga. Desce
e deixa tua marca lá. Aí vem o outro e sobe, desce e deixa a marca dele lá.
Até o último que vem e subia e quando descia tinha que jogar a lata pra
baixo. Tinha que ser tudo muito rápido. Tu tinha que ter toda uma
artimanha!A gente saía de madrugada. Não tinha ninguém na rua. Então
dava mais fácil pra tu subir em prédios. O prédio mais alto que eu subi foi
aqui no Monte Castelo, naquele antigo Fernando Perdigão. Subiram uns 3,
4 e pichamos de cabeça pra baixo. Sempre saíamos de 3 a 4 porque era
esse o número dos que inteiravam pra uma lata. Aí, tu escolhia o lugar. Às
vezes, a gente fazia uma vistoria antes. A gente dava uma passada de
bicicleta, quando a gente ia jogar bola e ‘éguas, esse muro aqui tá bacana!
Acabou de ser pintado’. Aí ,’éguas, hoje esse é nosso!’. Tu não podia vê
casa pintada, muro pintado. Eu já pichei o BCA, dentro do CEGEL, do
Liceu, aquele viaduto da Camboa.(Informação verbal).
Como se observa, pichar é uma arte, não só por se tratar de uma forma
de escrita, mas, também, por ser submetida a um processo detalhado e organizado
em sua conclusão nos muros. Nesse contexto, corre-se o risco de ser capturado por
policiais ou por agentes de segurança particular. Mas, pelo que se depreende dos
depoimentos dos ex-pichadores, o ato se transformava em uma proeza para as
culturas juvenis da contemporaneidade. Abramovay (2010), desse modo, concorda
com Le Breton (2000, p. 10 apud ABRAMOVAY, 2010, p.122) na seguinte citação,
em que explicita:
A busca pelo risco parece estar relacionada à afirmação da identidade e da
existência própria [...] Segundo Le Breton (2000), ‘joga-se por um instante
com sua segurança ou sua vida, com o risco de perdê-la, para ganhar enfim
a legitimidade de sua presença no mundo ou simplesmente arrancar da
força deste instante o sentimento de existir, enfim, de se sentir fisicamente
contido, assegurada sua identidade’.
dia e vê que teu nome tava lá e neguinho falando que ‘rapaz, fulano é doido
mesmo de colocar a marca dele ali! ’.
Como pontuado até este momento desta escrita, a pichação envolve toda
uma gama de significações para seus praticantes. Se para o olhar de grande parte
da população ludovicense da década de 1990 uma inscrição em um muro com uma
sigla de um grupo significava sujeira urbana, para os amantes desta escrita o
70
A pichação do PASTOR era quase que impossível tu identificar que ali tinha
o PASTOR. Só que quando tua marca tá divulgada em toda a cidade, aí o
pessoal já sabia ‘ah, é o PASTOR’. Tinha também o GILSON, só que
também era enrolado, ficava difícil pro pessoal saber. (Informação verbal).
pichação como uma assinatura de caráter monocromático, feita com spray ou outro
suporte de rabisco em muro, e que sua prática trata-se de uma forma de
comunicação, mas fechada, pois objetivo é a decodificação da mensagem pelos
pichadores; o que se observa nas colocações de Júnior Enrolado e Augusto Três, ao
destacarem as inscrições de Pastor.
A fim de aprofundar esta problemática, mencionam-se os comentários de
Costelo e Júnior Enrolado, ao citarem, respectivamente, o estilo “enrolado” e o
formato de pichação de Pastor
Tinha o PASTOR, que era de Fortaleza. Ele trouxe as cifras de lá que são
quase que indecifráveis; era um estilo enrolado, ainda estranho pro pessoal
daqui. Só quem sabe é quem participa do bando. Só eles sabem o que
significa aquela letra. (Informação verbal).
Aí, eu conheci Toni. Toni era TOCAM. Ele tinha uma maneira de desenhar e
ele inventava umas pichações engraçadas pra porra! Ele me apresentou o
GRINGO com dois olhos. Aí eu já fui fazendo assim. Assim, cada um tinha
uma técnica que eles chamavam de gang, e aí ele me apresentou esse
GRINGO. (Informação verbal).
72
Com FIEL, foi diferente. Ele tinha um propósito. O FIEL era um cara que tu
via que pichava, mas que tinha um certo nível de estudo. Ele curtia muito
Renato Russo. Ele era o poeta do muro. Ele colocava frases tipo:
‘comparamos nossas vidas e esperamos que nossas vidas um dia possam
ser melhores’. Ele era sozinho. Eu acho que ninguém nunca conheceu ele.
Esse cara, ele não tinha gangue, não tinha parceiro, ele era sozinho, mas
ele mandou muita pichação na cidade. Muita mesmo. (Informação verbal).
Eu era muito discreto. Mas mais discreto que eu era FIEL. Ele jogava M.F.
Ele nunca me disse o que era M.F. Ele também era estudante e uma vez eu
encontrei com ele. Ele era tão discreto que poucos conheciam ele. Ele
pichava com o nome dele e uma frase. (Informação verbal).
Como explicado, o aspecto que discernia Fiel dos outros não era a fonte
inovadora, mas, sim, o seu relacionamento com os outros pichadores e sua
percepção acerca da pichação. Ele pichava sozinho e, além disto, citava frases e
seu nome. Poucos pichadores o conheciam pessoalmente. Aqueles que mantiveram
contato com Fiel, como Augusto Três, não conseguiam descobrir o porquê da
escolha desta alcunha e da sigla M.F.
Costelo diz que Fiel era o “poeta dos muros” e que era possível concluir
que possuía um nível intelectual avançado quando comparado com outros
74
O Augusto Três era pichador de mais. Ele pichava muito. Ele procurava os
lugares mais altos pra pichar. Aqueles lugares que ninguém pensava em
pichar, pois lá tava o nome dele. Chegou um momento, não sei qual foi, que
o ideal era quanto mais alto, melhor. Só que eu tinha muito medo de altura,
mas eu enfrentava. Então, chegou um momento que quanto mais alto,
melhor. Porque era onde tinha mais visibilidade. As pessoas ficavam
olhando, onde dava mais visibilidade. Então, foi tipo uma concorrência
interna; quem colocava mais alto, era o melhor.O Augusto Trêsera o que
pichava mais [da GR]; ele pichava muito. Então, ele era o mais conhecido.
O Augusto Três era o mais visado; o pessoal batia muito nele. [...] O
Augusto Três estudava no SENAC, no Monte Castelo. Ele pichava alto e ele
foi um dos primeiros a subir em prédios, aqui em São Luís, pra pichar, a
subir em marquises, a subir em postes. Isso foi dando uma visibilidade pra
ele muito grande. (Informação verbal).
inscrições, o que lhe gerou uma posição de destaque dentre os demais pichadores,
fato este ressaltado por Abramovay (2010, p. 119) quando afirma que
[...] tem mais fama quem picha mais, sendo mais importante a gangue que mais
aparece. Quando a letra eterniza a fama, por apropriação de espaços, muitos
territórios inacessíveis como lugar de circulação e ocupação pelosjovens se
tornam de certo modo acolhedores.
O Augusto Três pichou muito aqui em São Luís. Praticamente todo canto
que tu olhasse, tinha lá o nome dele. Nós via mais o nome dele era em
lugares altos, tipo em caixa d’água. Eu cansei de olhar o nome dele em
caixa d’água e agente ficava assim pensando ‘rapaz, esse bicho é doido
mesmo’. (Informação verbal).
Augusto Três descreve os locais mais altos que pichou, sendo possível
concluir que ele ainda se sente engrandecido por ter conseguido inscrever em
altitudes elevadas. À época, o público imaginava que ele era alto, em virtude de
suas pichações serem notadas em ambientes não procurados por outros
pichadores. Porém, sua estatura é de aproximadamente 1,57 cm.
24
Pichação feita por Augusto Três no período de entrevista com este.
77
Uma primeira análise mostrou que essa noção era formada por dois
elementos básicos: um de ordem espacial, física – configurando um
25 Centro de Ensino Governador Edison Lobão, localizado na Rua Osvaldo Cruz s/n, Centro de São
Luís.
26 Centro de Ensino Liceu Maranhense, localizado no Parque Urbano Santos s/n, Centro de São Luís.
27 Hospital situado na Rua do Norte, 233 – Centro de São Luís.
28 Praça situada no Centro da cidade de São Luís.
79
rivais eram resolvidos e outros gerados. Júnior Enrolado, sobre estas memórias,
discorreu acerca dos ambientes de articulação da GC com outras turmas. Surgem,
então, as boates de São Luís da década de 1990 como sendo estes locais.
As boates ludovicenses da década de 1990 eram pontos de encontro de
turmas, como aponta Kaká kiss e Robocop:
Eles tinham uma mania de se dois saísse e um não fosse tu jogava a dele
[marca] também. Era pra considerar o cara. Ai ‘pô, não deu pro cara vim,
mas a gente vai considerar ele’. (Informação verbal)
Na nossa época, pra ser ‘os caras’ e ser respeitado tu não precisava ter um
carrão, ter dinheiro, ter uma roupa de marca! Precisava tu ter uma galera,
ter um nome e ser um cara que sabe dar porrada! Ser de gangue e ter um
nome era ser o cara! Os outros iam pensar duas vezes antes de mexer
contigo porque eles sabiam que se mexesse contigo tava mexendo com um
grupo. (Informação verbal).Tu precisava divulgar o teu produto; então, como
divulgar?! Pichando em todos os lugares de São Luís. Aí todo mundo que
olhasse ia falar ‘é, essa gangue tá famosa’, porque a FN tá aqui, a FN tá ali.
O GRINGO tinha que vim junto com o nome GR, porque cada pichador
tinha sua gangue e tu tinha que jogar, que mostrar qual era a tua gangue.Tu
tinha que mostrar de que buraco tu tá saindo. (Informação verbal).
29
Pichações feita por Augusto Três no período de entrevista com este.
83
ou, também, por meio de alianças com outras turmas. Destarte, as galeras de
pichadores teriam de decodificar a mensagem remetida sobre esta associação.
Queimar pichação era coisa séria. Era um desrespeito. Teve uma minha
que foi queimada e eu dei porrada no guri. É assim, tu tem o maior trabalho
pra botar tua pichação e na hora vem o cara e risca. Tava chamando pro
confronto. (Informação verbal).
Algumas vezes a gente pichava em território alheio, tipo ali no Centro, que
era território da GC. Aí, de vez em quando, a gente pichava por ali. A
pichação era bem-vinda não somente na FN, como em todos os outros
grupos. Aí tinha competição entre as gangues rivais. A gente queimava a
pichação deles e fazia um risco e jogava a nossa por cima.Queimar
pichação era uma coisa muito séria. Se tu for queimar, tua gangue e tu vai
ter que ter estruturar pra segurar o veneno. Quando tinha festa, as gangues
se encontravam e gerava conflitos e tu e tua gangue tinha que tá preparado
pra responder por tuas broncas. Várias vezes eu briguei por queimar
pichação dos outros. Uma vez eu queimei a pichação do pessoal do Bom
Jesus, na época da KGV e a GKV, que eram gangues que viviam se
matando. Tudo, geralmente, começava no CEMA, na escola General Arthur
85
Carvalho. Ela foi formadora de vários e vários garotos que eram de gangue,
que eram pichadores e que eram de periferia. (Informação verbal).
Eu não tinha nenhum tipo de relação cordial com outras galeras. A minha
identidade era secreta, só o pessoal da GR me conhecia. Até porque eu não
ficava dando trela e nem me aparecendo muito. Aí tem esse Lango, que era
da nossa gangue, só que ele traiu a gente. Ele foi pra outra galera, a EV, a
Esquadrão Vermelho. Ele pediu pra entrar na nossa galera e foi aceito, mas
só que ele entrou tipo como um espião. Só pra vê nossos nomes e falar pra
eles lá da EV. Aí depois que ele soube de tudo da gente, de todos os
nossos nomes, aí ele foi pra lá. Ele traiu a gente, a nossa confiança. Eu bati
nele que quase mato ele. Ele errou! (Informação verbal).
Na época fizeram uma galera, acho que era mais por inveja, uma gangue
de mulher contra pichadoras mulher! Pra agarrar pichadoras mulher! Elas
acharam de fazer uma gangue, dizendo que eram contra as pichadoras, só
pra querer quebrar as pichadoras mesmo. Foi aí que eu arrumei uma
confusão grande com uma delas, mas só que quando ela veio foi com mais
de dez delas. Aí uma vez, eu lá na GD, aí elas vieram e ‘ah, tu que é Kaká
Kiss?!’, eu digo ‘rapaz, eu sou’. Mas só que se fosse uma de cada vez eu
dava, mas só que vieram tudo de uma vez! Aí foi muita covardia!
(Informação verbal).
A gente tinha raiva de pichador. A gente achava que isso era uma coisa
completamente diferente do que a gente fazia. Era uma coisa que a gente
não admirava e nem adotava. E o pior que era uma coisa que queimava a
gente. Quem olhava a gente reunido, achava que a gente era pichador e
que a gente tava pichando. A gente fazia era quebrar pichador! (Informação
verbal).
Tinha uns da gente que a gente achava diferente. Eles gostavam de pichar,
mas a gente gostava de pichar era nos cadernos das meninas. Mas tinha
esses que saíam pichando os muros.Aí tinha o Sagat. Quando a gente
conheceu ele, ele era pichador demais e como a gente não gostava de
pichador, ele acabou ficando um pouco pra trás. Mas aí a gente ia pras
festas e ele ia também, e aí ele ia e participava de umas rodas de break. O
cara morava no Caratatiua, e a gente não ia quebrar ele só porque ele
pichava. E aí ele acabou ficando com a gente. (Informação verbal).
Sagat era pichador, mas foi aceito no Garotos da Bota Preta, um grupo de
contra-pichadores. Contradição? Nem tanto; afinal, Bob esclarece que Sagat morava
na área de pedaço dos GBP, participava de roda de break30 este grupo, dentre
outros detalhes. Este pichador, convém frisar, se tornou um caso singular no
ambiente do GBT, pois não foi submetido ao “corredor polonês”. Augusto 3, por
outro lado, não escapou da ação dos contra-pichadores. Como relembrou:
Eu vivia me mudando. Mais por causa [da fama] do Augusto Três e da GR.
Eu morei no Sacavém, no Santa Cruz, morei na Cidade Operária, no
Cohatrac. Eu já passava a ir eu só e fui caçado por outras gangues e,
30
Um estilo de dança que pode ser feito com formato robótico ou com passos rápidos, dependendo do
tipo de música.
88
Interessante pontuar que Augusto Três não foi perseguido apenas pelas
gangues de contra-pichadores, a exemplo da JCP, mas, sim, pelas próprias galeras
de pichadores, em função de sua visibilidade expressiva na cartografia urbana da
cidade de São Luís. Desse modo, não só os pichadores inscreveram em muros
ludovicenses, como, também, aqueles que repreendiam a pichação.
Ser pichador em São Luís na década de 1990 era uma atividade muito
arriscada, não só pela repressão imposta pelos órgãos oficiais do Estado, como,
também, pelas gangues de contra-pichadores. Mas eles eram admirados e
paquerados por jovens da capital maranhense daquela época. Assim, Costelo e
Augusto Três explicam que:
[a pichação] Foi tipo um fenômeno, porque todo jovem na época queria ter
uma marca. Nem que ele não quisesse ser pichador, mas ele queria ter uma
marca. Queria ser identificado entre a galera. Era, tipo, um grito de
identificação na época. A pichação chamava mulher porque muitas meninas
queriam pegar carona na fama do pichador. De dizer assim: ‘ô, quando tu
botar tua pichação lá, coloca meu nome’. (Informação verbal).
[...] era tanta mulher que dava pra encher um balde. Tinha muita menina
que queria entrar no grupo, só pra tá junto dos homens. As meninas se
espelhavam na gente. Tipo assim: nós era os caras, os bambambã, a gente
tinha muita fama com elas. Geralmente as meninas vinham e perguntavam
se era eu que era DOST. E eu achava isso muito massa! (Informação
verbal).
As mulheres não pichavam muito. Era mais a gente que jogava pra elas. Até
porque era muita correria, tinha que subir, tinha a questão das marquises e
tinha que ter toda uma estratégia pra subir nelas e ficava complicado
quando tu tinha mulher na parada. Tinha muita menina que chamava a
90
gente: ‘ô, vem aqui, escreve aqui no meu caderno o teu nome e alguma
coisa’. Tinha a questão da divulgação da tua marca entre as meninas, de
divulgar o teu nome. Tinha essas mulheres, as fãnzinhas. (Informação
verbal).
Elas eram nossas namoradas. Eu pegava muita mulher, mas por causa da
minha pichação e fama. As mulheres ficavam ‘quem é, quem é ele?’. Aí eu
chamava uma pessoa de confiança e perguntava quem era ela. Aí eu via e
via se valia a pena, se fosse bonita. As mulheres tinham um caderno de
pichação autografado. Elas levavam o caderno e deixava com alguém e
passava pra gente. E a gente pegava e autografava o caderno. (Informação
verbal).
31
Caderno pertencente a Kaká Kiss da década de 1990.
92
modelo de escrita foi utilizado para ser decodificado por um receptor, que poderia
ser um grupo de pichadores ou as jovens ludovicenses. As inscrições em muros e
paredes, então, possuem seu próprio universo de simbologias e conceituações; bem
como de representações.
4 JOGANDO A MARCA: pichação em São Luís na década de 1990 pelo olhar da
mídia impressa
32
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente.
96
33
Especificamente no tópico 2.1.
98
O nome do nosso grupo era MESS; algo assim massa, legal. Foi o primeiro
grupo de grafite do Maranhão, formado por mim, mano jagunço, Paulo
Renato, Roí coco, Play Mobil... quando a pichação voltou com força na
década de 1990, do nosso grupo de 11 ficaram só 3: eu, mano jagunço e
suriba. Com a pichação, a opinião pública bateu forte contra os pichadores
e, consequentemente, os grafiteiros viraram reboque porque era só nós 3.
No início de 1993, o MESS deu uma caída porque foi o grande ano da
pichação aqui em São Luís. Então, a repressão foi grande e a gente foi
muito perseguido. As pessoas não liberavam mais os muros pra ser
grafitado e a gente ficou meio retraído. Até porque pra fazer uma pichação é
rápido, mas pra fazer um grafite demora um pouco. Aí a gente passou a sair
de madrugada. Aí tava muito complicado porque São Luís não conhecia
direito o grafite e ainda veio a pichação! Aí a gente marcava pra se
encontrar umas sete, oito horas da noite em uma rua próxima daqui e
quando dava umas onze horas da noite a gente saia pra grafitar. Se hoje a
gente faz grafite rápido, é por conta dessa nossa escola que foi grafitar de
madrugada e de forma rápida. Aí a gente colocava uns 6 pra grafitar e 6 pra
vigiar - 3 de cada lado. Quando a gente queria fazer aqui no São Francisco
e tinha vigia de muro, ele mandava é mesmo bala na gente. Então, quando
chegou em 93, esse funil se afunilou mais ainda. Se tornou cada vez mais
arriscado sair na noite pra grafitar e consequentemente as pessoas
começaram a dizer um não maior pra grafite.
para a mídia impressa local, é “Os Grafiteiros”, o que reforça o discurso de que as
duas práticas representam uma única conduta.
Assim é que na matéria do dia 22 de agosto de 1993 o jornal “O
Imparcial”fornece uma lista das gangues mais periculosas de São Luís. Nela,
encontramos a “Legião de Grafiteiros” (LG) do bairro da Liberdade e os “Solitários
Grafiteiros” (SG)do bairro da Alemanha. Já na matéria do mesmo impressoem
questão, agora do dia 15 de outubro do ano seguinte, surge um novo rol das
gangues ludovicensesconsideradas perniciosas ou prejudiciais, sendo uma delas a
denominada “Grafiteiros Escrotos” (GE)do bairro do Cohatrac.
Ainda nesse contexto de análises discursivas,é relevante salientar
queamídia impressa não foi a única instância produtora/reprodutora de
representaçõesavaliar a situação das gangues como grupos delinquentes.
Ospróprios integrantes de “galeras”contribuíram para essa realidade, uma vez
escolhiam nomes para seus agrupamentos, pretendendo, com esta atitude,difundir
uma imagem a qual seria transmitida a outros grupos. Esta identidade, anotada em
muros públicos e privados, aliada ao nome do pichador, pode ser entendida como a
marca da coletividade destas formações.
34
No sentido de que a pichação é vista pelo discurso oficial, dos jornais, como uma sujeira urbana.
102
Pichador nada mais é do que uma pessoa sem princípios morais, sem
sensibilidade artística e sim, um desocupado por vocação. Desrespeita as
leis que regem a sociedade, partindo do princípio de que é invasor de
propriedades alheias e destruidor de patrimônio público e/ou particular.Suas
ações são repudiadas pela sociedade, uma vez que agridem os logradouros
públicos, sem nada fazer em favor do desenvolvimento social. Gasta tempo
103
à toa, é repelido pela população, mas mesmo assim, age como uma criança
e é uma pessoa agressiva por natureza. (JORNAL DE HOJE, 1993, p. 09)
35
O termo Centro Histórico de São Luís aqui citado compreende as áreas definidas pelo Plano Diretor
Urbanístico de 1992 (Lei Municipal nº 2.352, de 29 de dezembro de 1992), que abrange duas áreas:
uma com mais de 2.500 imóveis e de 160 hectares (todas na região central da cidade); e outra que
engloba a área de preservação ambiental do Aterro do Bacanga e do Parque do Bom Menino,
totalizando mais de 3500 imóveis (BOTELHO, 2005).
106
nos finais de semana. Os vigiais não dão conta. ‘Quando a gente chega
segunda-feira já está tudo pichado’ afirmou a diretora.
que o encontrei, após vários dias de buscas. Na ocasião, conversamos sobre esta
desinformação de que seu cognome era interpretado como uma perigosa gangue.
Augusto Três, hoje com 41 anos,descreve esta questão da seguinte
forma,
Eu sempre fui muito estudado de ler jornais daqui. Eu sempre quis vê o que
estava acontecendo pela cidade e se tinha alguém me procurando. Assim,
eu via muito estas coisas da minha marca virar gangue, mas nunca foi uma
gangue. Eu era da GR. Eu que fui um dos fundadores da GR. Agora, o que
eu acho que acontecia é que como minha marca tava em vários lugares da
cidade e nos lugares mais difíceis de serem pichados, acho que por causa
disso que o pessoal achava que tinha uma gangue chamada Augusto Três.
Pra eles essa gangue era separada da GR, mesmo eles vendo que perto da
minha marca tava lá o símbolo da GR. (Informação verbal).
Eu achava engraçado, mas não tava muito aí não. Eu via lá eu nome saindo
de novo como sendo gangue, mas isso não me assustava não porque só
ajudava a dar mais ibope pra minha marca. Tipo assim, se tu picha na
cidade toda, tu ficava famoso, se tu picha em locais difíceis tu fica mais
famoso. Agora, se tua marca sair num jornal, aí tu fica muito mais
famoso.(Informação verbal).
Novamente, Augusto Três surge como nome de uma das gangues mais
nocivasde São Luís. A este suposto grupo,atribuíram atos ilícitos como vandalismo,
estupros, agressão e aliciamento de menores. No ano de 1994, com duas novas
listagens de gangues divulgadas pela SSP/MA no jornal “O Imparcial” dos dias 15 e
25 de outubro de 1994, a Augusto Três já não consta do rol. Talvez, o setor de
110
36
Augusto Três deixou de pichar em público entre os anos de 1996 a 1998.
111
O ano de1993, de acordo com Pig City (grafiteiro do grupo Gana), foi o
período de maior incidência de pichações em São Luís. Pig City, que estava
envolvido com arte de rua desde a segunda metade da década de 1980, tem muita
propriedade para falar deste assunto. Assim sendo, ressalta-se que as instâncias
discursivas oficiais planejam estratégias para combater os catalogados grupos de
pichadores da cidade.
A mídia impressa da capital, portanto,havia preparadoum cenário
inteligível(BOURDIEU, 1996), explicando ao seu público leitor o risco de se ter
pichadores na cartografia urbana da cidade. Além disso, ela tem um poder de
convocar outras instâncias discursivas a se posicionarem sobre um determinado
assunto tido como bastante relevante (RONDELLI, 2000), como aconteceu no caso
da Superintendência de Polícia Civil da Capital (SPCC).
Ao comunicar que, possivelmente, haveria uma fiscalização na venda de
spray para menores de 18 anos, o discurso policial estava respondendo ao chamado
da mídia impressa ludovicense, que logo tratou de fazer o seu papel discursivo, o de
explicar para o seu público pagante como ocorreria essa medida.
Entretanto, a mídia, ao tornar a norma da proibição da venda de spray
para menores de 18 anos como algo público, já se antecipa às opiniões da
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população e sugere como deve ser feita esta fiscalização. Em suma, ela torna o ato
inteligível (RONDELLI, 2000) para seu público e assim ela molda os
fatos,interagindo com a Superintendência de Policia Civil da Capital, apropriando-se
da medida, que, agora, é noticiada como se fosse resultante de interessecoletivo.
Assim, a mídia impressa ludovicense veicula que o comprador do spray
deveria cadastrar a cor do produtoescolhido na loja. Outra dica que o discurso
midiático da capital maranhenseoferece é o registro das lojas que vendem o produto.
Estes estabelecimentos comerciais seriamfiscalizados pela polícia, que averiguaria
se a medida que proibiu a venda desta mercadoria para menores de 18 anos estava
sendo cumprida.
Na teoria, esta propostafuncionaria. Contudo, os ex-pichadores
entrevistados,Júnior Enrolado e Augusto Três, em uma matéria do periódico o
Estado do Maranhão (1993, p.12),opinaram, de forma respectiva, sobre a medida
Na época saiu essa história de que neguinho ia parar de vender spray pra
pichador. Mas assim essa medida já começou errada porque eles
pensavam que o pichador ia lá na loja e comprava de cara limpa o spray.
Dentro mesmo dos grupos tinha quem facilitava o spray pra gente e tipo
assim se tu fosse maior de 18 anos e fosse lá comprar um spray, o cara ia
perguntar pra ti se tu ia usar isso pra pichar ou pra outra coisa e tu é claro
que nunca vai dizer que era pra pichar e sim que era pra pintar tua bike.Eu
mesmo tinha quem facilitava o spray pra mim! Tinha os dos meninos que
tinham que trazer quando quisesse entrar pra GR, mas eu gostava de
pichar com os meus mesmo, e esses não era eu que ia lá comprar. Tu tinha
que ter o teu facilitador, até porque a coisa tava ficando cada vez mais ruim
pro lado dos pichadores.
Para comprar spray, a Cr$ 260 mil o tubo, eles costumam fazer uma
cotinha. Quem não entra com a grana não tem direito a pichar. Visados
pelos vendedores‘já vão rebentar os muros’, dizem- saem-se com a
desculpa que a tinta é para pintar bicicleta. (Informação verbal).
Ele fala de uma lei que, em sua análise, tratava a pichação como crime.
Trata-se daLei Nº 3.392, de 04 de julho de 199537, que dispunha sobre aproteção do
patrimônio cultural do município de São Luís, merecendo destaque nela o parágrafo
31: “Art. 31 - As intervenções não autorizadas pela FUNC, assim como qualquer
ação ou omissão que ponha em risco a integridade do bem tombado e seu Entorno,
sujeitam os infratores as ações administrativas, civis e penais, previstas em Lei” (LEI
nº 3.392, 1995, p. 03).
Para Augusto Três, essa intervenção não autorizada pela FUNC poderia
ser interpretada como a pichação. Por isso, como concluiu, a pichação já poderia ser
examinada como crime passível de punição especifica, não mais como ato
infracional.
5 CONCLUSÃO
por esse modelo de escrita. Estes também qualificariam os pichadores como serem
problemáticos ao sossego ludovicense.
E entre os ex-pichadores? O que pensam a respeito da pichação aqueles
que foram entrevistados e os que não puderam ser? Quase todos os entrevistados
deram, por palavras ou pela linguagem corporal, demonstração de reprovação à
prática da pichação. O momento de vivências nas gangues é visto, pelo discurso de
hoje, como de rebeldia, como se se até eles se encaixassem fora dos princípios
ocidental da ordem e do equilíbrio. Mas como pontuado, esse é o discurso deles no
presente de hoje.
Já no presente do ontem o que percebemos no discurso deles, é uma
sensação de alívio fundida com alegria por ter passado por esta fase e ter deixado
sua marca. Não passa pela cabeça dos entrevistados verem seus filhos ou parentes
jovens como pichadores, uma vez que até eles reconhecem que a força repressora
do estado está hoje mais eficaz de que nos anos de 1990. Entretanto, todos os
entrevistados concordaram em ver na pichação ludovicense da década de 1990 uma
forma de linguagem, um modo de se comunicar com outros pichadores, de
paquerar, de arrumar desafetos, de serem vistos e de deixar cravado na arquitetura
da cidade seus nomes.
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