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Intraterra
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INTRATERRA
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Você não pode criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta
obra sem a devida permissão do autor.
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Intraterra tem como base as teorias da conspiração
envolvendo reptilianos e illuminati, além de referências a
diversas sociedades secretas e à ufologia mística. A ação do
romance se inicia nos dias de hoje e prossegue trezentos anos à
frente, após grandes transformações na civilização. O mistério
paira sobre o protagonista Joshua Christiansen: será um
simples escritor, como alega? Um agente governamental? Um
integrante do Comando Ashtar, patrulha interestelar
responsável por trazer uma nova luz a diferentes mundos? Ou
um mago pertencente a alguma seita obscura?
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PRÓLOGO
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portanto ser um dos cabeças, embora alegue ser um visionário,
e que o fim da civilização que conhecemos se aproxima.”,
explicou o agente Simons, um homem loiro e robusto, de
expressão ácida.
“Mais um profeta do Apocalipse! O que ele diz sobre 2012?”,
a pergunta de Williams partiu repleta de ironia.
“Ele deve estar simulando a loucura e inventando esse papel
de vidente para escapar das acusações e das evidências. É um
verme covarde, não podemos cair nessa atuação.”
“Mas e se for realmente um visionário? Não poderia nos ser
útil? Não podemos negar que ele acertou o que disse.”, inquiriu
a agente Murdock, uma ruiva de face sardenta, os cabelos
curtos.
“Você acredita nessas coisas?”, de repente, após a indagação
cética, Simons esboçando um sorriso irônico, o sujeito
começou a tremer e sua boca a espumar, atraindo a atenção dos
agentes; com seus olhos aparentemente sem salvação, o azul
disperso como um rio sem margens, viu dependurado no teto
um estranho morcego com traços de réptil, as asas semelhantes
às de um pterossauro. Porém não se tratava de um simples
animal: sua existência era claramente cruel e inteligente.
Alucinação?
Despejou seu verbo sobre aqueles indivíduos, que pertenciam
à NSA, a Agência de Segurança Nacional (National Security
Agency), órgão norte-americano que já fora tão secreto que
recebera os apelidos que eram algo como “não há tal agência”
(No Such Agency) e “nunca diga nada” (Never Say Anything):
“Vocês são tolos. Devido a imbecis pretensiosos como vocês, o
mundo está arruinado!”, sem deixar de ser fitado pela criatura,
que era inacessível aos demais.
“Pelo visto vamos ter uma sessão de delírios! Não quero
perder mais tempo, chamem um psiquiatra para levar esse
pobre diabo! Os acertos dele devem ter sido puro acaso.”
“Não custa ouvir um pouco, Williams.”, objetou Murdock.
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“Claro que custa! Estamos perdendo tempo!”, mas o agente
sentiu abruptamente seu corpo gelar e seu estômago ficou
embrulhado ao receber sobre si os olhos do velho, que pela
primeira vez o encarava. Um nó em sua garganta impediu que
sua voz tornasse a sair em seguida. Simons também começou a
passar mal; a única que continuou bem foi Murdock.
“Se não querem me ouvir, terei que forçá-los a algo mais, pelo
bem da humanidade. Serei sincero agora: sabia a identidade
verdadeira do seu amigo Scott, e propositadamente me deixei
capturar. Agora arquem com as conseqüências de sua inépcia!”
“O que está fazendo??”, a agente ia sacar sua arma, acreditava
em poderes psíquicos e pensou estar diante de um paranormal
perigoso; mas, por mais força que fizesse, perdeu os
movimentos e a voz.
“Não ia forçar você, a única que tem a mente mais aberta, mas
não tive outra escolha. Vou lhes mostrar e dizer algumas coisas
que seus superiores já sabem em parte...”, os três viram uma
espécie de tela cristalina se abrir, imagens passando a
acompanhar a voz do estranho sujeito, enquanto o morcego
guinchou e desapareceu da visão deste. “Para começar, fiquem
cientes que a Terra mudará profundamente. Primeiro, o
aquecimento do planeta, que já está em curso, com o
derretimento das geleiras, se intensificará, tanto por razões
humanas, devido ao pouco cuidado com o meio-ambiente, a
camada de ozônio praticamente desfeita e a radiação ulta-
violeta entrando em excesso e provocando uma proliferação de
cânceres e doenças de pele, quanto pelo fenômeno natural do
aumento das manchas e explosões solares causado por
mudanças que irão de qualquer maneira ocorrer no sistema,
com o alinhamento perfeito, distinto do que ocorre de forma
anual, não tenho tempo agora para explicar os detalhes a
respeito, de todos os planetas ao sol e do sol ao centro da
galáxia. As manchas são regiões onde ocorrem reduções de
temperatura e pressão das massas gasosas solares, relacionadas
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intrinsecamente aos campos magnéticos; durante o próximo
período, com o alinhamento exato, que influirá no magnetismo,
aumentarão drasticamente suas ocorrências, o que provocará
alterações na ionosfera terrestre, influindo nas comunicações
de rádio. Manchas solares são mais frias do que a superfície
convencional; contudo, o sol fica mais violento na presença
delas, e uma série de reações em cadeia provocará imensas
explosões. Após o período de mais baixa atividade solar em
quase um século, se manifestarão de forma mais significativa
as chamadas labaredas solares, e como o campo de proteção
magnética da Terra será prejudicado, os sistemas de
comunicação e distribuição de energia elétrica entrarão em
pane. Com a continuidade desse processo, boa parte da
humanidade terráquea, já desequilibrada e a ponto de explodir,
enlouquecerá, os criminosos começarão a se aproveitar da
contínua escuridão para perpetrar seus crimes impunemente e,
sem a televisão, o rádio e a internet, os governos não terão mais
fácil acesso aos seus cidadãos; para completar, o aumento do
nível do mar e turbulências no oceano gerarão tsunamis e
países inteiros serão varridos pelas águas, a maior parte das
cidades costeiras desaparecerá. Para os religiosos fanáticos, a
ira de Deus que irá se manifestar, e muitos extremistas
começarão a matar os membros de outras religiões e os ateus e
agnósticos. A mudança não será apenas física, como também
mental e espiritual, disso poucos se darão conta, e uma outra
espécie muito antiga que permaneceu por milhões de anos
limitada ao plano espiritual, ou astral, se tornará
vibracionalmente compatível com o plano físico da Terra: os
que vocês talvez tenham ouvido falar nas teorias conspiratórias
sob a denominação de reptilianos, ou como falange dos
dragões; há muito de fantasia nas idéias de conspiração, mas
também verdades. Durante muito tempo, estes reptilianos
foram uma espécie vivendo próxima do físico, no chamado
umbral, seus domínios abaixo da crosta terrestre, no interior da
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Terra, porém num nível de existência que até hoje não pôde ser
detectado pela ciência terrestre. Apesar da aparência, não
descendem dos répteis da Terra, são na verdade uma civilização
de outro mundo exilada aqui por seres superiores para que
aprendesse junto com os terráqueos, porém ao invés de se
educar degenerou ainda mais, ambicionando se apoderar do
planeta no decorrer das eras. Com materializações eventuais
por períodos curtos, sempre influenciaram a política terrestre
no sentido de dirigi-la ao ocaso, esperançosos de que quando
chegasse o momento encontrariam uma humanidade fraca, fácil
de subjugar. Ao contrário da ciência humana, sabem o que irá
ocorrer em decorrência da atividade solar e procurarão
intensificar o processo, incentivando o homem a depredar a
natureza. Dessa forma, quando sairão das entranhas na Terra,
seus corpos compatíveis com a vibração do planeta, portanto
físicos, tomarão conta do que encontrarão e tornarão a
humanidade escrava.”
“Mas...Há como deter esse processo?”, Murdock conseguiu
tornar a falar porque era a única que estava levando realmente
a sério aquele discurso, afinal alguém que fazia o que aquele
homem mostrava ser capaz não podia ser um charlatão. Os
outros dois ainda resistiam.
“Não. Mas se existirem ao menos algumas pessoas
conscientes e preparadas, poderão enfrentar os reptilianos. Já
ouviu falar dos homens de preto, não ouviu?”
“Claro. Inclusive li um livro de Jacques Bergier que falava
sobre eles, e alguns relatos de pessoas que recebiam deles
ordens para não exporem a público suas experiências com
alienígenas. Mas sempre pensei que fosse puro folclore, afinal
nunca os vi, mesmo conhecendo gente da CIA e sendo parte da
NSA.”
“Os cabeças da organização dos homens de preto, que é na
verdade a Illuminati, a verdadeira sociedade secreta, não o
pequeno ramo que surgiu na Baviera no século XVIII, sempre
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foram reptilianos. O objetivo deles é deixar a humanidade
ignorante e impotente. Pode parecer um paradoxo que usem o
nome de illuminati, mas a luz da qual falam é uma luz que
cega, não que ilumina. Combateram durante os séculos os que
pregaram valores humanistas, sendo derrotados por diversas
vezes, como na ocasião do fracasso de Hitler, que
manipulavam por trás das cortinas, mas com a mudança
planetária acabarão por triunfar em conseqüência da
continuidade dos erros coletivos do ser humano.”, na tela a
imagem do ditador alemão discursando para a multidão, porém
se via algo que não era costumeiro nas imagens normais: uma
enorme sombra atrás do Führer, e outras menores atrás de seus
colaboradores. Os agentes foram percorridos por calafrios.
Mesmo quem não era favorável ao nazismo, entre os que
estavam ali presentes, sentia um impulso irresistível de erguer
o braço e gritar Heil Hitler!
“Esse sujeito era um mero fantoche dos illuminati, que
pretendiam na época bloquear a mescla de raças, fazendo com
que a humanidade tivesse menos variedade e liberdade, mas
esteve longe de ser o primeiro e único. Na própria segunda
guerra, entre 1943 e 1945, tivemos na Itália uma república
comandada por Mussolini, que tinha à sua disposição como
conselheiros, sem imaginar o que realmente fossem, diversos
illuminati. Estes coordenaram a queima de mais de oitenta mil
livros e manuscritos que pertenciam à Sociedade Real do Saber
de Nápoles. Inúmeros tesouros culturais foram reduzidos a
cinzas, e entre estes manuscritos inéditos de Leonardo da Vinci,
obras alquímicas e investigações curiosas, como a de um
homem que chegou a concentrar, com a ajuda de um telescópio
sobre a água, a luz de diferentes estrelas, obtendo assim uma
água-Sirius, uma água-Aldebarã, uma água-Vega e assim por
diante. Cristalizou a seguir substâncias sensíveis aos efeitos
cósmicos e meteorológicos, como o nitrato de urânio, obtendo
sais cristalizados que formaram agrupamentos que
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curiosamente se pareciam com os símbolos esotéricos da
estrelas. O homem é realmente um animal simbólico, os
símbolos são a maneira que a alma humana encontra para
sintetizar as leis da Criação, e estaria provado na Terra que
estes nunca tiveram nada de casual. Só que infelizmente o
estudo foi destruído pela união sinistra entre homens de preto e
camisas-negras.
“Como sempre pensei. Havia algo maior por trás do
nazismo.”
“Não só do nazismo.”, veio a imagem da antiga Alexandria, a
primeira cidade da Terra a ser construída por inteiro em pedra,
sem nenhuma utilização de madeira; um edifício se destacava
em seu núcleo espiritual, e o paranormal tratou de explicar do
que se tratava: “Esta que vocês estão vendo foi a famosa
biblioteca de Alexandria, que possuía incontáveis tesouros
herméticos e até mesmo obras que se referiam à presença
extraterrestre, como as de Beroso. Júlio César, o primeiro a
violentá-la, não se limitou a queimar alguns volumes, sob a
influência dos illuminati; na verdade pegou a maioria dos
escritos considerados secretos para si, o bibliotecário e seus
auxiliares conseguindo esconder outros a tempo. Só que muitas
coisas que estavam naqueles livros ele não devia saber ou
conhecer, e não por acaso foi assassinado por seu querido
Bruto.”, surgiu a cena do assassinato do grande líder romano,
mais viva do que em qualquer filme de época, e tanto Bruto
quanto Cássio sentiam suas mãos como que teleguiadas
enquanto apunhalavam César.
“Mas ele chegou a perceber que estava sendo manipulado?”
“Não, em nenhum momento. A missão dele para os illuminati
se limitava a destruir as obras de sabedoria, e como não a
concluiu, foi punido por isso.”, na seqüência, outra cena nos
tempos romanos: “Este agora é Diocleciano, que quis destruir
todas as obras que tratavam dos segredos da fabricação do ouro
e da prata. Ele pensava que se os egípcios conseguissem fazer
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isso, poderiam obter meios para criar um exército forte o
suficiente para combater o império.”, e vieram cenas dos
massacres no cerco a Alexandria, atrás do imperador e de seu
cavalo uma figura trevosa, encapuzada de preto, sem olhos
visíveis, apenas sombras por cima do nariz e dos lábios.
“Esse era um illuminati?”
“Isso mesmo. E claro que invisível para o imperador, assim
como foi para Omar, o fanático muçulmano que promoveu a
destruição sucessiva e definitiva. E agora reconhece esta
mulher?”
“É a famosa Madame Blavatsky, se não me engano.”
“Blavatsky cometeu seus erros, por vezes quis aparecer mais
do que sua missão lhe permitia, mas foi um dos tantos espíritos
enviados à Terra para abrandar o karma coletivo, talvez em
vão.”
“Lembro de ter lido a respeito de um relatório da sociedade de
pesquisas psíquicas britânica, pelo qual ela foi desmascarada,
considerada uma farsante.”
“Blavatsky entrou em depressão depois disso, porque na
verdade ela foi vítima de uma farsa, uma conspiração
organizada ao mesmo tempo pelo governo inglês, pelos
serviços policiais do vice-rei, já que ela defendia a
independência da Índia e por isso não podia ser bem-vista pelos
britânicos, por missionários protestantes que não desejavam
uma valorização da cultura oriental, e por último e mais
importante por membros da Illuminati, para a qual era uma
pessoa incômoda por buscar revelar a existência dos mestres
ascensionados ao mundo. Gandhi, que depois afirmaria sua
dívida moral para com ela e todo o movimento teosófico, seria
a vítima seguinte pelas mãos de outro assassino teleguiado, um
caso diferente do de César, mas a raiz sabemos qual é. Quanto
aos mestres, estes deixarão o planeta quando houver a crise que
estou mencionando, pois sua vibração se tornará incompatível
com a do planeta, e seriam como que envenenados se ficassem,
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a pureza que possuem não lhes permitirá permanecer, e só
poderão voltar após alguns bons séculos.”
“Mas afinal que tipo de seres são os reptilianos?”
“Na realidade, podem mudar de aparência e inclusive
parecerem belos seres humanos; são meramente na superfície
similares a répteis, e biologicamente bem mais resistentes do
que a humanidade terráquea, tolerando melhor tanto o frio
como o calor extremos. Seu sangue é de um terceiro tipo, nem
quente e nem frio como o dos habitantes da Terra, e se
alimentam de carne e sangue, porém, após um processo de
desintoxicação, conseguem comer frutas e outros alimentos
sem se sentirem mal.”
“Os greys fazem parte do mesmo grupo? Já ouvi histórias de
que os reptilianos criaram os greys para capturar seres
humanos.”
“Está bem-informada quanto a teorias de conspiração! Muito
bem...Pois muitas vezes ocorrem confusões e equívocos. Os
cinzentos são uma outra espécie extraterrestre, que não é
essencialmente negativa. O grande problema de sua evolução é
que desenvolveram apenas o intelecto, não sabem o que é o
amor, e por isso chegaram a colaborar com os reptilianos
algumas vezes, e alguns ainda colaboram, para realizarem
experiências. Valorizam o conhecimento acima de tudo,
veneram a mente, mas não sabem o que é Sabedoria.”, e na tela
surgiu a imagem de um grey ou cinzento, o corpo pequeno, as
mãos com três dedos cada, nu, com uma enorme cabeça,
desproporcional ao restante, em um formato que lembrava uma
pêra invertida, olhos negros imensos sem pupilas, boca
minúscula, pele cinza.
“Isso só pode ser hipnose...”, o velho permitiu que Williams
balbuciasse.
“O que está dito está dito. E, acreditem ou não, acontecerá.
Cabe a vocês decidirem o papel que terão neste processo, se
deixarão milhões de pessoas morrerem sem defesa, se por
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orgulho irão se eximir das responsabilidades em relação à
verdade, ou se avisarão o mundo e assim conseguirão salvar
algumas vidas que caso contrário estarão irremediavelmente
perdidas.”, uma luz azul eclodiu de modo repentino do centro
do peito do indivíduo misterioso, um pequeno sol, e quando os
agentes puderam voltar a enxergar, viram uma figura
completamente distinta diante de seus olhos: levitava ali um
indivíduo alto, por volta dos dois metros de altura, as pernas e
os braços compridos, em uma armadura celeste rutilante ornada
por algumas pedras que pareciam diamantes brancos, destaque
para uma maior no meio de uma armação no pescoço; a pele
era clara e lisa, e os cabelos loiros longos e escorridos, com
olhos de puro azul, sem pupilas, e uma aura de corredeiras
luminosas. Até mesmo o agente Williams ficou boquiaberto.
“Estou de partida. Terei que me ausentar por um longo tempo,
para vocês, das questões da Terra, devido a compromissos em
um mundo distante. O aviso foi dado.”, ao que, gaguejando,
Murdock indagou: “Quem é o senhor?”, tentada a se ajoelhar,
tomada por um irresistível impulso de devoção; aquele ser
parecia um anjo ou algo similar, um mensageiro de uma
realidade superior. “O meu nome é Ashtar Sheran.”, respondeu
o ser esplendoroso, que voltou a pousar seus pés no chão. “Já
ouvi falar. Mas pensei que não existisse, que fosse invenção
desse pessoal new age.”, disse Simons. “Não acredito no que
está acontecendo. Acho que estou ficando louco!”, exclamou
Williams. “Estão longe de ficar loucos e volto a salientar que,
apesar de algumas doses de fantasia, as teorias de conspiração
não são de todo ridículas. Prestem mais atenção ao seu redor.
Contestem. Observem. Não sejam crédulos, mas também não
sejam cegos. Escolhi me manifestar para vocês porque cada um
dos três reúne um aspecto interessante para desenvolver o
trabalho necessário de advertência à humanidade. Não
esmoreçam, e peço que valorizem esta escolha.”, replicou
Ashtar Sheran. “O que você é, afinal? Um comandante de uma
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frota interestelar meio Buda e meio Jesus?”, perguntou Simons.
“Não tenho muito que ver nem com Jesus, que era um
emissário do amor, disposto a sempre dar a outra face, nem
com Buda, que foi um amante da sabedoria, que restaurou em
si a concepção original que a Existência faz de nós e buscou
espalhar essa mensagem. Sou o que na Terra vocês definiriam
como um guerreiro, conquanto não lute para impor nada, e sim
para restabelecer as leis éticas da Criação quando estas são
violadas.”, e se seguiu outra pergunta, de Murdock: “A que
povo você pertence?”, Ashtar respondendo com um discreto
sorriso: “Hoje em dia não pertenço mais a nenhum povo. O
universo é minha morada. Por isso, costumo me manifestar de
forma diferente para cada espécie, de modo que seja sempre
um encontro agradável. Não tenho a intenção de assustar e nem
de chocar ninguém. Se mostrasse minha verdadeira aparência,
vocês ficariam cegos.”, e Simons complementou: “Seria como
ver a face de um anjo.”, e Ashtar, sorrindo com serenidade,
confirmou com um discreto aceno de cabeça antes de
desaparecer em uma nova explosão de luz, mais intensa do que
a primeira.
Uma vez o comandante interestelar tendo partido, Williams, o
mais impressionado de todos, não conseguiu parar de tremer
por alguns minutos; e quando voltou a olhar para o seu relógio,
notou espantado que tinha se passado muito menos tempo do
que imaginara; o tempo quase parara por alguns instantes, e
não podia tomar outra decisão a não ser acreditar, passando as
mãos pelo rosto suado. Deixou a NSA alguns dias depois,
abrindo na internet um site que falava sobre Ashtar Sheran, sua
experiência com a entidade e os segredos que os governos do
mundo escondiam, expondo todas as informações que recebera
durante o fatídico encontro. Não foi considerado um risco pelos
seus antigos patrões, tratado como um louco pela mídia, ainda
mais porque adquirira uma forte gagueira e se tornara todo
trêmulo, passando a ser visto como uma figura folclórica,
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diferentemente da agente Murdock, que permaneceu na NSA,
investigando a agência e também a CIA e os meandros do
governo norte-americano. Conseguiu reunir informações
valiosas, que estava acumulando para divulgar ao grande
público quando fosse o momento, uma verdadeira bomba. No
entanto, encontrava-se em seu apartamento tomando um café e
lendo alguns relatórios militares sobre interferências dos greys,
que conseguira obter quebrando as senhas de computadores
sigilosos, graças à ajuda de um amigo hacker, quando ouviu
batidas pesadas em sua porta. Por que não tocavam a
campainha? A princípio não cogitou que fosse nada sério,
depois raciocinando melhor e cogitando que começariam as
perseguições à sua pessoa ao sentir um calafrio muito
desagradável, e era como se viesse do outro lado da porta uma
energia tremendamente negativa. Pegou sua arma e ficou
imóvel de frente para a entrada por alguns segundos, até ouvir
a primeira ameaça:
“Senhorita Murdock, abra, por favor. Tenho ordens para
invadir sua residência se não nos permitir. Se não for por meios
pacíficos, será pela força.”
Como a haviam descoberto? Fora discretíssima. Talvez fosse
paranóia sua, apenas estariam investigando suas entradas em
órgãos do governo que nada tinham a ver com as suas missões
pela agência, mas sem qualquer informação conclusiva a seu
respeito que pudesse representar alguma ameaça. Porém e se os
illuminati tivessem começado a atuar? E se tivessem poder
suficiente para descobrir e seguir todas as suas ações? Não
estava paranóica a ponto de criar aquela situação mentalmente,
ao menos isso era certo que não, a voz e a presença do outro
lado da porta eram bem reais. Bem diferente do outrora cético
Williams, que vivia tendo pesadelos com os reptilianos, estava
bem equilibrada. Terminou por abrir a porta, e emitiu um leve
suspiro de susto ao se deparar com um homem baixo, de terno,
sapatos e calça pretos, pele azul-clara, desbotada, parecendo
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um pouco escamosa, e óculos escuros. Não tinha uma
expressão humana.
“Serei curto e direto. Não lhe farei mal se permanecer em
silêncio. Que fique bem claro: estamos a par de todas as suas
atividades, sabemos todos os seus passos, e se por acaso pensa
em divulgar o que descobriu, considere-se um cadáver. Até
permitimos que descobrisse, porém não irá mais adiante.
Continue seu trabalho como agente como era antes, ou leve
uma vida pacata.”
Aquele era um dos homens de preto. Murdock sabia que com
ele seria impossível argumentar, e agora que sabia de tantas
verdades, nunca iria negá-las à população. Por isso sacou seu
revólver e atirou. O disparo furou a testa do sujeito, que no
entanto, depois da cabeça se inclinar para trás devido ao
impacto, voltou a olhá-la de frente. Os olhos eram pretos sem
pupilas, e gélidos.
“Nossos cérebros não ficam necessariamente em nossas
cabeças.”, a pele da testa se reconstituiu e, quando ela se pôs a
atirar seguidas vezes, tentando acertar outras partes do corpo,
ele saltou, e se locomovia a uma velocidade tão grande que
logo estava em suas costas, tampando-lhe a boca com uma
mão, impedindo-a de gritar, e tirando a arma com a outra,
imobilizando-a com sua aura fria e pesada. “Não adianta
resistir. Última chance, senhorita.”, ela não precisou berrar em
recusa à proposta da criatura, que leu suas intenções e quebrou
seu pescoço, fulminando-a a seguir com um tiro certeiro na
cabeça. No dia seguinte foi noticiado um incêndio que por
pouco não se espalhara por todo o prédio onde residia a agente.
Seu corpo acabou carbonizado junto com todos os seus
pertences. A notícia não intimidou Williams, que foi a
programas televisivos e deu entrevistas a jornais dizendo que
fora não um acidente e sim um crime cometido pelo governo
oculto do mundo, afinal Murdock, cujo nome preservara
durante todos esses anos a pedido dela, fora a agente que
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estivera a seu lado durante o fatídico encontro com Ashtar
Sheran. Poucos deram ouvidos ao ex-agente, e entre estes
apenas alguns esotéricos que ele não tivera a intenção de atrair,
vindo até ele para falar das conjunções astrais que anunciavam
o iminente fim do mundo.
Simons, que ao contrário da colega tivera o nome publicado
por Williams, deixara a NSA no mesmo período do
companheiro, indo por um caminho distinto, vendendo livros
sobre a conspiração reptiliana e juntando uma boa fortuna com
isso. Ao ser perguntado por repórteres se o que escrevera era
verdade ou ficção, e se estava de acordo com o ex-colega para
dar origem a um best-seller e se dividiam os lucros dos direitos
autorais, dava respostas elípticas. Williams fazia questão de
dizer que nunca recebera um centavo de Simons, que definia
como um aproveitador, um vendido, cujo nome estava em suas
revelações porque era a pura verdade, nunca tivera o menor
interesse na criação de qualquer romance midiático.
Apesar do sucesso de público, a crítica destruiu as séries de
livros de Simons, considerando-os de péssima qualidade
literária, oportunistas e repletos de clichês. Sem se importar
com isso, o ex-agente nunca seria ameaçado pelos homens de
preto e fez sua família, casando-se com uma modelo e tendo
dois filhos.
Williams morreu na miséria, abandonado por sua mulher, que
se envolveu com um vendedor, após contrair tantas dívidas que
o obrigaram a morar na rua. Como última visão de sua
existência, entre as latas de lixo de um beco, uma serpente que
após perseguir um rato terminou por morder a própria cauda,
sua pele se descascando e se revelando vermelha e queimada
por baixo. Apesar do frio pelo resto do corpo, em uma noite
gelada de inverno em Nova Iorque, suas pernas recebiam o
calor do centro da Terra, e foi assim, entre os extremos, que seu
espírito partiu.
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CAPÍTULO 1 – Céu Vermelho
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cinco anos, de cabelos ruivos e pele bem clara, olhos castanhos
pequenos como seu nariz e sua boca, usava óculos, e gostava
de se vestir de preto e cinza, entre calças, camisas escuras,
jaquetas e sobretudo; não era de falar muito, preferia ouvir, um
observador nato, simpático com seus interlocutores. Estava
tomando uma taça de vinho e comendo um belo prato de
macarronada, não fazendo questão de regular o apetite mesmo
nos ambientes mais elegantes e passando o pão no molho que
sobrava no prato, o que causava irritação em sua mulher, ainda
mais quando se sujava.
“Joshua, pelo amor de Deus! Você é uma figura pública, e vê
se dá um bom exemplo pras crianças...”, falou-lhe no ouvido
com a voz contida, mas a raiva nem tanto.
“Que eu saiba não escrevo best-sellers!”, deu uma resposta
bem-humorada.
“Mesmo assim é bem conhecido, ou não teriam vindo já sete
pessoas pedir autógrafos pra você.”
“Sério que foram sete? Não contei, achei que tinham sido
menos.”
“Dá pra deixar de ser cínico?”
“Cínico? Juro que não estou sendo! Ah não, Anna, não vamos
começar outra vez...”, por mais que não quisesse admitir isso,
seu casamento estava em crise, e era para ele horrível que suas
brincadeiras mais inocentes e a simplicidade no seu modo de
agir estivessem gerando tantos mal-entendidos. Quando
haviam se conhecido e nos anos de namoro, noivado e nos
primeiros do matrimônio, estavam juntos havia quase doze,
Anna o definira como um cavalheiro, um príncipe, pela sua
cultura e por ser carinhoso, porém não conseguia mais suportar
certos desleixos do marido, que apesar de divertido e
inteligente, extasiante nos momentos íntimos, esquecera por
duas vezes seguidas seu aniversário, deixava todo o serviço de
casa e a labuta com as finanças e os filhos para ela e não se
importava nem um mínimo com a opinião alheia. Tudo bem
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que era um artista, alguém diferenciado em relação à massa, só
que exatamente por isso precisava cuidar de sua imagem
pública. Sempre o apoiara, mesmo nos anos em que o
reconhecimento não viera, pois escrevia e já havia publicado
sua primeira obra quando se conheceram, contudo não podia se
sacrificar tanto, afinal não era só uma dona de casa como tinha
responsabilidades pesadas em seu escritório de advocacia.
Anna era pouco mais baixa do que o esposo, cabelos pretos
cacheados e grandes olhos negros, uma morena de semblante
compenetrado e palavras firmes. Seus discursos tinham sempre
começo, meio e fim, ao contrário das falas e textos
assistemáticos de Joshua, e possuía um grande poder de
persuasão, que não funcionava tão bem apenas com seu
marido.
Costumava comer pouco por estar sempre de dieta, tendo
ficado só um pouco acima do peso após a segunda gravidez.
Regulava muito também a alimentação das crianças, no que
Joshua era contrário: “Você não precisa exagerar desse jeito. A
criança não pode ser obesa, mas não tem problema se for um
pouco gordinha. Eu mesmo fui cheinho e depois enxuguei! Não
dá claro pra eles abusarem das frituras, mas um pouco a mais
de lasanha não vai matar ninguém.”, ela não queria saber dos
argumentos dele, e seguia do seu jeito. Como Joshua não era fã
de discussões, preferindo estar em paz, não se opunha com
veemência quando discordava e procurava com freqüência o
silêncio, o que a irritava ainda mais. Anna via seus argumentos
se perderem ao vento, nunca o dobrava, por mais que
“vencesse” algumas discussões, e quando o notava aéreo,
pensando em seus livros ou em alguma outra coisa distante que
ela tentava saber o que era, mas não conseguia descobrir, saía
do sério: “Você prestou atenção no que eu disse ou eu estava
falando com as paredes?”
Os dois tinham bastante em comum, gostavam de literatura,
de espiritualidade, e durante o namoro haviam inclusive
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praticado yoga juntos e Joshua lhe apresentara os antigos textos
de sabedoria que eram algumas de suas fontes de inspiração,
como as Upanixades, a Bíblia, a filosofia de Plotino e alguns
poemas e histórias zen-budistas. Com o tempo, Anna foi se
interessando mais exclusivamente pela vida prática, tomada
pelo direito e abandonando o aspecto espiritual, que passou a
ser um interesse meramente intelectual, distante. Deixaram de
fazer muitas coisas juntos, o que o entristeceu, mas buscou
aceitar a mudança, ao mesmo tempo que sem perceber, de
forma inconsciente, foi perdendo o interesse na companheira,
que vivia lhe falando de processos e causas enroscadas.
Por estes e outros motivos, com as férias do escritório, o casal
decidiu aproveitar o tempo para viajar e voltar a fazer algumas
coisas juntos. Pena, ele lamentou, que ela não estivesse com a
cabeça tão fresca ainda.
A nave em que se encontravam, a Canaan, um grande ônibus
espacial cilíndrico que era como um hotel em seu interior,
estava indo para Marte, que fora colonizado pela civilização
terrestre naqueles tempos. Não se poderia falar apenas em
humanidade terrestre, pois após o fim da guerra entre os
reptilianos do interior do planeta e os humanos, que ofereceram
sua resistência, as duas espécies chegaram a uma coexistência
pacífica, ao menos exteriormente, o que era visível na Canaan:
os tripulantes de pele verde ou azul escamada, sem nenhum fio
de pêlo ou cabelo, seus olhos lembrando cobras ou crocodilos,
alguns exibindo suas caudas, dificilmente cumprimentavam os
humanos ou eram cumprimentados por estes. O casal
Christiansen era dos poucos cordiais com os reptilianos e nem
sempre, devido ao mútuo preconceito, recebiam em troca o
mesmo tratamento.
Após o período da grande crise, a face da Terra, que se tornara
um planeta bem mais frio, mudara de maneira drástica,
algumas terras submergiram, outras emergiram, tanto que
Voynich, o país de onde vinham e a principal potência da
22
civilização na época, apresentava em suas metrópoles ruínas
atlantes de mármore e oricalco entre os arranha-céus mais
modernos. Prevalecia o tráfego terrestre, com carros que se
moviam sobre colchões de ar, e o trânsito nas grandes cidades
era bastante caótico; contudo, ao menos o transporte público
era dominado pelas aeronaves, o que minimizava a turbulência
urbana.
O restaurante da Canaan apresentava um ambiente de
refinação esteticista e um certo esnobismo que incomodava
Joshua. Quando o escritor, parecendo sem jeito com os olhares
que recebia, se levantou para ir ao banheiro e, todo
atrapalhado, tropeçou na toalha de mesa e deixou cair tudo no
chão, Anna levou as mãos ao rosto e meneou a cabeça para os
lados, desaprovando o desastre sem conseguir falar nada, ao
passo que os filhos do casal riram.
Walter e Luna adoravam seu pai, principalmente a menina, de
seis anos, bastante mimada (a “pulguinha sardenta” de Joshua),
e que, como a mãe vinha dizendo, estava ficando respondona.
O garoto, que era mais moreno do que a irmã, tendo puxado
mais a Anna nos traços, recém-completara onze anos, gostava
de cantar e tinha uma boa voz, tendo chegado a participar de
um programa infantil de talentos alguns meses antes e
alcançado as semifinais. No momento, férias à parte,
estudavam em período integral; e, enquanto Anna se
interessava pelos deveres de casa e pelo rendimento escolar,
Joshua os “deseducava”, incentivando as brincadeiras e as
atividades criativas, estimulando o talento do filho para a
música e o da filha para o desenho. A esposa não chegava a se
opor nisso, afinal as crianças precisavam de momentos de
diversão e distração e possuíam mesmo dons especiais, tanto
que fora ela que levara Walter à televisão, só não aprovava que
o tempo do lazer excedesse o do dever. Uma carreira de cantor
ou de desenhista nunca seria tão segura quanto uma no direito,
na medicina ou na engenharia, isso do seu ponto de vista.
23
Precisava zelar pelo futuro do seu casalzinho, já que o casal
adulto não ia assim tão bem.
“Que papelão hoje! Às vezes não acredito como você pode ser
tão atrapalhado. Você é culto, educado, trata bem todo o tipo de
pessoa, mas como mete os pés pelas mãos! Precisaria ser
menos disperso. Hora de pensar nos seus livros é hora de
pensar nos seus livros, hora do jantar é hora do jantar. Você que
medita tanto, não consegue ficar atento?”, discutiram quando
foram para seus aposentos no ônibus espacial, um apartamento
amplo, onde seu quarto, com direito a uma cama ampla e
confortável, repleta de almofadas, um ambiente perfumado
com suavidade, estava bem separado do das crianças.
“O trabalho criativo é diferente de qualquer outra coisa. Me
vêm uma cena, uma idéia, um personagem, e não consigo
sossegar enquanto não coloco no papel. Tem horas que penso
que é como uma doença, ou uma maldição. Não tem como
conter, e nisso fico aéreo, pensando no momento em que vou
poder trabalhar, e angustiado pelo medo de perder o que
pensei.”
“Não vá me dizer que trouxe o seu computador...”
“Bem que pensei em trazer escondido, mas com medo de
levar uma surra, trouxe só um caderno.”
“Você não toma jeito mesmo!”, terminaram rindo da situação
e se entendendo no calor dos corpos; ela não conseguia conter
a paixão que conservava pelo marido, que conhecia os segredos
e caminhos de seu prazer como ninguém, e Joshua resolveu
pedir desculpas ao final do ato, após um período de silêncio,
olhares e carícias:
“Sei que ando um tanto negligente, afinal um casamento não é
só sexo e interesses em comum, é saber ouvir e dividir
problemas, é deixar um pouco de lado o que é nossa diversão
individual, que no meu caso é a escrita, pra compartilhar do
mundo do outro. Por isso estou pedindo desculpas pelos
últimos tempos, e acho que essa viagem vai nos fazer muito
24
bem.”
“Não se preocupe, querido. Eu também tenho sido imatura,
pentelha, exigente demais, criticado você em excesso, cobrado
em horas que não devia e mulher é assim mesmo, meio dodói!
Mas você é o único homem que me cativou, nunca senti nada
parecido antes de te conhecer. Você não toca só o meu corpo,
toca diretamente o meu coração. É que fico com medo de você
perder o interesse em mim, por isso toda a cobrança. Sobre
você ser atrapalhado, mil vezes um homem que tem bom-
humor do que esses advogados sérios e sisudos com quem
convivo no trabalho.”
“Falhei muito com você, e isso deve ter passado a impressão
de falta de interesse.”, ele estava se sentindo um pouco
culpado. “Mas acho que é natural em todos os relacionamentos
um período de crise. A nossa está um pouco longa, mas vai
passar.”
“Quando um relacionamento sai de uma crise, fica mais forte,
e tenho certeza que será assim com a gente. Se você perdeu um
pouco do interesse em mim, mesmo que seja pouco, e que não
admita, não adianta fazer essa cara, vou lutar pra recuperar
isso. Vamos voltar a fazer atividades juntos. O erro mais grave
da maioria dos casais está em deixar de namorar, de se curtir.”
“Vamos determinar a partir de hoje uma virada para o nosso
relacionamento. Não vale a pena deixar pra amanhã.”, seria um
período de reconstrução.
Contudo, quando a Canaan acabara de chegar em Marte, e se
aproximava do espaçoporto de Arash, uma das principais
cidades-estado do planeta, de maior população e economia,
outras duas naves, menores, mas sem tripulação, que eram na
verdade duas bombas voadoras, de formato oval, surgiram de
forma imprevista e atingiram em cheio o luxuoso ônibus
espacial. Não haveria nenhum motivo para atingi-lo, um
veículo que se limitava a transportar civis de classe média-alta
de um planeta para o outro. Só que a explosão ocorreu e foi
25
violenta, o fogo desta de um vermelho brilhante e ofensivo
similar ao que o céu de Marte, em seu crepúsculo, apresentava
naquele momento. Os destroços caíram sobre os habitantes
apavorados da cidade, que além dos edifícios altos e do rubor
dominante apresentava belas áreas verdes, algumas das árvores
elevadas infelizmente atingidas pelos pedaços incandescentes
da Canaan. Qual o destino da família Christiansen? Ante um
desastre daquela amplitude, nenhum sobrevivente seria a
resposta mais lógica. Joshua, Anna e as crianças deviam estar
dormindo no momento do terrível impacto, entre sonhos de
formas e vozes confusas.
CAPÍTULO 4 – Rebelião
“Imagino que com toda essa turbulência não tenha tido tempo
para escrever nada, nem para amenizar a própria dor.”, Yeats
disse a Joshua, enquanto conversavam e relaxavam um pouco
após o almoço.
“Não tive mesmo. Mas, por incrível que pareça, acho que
encontrei um toque de tranqüilidade no núcleo do estrondo.”
“Imagino. Não posso dizer que compreendo o que sente, mas
posso imaginar.”
“Nunca amou uma mulher?'
“Nunca dediquei uma veneração especial a um ser em
particular. Sempre apreciei a liberdade, o amor sem restrições.”
“Valorizar a todos por igual, sem distinções, me faz lembrar
Orifiel, o que me traz calafrios. Mas sei que está falando de um
sentimento inteiramente distinto, oposto até, apesar da
aparência ser similar. Orifiel não se apegava, mas também não
amava.”
“Joanna é uma grande mulher, e aliviará o peso sobre suas
costas, ajudando-o a carregá-lo enquanto não se livrar dele.
Quem sabe o amor entre vocês possa me servir de inspiração
no futuro...”
“Você também é escritor, Jerome?”
“Tento escrever, mas nada do seu nível! Ainda tardará para
que consiga publicar algo. Estou trabalhando há alguns anos
em um romance arturiano, uma releitura particular do mito, que
contará, mais ou menos evidentes, sob uma forma de narrativa
fantasiosa, os principais conceitos da filosofia da Sapiens.”
“Parece muito interessante, já tem título?”
“Sangreal.”
“Sugestivo. O que acha de me mostrar algum trecho?”
“Mostrarei, é claro. Mas peço para que seja benevolente em
113
suas críticas, meu caro. Sou um iniciante e ainda são
rascunhos.”
“Tenho certeza que é um trabalho excelente, só que você deve
ser do tipo perfeccionista, que jamais está satisfeito.”
“O caminho da magia me ensinou a buscar a perfeição.
Afinal, um trabalho mágico não pode ser algo meia-boca. Se
não for perfeito, não funciona.”
“Uma diferença é que na magia só precisamos satisfazer a nós
mesmos. Na arte, mesmo que seja só um gato pingado, há a
fruição do outro.”
“Você tem razão. Não é à toa que magia, a meu ver, é bem
mais fácil.”
“Só que mais perigoso.”
“Nem sempre. Um artista, quando começa a trabalhar, está
sujeito a ser incompreendido. E, nesse contexto, como em
outras áreas da vida pode não se dar tão bem, a falta de
reconhecimento gera miséria e tristeza, o que pode conduzir ao
suicídio externo ou interno. O artista fracassado termina por
sabotar a si mesmo, ao menos em vida.”
“Quando foi que começou a se torturar...Quero dizer, a
escrever?”
“Meu iniciador e Emmanuel, que como você deve saber era
poeta, me incentivaram ao descobrirem minhas experiências
fundindo palavras e imaginação. Meu bom professor se
chamava Spenser. Quer conhecê-lo?”
“Ele está aqui?
“Não, mas posso chamá-lo.”
“Deve ser um homem atarefado, melhor não perturbá-lo.”
“Gostaria de participar de um ritual mágico?”
“Sim, por que não?” respondeu após refletir um pouco.
“Então vamos chamar Spenser, que não pertence mais a este
mundo, através do espelho místico.”, tais palavras
surpreenderam Joshua, que foi com o grão-mestre até o
aposento das evocações. Tratava-se de um quarto amplo e
114
escuro, as cortinas negras cobrindo as janelas. Apenas os
principais oficientes da SDA tinham uma cópia da chave da
porta, Yeats o único com direito a todas as chaves de todos os
espaços relevantes nas casas da Ordem. Somente a luz de velas
era permitida no ambiente, três grandes círculos mágicos
concêntricos gravados no chão, contendo diferentes nomes
divinos e símbolos cabalísticos, a árvore da vida numa das
paredes, um altar de mármore com uma caixa revestida por um
tecido púrpura sobre este, e o espelho mágico pendurado ao
fundo, coberto. O grão-mestre estava com sua espada,
embainhada. “Para que tenha contato com objetos sagrados que
apenas membros da Sapiens com um certo grau podem ver e
manusear, terei que iniciá-lo e exorcizar o que for nocivo. Sei o
quanto é poderoso, muito mais do que eu, mas aqui não se trata
de poder, e sim de um trabalho de consciência e purificação da
alma. Quer ir adiante?”
“Você armou uma bela armadilha para mim, Jerome...”
“Não é uma armadilha. A escolha é e será sempre sua.”
“Livre-arbítrio...”
“Se quiser, podemos ajudá-lo a se livrar dos seus demônios.
Ainda não cheguei a descrevê-la, mas haverá uma cena em
meu romance onde Arthur, após o fim da batalha de Camlan,
enfrentará o demônio que tentou matá-lo já no nascimento e
que manipulou Mordred, e que de certa forma também
terminou por manipulá-lo, e tombarão juntos. Há nesse livro
algum grau de canalização, penso, porque em certos momentos
o escritor parece ser outro, de outro mundo ou ao menos outra
condição espiritual, e não eu, além da história dar a impressão,
apesar do contexto fantástico, mas sabemos que a vida é
realismo fantástico, de ser algo que aconteceu, em nosso
passado, que pode ter sido muito diferente do que os
historiadores imaginam, afinal muitos documentos foram
destruídos, ou no de outro universo. Mas isso não é relevante
agora...Faça sua escolha: cair com seus demônios ou tomar um
115
novo rumo?”
“Sou velho demais para novos rumos.”
“Não é velho demais para Joanna.”
“Você é mesmo um grande mago. Toca nos meus pontos
fracos sem precisar ser violento. Acho que é pior do que
Orifiel! Brincadeiras à parte, preciso pensar. Meu maior dilema
não é me livrar do Demônio, mas me conformar que ele quer
continuar no Inferno, que não adianta querer puxá-lo pra que
veja Deus, porque um dia ele vai sim se libertar da lama e do
enxofre, só que não serei eu a arrancá-lo da danação, e sim
Deus.”
“A opção é sua. Está começando a compreender. Acho que foi
o amor de e por uma mulher que lhe fez bem, quem sabe isso
me estimule a algum dia provar um pouco dele. Por outro lado,
você não se cansou ainda, depois de passar três séculos
pensando?”, Joshua, que pisara no círculo mágico, percebeu
que não poderia mais sair dele. E iria querer sair?
Ficaram em silêncio, Yeats olhando para Joshua e Joshua para
si mesmo, por meia-hora. O segundo teve que assumir sua
decisão: “Em frente.”, e Jerome concordou.
Alegria e tristeza, amargura e doçura, dor, agonia e esperança;
acima de tudo confiança, algo que não sentia com plenitude
desde que Ashtar se fora, uma reconquista que deveria
agradecer a Joanna e seus amigos. Provavelmente ainda não
poderia libertar as almas de suas vítimas-inimigos, mas
libertando a si mesmo talvez se esquecessem dele, ou alguém
desceria para ajudá-los a esquecer ou transcender. Mas ele,
antes de todos os espíritos aos quais causara sofrimento,
precisava transcender. Eles não evoluiriam se seu detestado
algoz não evoluísse.
“Ó Deus de minha alma, sábio, forte e pleno de Poder, Fonte
de todos os seres, santifica este lugar com a tua majestade e a
tua presença, para que a pureza e a plenitude da Lei aqui
residam e preencham este lugar de Luz. Que tua Essência
116
divina se infunda e se espalhe em meu ser, me purificando de
todas as impurezas da mente, do espírito e do corpo, a fim de
que possamos permanecer em comunhão com os mestres
espirituais. Assim seja!”, Jerome deu a Joshua um folheto com
esta oração e a pronunciaram em conjunto. Feito isso, abriu os
quatro cantos do espaço, pedindo a presença dos espíritos do ar
no leste, dos da terra no norte, da água no oeste e do fogo no
sul. Na etapa seguinte: “Concentre-se no seu chakra coronário,
e junto comigo chame mentalmente os espíritos do éter.”, e,
dos dois lótus multicoloridos, abriram-se não as mil pétalas que
cada qual possuía, mas certamente uma considerável
quantidade destas; nos núcleos derramou-se uma corredeira de
claridade dourada, que foi escurecendo embora sem perder o
brilho, até se tornar da cor do espaço sideral, ao passo que os
chakras ficaram primeiro brancos e depois prateados. O
ambiente foi envolvido por uma névoa azulada, onde
começaram a se manifestar, ainda um tanto maleáveis em
excesso e confusos, dispersando-se ao passar de alguns
segundos, rostos de diferentes tipos de criaturas. Yeats pediu
então que o outro ficasse de joelhos no centro dos círculos e
disse, colocando-lhe a mão direita no topo da cabeça: “Que
este meu irmão possa ficar livre de todo tipo de influência
nefasta. Exorcizo-o em nome de Deus, que meu santo anjo da
guarda me auxilie a livrá-lo de todos os malefícios, e que os
espíritos que o atormentam abandonem as ilusões da mágoa e
do ódio, e encontrem cada um seu verdadeiro caminho. Que os
que se acham em desespero e loucura recuperem a razão e a
tranqüilidade.”, Joshua sentiu um líquido quente mas agradável
se espalhar pela sua cabeça, e ouviu-se um grito; seguiram-se
logo outros, mais ou menos agudos, um urro gutural que não
parecia nada humano silenciando as demais vozes, todavia teve
início uma profusão de barulhos, como portas batendo, objetos
caindo, passos e janelas se abrindo, mesmo que nada ocorresse
no plano da matéria. O ex-membro do Comando Ashtar se
117
sentia bastante seguro, afinal já enfrentara muitas situações de
extremo perigo, só que Jerome não se furtou de adverti-lo:
“Continue mantendo a calma, porém cuidado com qualquer
forma de orgulho. A situação de agora é diferente dos
confrontos que enfrentou até hoje. O seu mundo interno pode
explodir. Olhe agora para as chamas das velas.”, um vento forte
veio do leste; e as velas não se apagaram. “O fogo não pode
sobrepujar o ar. Os elementos tem que estar em harmonia.”, o
mago explicou. “Prepare-se, pois o fogo irá purificar o seu
espírito.”, Jerome retirou sua mão e o líquido quente na cabeça
desceu e se espalhou por todo o corpo; Joshua fechou os olhos,
que principiaram a arder, e não mais conseguiu abri-los. Viu o
líquido: ora vermelho, ora dourado; e sua temperatura
aumentou, e continuou aumentando, a ponto do agradável se
tornar primeiro incômodo e por fim insuportável. O calor se
tornou queimação, era como um ácido passando dentro de suas
veias e artérias; e ao voltar a ser aceitável, cessando o ardor
excessivo, o cenário que viu à sua volta foi uma paisagem
infernal, montanhas rochosas onde escorriam rios de lava,
penhascos e despenhadeiros, vales repletos de arbustos secos e
espinhosos, com humanóides de pêlos brancos e olhos negros
esbugalhados, curvados, as mãos e os braços magros, os
ventres proeminentes, saindo de grutas obscuras. Vultos
escuros e de aparência famélica se juntaram à sua volta. Sentiu
medo, e a impressão de ter voltado ao passado, à frágil
existência de Domingos Xavier, um desajustado, um exilado na
própria vida, sem poderes extra-sensoriais, sem certezas a
respeito da vida após a morte e da presença dos irmãos de
outros mundos. Não demorou a passar a ser Samael Gibor, os
pensamentos da época vindo à tona, a saudade de Ashtar, e
reconheceu entre os que o cercavam os rostos dos illuminati
que executara. Os estranhos humanóides brancos, de faces
rosadas, agora pôde discerni-las ao enxergá-los mais de perto,
se aproximaram. Vozes mentais repetiam o tempo inteiro
118
palavras de vingança, raiva e desespero. Não podia lutar contra
ninguém ali: uma fraqueza tremenda tomou conta de seu
espírito e desabou sobre suas próprias pernas. Viu a si mesmo
todo branco, esqueletizado, sem pêlos ou cabelos; numa poça
de fogo líquido, seu reflexo: horrendo. Controlou-se para não
berrar; saíram gemidos sufocados. Queria fugir, mas lhe
faltavam forças. Iniciou-se um espancamento, recebendo
golpes de diferentes intensidades, vindos de todas as direções.
Estava próximo de desistir de tudo e se entregar, pediu perdão a
Joanna, mas uma vibração diferente o percorreu de forma
repentina, produzindo em seu interior um alívio profundo; as
pancadas passaram a não doer como antes, e ao erguer a cabeça
recobrou os cabelos e foi recuperando o resto de sua aparência,
vendo sua falecida esposa Anna à sua frente, com um olhar
firme e despido de qualquer egoísmo, como que para lhe
estender a mão. “Eu me esqueci de você. E você ainda veio me
ajudar! Me perdoe.”, lamentou telepaticamente. “Pare de se
culpar e se desculpar, Joshua.”, ela respondeu pelo mesmo
meio. E continuou: “Você precisa viver a sua vida, ser feliz. Já
sei de tudo. Me falaram quem você é realmente. E não se
preocupe, não o condeno por ter me escondido a verdade por
todos os anos em que estivemos juntos. Era necessário para que
você tivesse paz, e eu que me desculpo agora porque tantas
vezes o perturbei, sem nem ter idéia do que realmente o afligia.
Sinto muito, meu querido.”; e o ex-integrante do Comando
respondeu, reerguendo seu tronco enquanto a presença dela
afastava as sombras e os humanóides pálidos: “Muitas vezes,
nem imagina quantas, você me trouxe paz. Me ajudou a
esquecer muitos pesadelos com suas carícias, seus beijos e suas
palavras carinhosas.”
“Você não sabe o que está dizendo.”, deixou escorrer algumas
lágrimas.
“Você é que não sabe.”
“Não importa quem esteja com a razão. O importante é que
119
você tem uma vida a seguir na Terra, enquanto eu irei por
outros caminhos.”
“Algum dia iremos nos reencontrar.”
“Não penso nisso tão cedo.”
“Mas por quê?”
“Ainda pergunta? Você tem a Joanna agora.”
“Mas...”, hesitou diante daquela resposta. “Nós podemos ser
amigos.”
“Algum dia. Não tão cedo. Os meus sentimentos não
mudaram, tente entender isso. E você não tem culpa de nada.
Você é o pai dos meus filhos, que agora estão aqui comigo.
Eles estavam loucos pra ver você...”, ao ver suas crianças, sua
energia regressou por completo, pôde se recolocar de pé,
postando-se com firmeza, e todos os espíritos que antes o
agrediam se foram, menos um, uma sombra sem rosto que
ficou parada observando a cena do abraço que o pai deu nos
filhos. Dois olhos se abriram naquela escuridão antes abismal:
recuperara a lucidez; estava livre. Nessa hora, Joshua reabriu
suas pálpebras físicas, voltando a enxergar o mundo material.
“Você conseguiu, meu amigo. Venceu o passado.”, a única
coisa de diferente no lugar desde que o deixara em espírito
consistia na presença daqueles humanóides brancos em volta
dos círculos, que o haviam acompanhado em seu retorno, ao
que parecia.
“O que são esses seres?”, enxugou com as mãos os olhos
levemente umedecidos. “Estavam na minha experiência do
outro lado.”
“Também não faço idéia.”, as criaturas encaravam os dois
com vívida curiosidade. Entretanto, não tardaram a se
desvanecer na névoa azulada. “O plano astral é repleto de seres
que desconhecemos. Temos que admitir nossa ignorância. Não
pareciam mal-intencionados, apenas curiosos, mas vamos ao
que interessa: vou iniciá-lo para passarmos ao espelho.”,
Jerome requisitou ao companheiro, que ainda estava ajoelhado,
120
para que ficasse de pé; na seqüência, os espíritos do ar, visíveis
como pequenos e estranhos homenzinhos alados (azuis, sem
cabelos, com asas cristalinas que não paravam de bater nem
por um instante), trouxeram um cálice de madeira com água,
conteúdo e recipiente abençoados pela intenção do grão-
mestre, que expôs: “Beba esta água como se estivesse bebendo
um santo elixir, coloque o fogo interno numa postura sagrada, e
todas as impurezas do seu corpo e da sua alma serão varridas.”,
seguidas as recomendações, o calor que ainda restava em
Joshua se dissipou em definitivo, decorrendo uma intensa
sensação de alívio. Realizou uma prece espontânea, e assim
que a terminou Yeats sentiu disso e o consagrou,
desembainhando sua espada e apoiando a lâmina em seu ombro
direito: “Que Deus o abençoe hoje e sempre. Seja bem-vindo
entre nós. Esta será a sua casa, e você será um dos caseiros.
Não podemos dizer que será um dos donos, porque nenhum de
nós é dono de nada. O único dono da Criação é Deus.”, selou o
acontecimento com um beijo na testa e um abraço.
“Muito obrigado por tudo, Jerome. Não tenho palavras.”
“Se não tem, melhor que continue em silêncio.”, pouco
depois, sem sair do círculo, através da ação dos espíritos do ar,
o grão-mestre removeu o pano que encobria o espelho místico.
Novas instruções foram passadas para Joshua: “Afaste
qualquer outro pensamento que não seja a intenção de atrair o
mestre Spenser a este lugar. Não podemos ficar tensos. Que o
chamado seja realizado com serenidade.”, e, Spenser chamado
por seu nome por diversas vezes pelo oficiante principal,
intercalando-se o verbo com momentos de silêncio, a evocação
chegou a um ponto em que a névoa azulada penetrou no vidro,
a fumaça aos poucos dando forma a barba e bigodes, até que se
delineou o rosto de um idoso, calvo e branco, com um olhar
bastante tranqüilo e benevolente. “Há quanto tempo, meu
amado pupilo. E vejo que está bem-acompanhado hoje.”
“Mestre, este é Joshua Christiansen.”
121
“Já sei disso. E sei também que ele já teve vários nomes
diferentes. Mas não importa, afinal o que interessa, o que
levamos pela eternidade, é nossa essência, e não nomes
transitórios. Seja bem-vindo entre nós, amigo.”
“Obrigado, agradeço as boas-vindas.”, Joshua, que estava
bem atento, se inclinou levemente em respeito ao mago
desencarnado, mas que nem por isso deixava de ser um
indivíduo de extraordinária sabedoria. A questão seguinte
estava prevista:
“Há muito tempo que não me chama, Jerome. Sei que há algo
neste chamado além da simples vontade de mostrar como
funciona o espelho mágico para o nosso irmão. E também não
foi somente para livrá-lo de seus fantasmas do passado e iniciá-
lo em nosso grupo. Por que me convocou aqui hoje?”
“Senti que a Stella está planejando algo. E gostaria de saber se
o senhor sabe de alguma coisa, pois em outro plano pode-se ter
uma visão privilegiada em relação à que nós temos aqui.”,
replicou Yeats.
“A intuição e a observação, às vezes unidas, em algumas
ocasiões uma decorrendo da outra, sempre foram duas de suas
maiores virtudes, e são mesmo essenciais para um mago de
primeiro nível. No entanto, não é por alguém estar morto que
tem uma visão melhor da vida como um todo, você sabe muito
bem disso. Alguns depois de mortos continuam tão cegos
quanto eram em vida, ou pioram.”
“Claro que sei disso, mas o senhor é diferente. Não é um
morto qualquer. Aliás, não está morto, apenas deixou para trás
um corpo. É que no plano de existência no qual sei que o
senhor está, a visão é sim privilegiada em relação a nós.”
“Agora sim fala com correção. A verdade é que não posso ver
muito das ações e dos pensamentos de von Strauffenberg, eles
não deixam de possuir suas barreiras de proteção psíquica, mas
consegui captar algo de outros membros, mais descuidados, e é
meu dever adverti-los.”
122
“Impressão minha ou é só em parte que a convocação veio de
Jerome? Agora está me parecendo que na verdade foi o senhor
que o chamou, não o contrário.”, Joshua interveio.
“A evocação depende dos dois lados, quando se trata de um
espírito elevado. Alguém com uma consciência inferior à nossa
virá de qualquer forma se o chamarmos. Alguém superior só irá
vir se quiser, se a nossa postura for a adequada, e saberá de
antemão que iremos convocá-lo.”, explicou o grão-mestre.
“É isso, meus caros. Quanto à advertência, diz respeito a um
atentado que a Stella realizará em Munchen, dentro de três
dias: um atentado que terá início pelos ares, aparentemente
visando o centro financeiro do país, só que isso servirá apenas
para distrair a frota de proteção da cidade.”, Spenser se referia
à capital de Voynich. “O ataque principal ocorrerá por terra,
contra o palácio do governo, e este que vocês deverão deter.
Pretendem matar o presidente e os senadores.”, Yeats ia fazer
algumas outras perguntas, porém nessa hora a névoa se
dissipou e junto com esta evaporaram o rosto e a voz de seu
mentor. Conquanto no início o desaparecimento tenha lhe
parecido súbito e decepcionante, um corte abrupto na interação
mágica, refletiu que, se aquilo ocorrera, Spenser já lhes havia
dito o que sabia e não tinha mais porque interagir com o mundo
material. Não iria cometer a indelicadeza de chamá-lo
novamente em um curto período de tempo. Preferiu convocar
uma reunião, explicando a situação aos membros presentes, e
buscando elaborar uma estratégia para o confronto:
“Está claro que esse ataque não se restringe à intenção de
acabar com a elite governante de Voynich. Eles querem nos
atingir, pois sabem que de alguma forma estaremos presentes
para detê-los, como estivemos em outras ocasiões. Você ainda
não deve saber, Joshua, mas muitos atentados terroristas só não
foram piores porque nós minimizamos esses desastres. E, que
fique agora mais claro do que nunca, a guerra contra a Stella
nunca foi e nem será apenas sua.”
123
“Acho que compreendi bem.”, o ex-membro do Comando
Ashtar respondeu na mesa de reuniões. “O que eu não queria
era que por minha causa o Comando os perseguisse. E confesso
que havia outro temor, que antes não admitia nem para mim
mesmo, e que passei a reconhecer depois da cerimônia de
iniciação: o medo de entrar em outro grupo e me desiludir mais
uma vez, como aconteceu com o Comando. É doloroso abrir
mão de uma missão, de amigos, de gente e de tarefas que se
tornaram o fulcro de uma existência. Era por isso também que
não desejava que se aproximassem tanto de mim, além de não
querer que sofressem por minha causa. Só que isso passou, e
devo confiar em vocês e agradecê-los por tudo.”
“Nós é que agradecemos a sua presença. Antes, tínhamos uma
força equivalente à Stella. Com o seu poder e a sua
experiência, estou certo que nos tornamos superiores. Não por
acaso vi, com a sua chegada, a oportunidade de decidir essa
guerra de uma vez por todas. Não é oportunismo, é uma chance
de darmos um fim ao sofrimento de tantas pessoas, a tantas
mortes em atentados terroristas e ações violentas, a essa tensão
que paira pelo mundo, como se a qualquer momento o lugar
onde comemos ou conversamos com nossos amigos possa
explodir, e irmãos nossos possam ser assassinados. Você sabe
bem como é isso, e eu também, porque os meus pais e a minha
irmã perderam suas vidas em um bombardeio da Stella em
Arash, onde na ocasião estavam reunidos alguns chefes de
estado. Como os políticos estavam bem cercados, a provocação
foi atacar os civis, que para eles são menos do que animais.
Temos que dar um fim nessa mentalidade. No que diz respeito
ao Comando, este agindo como inimigo da humanidade o
trataríamos como tal e partiríamos para enfrentá-lo você
querendo ou não, estando do nosso lado ou não. Estamos todos
prontos para morrer, por mais que desejemos viver. Não há
como nos poupar. Perdoem-me pela digressão...”
“Pra nossa sorte, você, Joshua, está do nosso lado sim! Como
124
diria o meu pai, uma ajudinha de cima sempre vai bem, mesmo
que nada caia do céu!”, Joanna brincou, e seu companheiro
sorriu de leve, com alguma melancolia.
A reunião durou mais uma hora, e depois o casal pôde ficar a
sós. Tinham muito o que conversar.
“Quer dizer que foi iniciado...Como foi? Está se sentindo
mais leve agora?”
“O Comando irá me caçar, que eu fuja para o espaço ou para o
centro da Terra, depois do que fiz com o Orifiel.”
“E o que ele causou a você, isso não importa?”
“Para eles não...Pelo menos não para os que pensam como
ele. Porém ao menos não tenho mais espíritos atormentados nas
costas, e nem culpas, as sombras tomaram seus próprios
caminhos, e isso porque tomei uma decisão firme, de me
respeitar e de me compreender.”
“De agora em diante vamos lutar juntos e nos apoiar um no
outro. Quando estiver carregando muito peso, divida um pouco
comigo. Não se preocupe com os meus problemas, e desabafe
quando precisar.”
“Essas palavras são minhas também. De qualquer forma, não
quero mais carregar nem pouco e nem muito peso. Quero ficar
leve e livre.”
“Nem tão livre assim...Já te amarrei!”
“Não estou falando nesse sentido. Falo de uma liberdade
interior.”
“E eu não sei disso, seu bobo? Claro que não te amarrei
também, era brincadeira!”
“Dizem que toda brincadeira tem um fundo de verdade...”,
abriu um discreto sorriso.
“Hoje vou te enforcar!”, puxou-o para perto, beijou-o com
intensidade e logo caíram na cama, onde começaram a se
despir para materializar o amor.
222
__________________________
EPÍLOGO
O REI:
Encontrei, perdida na floresta, uma linda donzela trajada de
branco. Interrompi então a caçada ao cervo na qual estava
engajado com meus homens, apaixonando-me à primeira vista.
“Quem é você?”, perguntei, antes de convidá-la a subir em
meu cavalo. “E se dissesse que não sei?”, a princípio replicou
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com outra pergunta, e bastante estranha. “Se é assim, não sou
eu quem deveria saber.”; “Na verdade, perdi a memória.
Quando dei por mim, acordei entre estas árvores.”; “Este é o
bosque que circunda o meu castelo. Sou o rei de Dujon.”,
trouxe-a portanto à minha morada, entregando-lhe o melhor
dos aposentos afora o meu, despejando deste um dos meus
vassalos, ignorando seus queixumes e enviando-o a um andar
inferior. Passaram-se os dias e, a pedido da própria dama, lhe
dei uma função, a de me servir, trazendo-me as roupas e
refeições. Numa noite, contudo, não resisti, pedindo-lhe que
jantasse comigo. Conversamos e brincamos, pena que seu
passado não fosse acessível, até que com o primeiro beijo
quebrei qualquer distância. Não importavam mais as
pretendentes com berço de ouro: me casaria com meu amor
sem origem.
A RAINHA:
Consegui o que queria. O rei não pôde mais controlar seu
desejo graças à minha arte! Sabia que a poção produziria a
loucura se fosse colocada em excesso no vinho, por isso
bastaram algumas gotas. Além disso, aproximava meu rosto,
mexia nos cabelos, achegava-me com os seios, bem-acolhidos
em meu decote, ainda melhor pelas mãos dele. Nenhuma nobre
me ameaçaria mais, e como rainha de Dujon não tinha poder
para legislar ou promover guerras, só que mais do que isso
possuía em mãos o coração daquele que podia realizar muito
mais.
O DIABO:
A maga pensou que saíra vitoriosa! Doce ilusão. Capturei e
moldei a sombra desprezada, jogando-a na floresta, e as
ambições ocultas não tardaram a se manifestar. É tolo quem
acredita que pode vencer as paixões! E há ainda mais tolice e
estupidez quando quem tenta o impossível é uma mulher.
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Veremos o que fará nossa rainha!
A MAGA:
A perplexidade tomou conta de minha alma quando, ao
chegar em Dujon, todos me olhavam admirados, e alguns se
inclinavam, como se eu fosse uma rainha ou uma santa. Como
nunca busquei o espiritual para a glória terrena, e sem
entender de que maneira o vulgo podia compreender minha
Realização, a menos que tivesse ido parar em outro mundo,
resolvi me cobrir com um capuz. O maior susto, no entanto, se
deu ao ver o rei que saía em seu passeio matinal com sua
rainha; o espanto: ela era minha imagem ao espelho, ainda
que coroada, repleta de jóias e revestida de púrpura, enquanto
eu estava com os trajes mais simples. Agora compreendia por
que me faziam reverências: certamente não pelo êxito
espiritual.
Nunca ouvira falar de alguma irmã gêmea perdida,
descobrindo a verdade ao fitar a sombra dela, que ao fundo,
por baixo da tênue escuridão, ocultava o ardiloso Demônio,
que se ria de mim e dizia que eu não triunfara, apenas me
dividira; e a rainha me fitou com brevidade, mas seu olhar era
de uma ironia intensa e consciente. Precisava salvar a vida do
rei.
O LOUCO:
Por eu falar e enxergar demais, logo a rainha sugeriu (ou
ordenou?) minha execução, me acusando de conspirar contra
o rei. Cego, ele não se lembrava mais que o bobo é o único
livre para dizer qualquer coisa. No cárcere, enquanto
aguardava a forca, a Inimiga veio até mim; ao menos foi o que
pensei ao vê-la, e esperei pelos piores insultos e provocações,
mas só podia ter ficado louco, surpreendido por uma tremenda
doçura, apesar da voz ser a mesma: “Amigo, você precisa me
ajudar a salvar o reino.”, as grades milagrosamente se
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abriram, e ela me explicou ser uma maga, que vencera as
tentações do Diabo, mas este capturara sua sombra, que agora
era a rainha de Dujon. Nenhuma outra história faria mais
sentido.
A MORTE:
Tentei adverti-lo de diversas formas: fiz com que sonhasse
todas as últimas noites com cemitérios e mausoléus de
suntuosidade decrépita; enviei corvos e abutres para
sobrevoar seu castelo; deixei alguns bois morrerem à sua
porta, e as carcaças apodreceram. De nada adiantou, a rainha
seduziu um venenoso barão e este contratou o melhor
mercenário do reino para acertar com uma flecha precisa o
peito do rei durante uma caçada. Teria sido seu fim, se o bobo,
que incrivelmente escapara da prisão alguns dias antes, não
tivesse se posto à frente com um amplo escudo, no momento
exato. O mercenário se viu obrigado a fugir, embora não fosse
conseguir escapar de mim; eu, a dama cinzenta, o envolvi com
meu manto: seu coração parou e despencou do cavalo, que
seguiu adiante sozinho.
A RODA DA FORTUNA:
Em meu novo giro, o destino do bufão fora transmutado. E foi
recebido como herói em seu retorno a Dujon, até a rainha se
desculpando publicamente pelo “mal-entendido” e pelas
injustiças que cometera para com sua pessoa. Entrementes, na
intimidade com o rei, tornava a envenená-lo, dizendo que fora
o próprio bobo a contratar o falso assassino para depois se
passar por herói; e devia ser certamente um bruxo, para
escapar do cárcere sem qualquer explicação racional. O rei
replicou que desta vez iria ponderar, a fim de não cometer
nenhum erro. Começava a ter dúvidas sobre sua amada,
enquanto o barão cruel, em sua carruagem, maquinava novos
planos.
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O MAGO:
Disse à minha irmã que estava procedendo com correção,
porém precisava ser cuidadosa, e não necessitaria mais agir
sozinha. Partimos juntos para Dujon, e nos encontramos com
o bufão no beco de uma taverna. Tomei sua forma, e no castelo
induzi no rei sonambulismo, após fazê-lo adormecer por meio
de chistes e cantos que não tinham como finalidade entreter.
Não havia graça, e as melodias eram tortuosas. Fiz com que
despertasse em frente ao quarto onde a rainha gemia com seu
amante. Pegos em flagrante, o barão foi decapitado pela
espada do monarca, mas a terrível feiticeira escapou,
transformando-se em morcego e voando para a floresta.
Estava ensandecida de ódio, seu vôo cessando quando foi
atraída de volta para o solo por minha irmã. Chegara o
momento do confronto decisivo, entre as árvores da noite.
O JULGAMENTO:
Os anjos da maga se chocaram com os demônios da sombra.
Os três círculos que envolviam a primeira giravam no sentido
horário, os dois da segunda no anti-horário. A terra tremeu.
Os relâmpagos rasgaram o ar. No olho da tempestade, a
decisão. Como terminaria? Tudo dependeria não do que se
diz...- Um jogo de cartas, conto de Joshua Christiansen.
I – Pânico
II – Teatro
III – Transbordamento
IV – Tempo e espaço
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