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MARCELLO SALVAGGIO

Intraterra

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INTRATERRA

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Você não pode criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta
obra sem a devida permissão do autor.

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Intraterra tem como base as teorias da conspiração
envolvendo reptilianos e illuminati, além de referências a
diversas sociedades secretas e à ufologia mística. A ação do
romance se inicia nos dias de hoje e prossegue trezentos anos à
frente, após grandes transformações na civilização. O mistério
paira sobre o protagonista Joshua Christiansen: será um
simples escritor, como alega? Um agente governamental? Um
integrante do Comando Ashtar, patrulha interestelar
responsável por trazer uma nova luz a diferentes mundos? Ou
um mago pertencente a alguma seita obscura?

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PRÓLOGO

Pelos corredores secretos, espaços perversos debaixo da terra,


ouviam-se os passos dos sapatos, o som da cavalgada tensa de
um espectro vivo que acreditava saber perfeitamente o que
precisava ser feito. O agente Williams, um negro alto de
semblante duro e cabeça raspada, retirou os óculos escuros ao
entrar na sala prateada, hermeticamente fechada, onde estava
preso o suposto terrorista. Contudo, ao vê-lo pela primeira vez
pessoalmente só lhe pareceu ter encontrado um louco
inofensivo. O velho barbado e sujo, que se recusara a tomar
banho desde que fora detido, estava jogado no canto, as roupas
rasgadas, as costas feridas apoiadas à parede gelada. Seu olhar,
perdido do mundo, era de morte sem vida.
“Esse é quem seria um dos grandes líderes terroristas em
nosso país? Não passa de um autista, o que é mais do que
evidente! Só seria capaz de se explodir depois de encherem seu
corpo de bombas enquanto dorme!”, bradou o agente após
confirmar suas primeiras impressões; tentara interrogar o
suspeito e este permanecera mudo, ora olhando para o vazio,
ora fechando os olhos. “Como puderam cogitar que fosse um
criminoso de alta periculosidade? Estamos perdendo tempo,
enquanto a Al-Qaeda prepara novos ataques.”
“Achamos que ele esteja fingindo. Os médicos disseram que
esse miserável é perfeitamente são, após uma série de exames
realizados. Nenhuma lesão no cérebro. E pode não estar
falando agora, mas já falou muito. Anunciou a algumas
pessoas, sem muito critério, ao que parece para provocar e
assustar, o ataque às Torres Gêmeas e os últimos atentados que
ocorreram ao redor mundo antes que estes acontecessem, azar
dele que uma destas era o Scott, que o prendeu imediatamente.
E não parece estar restrito à Al-Qaeda! Conhece os
movimentos de todas as organizações terroristas. Só pode

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portanto ser um dos cabeças, embora alegue ser um visionário,
e que o fim da civilização que conhecemos se aproxima.”,
explicou o agente Simons, um homem loiro e robusto, de
expressão ácida.
“Mais um profeta do Apocalipse! O que ele diz sobre 2012?”,
a pergunta de Williams partiu repleta de ironia.
“Ele deve estar simulando a loucura e inventando esse papel
de vidente para escapar das acusações e das evidências. É um
verme covarde, não podemos cair nessa atuação.”
“Mas e se for realmente um visionário? Não poderia nos ser
útil? Não podemos negar que ele acertou o que disse.”, inquiriu
a agente Murdock, uma ruiva de face sardenta, os cabelos
curtos.
“Você acredita nessas coisas?”, de repente, após a indagação
cética, Simons esboçando um sorriso irônico, o sujeito
começou a tremer e sua boca a espumar, atraindo a atenção dos
agentes; com seus olhos aparentemente sem salvação, o azul
disperso como um rio sem margens, viu dependurado no teto
um estranho morcego com traços de réptil, as asas semelhantes
às de um pterossauro. Porém não se tratava de um simples
animal: sua existência era claramente cruel e inteligente.
Alucinação?
Despejou seu verbo sobre aqueles indivíduos, que pertenciam
à NSA, a Agência de Segurança Nacional (National Security
Agency), órgão norte-americano que já fora tão secreto que
recebera os apelidos que eram algo como “não há tal agência”
(No Such Agency) e “nunca diga nada” (Never Say Anything):
“Vocês são tolos. Devido a imbecis pretensiosos como vocês, o
mundo está arruinado!”, sem deixar de ser fitado pela criatura,
que era inacessível aos demais.
“Pelo visto vamos ter uma sessão de delírios! Não quero
perder mais tempo, chamem um psiquiatra para levar esse
pobre diabo! Os acertos dele devem ter sido puro acaso.”
“Não custa ouvir um pouco, Williams.”, objetou Murdock.
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“Claro que custa! Estamos perdendo tempo!”, mas o agente
sentiu abruptamente seu corpo gelar e seu estômago ficou
embrulhado ao receber sobre si os olhos do velho, que pela
primeira vez o encarava. Um nó em sua garganta impediu que
sua voz tornasse a sair em seguida. Simons também começou a
passar mal; a única que continuou bem foi Murdock.
“Se não querem me ouvir, terei que forçá-los a algo mais, pelo
bem da humanidade. Serei sincero agora: sabia a identidade
verdadeira do seu amigo Scott, e propositadamente me deixei
capturar. Agora arquem com as conseqüências de sua inépcia!”
“O que está fazendo??”, a agente ia sacar sua arma, acreditava
em poderes psíquicos e pensou estar diante de um paranormal
perigoso; mas, por mais força que fizesse, perdeu os
movimentos e a voz.
“Não ia forçar você, a única que tem a mente mais aberta, mas
não tive outra escolha. Vou lhes mostrar e dizer algumas coisas
que seus superiores já sabem em parte...”, os três viram uma
espécie de tela cristalina se abrir, imagens passando a
acompanhar a voz do estranho sujeito, enquanto o morcego
guinchou e desapareceu da visão deste. “Para começar, fiquem
cientes que a Terra mudará profundamente. Primeiro, o
aquecimento do planeta, que já está em curso, com o
derretimento das geleiras, se intensificará, tanto por razões
humanas, devido ao pouco cuidado com o meio-ambiente, a
camada de ozônio praticamente desfeita e a radiação ulta-
violeta entrando em excesso e provocando uma proliferação de
cânceres e doenças de pele, quanto pelo fenômeno natural do
aumento das manchas e explosões solares causado por
mudanças que irão de qualquer maneira ocorrer no sistema,
com o alinhamento perfeito, distinto do que ocorre de forma
anual, não tenho tempo agora para explicar os detalhes a
respeito, de todos os planetas ao sol e do sol ao centro da
galáxia. As manchas são regiões onde ocorrem reduções de
temperatura e pressão das massas gasosas solares, relacionadas
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intrinsecamente aos campos magnéticos; durante o próximo
período, com o alinhamento exato, que influirá no magnetismo,
aumentarão drasticamente suas ocorrências, o que provocará
alterações na ionosfera terrestre, influindo nas comunicações
de rádio. Manchas solares são mais frias do que a superfície
convencional; contudo, o sol fica mais violento na presença
delas, e uma série de reações em cadeia provocará imensas
explosões. Após o período de mais baixa atividade solar em
quase um século, se manifestarão de forma mais significativa
as chamadas labaredas solares, e como o campo de proteção
magnética da Terra será prejudicado, os sistemas de
comunicação e distribuição de energia elétrica entrarão em
pane. Com a continuidade desse processo, boa parte da
humanidade terráquea, já desequilibrada e a ponto de explodir,
enlouquecerá, os criminosos começarão a se aproveitar da
contínua escuridão para perpetrar seus crimes impunemente e,
sem a televisão, o rádio e a internet, os governos não terão mais
fácil acesso aos seus cidadãos; para completar, o aumento do
nível do mar e turbulências no oceano gerarão tsunamis e
países inteiros serão varridos pelas águas, a maior parte das
cidades costeiras desaparecerá. Para os religiosos fanáticos, a
ira de Deus que irá se manifestar, e muitos extremistas
começarão a matar os membros de outras religiões e os ateus e
agnósticos. A mudança não será apenas física, como também
mental e espiritual, disso poucos se darão conta, e uma outra
espécie muito antiga que permaneceu por milhões de anos
limitada ao plano espiritual, ou astral, se tornará
vibracionalmente compatível com o plano físico da Terra: os
que vocês talvez tenham ouvido falar nas teorias conspiratórias
sob a denominação de reptilianos, ou como falange dos
dragões; há muito de fantasia nas idéias de conspiração, mas
também verdades. Durante muito tempo, estes reptilianos
foram uma espécie vivendo próxima do físico, no chamado
umbral, seus domínios abaixo da crosta terrestre, no interior da
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Terra, porém num nível de existência que até hoje não pôde ser
detectado pela ciência terrestre. Apesar da aparência, não
descendem dos répteis da Terra, são na verdade uma civilização
de outro mundo exilada aqui por seres superiores para que
aprendesse junto com os terráqueos, porém ao invés de se
educar degenerou ainda mais, ambicionando se apoderar do
planeta no decorrer das eras. Com materializações eventuais
por períodos curtos, sempre influenciaram a política terrestre
no sentido de dirigi-la ao ocaso, esperançosos de que quando
chegasse o momento encontrariam uma humanidade fraca, fácil
de subjugar. Ao contrário da ciência humana, sabem o que irá
ocorrer em decorrência da atividade solar e procurarão
intensificar o processo, incentivando o homem a depredar a
natureza. Dessa forma, quando sairão das entranhas na Terra,
seus corpos compatíveis com a vibração do planeta, portanto
físicos, tomarão conta do que encontrarão e tornarão a
humanidade escrava.”
“Mas...Há como deter esse processo?”, Murdock conseguiu
tornar a falar porque era a única que estava levando realmente
a sério aquele discurso, afinal alguém que fazia o que aquele
homem mostrava ser capaz não podia ser um charlatão. Os
outros dois ainda resistiam.
“Não. Mas se existirem ao menos algumas pessoas
conscientes e preparadas, poderão enfrentar os reptilianos. Já
ouviu falar dos homens de preto, não ouviu?”
“Claro. Inclusive li um livro de Jacques Bergier que falava
sobre eles, e alguns relatos de pessoas que recebiam deles
ordens para não exporem a público suas experiências com
alienígenas. Mas sempre pensei que fosse puro folclore, afinal
nunca os vi, mesmo conhecendo gente da CIA e sendo parte da
NSA.”
“Os cabeças da organização dos homens de preto, que é na
verdade a Illuminati, a verdadeira sociedade secreta, não o
pequeno ramo que surgiu na Baviera no século XVIII, sempre
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foram reptilianos. O objetivo deles é deixar a humanidade
ignorante e impotente. Pode parecer um paradoxo que usem o
nome de illuminati, mas a luz da qual falam é uma luz que
cega, não que ilumina. Combateram durante os séculos os que
pregaram valores humanistas, sendo derrotados por diversas
vezes, como na ocasião do fracasso de Hitler, que
manipulavam por trás das cortinas, mas com a mudança
planetária acabarão por triunfar em conseqüência da
continuidade dos erros coletivos do ser humano.”, na tela a
imagem do ditador alemão discursando para a multidão, porém
se via algo que não era costumeiro nas imagens normais: uma
enorme sombra atrás do Führer, e outras menores atrás de seus
colaboradores. Os agentes foram percorridos por calafrios.
Mesmo quem não era favorável ao nazismo, entre os que
estavam ali presentes, sentia um impulso irresistível de erguer
o braço e gritar Heil Hitler!
“Esse sujeito era um mero fantoche dos illuminati, que
pretendiam na época bloquear a mescla de raças, fazendo com
que a humanidade tivesse menos variedade e liberdade, mas
esteve longe de ser o primeiro e único. Na própria segunda
guerra, entre 1943 e 1945, tivemos na Itália uma república
comandada por Mussolini, que tinha à sua disposição como
conselheiros, sem imaginar o que realmente fossem, diversos
illuminati. Estes coordenaram a queima de mais de oitenta mil
livros e manuscritos que pertenciam à Sociedade Real do Saber
de Nápoles. Inúmeros tesouros culturais foram reduzidos a
cinzas, e entre estes manuscritos inéditos de Leonardo da Vinci,
obras alquímicas e investigações curiosas, como a de um
homem que chegou a concentrar, com a ajuda de um telescópio
sobre a água, a luz de diferentes estrelas, obtendo assim uma
água-Sirius, uma água-Aldebarã, uma água-Vega e assim por
diante. Cristalizou a seguir substâncias sensíveis aos efeitos
cósmicos e meteorológicos, como o nitrato de urânio, obtendo
sais cristalizados que formaram agrupamentos que
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curiosamente se pareciam com os símbolos esotéricos da
estrelas. O homem é realmente um animal simbólico, os
símbolos são a maneira que a alma humana encontra para
sintetizar as leis da Criação, e estaria provado na Terra que
estes nunca tiveram nada de casual. Só que infelizmente o
estudo foi destruído pela união sinistra entre homens de preto e
camisas-negras.
“Como sempre pensei. Havia algo maior por trás do
nazismo.”
“Não só do nazismo.”, veio a imagem da antiga Alexandria, a
primeira cidade da Terra a ser construída por inteiro em pedra,
sem nenhuma utilização de madeira; um edifício se destacava
em seu núcleo espiritual, e o paranormal tratou de explicar do
que se tratava: “Esta que vocês estão vendo foi a famosa
biblioteca de Alexandria, que possuía incontáveis tesouros
herméticos e até mesmo obras que se referiam à presença
extraterrestre, como as de Beroso. Júlio César, o primeiro a
violentá-la, não se limitou a queimar alguns volumes, sob a
influência dos illuminati; na verdade pegou a maioria dos
escritos considerados secretos para si, o bibliotecário e seus
auxiliares conseguindo esconder outros a tempo. Só que muitas
coisas que estavam naqueles livros ele não devia saber ou
conhecer, e não por acaso foi assassinado por seu querido
Bruto.”, surgiu a cena do assassinato do grande líder romano,
mais viva do que em qualquer filme de época, e tanto Bruto
quanto Cássio sentiam suas mãos como que teleguiadas
enquanto apunhalavam César.
“Mas ele chegou a perceber que estava sendo manipulado?”
“Não, em nenhum momento. A missão dele para os illuminati
se limitava a destruir as obras de sabedoria, e como não a
concluiu, foi punido por isso.”, na seqüência, outra cena nos
tempos romanos: “Este agora é Diocleciano, que quis destruir
todas as obras que tratavam dos segredos da fabricação do ouro
e da prata. Ele pensava que se os egípcios conseguissem fazer
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isso, poderiam obter meios para criar um exército forte o
suficiente para combater o império.”, e vieram cenas dos
massacres no cerco a Alexandria, atrás do imperador e de seu
cavalo uma figura trevosa, encapuzada de preto, sem olhos
visíveis, apenas sombras por cima do nariz e dos lábios.
“Esse era um illuminati?”
“Isso mesmo. E claro que invisível para o imperador, assim
como foi para Omar, o fanático muçulmano que promoveu a
destruição sucessiva e definitiva. E agora reconhece esta
mulher?”
“É a famosa Madame Blavatsky, se não me engano.”
“Blavatsky cometeu seus erros, por vezes quis aparecer mais
do que sua missão lhe permitia, mas foi um dos tantos espíritos
enviados à Terra para abrandar o karma coletivo, talvez em
vão.”
“Lembro de ter lido a respeito de um relatório da sociedade de
pesquisas psíquicas britânica, pelo qual ela foi desmascarada,
considerada uma farsante.”
“Blavatsky entrou em depressão depois disso, porque na
verdade ela foi vítima de uma farsa, uma conspiração
organizada ao mesmo tempo pelo governo inglês, pelos
serviços policiais do vice-rei, já que ela defendia a
independência da Índia e por isso não podia ser bem-vista pelos
britânicos, por missionários protestantes que não desejavam
uma valorização da cultura oriental, e por último e mais
importante por membros da Illuminati, para a qual era uma
pessoa incômoda por buscar revelar a existência dos mestres
ascensionados ao mundo. Gandhi, que depois afirmaria sua
dívida moral para com ela e todo o movimento teosófico, seria
a vítima seguinte pelas mãos de outro assassino teleguiado, um
caso diferente do de César, mas a raiz sabemos qual é. Quanto
aos mestres, estes deixarão o planeta quando houver a crise que
estou mencionando, pois sua vibração se tornará incompatível
com a do planeta, e seriam como que envenenados se ficassem,
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a pureza que possuem não lhes permitirá permanecer, e só
poderão voltar após alguns bons séculos.”
“Mas afinal que tipo de seres são os reptilianos?”
“Na realidade, podem mudar de aparência e inclusive
parecerem belos seres humanos; são meramente na superfície
similares a répteis, e biologicamente bem mais resistentes do
que a humanidade terráquea, tolerando melhor tanto o frio
como o calor extremos. Seu sangue é de um terceiro tipo, nem
quente e nem frio como o dos habitantes da Terra, e se
alimentam de carne e sangue, porém, após um processo de
desintoxicação, conseguem comer frutas e outros alimentos
sem se sentirem mal.”
“Os greys fazem parte do mesmo grupo? Já ouvi histórias de
que os reptilianos criaram os greys para capturar seres
humanos.”
“Está bem-informada quanto a teorias de conspiração! Muito
bem...Pois muitas vezes ocorrem confusões e equívocos. Os
cinzentos são uma outra espécie extraterrestre, que não é
essencialmente negativa. O grande problema de sua evolução é
que desenvolveram apenas o intelecto, não sabem o que é o
amor, e por isso chegaram a colaborar com os reptilianos
algumas vezes, e alguns ainda colaboram, para realizarem
experiências. Valorizam o conhecimento acima de tudo,
veneram a mente, mas não sabem o que é Sabedoria.”, e na tela
surgiu a imagem de um grey ou cinzento, o corpo pequeno, as
mãos com três dedos cada, nu, com uma enorme cabeça,
desproporcional ao restante, em um formato que lembrava uma
pêra invertida, olhos negros imensos sem pupilas, boca
minúscula, pele cinza.
“Isso só pode ser hipnose...”, o velho permitiu que Williams
balbuciasse.
“O que está dito está dito. E, acreditem ou não, acontecerá.
Cabe a vocês decidirem o papel que terão neste processo, se
deixarão milhões de pessoas morrerem sem defesa, se por
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orgulho irão se eximir das responsabilidades em relação à
verdade, ou se avisarão o mundo e assim conseguirão salvar
algumas vidas que caso contrário estarão irremediavelmente
perdidas.”, uma luz azul eclodiu de modo repentino do centro
do peito do indivíduo misterioso, um pequeno sol, e quando os
agentes puderam voltar a enxergar, viram uma figura
completamente distinta diante de seus olhos: levitava ali um
indivíduo alto, por volta dos dois metros de altura, as pernas e
os braços compridos, em uma armadura celeste rutilante ornada
por algumas pedras que pareciam diamantes brancos, destaque
para uma maior no meio de uma armação no pescoço; a pele
era clara e lisa, e os cabelos loiros longos e escorridos, com
olhos de puro azul, sem pupilas, e uma aura de corredeiras
luminosas. Até mesmo o agente Williams ficou boquiaberto.
“Estou de partida. Terei que me ausentar por um longo tempo,
para vocês, das questões da Terra, devido a compromissos em
um mundo distante. O aviso foi dado.”, ao que, gaguejando,
Murdock indagou: “Quem é o senhor?”, tentada a se ajoelhar,
tomada por um irresistível impulso de devoção; aquele ser
parecia um anjo ou algo similar, um mensageiro de uma
realidade superior. “O meu nome é Ashtar Sheran.”, respondeu
o ser esplendoroso, que voltou a pousar seus pés no chão. “Já
ouvi falar. Mas pensei que não existisse, que fosse invenção
desse pessoal new age.”, disse Simons. “Não acredito no que
está acontecendo. Acho que estou ficando louco!”, exclamou
Williams. “Estão longe de ficar loucos e volto a salientar que,
apesar de algumas doses de fantasia, as teorias de conspiração
não são de todo ridículas. Prestem mais atenção ao seu redor.
Contestem. Observem. Não sejam crédulos, mas também não
sejam cegos. Escolhi me manifestar para vocês porque cada um
dos três reúne um aspecto interessante para desenvolver o
trabalho necessário de advertência à humanidade. Não
esmoreçam, e peço que valorizem esta escolha.”, replicou
Ashtar Sheran. “O que você é, afinal? Um comandante de uma
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frota interestelar meio Buda e meio Jesus?”, perguntou Simons.
“Não tenho muito que ver nem com Jesus, que era um
emissário do amor, disposto a sempre dar a outra face, nem
com Buda, que foi um amante da sabedoria, que restaurou em
si a concepção original que a Existência faz de nós e buscou
espalhar essa mensagem. Sou o que na Terra vocês definiriam
como um guerreiro, conquanto não lute para impor nada, e sim
para restabelecer as leis éticas da Criação quando estas são
violadas.”, e se seguiu outra pergunta, de Murdock: “A que
povo você pertence?”, Ashtar respondendo com um discreto
sorriso: “Hoje em dia não pertenço mais a nenhum povo. O
universo é minha morada. Por isso, costumo me manifestar de
forma diferente para cada espécie, de modo que seja sempre
um encontro agradável. Não tenho a intenção de assustar e nem
de chocar ninguém. Se mostrasse minha verdadeira aparência,
vocês ficariam cegos.”, e Simons complementou: “Seria como
ver a face de um anjo.”, e Ashtar, sorrindo com serenidade,
confirmou com um discreto aceno de cabeça antes de
desaparecer em uma nova explosão de luz, mais intensa do que
a primeira.
Uma vez o comandante interestelar tendo partido, Williams, o
mais impressionado de todos, não conseguiu parar de tremer
por alguns minutos; e quando voltou a olhar para o seu relógio,
notou espantado que tinha se passado muito menos tempo do
que imaginara; o tempo quase parara por alguns instantes, e
não podia tomar outra decisão a não ser acreditar, passando as
mãos pelo rosto suado. Deixou a NSA alguns dias depois,
abrindo na internet um site que falava sobre Ashtar Sheran, sua
experiência com a entidade e os segredos que os governos do
mundo escondiam, expondo todas as informações que recebera
durante o fatídico encontro. Não foi considerado um risco pelos
seus antigos patrões, tratado como um louco pela mídia, ainda
mais porque adquirira uma forte gagueira e se tornara todo
trêmulo, passando a ser visto como uma figura folclórica,
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diferentemente da agente Murdock, que permaneceu na NSA,
investigando a agência e também a CIA e os meandros do
governo norte-americano. Conseguiu reunir informações
valiosas, que estava acumulando para divulgar ao grande
público quando fosse o momento, uma verdadeira bomba. No
entanto, encontrava-se em seu apartamento tomando um café e
lendo alguns relatórios militares sobre interferências dos greys,
que conseguira obter quebrando as senhas de computadores
sigilosos, graças à ajuda de um amigo hacker, quando ouviu
batidas pesadas em sua porta. Por que não tocavam a
campainha? A princípio não cogitou que fosse nada sério,
depois raciocinando melhor e cogitando que começariam as
perseguições à sua pessoa ao sentir um calafrio muito
desagradável, e era como se viesse do outro lado da porta uma
energia tremendamente negativa. Pegou sua arma e ficou
imóvel de frente para a entrada por alguns segundos, até ouvir
a primeira ameaça:
“Senhorita Murdock, abra, por favor. Tenho ordens para
invadir sua residência se não nos permitir. Se não for por meios
pacíficos, será pela força.”
Como a haviam descoberto? Fora discretíssima. Talvez fosse
paranóia sua, apenas estariam investigando suas entradas em
órgãos do governo que nada tinham a ver com as suas missões
pela agência, mas sem qualquer informação conclusiva a seu
respeito que pudesse representar alguma ameaça. Porém e se os
illuminati tivessem começado a atuar? E se tivessem poder
suficiente para descobrir e seguir todas as suas ações? Não
estava paranóica a ponto de criar aquela situação mentalmente,
ao menos isso era certo que não, a voz e a presença do outro
lado da porta eram bem reais. Bem diferente do outrora cético
Williams, que vivia tendo pesadelos com os reptilianos, estava
bem equilibrada. Terminou por abrir a porta, e emitiu um leve
suspiro de susto ao se deparar com um homem baixo, de terno,
sapatos e calça pretos, pele azul-clara, desbotada, parecendo
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um pouco escamosa, e óculos escuros. Não tinha uma
expressão humana.
“Serei curto e direto. Não lhe farei mal se permanecer em
silêncio. Que fique bem claro: estamos a par de todas as suas
atividades, sabemos todos os seus passos, e se por acaso pensa
em divulgar o que descobriu, considere-se um cadáver. Até
permitimos que descobrisse, porém não irá mais adiante.
Continue seu trabalho como agente como era antes, ou leve
uma vida pacata.”
Aquele era um dos homens de preto. Murdock sabia que com
ele seria impossível argumentar, e agora que sabia de tantas
verdades, nunca iria negá-las à população. Por isso sacou seu
revólver e atirou. O disparo furou a testa do sujeito, que no
entanto, depois da cabeça se inclinar para trás devido ao
impacto, voltou a olhá-la de frente. Os olhos eram pretos sem
pupilas, e gélidos.
“Nossos cérebros não ficam necessariamente em nossas
cabeças.”, a pele da testa se reconstituiu e, quando ela se pôs a
atirar seguidas vezes, tentando acertar outras partes do corpo,
ele saltou, e se locomovia a uma velocidade tão grande que
logo estava em suas costas, tampando-lhe a boca com uma
mão, impedindo-a de gritar, e tirando a arma com a outra,
imobilizando-a com sua aura fria e pesada. “Não adianta
resistir. Última chance, senhorita.”, ela não precisou berrar em
recusa à proposta da criatura, que leu suas intenções e quebrou
seu pescoço, fulminando-a a seguir com um tiro certeiro na
cabeça. No dia seguinte foi noticiado um incêndio que por
pouco não se espalhara por todo o prédio onde residia a agente.
Seu corpo acabou carbonizado junto com todos os seus
pertences. A notícia não intimidou Williams, que foi a
programas televisivos e deu entrevistas a jornais dizendo que
fora não um acidente e sim um crime cometido pelo governo
oculto do mundo, afinal Murdock, cujo nome preservara
durante todos esses anos a pedido dela, fora a agente que
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estivera a seu lado durante o fatídico encontro com Ashtar
Sheran. Poucos deram ouvidos ao ex-agente, e entre estes
apenas alguns esotéricos que ele não tivera a intenção de atrair,
vindo até ele para falar das conjunções astrais que anunciavam
o iminente fim do mundo.
Simons, que ao contrário da colega tivera o nome publicado
por Williams, deixara a NSA no mesmo período do
companheiro, indo por um caminho distinto, vendendo livros
sobre a conspiração reptiliana e juntando uma boa fortuna com
isso. Ao ser perguntado por repórteres se o que escrevera era
verdade ou ficção, e se estava de acordo com o ex-colega para
dar origem a um best-seller e se dividiam os lucros dos direitos
autorais, dava respostas elípticas. Williams fazia questão de
dizer que nunca recebera um centavo de Simons, que definia
como um aproveitador, um vendido, cujo nome estava em suas
revelações porque era a pura verdade, nunca tivera o menor
interesse na criação de qualquer romance midiático.
Apesar do sucesso de público, a crítica destruiu as séries de
livros de Simons, considerando-os de péssima qualidade
literária, oportunistas e repletos de clichês. Sem se importar
com isso, o ex-agente nunca seria ameaçado pelos homens de
preto e fez sua família, casando-se com uma modelo e tendo
dois filhos.
Williams morreu na miséria, abandonado por sua mulher, que
se envolveu com um vendedor, após contrair tantas dívidas que
o obrigaram a morar na rua. Como última visão de sua
existência, entre as latas de lixo de um beco, uma serpente que
após perseguir um rato terminou por morder a própria cauda,
sua pele se descascando e se revelando vermelha e queimada
por baixo. Apesar do frio pelo resto do corpo, em uma noite
gelada de inverno em Nova Iorque, suas pernas recebiam o
calor do centro da Terra, e foi assim, entre os extremos, que seu
espírito partiu.

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CAPÍTULO 1 – Céu Vermelho

Cidade brilhante de areia. Em seu centro, um palácio; ao seu


redor, um rio que na verdade era um dragão d'água, que
começou a girar na visão do monge: observou bem a mandala,
antes que fosse desmanchada pelo sopro do mestre. Às suas
costas, a luz e o calor da tocha acesa; à sua frente, o velho
diante dos portões vermelhos, que pareciam feitos de fogo
metálico. Quando estes iriam se abrir? Decidiu fechar os
olhos, mergulhando nas sutilezas da escuridão, eventualmente
interrompida pelas centelhas de sonho e despertar.- Atento, um
dos minicontos do livro Pelos olhos da Alma, de Joshua
Christiansen.

“Aquele ali não é o Joshua Christiansen? Vi ele numa


entrevista na televisão faz alguns dias. Se não for, é no mínimo
muito parecido.”
“Não gosto dos livros dele. Não passa de auto-ajuda
disfarçada de aforismos pseudo-herméticos.”
“Auto-ajuda? Nada a ver! Só que é preciso saber reconhecer a
profundidade da poesia dos textos dele. Coisa que acho que é
difícil pra alguém como você, que é materialista demais.”
“Não é questão disso. Só vejo nos livros dele que me caíram
em mãos uma série de metáforas confusas, digressões
irrelevantes, e quando há uma história ela não avança.”
“Isso do seu ponto de vista. Além de ser uma literatura
elaborada, vejo nele uma postura crítica e um apelo a nos
voltarmos, mesmo que só um pouco, pra dentro de nós
mesmos.”, um casal discutia no restaurante da espaçonave; os
olhares da moça, que defendia aquele que era um dos seus
autores favoritos, estava justamente sobre o próprio, que se
achava em outra mesa, com seus dois filhos e sua esposa.
Christiansen era um homem alto e magro, na faixa dos trinta e

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cinco anos, de cabelos ruivos e pele bem clara, olhos castanhos
pequenos como seu nariz e sua boca, usava óculos, e gostava
de se vestir de preto e cinza, entre calças, camisas escuras,
jaquetas e sobretudo; não era de falar muito, preferia ouvir, um
observador nato, simpático com seus interlocutores. Estava
tomando uma taça de vinho e comendo um belo prato de
macarronada, não fazendo questão de regular o apetite mesmo
nos ambientes mais elegantes e passando o pão no molho que
sobrava no prato, o que causava irritação em sua mulher, ainda
mais quando se sujava.
“Joshua, pelo amor de Deus! Você é uma figura pública, e vê
se dá um bom exemplo pras crianças...”, falou-lhe no ouvido
com a voz contida, mas a raiva nem tanto.
“Que eu saiba não escrevo best-sellers!”, deu uma resposta
bem-humorada.
“Mesmo assim é bem conhecido, ou não teriam vindo já sete
pessoas pedir autógrafos pra você.”
“Sério que foram sete? Não contei, achei que tinham sido
menos.”
“Dá pra deixar de ser cínico?”
“Cínico? Juro que não estou sendo! Ah não, Anna, não vamos
começar outra vez...”, por mais que não quisesse admitir isso,
seu casamento estava em crise, e era para ele horrível que suas
brincadeiras mais inocentes e a simplicidade no seu modo de
agir estivessem gerando tantos mal-entendidos. Quando
haviam se conhecido e nos anos de namoro, noivado e nos
primeiros do matrimônio, estavam juntos havia quase doze,
Anna o definira como um cavalheiro, um príncipe, pela sua
cultura e por ser carinhoso, porém não conseguia mais suportar
certos desleixos do marido, que apesar de divertido e
inteligente, extasiante nos momentos íntimos, esquecera por
duas vezes seguidas seu aniversário, deixava todo o serviço de
casa e a labuta com as finanças e os filhos para ela e não se
importava nem um mínimo com a opinião alheia. Tudo bem
20
que era um artista, alguém diferenciado em relação à massa, só
que exatamente por isso precisava cuidar de sua imagem
pública. Sempre o apoiara, mesmo nos anos em que o
reconhecimento não viera, pois escrevia e já havia publicado
sua primeira obra quando se conheceram, contudo não podia se
sacrificar tanto, afinal não era só uma dona de casa como tinha
responsabilidades pesadas em seu escritório de advocacia.
Anna era pouco mais baixa do que o esposo, cabelos pretos
cacheados e grandes olhos negros, uma morena de semblante
compenetrado e palavras firmes. Seus discursos tinham sempre
começo, meio e fim, ao contrário das falas e textos
assistemáticos de Joshua, e possuía um grande poder de
persuasão, que não funcionava tão bem apenas com seu
marido.
Costumava comer pouco por estar sempre de dieta, tendo
ficado só um pouco acima do peso após a segunda gravidez.
Regulava muito também a alimentação das crianças, no que
Joshua era contrário: “Você não precisa exagerar desse jeito. A
criança não pode ser obesa, mas não tem problema se for um
pouco gordinha. Eu mesmo fui cheinho e depois enxuguei! Não
dá claro pra eles abusarem das frituras, mas um pouco a mais
de lasanha não vai matar ninguém.”, ela não queria saber dos
argumentos dele, e seguia do seu jeito. Como Joshua não era fã
de discussões, preferindo estar em paz, não se opunha com
veemência quando discordava e procurava com freqüência o
silêncio, o que a irritava ainda mais. Anna via seus argumentos
se perderem ao vento, nunca o dobrava, por mais que
“vencesse” algumas discussões, e quando o notava aéreo,
pensando em seus livros ou em alguma outra coisa distante que
ela tentava saber o que era, mas não conseguia descobrir, saía
do sério: “Você prestou atenção no que eu disse ou eu estava
falando com as paredes?”
Os dois tinham bastante em comum, gostavam de literatura,
de espiritualidade, e durante o namoro haviam inclusive
21
praticado yoga juntos e Joshua lhe apresentara os antigos textos
de sabedoria que eram algumas de suas fontes de inspiração,
como as Upanixades, a Bíblia, a filosofia de Plotino e alguns
poemas e histórias zen-budistas. Com o tempo, Anna foi se
interessando mais exclusivamente pela vida prática, tomada
pelo direito e abandonando o aspecto espiritual, que passou a
ser um interesse meramente intelectual, distante. Deixaram de
fazer muitas coisas juntos, o que o entristeceu, mas buscou
aceitar a mudança, ao mesmo tempo que sem perceber, de
forma inconsciente, foi perdendo o interesse na companheira,
que vivia lhe falando de processos e causas enroscadas.
Por estes e outros motivos, com as férias do escritório, o casal
decidiu aproveitar o tempo para viajar e voltar a fazer algumas
coisas juntos. Pena, ele lamentou, que ela não estivesse com a
cabeça tão fresca ainda.
A nave em que se encontravam, a Canaan, um grande ônibus
espacial cilíndrico que era como um hotel em seu interior,
estava indo para Marte, que fora colonizado pela civilização
terrestre naqueles tempos. Não se poderia falar apenas em
humanidade terrestre, pois após o fim da guerra entre os
reptilianos do interior do planeta e os humanos, que ofereceram
sua resistência, as duas espécies chegaram a uma coexistência
pacífica, ao menos exteriormente, o que era visível na Canaan:
os tripulantes de pele verde ou azul escamada, sem nenhum fio
de pêlo ou cabelo, seus olhos lembrando cobras ou crocodilos,
alguns exibindo suas caudas, dificilmente cumprimentavam os
humanos ou eram cumprimentados por estes. O casal
Christiansen era dos poucos cordiais com os reptilianos e nem
sempre, devido ao mútuo preconceito, recebiam em troca o
mesmo tratamento.
Após o período da grande crise, a face da Terra, que se tornara
um planeta bem mais frio, mudara de maneira drástica,
algumas terras submergiram, outras emergiram, tanto que
Voynich, o país de onde vinham e a principal potência da
22
civilização na época, apresentava em suas metrópoles ruínas
atlantes de mármore e oricalco entre os arranha-céus mais
modernos. Prevalecia o tráfego terrestre, com carros que se
moviam sobre colchões de ar, e o trânsito nas grandes cidades
era bastante caótico; contudo, ao menos o transporte público
era dominado pelas aeronaves, o que minimizava a turbulência
urbana.
O restaurante da Canaan apresentava um ambiente de
refinação esteticista e um certo esnobismo que incomodava
Joshua. Quando o escritor, parecendo sem jeito com os olhares
que recebia, se levantou para ir ao banheiro e, todo
atrapalhado, tropeçou na toalha de mesa e deixou cair tudo no
chão, Anna levou as mãos ao rosto e meneou a cabeça para os
lados, desaprovando o desastre sem conseguir falar nada, ao
passo que os filhos do casal riram.
Walter e Luna adoravam seu pai, principalmente a menina, de
seis anos, bastante mimada (a “pulguinha sardenta” de Joshua),
e que, como a mãe vinha dizendo, estava ficando respondona.
O garoto, que era mais moreno do que a irmã, tendo puxado
mais a Anna nos traços, recém-completara onze anos, gostava
de cantar e tinha uma boa voz, tendo chegado a participar de
um programa infantil de talentos alguns meses antes e
alcançado as semifinais. No momento, férias à parte,
estudavam em período integral; e, enquanto Anna se
interessava pelos deveres de casa e pelo rendimento escolar,
Joshua os “deseducava”, incentivando as brincadeiras e as
atividades criativas, estimulando o talento do filho para a
música e o da filha para o desenho. A esposa não chegava a se
opor nisso, afinal as crianças precisavam de momentos de
diversão e distração e possuíam mesmo dons especiais, tanto
que fora ela que levara Walter à televisão, só não aprovava que
o tempo do lazer excedesse o do dever. Uma carreira de cantor
ou de desenhista nunca seria tão segura quanto uma no direito,
na medicina ou na engenharia, isso do seu ponto de vista.
23
Precisava zelar pelo futuro do seu casalzinho, já que o casal
adulto não ia assim tão bem.
“Que papelão hoje! Às vezes não acredito como você pode ser
tão atrapalhado. Você é culto, educado, trata bem todo o tipo de
pessoa, mas como mete os pés pelas mãos! Precisaria ser
menos disperso. Hora de pensar nos seus livros é hora de
pensar nos seus livros, hora do jantar é hora do jantar. Você que
medita tanto, não consegue ficar atento?”, discutiram quando
foram para seus aposentos no ônibus espacial, um apartamento
amplo, onde seu quarto, com direito a uma cama ampla e
confortável, repleta de almofadas, um ambiente perfumado
com suavidade, estava bem separado do das crianças.
“O trabalho criativo é diferente de qualquer outra coisa. Me
vêm uma cena, uma idéia, um personagem, e não consigo
sossegar enquanto não coloco no papel. Tem horas que penso
que é como uma doença, ou uma maldição. Não tem como
conter, e nisso fico aéreo, pensando no momento em que vou
poder trabalhar, e angustiado pelo medo de perder o que
pensei.”
“Não vá me dizer que trouxe o seu computador...”
“Bem que pensei em trazer escondido, mas com medo de
levar uma surra, trouxe só um caderno.”
“Você não toma jeito mesmo!”, terminaram rindo da situação
e se entendendo no calor dos corpos; ela não conseguia conter
a paixão que conservava pelo marido, que conhecia os segredos
e caminhos de seu prazer como ninguém, e Joshua resolveu
pedir desculpas ao final do ato, após um período de silêncio,
olhares e carícias:
“Sei que ando um tanto negligente, afinal um casamento não é
só sexo e interesses em comum, é saber ouvir e dividir
problemas, é deixar um pouco de lado o que é nossa diversão
individual, que no meu caso é a escrita, pra compartilhar do
mundo do outro. Por isso estou pedindo desculpas pelos
últimos tempos, e acho que essa viagem vai nos fazer muito
24
bem.”
“Não se preocupe, querido. Eu também tenho sido imatura,
pentelha, exigente demais, criticado você em excesso, cobrado
em horas que não devia e mulher é assim mesmo, meio dodói!
Mas você é o único homem que me cativou, nunca senti nada
parecido antes de te conhecer. Você não toca só o meu corpo,
toca diretamente o meu coração. É que fico com medo de você
perder o interesse em mim, por isso toda a cobrança. Sobre
você ser atrapalhado, mil vezes um homem que tem bom-
humor do que esses advogados sérios e sisudos com quem
convivo no trabalho.”
“Falhei muito com você, e isso deve ter passado a impressão
de falta de interesse.”, ele estava se sentindo um pouco
culpado. “Mas acho que é natural em todos os relacionamentos
um período de crise. A nossa está um pouco longa, mas vai
passar.”
“Quando um relacionamento sai de uma crise, fica mais forte,
e tenho certeza que será assim com a gente. Se você perdeu um
pouco do interesse em mim, mesmo que seja pouco, e que não
admita, não adianta fazer essa cara, vou lutar pra recuperar
isso. Vamos voltar a fazer atividades juntos. O erro mais grave
da maioria dos casais está em deixar de namorar, de se curtir.”
“Vamos determinar a partir de hoje uma virada para o nosso
relacionamento. Não vale a pena deixar pra amanhã.”, seria um
período de reconstrução.
Contudo, quando a Canaan acabara de chegar em Marte, e se
aproximava do espaçoporto de Arash, uma das principais
cidades-estado do planeta, de maior população e economia,
outras duas naves, menores, mas sem tripulação, que eram na
verdade duas bombas voadoras, de formato oval, surgiram de
forma imprevista e atingiram em cheio o luxuoso ônibus
espacial. Não haveria nenhum motivo para atingi-lo, um
veículo que se limitava a transportar civis de classe média-alta
de um planeta para o outro. Só que a explosão ocorreu e foi
25
violenta, o fogo desta de um vermelho brilhante e ofensivo
similar ao que o céu de Marte, em seu crepúsculo, apresentava
naquele momento. Os destroços caíram sobre os habitantes
apavorados da cidade, que além dos edifícios altos e do rubor
dominante apresentava belas áreas verdes, algumas das árvores
elevadas infelizmente atingidas pelos pedaços incandescentes
da Canaan. Qual o destino da família Christiansen? Ante um
desastre daquela amplitude, nenhum sobrevivente seria a
resposta mais lógica. Joshua, Anna e as crianças deviam estar
dormindo no momento do terrível impacto, entre sonhos de
formas e vozes confusas.

CAPÍTULO 2 – Multidão de braços

A moleza dos tentáculos do polvo foi se dissipando. O


molusco adquiria rigidez. Saindo a água, tornava-se não
pedra, mas metal. Seus olhos viraram primeiro faróis e depois
câmeras. Na praia rochosa, envolveu e capturou os anfíbios
feridos, retendo-os com seu peso. De dia, o sol forte demais
ressecava todos; de noite, a chuva caía tímida, em pingos de
agonia. Ao cabo de alguns meses, o mar refletia os registros de
morte.- Programação, um dos minicontos do livro Pelos olhos
da Alma, de Joshua Christiansen.

Joshua despertou de um pesadelo incômodo em que uma


espécie de polvo demoníaco buscava a todo custo prendê-lo
com seus tentáculos, e neste procurava se livrar e fugir, mas
todas as tentativas eram em vão. A besta era forte demais,
apesar de úmida, e seus braços frios e poderosos imunes até
mesmo à espada que usou para tentar cortá-los. Um gosto
desagradável de sal misturado com sangue predominava em
seu paladar, começando no sonho e se prolongando ao
despertar. Ouvia vozes ao redor, e acordou entre os frangalhos
26
de uma construção, pedaços de metal derretido próximos, seu
corpo parcamente revestido por restos queimados de roupa.
Quando se deu conta que não era mais um pesadelo, e sim a
realidade, veio-lhe à mente que perdera tudo, não apenas as
anotações para suas próximas obras como seus filhos e sua
mulher. Sua família fora reduzida a cinzas, e ao se levantar e
olhar à sua volta isso ficou mais do que evidente: impossível
alguém ter sobrevivido a tamanha catástrofe, que rachara
prédios e esmagara casas. Apesar de Marte ser um planeta mais
frio do que a Terra e da falta de roupas, nunca sentira um calor
tão insuportável. Como sobrevivera? Esta é uma questão que
naquele momento apenas o próprio Joshua sabia responder, e a
persistência de sua vida foi o que mais intrigou os policiais e os
bombeiros quando estes se aproximaram e, ao conversar um
pouco, descobriram que o escritor estivera na Canaan.
Joshua foi levado para um hospital às pressas, mas para a
surpresa dos médicos não apresentava nenhum ferimento
grave, ao contrário dos outros tripulantes, que haviam todos
morrido carbonizados. As piores marcas estavam na sua alma.
Pouco falou por dias, olhando fixamente por horas para as
janelas fechadas do quarto no hospital. Respondia apenas o que
queria responder. As enfermeiras abriam as janelas quando
entravam, mas quando saíam ele as fechava outra vez. Não fora
visto chorando, porém durante as noites, quando estava e
principalmente se sentia completamente sozinho, as lágrimas
escorriam com insistência e sem freio. Quase não dormia,
vendo muitas vezes vultos e espectros disformes e irados, que
mesmo que não o tocassem gritavam ou o olhavam com ódio
por minutos inteiros, que pareciam horas; ninguém mais os via
ou ouvia. As férias, voltadas ao descanso e à reconciliação,
haviam se tornado o pior dos pesadelos.
Ao receber alta, não voltou para casa, decidindo ficar em
Arash pelo resto do mês. Retornar para o lar sem a presença de
Anna e as vozes de suas crianças seria insuportável, ainda não
27
conseguiria tolerar isso, e permaneceu portanto no planeta
vermelho. Não atendeu as ligações recebidas, que haviam
ficado armazenadas em seu comunicador, nem ligou para
ninguém, a não ser para o banco, para que lhe mandasse novos
cartões de crédito e débito, até ser anunciada pelo recepcionista
do hotel uma visita:
“É uma policial. E quer falar com o senhor.”
“Não estou com cabeça pra atender ninguém. Diga que venha
outra hora.”, e desligou, mas o atendente voltou a ligar:
“Ela não está disposta a ir embora, senhor. Disse que será uma
conversa breve. Mas que é urgente.”
“Que insistência irritante. Mas está bem, deixe-a subir.”,
acabou cedendo, já imaginando que teria que falar sobre a
morte de sua família, o que o deixava com o estômago
embrulhado, dor de cabeça e a mente mais irritada do que
nunca. Abriu a porta de má vontade para aquela mulher, que
devia ter por volta de trinta anos, trajada como uma civil (nada
do uniforme vermelho com a insígnia de uma espada prateada
da polícia de Arash), com um sobretudo feminino longo e uma
calça e sapatos de couro artificial, toda de preto, esbelta e de
rosto comprido, olhos castanhos claros e cabelos loiros lisos,
na altura dos ombros, com uma mecha vermelha. Fisicamente o
oposto em quase tudo da falecida Anna, seu semblante era
sério, mas com uma delicadeza fina, que transpareceu na voz:
“Me desculpe, senhor Christiansen. Sabemos da sua dor e não
era nossa intenção desrespeitá-la. Mas preciso cumprir com o
meu trabalho.”, era bonita para o seu gosto e até se vestia do
seu jeito predileto; em outros tempos e em outro contexto,
antes de conhecer Anna, talvez até tivesse se animado com ela.
“Vocês não sabem de nada.”
“Entendemos a sua revolta, mas vim lhe trazer inclusive
algumas informações sobre quem podem ser os assassinos de
sua família, os autores desse terrível atentado que derrubou a
espaçonave Canaan.”
28
“Ok. Sente-se e acomode-se. Eu prefiro ficar de pé mesmo.”,
fechado e mau-humorado como não costumava ser, foi se
acalmando aos poucos e trouxe um copo d'água à moça, que
começou a se explicar, sentada na poltrona da sala:
“O meu nome é Joanna Flammarion. Na verdade, meu
trabalho para a polícia de Arash, como investigadora, é uma
fachada.”, quando ela declarou isso, ele franziu o cenho e
redobrou sua atenção ao fitá-la. “Não se preocupe, não sou uma
criminosa nem uma justiceira ilegal. Trabalho para o serviço
secreto de inteligência do Estado e se estou revelando isso ao
senhor é porque precisarei da sua ajuda.”
“Da minha ajuda? Sou apenas um escritor, não tenho nada que
ver com o que quer que possa estar pensando.”
“Será mesmo apenas um escritor?”
“O que está querendo sugerir? Esse tipo de postura me irrita,
ainda mais depois do que passei.”
“Por favor, entenda, senhor Christiansen. Suposições me
servem como ponto de partida. Porém trabalho com fatos
observados e informações precisas que me são passadas. Vou
lhe esclarecer: a responsável pelo atentado à Canaan foi a
organização terrorista Stella Matutina, que assumiu a ação com
todas as letras, e inicialmente cogitamos que o motivo teria
sido a prisão recente de um dos seus integrantes. Eles
costumam, como retaliação, atingir civis.”
“E eu fui um desses civis atingidos.”
“Estranhamente, o único que sobreviveu, mas me deixe
concluir.”, terminou de beber a água, apoiou o copo e juntou as
mãos enquanto cruzava as pernas. “Capturamos, depois desse
integrante que teria sido a causa do atentado e que se suicidou
antes de nos revelar qualquer coisa, outro membro da Stella. E
tivemos, após horas de recusa dele em abrir a boca, antes que
mais um se suicidasse, porque eles preferem morrer a revelar
seus segredos, que recorrer à tortura.”
“Não sabia que aqui em Marte ainda se recorre a um método
29
tão arcaico pra se extrair uma confissão.”
“Não tivemos escolha. Não aprovo isso em criminosos
comuns. Mas em terroristas às vezes é necessário. Sou é contra
a pena de morte, porque eles não se importam de morrer, ainda
mais essa gente meio mística, tanto que se suicidam de forma
recorrente, e com a execução perdemos informações
preciosas.”
“Importam as informações, não o ser humano?”
“Um ser humano que matou a sua família, pois foi esse o
sujeito que guiou as naves-bombas e, além disso, deixou claro
que a intenção do atentado foi provocar a sua morte.”
“A minha?”
“Exato, senhor Christiansen. É por isso que estou aqui, e que
vim pedir a sua colaboração.”
“Mas por que alguém iria querer me matar??”
“Ele disse que o senhor sabe qual o motivo...”
“Quero ver esse desgraçado.”, disse após um silêncio
suspenso; Joanna, que permanecera calma esperando a
resposta, concordou.
A Stella Matutina era uma organização criminosa de cunho
mágico-religioso, atuando inclusive no tráfico de drogas e
armas, embora suas finalidades fossem maiores. Centrava-se
nos dizeres “faz o que quiseres, pois é tudo da lei” e “amor é a
lei, porém amor sob vontade”; e tal vontade individual podia
esmagar a vontade alheia, bastando para isso ser uma vontade
maior: quanto mais determinado e pleno de si o indivíduo, mais
próximo de Deus estaria, no intuito que adiante, no curso da
evolução natural da humanidade, fossem selecionados os
melhores, pouco a pouco tornando os seres humanos
semelhante a deuses, e então enfim o homem seria imagem e
semelhança de seu Criador, não passando a civilização presente
de uma caverna de sombras e rascunhos nas paredes. Os
homens da atualidade estariam para os do futuro, que a Stella
ambicionava selecionar, como os macacos em relação aos
30
primeiros. Quanto aos reptilianos, os que haviam aderido ao
acordo conciliatório e à convivência pacífica deveriam ser
considerados tão fracos quanto a humanidade comum, ou ainda
piores, seres decadentes, ao passo que os que ainda se
mantinham nas sombras, esperando a oportunidade para
retomar a guerra, valorizavam o fato de pertencer a uma
espécie mais antiga e sábia, e portanto mereciam ser ouvidos
com alguma veneração. Estes, cuja existência era ocultada pelo
governo e existiam realmente, não sendo mera elucubração dos
magos da organização terrorista, ao contrário, agindo por trás e
dentro desta, constituíam uma das mais séries ameaças, senão a
maior, à manutenção da paz na Terra e em Marte. Haviam
perdido a batalha, mas não admitiam ter perdido a guerra.
A Stella, que no plano político pretendia inaugurar e
encabeçar um governo unificado para os dois planetas, e sem
mais subdivisões entre países e estados, fora fundada por
sobreviventes do massacre dos illuminati, levado a cabo por
um grupo misterioso que extinguira a seita. Alguns diziam que
se tratara na verdade de apenas um executor, e outros iam mais
longe, alegando que este fora um membro do lendário
Comando Ashtar, que muitos haviam evocado como uma força
messiânica no período de maior crise na Terra, sem que
houvesse qualquer prova da existência desta facção militar
extraterrestre.
O que os serviços secretos sabiam era que alguns illuminati
tinham conseguido escapar e fundado a Stella Matutina. E
sobre isso Joanna foi conversando com Joshua no caminho
para o cárcere mais próximo, reservado a criminosos de alta
periculosidade. O escritor escutava com toda a atenção,
enquanto a aeronave policial passava sobre Arash, que naquele
dia apresentava um céu bem azul, passando sobre um bairro de
aranha-céus rubro-escuros, quase negros, e bastante
pontiagudos. A prisão estava um pouco afastada da metrópole,
em uma área florestal repleta de árvores que lembravam
31
pinheiros altíssimos, uma nave esférica suspensa por meio de
mecanismos de ação anti-gravitacional e hermeticamente
fechada, abrindo-se uma passagem apenas depois que a agente,
ao parar por alguns segundos diante da superfície metálica lisa,
digitou a sua senha.
Entre os que supervisionavam o lugar, havia tanto humanos
quanto reptilianos. E quando já se aproximavam da cela do
fadado prisioneiro, entre outras de um corredor em que barras
eletrificadas mantinham os foras-da-lei apartados, Joanna
parou com as explicações e deixou claros os objetivos de seu
trabalho:
“Que fique ciente, senhor Christiansen, que até agora
respeitamos a sua dor. Mas dependendo da conversa que
tivermos com ele, será a sua vez de se abrir conosco. Expus
tudo o que sabemos sobre a Stella, mas ao que parece eles
sabem algo do senhor que nós ainda não sabemos. Queremos
descobrir o quê, e para isso melhor que se abra, e assim
poderemos protegê-lo. Colabore. Caso contrário, talvez
tenhamos que mantê-lo prisioneiro.”
“Quer dizer que foi para isso que me trouxe?”, Joshua parou
de andar e indagou. “Uma armadilha. E caí como um idiota!
Bem que minha falecida esposa dizia que eu era atrapalhado
demais.”
“Não é uma armadilha, apenas queremos ajudá-lo.”
“E ser ajudados.”
“Se o senhor faz parte de algum serviço de inteligência e tem
muitas informações, e por isso o perseguem, deve confiar em
nós. Poderemos colaborar.”
“Não faço parte de nenhuma agência, tenha certeza disso.”
“Então por qual motivo iriam querer executá-lo? Por favor,
senhor Christiansen, imagino que deve ter ordens para manter o
sigilo a todo custo, mas não será melhor nos unirmos contra um
inimigo em comum?”
“Não tenho o menor interesse em organizações terroristas,
32
nem trabalho pra governo nenhum; não sei por que querem me
executar, quantas vezes vou precisar repetir isso?!”,
manifestava uma irritação muito rara em sua personalidade
antes da morte de seus familiares.
“Mas ele disse que o senhor sabe qual foi a razão.”
“Vai acreditar na palavra desse maluco?? Sou só um escritor.
Ele deve estar querendo me usar como bode expiatório só
porque sobrevivi ao atentado, que deve ter sido mesmo uma
retaliação, ou uma provocação.”
“Se insiste nisso...”, quando chegaram à cela, viram um
homem jogado ao fundo do espaço de chão e paredes lisas
azul-escuras, não fazendo questão do conforto da cama ao lado.
Era um indivíduo de pele escura, cabelos crespos, nariz
achatado e físico possante, em trajes pretos sujos,
originalmente um belo terno e uma calça social cara, de marca;
ao encarar Joshua, deixou deslizar por seus lábios um suave
sorriso de ironia. “Sabia que cedo ou tarde viria.”, disse, e
continuou: “Mas se não vai se abrir com eles, que direito nós
teríamos de denunciá-lo? Uma coisa é certa: você é mais
resistente do que uma barata. Será que uma explosão nuclear
que destruísse a cidade onde você estivesse acabaria com
você?”
“Não sei do que o senhor está falando. Por que declararam
que eu era o alvo do atentado? Por que matou a minha família e
tantas pessoas inocentes? Não teria bastado simplesmente me
dar um tiro?”, perguntou o escritor, sob o olhar compenetrado
de Joanna.
“Se uma explosão não adiantou, um tirinho iria servir pra
alguma coisa? Você não está desmemoriado. Nós da Stella
somos magos, e sou um cavaleiro de segundo grau apenas, mas
é o suficiente para sentir as suas emoções e saber que está
mentindo. Sabe perfeitamente que a sua mulher, os seus
filhotes e as pessoas naquela nave estavam no nosso caminho.
Sabe por que o estamos perseguindo. E lembra de cada detalhe
33
do seu passado e o remorso o persegue! Queria levar uma vida
tranqüila, não é? Isso é impossível. Quem mergulha no mar no
meio da tempestade não pode simplesmente pensar em
descansar numa ilha deserta.”
“Pelo visto essa conversa não vai levar a nada. É melhor eu ir
embora.”
“O senhor se esqueceu das nossas condições, senhor
Christiansen? Não irá embora enquanto não se dispuser a
colaborar conosco.”, Joanna o segurou pelo braço.
“Não podem me prender aqui. Estariam infringindo a lei. Sou
um cidadão honesto e tenho o direito de circular livremente.”
“A partir do momento que é suspeito de atividades ligadas a
algum serviço de inteligência, nos tomamos o direito de retê-
lo.”
“Quer dizer que estão acima da lei?”
“A sua segurança e a segurança da população vão além das
formalidades da lei.”, o diálogo entre os dois fez o membro da
Stella alargar seu sorriso.
“Pelo menos então me levem para um lugar melhor. Não
agüento mais olhar pra cara desse sujeito.”
“Claro, terá todo o conforto. Mas enquanto não nos ajudar,
não poderemos liberá-lo.”
“Já disse que não pertenço a nenhum serviço secreto.”
“E é verdade.”, o terrorista de repente interveio. “Vou dar uma
dica: ele não está ligado a nenhum governo. Pelo menos não da
Terra. Está ligado a algo muito maior.”, o que levou Joanna a
fitar o escritor com uma atenção redobrada, porém não havia
sinais de surpresa ou espanto, e sim um certo brilho nos olhos;
parecia estar buscando captar os mínimos detalhes de postura e
gestos.
“Esse cara está delirando, ficou louco. Isso de mexer com
essas coisas ocultistas, e ainda veio parar na prisão, deve ter
acabado com os miolos dele. Agora vai querer sugerir que sou
um extraterrestre??”
34
“Pelo menos o corpo dele não é extraterrestre. Mas trabalha
pra eles, assim como a alma dele veio de bem longe.”
“Você não vai acreditar nisso, vai?”, indagou à agente.
“Eu não sei. Já ouvi falar de casos envolvendo alienígenas.
São extremamente sigilosos, mas verídicos. Mais um motivo
agora para eu não liberá-lo, senhor Christiansen.”, ela
respondeu, aparentando que tentava disfarçar um considerável
entusiasmo. “Além disso, acho que terei que lhe pedir uma
autorização para fazer uma sondagem em seu corpo.”
“Não acredito numa bobagem dessas! Querem verificar se sou
humano ou não?”
“Ele é humano sim, no corpo. Mas os alienígenas enchem
quem trabalha pra eles de chips, implantes e por aí vai.”, disse
o prisioneiro. “Pelo visto, você se complicou vindo falar
comigo...Veio afinal por quê? Foi uma tremenda burrice.
Achou que eu ia ficar quietinho e que ia poder continuar
enganando a agente?”
“Está bem, como quiserem. Vou ficar aqui pelo tempo que
desejarem, e estão livres para realizar todo tipo de teste em
mim. Autorizo qualquer intervenção, e posso provar que não
sou nada do que esse homem diz. Sou só um escritor, vítima de
um atentado absurdo, que ceifou a vida dos meus entes mais
queridos.”, deu as costas ao integrante da Stella, que liberou
uma gargalhada e ia dizer algo, quando se engasgou sozinho e
começou a tossir sem parar e a passar mal, ficando pálido e não
conseguindo mais parar de vomitar.
“Mas o que está havendo com ele??”, Joanna chamou
rapidamente pelos médicos, e nisso se retirou do local junto
com Joshua. Quando ficaram a sós, em uma sala branca
dominada por luzes de néon, expôs sua desconfiança: “Muito
estranho ele passar mal justamente quando estava prestes a
dizer mais alguma coisa sobre você.”
“O que está querendo sugerir agora? Que tenho algum tipo de
poder paranormal? Que ele passou mal daquele jeito porque eu
35
quis? Francamente, agente Flammarion, está indo longe
demais. Acha que sou algum tipo de monstro?”
“Não, não me parece ter más intenções. Mas talvez seja muito
mais do que um ser humano comum.”
“É melhor deixar a fantasia de lado.”
“Não é fantasia. Li diversos arquivos sobre alienígenas.
Inclusive um sobre um grupo, ou um indivíduo, pertencente a
uma frota interestelar, que teria dizimado os illuminati no
passado. Nada mais natural do que os membros da Stella, que
descendem dos illuminati, quererem se vingar dessa pessoa ou
de uma pessoa ligada a essa facção.”
“Está dizendo que eu seria um agente de um comando
espacial? Você deve estar vendo muitos filmes de ficção
científica, que me perdoe se estou errado. Se eu fosse esse
super-homem que massacrou os illuminati, como ainda estaria
vivo? Passaram-se uns trezentos anos.”
“Como aludi, poderia ser uma pessoa ligada ao mesmo grupo
de extraterrestres. Ou então o próprio indivíduo, afinal uma
tecnologia tão avançada deve fornecer meios de prolongar a
existência de forma indefinida.”
“Gosto bastante dos textos herméticos, já li livros de Flamel,
Basile Valentim, Irineu Filaleto, mas acho que falavam mais
por alegorias, não que exista mesmo um elixir.”
“Eu já acho que existe, ou existiu. Também já li textos de
todos esses autores.”
“Bem que devia ter imaginado que gostava desses assuntos,
afinal se interessa por ufologia. Mas alguns místicos,
infelizmente, tendem a fantasiar um pouco demais. Lamento
porque eu também sou místico, mas não misticóide, não acho
que tudo o que exista tenha algo de sobrenatural no meio.”
“Não é questão de misticismo.”, ela começou a demonstrar
uma certa irritação. “Li e examinei documentos, vi fotos de
extraterrestres, que a população nunca poderá ver, e os
reptilianos não são uma prova viva de que existe vida em
36
outros mundos?”
“São a única evidência. Não quer dizer que existam outros
povos além deles.”
“Eles mesmos afirmam que foram exilados por povos de
tecnologia e poderes superiores.”
“Podem estar mentindo. E podem estar mentindo sobre o fato
de serem extraterrestres. Talvez os reptilianos de classe baixa,
ignorantes, acreditem mesmo que vêm de outro mundo, uma
mentira inventada pelos da classe dominante. Na verdade, é
possível que nunca tenham passado de seres que antes viviam
em outra dimensão aqui na Terra, e que pelas mudanças no
planeta passaram a viver na nossa.”
“Começo a acreditar na sua versão, que realmente não passa
de um escritorzinho...”
“É o que estou dizendo desde o começo. Só agora começou a
me ouvir?”, a agente bufou, e Joshua, que parecia ter
recuperado o bom-humor, fez um pedido: “Será que poderia me
mostrar as fotos dos ets? Já que eles existem mesmo...”
“Chega. Por hoje chega.”, Joanna saiu, deixando o escritor
sozinho naquela sala, apenas na companhia das câmeras e de
um robô-faxineiro que estava limpando o lugar. Sorriu,
aparentando despreocupação, e os dias seguintes seriam de
uma bateria de testes. A agente ficou frustrada quando recebeu
o diagnósticos do chefe da equipe médica:
“Ele é um homem perfeitamente normal para a idade dele,
sadio, com órgãos normais, tudo absolutamente convencional.
Nenhum implante cibernético, e nada que possa parecer
pertencente a outra espécie.”
“Obrigada, doutor.”, dessa forma, teria que liberar Joshua, que
fora alojado em uma parte da prisão que era um espaço para
indivíduos que estivessem sob investigação e sob testes
médicos e psíquicos, mantidos bem confortáveis, com boa
comida, cama e roupas. Ao ser examinado seu parapsiquismo,
também não foi detectada nenhuma capacidade paranormal, ao
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passo que o ataque que o membro da Stella sofrera culminara
em um derrame: agora o sujeito mal raciocinava, não falava e
nem escrevia mais. Joanna se viu obrigada a admitir que tudo
não passara de uma seqüência de coincidências e mal-
entendidos...
“Nossa, está muito bom aqui! Acho que não vou querer voltar
pro hotel não...”, disse-lhe o escritor, enquanto comia uvas e
outras frutas na cama, sujando os lençóis. “Hmmmmm!”
“Mas está decidido. Amanhã o senhor retorna. Pedimos
desculpas pelo transtorno, e requisitamos que se possível deixe
Marte assim que puder.”
“É o que vou fazer mesmo, já que querem me matar a todo
custo, sabe-se lá por quê. Andei pensando...Talvez tenham
realmente me confundido com alguém, quem sabe um agente
de vocês, de algum outro governo, ou até dos ets!”
“Pelo menos o senhor parece bem melhor do que há alguns
dias atrás. Está sorrindo tanto...”
“Acho que posso me permitir um pouco de felicidade. Não
tenho mais os meus filhos, a minha mulher, mas ainda estou
vivo, e vou honrar a memória deles enquanto puder. Tive idéias
pra um livro novo, e vou colocar eles como personagens, de
alguma maneira, e fazer uma dedicatória especial.”
“Isso é muito bonito.”
“É o mínimo que posso fazer. E espero que não deixem mais
atentados como esse ocorrerem, muita gente inocente morreu.
Tentem controlar essa tal Stella, e prender todos os
integrantes.”
“Nos esforçamos constantemente para isso. Mas não é um
trabalho fácil.”
“Sei que não, deve ser como escrever, que é uma luta contra
os terroristas da crítica, os assaltos do computador, que às
vezes fica com problemas e apaga o arquivo antes que
possamos salvá-lo, e a tirania da página em branco, que nos
obriga a tirar um leite colorido! Mas peço que se esforcem, e
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façam isso pelas pessoas, pra que não morram mais crianças
como os meus filhos.”
“Claro. Compreendemos a sua dor.”
“Ainda acho que, como sobrevivi, usaram o meu nome pra
desviar a atenção de vocês, na verdade quiseram mesmo se
vingar pela prisão do membro, foi uma retaliação, e pela graça
de Deus, que ainda quer que eu fique um pouco aqui, sobrevivi.
Seja como for, boa sorte.”
“Agradeço, senhor Christiansen.”, a despedida dos dois foi
melancólica principalmente para ela, que ficara com a
expectativa de desvelar profundos mistérios e acabara de volta
à estaca zero.
Joshua passou tranqüilamente pelo espaçoporto e teve um
retorno normal à Terra, enquanto Joanna não descansou na
noite de Arash. Sua atividade como agente do serviço de
inteligência não era a mais secreta de sua vida: entrou com seu
carro nos jardins de uma mansão, em um bairro nobre da
cidade, onde os portões só se abriam com a leitura de um
cartão magnético específico; caso se tentasse saltá-los, armas
atordoantes estavam prontas para disparar e robôs-seguranças
recolheriam e colocariam os invasores para fora a uma
considerável distância. Aquela era a sede da SDA, a Sapiens
Donabitur Astris, ou simplesmente Sapiens, denominação
abreviada à qual algumas vezes se referiam seus membros,
sociedade secreta responsável por preservar escritos antigos e
acérrima rival da Stella Matutina. Desta faziam parte figuras
proeminentes de todo o planeta Marte e mesmo algumas da
Terra: escritores, cientistas, políticos, pintores e, como única
agente de um serviço de inteligência governamental, lá estava
Joanna, integrante precoce do grupo, pois fora introduzida
neste por seu pai, Emmanuel Flammarion, poeta de renome
internacional e amigo de diversas autoridades, entre delegados,
juízes, militares e prefeitos, devido à sua atividade diplomática.
Viúvo, pois a mãe de Joanna falecera quando a filha era uma
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menina de apenas três anos, vítima de um câncer no cérebro,
treinara-a desde pequena no parapsiquismo e incentivara-a em
sua carreira policial e posteriormente em sua entrada no serviço
secreto da cidade-estado: dessa forma, ela se tornara um dos
principias braços armados, se não o principal, da Sapiens
contra a Stella, afora obter do governo informações adicionais.
“Desta vez acredito que você tenha errado, minha querida.
Deveria tê-lo trazido até nós. Os testes em uma agência
governamental não são suficientes para descobrir a verdade no
caso de um indivíduo de parapsiquismo em níveis superiores.
Se ele for mesmo quem pensamos, seus poderes mentais devem
ser elevados o bastante para atingir outra pessoa sem que
ninguém perceba, o que parece ter feito com o terrorista, assim
como para ocultar qualquer coisa de médicos e outros
cientistas. Por que demorou tanto a me ligar?”, Emmanuel era
um homem gordo, de estatura mediana, barba e cabelos loiros,
pele rosada, voz grave e gestos simpáticos, Comendador da
Ordem. Naquela noite, estavam reunidos somente os membros
de grau de Cavaleiro (Amazona o correspondente feminino, o
nível de Joanna) para cima, excluídos assim os Aprendizes e
Companheiros. Tomava chá enquanto conversavam.
“Achei que fosse arriscado demais, e comecei a pensar que
ele não passa mesmo de um homem comum. Já tinha me aberto
sobre a agência e falei um pouco sobre a Stella. Agora sabe
demais para um civil. E, como escritor, pode começar a falar,
ou melhor, a escrever demais.”, a agente argumentou.
“Mas você foi descuidada, nos esqueceu. Teve tempo
suficiente para fazer contato.”, pronunciou-se Margareth
Strassen, grau de mestra sublime, uma mulher negra de olhos
verdes, cabelos pretos alisados, encorpada e de expressão
serena mesmo quando parecia recriminar. Estavam sentados em
poltronas e cadeiras estofadas, sob a luz de um lustre cujos
cristais estavam imantados com a energia dos principais
membros. No chão, os tapetes luxuosos encobriam os círculos
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mágicos e símbolos e nomes cabalísticos traçados.
“Sei que não é uma desculpa, mas o pessoal do governo ficou
o tempo todo no meu pé. Queriam a todo custo que descobrisse
a verdade sobre Joshua Christiansen, se trabalhava para o
serviço de inteligência de algum outro governo, e essa era uma
possibilidade que eu também tinha que considerar; afora que
não podia imaginar que fosse plausível mesmo para um
paranormal de alto nível burlar operações médicas, análises
psíquicas e a sondagem das máquinas. Até para você,
Margareth, isso seria impossível.”
“Deveria tê-la orientado melhor a esse respeito.”, lamentou
Emmanuel. “Mas quando me referi a um indivíduo com um
parapsiquismo em níveis superiores, estou falando de alguém
bem acima de qualquer um de nós, de alguém comparável a um
dos grandes Adeptos, um semi-deus para os padrões humanos.
Esse é o nível de um indivíduo que pertence ou pertenceu ao
Comando Ashtar num grau de força e liderança suficiente para
preocupar a Stella.”
“O que é certo é que não deveria tê-lo deixado ir. Ele pode ser
a chave para vencermos a Stella, e agora corre perigo
novamente.”, disse o Grão-Mestre Jerome Yeats, mexendo em
seus óculos, o único dos homens presentes sem barba, cabelos
castanhos e olhos escuros traquinos apesar dos lábios sérios,
pele morena clara, porte elegante. Fora o mais jovem membro a
chegar ao grau máximo da Ordem até aqueles dias.
“O governo ia desconfiar de eu continuar perto dele. Afinal
foi liberado e ainda tem pai e mãe na Terra. Não pode mesmo
ser só um homem comum? Por que suspeitam tanto assim
desse sujeito?”
“O passado dele é nebuloso, não tem registros escolares e
nem universitários. No mínimo, um auto-didata e tanto para
alguém tão culto. Parti para uma investigação telepática hoje
pela manhã...”, Margareth era a telepata mais desenvolvida da
Sapiens, habilidosa o bastante para descobrir os segredos mais
41
ocultos de qualquer mente; pelo menos assim fora até aquela
data.
“E qual o resultado?”
“O que você sentiu dele?”
“Apenas que me escondia algo. O terrorista falou que, pelas
emoções, podia perceber que ele mentia. Mas depois pensei
que tanto eu como o lacaio da Stella pudéssemos estar
equivocados.”
“Pois o que consegui captar não foi nada de estimulante ou
animador. Vi cenas de uma vida comum: infância (só não vi
nenhuma escola, e sim uma biblioteca), adolescência, atividade
criativa, a paixão pela esposa, o nascimento dos filhos, a crise
no casamento...”
“Uma infância, apesar da ausência de registros escolares e de
uma escola nas memórias dele.”
“Pode ser um começo de vida artificial, criado para despistar
investigações telepáticas.”
“Ou ele foi mesmo um auto-didata excepcional.”
“Difícil para alguém com pais ricos, a menos que os
Christiansen sejam mais excêntricos do que parecem ser.”
“De qualquer forma, seja o que for, ele não parece disposto a
colaborar conosco.”
“Isso pode mudar, acho que não devemos desistir tão
facilmente.”, opinou Yeats, contando com a aprovação de
outros participantes da reunião.
“Confesso que esse sujeito me deixa um pouco tonta, e fico
dividida entre o ceticismo e as hipóteses que vocês levantam.”,
Joanna admitiu.
“Talvez estejamos sendo pretensiosos, afinal foi a única que
esteve com ele pessoalmente e por isso pode falar a respeito
com muita propriedade.”
“Estive sim com o Christiansen, mas não tenho a experiência
do meu pai e nem as habilidades telepáticas da Margareth,
muito menos a sua capacidade de observação, Jerome, por mais
42
que me esforce para ser mais atenta.”
“Você é muito mais do que acredita, ou não teria sido
escolhida por um serviço de inteligência tão exigente. Só acho
que precisa ter mais paciência, procurar relaxar e não forçar a
atenção, e trabalhar menos sozinha, e mais conosco.”
“Tem toda a razão. Sou uma Amazona da Ordem, mais do que
uma agente do governo. Só que ultimamente tenho exercido
mais a segunda função...”
“Não se culpe, filha. Está fazendo o seu melhor, se
desdobrando em duas frontes. Apenas queremos desvendar esse
mistério, e penso que não é a hora de desistir do Christiansen.”,
interveio Emmanuel.
“Contudo, o que tenho certeza é que não podemos ficar
buscando um messias para enfrentar a Stella. Precisamos
confiar mais em nós mesmos. Parafraseando o Jerome, somos
mais do que acreditamos.”
“Tente entender: desde o atentado da Stella, a suposta causa
sendo o Christiansen, que por sinal foi o único sobrevivente,
nada mais natural do que nossa atenção cair sobre esse homem
e desconfiar que ele seja algo mais do que uma pessoa comum.
Todavia, não estamos à procura de um messias; é só que uma
ajudinha que caísse do céu bem que serviria como uma luva!”,
e a maioria dos presentes riu.
“Você não toma jeito, papai...”
Já em sua volta para a Terra, Joshua ficou intrigado e ao
mesmo tempo incomodado por pensar tanto em Joanna. Os dias
que passara em Marte com ela por perto tinham sido
cansativos, somadas as lembranças pela perda de sua família e
os infindáveis testes para verificar todas as hipóteses e
possibilidades. De todo modo, parecera-lhe uma pessoa que em
outro contexto teria lhe despertado um interesse mais profundo.
Pena que não estivesse disposto para um novo relacionamento,
e ela devia ser uma mulher muito ocupada e envolvida em
questões perigosas, das quais ele queria distância. Mas será que
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sua vida poderia voltar ao normal depois daquele atentado?
Esperava retornar não para a residência onde morara com sua
esposa e seus filhos, que pretendia vender, mas para a casa de
seus pais e reencontrá-los bem; era o que mais desejava no
momento e pedia a Deus. A nave onde estava desta vez não foi
atacada, tendo um novo pesadelo com um polvo, este com
braços humanos, que tentava a todo custo, após agarrá-lo,
espremer seus ossos com todas as forças.
Ao desembarcar, ligou para o senhor e a senhora Christiansen
depois de tanto tempo, primeiro se culpando por tê-los deixado
de lado daquela maneira, logo ficando pronto para pedir
desculpas, e deviam estar preocupadíssimos porque o ataque à
Canaan provavelmente passara de forma exaustiva na televisão,
assim como o fato de ser o único sobrevivente, mas não
atendera o comunicador após a morte de sua família e nem
ligara para ninguém durante o período dos testes, sem forças
morais e psicológicas para isso. Contudo, em seu retorno
ninguém atendia, o que foi gerando uma angústia crescente em
seu interior.
De táxi, dirigia-se à casa dos pais quando recebeu uma
ligação. Não se tratava de algum número conhecido, mas
resolveu atender, afinal era possível que seus pais tivessem se
mudado por uma questão de segurança, ou...
“Estamos com os velhinhos. Se você não aparecer na casa
deles em uma hora, furamos as cabeças dos dois.”, tomou um
susto com a voz de algum delinqüente do outro lado da ligação.
Demorou alguns segundos para se recompor e responder: “Já
estou chegando, não vou demorar.”
“É bom mesmo não demorar! E nem pensa em chamar a
polícia. Se algum tira aparecer aqui, os dois morrem na hora.”,
e desligou, deixando o escritor com um nó na garganta. Mais
uma ação da Stella? Bem provável.
A residência de Ingmar e Bela Christiansen, ele engenheiro e
ela arquiteta, ambos renomados, que haviam construído juntos
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inúmeros edifícios, inclusive para o governo, ficava em uma
região mais afastada da cidade, próxima do cinturão verde que
a envolvia e de algumas ruínas atlantes. Era um belo casarão,
com um amplo jardim e piscina, que contava com três cães de
guarda e dois seguranças, que ao que tudo indicava haviam
sido rendidos. Pagou o táxi quando chegou ao portão e o viu
aberto. Este só se abria com as impressões digitais dos seus
pais, as suas, de sua falecida esposa e as dos empregados.
Como haviam feito para entrar? Subiu a pé, deparando-se na
porta com um dos seguranças rendidos, amarrado, e o outro de
pé, apontando a metralhadora que segurava para a cabeça do
velho Ingmar. Estava com os olhos arregalados e vermelhos,
não conservando qualquer expressão humana. Ao seu lado, dois
indivíduos de preto, mascarados e com chapéus. Um destes
com um revólver na cabeça da mãe. Começou a garoar.
“O que vocês querem?”, Joshua indagou ao se aproximar; era
evidente a expressão de desespero do patriarca dos
Christiansen, que exibia cabelos grisalhos já não tão volumosos
quanto a sua barba, ajoelhado no chão; de pé, não era muito
mais baixo do que o filho, enquanto Bela, também de joelhos,
não parava de chorar, mesmo aos setenta anos apresentando
uma pele mais lisa do que o costumeiro para a idade, os olhos
de um verde extremamente vívido, os cabelos presos.
Amordaçados, nenhum dos dois podia falar, mas ela gemia.
“Essa velha é irritante, geme como uma cadela, bem que
podíamos meter bala na cabeça dela antes.”, disse um dos
mascarados.
“Não seja idiota. É ele que interessa e que eu vou levar. Os
dois são garantias pra nós. Enquanto ele vai comigo, você fica
com eles aqui no gatilho.”, respondeu o outro.
“Quem são vocês afinal?”, Joshua tornou a perguntar.
“Peço desculpas por não ter me apresentado.”, o segundo que
falara tirou o chapéu e depois a máscara, revelando-se um
homem moreno, calvo, de barba rala. “Sou Hayden Strauss,
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cavaleiro de segundo grau da Stella. Requisito que faça o favor
de vir comigo.”
“Isso é um sequestro, pelo visto.”
“Não, não entenda dessa forma, por favor!”
“Vocês são muito baixos. Se queriam que eu fosse com vocês
de qualquer jeito, deviam ter vindo até mim apenas, não
manipulado a mente do segurança e usado os meus pais como
escudos.”
“Sabemos que eles não são seus pais sanguíneos, mas que
nutre um grande afeto por eles, e que não viria de outra forma.
Não somos idiotas.”
“Assim como ele dominou a mente do segurança, pode
dominar a sua.”, de súbito, o que permanecia mascarado, e que
não era um membro da Stella, mas um assassino contratado, se
assustou ao ouvir a voz de Joshua apenas em sua mente. “Não
faça alardes, rapaz. Ele pode nos perceber, e garanto que no
domínio da mente sou melhor do que ele, e poderia portanto
usar você a meu favor. Mas não vou fazer isso. Se fizer o que
lhe peço, vou lhe pagar o dobro do que qualquer mixaria que a
Stella deve ter oferecido a você. Não tenha medo e confie em
mim.”, a voz mental de Joshua era tranqüila e persuasiva ao
extremo. O assassino até relaxou, e ouviu com paciência, ao
passo que exteriormente continuava a discussão com Hayden:
“Vocês provaram que não têm o menor senso de honra. Se me
querem morto tanto assim, por que não atira de uma vez na
minha cabeça ao invés de ameaçar e matar inocentes?”
“Vamos fazer um teste!”, o cavaleiro da Stella sacou sua
arma, atirou e para Joshua a bala era sentida à distância e vinha
em câmera lenta, tanto que conseguiu com facilidade se
desviar. “Aí está! Sabemos que não adiantaria nada!”
“Apenas treinei um pouco de artes marciais quando era mais
jovem.”
“Você é mesmo um gozador! Mas vai perder todo o bom-
humor quando se encontrar com o nosso grão-mestre e ele
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liquidar com você.”, repentinamente, ouviu-se um segundo
disparo: este foi dado bem na cabeça de Hayden, que, por mais
que fosse um paranormal de dons não desprezíveis, não tinha
como resistir a um tiro certeiro como aquele. Caiu morto no
ato, enquanto o assassino contratado, que fora quem atirara,
jogou longe o chapéu e tirou por fim sua máscara, revelando-se
um jovem loiro de olhos de fera acuada; falou em seguida:
“Apesar de você me assustar um pouco, de não ter a mínima
idéia do que você é, parece um cara limpo. Vai mesmo me
pagar? Vou ter que ir pra bem longe, porque esse pessoal da
Stella vai me perseguir até no inferno.”
Joshua não precisou fazer mais nada: com a morte de Hayden,
o segurança recuperara sua consciência e atirou sem hesitar,
com a metralhadora, no delinqüente. Dessa forma, a casa ficou
livre dos invasores.
“Não precisava tê-lo matado. Eu ia mesmo pagar esse sujeito.
Mas pelo visto você ainda estava apavorado, foi meio que um
ato-reflexo, e talvez ele não durasse muito de qualquer forma,
com a Stella nos calcanhares, como sabia que iria ocorrer.”, o
escritor disse, olhando para o ofegante e trêmulo segurança.
“Um bandido a menos!”, disse Ingmar, depois de ser solto
pelo filho, e abraçando a esposa apavorada e chorosa quando
esta também foi libertada.
“De todo modo, vamos avisar a polícia e comunicar o que
aconteceu aqui.”
“Chamar a polícia e atrair ainda mais a atenção sobre você?”
“Vamos conversar lá dentro.”, Joshua soltou o outro
segurança e pediu ao que fora dominado mentalmente por
Hayden para que descansasse, estando livre da função pelo
resto do dia. Os corpos dos invasores foram deixados de lado,
até se chegar a uma conclusão sobre o que fazer com os dois, e
Bela e Ingmar ficaram a sós com o filho no escritório do pai.
“Pensei no senhor chamar a polícia e eu ir embora antes que
chegassem. Ficaria como uma tentativa de assalto, na qual os
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ladrões morreram durante o conflito com os seguranças.”
“Precisamos pensar bastante antes de chegar a uma conclusão
a respeito. Ainda acho melhor nos livrarmos dos corpos de
outro modo, porque mesmo você não estando aqui,
considerando-se o atentado, por ser nosso filho tentarão ligar o
crime de hoje à explosão da nave. Uma outra forma para atingi-
lo. Você não deu notícias por todo esse tempo, e nos deixou
preocupados, mas acha que não vimos o noticiário? Aqueles
terroristas declararam que você é o alvo deles.” , o velho
Ingmar falou com veemência, enquanto sua mulher ainda
parecia muito abalada.
“Parece que o cerco está se fechando pra mim. Até que
consegui ficar em paz por muito tempo, mas não poderia
mesmo durar pra sempre. Ilusão minha pensar que uma vida de
cidadão comum seria possível. Me comprometi com o
Comando Ashtar já faz tanto tempo...O mundo hoje só parece
outro, os problemas continuam os mesmos; não há como me
isolar mais. Por isso tanto faz se a polícia continuar me
investigando...Cedo ou tarde, a verdade agora terá que vir à
tona. Só o que não quero é que morram inocentes. Já bastaram
a Anna, a Luna e o Walter. Não quero que vocês se machuquem
ainda mais. Chegou o momento de voltar à ativa, e evitar assim
mais mortes em vão.”, Bela e Ingmar Christiansen sabiam qual
a verdadeira identidade de Joshua: realmente um membro do
Comando Ashtar, porém havia muito tempo inativo, buscando
levar uma vida pacífica, sem lutas contra illuminati e
extraterrestres que ameaçassem a Terra.
Sua história tivera início mais de trezentos anos antes, no
Brasil, país que já não existia mais, no que dizia respeito ao
território que ocupava algumas de suas partes tendo
submergido. Sob o nome de batismo de Domingos Xavier, fora
uma criança estranha, com sérias dificuldades para fazer
amizades e experimentando freqüentes sonhos nos quais se via
em um mundo completamente distinto, com uma tecnologia
48
mais avançada e uma aparência física individual bem estranha
para os padrões humanos. Não conseguia entender aqueles
sonhos, só estava cônscio de uma crescente saudade, não sabia
do quê, e, nascido em uma pequena cidade do interior do
Estado de São Paulo, passava muito do seu tempo olhando para
o céu, admirado com as estrelas quando a noite caía. Seu parto
não fora dos mais simples, e só anos depois, ao se tornar um
membro do Comando Ashtar, se lembraria do ataque espiritual
que seu pequeno corpo e sua mãe sofreram, uma espécie de
verme com dentes afiados, invisível no plano físico, sugando
energia vital do bebê e da mulher. Os dois só sobreviveram
graças à intervenção de um espírito iluminado, que com sua
aura pura queimara o asqueroso enviado do inimigo. Os
illuminati sabiam que seria um de seus piores oponentes no
futuro, pois se tratava de uma consciência advinda de outra
galáxia, de um povo mais avançado espiritual e
intelectualmente, que decidira se encarnar na Terra,
aparentemente “involuindo”, para ajudar a população do
planeta, assim como já ocorrera e ocorreria com outras almas.
No entanto, sem nenhuma memória disso, porque as
lembranças se apagaram, com a descida àquela matéria tão
densa (no seu mundo anterior, os corpos eram mais fluidos e
maleáveis), em razão da desaceleração de seus corpos
espirituais. O corpo terráqueo não resistiria a uma energia tão
intensa.
O tempo passou, e Domingos teve uma vida normal para um
jovem da sua época, indo à escola, faculdade, após se mudar
para uma cidade maior, formando-se em ciências sociais e nas
horas vagas escrevendo ficção. Sonhava publicar os seus livros.
Continuou um tanto isolado, tanto que aos vinte e três anos não
tivera nenhum relacionamento amoroso sério e eram apenas
dois seus amigos relativamente próximos. Ninguém entendia
seus questionamentos, sua contestação a quase todas as regras e
imposições da sociedade, e escondido dos pais, que não
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acreditavam em nada disso, deu início a estudos de ufologia,
que o obrigaram a deixar a ficção um pouco de lado.
Após alguns anos de investigações, entrevistando abduzidos e
procurando casos de ocorrências ufológicas durante as férias e
folgas de seu trabalho como professor escolar, foi sozinho para
o Brasil central, com a desculpa de realizar uma pesquisa
antropológica acadêmica, e lá, numa noite em que estava na
Chapada dos Guimarães, ficou estático quando um dos seus
grandes sonhos se realizou: avistou um objeto voador não
identificado, uma nave extraterrena; só que o mais espantoso,
enquanto se atrapalhava e deixava cair a máquina ao tentar
fotografá-lo, foi que o veículo começou a se aproximar, e em
segundos iluminou todo o matagal, espantando qualquer bicho
que estivesse nas proximidades, e o rapaz se viu diante de
quatro visitantes em uniformes azul-prateados reluzentes, cada
qual com uma aparência distinta, mais ou menos humana, três
muito feios do seu ponto de vista e um deslumbrante, que
atraiu toda a sua atenção: uma mulher de orelhas pontiagudas,
loira de longos cabelos cacheados e macios, quase cor de
platina, e olhos azuis, tão bonita que foi difícil suprimir os
pensamentos de luxúria. Lembrava-lhe uma elfa, e aqueles
revelaram ser integrantes do Comando Ashtar, que haviam
vindo para lhe propor que se tornasse um deles: uma patrulha
interestelar que zelava pela justiça e pela paz em diferentes
mundos, composta por indivíduos de diversas espécies
inteligentes, inclusive alguns humanos, embora nem todos da
Terra. Naquela noite Domingos descobriu que uma
desconfiança sua a respeito da origem do ser humano era uma
verdade, que explicava os extraterrestres humanóides relatados
em certas visões e abduções, por sinal como os que estava
vendo no momento (embora também existissem alienígenas
capazes de mudar de aparência, assumindo formas agradáveis
aos habitantes dos planetas que visitavam para não causar
maiores sustos e choques): os homens da Terra haviam sido
50
frutos de experiências de uma outra humanidade, de outro
sistema, de outra galáxia, que por meio de manipulações
genéticas realizadas em membros de sua espécie exilados na
Terra e em descendentes destes (marginais e transgressores em
seu orbe de origem, trazidos fisicamente, não para o astral
como fora o caso dos reptilianos) criou as raças do continente
desparecido de Mu (que em sua evolução originariam atlantes e
neandertais, entre outros) e os primeiros primatas terráqueos.
Terminou só restando no planeta, do gênero humano, o homem
contemporâneo, o homo sapiens sapiens (que fora
desenvolvido pelos atlantes para o trabalho escravo). A linda
mulher que via à sua frente era uma integrante dessa espécie
extraterrena, que porém não lhe revelou se se tratava da
humanidade original, ou se a sua também descendia de outra
ainda mais antiga, de outro mundo...
Ficou a par dos illuminati e dos reptilianos e foi-lhe explicado
que teria que viver o restante de sua vida se dedicando ao
Comando, numa certa obscuridade, abdicando de sua carreira
de escritor e de qualquer fama como pesquisador, caso
aceitasse trabalhar com eles. Três dias lhe seriam dados para
fazer sua escolha, porém o rapaz não hesitou, queria ajudar a
humanidade, isso era mais importante do que tudo, e foi então
levado ao interior da nave, que era toda dourada, formada por
vários discos e anéis que não paravam de girar, onde conheceu
o comandante Ashtar, que lhe inspirou tamanha graça e
plenitude, sobre sua cabeça e em seu peito uma absoluta
sensação de paz, amor e liberdade, que sem perceber já estava
de joelhos para aquele ser que era como um arcanjo. Ashtar,
entrementes, o levantou e o abraçou, dizendo-lhe “seja bem-
vindo”.
Foram colocadas nanomáquinas de altíssima tecnologia em
seu corpo, reservadas aos indivíduos de maior potencial, que
despertaram seus dons psíquicos e que, entre outras funções,
regulavam a intensidade destes. Eram de uma tecnologia tal
51
que, se fosse da intenção de seu possuidor, não apareceriam em
qualquer exame efetuado por técnicas conhecidas na Terra.
Impediam o envelhecimento e a morte biológica, renovando
continuamente células e tecidos, embora a velhice pudesse ser
admitida como “disfarce” se o indivíduo assim desejasse, do
mesmo modo que poderia simular uma morte e reaparecer
como outra pessoa, com uma aparência diferente.
Mais alguns anos e, seus pais já tendo falecido, Domingos de
fato simulou sua morte e reapareceu no mundo com o nome de
Samael Gibor, após alguns meses isolado em uma base secreta
do Comando na Terra. Veio a grande crise, e a guerra contra os
reptilianos. Foi realmente ele quem liderou a operação contra
os illuminati e executou seus líderes, mas após essa ação
declarou estar cansado, e que não concordava com os métodos
do Comando desde que Ashtar Sheran partira para desenvolver
outro trabalho em um universo distante, e dissera não saber
quando iria voltar. Sem a supervisão do grande comandante,
muitos de seus subordinados haviam se tornado guerreiros
violentos e inflexíveis demais, fixados em uma “justiça” e uma
“paz” impostas a qualquer preço, bem diferentes da firmeza
amorosa de Ashtar, que apesar de seu poder sempre tratara os
criminosos pensando em reeducá-los e regenerá-los, não em
meramente puni-los. Por isso deixou o Comando, decidido a
levar uma vida comum, ao menos a coexistência pacífica entre
humanos e reptilianos fora estabelecida, e pensando em
retomar sua atividade e seu sonho de escritor, o que colocaria
em prática. Entretanto, pelo visto os herdeiros dos illuminati o
tinham descoberto e queriam vingança. Seria obrigado a voltar
à guerra, ainda que por conta própria.
Bela e Ingmar, além de suas profissões, eram espiritualistas
que por muito tempo haviam estudado juntos o Comando
Ashtar, divulgando seus trabalhos na rede internacional de
computadores sob pseudônimos. Samael os localizou e, após
provar a ambos que era um ex-integrante, e relatar-lhes toda a
52
história de sua vida, convenceu-os a adotá-lo como filho, já que
queria muito levar uma vida normal. A partir daí surgiu Joshua
Christiansen, com direito a uma falsa certidão de nascimento, e
Samael rejuvenesceu até parecer um jovem de dezessete anos.
Memórias falsas foram introduzidas nas mentes dos amigos e
conhecidos do casal Christiansen, que passaram a se lembrar
do rapaz como se tivesse sempre convivido com todos desde
pequeno. O único deslize em todo o plano foi a ausência de
registros escolares de Joshua, mas Ingmar estava pronto para
argumentar que não gostava de escolas, que mais
imbecilizavam do que educavam as crianças, e que educara o
filho por conta própria, contando com a biblioteca particular
que tinha em casa.
Pais e filho continuavam conversando e tentando decidir o
próximo passo, quando o comunicador dele voltou a tocar e,
mais uma vez, um número desconhecido. Não tão
desconhecida assim sua origem:
“Sei que são vocês da Stella, não precisam mais tentar enrolar
e fazer cerimônia. O que querem agora?”
“Muita calma, senhor Gibor, ou prefere senhor
Christiansen?”, respondeu uma voz turva do lado oposto da
ligação. “Não pense que o estamos subestimando. Sabíamos
que iria se livrar daqueles dois, pois sua versatilidade mental e
espiritual é compatível com sua versatilidade nos nomes. Além
disso, tínhamos colocado um sensor em Hayden, que nos
avisaria quando suas atividades vitais cessassem.”
“Se sabiam que eu não seria vencido, por que armar um teatro
e desperdiçar mais duas vidas?”
“Apenas queríamos deixar claro que as vidas de todas as
pessoas que valoriza, de todos os seus amigos, estão em nossas
mãos. O senhor certamente não cairia diante deles, mas os seus
supostos pais poderiam ter morrido hoje, assim como
aconteceu com a sua esposa e os seus filhos.”
“Como me descobriram?”
53
“Estivemos muito ocupados por um bom tempo, mas
chegamos à conclusão que nosso grande inimigo não poderia
ficar impune. E possuímos telepatas extraordinários, que
podem localizar qualquer indivíduo, por mais psiquicamente
dotado que seja. Mas o senhor não precisa se desesperar: há
alguns de nós que pretendem preservar sua vida, assim como
não há motivo para atingir mais os seus amigos. Basta vir para
o nosso lado. Afinal, sabemos que não está mais com o
Comando Ashtar.”
“Se não estou mais com o Comando, isso não significa que
vou me juntar a gente suja como vocês.”
“Antes de ser tão categórico, aceite nosso convite, ou melhor
o convite do meu mestre, na verdade nosso grão-mestre
Alexander von Strauffenberg, que o convida para um jantar
amanhã, depois que estiver descansado da viagem de volta de
Marte.”
“Como se vocês tivessem me deixado descansar.”
“Logo o senhor receberá uma mensagem com as instruções
para chegar à residência do mestre von Strauffenberg. Não será
o endereço, mas não fique desanimado, pois não é qualquer um
que ganha a oportunidade de conversar dessa forma com o
principal homem da Stella, na casa dele. Valorize isso,
senhor...Christiansen.”, e desligou a ligação. Ao tentar ligar de
volta para o mesmo número, recebia a mensagem da
Companhia de Comunicação e Informações de número
inexistente.
“Ahhhhh...”, Joshua bufou e desabou na poltrona do
escritório.
“O que você vai fazer agora?”, indagou Ingmar, assim que o
amigo e filho o deixou a par de tudo.
“Não tenho muita escolha, acho que terei de ir ao tal jantar.”
“Se recusar, vão matar você.”, argumentou Bela.
“Sei me defender. Apesar de estar um pouco enferrujado,
acho.”
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“Será que sabe mesmo se defender? Você tinha jurado que não
recorreria mais àqueles poderes.”
“Só não quero que outras pessoas se machuquem por minha
causa. Por isso, ou elaboro um plano, ou recorro a uma parcela
deles.”
“Vou Strauffenberg...”, Ingmar voltou a falar. “O conheço de
nome.”
“Eu também. Não é um dos milionários que vive em
Hozard?”
“Ele mesmo. Quem iria imaginar que fosse o grão-mestre de
uma organização terrorista tão poderosa? Bom, tinha que ser
alguém com muito dinheiro e uma boa reputação.”
“Ele é a cabeça, o resto são os braços. Quem sabe se,
acabando com esse cara, as coisas não possam voltar a ficar
calmas.”
“Não acho que será tão simples. Não me refiro à força deles,
mas à sua vulnerabilidade interna. Lembre-se do que você disse
que sentiu depois do massacre dos líderes illuminati.”
“Lembro como se fosse hoje.”, fez uma pausa tensa, depois
voltou a falar, com um peso adicional na voz: “Assim que a
luta terminou e pude parar e realmente ver todo o sangue
espalhado e os corpos mutilados ou queimados, os espíritos em
agonia, loucura e desespero, me deu vontade de berrar e sumir,
pensei até em me matar. Sabia que o comandante Ashtar nunca
teria aprovado aquela carnificina, mesmo eles sendo o que
eram. Não podíamos nos igualar a eles. Não consegui perceber
nada no calor da batalha, mas quando me dei conta não só os
corpos deles como as almas estavam em pedaços. A violência
foi tamanha que com uma certa freqüência ainda vejo os
espíritos deles, que vão levar séculos ou milênios pra se
recuperar, presos num vórtice de violência. Não é à toa que me
agridem em algumas noites, ainda que de forma sutil,
provocando pesadelos com alguma constância. Quando outros
membros do Comando vieram me parabenizar por aquilo, foi
55
ainda pior.”
“Você já nos falou várias vezes sobre isso. E dá pra perceber
que repete o sofrimento não só nas palavras como
interiormente. Isso nunca cessou pra você.”
“A minha sede de justiça, e de estabelecer a paz na Terra, era
tão grande que fiquei cego, ensandecido.”
“Você precisava se defender, eles eram muitos.”
“Entendo o que quer dizer, meu amigo. Hoje também preciso
me defender, e pode acontecer de novo...”
“Dessa vez falei sem pensar, apenas acho que não tem tanta
culpa quanto acredita. Em uma situação em que alguém se vê
atacado por todos os lados, fica difícil pensar e tomar a decisão
correta.”
“Mas não devia ter agido daquela forma, liberando tanto
poder que perdi o controle. Com menos teria sofrido mais, mas
venceria de qualquer forma e sem causar um dano tão grande a
mim e a eles. E o pior de tudo é que os outros membros viam
em mim um espelho, fui o líder na luta contra os illuminati.
Sou um dos culpados pelo fato do Comando ter degenerado na
ausência de Ashtar. Porque eu tinha degenerado sem me dar
conta. E quando desertei, querendo levar uma vida normal,
vejo agora que foi uma fuga, fugi das minhas culpas e
responsabilidades. Ao invés de tentar fazer o Comando voltar a
ser o que era, o abandonei. Ashtar, se está me vendo, deve estar
mais decepcionado do que nunca.”
“Você não teve culpa, queria ter filhos, uma esposa, escrever
os seus livros. Serviu a humanidade por muito tempo!”, Bela
tentou consolá-lo.
“Servi? E as almas daqueles illuminati, que ainda hoje se
contorcem e se corroem?”
“É por essa razão que penso que, se matar von Strauffenberg e
outros que o estiverem protegendo, mesmo que não precise
usar todo o seu poder, os velhos fantasmas voltarão e você
poderá enlouquecer. Fora que a Stella continuará a persegui-lo,
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buscando incessantemente destruí-lo de uma vez por todas, até
que, provavelmente por você estar fora de si, conseguirá.”,
interveio Ingmar.
“E nesse meio, vocês e outras pessoas seriam massacrados.
Realmente foi uma besteira pensar em matar von
Strauffenberg, e em opor qualquer resistência. Estava com a
cabeça quente. Ainda estou um pouco, aliás.”
“E o que resta então? Trabalhar para eles?”
“Não sei de mais nada. Preciso pensar.”, Joshua foi deixado
sozinho, e ficou refletindo por horas, chegando a um estado de
exaustão mental que provocou seu adormecimento na poltrona.
Aliar-se à Stella e se tornar um criminoso ou lutar e ser
perseguido, não somente seu corpo pelos inimigos, como sua
alma por espectros internos e externos? E os Christiansen e
outros conhecidos seus, que ficariam no meio do tiroteio?
Iria ao jantar oferecido pelo inimigo, essa era sua única
certeza.

CAPÍTULO 3 – Pacto com o Demônio

Ouvi batidas em minha porta. Era meia-noite. Pensei em


fugir, mas não havia por onde. As janelas de repente
desapareceram. Um vento estranho uivava. A porta que antes
emitia as batidas também desapareceu. E a criatura já havia
entrado, um cão com chifres e dentes, não muitos, mas afiados
e grandes o bastante para rasgar o meu espírito antes de tocar
minha carne. Pensei em me ajoelhar e clamar pela minha vida,
não havia para onde correr e não era páreo para o monstro;
mas a besta ficou sobre duas pernas, uma aberração bípede, e
antes de qualquer coisa me apresentou os escritos em sua
barriga, que requeriam minha assinatura em sangue para que
ela devorasse meu pior inimigo.- Ressentimento, do livro Pelos
olhos da Alma.
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Hozard era uma cidade de luxo e entretenimento, onde
dominavam os cassinos e réplicas de monumentos antigos que
haviam sido destruídos no período de transformação da Terra,
como a Basílica de São Pedro, o Taj Mahal, o Duomo de Milão
e a Santa Sofia de Bizâncio, por dentro museus para algumas
peças artísticas que tinham sobrevivido à catástrofe. Não havia
moradores de rua, os habitantes na verdade eram poucos, e
apenas famílias de considerável fortuna.
Joshua encontrou o homem que o levaria à mansão dos von
Strauffenberg no terraço de um dos cassinos. Era loiro e muito
alto, o cabelo perfeitamente cortado, ultrapassando com
facilidade os dois metros de altura, olhos que pareciam quase
fechados o tempo todo; todos os seus gestos eram precisos e
calculados, as mãos sem qualquer marca ou calo, a pele sem
nenhuma mancha, o nariz arrebitado. Conduziu-o a uma nave
que parecia um charuto, mas com um bico na ponta, e
dirigiram-se com ela até o casarão, trocando poucas palavras.
“O meu nome é Bernard de Payens, mas pode simplesmente
me chamar de Bernard. Sou um humilde servo dos von
Strauffenberg, mas possuo também alguns talentos.”, tinha uma
voz grave e aveludada, agradável de se ouvir, e após chegar no
local, entrando pelo saguão amplo e limpo, muito elegante, sem
exageros na decoração, apenas alguns belos quadros, revelou
ser o mordomo da família e resolveu lhe mostrar algumas de
suas capacidades, tocando piano e cantando uma música suave.
Seu tom era o de um barítono, e Joshua relaxou a tal ponto que
quase se esquecera de que iria jantar com o inimigo.
“Meus parabéns, senhor Bernard.”, aplaudiu discretamente ao
encerramento da peça. “Tem bastante talento, e uma agilidade
rara para a voz de um barítono. Mas me diga uma coisa: toda a
família do seu patrão está aqui?”
“Apenas o mestre Alexander. A senhora von Strauffenberg e
seus dois filhos foram viajar, o mestre lhes pagou uma viagem,
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e também deu uma folga para os seguranças.”
“Entendo.”, por um momento passara pela mente de Joshua
uma terrível vingança: acabar com a vida tanto da esposa como
dos rebentos do grão-mestre da Stella. Mas depois pensou que
com grande probabilidade deviam ser inocentes, as crianças
com certeza, e por isso não havia a menor humanidade ao
cogitar matá-los. Iria se igualar ao inimigo, tornar-se um
monstro da pior espécie. De qualquer forma, o chefe da família
fora precavido e enviara para longe seus entes queridos. Não
por medo do ex-comandado do grupo de Ashtar, que devia
julgar incapaz de qualquer ação de crueldade absoluta, afinal
mesmo durante o massacre dos illuminati só executara gente
que tinha muitos crimes nas costas, e sim porque a mulher e os
filhos provavelmente não podiam ouvir nada do que seria
conversado naquela noite, o que comprovava que eram
inocentes.
“Não se preocupe, senhor. Logo o mestre virá. Nosso amado
grão-mestre.”, o mordomo se levantou de repente do assento
em frente ao piano e encarou Joshua.
“Então você também é um membro da Stella?”, não chegou a
ficar surpreso.
“Os outros empregados não poderiam ouvir o que será falado
hoje por aqui. Por isso, ganharam uma folga. Acho que fiquei
sobrecarregado, mas é para mim um prazer servir o meu
mestre.”
“Poderia tocar mais um pouco?”
“Mas é claro. O que prefere? Beethoven ou Chopin?
“Fica a seu critério.”, o mordomo até falava bem o idioma de
Voynich, que herdara elementos do alemão, do francês, do
russo, do inglês, do hebraico e de línguas nórdicas, uma
miscelânea devida às múltiplas ascendências dos habitantes do
país. Era sem dúvida a língua mais falada da civilização
conhecida, inclusive em Marte, em cidades-estado como Arash
(que haviam sido fundadas por imigrantes de Voynich e só
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adquirido a completa independência com o tempo), claro que
com variantes e dialetos, mas não deixava de ser o idioma
principal. Notava-se em Bernard, no entanto, um sotaque
distinto e familiar para Joshua, que não conseguiu identificá-lo.
“Seja bem-vindo, senhor Christiansen.”, Alexander apareceu
durante a execução do primeiro movimento do Clair de Lune,
descendo as escadas para a sala de jantar. “Devo tratá-lo pelo
sobrenome atual, não prefere assim?”
“Sem deboches, por favor.”
“Juro que não era minha intenção ironizar nada. Vejo que
Bernard o está entretendo! Que bom que se sentiu em casa.”,
Joshua se levantou da poltrona onde estava para cumprimentar
o anfitrião, um indivíduo espigado de longos cabelos negros
ondulados, pálido, o nariz aquilino, os lábios finos, os olhos
escuros e levemente puxados, os pulsos finos e as mãos de
dedos longos, vestindo um terno preto de grife, a camisa branca
por baixo com uma bela gravata, calça e sapatos da mesma
marca, combinando perfeitamente.
“Uma casa em que não há muita diferença entre o vinho e a
cicuta, mas o senhor tem uma certa razão.”
“Não há porque fazer esse tipo de comparação. Vou lhe servir
um dos meus vinhos, e poderá saboreá-los com toda a sutileza,
degustá-los, e perceber que não há nenhum veneno. Nossas
intenções vão muito além, não somos tão grosseiros e pobres
de raciocínio.”
“Mas foram grosseiros o suficiente para, numa tentativa de
me matar, envolver um sem-número de inocentes.”
“Está usando a desculpa dos inocentes para falar de sua
esposa e seus filhos.”
“Mesmo que estivesse, isso não minimiza o crime de vocês.”
“É deselegante falar de assuntos tão desagradáveis agora.
Prepare a mesa, Bernard! E por obséquio traga um vinho suave
para mim e para nosso convidado.”
“Sim, senhor.”, o mordomo se inclinou respeitosamente e
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obedeceu.
“Possui um empregado bastante dedicado. Há quanto tempo
ele o serve?”, indagou Joshua.
“Acho que poderíamos nos sentar, é melhor.”
“Claro.”, sentaram-se nas poltronas da sala, um de frente para
o outro. Apesar de parecer relaxado, o grão-mestre von
Strauffenberg não tirava os olhos do visitante por um segundo,
assim como os olhares de Joshua eram firmes e diretos.
“Pois bem. Na verdade, adotei Bernard há trinta anos atrás,
antes de me casar. Ele já tinha dez anos, mas quando o vi no
orfanato, mesmo estando em busca de crianças menores, soube
na hora que estava diante de um indivíduo destinado a ser um
grande mago e um membro de exceção e excelência, uma
verdadeira estrela nascente. Hoje é Chanceler de nossa Ordem,
exercendo uma das mais honrosas funções, que é a de
aconselhar e servir de perto o grão-mestre. Na verdade, seu
nome de batismo é outro, de Payens um dos nossos
sobrenomes iniciáticos, e nasceu em Yuha, mas seus pais o
abandonaram em nosso país. Deve ter notado o sotaque.”
“Sim, já estive em Yuha, deve ser esse o porquê me soou
familiar. Foi há um bom tempo, por isso não o reconheci, até o
senhor falar. Mas quer dizer que tem o costume de adotar
crianças órfãs? E quantos anos o senhor tem?”
“Meus filhos são filhos biológicos. Mas às vezes, quando a
Stella está com falta de homens, assumo a responsabilidade de
buscar futuros integrantes, e sinto com facilidade,
investigando-lhes a aura e a mente, se têm potencial ou não.
Quanto à minha idade, não são só os subordinados de Ashtar
que conhecem nanomáquinas que tornam relativo o
envelhecimento e bloqueiam a morte.”
“Conseguiu com os reptilianos.”
“De fato, com os verdadeiros reptilianos, membros orgulhosos
de uma espécie antiga e sábia, não os fracos que se curvaram à
humanidade.”
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“Você sendo humano, por que fala dessa forma?”
“Não seja hipócrita, senhor Christiansen. Há algum tempo que
nós dois não somos mais humanos. Estamos além, da mesma
forma que um homem está bem além de um chimpanzé.”
“O senhor não deve saber como ocorreu realmente a evolução
em nosso planeta.”
“Sei da intervenção de seres de outros mundos, e que alguns
se parecem com os seres humanos, e que originaram os símios
e depois o homem como o conhecemos.”
“Está mais informado do que imaginei.”
“É melhor o senhor parar de me subestimar. E se naquela
época a vida neste pobre planeta teve a ajuda de extraterrestres
para evoluir, por que hoje não podemos ter o auxílio dos
mestres reptilianos?”
“As intenções são completamente diferentes.”
“Eles não nos farão escravos. Não seres como eu e o senhor.
Pois somos úteis a eles. E provaremos que podemos ser iguais,
ou até superiores, e não ousarão nos usar e nos machucar.”
“Está se colocando num pedestal”.
“Não sou hipócrita de não admitir que sou superior à gentalha
que maltrata este pobre mundo. Um bando de ignorantes
insensíveis, que merece não passar de ração ou de
trabalhadores braçais. Nós somos diferentes, senhor
Christiansen, um nobre como eu e um artista como o senhor
estamos destinados a dar origem a uma nova casta no
universo.”
“Não acredito em castas, e sim num movimento fluido e
dinâmico da vida.”
“O senhor até que me diverte, mas estou certo que em breve
irá de mudar de opinião e deixar de ter pena das formigas. Ou,
se pelo menos as valoriza como trabalhadoras, não irá permitir
que pisemos nelas.”
“Vocês não vão fazer mais nenhum mal a gente inocente.”
“Isso é o que veremos.”, Alexander sorriu cinicamente, logo
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chegou o vinho, tomaram alguns poucos goles e em seguida se
dirigiram à mesa de jantar. Lá Joshua ficou um pouco surpreso
ao ver a presença de outros indivíduos ali, todos elegantemente
trajados, homens e mulheres, porém não possuíam rostos:
hologramas de outros membros de alto grau da Stella, que
ainda pretendiam ocultar suas identidades, enviando suas
mentes e preservando seus corpos. Claro que seus pratos
estavam vazios, mas Bernard os posicionara. À mesa, um risoto
com especiarias, um salmão finamente preparado, uma salada
com queijos caros, uma boa variedade de frutas e trufas
deliciosas. “Acredito que apreciará o que preparamos. Bernard,
além de mordomo, é um excelente cozinheiro.”
“Confesso que não estou assim com tanta fome.”
“Por que não se anima, senhor Christiansen?”, um dos
hologramas indagou. “Temos uma ótima proposta a lhe fazer.”
“Querem que fique saltitando e enchendo a pança sem culpa
enquanto janto com os responsáveis pela morte da minha
mulher e dos meus filhos?”
“Em primeiro lugar, comer e saltitar ao mesmo tempo não é
algo que se possa fazer, e nem faz bem à saúde.”, veio a
resposta irônica de uma imagem que parecia ser a de uma
mulher, os cabelos loiros compridos e lisos caindo pelos
ombros, o rosto que não mostrava olhos, nariz ou boca. “Em
segundo, já está se tornando repetitiva esta sua alusão ao
acidente com a Canaan. Ainda terá tempo de vida suficiente,
caro senhor Christiansen, para casar outra vez e ter novos
filhos, não acha? Estou solteira há alguns anos e nem por isso
perdi as esperanças.”
“Ora, ora, está assediando o nosso convidado?”, indagou
outro membro da Stella.
“Ele é no mínimo um homem muito interessante.”
“Não estou para brincadeiras. E como tem coragem de falar
que foi um acidente?”, indagou Joshua.
“Porque nem todos estávamos de acordo sobre o ataque
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àquela nave. Eu mesma fui contra, pois estava certa que o
senhor sobreviveria.”
“O seu conceito de acidente é no mínimo estranho. E quer
dizer que foi contra apenas porque acreditava na minha
sobrevivência, mas a vida dos inocentes a bordo não importava
nem um pouco?”
“Tudo o que não é coletivamente bem planejado pode ser
classificado como um acidente, na minha opinião.”
“Já chega, Tessa. Não vamos irritar nosso convidado.”,
interveio von Strauffenberg, que estava degustando um
modesto pedaço de salmão e uma pequena porção do risoto.
“Isso é extremamente deselegante. Vamos passar a um assunto
de interesse comum, e que diz respeito ao futuro, não ao
passado, que já não existe. Olhemos adiante, senhores.”
“Nosso mestre tem toda a razão.”, ecoou Bernard.
“Caro senhor Christiansen, nossa proposta é para que quebre
de uma vez por todas suas relações com o Comando Ashtar e
trabalhe conosco. Não faça ainda objeções: pense bem antes de
falar, pois dessa forma os dois lados irão abrir mão de qualquer
vingança. O senhor não precisará mais se vingar pela morte dos
seus entes queridos, e nós não precisaremos nos vingar dos
crimes cometidos contra nossos mestres e antecessores. Os
espíritos dos que assassinou enfim lhe darão paz, porque temos
o poder para afastá-los do senhor; só não fizemos isso ainda
porque acreditamos que o castigo da obsessão espiritual é, por
enquanto, merecido.”
“Quer dizer que estão a par do estado das almas dos antigos
líderes illuminati...”
“Claro que sim, desde que começamos a investigá-lo com
mais atenção e proximidade.”
“Se prezam tanto os seus antecessores, por que não os
libertam desse estado miserável? Se têm mesmo poder,
deveriam libertá-los de mim e melhorar suas condições
espirituais. Preferem me prejudicar a ajudar os que são seus
64
pais do ponto de vista intelectual e espiritual?”
“O senhor também tem o poder para afastá-los, por que não
faz isso? Achamos que tenha a ver com culpa e remorsos. O
senhor se pune o tempo todo. Analise: se trabalhar para nós,
poderá se ver livre de toda a culpa, afinal estará ajudando os
que são os filhos espirituais dos que humilhou e massacrou,
começando a se redimir de seus pecados.”
“Não acredito em pecados e sim na lei espiritual de ação e
reação.”
“Então o senhor é contraditório, pois sinto que se culpa. Sei
que se culpa.”
“Poderia até afastá-los, mas isso depende de mais alguém, de
mais acima; é pela lei de ação e reação que ainda me
perseguem, é por uma conseqüência dos meus erros do passado
que esses espíritos me atormentam. Portanto, apesar de ter o
poder, não tenho moral para isso. Se alguém os libertasse, seria
de alguma forma Deus agindo através dessa iniciativa, e então
poderia considerar que a reação terminou. Mas tem que ser
alguém de fora, ou eu estaria fugindo, me escondendo, com
esses espíritos continuando na péssima condição em que os
deixei. É assim que vejo. Entende a diferença agora entre o
conceito de pecado e a lei de ação e reação?”
“E nós poderíamos ser esse alguém de fora?”
“Deus está até nos caminhos mais estranhos, é um corpo com
muitas mãos, algumas um tanto rebeldes e com gosto pela
lama.”
“Devo reconhecer que sabe tergiversar. Nunca li uma de suas
obras, mas devem ser interessantes, pois é bom com as
palavras.”
“Continuando...”, Joshua bufou antes de retomar seu discurso.
“Afastá-los não significa libertá-los. Posso me isolar deles,
constituir um campo de proteção e ficar imune, mas isso não os
recomporia, não eliminaria o ódio e a deformidade. Nesse caso
não só não tenho moral como não tenho poder. Fui treinado
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para ser um guerreiro, não um educador. O comandante Ashtar
e alguns outros, que infelizmente foram eclipsados com a
partida dele, tinham essa função em nosso grupo, não eu. Não
sei como reeducar e regenerar espíritos.”
“E sinto que essa é uma de suas maiores desilusões. Pelo
visto, Ashtar não é assim tão bom e generoso, ou deveria ter
passado seus conhecimentos a todos antes de simplesmente
desaparecer.”
“Não vejo assim. Cada indivíduo nasce com um dom e uma
missão. Ele sabia qual era o meu foco, o meu talento, e me
instruiu de acordo.”
“Mas então por que foi embora e os deixou?”
“O cosmo é imenso, não fazemos idéia do trabalho que uma
consciência como Ashtar precisa desempenhar, não só neste
universo como em outros.”
“Seja como for, ele abandonou a Terra.”
“De todo modo, eu não conseguiria, mesmo que tivesse sido
treinado para reeducar, fazer isso com espíritos que estão cegos
de ódio de mim; nunca me ouviriam. E vocês não podem falar
de Ashtar, afinal abandonaram seus mestres, deixando-os no
plano astral na condição de fantasmas ensandecidos apenas
para me punir. Sei que você por exemplo poderia libertá-los,
não reeducá-los como o Comando Ashtar faz, mas ao menos
redespertar suas consciências, para que trabalhassem para
vocês conscientemente do outro lado. Mas vocês não só
querem me torturar, porque poderiam fazer isso com a ajuda de
espíritos conscientes, dos falecidos illuminati sedentos de
vingança; na verdade, descobri que querem continuar a
massacrar seus antecessores, porque os consideram fracos por
terem sido derrotados. Se me livrassem deles, os jogariam em
alguma nova prisão espiritual. Para vocês, apenas os
vencedores valem a pena. Querem limpar a honra da Ordem
dos illuminati, que hoje é a Stella, a instituição, não a dos
indivíduos que foram vencidos, que merecem sofrer tanto
66
quanto eu. Pretendem livrar a Stella de qualquer risco, de
qualquer inimigo poderoso. O foco é no presente.”
“Parece que chegamos ao nó da questão. E mesmo os que
entre nós queriam vê-lo morto, agora estou certo que desistiram
de considerá-lo um possível perdedor. Você é um vitorioso,
senhor Christiansen, um forte como nós, e por isso seu lugar é
ao nosso lado. Isso é presente; isso é realidade. Os fracos
macularam nossa honra, que será purificada integrando alguém
com seu poder.”
“Vocês não fazem o meu tipo.”
“Tem medo de vir para o lado do mal? Pois não há bem ou
mal, o senhor sabe o que o Comando Ashtar se tornou, e seu
grande comandante simplesmente virou as costas para a Terra.
Nós matamos sua esposa e seus filhos, mas também isso pode
ser visto como uma intervenção de uma das mãos de Deus;
afinal, a morte deles não seria uma reação às suas ações
equivocadas do passado? Estou seguindo o seu raciocínio...”
“Mesmo que eu dissesse que aceito trabalhar para vocês,
vocês não acreditariam. Ou estou errado?”
“Está certo. Mas acha que é assim tão simples entrar para a
Stella? Teria que nos dar uma prova de sua lealdade.”
“E qual seria?”
“A cabeça daquela agente, Joanna Flammarion.”, diante de
tais palavras, Joshua empalideceu. “Espantado, senhor
Christiansen?”
“É apenas uma agente do serviço de inteligência de Arash.
Incomoda vocês tanto assim?”
“Não é uma mera agente de um governo de importância
secundária; é uma integrante da Sapiens Donabitur Astris, a
organização que é nossa principal rival. Pelo visto não foi
observador o suficiente durante o período em que esteve com
ela. Deve ter prestado atenção em outras coisas...”, bebeu um
gole de vinho enquanto esboçava um sorriso malicioso.
“Confesso que estou realmente surpreso.”
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“Queremos acabar com todos os membros da Sapiens, mas
nada melhor do que começar com uma cabeça que seja
agradável esteticamente. Depois passaremos para aquele obeso
deselegante que é o pai dela, Emmanuel Flammarion, e no final
quero ter o prazer de decapitar pessoalmente Jerome Yeats, que
já nos rendeu inúmeros problemas.”
“Vocês são insanos.”
“Na verdade não temos pressa. Coma um pouco, senhor
Christiansen. Até agora não tocou na comida e está deliciosa.
Daremos ao senhor alguns dias para pensar.”
“Sinto muito, acho que vou embora.”
“Uma atitude extremamente deselegante. Mas não pense que
por tal descortesia iremos desistir do senhor. Bernard...”,
enquanto Joshua se levantava, chamou o mordomo e chanceler,
que replicou:
“Sim, meu mestre.”
“Dê ao senhor Christiansen seu número de contato assim que
deixá-lo em casa. E trate com ele nos próximos dias. Caso a
resposta seja positiva, ele poderá voltar a falar comigo.”
“Às suas ordens, meu senhor.”
Joshua saiu sem se despedir de seu anfitrião, ao qual
simplesmente deu as costas, escoltado por Bernard de Payens,
que o levaria na mesma nave que o trouxera ao casarão. “Pena
nosso jantar ter sido tão breve...”, o grão-mestre da Stella
comentou com os hologramas de seus confrades, mostrando
um sorriso discreto e cínico.
“Os brutos também amam.”, a loira fez este comentário e a
maioria riu. Um dos outros indivíduos revelou sua face, que
lembrava a de uma cobra, exibindo os dentes afiados em um
rosto de escamas brancas e frias.

Assim que Joshua adormeceu, já na casa de seus pais, afinal


não queria nem saber da agora enorme cama de casal que
dividira com Anna, tiveram início sonhos nebulosos, nos quais
68
se fundiam imagens oníricas e cenas e vozes do passado;
recordações tomavam as aparências de sementes do exato
instante, porém o suposto solo se diluía, dando lugar a um rio
onde o som das águas eram falas mais ou menos familiares.
“Todos os que conheci são a minha família, mesmo os que me
odiaram. Não há irmãos que se detestam?”, textos que lera se
misturavam a imagens conhecidas e desconhecidas, mesclando
realidade e ficção, espiritual e material, filmes que vira e
situações que vivenciara, diálogos que só escutara ou dos quais
tomara parte. “Discos voadores não existem, você nunca ouviu
falar de espelhismo?”, vinham à tona lembranças de Domingos
Xavier. “Não faço idéia do que seja.”; “É bom estudar antes de
cair na credulidade, pesquisar antes de assumir deduções e
hipóteses como realidade.”; “Eu pesquiso, mas não tenho como
saber tudo; ninguém sabe tudo. Na vida somos pouco ou muito
ignorantes, a sabedoria está em reconhecer isso. E quando
desconheço algo e me falam a respeito, busco saber o que é.”;
“Depois procure mais sobre, mas resumidamente o espelhismo
explica os discos voadores como reflexos, principalmente
como um fenômeno de refração produzido por camadas
inversoras de temperatura.”; “Já ouvi falar disso sob outro
nome; não explica todos os casos.”; “Explica a maioria!”; “É
na minoria que está o mais interessante do fenômeno.”, se
lembrava de suas conversas com céticos. “As supostas naves
dos Ets, se existem, podem ser na verdade projetos secretos dos
governos”; “E por que uma nação que tivesse acesso a uma
tecnologia desse tipo continuaria a fabricar foguetes
convencionais, gastando milhões em modelos superados? Seria
o mesmo que continuar investindo num calhambeque, tendo a
tecnologia dos carros de hoje.”
Estudara com particular afinco o caso de Rivaldo Aleluia
Madras, um menino de 9 anos, que revelara à imprensa que seu
pai, chamado Raimundo, que trabalhava como mineiro, teria
sido levado por uma nave espacial. O garoto não tinha
69
nenhuma cultura científica, e explicara que o disco pousara em
frente à casa da humilde família, enquanto tomavam um pouco
de ar fresco, e uma luz sugara Raimundo. As autoridades o
submeteram a um exame psiquiátrico, não constatando
nenhuma doença mental em Rivaldo.
Já na cidade de Bebedouro, alguns anos antes, um jovem
soldado, chamando Anderson, que Domingos teria o prazer de
entrevistar pessoalmente, vivenciara uma experiência das mais
estranhas, raptado por criaturas repelentes de pouco mais de
um e vinte de altura, que o levaram a uma nave intensamente
luminosa onde se encontrara com uma entidade de aparência
angelical, andrógina, vestida com uma túnica celeste. O rapaz,
após alguns instantes de êxtase, terminara liberado a alguns
quilômetros de casa. “Fiquei primeiro apavorado, mas depois
aquela presença na nave me tranqüilizou, me transmitiu uma
paz e um amor profundos, que me deixaram sem reação. Não
dá pra entender como aquelas coisas feias talvez trabalhassem
praquele ser de luz.”
Ficara muito satisfeito por conseguir falar com Anderson,
conquanto as autoridades militares fossem lhe negar visitas
posteriores, assim como o haviam proibido de falar com o
pequeno Rivaldo.
Um terceiro caso se dera com Caetano Silveira, um homem de
meia-idade que estava percorrendo a estrada de Natividade a
Itaperuna quando, nas proximidades, um OVNI constituído por
uma série de luzes coloridas desceu à sua frente. O carro parou
e não quis saber de ligar mais. Diria a Domingos: “Saíram da
nave uns três anões de um metro de altura, as testas chatas e os
olhos puxados. Traziam uma espécie de lampada com um facho
azul avermelhado, que me ofuscava. Abriram a porta do carro,
me tiraram, e me sentia atraído pelo disco, mas consegui reagir
e, lutando com aqueles nanicos, procurei me livrar do rapto.
Não adiantou nada, só fiquei machucado, alguma arma que eles
tinham me derrubou e fui parar dentro da nave, onde fizeram
70
algumas experiências, e depois de uma meia-hora, pelo menos
foi o tempo que pareceu, estava de volta ao carro, no meio da
estrada deserta. Eu sabia que não tinha sido alucinação! Nunca
usei drogas, e foi real demais.”
Outro sujeito seqüestrado por alienígenas em uma rodovia
fora encontrado no meio da pista por outro motorista e,
recolhido cego pelo ofuscamento provocado pela nave dos
visitantes espaciais, levado para um hospital. Este sentia como
se tivesse sido introduzida alguma coisa em sua cabeça para
alterar sua personalidade. Um chip? Nada seria encontrado
pelos médicos, e a saúde mental do indivíduo era perfeita.
Naquela época, não podia imaginar que fosse viver tanto,
acompanhando a terraformação de Marte, empreendimento
levado a cabo por Voynich graças à soma dos conhecimentos
técnicos humanos e reptilianos. Sem o que os extraterrestres
sabiam, seria um processo muito lento, que poderia levar
centenas ou milhares de anos.
Fábricas movidas a energia solar, produzindo gases que
geraram um efeito estufa artificial, como metano e dióxido de
carbono, foram as responsáveis por elevar a temperatura do
planeta, que, mesmo sem chegar a ser igual à da Terra,
alcançaria níveis mais amenos com o passar das décadas.
Tais fábricas foram feitas com materiais já existentes no
planeta e, para recolhê-los, a civilização humano-reptiliana
fizera uso de máquinas leves e eficientes. Numa segunda etapa,
foram introduzidas outras, que imitavam o processo de
fotossíntese realizado pelas plantas, inalando dióxido de
carbono e emitindo oxigênio. Gradativamente, graças à
quantidade ideal destas máquinas e à introdução de algumas
bactérias fotossintéticas como auxiliares, a atmosfera de Marte
foi sendo oxigenada, primeiro os colonizadores deixando para
trás os trajes de astronautas, dispensando-se depois até o
equipamento respiratório. A água derretida foi aos poucos
cobrindo partes consideráveis da superfície do planeta,
71
formando mares, e as primeiras florestas nasceram. Com a
amenização do frio e o fim da secura excessiva, culminando
com a ocorrência freqüente de chuvas, a poeira que ficava por
muito tempo na atmosfera, causando uma neblina amarela, que
obscurecia o planeta, passou a descer logo ao solo; a atmosfera
mais limpa, o céu marciano se tornou claro, similar ao da Terra.
O conhecimento da antigravidade e sobre a manipulação da
força gravitacional que os reptilianos possuíam foi outro
extremamente útil tanto na colonização de Marte como nas
viagens no espaço. Afinal, se a gravidade marciana tivesse
permanecido como estava, maçãs como a que caíra na cabeça
de Isaac Newton iriam despencar nos colonos com uma força
duas vezes e meia menor, e isso iria retardar novas descobertas,
que dependem de certas pancadas, como numa ocasião lhe
dissera brincando um amigo cientista.
No planeta vermelho como nas naves, que passaram a utilizar
adequadamente a energia solar, para se locomover no espaço
com maior rapidez e eficiência do que o que era possível com
outras fontes de energia, a gravidade foi adaptada à da Terra.
Num determinado momento da noite, meio-dormindo e meio-
acordado, Joshua, ao se lembrar de Marte, vendo-se num sonho
andando em Arash, evocou automaticamente a morte de suas
filhas e de sua esposa, o que o mergulhou em uma extrema
tristeza, e pelas ruas da cidade que reconstruíra em sua mente
os pedestres normais foram substituídos por seres obscuros,
disformes e agressivos, que passaram a atacá-lo com garras e a
insultá-lo, alguns furiosos, outros rindo, zombando de sua
desgraça. O único alento que teve foi a imagem de Joanna, que
apareceu de repente, saída de uma cortina de poeira vermelha,
e à visão nítida de seu rosto o escritor despertou, dando-se
conta, pela presença de uma luz azul em seu quarto, que não
estava mais só.
Levantou-se e a claridade não demorou a crescer, tornando-se
intensa e ofuscante a olhos humanos comuns, porém Joshua
72
podia continuar a fitá-la sem cerrar as pálpebras e sem se
abalar. Dentro desta, tomou forma um corpo humano
conhecido, um indivíduo de por volta de um e setenta, cabelos
castanhos lisos curtos, olhos que lembravam dois amplos lagos
e sorriso sereno. Usava uma armadura prateada reluzente com
detalhes em azul-claro.
“Há quanto tempo que não nos vemos, Samael.”
“Já não uso mais esse nome. E não sabe que não é educado
acordar os outros no meio da noite?”
“Algo que sempre admirei em você é seu senso de humor.”
“Bem que imaginei que não fosse demorar a aparecer,
Orifiel.”
“Meus pêsames pelo que aconteceu à sua família. Sinto
muito.”
“Garanto que sinto muito mais.”
“Seja como for, embora reconheça a sua dor, o terrível
sofrimento de perder entes queridos, nós do Comando Ashtar
nem deveríamos mais ter apegos como os que você cultivou.”
“Lembre-se que deixei o Comando.”
“E teve que enfrentar as conseqüências disso. Pois assumiu
um compromisso e depois desistiu, desertou.”
“Meu compromisso era com o comandante Ashtar.
Infelizmente as coisas mudaram depois que ele partiu.”
“Tudo na vida muda, a existência é dinâmica, o universo está
em constante transformação. Mas ele irá voltar, e enquanto isso
é natural que a mudança de pulso, no modo de comandar,
produza insatisfação em alguns e discordâncias. Porém um
modo diferente de liderar não significa um modo errado. Ao
contrário de outros que também discordaram, você não
permaneceu para fiscalizar e contestar. Você fugiu.”
“Nisso reconheço que talvez tenha errado.”
“Uma vez que se entra para o Comando, o passado fica para
trás. Mas você pretendeu regressar, quis fugir de volta para a
vida humana comum. Nisso, ficou desprotegido, vulnerável aos
73
inimigos, que não se esquecem do que você é, e pior: envolveu
outras pessoas na sua fuga, alvos fáceis para que seus inimigos
ferissem sua alma.”
“Acha que não me culpo pelo que aconteceu?”
“A culpa é um equívoco, porque Deus não julga. Só que todas
as ações têm sua devida reação.”
“Agora infelizmente sei que terei que arcar com mais esse
crime.”
“Naquela vez, você não cometeu nenhum crime, ao contrário
do que pensa. Cumpriu a justiça. O seu único crime no passado
esteve em desistir de sua missão, em sua fuga. Mas você já
pagou por ele com a perda dos que mais amava.”
“Eles eram inocentes, não tinham nada que ver com os meus
erros.”
“Eles perderam suas cascas, mas seus espíritos imortais estão
intactos; o sofrimento maior foi o seu, que ficou vivo. E não se
esqueça que nada ocorre por acaso, que tudo tem uma razão
para acontecer no universo. Não há inocentes. Em uma vida
passada, eles podem ter sido criminosos como os integrantes da
Stella.”
“Se está tentando me dar explicações para o que aconteceu,
dispenso as suas explicações. Não o convidei para vir aqui
hoje. Vá embora.”
“Não posso simplesmente ir embora, meu irmão. Sabemos
que recebeu uma proposta da Stella, e não há como ficarmos
indiferentes a isso.”
“O que querem de mim? Que acabe com todos eles amanhã?”
“Nem todos estão na mansão de von Strauffenberg, e seria
preciso dar um fim em todos, para não ocorrer como no
passado. Alguns illuminati conseguiram escapar, e eis a Stella,
que se ergue como uma imensa e terrível sombra sobre a
humanidade. É preciso localizar todos, e agir com mais astúcia.
Caso contrário, o mal nunca terá fim tanto na Terra como em
Marte.”
74
“Você finge que não é capaz de perceber uma ironia.”
“Sua única escolha é voltar a lutar conosco, e tem neste
momento uma oportunidade de ouro para conquistar a
confiança do inimigo. Entre no covil deles. Infiltre-se.”
“Você não me dá ordens, Orifiel. E fala como se fosse
simples!”
“Mate Joanna Flammarion e conquiste de vez a confiança
deles.”
“Isso é loucura...Não percebe o que está dizendo??”
“Uma vida perdida é lamentável, mas muito pior são milhares
ou milhões de vidas que podem ser perdidas devido ao seu
sentimentalismo. A humanidade e os reptilianos pacíficos serão
escravizados pela elite da Stella se os planos deles tiverem
êxito, os que resistirem executados de forma brutal. O corpo de
Joanna é uma casca, o espírito dela continuará evoluindo, ainda
mais sendo uma maga. Ela o perdoará e compreenderá. Antes
um morrer do que cem ou mil.”
“Para mim tanto faz um ou milhões. Toda vida é importante.
Não quero que ninguém morra.”
“Infelizmente, a realidade não é assim, e nas guerras alguém
sempre acaba morrendo. Raciocine melhor, e se dê conta que,
se conseguir se infiltrar na Stella, poderá pegá-los de surpresa
quando menos esperarem. E então a guerra terá fim! Aí sim não
teremos mais mortes. Só que para se obter a paz, sacrifícios são
necessários. Lembre-se por exemplo dos mártires entre os
primeiros cristãos.”
“Eles se sacrificaram, mas não houve paz. Os ensinamentos
do Cristo se espalharam, é verdade, mas tivemos Inquisição e
cruzadas. Não acredito na paz obtida por meios e argumentos
velhos. Os fins nunca justificam os meios.”
“Você está relutante, mas por dentro sabe que não tem
escolha. Ou a vida de Joanna, ou a futura paz no mundo. Não
poderá se infiltrar e convencê-los sem fazer o que pedem.”,
pairou um silêncio de expectativa pelo quarto; alguns segundos
75
se passaram e Joshua, angustiado, tirou os olhos de Orifiel,
desabou na cama e bufou. Passou as mãos pelo rosto.
“Compreendo os seus questionamentos, e a sua hesitação.
Como está bem ciente, nós do Comando Ashtar não julgamos
nossos semelhantes. Todavia, sabe que esta sua postura só irá
lhe trazer frustração e descontentamento.”
“Vá para o inferno, Orifiel.”, Joshua replicou com as mãos
sobre os olhos.
“Teremos paciência. Saberemos esperar pela sua resposta por
algum tempo. Hoje talvez seja muito cedo; não é justo exigir
tanto assim de alguém que ainda se encontra com a alma
ferida.”
“Vou me infiltrar na Stella. Voltarei a colaborar com vocês”,
abruptamente, deu sua resposta. “Você me perturba. Talvez
justamente por isso não posso negar que tenha razão em alguns
pontos. Se não tivesse, eu ficaria indiferente.”
“Tire as mãos dos olhos...”
“Ainda não. Vou tirar amanhã, quando precisar encarar outra
vez os assassinos da minha família. Até lá terão parado de
arder.”
“A minha luz também os queima.”
“É verdade.”
“Se vai mesmo se infiltrar, então isso significa que decidiu
matar Joanna Flammarion...”, Orifiel fez a observação, após
uma pausa, e Joshua não respondeu. Não se tratava de uma
simples parada: assumiu um silêncio duro, pétreo, e nessa hora
o integrante do Comando Ashtar refletiu que já conseguira
demais, que era o bastante por aquela noite, e que chegara a
hora de ir embora. Não havia razão para tortura. O quarto
voltou a ficar escuro e vazio, e ao tornar a ficar só Joshua
descobriu as pálpebras, mas ainda as manteve fechadas até o
raiar do novo dia.

“Aceito a proposta de vocês. Vou matar Joanna Flammarion e


76
quem mais vocês quiserem da Sapiens Donabitur Astris.”, após
falar primeiro com Bernard, dizendo que aceitava se tornar um
membro da Stella, a ligação foi passada para von
Strauffenberg.
“Foi mais rápido do que esperávamos. Ao que se deve uma
tomada de decisão tão veloz, ainda mais depois da forma que
saiu do nosso jantar há apenas duas noites?”, indagou o grão-
mestre.
“Recebi uma visita de um membro do Comando Ashtar. Se
estiveram me espionando, já devem saber disso.”
“Desta vez juro que não, senhor Christiansen. Procuramos
deixá-lo o mais livre possível para tomar sua decisão.”
“Se é assim, revelo a vocês em primeira mão que cansei de
ficar neutro nessa guerra. O Comando degenerou, não
representa mais Ashtar Sheran, e portanto irei combatê-lo.
Sozinho, no entanto, sei que seria impossível. Por isso me
tornarei um membro da Stella.”
“Pretende nos usar para eliminar seus desafetos, que são seus
antigos companheiros, e, caso Ashtar Sheran retorne, nos
deixará para trás? Parece bem coerente com a sua
personalidade, estranho seria se viesse para o nosso lado sem
nenhuma condição ou interesse.”
“Não vou usar vocês. Vamos combater juntos um inimigo em
comum. Ajudarei vocês a se livrarem da Sapiens, e em troca
vocês me ajudarão com o Comando Ashtar, que é um inimigo
bem mais perigoso para nós dois. Conheço o Comando com as
palmas das minhas mãos, sei como pensam, como agem, e pelo
menos os integrantes mais velhos são todos meus conhecidos,
conheço tanto suas habilidades como suas fraquezas. Assim
como eu, sozinhos vocês não poderiam vencê-los, mesmo
depois de derrotar a Sapiens, algo que poderei agilizar. O
Comando vai voltar a fazer contato comigo, e fingirei ser um
infiltrado entre vocês, para surpreendê-los quando for a hora.”
“E se decidir voltar às origens para fazer realmente um
77
trabalho como infiltrado?”
“Terão que confiar em mim.”
“Parece justo, mas não sei se o admitirei como membro, e sim
como colaborador.”
“Títulos não me interessam.”
“Sendo dessa forma, será nosso colaborador. Mas acredito que
no futuro se tornará efetivamente um membro. Provaremos que
existem iluminados e guerreiros maiores do que Ashtar Sheran.
Quando menos perceber, estará se sentindo em casa conosco.
Se sentirá bem ao nosso lado, ao lado daqueles que prezam a
força...Ashtar Sheran se tornará passado. Talvez ele nem
mesmo volte para o nosso universo.”
“Não sabemos como será o futuro, mas no presente estou com
vocês.”
“Meus parabéns, senhor Christiansen. Tomou uma sábia
decisão. Mas não se esqueça que só obterá privilégios e favores
nossos depois que cumprir com a sua missão.”
“Muito justo. Não vou mais olhar para trás, isso garanto,
senhor Alexander. Parto amanhã para Marte.”
“Que assim seja...”, após desligarem a ligação, o grão-mestre
da Stella fez outra a seguir. Passaram-se algumas horas, e no
jardim da mansão, já era madrugada, foi visto um enorme
felino, uma espécie de tigre, pouco maior, quase inteiro negro,
com poucos traços brancos. Bernard saiu da casa e, sem se
importar com a noite, se aproximou do animal, que estava
quase indiscernível entre as trevas, falando-lhe a seguir:
“Há quanto tempo, Tremal-Naik! Onde está o seu dono?”, o
felino, que era um tigre geneticamente modificado, se
aproximou e lambeu a mão do mordomo, recebendo algumas
carícias. No seu escritório, von Strauffenberg aguardava, com
um olhar insone, as mãos cruzadas sobre sua mesa, a luz
apagada, olhando para a claridade do corredor. De repente, a
grande janela ao lado se escancarou, uma ventania entrando, e
fechou no segundo seguinte.
78
“Meus convidados podem entrar pela porta. É um pouco mais
fácil.”, disse a alguém ainda invisível na escuridão.
“Mas não seria uma entrada digna do Executor dos Inimigos
da Ordem.”
“Nisso tem razão.”, esboçou um sorriso. “E não veio sozinho.
O cheiro de Tremal-Naik entrou junto com o vento.”
“Duas das coisas que admiro no senhor, mestre, são seu olfato
e paladar apurados. Sabe que não viria sem Tremal; não ando
sem ele. Se meus cavaleiros são os dedos de minhas mãos, ele
é a minha sombra. Somos como o sol e o espaço sideral ao
redor.”
“Mas os dedos não vieram.”
“Estou com as mãos nos bolsos, mas minha sombra me segue
do mesmo jeito.”
Ao comando de voz do grão-mestre, a luz se acendeu no
escritório. Um grande pentagrama que apontava para baixo
estava escondido atrás de um quadro de paisagem, o mesmo
símbolo no chão, sob o tapete. O ar começou a tremular à
frente de von Strauffenberg, depois se formou um contorno
humano, este foi sendo preenchido e por fim o Executor ficou
visível: aquele era Andrei Romanovich, o líder dos assassinos
da Stella, que se encarregava pessoalmente apenas dos
inimigos mais poderosos e astutos. Um indivíduo alto e magro,
de cabelos loiros longos lisos, olhos de um predador pronto
para o bote, embora as pupilas castanhas parecessem calmas, a
pele clara, o rosto afilado. Vestia uma calça azul justa, da
mesma cor de sua jaqueta, e uma camisa branca por baixo. Sua
espada, de empunhadura dourada, era longa e afiada.
“Quando vou matar Joshua Christiansen?”
“Calma, ainda é cedo para pensar nisso. Mas parta com seus
cavaleiros e sua sombra para Marte amanhã e, se ele não
cumprir com o que prometeu, ou seja, executar Joanna
Flammarion, faça você o serviço e depois acabe com ele. Se
conseguir, pode matar outros membros da Sapiens, o único que
79
quero vivo é Jerome Yeats: a cabeça dele é minha.”
“Seja como quiser, mestre. E se ele cumprir o que disse?”
“Ajude-o a acabar com outros membros da Sapiens, e tentem
capturar Yeats.”
“A parte de capturar acho que vou preferir deixar para ele.”
“Sei que não vê muita graça nesse tipo de serviço, e que no
seu íntimo torce para que ele nos traia...”
“O senhor me conhece muito bem.”
“Deixo avisado que Yeats não é um homem comum. É difícil
tanto capturá-lo quanto matá-lo. Por isso, se não conseguir,
pode fugir. É um homem valioso demais para morrer, Andrei.”
“Não me subestime, grão-mestre.”
“Não o estou subestimando, você é o melhor assassino que
temos, por isso prezo pela sua vida. Só não posso subestimar
meu maior rival. Num confronto entre vocês dois, qualquer um
pode vencer.”
“Na verdade, dá mais chances a ele.”
“Diria que 60% a 40%.”
“A sinceridade é outra das virtudes que admiro no senhor.”
“Não sou assim com todos, mas sou com quem merece, com
as pessoas nas quais confio.”
“Vou lhe provar que na verdade é o contrário do que o senhor
pensa.”
“Adoraria que me provasse isso.”, Romanovich desapareceu
tão repentinamente quanto aparecera e, no jardim, Tremal-Naik
se foi ao mesmo tempo, deixando mais uma vez a sós, sob um
silêncio tétrico, os senhores daquela mansão. Alexander von
Strauffenberg voltou a ficar no escuro.

CAPÍTULO 4 – Rebelião

Um tomate esburacado e repleto de pequenos cortes. Uma


cabeça sangrenta. A criatura, com olhos de fundo amarelo e
80
pupilas de carvão incandescente, olhava com fome. Não temia
a morte, pois se tratava de um predador. Até quando seria
assim?- Ambição, de Pelos olhos da Alma.

Voltar a Arash fisicamente, não só em sonho, produzia em


Joshua uma forte sensação de incompletude, pois fora ali que
depois de um bom tempo se sentira caído entre os destroços de
uma solidão absoluta, sem aqueles que haviam lhe fornecido
por anos o alento do amor. Conquanto tivesse sido um período
breve o de seu casamento, considerando-se sua longa vida,
dera-se conta após a perda que fora um período feliz, mesmo
nos desentendimentos. Brigas bobas as que ocorriam, se
considerados os verdadeiros problemas da existência, em
especial da sua existência, envolvido em tramas que iam muito
além do que a maior parte dos seres humanos vivencia.
Hospedou-se em outro hotel, não no mesmo em que ficara na
primeira vez, e encontrou o número do comunicador de Joanna
na lista da cidade. Chamou algumas vezes, sem sucesso, até
que numa noite de clima ameno ela finalmente atendeu. A
moça ficou muda por algum tempo, evidenciando sua surpresa,
quando ele se apresentou. Ao voltar a falar, teve dificuldades
para recuperar a segurança que costumava demonstrar,
gaguejando um pouco nas primeiras palavras:
“Ah, senhor Christiansen...Quer dizer que está em Arash outra
vez. Mas o que deseja falar comigo?”
“Não é algo que se possa falar por aqui. É urgente. Venha até
o hotel onde estou hospedado.”, e passou-lhe o endereço.
“Certo. Já anotei. Mas não pode me antecipar do que se
trata?”
“Infelizmente não.”, e pelo tom dele, a agente logo cogitou
que talvez seus confrades estivessem mesmo certos; Joshua
poderia ser algo mais do que aparentava, como ela já cogitara,
e provavelmente o estavam perseguindo.
“Senhor, não pode me adiantar nada? Se por acaso a Stella
81
voltou a persegui-lo, poderia pedir proteção a outros
policiais...”
“Não posso falar agora. E tenho que falar com VOCÊ.”
“Está bem.”
“E por favor, não me chame mais de senhor Christiansen.
Pode me chamar de Joshua.”
“Está certo. Já estou indo.”
“Até daqui a pouco.”, ele desligou e Joanna, que acabara de
tomar banho, ainda com os cabelos molhados, e tinha planos de
descansar um pouco e ler antes de dormir, foi secá-los e se
trocar. Por sinal, o livro que ia começar a ler era uma das obras
de Joshua Christiansen...Desde a partida, o escritor não saíra de
sua mente, atormentando-a um bocado. Riu de leve ao olhar
para a capa do livro, pensando nas coincidências, antes de
entrar no banheiro.
Enquanto a esperava, ele estava nitidamente tenso, sem parar
de olhar para o relógio. Chegou a ligar algumas vezes a
televisão, mas como nenhum programa o entretinha, passando
rapidamente pelos canais, desligava-a. Não estava com cabeça
para ler ou escrever. Os minutos pareciam horas e, quando por
volta da meia-noite ela foi anunciada, um peso tremendo saiu
de suas costas, a angústia deu a impressão de ter chegado ao
fim. Correu para a porta, abrindo-a antes dela aparecer. Do
modo como se achava, seria capaz de matá-la? Estava ao lado
do Comando ou se tornaria um aliado da Stella? Se vingaria
dos deturpadores dos ensinamentos de Ashtar Sheran, que
ainda ousavam empregar seu nome, usando os terroristas para
derrotá-los, ou se infiltraria na sinistra organização para ajudar
os antigos companheiros? Para realizar qualquer uma das
escolhas, teria que de qualquer forma cometer um assassinato,
e de uma pessoa pela qual acabara se afeiçoando.
Quando Joanna apareceu, com uma espécie de tailleur e uma
bolsa pretos, Joshua ficou paralisado num primeiro momento, e
ela também; não sabiam que palavras trocar, até que ele enfim
82
falou:
“Entre Joanna, pode entrar.”
“O senhor...Quero dizer, você...Está diferente hoje.”
“Acho que é o medo...”, sorriu com um sarcasmo trêmulo.
“Medo? A Stella o ameaçou, é isso o que aconteceu, não é?”
“Na verdade, não é só isso.”, enrubesceu, a moça também, e
entrou parecendo um pouco apressada. O escritor fechou a
porta. “Sente-se, nossa conversa vai ser longa.”
“Deixe-me adivinhar. Você vai ficar de pé como da outra
vez.”
“Apesar de não termos nos visto muito, parece que já me
conhece um pouco. Quando estou nervoso, não consigo ficar
sentado. Só que o nervosismo de hoje é bem diferente.”
“Isso estou percebendo. Sou observadora. Faz parte do meu
trabalho.”
“Como agente do governo de Arash ou como maga?”
“Maga?? O que o senhor está dizendo??”, surpreendeu-se.
“Senhor não, você.”
“Que seja.”
“Já sei que é uma integrante da sociedade secreta Sapiens
Donabitur Astris.”, e, antes que ela dissesse mais alguma coisa,
adiantou: “Estive em um jantar com Alexander von
Strauffenberg, o grão-mestre da Stella Matutina, e ele me
revelou isso.”
“Não acredito...Com o grão-mestre da Stella??”
“Sim, estive com ele. E ele me fez uma proposta.”
“E o que seria?”, tentou conter a surpresa e o medo. Para ela
também ficou difícil permanecer sentada. Um calafrio
percorreu sua espinha, e chegou a pensar, assustada, se Joshua
não podia ser na verdade um terrível inimigo, que até então
dissimulara sua identidade e sua essência para se aproximar da
Sapiens e atacá-la.
“Matar você para ser admitido dentro da organização.”, ao
ouvir aquelas palavras, a agente ficou pálida e estática. Nunca
83
se sentira tão assustada e vulnerável. Estava tão indefesa que se
ele quisesse matá-la naquele momento teria conseguido com
suma facilidade. Joanna não teria se defendido, mesmo com
todos os seus conhecimentos e uma arma na bolsa. “Mas é
claro que eu nunca faria uma coisa dessas.”, despejou com uma
seriedade e uma firmeza que não costumam ser vistas em seres
humanos.
“Mas...Por quê...Por que querem que você me mate?”, assim
que ele complementou, uma brisa aquecida de tranqüilidade a
percorreu e pôde movimentar os dedos das mãos, que tinham
ficado como que congelados, outra vez; no entanto, ainda não
estava em paz, o raciocínio terrivelmente confuso, sua mente
atordoada, as emoções borbulhando. Fora apenas uma brisa...
“Para que eu prove que estou mesmo com eles. Caso
contrário, como poderiam confiar em alguém que já foi
membro do Comando Ashtar, e que acabou com os illuminati?”
“Então você é...”
“Fui Samael Gibor, e antes disso Domingos Xavier. Fique
calma, Joanna, não vou lhe fazer nenhum mal. Vou é lhe contar
a história da minha vida.”, a agente se limitou a menear a
cabeça de cima para baixo em concordância, e ele deu início à
sua exposição. As palavras e explicações de Joshua foram aos
poucos acalmando-a, permitindo que sua mente se pacificasse,
e voltou a fazer perguntas e observações. O ex-membro do
Comando Ashtar procurou ser paciente, compreensivo e
atencioso, deixando ao fim de sua narrativa bem claras suas
intenções: “Não vou me infiltrar na Stella para fazer o jogo do
Comando, nem me aliar a terroristas para expulsar da Terra e
de Marte patrulheiros espaciais que um dia foram meus
companheiros, e que hoje confundem imposição e justiça,
violência e firmeza. Não quero me vingar de ninguém. Só que
da forma como tanto um como o outro grupo agem, me vejo
forçado a decretar uma rebelião absoluta, vou ter que me
preparar para uma guerra contra ambos.”
84
“A Stella eu compreendo, eles não irão tolerar o fato de você
não ter cumprido com o que prometeu. Mas o Comando Ashtar
persegui-lo? Acredito que irão ficar neutros, apenas não vão
protegê-lo.”
“Não é bem assim. Eu sei demais. E vou acabar me tornando
um incômodo. Sem Ashtar Sheran, alguns membros acham que
a ação deles não deve ter limites, que o poder que possuem é
um presente de Deus, por isso podendo esmagar as formigas
para implantar o paraíso na Terra. Claro que um paraíso de
acordo com as concepções deles, não algo que seja da vontade
do Criador. Orifiel também me pediu para matar você, pois
seria a única forma de me infiltrar na Stella. Os meios para eles
não importam mais. E como sabem que me oponho a isso, que
não concordo com a violência e os métodos sujos, vão querer
me destruir.”
“Mas não é possível que todo o Comando Ashtar tenha
degenerado.”
“Claro que ainda há alguns que pensam como eu, ou a Terra já
teria recebido seu Juízo Final. Mas são hoje uma minoria entre
os que permanecem neste sistema solar, e haverá um momento
em que terão que ceder de vez, ou partir, ou serão esmagados.
O Comando Ashtar está espalhado pelo universo inteiro, em
inúmeras galáxias, é o maior exército que conheço, mas
infelizmente os que estão no nosso sistema, a maioria pelo
menos, involuiu, não soube arcar com o poder, que na verdade
é responsabilidade. Ashtar, na minha opinião, quis testá-los, ver
até onde poderiam ir sozinhos, e serão reprovados quando ele
voltar. Eu optei por uma vida comum, enquanto outros que
pensavam como eu se mudaram para outros mundos.”
“E você seria o primeiro na lista dos que devem ser
convertidos, ou eliminados.”
“Talvez me destruam de outra forma, não fisicamente, mas me
capturando e me exilando. De todo modo, não querem que
interfira nos planos deles. Enquanto estava neutro, sem agir,
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levando uma vida de cidadão normal, não atrapalhava. Mas
batendo de frente com os métodos deles, vou começar a
atrapalhar.”
“Vou falar com o meu pai. Acho que devemos ir à sede da
Sapiens. Lá estará protegido e juntos vamos elaborar uma
estratégia.”, no entanto, quando a agente pegou o comunicador,
Joshua segurou seu braço.
“Comunicador não. Nunca se sabe, podem estar captando
nossas ligações.”
“Tem razão. Como policial eu deveria saber disso melhor do
que ninguém, é que confesso que tudo isso me chacoalhou.”
“É natural, Joanna. Mas temos que ter sangue frio. A essa
hora, se algum deles está me espionando e viu você entrando
aqui, devem achar que já está morta.”
“Meu Deus, como isso é terrível...”
“Nanocâmeras podem estar aqui, do tamanho de uma pulga, e
nossa conversa, se é assim, deve ter sido ouvida inteira.”
“Vamos logo então. Vou levar você para a sede da Sapiens.”
“Vamos.”, e, enquanto desciam no elevador, ele disse: “Quero
você bem viva, para que possamos enfrentar toda essa situação
juntos.”
“É o que também desejo.”, a agente respondeu, um pouco
surpresa e mais tímida do que de costume.
Deixaram com rapidez o saguão do hotel e saíram, indo ao
estacionamento onde Joanna deixara seu carro. Partiram e, no
caminho, Joshua se desculpou:
“Peço perdão por ter mentido pra você antes. É que não via
outra alternativa.”
“Entendo perfeitamente. No seu lugar, teria feito a mesma
coisa. Também não lhe revelei que fazia parte da Sapiens.
Temos que ser prudentes nos dias de hoje.”
“Se você tivesse vivido outras épocas, saberia que sempre foi
assim.”
Joanna, que estava guiando, levou um susto quando alguma
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coisa pulou sobre o veículo, perdendo o controle e quase
batendo contra um poste antes de parar. Sorte que era
madrugada e a rua estava deserta. Todavia não era nem um
pouco comum dar de cara com uma espécie de tigre negro no
meio da cidade.
“Mas o que é esse bicho??”
“Parece que eles não tiveram paciência pra esperar.”
“Espera!”, porém Joshua não atendeu o apelo, saiu do carro, e
o felino pretendeu saltar sobre seu corpo. Esquivou-se, para na
seqüência, enquanto esticava o braço e abria a palma da mão na
direção do animal, se concentrar e fazer a fera se acalmar aos
poucos.
“Não quero fazer mal a você, garoto. Só não simpatizo com
os que acho que são seus donos...”, se viu forçado a fechar a
mão, e nessa hora Tremal-Naik perdeu a consciência, quando
alguém tentou atacá-lo pelas costas com uma espada. Seguiu-se
uma seqüência de golpes e esquivas em uma velocidade sobre-
humana: era Andrei Romanovich, ao passo que Joanna se viu
em seu veículo cercada por quatro indivíduos de preto, os
ternos e os óculos escuros. Respirou fundo, uma sutil
luminescência azul envolveu seu corpo, e saiu do carro com
uma calma estranha considerando-se a situação. As balas
disparadas pelos revólveres dos homens perdiam velocidade e
caíam no chão antes de atingi-la.
“Pelo visto vamos ter que recorrer a outros métodos. É meio
deselegante bater numa mulher, mas essa pediu...”, largaram no
chão as armas de fogo e começaram a atacar com golpes
corporais. Porém seus braços e suas pernas foram bloqueados
pelo que parecia ser uma poderosa telecinese, dois dos
indivíduos atirados longe na seqüência, contra a parede de um
edifício, e perdendo a consciência.
Ocupado com sua luta, Joshua não podia se distrair para
observar Joanna, mas ficou admirado com as capacidades dela
ao testemunhar de relance à distância suas habilidades. Refletiu
87
que podia se focar no seu adversário com mais tranqüilidade,
que não precisava se preocupar tanto com ela, que como
amazona da Sapiens devia saber se defender bem. Entretanto,
Andrei não era um adversário qualquer, e por isso os mínimos
momentos de distração de Joshua foram o bastante para receber
alguns cortes nos braços e até próximos do pescoço.
“Acho que não tenho outra escolha. Não é um adversário que
possa vencer pelo cansaço, ou apenas com poderes mentais.”,
de fato, tentara com sua capacidade paranormal entortar a
lâmina do oponente ou afetar seu cérebro, porém este, além da
agilidade corporal e das habilidades de esgrima, possuía uma
força psíquica considerável, discernível aos olhos do
clarividente como uma aura vermelha em volta de seu corpo,
que repelia as ondas advindas da mente de Joshua.
Um golpe rápido e a mão esquerda do escritor voou para
longe; no entanto, desta vez contra-atacou, ignorando a dor e o
sangue e enfim acertando um golpe, um forte soco, no peito do
Executor da Stella, que foi atirado a uma certa distância.
“Liberação de Poder, Primeiro Nível.”, deu a ordem mental às
nanomáquinas de seu corpo e ao seu redor começou a ser
emitida uma intensa pressão, que afundo o chão debaixo de
seus pés e impedia que o inimigo se aproximasse. A espada de
Andrei se partiu quando o assassino se aproximou, e um peso
principiou a oprimir suas costas, obrigando-o a recuar. Tremal-
Naik despertou, enquanto Joshua sentia a base de sua coluna
bater feito um coração, uma nova mão surgiu no lugar da
cortada, primeiro as veias e ossos, em seguida a carne e a pele,
e uma armadura metálica marrom reluzente revestiu seu corpo
em uma impressionante velocidade. Adensara-se a partir das
mais ínfimas partículas de matéria no ar, acumulando-as e
transmutando-as na mais sólida das proteções. O rosto ainda
estava visível, apesar dos óculos terem caído e quebrado e da
cabeça envolvida por um capacete compacto.
“Agora sim vejo diante de mim um dos guerreiros de Ashtar
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Sheran. Antes não passava de uma figura ridícula, que se
esforçava para permanecer dentro dos estreitos limites
humanos.”, pela primeira vez Romanovich dirigiu a palavra a
Joshua. “Veja, Tremal, que maravilha.”, e o felino rosnou.
“Mas é melhor que agora você se vá, o nível é alto demais para
uma sombra...”, levantou a cabeça e de sua própria garganta
retirou uma nova espada, inteira prateada, enquanto o obscuro
tigre se afastava. “Vamos continuar.”
“Você também tem nanomáquinas em seu corpo.”
“Já tinha habilidades paranormais antes de inseri-las. Mas
depois que as coloquei, minhas capacidades se amplificaram, e
me tornei um mestre das lâminas.”
“Não poderá perfurar esta couraça.”
“Isso veremos.”, teve início assim o confronto das lâminas
contra a armadura de Joshua. Após alguns golpes, a espada
prateada se quebrou, só que Andrei podia retirar outras da
palma de sua mão ou formá-las a partir de seus dedos, que logo
se recompunham. Joshua contra-atacava com socos e chutes,
evitando atingir paredes, mas em alguns casos não conseguindo
e derrubando-as. O estrondo da luta foi despertando as pessoas
nos edifícios e casas ao redor, que apavoradas começaram a
ligar para a polícia.
“Vamos chamar a atenção, isso não é nada bom.”, refletiu,
Romanovich passando a atacá-lo com duas espadas ao mesmo
tempo, estas parecendo mais resistentes do que as anteriores,
arranhando levemente sua armadura. Por instantes curtos, o
assassino às vezes ficava invisível e tentava atingir seu rosto,
Joshua sentindo a energia que o adversário irradiava e
conseguindo se esquivar a tempo.
A situação ainda iria piorar. Joanna vencera quase todos os
homens de preto, inclusive um segundo grupo que chegara
depois dos que haviam cercado seu carro, restando
aparentemente apenas um, que resistia aos seus poderes
mentais; no entanto, outro, entre os que pareciam derrotados,
89
de cavanhaque, pele clara e cabelos espetados, se reergueu,
tirou o paletó e a camisa e, sorrindo, começou a passar um
creme rosado que tirou de um dos bolsos da calça nos braços,
tronco e rosto, jogando longe os óculos escuros. A substância
devia ter alguma função importante e, no instante em que
começou a se reaproximar da agente, após largar o tubo que
continha a estranha pomada, seu corpo foi ficando vermelho,
seus músculos cresceram, suas pupilas dilatadas se tornaram
como brasas incandescentes e seu rosto começou a mudar:
passou a mostrar discretas escamas, os dentes cresceram e
ficaram afiados, protuberâncias nasceram em sua testa e seu
nariz aumentou. A maga da Sapiens enfim vencera o que fora
até então o mais resistente dos inimigos de ternos negros e se
espantou quando viu aquela criatura.
“Estão vindo xeretar, mas vou dar um jeito nisso. Vou dar um
jeito nesses enxeridos!”, disse o indivíduo de voz rouca, e ela
bem que tentou segurá-lo, mas sua força mental era muito
maior do que a dos outros e nem se comparava com a que
demonstrara antes de revelar sua verdadeira forma, resistindo à
sua investida telecinética e, após formar uma bola de fogo em
sua mão direita, espalhou uma seqüência violenta de explosões
que destruiu os carros de polícia que se aproximavam e deu
início a incêndios nos prédios próximos.
“Desgraçado!”, ela exclamou, e só não morrera carbonizada
como os policiais porque formara um campo de força que era
como um globo transparente ao seu redor, que desviava as
chamas. Joshua, ao sentir aquela energia e testemunhar o
desastre, ficou preocupado com Joanna, mas Andrei tratou de
segurá-lo, inclusive usando Tremal-Naik, contra o qual o ex-
membro do Comando Ashtar nunca utilizava toda a força que
poderia. Dissera ao felino para ir embora e este aparentemente
se afastara, porém fora uma tática para enganar Joshua,
chamando de volta o animal quando era necessário. O nível da
luta podia ser alto demais para uma sombra, mas esta
90
executava breves ataques, como se fosse encobrir a visão do
oponente, auxiliando o dono nos momentos mais perigosos, e
este também a envolvera com sua aura para impedir que Joshua
a pusesse para dormir.
“Sou o Cavaleiro das chamas da Stella, alguns me dão o título
extra-oficial de cavaleiro Kundalini, ou então cavaleiro
Salamandra. Prefiro o primeiro, afinal a Kundalini é uma
poderosa energia considerada como uma deusa por vocês
terráqueos, sob diferentes formas, e é o que sou para os
humanos: um deus. Bem que poderia ocupar um posto mais
alto na Ordem, mas não gosto de liderar de longe como
Alexander e a maioria dos meus irmãos. Prefiro a ação, que me
permite matar humanos e saborear sua carne bem queimada,
bem passada como vocês diriam! Num passado distante, fui
considerado como um deus da guerra neste planeta, e é assim
que vocês devem me ver, a não ser os supra-humanos, que são
aqueles terráqueos que buscam transcender sua própria
condição a fim de se igualarem a nós, como é o caso de Andrei
e Alexander. Estes eu respeito. Mas piores do que vocês,
humanos conformados, são aqueles entre nós que se
acovardaram, que se diminuíram e se misturaram à sua
civilização. Estes são vermes desprezíveis que não servem
sequer como alimento!”, o fogo incendiava a parte superior do
corpo do adversário (a que recebera a pomada), sem lhe causar
nenhum dano, e se espalhava para os lados sem cessar. O
campo de proteção de Joanna ia se enfraquecendo. Mesmo que
fosse se cansar e desgastar sua mente e seu cérebro, precisava
intensificar seus poderes para além do que estava habituada se
quisesse vencer aquele reptiliano. Curiosos se aproximaram,
gente em pânico descia dos apartamentos que estavam pegando
fogo, e o inimigo fez uma careta de prazer, como que pronto
para matar todas aquelas pessoas. “Estou com muita fome...”
“Você não vai mais fazer vítimas inocentes.”
“Não? E quem vai me impedir?”
91
“Saim de perto! Corram para longe!”, Joanna gritou e mesmo
assim alguns curiosos permaneceram no local, um garoto
chegou perguntando se estavam rodando algum filme, e por
isso a maga se viu obrigada a fragmentar seu campo de força,
envolvendo cada indivíduo, alguns que se sentiram mal com
aquela interferência magnética súbita, com uma parte deste.
Kundalini começou a formar bolas e rodas de fogo, algumas
muito grandes, do tamanho de uma pessoa, e ficou cada vez
mais difícil manter as defesas, já que não tinha mais que
proteger apenas a si mesma e conseguia desviar bem as
labaredas, porém era difícil fazer o mesmo com os destroços
incandescentes das explosões, sem contar a fumaça.
“Acho que mudei de idéia! Vou deixar a carne tostada para
depois, pegando outros bois do rebanho dessa cidade. Vou
consumir...Consumir tudo! Até que só restem sombras e
cinzas!”, percebendo que a coisa era séria, a maioria enfim
principiou a fugir, e Joanna tentou atacar com decisão ao
mesmo tempo que se defendia e defendia os civis, dirigindo
sua telecinese de forma agressiva contra os órgãos internos do
oponente. Só que um tremendo esforço de corpo e alma era
exigido para se penetrar psiquicamente naquele corpo, muito
duro e resistente não apenas do ponto de vista físico: tratava-se
de uma mente poderosa, que dificultava o acesso da
paranormal principalmente ao cérebro, aos pulmões e ao
coração, envolvidos por campos de proteção semelhantes ao
seu. A vantagem do reptiliano estava em não precisar se
preocupar com mais ninguém. Ela ainda chegou a entrar em
seu ventre e começou a ferir seu sistema digestivo, rasgando
algumas partes do estômago e do intestino, mas nessa hora
perdeu a atenção de alguns dos pedestres e foi a chance que o
Cavaleiro Salamandra esperara: lançou uma esfera flamígera
contra um jovem magricelo de cabelos tingidos de loiro, que ao
ser atingido ainda conseguiu gritar: “Não consigo respirar!”,
antes de explodir em pedaços chamuscados. Bastara se
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desleixar por um instante dos inocentes para um deles ser
reduzido a carne e ossos queimados. O senso de culpa fez com
que perdesse de vez o foco e, além de seu ataque parar, os
escudos psíquicos ainda existentes se enfraqueceram demais,
Kundalini disparando dezenas de bolas de fogo ao mesmo
tempo e incinerando a maioria dos que eram atingidos,
provocando queimaduras severas em outros. Diante daquela
cena, a agente arregalou os olhos e refletiu rapidamente que ou
se recompunha ou todos ali iriam morrer, inclusive ela.
Intensificou sua força psíquica ao máximo, muito mais do que
o que estava habituada, deixando de lado os avisos do pai, que
a advertira uma vez que forçar em demasia os poderes
paranormais, para muito além do que fora treinado e da carga
de energia espiritual de costume, poderia danificar
permanentemente o cérebro; mas não havia outra escolha,
aquele era um inimigo que nunca seria vencido com pouco
esforço, e não queria nem sucumbir nem ver mais mortes
naquela madrugada. Seu nariz sangrou e, notando o súbito
incremento da energia da moça, o reptiliano lançou em sua
direção uma onda de chamas, apagada por ela para o espanto
do Cavaleiro da Stella. Joanna começou a avançar em sua
direção, a passos calmos, mantendo o mais absoluto controle, e
todo o fogo que ele gerava agora se extinguia rapidamente ou,
quando demorava um pouco mais, se dispersava sem muita
força e logo desaparecia. Alguns indivíduos que insistiam em
permanecer relativamente próximos ensaiaram uma
comemoração, ainda mais porque os incêndios nos
apartamentos estavam cessando, e Kundalini recuou, mas não
muito, porque seus pés estavam pesados e algo o impedia de se
distanciar. Abruptamente, as veias dos seus pés arrebentaram,
assim como sua barriga se abria. Junto com o sangue, saíram os
piores gritos. Porém ele ainda iria tentar reagir, anunciando
com toda a fúria: “Consigo tornar até o meu sangue
inflamável!”, e de fato, labaredas azuis, de intenso calor,
93
diferentes das rubras que manipulara até então, se formaram a
partir do seu sangue.
“Não adianta!”, desta vez foi ela quem berrou, as chamas
sendo devolvidas para o seu criador, que não pareceu se alterar
com isso, e ainda disse:
“Tornei minha pele imune a fogo. O que não adianta é você
jogar ele de volta pra mim!”, e riu, tentando recuperar a
confiança, mesmo com o ventre aberto. Fora apenas uma
maneira de Joanna distraí-lo: quando o reptiliano menos
esperava, quebrou as barreiras psíquicas que protegiam seus
principais órgãos; levou uma mão ao pescoço e outra ao peito
do inimigo que acabara de paralisar; seu nariz sangrou ainda
mais, ao passo que finalizava a luta, explodindo o cérebro e o
coração anteriormente inacessíveis. Kundalini despencou sem
vida e seu corpo perdeu o rubor, ficando uma coloração
esverdeada em suas escamas, que devia ser a verdadeira.
Exausta, não teria forças para ajudar Joshua, que se distanciara
um pouco do local junto com Tremal-Naik e Andrei. Num
determinado momento, o ex-integrante do Comando Ashtar
decidiu deixar de lado a consideração pelo animal e o colocou
fora de combate com um golpe mais violento. Isso porque o
confronto contra o Executor se tornara muito complicado, pois
este passara a usar uma espada que utilizava gases ionizados
para criar uma lâmina de plasma de alta temperatura e alta
densidade, capaz de cortar praticamente tudo. Mesmo a
armadura de Joshua não resistia mais, e Romanovich começava
a ter certeza de sua vitória, conquanto não fosse de explicitar
isso por meio de palavras ou sorrisos, mantendo a postura
compenetrada, séria e de respeito ao rival que mais o fizera
suar até aquela noite. “Liberação de Poder, Segundo Nível.”,
como a proteção não teria resistido por muito mais tempo,
lançou mão do segundo estágio de sua força, o que surpreendeu
o assassino, que acreditara já ter visto todo o poder do
adversário. Uma aura branca e gelada, que cresceu e se
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expandiu a partir do umbigo de Joshua, imobilizou Andrei,
num segundo momento tomando a aparência de uma moldura
luminosa circular, que continha dentro de si gelo e água em
movimento. Os olhos de Joshua ficaram brancos sem pupilas,
tudo no entorno esfriou, e uma armadura azul-cristalina o
revestiu depois que a outra se quebrou e seus frangalhos foram
transformados; os cabelos também embranqueceram e
aumentaram de comprimento, seus lábios e sua pele
empalidecendo; um tridente que parecia feito de gelo, contendo
água em seu interior, se materializou em sua mão direita.
Joanna, aproximando-se, testemunhou espantada a
transformação. E, a lâmina de plasma do Executor se
extinguindo, o assassino até admitiu para si mesmo, em seus
últimos instantes, que era uma honra terminar seus dias nas
mãos de alguém como aquele indivíduo. Abriu os braços e
recebeu de peito aberto os ventos finais, dirigidos pelo tridente,
que o transformaram em uma estátua de gelo que segundos
depois se desintegrou. Uma explosão de luz branca se seguiu e
quando a claridade ofuscante se foi Joanna reuniu as forças que
lhe restavam, correu para perto do amigo, que retornara à
aparência costumeira, sem arma ou armadura, e se atirou em
seu peito para abraçá-lo.
“Não pude ver muito. Mas pelo que vi, você é fantástica.”,
Joshua comentou com a agente. Parecia um pouco cansado,
mas muito aquém do esperado para alguém que enfrentara uma
batalha como aquela. Devia ter mesmo uma resistência sobre-
humana, a moça refletiu. Procuraram ignorar as pessoas nos
arredores, que se aproximavam com curiosidade, mas também
com um considerável receio.
“Deles não temos porque ter medo.”, manifestou-se um rapaz.
“Essa moça é uma paranormal, e apagou os incêndios. Não
fosse por ela, teríamos virado churrasco.”
“Mas o que será que são?”
“Não parecem ser da polícia.”
95
“Agora descanse, você precisa.”, Joshua continuou a falar
com ela, acariciando seus cabelos com suavidade. “Pode deixar
que levo o carro daqui pra frente. Precisamos ir logo, antes que
chegue mais gente.”
“Tem razão. Mas você também deve estar exausto.”, Joanna
demorou a replicar.
“Bem menos do que você, garanto.”
“Agora entendo porque senti medo quando você disse que sua
missão pra ser aceito na Stella era me matar. Estava sentindo
muito mais do que meras palavras.”
“Sou tão do mal assim?”
“Não! Só que nunca vi uma energia tão forte quanto a sua.”
“Vamos deixar isso pra lá. Entre no carro, Joanna. Ou daqui a
pouco vão querer nos entrevistar...”, voltaram para o veículo,
evitando olhar para as pessoas. Na hora que ele deu a partida,
uma mulher aplaudiu, logo seguida pelos vizinhos. Não sabiam
quem eles eram, porém sem dúvida tinham salvo as suas vidas.
Alguns ainda choravam a perda de entes queridos; outros iam
levar parentes e amigos ao hospital para tratar de queimaduras
e demais ferimentos.
Os dois deixaram o lugar pouco antes de novos carros da
polícia chegarem.
Contudo, um dos homens vencidos por Joanna, que ainda
estava bem vivo, despertando e livrando-se do atordoamento a
tempo, conseguiu escapar. Para onde iria? Certamente não
deixaria seus irmãos maiores e mestres desinformados.

CAPÍTULO 5 – Amigos e Inimigos

No pesadelo de ontem, um cão feroz me perseguiu; no sonho


de hoje, o mesmo animal recebeu os meus afagos: poderia ser
o contrário.
Meu sonho sempre foi voar. Porém o falcão que conheci
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voava para caçar e matar.
Tinha medo do veneno da flor vermelha. Mas uma pequena
dose da mesma substância foi a base para o remédio que
amenizou as minhas dores.
Parece que ouvi o anjo dizer adeus.- Pânico, do livro Pelos
olhos da Alma.

Antes de entrar na sede da Sapiens, Joanna avisou seu pai a


respeito da presença de Joshua. “O que houve, filha? Você
parece exausta. A sua voz é de quem acabou de correr uma
maratona. Pode me contar o que aconteceu?”, Emmanuel
indagou, do outro lado da ligação. “Quase isso, papai. Acho
que só um pouco pior.”, e, após lhe explicar o motivo da vinda
de Joshua e revelar a verdadeira identidade do escritor,
resumiu-lhe o confronto contra os assassinos da Stella. “Pela
descrição, tiveram que enfrentar o Executor e seus cavaleiros.
Graças a Deus que conseguiram se e nos livrar deles.”, a agente
então pediu para desligar, falariam mais a respeito
pessoalmente, pois a dor de cabeça que já estava sentindo se
intensificara. “Essa sua enxaqueca está quase chegando em
mim.”, Joshua um pouco brincou e em parte falou duro. “Não
tive opção hoje, precisei abusar além do que faço de costume.”;
“Você precisa dormir um pouco.”; “Acho que não vamos ter
muito tempo pra isso hoje.”
Na mansão, foram recebidos por Emmanuel, Margareth,
Jerome e dois reptilianos: o macho, de nome Tyllia, era verde e
de cabeça redonda e escamas lisas, olhos nas laterais, narinas
estreitas e pequenos orifícios auriculares, magro, mãos de
quatro dedos, menos de um e setenta de altura, trajado com
uma túnica branca de retoques dourados, gentil e pacato,
completamente diferente de um indivíduo como Kundalini;
Freno era uma fêmea, de orelhas compridas, com brincos
discretos, cabeça com alguns calombos, envolvida por uma
crista, escamas azuis e rugosas, lábios grossos e pálidos, mais
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alta do que seu semelhante, que pertencia a outra raça, em um
traje longo rosa e celeste.
“Seja bem-vindo, Joshua. É uma honra receber entre nós um
membro do Comando Ashtar.”, Jerome cumprimentou com um
aperto de mão firme o vistante.
“Não pertenço mais ao Comando.”
“Na verdade sim, á essência do ensinamento e do espírito de
Ashtar Sheran. Esse é o verdadeiro Comando Ashtar, não os
que usam seu nome para realizar seus próprios interesses.
Estou errado?”
“Não sei se está certo, mas não está errado.”
“Que bom que tem senso de humor.”
“Na verdade, a honra é toda minha, senhor Yeats.”
“Vamos deixar de lado as formalidades.”, sentaram-se, e
Emmanuel demonstrava preocupação com a filha, que
evidenciava um grande cansaço e fraqueza, sua pele esquálida
e seus olhos ardendo.
“Não se preocupe, caro irmão. Vou cuidar de minha querida
sobrinha!”, assim Freno a chamava, sob o sorriso de Tyllia,
deitando-a num dos sofás e carinhosamente irradiando sua
energia de cura para o espírito e o corpo de Joanna. A
enxaqueca foi passando e a vitalidade retornando. “Agora estou
bem melhor. Muito obrigada, Deus lhe retribua sempre em
dobro, minha amiga. Agora sim acho que posso correr uma
maratona.”, agradeceu e olhou para o pai. “Calma, ainda falta.
O impacto do abuso dos poderes foi mais grave do que você
pensa. Se não fizéssemos um tratamento imediato, percebi que
um aneurisma cerebral poderia se manifestar em breve. Agora
está fora de risco, só que precisa relaxar e dormir bem hoje.”;
“Você e o Joshua só me falam pra dormir. Acho que não
gostam de mim e adorariam me dar uns sedativos. Só o papai
me entende.”; “Também quero que você durma bem e sonhe
com os anjos.”, Emmanuel replicou, entrando no tom da
brincadeira. “Até você, papai?”; “Não sou Brutus, afinal sou o
98
pai!”
Após alguns risos, teve início a exposição de Joshua, Joanna e
Freno também ouvindo com atenção ao mesmo tempo que uma
era tratada e a outra tratava:
“A finalidade do Comando Ashtar é, respeitando o livre-
arbítrio e a lei da ação e reação, trazer paz, amor e justiça a
diferentes povos do universo. Seus membros são milhões, com
um grupo para cada sistema solar, supervisionados pelo
Comandante Ashtar até por volta de trezentos anos atrás,
quando parece que ele resolveu testar seus soldados e
discípulos, deixando-os com autonomia para agir. Isso é no que
acredito, além da versão que diz que ele foi desenvolver um
outro trabalho num universo distante. Ainda que esteja ocupado
com outra missão, não duvido disso, se quisesse certamente
voltaria a interferir, pois possui um grau de consciência e
presença bem superior ao nosso. Infelizmente, o grupo
responsável pelo nosso sistema solar, que um dia venceu os
illuminati e que por milênios impediu que alienígenas hostis
invadissem a Terra, havendo apenas um ou outro que às vezes
conseguia burlar esse controle, fazendo experiências com
alguns humanos, está indo mal na prova. Degenerou num
militarismo que não pretende respeitar o livre-arbítrio das
pessoas.”
“Se seguir dessa forma, será catastrófico para todos nós.
Talvez acabem se tornando mais perigosos do que os
extraterrestres hostis.”, observou Tyllia.
“Fico imaginando como deve ser um exército com vários
soldados do nível do Joshua. É de apavorar.”, comentou
Joanna.
“Pode ficar relativamente tranqüila, os níveis entre nós variam
bastante e, não é por me gabar, mas a verdade é que poucos no
Comando têm condições de me enfrentar num combate
individual. O maior perigo está num ataque conjunto. E a
grande vantagem deles é que desprezam os limites da ética.
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Não chegam nem chegarão a agir de forma traiçoeira como a
Stella, mas se precisarem destruir uma cidade ou um país
inteiro pra me derrubar, vão fazer isso.”
“Será mesmo que a Stella é pior do que os seus antigos
companheiros?”, inquiriu Margareth.
“A Stella usa o terror. Já o Comando é um exército, o que o
rende mais previsível.”, a conversa prosseguiu, passando-se a
explicações de Joshua sobre a natureza de seus poderes: “As
nanomáquinas implantadas em mim e em alguns outros
membros, na verdade nos membros de elite do Comando,
permitem a manifestação de uma força que poderia ser
alcançada com treinamento, mas isso levaria séculos ou até
milênios. Por outro lado, o corpo físico e os corpos espirituais
não tendo a carga de treino compatível, nos níveis mais altos
estes podem ser danificados com gravidade ou até destruídos
caso se force tanto poder por um tempo longo. É como o que
aconteceu com a Joanna, só que num grau mais perigoso. Por
isso, dos sete estágios da minha força, só uso o sexto e o sétimo
em casos extremos. O último principalmente, apesar de me
deixar numa condição próxima à de um avatar como Ashtar
Sheran, pode me enlouquecer se for prolongado, além de
destroçar as almas dos meus oponentes. Foi o que aconteceu há
trezentos anos, por pouco não enlouqueci, acabei perdendo o
controle enquanto enfrentava vários líderes illuminati ao
mesmo tempo, e feri demais seus espíritos após destruir seus
corpos.
“E ainda se culpa muito por isso.”, observou Emmanuel.
“É difícil me perdoar. O que faz com que me sinta sempre
perto do inferno. Depois que perdi minha esposa e meus filhos
então, toda a tranqüilidade que havia se foi, em todos os
sentidos.”, silêncio, e Joanna recriminou seu ciúme quando se
deu conta deste, substituindo-o pela compaixão.
Assim que decidiram descansar, o grão mestre tranqüilizou
Joshua: “Ninguém com intenções hostis pode penetrar nesta
100
casa. O campo de proteção psíquico que formamos através de
nossa egrégora provoca primeiro dores terríveis no invasor,
para depois, se ele insistir, fazê-lo em pedaços.”
“Sorte a minha que sou bonzinho!”, o ex-integrante do
Comando sorriu de forma jocosa e dormiu até o meio-dia, do
mesmo modo que Joanna, alojado num aposento para
hóspedes. Seu sono foi o mais pacífico dos últimos tempos,
sem qualquer pesadelo ou intervenção do astral inferior, macio
e profundo.
Contudo, o idílio não poderia durar para sempre...
Era uma da tarde, haviam começado a almoçar, juntos à mesa,
Joanna ao seu lado, se sentindo mais leve do que nunca,
quando seu comunicador tocou.
“Bernard de Payens...Um nome que eu não queria ver tão
cedo.”, atendeu, esperando a voz do chanceler, ouvindo a de
Alexander: “Você nos decepcionou, senhor Christiansen.
Podíamos ter tido uma longa e próspera parceria, mas preferiu
nos trair. Assassinou um dos nossos melhores homens, e agora
terá que arcar com as conseqüências. Ação e reação, se prefere
assim.”
“Vocês que mandaram aquele sujeito pra me matar.”
“Apenas se o senhor não cumprisse com o prometido. Não é o
momento de desculpas e jogos verbais. Um homem deve ter
palavra.”
“Como se você tivesse.”
“A guerra está declarada, é assim que agimos contra os
traidores.”
“Estou pronto para enfrentá-lo.”
“Não é assim que funciona. Entre pessoas sujas, meios sujos.”
“Já está justificando a sua covardia.”
“Para compensar a morte de um forte, pelo menos dois fracos
devem morrer. Instalamos hoje algumas bombas na casa dos
seus falsos pais.”
“Como é??”, indagou após alguns segundos mudos, de baque.
101
“E a essa hora ela deve ter voado pelos ares. Será que já saiu
em algum noticiário de Marte? Seria bom vocês ligarem a
televisão para ver o que se passa na Terra.”, Joshua desligou
trêmulo o comunicador, e ia sair em desespero da sede da
Sapiens, porém Jerome o deteve com um forte puxão mental e
disse: “Se for nessas condições, será derrotado. Controle-se.”
“Mas Ingmar e Bela estão em perigo.”
“O que aconteceu?? Não consegui escutar a conversa. Parece
que a minha audição não voltou ainda ao normal depois de
ontem.”, Joanna interveio. Fora a única entre os membros
presentes a não ouvir as palavras de von Strauffenberg.
“Sucintamente, a Stella está ameaçando matar, ou já matou, os
pais adotivos do Joshua, como retaliação por ele tê-la deixado
viva.”, replicou seu pai.
“Emmanuel!”, Margareth refletiu que ele poderia ter sido
mais sutil.
“A verdade é a verdade, às vezes crua e amarga.”
“Meu Deus...”, a agente não ocultou seu abalo.
“Tenho que ir, Yeats. E não vou ser derrotado!”, Joshua disse,
e o grão-mestre respondeu: “Você já sabe que a Stella é uma
organização de indivíduos traiçoeiros, cobras e lobos astutos.
Não vão cometer o erro de enfrentá-lo de frente. Procurarão
enlouquecê-lo. Sabe que não pode confiar cegamente no seu
poder. Lembre-se do que aconteceu há trezentos anos.”, nessa
hora, o ex-integrante do exército interestelar de Ashtar parou,
entrou numa espécie de transe e se viu cercado pelos espectros
de seus inimigos-vítimas do passado, que não demoraram a
gritar de dor e fugir da mansão graças à barreira psíquica
existente na sede da Sapiens. Ao voltar a si, respirou fundo e
agradeceu a Jerome.
“Não há de que, meu amigo. Você não está sozinho. Nós
vamos com você.”, o grão-mestre surpreendeu todos os outros
e se levantou da mesa.
“Yeats, agradeço, mas não é preciso.”
102
“É mais do que preciso. Juntos, estou certo que enfim
poderemos destruir a Stella. Porém devemos agir com
inteligência.”, os mesmos que estavam naquele almoço
partiram para a Terra, e ao chegarem à residência dos
Christiansen infelizmente encontraram apenas os destroços da
casa. Nem sinal de Ingmar, Bela ou dos seguranças. Deviam
estar todos mortos. Joshua permitiu que escorressem por seu
rosto lágrimas densas e silenciosas.
“Deixe-o sozinho por enquanto, é melhor.”, Emmanuel
aconselhou à filha.
“Discordo. Não acho que seja o momento de deixá-lo à parte.
Pelo menos eu não vou fazer isso.”, durante a angustiante
viagem para a Terra, após ter justificado ao governo sua
ausência alegando que iria investigar a Stella na Terra,
deixando apenas um recado para seu superior e não atendendo
as subseqüentes ligações nem respondendo as mensagens
escritas deste, sentara-se ao lado de Joshua, conversando um
pouco, mas tratando de lhe fazer companhia com uma ternura
além do verbo, acariciando-lhe as mãos e arrancando dele
sorrisos inesperados. Provavelmente depois seria expulsa do
serviço de inteligência de Arash, ou no mínimo suspensa por
indisciplina, só que isso não importava mais. Seu ciclo como
agente talvez tivesse se encerrado, uma missão maior se abria
aos seus horizontes, e esperava que não mais solitária.
Diante das ruínas da casa dos Christiansen, aproximou-se de
Joshua e abraçou-o pelas costas. Os dois fecharam os olhos e
trocaram vibrações e energias, respirando quase que em
sincronia. A maga não se deixou envolver por sua tristeza; se
queria ser seu apoio naquela hora difícil, precisava permanecer
firme.
Emmanuel os observou e sorriu. Sua filha sempre fora séria e
independente, devia assustar os homens, tanto que mesmo seus
conselhos ela ouvia porém raramente acatava, o exemplo mais
recente disso sua aproximação a Joshua após o pai ter dito que
103
era melhor deixá-lo sozinho. Reconheceu que estivera errado.
“São um bonito casal.”, Tyllia comentou baixo, sorrindo, com
Freno, que respondeu: “Estão precisando um do outro.
Margareth olhou para Jerome, que acenou com a cabeça em
concordância com algo.
“Eis o resultado de sua rebeldia.”, de repente, ouviu-se uma
voz que Joshua conhecia sem se lembrar de onde. Virou-se
junto com Joanna, não chegando a demostrar total surpresa ao
ver quem se aproximava e rememorando o que era preciso:
vinham os dois enviados da Stella que tempos antes tinham
ameaçado as vidas de Ingmar e Bela, cujos corpos haviam sido
enterrados no jardim, o velho tendo decidido então não chamar
a polícia. Como podiam andar e falar, seus corpos menos
apodrecidos do que deveriam estar? Sabia qual a resposta.
“Não são membros da Stella.”, Jerome observou.
“Não mais.”, replicou Joshua. “Por que está se escondendo
atrás de fantoches, Orifiel? Já nos conhecemos bem o bastante
para que possamos conversar cara a cara.”, indagou em seguida
aos zumbis. Freno fez uma careta que sinalizava estranheza.
“Orifiel? Não é o membro do Comando sobre o qual você já
comentou?”, foi a pergunta de Joanna.
“Não é esses corpos, mas a mente que os manipula. Tomem
muito cuidado. Ele é capaz de manipular qualquer matéria que
teve ou tem espírito e esteja num nível inferior de energia. Mas
usar os cadáveres desses dois foi de um tremendo mau gosto.”
“Você, volúvel como sempre, assim como nos deixou de lado,
deixou para trás sua preciosa Anna. Envolveu-se com essa
mulher e com isso, arrastado pela paixão, provocou uma nova
desgraça entre entes queridos. Nós do Comando Ashtar não
devemos fazer diferenciações entre os indivíduos, mas você
preferiu que Ingmar, Bela e os seguranças morressem a
sacrificar uma única vida, ou melhor um corpo, pois o espírito
dela continuaria vivo e você sabe disso. Contudo, deseja e
muito o corpo dela, entregar-se aos prazeres dos sentidos, da
104
carne.”, o boneco que ainda não havia se manifestado moveu
os lábios.
Joanna olhava com atenção para Joshua, que a custo tentava
conter sua ira. Cerrou os punhos, e as veias de suas mãos
gritavam.
“Deixe em paz a Anna, o Ingmar e a Bela. Você não tem
dignidade e moral pra citar os nomes deles.”
“Esqueceu-se que também fui escolhido por Ashtar Sheran?”
“Ashtar abriu pra você a porta do quarto, mas bastou lhe dar
as costas e você incendiou a cama e riscou as paredes.”
“Um escritor hábil com metáforas. Mas não é bom em
argumentação.”
“Foi dado a você o dom de entrar na matéria e no espírito com
a finalidade de libertar as almas. Por que faz o contrário,
aprisionando o próximo à sua vontade?”
“Faço o que é necessário. E até hoje fomos muito pacientes
com a sua rebeldia. Chegou a hora do seu julgamento, antes
que provoque mais mortes e catástrofes. Demos uma chance
para que cuidasse da Stella ao seu modo; agora será do nosso
jeito.”
“Do meu modo?? Não é do meu feitio não me importar com
os meios.”
“A sua ingenuidade foi sua ruína.”, os olhos das marionetes se
tornaram azuis incandescentes, como as auras que as
envolveram. “Não temos interesse em vocês, podem ir embora.
Mas se tentarem defendê-lo, irão a julgamento junto com ele.”,
advertiu os magos da Sapiens. “Serão considerados cúmplices
de um rebelde desertor e irresponsável.”
“Na verdade, você sempre quis me ver cair em destraça.
Sempre invejou minha proximidade com Ashtar. Apesar de
você ter começado a servir antes de mim, ele confiava mais em
mim.”
“Não cultivo sentimentos vulgares como os que você costuma
alimentar. Não confunda nossos caráteres.”, não apenas os dois
105
zumbis como outros corpos, de vivos e mortos, estavam
sofrendo a manipulação de Orifiel, e foram rapidamente
aparecendo. “Li as intenções de vocês. Sei que defenderão
Samael.”, se voltou para Joanna e os demais. “Fiquem cientes
que posso levar a julgamento apenas os seus espíritos. Ele é o
único que só em último caso não levarei com o corpo físico,
afinal foi um de nossos soldados.”
“Não se envolvam, amigos. Posso e vou dar conta dele
sozinho.”, Joshua se pronunciou quando Jerome já ia
desembainhando sua espada, cuja lâmina exibia gravados uma
miríade de símbolos mágicos. Fios de luz azul partiram das
marionetes para imobilizar o ex-membro do Comando, e de
fato o envolveram, porém este já dera a ordem: “Liberação de
Poder, Terceiro Nível.”, seus olhos ficaram vermelhos sem
pupilas, chamas envolveram todo seu corpo, asas de fogo
nasceram em suas costas e materializaram uma armadura que
parecia feita de rubis. Alguns relâmpagos se manifestaram.
Joanna fora erguida no ar e afastada pela telecinese de Joshua,
pousada a uma distância segura, e as labaredas devoraram os
fios de energia e os cadáveres manipulados, sufocando e
fazendo desmaiar com uma fumaça entremeada de luzes e
faíscas os vivos. Orifiel transformava em marionetes não só
corpos como almas, absorvendo memórias até das vidas
passadas mais recentes e usando e intensificando o quanto
fosse possível os poderes e capacidades de quem controlava,
porém aqueles indivíduos eram de qualquer forma fracos
demais para o rival, o único a ouvir em sua mente: “Cometi um
erro, parece que o subestimei. Mas não vou errar de novo.”,
subitamente, Emmanuel foi atingido por uma forte dor de
cabeça e começou a perder a consciência. Percebendo a
invasão que iria ocorrer, Joanna chamou pelo pai, mas foi tão
rápido que em um segundo já era tarde, um ar muito frio se
espalhando e investindo contra Joshua, ao mesmo tempo que
uma estranha geada cobriu os símbolos mágicos da espada de
106
Jerome, inutilizando-os, e paralisou, como que congelando seus
corpos, Tyllia, Freno, Margareth e Joanna, que voltou a sentir
uma forte enxaqueca, semelhante à que se dera após vencer
Kundalini. Margareth tentou, com seus poderes mentais,
libertar a consciência de Emmanuel, só que ao penetrar dentro
do amigo viu uma imagem dele cego na escuridão, seu espírito
montado por uma presença azul como alguém monta em um
cavalo. A presença cresceu e abruptamente cobriu as trevas,
pronta para fazer com a paranormal o mesmo, engolindo-a e
tornando-a um novo fantoche.
Um desastre dos piores iminente, Joshua, sua aura de fogo
sendo apagada, deu novo comando ás nanomáquinas:
“Liberação de Poder, Nível Seis.”, e um terceiro olho se abriu
em sua testa e uma luz violeta se espalhou a partir deste,
ofuscando a visão de todos os presentes.
Voltando a enxergar e sem mais dores de cabeça, Margareth
liberta de qualquer controle mental e Emmanuel despencado no
chão, inconsciente, Joanna foi a primeira que conseguiu reabrir
os olhos, assustando-se com a transformação de Joshua, cada
vez menos humano a cada incremento de poder, e nesta ocasião
o salto fora grande: as três asas em suas costas, duas laterais e
uma central, exibiam olhos arregalados; seu corpo se tornara
negro e luminescente ao mesmo tempo, e aquela era sua pele,
não uma veste, pois estava nu, e os cabelos haviam assumido
um violeta-claro, mais longos; tinha agora quatro braços, olhos
nas mãos, e os dois olhos corriqueiros e a terceira visão
possuíam pupilas roxas. “É como a descrição de um serafim!”,
refletiu Jerome.
“Esteja onde estiver, vou trazê-lo aqui,”, cortou o espaço com
a mão direta e um vórtice se abriu. Orifiel, que estava sentado
em um dos quartos de sua nave particular, de onde se
concentrava para manipular seus fantoches, se sentiu puxado
por uma força irresistível. Seus olhos antes fechados se abriram
e desapareceu dali, reaparecendo de pé bem à frente de Joshua,
107
que naquela forma e emanando aquele poder, o semblante
terrivelmente severo, estava assustador. Aquele que era um dos
principais líderes do Comando Ashtar no sistema solar terrestre
começou a tremer e caiu de joelhos. “Pensou que poderia me
enfrentar de igual para igual, mas pelo visto calculou errado.”
“Não é possível! Treinei tanto durante estes três séculos...E
você continua acima do meu nível. Mas por quê?! Por que tem
que ser assim? Tenho nanomáquinas tão boas quanto as suas no
meu corpo, presentes do nosso comandante!”
“A questão é como se usam os presentes que nos dão.”
“Se me matar, sabe que sua situação com o Comando só irá
piorar!”
“Não me importo com a minha situação. O que não posso é
deixar um monstro como você livre para levar este mundo à
perdição.”
“Você não precisa me matar! Se considera que errei, leve-me
a julgamento!”, o desespero principiava a turvar o raciocínio.”
“Não era você quem ia fazer isso?”
“Compaixão...Lembre-se do que aprendemos com Ashtar
Sheran.”
“Não vejo arrependimento em você. Apenas medo. Por acaso
sente alguma compaixão por suas marionetes?”
“Espere!”
“Deus tenha compaixão da sua alma.”, Orifiel não falou mais:
um raio o partiu ao meio e queimou as duas metades.
Vencido o inimigo, Joshua caiu e seu corpo foi rapidamente
voltando ao normal. Joanna não soube quem acudir antes, se a
ele ou a seu pai, optando pelo pai por confiar na resistência do
ex-integrante do Comando, que recebeu o auxílio de Jerome,
cuja espada voltava a funcionar, emitindo uma aura prateada
que lhe deu forças para falar: “Sunto muito. Sinto muito por
Emmanuel...A culpa é minha.”, Yeats compreendeu no ato, a
confirmação vindo pelos lábios de Freno:
“Ele está morto. Não resistiu à violência da possessão daquele
108
monstro.”
“O cérebro dele explodiu.”, observou Margareth, chocada.
“O único monstro aqui sou eu.”, ainda nu, feridas nas mãos,
testa e costas nos lugares de asas e olhos, Joshua se levantou.
“Não é hora de se culpar. Estamos com você e qualquer um de
nós está pronto para morrer. Na verdade, todos nós que
alcançamos um certo grau na Sapiens assumimos os riscos
proporcionais quando decidimos subir. O caminho do mago é
de alguém que não pode temer a morte.”, disse Jerome.
“Mas por onde ando, surgem pilhas de cadáveres.”, foi até
Joanna, que estava no chão, com a cabeça baixa. “Me perdoe,
Joanna.”
“A quem está pedindo perdão, seu idiota?”
“A você, é claro. Eu matei o seu pai.”
“Joshua, você é um grande imbecil.”
“Sei disso. Algum dia você vai me perdoar?”
“Eu te amo, Joshua...”, voltou-se para ele, chorando e
sorrindo ao mesmo tempo, e se ergueu para abraçá-lo. “Eu te
amo, seu idiota...”
Joshua correspondeu, apertando bem seu peito ao dela. Os
corações batiam em sincronia.

“Conheci o seu pai por pouco tempo, mas o suficiente pra


perceber que era um homem de muito valor. Uma pena que não
tivemos como conviver mais.”, comentou Joshua. Haviam
voltado do funeral conjunto de Emmanuel, Ingmar, Bela e dos
seguranças da casa dos Christiansen, os restos carbonizados
dos três últimos reconhecidos pelo filho com a ajuda do
trabalho clarividente de Margareth. Os enterros ocorreram no
jardim de um dos esconderijos da Sapiens na Terra, outro
casarão que, como a sede principal em Marte, contava com um
campo de proteção psíquico. No retorno para dentro da casa,
onde antes haviam deixado suas malas e objetos pessoais,
Joshua e Joanna fizeram amor pela primeira vez, em
109
determinados momentos um fluxo suave, em outros um rio
quente, de energias bravias. Os dois já haviam experimentado
outros corpos e outras almas, mas fora mais intenso do que em
qualquer outra ocasião. No início, a carne dela já tremia e
ardia, e quando os lábios se encontraram se dera a explosão tão
aguardada.
“Quando pensei que você fosse mesmo só um escritor, ele que
insistiu pra não me acomodar e continuar investigando, que não
era o momento de desistir, afinal eu tinha cometido alguns
erros; e você estava mesmo me enganando direitinho. Papai era
inteligente, experiente e perspicaz.”, agora haviam passado a
carícias tênues, a moça acariciando-lhe as costas e de vez em
quando beijando seu pescoço e lhe dando suaves mordidinhas
nas orelhas e nos ombros.
“Eu não queria que mais pessoas morressem. Seu pai, o
Ingmar, a Bela, os seguranças...A minha consciência vai
demorar a se conformar.”
“Pelo pouco que te conheço, você não se conforma nunca.
Tem que buscar outro caminho.”
“Qual outro caminho?”
“Se soubesse, te diria.”
“Você pode me ajudar a encontrá-lo.”
“Isso acho que posso fazer, e farei com todo o prazer do
mundo. Vamos enfrentar tudo juntos.”
“Vamos...”, beijaram-se e, apesar de ter notado o vamos dele
um tanto melancólico, sem muita convicção, ela preferiu
ignorar essa percepção e insistir no entendimento dos corpos.
Em contraposição, longe dali, distante principalmente no
aspecto do amor, Alexander von Strauffenberg estava pronto
para tecer novos planos com seu chanceler, os dois tendo
acabado de assistir à gravação do confronto de Joshua e os
magos da Sapiens contra Orifiel, e todos os diálogos
perfeitamente audíveis de antes e depois do enfrentamento,
enquanto haviam permanecido no ambiente das ruínas da casa
110
dos Christiansen. Tudo fora obtido graças a câmeras de longo
alcance e extraordinária precisão instaladas nas árvores das
proximidades, além de outras instaladas em pássaros que eram
na verdade máquinas voadoras que tinham passado sobre o
lugar. Buscando não perder nada, por isso tantas câmeras,
procurando prevenir eventuais quebras e acidentes, a intenção
original sendo a de registrar e medir as reações de Joshua e
ouvir sua conversa com os membros da SDA, muito mais fora
obtido.
“Fascinante, Bernard.”
“Confesso que estou assustado, mestre. Com tanto poder,
quem poderá vencê-lo? É impossível derrubá-lo.”
“Não se esqueça de Joanna Flammarion. Ela disse que o ama
e ele, ao que tudo indica, também está apaixonado.”
“Se a matarmos, só despertaremos sua fúria e ele virá nos
massacrar.”
“Não seja tolo. Quem iria querer a morte de uma moça tão
graciosa?”
“O senhor já...”
“Bernard, Bernard...”, o grão-mestre da Stella interrompeu
seu mordomo, balançando a cabeça para os lados. “As pessoas
mudam, e eu mudei de opinião; as circunstâncias e o contexto
também fazem o ser humano. Hoje seria uma estupidez matá-
la, um suicídio. Ela que irá matar...Irá matar Joshua
Christiansen.”
“Isso é impossível!”
“Ele, que estava presente no local, já deve ter se dado conta
do que é preciso fazer.”
“Ele? O senhor quer dizer que o Superior Oculto estava no
local?”
“Sim. Ele estava. E um de seus poderes é o de reproduzir
qualquer técnica que tenha observado. E ele viu bem de perto a
técnica das marionetes humanas daquele soldado de Ashtar.”
“O Superior Oculto então tomará o corpo de Joanna. Mas
111
Joshua conseguiu salvar uma das magas da Sapiens, a que
tentou livrar Emmanuel Flammarion.”
“Ela não estava completamente possuída ainda. Emmanuel,
que estava, não pôde ter sua alma libertada sem que seu
cérebro explodisse. E o Superior não é nenhum tolo! Vai
aperfeiçoar a técnica e Christiansen nunca conseguirá libertar
sua amada. Ele não apenas copia, como aperfeiçoa tudo o que
observa. Nós já vencemos esta guerra...”, na Stella Matutina,
havia uma autoridade acima inclusive do grão-mestre, que
apenas este conhecia pessoalmente: o Superior Oculto, o
fundador da organização, que se mantinha vivo desde então,
um reptiliano considerado um deus pelos membros da Ordem,
e que estivera presente durante a luta entre Joshua e Orifiel,
oculto em alguma sombra. Quando chegasse a hora, outros
membros da organização poderiam vê-lo.
“E esta não se acha distante!”, enquanto refletia, von
Strauffenberg só podia sorrir, certo da vitória e da proximidade
do tão aguardado momento da revelação; por mais que se
sentisse um privilegiado, não queria mais ser egoísta em
relação a seus subordinados, afora que o apocalipse culminaria
com a concretização dos objetivos da Ordem.

CAPÍTULO 6 – Ascensão e Queda

Caíra miseravelmente. Os pés sobre as pilhas de anjos. Os


demônios ao redor, que antes espreitavam, prontos para a
emboscada. Um ferro-velho; o ladrão rouba as peças. Entre a
luz do sol e as sombras da caverna, o homem se entrega a si
mesmo. Não suporta o calor e nem a solidão. Depois que
morrer, e os vermes tiverem roído seu cadáver, essa é sua
vontade, um fogo saído de seu peito subirá fulgurante,
enroscando-se nos ares, e o olho da vida o regravará sob
novas formas. Seu desejo? A roda irá girar. Alguém poderá
112
pará-la? Em um sulco, um jardim; no outro, lama e feras:
alternados. Qual escolher? Difícil permanecer à parte.-
Opção, do livro Pelos olhos da Alma.

“Imagino que com toda essa turbulência não tenha tido tempo
para escrever nada, nem para amenizar a própria dor.”, Yeats
disse a Joshua, enquanto conversavam e relaxavam um pouco
após o almoço.
“Não tive mesmo. Mas, por incrível que pareça, acho que
encontrei um toque de tranqüilidade no núcleo do estrondo.”
“Imagino. Não posso dizer que compreendo o que sente, mas
posso imaginar.”
“Nunca amou uma mulher?'
“Nunca dediquei uma veneração especial a um ser em
particular. Sempre apreciei a liberdade, o amor sem restrições.”
“Valorizar a todos por igual, sem distinções, me faz lembrar
Orifiel, o que me traz calafrios. Mas sei que está falando de um
sentimento inteiramente distinto, oposto até, apesar da
aparência ser similar. Orifiel não se apegava, mas também não
amava.”
“Joanna é uma grande mulher, e aliviará o peso sobre suas
costas, ajudando-o a carregá-lo enquanto não se livrar dele.
Quem sabe o amor entre vocês possa me servir de inspiração
no futuro...”
“Você também é escritor, Jerome?”
“Tento escrever, mas nada do seu nível! Ainda tardará para
que consiga publicar algo. Estou trabalhando há alguns anos
em um romance arturiano, uma releitura particular do mito, que
contará, mais ou menos evidentes, sob uma forma de narrativa
fantasiosa, os principais conceitos da filosofia da Sapiens.”
“Parece muito interessante, já tem título?”
“Sangreal.”
“Sugestivo. O que acha de me mostrar algum trecho?”
“Mostrarei, é claro. Mas peço para que seja benevolente em
113
suas críticas, meu caro. Sou um iniciante e ainda são
rascunhos.”
“Tenho certeza que é um trabalho excelente, só que você deve
ser do tipo perfeccionista, que jamais está satisfeito.”
“O caminho da magia me ensinou a buscar a perfeição.
Afinal, um trabalho mágico não pode ser algo meia-boca. Se
não for perfeito, não funciona.”
“Uma diferença é que na magia só precisamos satisfazer a nós
mesmos. Na arte, mesmo que seja só um gato pingado, há a
fruição do outro.”
“Você tem razão. Não é à toa que magia, a meu ver, é bem
mais fácil.”
“Só que mais perigoso.”
“Nem sempre. Um artista, quando começa a trabalhar, está
sujeito a ser incompreendido. E, nesse contexto, como em
outras áreas da vida pode não se dar tão bem, a falta de
reconhecimento gera miséria e tristeza, o que pode conduzir ao
suicídio externo ou interno. O artista fracassado termina por
sabotar a si mesmo, ao menos em vida.”
“Quando foi que começou a se torturar...Quero dizer, a
escrever?”
“Meu iniciador e Emmanuel, que como você deve saber era
poeta, me incentivaram ao descobrirem minhas experiências
fundindo palavras e imaginação. Meu bom professor se
chamava Spenser. Quer conhecê-lo?”
“Ele está aqui?
“Não, mas posso chamá-lo.”
“Deve ser um homem atarefado, melhor não perturbá-lo.”
“Gostaria de participar de um ritual mágico?”
“Sim, por que não?” respondeu após refletir um pouco.
“Então vamos chamar Spenser, que não pertence mais a este
mundo, através do espelho místico.”, tais palavras
surpreenderam Joshua, que foi com o grão-mestre até o
aposento das evocações. Tratava-se de um quarto amplo e
114
escuro, as cortinas negras cobrindo as janelas. Apenas os
principais oficientes da SDA tinham uma cópia da chave da
porta, Yeats o único com direito a todas as chaves de todos os
espaços relevantes nas casas da Ordem. Somente a luz de velas
era permitida no ambiente, três grandes círculos mágicos
concêntricos gravados no chão, contendo diferentes nomes
divinos e símbolos cabalísticos, a árvore da vida numa das
paredes, um altar de mármore com uma caixa revestida por um
tecido púrpura sobre este, e o espelho mágico pendurado ao
fundo, coberto. O grão-mestre estava com sua espada,
embainhada. “Para que tenha contato com objetos sagrados que
apenas membros da Sapiens com um certo grau podem ver e
manusear, terei que iniciá-lo e exorcizar o que for nocivo. Sei o
quanto é poderoso, muito mais do que eu, mas aqui não se trata
de poder, e sim de um trabalho de consciência e purificação da
alma. Quer ir adiante?”
“Você armou uma bela armadilha para mim, Jerome...”
“Não é uma armadilha. A escolha é e será sempre sua.”
“Livre-arbítrio...”
“Se quiser, podemos ajudá-lo a se livrar dos seus demônios.
Ainda não cheguei a descrevê-la, mas haverá uma cena em
meu romance onde Arthur, após o fim da batalha de Camlan,
enfrentará o demônio que tentou matá-lo já no nascimento e
que manipulou Mordred, e que de certa forma também
terminou por manipulá-lo, e tombarão juntos. Há nesse livro
algum grau de canalização, penso, porque em certos momentos
o escritor parece ser outro, de outro mundo ou ao menos outra
condição espiritual, e não eu, além da história dar a impressão,
apesar do contexto fantástico, mas sabemos que a vida é
realismo fantástico, de ser algo que aconteceu, em nosso
passado, que pode ter sido muito diferente do que os
historiadores imaginam, afinal muitos documentos foram
destruídos, ou no de outro universo. Mas isso não é relevante
agora...Faça sua escolha: cair com seus demônios ou tomar um
115
novo rumo?”
“Sou velho demais para novos rumos.”
“Não é velho demais para Joanna.”
“Você é mesmo um grande mago. Toca nos meus pontos
fracos sem precisar ser violento. Acho que é pior do que
Orifiel! Brincadeiras à parte, preciso pensar. Meu maior dilema
não é me livrar do Demônio, mas me conformar que ele quer
continuar no Inferno, que não adianta querer puxá-lo pra que
veja Deus, porque um dia ele vai sim se libertar da lama e do
enxofre, só que não serei eu a arrancá-lo da danação, e sim
Deus.”
“A opção é sua. Está começando a compreender. Acho que foi
o amor de e por uma mulher que lhe fez bem, quem sabe isso
me estimule a algum dia provar um pouco dele. Por outro lado,
você não se cansou ainda, depois de passar três séculos
pensando?”, Joshua, que pisara no círculo mágico, percebeu
que não poderia mais sair dele. E iria querer sair?
Ficaram em silêncio, Yeats olhando para Joshua e Joshua para
si mesmo, por meia-hora. O segundo teve que assumir sua
decisão: “Em frente.”, e Jerome concordou.
Alegria e tristeza, amargura e doçura, dor, agonia e esperança;
acima de tudo confiança, algo que não sentia com plenitude
desde que Ashtar se fora, uma reconquista que deveria
agradecer a Joanna e seus amigos. Provavelmente ainda não
poderia libertar as almas de suas vítimas-inimigos, mas
libertando a si mesmo talvez se esquecessem dele, ou alguém
desceria para ajudá-los a esquecer ou transcender. Mas ele,
antes de todos os espíritos aos quais causara sofrimento,
precisava transcender. Eles não evoluiriam se seu detestado
algoz não evoluísse.
“Ó Deus de minha alma, sábio, forte e pleno de Poder, Fonte
de todos os seres, santifica este lugar com a tua majestade e a
tua presença, para que a pureza e a plenitude da Lei aqui
residam e preencham este lugar de Luz. Que tua Essência
116
divina se infunda e se espalhe em meu ser, me purificando de
todas as impurezas da mente, do espírito e do corpo, a fim de
que possamos permanecer em comunhão com os mestres
espirituais. Assim seja!”, Jerome deu a Joshua um folheto com
esta oração e a pronunciaram em conjunto. Feito isso, abriu os
quatro cantos do espaço, pedindo a presença dos espíritos do ar
no leste, dos da terra no norte, da água no oeste e do fogo no
sul. Na etapa seguinte: “Concentre-se no seu chakra coronário,
e junto comigo chame mentalmente os espíritos do éter.”, e,
dos dois lótus multicoloridos, abriram-se não as mil pétalas que
cada qual possuía, mas certamente uma considerável
quantidade destas; nos núcleos derramou-se uma corredeira de
claridade dourada, que foi escurecendo embora sem perder o
brilho, até se tornar da cor do espaço sideral, ao passo que os
chakras ficaram primeiro brancos e depois prateados. O
ambiente foi envolvido por uma névoa azulada, onde
começaram a se manifestar, ainda um tanto maleáveis em
excesso e confusos, dispersando-se ao passar de alguns
segundos, rostos de diferentes tipos de criaturas. Yeats pediu
então que o outro ficasse de joelhos no centro dos círculos e
disse, colocando-lhe a mão direita no topo da cabeça: “Que
este meu irmão possa ficar livre de todo tipo de influência
nefasta. Exorcizo-o em nome de Deus, que meu santo anjo da
guarda me auxilie a livrá-lo de todos os malefícios, e que os
espíritos que o atormentam abandonem as ilusões da mágoa e
do ódio, e encontrem cada um seu verdadeiro caminho. Que os
que se acham em desespero e loucura recuperem a razão e a
tranqüilidade.”, Joshua sentiu um líquido quente mas agradável
se espalhar pela sua cabeça, e ouviu-se um grito; seguiram-se
logo outros, mais ou menos agudos, um urro gutural que não
parecia nada humano silenciando as demais vozes, todavia teve
início uma profusão de barulhos, como portas batendo, objetos
caindo, passos e janelas se abrindo, mesmo que nada ocorresse
no plano da matéria. O ex-membro do Comando Ashtar se
117
sentia bastante seguro, afinal já enfrentara muitas situações de
extremo perigo, só que Jerome não se furtou de adverti-lo:
“Continue mantendo a calma, porém cuidado com qualquer
forma de orgulho. A situação de agora é diferente dos
confrontos que enfrentou até hoje. O seu mundo interno pode
explodir. Olhe agora para as chamas das velas.”, um vento forte
veio do leste; e as velas não se apagaram. “O fogo não pode
sobrepujar o ar. Os elementos tem que estar em harmonia.”, o
mago explicou. “Prepare-se, pois o fogo irá purificar o seu
espírito.”, Jerome retirou sua mão e o líquido quente na cabeça
desceu e se espalhou por todo o corpo; Joshua fechou os olhos,
que principiaram a arder, e não mais conseguiu abri-los. Viu o
líquido: ora vermelho, ora dourado; e sua temperatura
aumentou, e continuou aumentando, a ponto do agradável se
tornar primeiro incômodo e por fim insuportável. O calor se
tornou queimação, era como um ácido passando dentro de suas
veias e artérias; e ao voltar a ser aceitável, cessando o ardor
excessivo, o cenário que viu à sua volta foi uma paisagem
infernal, montanhas rochosas onde escorriam rios de lava,
penhascos e despenhadeiros, vales repletos de arbustos secos e
espinhosos, com humanóides de pêlos brancos e olhos negros
esbugalhados, curvados, as mãos e os braços magros, os
ventres proeminentes, saindo de grutas obscuras. Vultos
escuros e de aparência famélica se juntaram à sua volta. Sentiu
medo, e a impressão de ter voltado ao passado, à frágil
existência de Domingos Xavier, um desajustado, um exilado na
própria vida, sem poderes extra-sensoriais, sem certezas a
respeito da vida após a morte e da presença dos irmãos de
outros mundos. Não demorou a passar a ser Samael Gibor, os
pensamentos da época vindo à tona, a saudade de Ashtar, e
reconheceu entre os que o cercavam os rostos dos illuminati
que executara. Os estranhos humanóides brancos, de faces
rosadas, agora pôde discerni-las ao enxergá-los mais de perto,
se aproximaram. Vozes mentais repetiam o tempo inteiro
118
palavras de vingança, raiva e desespero. Não podia lutar contra
ninguém ali: uma fraqueza tremenda tomou conta de seu
espírito e desabou sobre suas próprias pernas. Viu a si mesmo
todo branco, esqueletizado, sem pêlos ou cabelos; numa poça
de fogo líquido, seu reflexo: horrendo. Controlou-se para não
berrar; saíram gemidos sufocados. Queria fugir, mas lhe
faltavam forças. Iniciou-se um espancamento, recebendo
golpes de diferentes intensidades, vindos de todas as direções.
Estava próximo de desistir de tudo e se entregar, pediu perdão a
Joanna, mas uma vibração diferente o percorreu de forma
repentina, produzindo em seu interior um alívio profundo; as
pancadas passaram a não doer como antes, e ao erguer a cabeça
recobrou os cabelos e foi recuperando o resto de sua aparência,
vendo sua falecida esposa Anna à sua frente, com um olhar
firme e despido de qualquer egoísmo, como que para lhe
estender a mão. “Eu me esqueci de você. E você ainda veio me
ajudar! Me perdoe.”, lamentou telepaticamente. “Pare de se
culpar e se desculpar, Joshua.”, ela respondeu pelo mesmo
meio. E continuou: “Você precisa viver a sua vida, ser feliz. Já
sei de tudo. Me falaram quem você é realmente. E não se
preocupe, não o condeno por ter me escondido a verdade por
todos os anos em que estivemos juntos. Era necessário para que
você tivesse paz, e eu que me desculpo agora porque tantas
vezes o perturbei, sem nem ter idéia do que realmente o afligia.
Sinto muito, meu querido.”; e o ex-integrante do Comando
respondeu, reerguendo seu tronco enquanto a presença dela
afastava as sombras e os humanóides pálidos: “Muitas vezes,
nem imagina quantas, você me trouxe paz. Me ajudou a
esquecer muitos pesadelos com suas carícias, seus beijos e suas
palavras carinhosas.”
“Você não sabe o que está dizendo.”, deixou escorrer algumas
lágrimas.
“Você é que não sabe.”
“Não importa quem esteja com a razão. O importante é que
119
você tem uma vida a seguir na Terra, enquanto eu irei por
outros caminhos.”
“Algum dia iremos nos reencontrar.”
“Não penso nisso tão cedo.”
“Mas por quê?”
“Ainda pergunta? Você tem a Joanna agora.”
“Mas...”, hesitou diante daquela resposta. “Nós podemos ser
amigos.”
“Algum dia. Não tão cedo. Os meus sentimentos não
mudaram, tente entender isso. E você não tem culpa de nada.
Você é o pai dos meus filhos, que agora estão aqui comigo.
Eles estavam loucos pra ver você...”, ao ver suas crianças, sua
energia regressou por completo, pôde se recolocar de pé,
postando-se com firmeza, e todos os espíritos que antes o
agrediam se foram, menos um, uma sombra sem rosto que
ficou parada observando a cena do abraço que o pai deu nos
filhos. Dois olhos se abriram naquela escuridão antes abismal:
recuperara a lucidez; estava livre. Nessa hora, Joshua reabriu
suas pálpebras físicas, voltando a enxergar o mundo material.
“Você conseguiu, meu amigo. Venceu o passado.”, a única
coisa de diferente no lugar desde que o deixara em espírito
consistia na presença daqueles humanóides brancos em volta
dos círculos, que o haviam acompanhado em seu retorno, ao
que parecia.
“O que são esses seres?”, enxugou com as mãos os olhos
levemente umedecidos. “Estavam na minha experiência do
outro lado.”
“Também não faço idéia.”, as criaturas encaravam os dois
com vívida curiosidade. Entretanto, não tardaram a se
desvanecer na névoa azulada. “O plano astral é repleto de seres
que desconhecemos. Temos que admitir nossa ignorância. Não
pareciam mal-intencionados, apenas curiosos, mas vamos ao
que interessa: vou iniciá-lo para passarmos ao espelho.”,
Jerome requisitou ao companheiro, que ainda estava ajoelhado,
120
para que ficasse de pé; na seqüência, os espíritos do ar, visíveis
como pequenos e estranhos homenzinhos alados (azuis, sem
cabelos, com asas cristalinas que não paravam de bater nem
por um instante), trouxeram um cálice de madeira com água,
conteúdo e recipiente abençoados pela intenção do grão-
mestre, que expôs: “Beba esta água como se estivesse bebendo
um santo elixir, coloque o fogo interno numa postura sagrada, e
todas as impurezas do seu corpo e da sua alma serão varridas.”,
seguidas as recomendações, o calor que ainda restava em
Joshua se dissipou em definitivo, decorrendo uma intensa
sensação de alívio. Realizou uma prece espontânea, e assim
que a terminou Yeats sentiu disso e o consagrou,
desembainhando sua espada e apoiando a lâmina em seu ombro
direito: “Que Deus o abençoe hoje e sempre. Seja bem-vindo
entre nós. Esta será a sua casa, e você será um dos caseiros.
Não podemos dizer que será um dos donos, porque nenhum de
nós é dono de nada. O único dono da Criação é Deus.”, selou o
acontecimento com um beijo na testa e um abraço.
“Muito obrigado por tudo, Jerome. Não tenho palavras.”
“Se não tem, melhor que continue em silêncio.”, pouco
depois, sem sair do círculo, através da ação dos espíritos do ar,
o grão-mestre removeu o pano que encobria o espelho místico.
Novas instruções foram passadas para Joshua: “Afaste
qualquer outro pensamento que não seja a intenção de atrair o
mestre Spenser a este lugar. Não podemos ficar tensos. Que o
chamado seja realizado com serenidade.”, e, Spenser chamado
por seu nome por diversas vezes pelo oficiante principal,
intercalando-se o verbo com momentos de silêncio, a evocação
chegou a um ponto em que a névoa azulada penetrou no vidro,
a fumaça aos poucos dando forma a barba e bigodes, até que se
delineou o rosto de um idoso, calvo e branco, com um olhar
bastante tranqüilo e benevolente. “Há quanto tempo, meu
amado pupilo. E vejo que está bem-acompanhado hoje.”
“Mestre, este é Joshua Christiansen.”
121
“Já sei disso. E sei também que ele já teve vários nomes
diferentes. Mas não importa, afinal o que interessa, o que
levamos pela eternidade, é nossa essência, e não nomes
transitórios. Seja bem-vindo entre nós, amigo.”
“Obrigado, agradeço as boas-vindas.”, Joshua, que estava
bem atento, se inclinou levemente em respeito ao mago
desencarnado, mas que nem por isso deixava de ser um
indivíduo de extraordinária sabedoria. A questão seguinte
estava prevista:
“Há muito tempo que não me chama, Jerome. Sei que há algo
neste chamado além da simples vontade de mostrar como
funciona o espelho mágico para o nosso irmão. E também não
foi somente para livrá-lo de seus fantasmas do passado e iniciá-
lo em nosso grupo. Por que me convocou aqui hoje?”
“Senti que a Stella está planejando algo. E gostaria de saber se
o senhor sabe de alguma coisa, pois em outro plano pode-se ter
uma visão privilegiada em relação à que nós temos aqui.”,
replicou Yeats.
“A intuição e a observação, às vezes unidas, em algumas
ocasiões uma decorrendo da outra, sempre foram duas de suas
maiores virtudes, e são mesmo essenciais para um mago de
primeiro nível. No entanto, não é por alguém estar morto que
tem uma visão melhor da vida como um todo, você sabe muito
bem disso. Alguns depois de mortos continuam tão cegos
quanto eram em vida, ou pioram.”
“Claro que sei disso, mas o senhor é diferente. Não é um
morto qualquer. Aliás, não está morto, apenas deixou para trás
um corpo. É que no plano de existência no qual sei que o
senhor está, a visão é sim privilegiada em relação a nós.”
“Agora sim fala com correção. A verdade é que não posso ver
muito das ações e dos pensamentos de von Strauffenberg, eles
não deixam de possuir suas barreiras de proteção psíquica, mas
consegui captar algo de outros membros, mais descuidados, e é
meu dever adverti-los.”
122
“Impressão minha ou é só em parte que a convocação veio de
Jerome? Agora está me parecendo que na verdade foi o senhor
que o chamou, não o contrário.”, Joshua interveio.
“A evocação depende dos dois lados, quando se trata de um
espírito elevado. Alguém com uma consciência inferior à nossa
virá de qualquer forma se o chamarmos. Alguém superior só irá
vir se quiser, se a nossa postura for a adequada, e saberá de
antemão que iremos convocá-lo.”, explicou o grão-mestre.
“É isso, meus caros. Quanto à advertência, diz respeito a um
atentado que a Stella realizará em Munchen, dentro de três
dias: um atentado que terá início pelos ares, aparentemente
visando o centro financeiro do país, só que isso servirá apenas
para distrair a frota de proteção da cidade.”, Spenser se referia
à capital de Voynich. “O ataque principal ocorrerá por terra,
contra o palácio do governo, e este que vocês deverão deter.
Pretendem matar o presidente e os senadores.”, Yeats ia fazer
algumas outras perguntas, porém nessa hora a névoa se
dissipou e junto com esta evaporaram o rosto e a voz de seu
mentor. Conquanto no início o desaparecimento tenha lhe
parecido súbito e decepcionante, um corte abrupto na interação
mágica, refletiu que, se aquilo ocorrera, Spenser já lhes havia
dito o que sabia e não tinha mais porque interagir com o mundo
material. Não iria cometer a indelicadeza de chamá-lo
novamente em um curto período de tempo. Preferiu convocar
uma reunião, explicando a situação aos membros presentes, e
buscando elaborar uma estratégia para o confronto:
“Está claro que esse ataque não se restringe à intenção de
acabar com a elite governante de Voynich. Eles querem nos
atingir, pois sabem que de alguma forma estaremos presentes
para detê-los, como estivemos em outras ocasiões. Você ainda
não deve saber, Joshua, mas muitos atentados terroristas só não
foram piores porque nós minimizamos esses desastres. E, que
fique agora mais claro do que nunca, a guerra contra a Stella
nunca foi e nem será apenas sua.”
123
“Acho que compreendi bem.”, o ex-membro do Comando
Ashtar respondeu na mesa de reuniões. “O que eu não queria
era que por minha causa o Comando os perseguisse. E confesso
que havia outro temor, que antes não admitia nem para mim
mesmo, e que passei a reconhecer depois da cerimônia de
iniciação: o medo de entrar em outro grupo e me desiludir mais
uma vez, como aconteceu com o Comando. É doloroso abrir
mão de uma missão, de amigos, de gente e de tarefas que se
tornaram o fulcro de uma existência. Era por isso também que
não desejava que se aproximassem tanto de mim, além de não
querer que sofressem por minha causa. Só que isso passou, e
devo confiar em vocês e agradecê-los por tudo.”
“Nós é que agradecemos a sua presença. Antes, tínhamos uma
força equivalente à Stella. Com o seu poder e a sua
experiência, estou certo que nos tornamos superiores. Não por
acaso vi, com a sua chegada, a oportunidade de decidir essa
guerra de uma vez por todas. Não é oportunismo, é uma chance
de darmos um fim ao sofrimento de tantas pessoas, a tantas
mortes em atentados terroristas e ações violentas, a essa tensão
que paira pelo mundo, como se a qualquer momento o lugar
onde comemos ou conversamos com nossos amigos possa
explodir, e irmãos nossos possam ser assassinados. Você sabe
bem como é isso, e eu também, porque os meus pais e a minha
irmã perderam suas vidas em um bombardeio da Stella em
Arash, onde na ocasião estavam reunidos alguns chefes de
estado. Como os políticos estavam bem cercados, a provocação
foi atacar os civis, que para eles são menos do que animais.
Temos que dar um fim nessa mentalidade. No que diz respeito
ao Comando, este agindo como inimigo da humanidade o
trataríamos como tal e partiríamos para enfrentá-lo você
querendo ou não, estando do nosso lado ou não. Estamos todos
prontos para morrer, por mais que desejemos viver. Não há
como nos poupar. Perdoem-me pela digressão...”
“Pra nossa sorte, você, Joshua, está do nosso lado sim! Como
124
diria o meu pai, uma ajudinha de cima sempre vai bem, mesmo
que nada caia do céu!”, Joanna brincou, e seu companheiro
sorriu de leve, com alguma melancolia.
A reunião durou mais uma hora, e depois o casal pôde ficar a
sós. Tinham muito o que conversar.
“Quer dizer que foi iniciado...Como foi? Está se sentindo
mais leve agora?”
“O Comando irá me caçar, que eu fuja para o espaço ou para o
centro da Terra, depois do que fiz com o Orifiel.”
“E o que ele causou a você, isso não importa?”
“Para eles não...Pelo menos não para os que pensam como
ele. Porém ao menos não tenho mais espíritos atormentados nas
costas, e nem culpas, as sombras tomaram seus próprios
caminhos, e isso porque tomei uma decisão firme, de me
respeitar e de me compreender.”
“De agora em diante vamos lutar juntos e nos apoiar um no
outro. Quando estiver carregando muito peso, divida um pouco
comigo. Não se preocupe com os meus problemas, e desabafe
quando precisar.”
“Essas palavras são minhas também. De qualquer forma, não
quero mais carregar nem pouco e nem muito peso. Quero ficar
leve e livre.”
“Nem tão livre assim...Já te amarrei!”
“Não estou falando nesse sentido. Falo de uma liberdade
interior.”
“E eu não sei disso, seu bobo? Claro que não te amarrei
também, era brincadeira!”
“Dizem que toda brincadeira tem um fundo de verdade...”,
abriu um discreto sorriso.
“Hoje vou te enforcar!”, puxou-o para perto, beijou-o com
intensidade e logo caíram na cama, onde começaram a se
despir para materializar o amor.

A cidade de Munchen era famosa pelo trio de arranha-céus de


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cores claras que contrastavam com o negro predominante no
resto da cidade. Nestas três torres, ficavam a bolsa de valores, a
sede do banco central e a casa da moeda de Voynich. Estavam
protegidos por um campo de força invisível, que repelia
projéteis e garantia uma considerável imunidade a radiações,
além de contarem com naves de proteção em seus terraços que
reagiriam de imediato a qualquer atentado. Contudo, os
terroristas pareceram não se intimidar com todo o aparato
defensivo, despontando no céu noturno uma grande espaçonave
esférica prateada, maior do que um estádio, que aterrorizou a
população assim que foi vista no alto.
A barreira que protegia o centro financeiro do país funcionava
de forma similar ao campo magnético terrestre, que protege o
planeta da radiação dos raios cósmicos e das partículas
energéticas provenientes do sol e de outros locais remotos do
espaço, defletindo partículas radioativas. Esta tecnologia fora
descoberta com a finalidade de se viajar no espaço com maior
segurança, defendendo as naves contra as partículas carregadas
do vento solar e as provenientes das tempestades solares. Isso
passara a permitir as longas excursões fora da proteção da
magnetosfera terrestre, sem que houvesse perigo de morte em
razão da radioatividade presente no espaço. A colonização de
Marte devia muito também à tecnologia de utilização dos
campos de força, as primeiras experiências ainda no século
XXI tendo sido feitas com um equipamento originalmente
usado para trabalhar em problemas de fusão, empregando-o
para criar em pequena escala um fluxo de partículas que
imitava o vento solar, demonstrando que um campo magnético
relativamente pequeno era o bastante para gerar uma falha no
vento solar, formando assim uma bolha protetora. Com o
tempo e a adição dos conhecimentos dos reptilianos, as
barreiras foram se aperfeiçoando, tornando-se cada vez mais
eficientes. Como a Canaan pudera ser atingida daquela maneira
em Marte? A resposta simples consistia em um andróide da
126
Stella que, infiltrado na tripulação, sua aparência perfeitamente
humana, abatera o piloto e sua equipe e desativara o campo de
força pouco antes da investida dos veículos-bomba que causara
o desastre, atribuído pela imprensa também a um erro do
condutor, que teria desligado a proteção cedo demais,
confiando que não havia porque temer um ataque...Tudo fora
perfeitamente calculado pelos terroristas, assim como dentro da
nave que começava a atacar Munchen não havia nenhum ser
humano, somente robôs: máquinas com um alto nível de
inteligência artificial, supervisionadas à distância por
Alexander von Strauffenberg, que de sua casa se divertia em
seu computador como se estivesse em um jogo. A terrível nave-
mãe liberou naves menores que passaram a bombardear a
cidade, atirando com os canhões que apareceram em sua
superfície raios que desintegravam no ato animais, pessoas e
até casas, e que logo, após alguns minutos de diversão,
principiaram a ser usados contra os três edifícios centrais da
capital, claro que ainda sem conseguir atingi-los e nem aos
indivíduos ao redor, muitos correndo para se manterem
protegidos nessa área relativamente segura. Pelo que parecia, o
intuito, na aparência ingênuo, consistia em vencer o campo de
proteção; ingênuo porque os disparos seguidos, embora cada
vez mais fortes e concentrados, enfraqueciam a barreira muito
lentamente, e a força de defesa da cidade iria acabar abatendo a
nave terrorista, apesar dos sustos e das vidas perdidas, antes
que esta pudesse causar o estrago definitivo.
No entanto, apesar da derrota que seria inevitável na guerra
nos céus, e aquela tão querida e cara nave-mãe seria derrubada
assim que chegasse uma equivalente da frota de Voynich, que a
encontraria já debilitada pelos ataques das defesas das três
torres, o grão-mestre da Stella podia sorrir, pois por terra as
tropas que protegiam o palácio do governo, distraídas por um
exército de robôs de guerra da organização, foram
surpreendidas por um ataque psíquico. De uma hora para a
127
outra, os soldados humanos começaram a passar mal, enquanto
muitas das máquinas de defesa eram desativadas. Isso se devia
à presença de Tessa Goebbels, uma bela mulher loira e alta, de
cabelos lisos e compridos, lábios grossos, nariz arrebitado e
olhos de faiscância celeste. Estava invisível sem precisar ficar
nas sombras, aliás trajada de branco, com uma saia justa e
botas. Apesar de olhos humanos não a enxergarem, um dos
robôs de defesa descobriu sua presença detectando o calor de
seu corpo, e atirou. Só que as balas pararam na pele dura de um
ser que se interpôs à frente da paranormal, um reptiliano de
face ofídica branca e fria, o corpo porém de escamas escuras e
tremendamente resistentes, com uma cauda que lembrava a de
um crocodilo; media por volta de três metros de altura e sua
baforada espalhava uma fumaça esverdeada, venenosa para os
seres humanos. Os dois unidos eram extremamente perigosos.
Tessa sorriu e fez um gesto de mandar um beijo para o
reptiliano, chegando em seguida o momento do confronto
contra os membros da Sapiens: Goebbels sentiu de imediato
uma interferência em sua mente, a presença de outra pessoa
tentando bloquear seus poderes, e ao mesmo tempo que não
perdia a atenção do conflito à sua volta se viu em um cenário
nebuloso onde ficou cara a cara com Margareth. “Quanta
honra, você deve ser Margareth Strassen, pelas descrições que
já me fizeram...”
“Não sei quem você é. Não tive o desprezar de ser
apresentada à sua pessoa.”, replicou a telepata.
“Não seja deselegante, minha querida. Apesar que já
começamos mal, você foi muito descortês ao invadir a minha
mente. Odeio gente na minha cabeça além de mim.”
“Sabe que comigo é a mesma coisa?”
“Mas até que os boatos têm um fundo de verdade! Você é bem
atraente. Que belos olhos...”
“Você também tem olhos bonitos, alguma coisa boa tinha que
ter, mas não gosto de receber cantadas de outra mulher.”
128
“Qual o problema? Gosto de experimentar tudo, não me nego
nada, afinal nunca sabemos quando pode ser nosso último dia
por aqui. Deus nos criou para sermos fortes e aproveitarmos
tudo o que a vida nos oferece, não para nos submetermos à
autoridade dos homens. Temos que ser independentes. E se por
um lado gosto quando um homem me pega de jeito, da pegada
gostosa, da energia masculina, por outro não me curvo a eles,
me mantenho firme! Posso ser submissa na cama; mesmo
assim às vezes monto em cima deles, e não precisamos deles
pra ter prazer: tem alguns dias em que eu pelo menos prefiro
mais suavidade, carícias leves, ternura, e a maioria dos homens
é bruta; uma outra mulher fornece um carinho mais puro,
adocicado, uma sexualidade não morna, só menos violenta.”
“Não precisamos negar os homens pra nos afirmarmos como
mulheres.”
“E quem está negando os homens? Só não são necessários o
tempo todo. Que eu não queira comer comidas apimentadas
sempre, não significa que não gosto de pimenta.”, tomou a
forma de uma serpente marrom manchada de vermelho e
envolveu Margareth, buscando cravar seus dentes para sugar
sua energia; a hábil paranormal da Sapiens se esquivou, tendo
assim início o duelo mental entre as duas, ao passo que o
reptiliano de hálito venenoso enfrentava Joshua, que ainda não
liberara nenhum nível de seu poder, limitando-se às suas
habilidades corriqueiras, e Joanna, que desta vez trouxera
consigo sua espada, a primeira vez que iria usá-la em combate;
ao ser desembainhada, esta liberou e continuou liberando uma
irradiação mística muito sutil, que transformava as más
intenções do inimigo em toxicidade em seu próprio sangue;
sem precisar feri-lo, o adversário até rindo quando era
golpeado e a arma nem sequer deixava um risco em sua pele
duríssima, foi diminuindo sua força e sua resistência. Sem
entender por que, suas pernas começaram a pesar, foi ficando
lento e o gás que saía de sua boca mais fraco.
129
O princípio do poder da espada de Joanna se fundava na
imantação contínua à qual a maga a submetera, após anos de
concentração, visando liberar uma energia que voltasse as
intenções destrutivas contra quem as emanasse, transformando
maus pensamentos em veneno para seu criador, o que era
relativamente simples enfrentando inimigos de menor
percepção psíquica e muita confiança na força bruta, caso
daquele reptiliano. Entrementes, num determinado momento
mesmo ele, talvez devido ao seu próprio desgaste, buscando
encontrar uma outra forma de lutar, não conseguindo
acompanhar a velocidade de seus oponentes, começou a ver a
aura que envolvia a lâmina, uma luminosidade dourada a
perpassar o metal.
“Vocês não vão me pegar com truquezinhos de magia. Não
vão mesmo!”, falou e na seqüência emitiu uma espécie de
guicho que Joshua sabia bem o que era, advertindo a
companheira telepaticamente: “Cuidado! Esse som em uma das
línguas dos reptilianos é um chamado! Outros logo vão
chegar!”, e de fato não demoraram a aparecer outros dois
reptilianos, que o ex-integrante do Comando Ashtar sentiu que
possuíam o mesmo nível do que estavam confrontando e que
ainda, apesar de tê-lo enfraquecido, não haviam conseguido
abater. “Liberação de Poder. Nível Quatro.”, deu a ordem e
ventos fortes partiram do seu peito junto com uma explosão de
luz cândida, brotando em suas costas asas emplumadas, seus
olhos ficando de um celeste total e uma armadura branca com
detalhes em um verde dourado revestindo seu corpo. Segurava
uma espécie de leque metálico e com este e ao bater de suas
asas manifestou lâminas de ar que fizeram o inimigo já
debilitado, antes tão duro, em pedaços; os outros resistiram,
sendo então a vez de Joanna, que moveu sua espada,
enfraquecendo-os mais ao materializar em seus corpos o
veneno de suas almas, e, quando a resistência de ambos
diminuiu, explodiu seus cérebros por meio de sua telecinese.
130
Fortalecera-se desde que enfrentara Kundalini, treinando sua
mente com assiduidade.
“Quanto mais você resiste, mais a desejo. A rebeldia é
estimulante e saborosa; a conquista é um espetáculo de
violência macia.”; “Desejar alguém que nunca poderá ter será a
sua ruína.”; “Mesmo que não consiga conquistá-la, vou
capturá-la. Capturar a sua alma, já que seu corpo com vida é
inacessível e depois será inútil.”, as vozes de Tessa e
Margareth, bem claras e distintas, percorriam o abismo entre as
mentes de ambas. Enquanto a primeira instigava todos os
estímulos nervosos que provocavam dores na rival e alvo de
sua volúpia, obtendo prazer não só com o sofrimento alheio
como principalmente com a altivez na não-demonstração da
agonia física, a segunda intensificava as sensações orgiásticas
na oponente. Tessa terminou por se amolecer e se distrair com
seu próprio gozo, Margareth liberando toda a dor acumulada
em um único grito carregado também com toda sua força
psíquica, arrebentando primeiro os tímpanos e em seguida
veias e artérias do cérebro e de outras partes do corpo da
paranormal da Stella. Assim foi obtida a vitória, ainda que a
vencedora tivesse terminado exausta e sentindo a carne trêmula
e a pele como se estivesse forrada de agulhas, levando choques
elétricos repentinos. Pouco a pouco, a felicidade pelo triunfo
tomou a dianteira sobre o sofrimento físico, passando o maior
incômodo a ser uma sensação de peso. A princípio isso não a
preocupou, porém foi aumentando até um ponto que se tornou
intolerável, excessiva, tal qual estivesse sendo puxada com
uma força tremenda para dentro da Terra. Não podia ser Tessa,
que estava agora estendida sem vida no chão, tratando-se de,
quando o percebeu, um poder psíquico consideravelmente
superior. Era tarde demais: perdeu a vida quando seus órgãos
internos foram esmagados por algo que lembrava as mãos
invisíveis de um gigante escamoso.
Uma fumaça envolveu o lugar, Joshua e Joanna encontrando
131
os cadáveres da companheira e da inimiga, as duas com os
olhos bem abertos. “Meu Deus, é a Margareth. Não acredito
que ela tenha morrido enfrentando essa paranormal da Stella!”,
indignou-se a ex-agente de Arash, inicialmente com
dificuldades para enxergar naquela névoa densa, que também
era ardida. “E não morreu mesmo dessa forma. Há uma outra
presença hostil, bem mais forte do que quem enfrentamos até
agora, estou sentindo o peso da mente dessa coisa ainda ao
redor do corpo da Margareth. Acho que foi quem pegou a nossa
amiga de surpresa.”, replicou Joshua. “Ela não era de se deixar
surpreender, devia estar desgastada. Percebi uma massa de
energia cheia de impulsos de violência, acredito que é aquilo ao
qual você está se referindo. Será que é o que está gerando essa
fumaceira?”; “Bem provável.”, e Joanna lamentou a perda da
hábil telepata, enquanto no centro financeiro a maior parte das
pessoas se refugiava dentro das três torres, que estavam
abarrotadas. Do lado de fora, abatiam-se as naves menores da
Stella e começavam a cair os pedaços da nave-mãe terrorista no
confronto com as defesas do governo de Voynich. Ouvidas no
interior dos prédios, as explosões provocavam reações de
pânico e estimulavam os discursos dos pregadores:
“Arrependam-se! Arrependam-se dos seus pecados! Estes são
os sinais do fim dos tempos! O homem, depois que deixou a
palavra de Deus para criar as suas próprias doutrinas, começou
a provocar a ira do Senhor, que é nosso único e verdadeiro
criador. Os terroristas, na verdade, são instrumentos usados por
Deus para punir a impiedade! Leiam os profetas e
compreendam a santa cólera do Todo Poderoso!”
“Mãe, do que esse cara tá falando?”, um menino perguntou à
mãe descrente. Queria entender o que significava o discurso do
pastor transloucado.
“Quando Israel caía em pecado, Deus usava os persas e os
babilônios como instrumentos. Hoje usa os terroristas para
punir os idólatras, que veneram o dinheiro e outras mentiras
132
acima do Senhor! Nossa escravidão, nosso cativeiro, consiste
em permanecermos enclausurados para nos refugiarmos dos
criminosos. Não se dão conta que perdemos toda a liberdade?
De que adiantam valores nobres e a aparência de democracia?
Leiam Êxodo, 19:18, que diz: todo o monte Sinai fumegava
devido ao fato de Deus ter descido sobre ele em fogo, e sua
fumaça ascendia como a fumaça de um forno. O que estamos
vendo hoje, com essas explosões e disparos que queimam
tudo? Atentem!”, e uns concordavam, outros ridicularizavam,
uma terceira parcela permanecia indiferente, e uma quarta se
irritava.
“Hoje é a grande noite. Você e outros verão o Superior
Oculto, Bernard. Mas você será o único a sobreviver, afinal a
visão Dele está vedada ao vulgo! Apenas os membros de nossa
Ordem podem fitá-lo diretamente, e você será o primeiro entre
os que não pertencem à linhagem dos grão-mestres. Mesmo
aqueles que o conheceram no passado não sabem quem ele é,
porque só o reviram no máximo sob a condição de um
holograma modificado. Tive a honra de vê-lo em pessoa e
agora será a sua vez. É nosso maravilhoso imperador; e o
império nada mais é do que a expressão da ordem cósmica, o
imperador simbolizando as leis, naturais e divinas, que regem o
universo: parafraseio a antiga sabedoria chinesa. E a face de
Deus, você sabe, é terrível!”, Alexander agora acompanhava,
junto com o mordomo, as imagens trazidas pelas microcâmeras
com aparências de moscas e mosquitos que zanzavam pelo
campo de batalha. Fora para uma sala repleta de telões, com
várias transmissões simultâneas.
O Superior Oculto inclusive já eliminara grão-mestres
anteriores a von Strauffenberg, que haviam desejado poder
demais para si mesmos e acreditado que poderiam inverter a
situação e submetê-lo. Mas Alexander era fiel, e se rejubilou
com a aparição de seu senhor em meio à fumaça que envolvia
Joshua e Joanna. A aparência de um homem não muito alto,
133
branco, de cabelos pretos e olhos azuis, o semblante sério, não
durou por muito tempo, logo as escamas se destacando na pele,
que se tornou verde, os olhos indo para as laterais do crânio.
Reconheceram com espanto aquele indivíduo...Era Tyllia, e
carregava uma cabeça: a de Freno.
“Assim morrem os fracos e os traidores.”, jogou a cabeça da
reptiliana da Sapiens aos pés de seus espantados interlocutores.
“Não pode ser...O Superior Oculto era um dos reptilianos da
SDA?”, Bernard perguntou ao seu mestre. “O senhor Tyllia
agiu como um infiltrado, ocultando sua energia verdadeira de
forma magistral.”, replicou von Strauffenberg.
“Tyllia...O que você está fazendo??”, inquiriu Joanna.
“Vocês não sabem quem eu sou de verdade. Sou o que na
Stella Matutina chamam de Superior Oculto, você deve ter
ouvido falar a respeito, Joanna.”
“Sim, meu pai e Jerome me falaram sobre algumas vezes, mas
sempre pensei que não passasse de uma lenda, de um messias
criado pela imaginação daquela gente. E não acredito que possa
ser você! Você enlouqueceu ao nos trair ou quer nos
enlouquecer, Tyllia! Só pode ser isso!”
“Não traí ninguém. Sou fiel a mim mesmo e aos que me
seguem. Gibor...”, voltou-se para Joshua. “Não se lembra de
mim, não é?”
“Nem um pouco.”, foi a resposta sucinta do ex-integrante do
Comando Ashtar.
“Na época dos illuminati, eu não era um dos grandes líderes,
por isso escapei do massacre que você promoveu. Mas eles
eram fracos. Para não ter o mesmo destino deles, treinei muito
e acumulei conhecimentos, fundando a Stella Matutina quando
senti que era o momento de dar um passo a mais. Precisava
deixar o medo de lado. Mais recentemente, por que acha que
Spenser não os preveniu a meu respeito quando o evocaram?”
“Então você interrompeu a evocação, por isso que ele se
desvaneceu de repente. Fico surpreso que tenha tantas
134
capacidades.”
“Aprendi a observar e acumular. E veja só isso...”, ao levantar
o braço direito, Joanna arregalou os olhos e ficou paralisada;
rapidamente, sua expressão mudou, e ao recuperar os
movimentos olhou para Joshua, que se sentiu frio e rijo, com
intenso ódio. “Observei o seu confronto com Orifiel. E como
não sou um mero macaco, ainda aperfeiçoei a técnica dele.”,
como Yeats dissera, o plano da Stella consistira em não só
investir contra Voynich como em atingir a Sapiens através
desse ataque; principalmente pretendiam acabar com Joshua,
chamando-o à armadilha, pois estavam certos que viria com
seus companheiros para salvar Munchen.
“Desgraçado!”, o ex-membro do Comando passou ao sexto
nível, porém sua agressividade começou a danificar a si mesmo
quando Joanna o atacou com a espada magicamente imantada,
à qual logicamente, por manuseá-la, apesar da manipulação do
inimigo, continuava imune. Tyllia se protegia com um
poderoso campo de força e demonstrava tranqüilidade,
exibindo um expressão fria, aparentemente sem violência. “O
que escolhe agora? Matar sua amada ou morrer pelas mãos
dela?”, indagou. “Ela é fraca para você e por isso será uma
morte demorada, a menos que se entregue e reduza suas
defesas ao máximo. É melhor morrer sem tanto sofrimento
físico e emocional. Ou prefere continuar vivendo?”
Esquivando-se como podia, Joshua precisava conter suas
emoções para tentar libertá-la, apesar do desespero crescente,
alimentado pela lembrança da morte de Emmanuel e por outro
motivo: se insistisse contra o campo de proteção do adversário,
sabia que poderia anulá-lo e vencer; contudo, analisando as
energias, os corpos e as mentes, descobriu que se matasse
Tyllia naquela hora, Joanna morreria junto.
“Estabeleci um elo psíquico entre nós dois, e não fiz questão
de escondê-lo, como deve ter percebido.”, o Superior da Stella
disse ao perceber que Joshua descobrira o terrível mecanismo
135
de sua marionete. “E não vai conseguir libertá-la. Não
conseguiu livrar o pai dela, e minha técnica é superior à de
Orifiel.”
Joshua sentia um ácido queimando o interior de seu corpo e
sua alma sendo aberta por uma faca afiada; não teria outra
escolha: precisava apelar para o sétimo nível, mesmo sendo
perigoso para todos. De todo modo, era a única esperança de
salvar a si próprio e a Joanna.
A ligação entre os dois se mostrava na visão mental do ex-
integrante do Comando Ashtar como uma corrente negra
percorrida por finos canais prontos para sugar todo o sangue da
moça caso o reptiliano fosse fatalmente atingido. E mesmo
com todo o poder psíquico do sexto estágio era impossível
rompê-la, o esforço de Joshua para isso em vão. Sua maior
agonia se devia ao risco que o nível seguinte representava se
saltasse para este numa condição emocional instável demais.
Buscou respirar fundo e fez uma oração, ao mesmo tempo que
tentou deixar Joanna inconsciente, sem sucesso, pois Tyllia
bloqueava quaisquer ataques mentais nesse sentido e se fosse
um pouco mais além corria o risco de feri-la com gravidade.
“Vamos admirar o fim de Joshua Christiansen, ou seria
Samael Gibor?”, confiante, Alexander resolveu tomar um bom
vinho. Bernard que ainda parecia apreensivo, e julgou que
tivera razão em manter a desconfiança quando se iniciou uma
nova transformação em Joshua: sua boca se escancarou sem
emitir som, enquanto em seu peito se abria uma cruz luminosa,
cuja parte inferior chegava à altura de seu baixo ventre; da
superior saíam faíscas douradas, no alto de sua cabeça
manifestando um disco multicolorido que passou a girar em
frenesi; a claridade forte emanada afastou Joanna e relâmpagos
atingiram o campo de força de Tyllia.
“Foi nessa forma que ele levou a cabo o massacre...”, refletiu
o frio reptiliano. Asas cristalinas se abriram nas costas de
Joshua; uma armadura branca e prateada o revestiu; as duas
136
espadas em suas mãos pareciam feitas de diamante.
Boquiaberto, não resistiu e comentou: “Será uma honra vencê-
lo enquanto manifesta todo o seu poder.”, contudo, Joshua
percebeu que era diferente da outra vez, talvez porque
amadurecera, principalmente depois da iniciação com Yeats: o
desespero se fora; apesar de sentir como se seus ossos
estivessem sendo esmagados por tamanho poder, uma força
divina e terrível, esmagadora, estava sereno e seguro; não
temeu mais pela mulher amada, bastando fitá-la com todo o
sentimento enquanto esta vinha atacá-lo para surpreender o
inimigo e pulverizar a conexão psíquica entre os dois, a espada
de Joanna inútil desta vez, afinal não emitia nenhuma emoção
desordenada; ela parou com a lâmina próxima de seu peito,
recobrando a consciência: “Mas o que aconteceu? Joshua...”,
reconheceu o companheiro pela energia, acostumada à sua
mudança de aspecto, os cabelos e a face de um branco
incandescente, tanto os olhos comuns como o olho na testa da
cor do fogo.
“Magnífico. Impressionante que tenha conseguido.”,
incrivelmente Tyllia se mantinha calmo, enquanto von
Strauffenberg parara de tomar seu vinho, segurando a taça com
um semblante mais tenso do que de costume. “Esperava que
perdesse o controle, não que recuperasse o equilíbrio. Correu
tudo ao contrário do que planejei. Pelo visto você mudou
depois que entrou para a Sapiens. Parabéns. Mas não me
derrotou ainda.”
“No meu nível anterior, já podia tê-lo vencido.”, disse o ex-
integrante do Comando, enquanto abraçava sua amada junto a
si.
“Sei disso. Mas não vou lhe dar o gosto de me vencer. Pode
ter certeza.”
“Por que ele está dizendo isso?”, Joanna se perguntou e
resolveu investigar a aura e o corpo do reptiliano com as forças
que lhe restavam. “Deve ter um trunfo escondido”.
137
“Deixe de ser arrogante!”
“Não é arrogância. Apenas estou seguro do que posso e do
que você pode. E não me contradigo, mesmo sendo incapaz de
derrotar você.”
“Chega. A minha paciência acabou. Não vai fugir depois de
tudo o que fez!”, a fumaça se dissipava com a luz emanada por
Joshua, que pela raiva que liberou voltava a tornar as coisas
perigosas para todos, ainda mais considerando o conteúdo do
grito que partiu de Joanna:
“Não faça isso! Ele tem uma bomba dentro do corpo!”, mas já
era tarde: os raios que Joshua disparara de suas mãos tanto
destruíram a barreira como pulverizaram o inimigo, detonando
o explosivo que este guardara dentro de si para causar o
máximo estrago em caso de derrota; não morreria como um
fraco, e sim demonstrando sua força levando consigo o maior
número possível de almas. Uma onda de calor e destruição se
espalhou por toda a cidade de Munchen. Uma imensa coluna
de fumaça branca e quente se ergueu e em um brilho ofuscante
fez os edifícios se desmancharem como que feitos de areia,
derreteu as naves e incinerou a maioria dos seres vivos; os
sobreviventes ficaram quase todos queimados e deformados. A
melhor bomba que a Stella tinha em seu poder estava
justamente dentro do corpo de seu membro de grau mais
elevado...

Ao voltar a si, pois sua consciência se apagara não tinha idéia


de por quanto tempo após a explosão, Joanna ainda se viu
envolvida pelas trevas ao abrir os olhos. Na verdade se tratava
do corpo de Joshua, que a cobrira e que estava todo negro, a
pele e os cabelos, sem nenhuma roupa. “Meu amor...”, bastou
tocá-lo de leve, com as pontas dos dedos, para que ele
desabasse, sem nenhuma resistência, devido provavelmente à
exaustão após manifestar seu poder no sétimo nível, obrigado a
ficar mais tempo nessa condição para proteger sua
138
companheira, tendo criado e sustentado um campo de força
durante todo o período crítico do estouro da bomba. Suas asas,
secas e quebradiças, últimas reminiscências da forma alterada,
que haviam envolvido os amantes, ficaram em pedaços quando
caiu para o lado, seus frangalhos levados embora pelo vento.
“Joshua! Joshua!”, pôs-se a chamá-lo, sem conseguir acordá-lo,
e ao buscar sentir as batidas do coração dele percebeu que
estava muito fraco, a pulsação lenta. Evitando chorar, à medida
que a pele e os cabelos de Joshua voltavam à coloração normal,
não soube o que fazer quando uma nave de extremidades
pontiagudas e núcleo esférico despontou no céu, no qual uma
tintura sanguinolenta recobrira a escuridão da noite, a fumaça e
a poeira ainda se espalhando; o veículo era de coloração celeste
fúlgida, porém não se tratava de uma luminosidade que viera
para trazer esperança. De qualquer forma não tinha como fugir.
Por isso permaneceu ao lado do amado caído, e depois que a
nave pousou entre os destroços, abriu-se uma porta e estendeu-
se uma rampa, pela qual vieram descendo indivíduos de ambos
os sexos, em trajes azul-prateados metálicos. “São eles...”, de
repente, Joshua falou, mostrando que recuperara a consciência.
“Ah, meu amor! Que bom que você está de volta!”, abraçou-o
e o ajudou a se reerguer; ela também estava um tanto fraca,
mas não como ele, que mal sentia as pernas, e por isso lhe
forneceu seu apoio, colocando seus ombros à disposição. “Mas
eles quem? Não me diga que...”
“Como você pensou: são membros do Comando Ashtar.”, e a
que vinha à frente era uma mulher magra e de aparência jovem
com aproximadamente um e sessenta de altura, mas que Joanna
podia sentir que se tratava de uma líder com um altíssimo nível
de poder psíquico; não poderiam nem pensar em enfrentá-la
naquele momento. Tinha cabelos negros ondulados, a pele
branca bastante pálida, olhos castanhos e uma expressão
profunda, sutilmente melancólica. Parou à frente dos dois.
“Quando acordei, logo senti a presença deles, não precisei nem
139
abrir os olhos. Talvez tenha sido justamente a presença deles
que me acordou...”
“Há quanto tempo, Joshua.”, a comandante do grupo tinha
uma voz que parecia até um pouco infantil. “Há quanto tempo,
Shekinah.”, ele respondeu, e se voltou para Joanna, dando
algumas explicações: “Os outros não conheço, devem ser
novatos, mas Shekinah conheço bem. O nome de batismo dela
é Luana Donati. Começamos praticamente juntos no Comando
Ashtar, e fomos amigos por muito tempo, depois perdemos
contato. Uma pena que parece que a época boa acabou
mesmo...Estou sentindo perfeitamente quais são as intenções
dela aqui hoje.”
“Foi você que quis assim. Primeiro, desertou. Depois,
envolveu inocentes em suas tentativas de fugir de suas
responsabilidades e matou Orifiel. E agora passou de todos os
limites, não sendo nada cuidadoso com os civis e acabando por
destruir uma cidade inteira.”
“Shekinah, você tem boa índole, e conhecia bem Orifiel,
assim como me conhece. Se precisei acabar com ele, foi porque
tive boas razões pra isso.”
“Confesso que estou decepcionada com você por tudo o que
andei vendo e ouvindo, Samael. Não adianta dar desculpas.
Membros do Comando não devem lutar entre si.”
“Não se faça de bastião dos nobres ideais do Comando
Ashtar.”, Joanna interveio. “Joshua precisou se defender e
defender o mundo de Orifiel, que era um monstro, que não
hesitava em usar outras pessoas e não dava a mínima às vidas
alheias para atingir seus objetivos. Ele que não se importava
nem um pouco com os civis! Se você fosse realmente pura e
justa como pensa que é, levaria isso em conta.”
“Samael não precisava tê-lo matado e, antes disso, devia ter
acatado a ordem de ir a julgamento. Orifiel o atacou em razão
da desobediência.”
“Orifiel solto era um perigo para a humanidade.”
140
“Não cabe a você fazer julgamentos sobre o Comando. Aliás:
Joanna Flammarion, você será julgada junto com Samael,
como cúmplice por todos os delitos recentes cometidos.”
“Ela era sua amiga??”, Joanna perguntou ao companheiro
com indignação.
“Em seu último momento, Orifiel pediu clemência e você não
a deu, Samael. Executou seu próprio julgamento. Nós
observamos tudo. Sabe que o Comando possui suas leis e não
podemos admitir uma atitude arbitrária como essa.”, Shekinah
resolveu ignorar a ex-agente do governo de Arash.
“Talvez eu mereça mesmo esse julgamento; mas não por ter
desertado ou por ter executado Orifiel, e sim porque no fim das
contas acabei agindo como ele ao destruir essa cidade...”,
Joshua lamentou.
“Como é que é?? Que besteira é essa que você está dizendo??,
indagou Joanna.
“É a verdade. Não levei em conta as vidas que existem aqui,
simplesmente só pensei em acabar com Tyllia. Ao invés de ter
ficado satisfeito e sereno quando libertei você, fiquei cego de
ódio e só pensei em me vingar.”
“Você pensou em mais vidas que ele poderia tirar, afinal era
um grande terrorista.”
“Não vou dar esse tipo de desculpa agora. Não foi por puro
altruísmo que quis acabar com ele. Claro que não queria que
ele continuasse com seus crimes, e era o verdadeiro cabeça da
Stella, o maior entre aqueles criminosos; mas se tivesse mesmo
pensado mais nos outros do que em mim, teria parado, deixado
os ressentimentos um pouco de lado e raciocinado antes de
atacar, examinado o inimigo, como você fez rapidamente. Você
foi melhor do que eu, Joanna...Viu a bomba que eu não vi. Se
ele estava confiante e tranqüilo naquela hora, só podia estar
escondendo alguma coisa! Só que fui arrogante, prepotente e
mesquinho.”
“Nem venha outra vez com culpas e assumindo
141
responsabilidades que não são suas, colocando de novo um
peso excessivo nas suas costas. Hoje as minhas costas são as
suas também, os meus ombros são seus, literalmente, e você
sabe disso.”
“Você devia ter pensado melhor antes de me oferecer o seu
apoio, porque gosto muito dele, mas o meu peso é grande, vai
prejudicar as suas costas.”
“Isso não é hora de brincar.”
“Algumas brincadeiras são de desespero.”
“Foi um acidente, Joshua! Você não queria explodir
Munchen! Será que preciso te sacudir pra você entender??”
“Mas explodi. Não foi a Stella que destruiu a cidade e
encerrou a vida de milhões de pessoas num golpe. Foi Joshua
Christiansen, ou Samael Gibor.”
“Até que enfim está reconhecendo a realidade.”, Shekinah,
que permanecera observando junto com os demais membros do
Comando, com os braços cruzados, voltou a falar. Não parecia
ter a mínima pressa.
“Você é uma covarde, pior do que o Orifiel.”, Joanna
demonstrava em seu rosto, em sua voz e em suas palavras seu
desprezo pela líder do grupo que viera prendê-los. “Veio levar
o Joshua agora que ele está totalmente sem forças pra se
defender. E eu também estou sem energia...”
“Dessa vez eu teria me entregado mesmo que estivesse cem
por cento.”, ele replicou.
“Vou largar você no chão...”
“Me desculpa, Joanna. Mas mereço sofrer como conseqüência
pela minha inconseqüência. Sou mais perigoso do que Orifiel
estando à solta. Quem me garante que, na próxima situação de
perigo, você não seja a minha próxima vítima?”
“Seu besta, eu estou indo presa com você.”
“Shekinah, por favor...Se houver como, deixe Joanna livre.”
“Seu idiota, pára de falar bobagem! Prometemos um pro outro
que enfrentaríamos tudo juntos. Bem que não tinha notado
142
firmeza em você...Agora cala a boca! Eu que vou tratar com
essa sujeira daqui pra frente. Nem você e nem ela vão se livrar
de mim tão fácil...”, ela lhe tampou a boca; contudo, antes que
a captora pudesse responder, ouviu-se uma voz conhecida:
“Uma vez iniciado, você virou nosso irmão. Nossos laços se
tornaram mais fortes do que qualquer laço de sangue.
Estabelecemos um laço de espírito, entre almas. Você querendo
ou não, seus inimigos se tornam nossos inimigos; e quantas
vezes precisarei lhe repetir que o caminho da magia não é para
os medrosos e que estaremos sempre prontos para morrer
enquanto a causa for justa? Não ouse nos subestimar. Não
somos fracos que precisamos ser poupados.”
“Jerome!”, Joanna reconheceu a voz, conquanto parecesse
não haver ninguém por perto. O grão-mestre e alguns de seus
pupilos, que haviam se locomovido rapidamente para o local
após verem na televisão a notícia da terrível explosão que
destruíra Munchen, estavam não só invisíveis como seus
odores e os sons emitidos que não desejavam expor, por
exemplo o de seus passos, não podiam ser percebidos.
“Quanto mais se opuserem e resistirem, pior será. Pelo visto,
todos vocês que chegaram agora querem ser levados a
julgamento em espírito e não em corpo.”, Shekinah se
pronunciou.
Iniciou-se o confronto. Lâminas luminosas em ouro e prata se
multiplicavam a partir da espada de Yeats, que a todo instante
se movimentava, trocando de posição e postura, sem ter como
ser percebido por sentidos físicos e nem por paranormais que
não fossem superiores a ele próprio, expandindo seu poder aos
seus discípulos, que enquanto o mestre estivesse consciente
partilhariam de sua inacessibilidade ao inimigo.
O ataque do mago perfurou os trajes e feriu a maior parte dos
membros da patrulha ali presentes, que pareceram perdidos ao
serem pegos de surpresa, como que não imaginando que
pudesse haver um indivíduo que não pertencesse ao Comando
143
capaz de lhes causar algum dano. Todavia, Shekinah
desaparecera...
“Cuidado! Ela também trabalha com nanomáquinas que
facilitam a expansão dos poderes psíquicos!”, Joshua se
aproveitou que Joanna liberara sua boca e advertiu Jerome e os
demais.
“Liberação do Poder. Nível cinco.”, Shekinah, oculta em um
campo de força que não só a protegia de qualquer ataque por
algum tempo como a tornava invisível, deu a ordem e uma
coluna de luz azul se ergueu de seu corpo subindo até os céus,
varrendo a fumaça, a poeira e subitamente clareando a noite;
abriu-se um olho de pupila violeta em sua garganta, os dedos
de suas mãos cresceram, seus cabelos assumiram uma
coloração arroxeada, Yeats e seus alunos se tornaram visíveis e
acessíveis e lançou um grito terrível, que transformou seus
oponentes em estátuas orgânicas; não demorou para que se
quebrassem, cristalizados, mãos, cabeças e pés se partindo e os
corpos inertes despencando, inclusive o do grão-mestre da
Sapiens.
Chegavam ao fim as esperanças de Joanna, que não mostrou
reação ao receber um beijo de Joshua no canto dos lábios.

“A aparente derrota não deve nos desolar. Afinal, graças ao


nosso Superior, estamos próximos de vencer a guerra. Tyllia foi
grandioso, pois mesmo caindo levou junto consigo toda a
capital de Voynich, e ainda arruinou Joshua Christiansen e
Joanna Flammarion, que tenho certeza que serão executados
pelo Comando Ashtar. A SDA está acabada, afinal seus
principais membros estão mortos, Jerome Yeats e seus pupilos
não existem mais neste mundo. Pegue o melhor vinho de nossa
adega, Bernard! Vamos comemorar! E tem que ser o melhor
que temos em homenagem a Tyllia. Lamentamos sua morte,
porém brindaremos à vitória!”, Alexander von Strauffenberg
acompanhara as últimas cenas graças à derradeira microcâmera
144
que sobrevivera até o final, filmando inclusive Joanna e Joshua
sendo escoltados para dentro da nave de Shekinah.
Após voltar com o vinho, o mordomo e chanceler da Ordem
expressou sua dúvida: “Apesar de estar tão feliz quanto o
senhor por nosso triunfo sobre a Sapiens, o Comando Ashtar
me parece muito mais perigoso. Esta tal Shekinah, antiga
companheira de Christiansen, demonstra ter um poder próximo
ao dele, ou até equivalente. E, entre outros integrantes de
destaque, provável que existam mais dessa categoria.”
“Não é o momento para pessimismo. Precisamos de fé. Se não
for pela força bruta, venceremos pela inteligência. O
importante será conhecer cada vez mais a respeito dos nossos
inimigos. Consideremos que o Comando não conta mais com
Ashtar Sheran já há um bom tempo, e também não terá Joshua
Christiansen, que entre eles é o único que nos conhece de
perto. Vamos, enquanto elaboramos um plano, pensar em
seguir o exemplo de nosso fundador, com sua coragem, astúcia
e determinação, um espírito com uma força que nunca vi igual.
Bernard, você é um privilegiado: foi o único que o viu e que
continuou vivo não sendo um grão-mestre. Valorize essa
experiência única e aproveite a sabedoria obtida. Para nós, foi
apenas nosso Superior, não oculto.”, brindaram, e depois que
Alexander decidiu ir dormir, o mordomo ainda ficou por algum
tempo na sala dos telões, contemplando a paisagem desolada
da metrópole destruída. Havia para ele poesia nos destroços e
nas cinzas, conquanto fossem versos terríveis, talvez
silenciosos demais, os únicos possíveis após o estrondo da
bomba, que ensurdecera os bons espíritos. Era preciso reduzir a
decadência a ruínas para edificar sobre estas um mundo novo,
onde não ocorreriam mais quedas, impossíveis para os homens
superiores, que não precisariam mais despencar para esmagar
as formigas; as baratas que resistissem não seriam eliminadas
de imediato, servindo como carregadoras e alimento, varridas
por seu próprio cansaço e quando se tornassem inúteis: assim
145
refletia Bernard, que passou a madrugada em claro, recusando-
se a deitar até o surgir do sol.

Joshua não sentia mais seu corpo. Era apenas mente,


consciência, sem formas, sem odores, sem sons, sem toques,
sem sabor. Sabia que existia, sem saber onde estava e muito
menos para onde iria. Sabia ao menos o porquê daquela
condição: fora considerado culpado pelos membros do
Comando Ashtar, julgado em um salão azul onde as paredes, o
chão e os balcões pareciam de vidro, os assentos com discretos
estofos. Seu julgamento não acontecera junto com o de Joanna,
não a vira mais desde que subira na nave de Shekinah, os
amentes proibidos de se ver e de trocar qualquer palavra. As
nanomáquinas que tanto o haviam auxiliado durante
aproximadamente três séculos foram retiradas de seu corpo e
em seu lugar implantadas outras que produziam o efeito
contrário, inibindo qualquer atividade paranormal. Em seus
últimos momentos, Joshua se sentira fraco e cansado demais,
sem ânimo para nada, o raciocínio lento e a visão mole e
nebulosa, sempre incerta, imprecisa; seu andar era trôpego,
como se estivesse bêbado. Provável que tivessem injetado
alguma droga forte enquanto o tinham deixado inconsciente
durante a retirada de suas nanomáquinas.
Uma vez condenado, mal conseguindo ouvir o que seus
acusadores diziam e sem direito a um advogado de defesa,
quase todos unânimes ao decretar sua culpabilidade, fora
colocado em um tanque transparente com um líquido gelado
quase até a altura da cabeça, a única parte que ficara de fora.
Não se tratava de água: era uma substância venenosa, que
penetrava lentamente por todos os poros, mas sem provocar
dores que não as da alma. O cenário ao seu redor era todo
verde como aquele líquido, e não via nenhum outro ser vivo
inteligente por perto, apenas robôs, que supervisionavam a
situação, às vezes mexendo no painel do tanque, e quando isso
146
acontecia o frio aumentava. Aos poucos não conseguira mais
manter os olhos abertos nem pelos mais curtos instantes, as
pálpebras pesando em demasia. Imagens de Joanna e Anna se
misturavam. Passara depois a ver seus filhos, brincando,
correndo; e, ao aflorarem as culpas, monstros disformes se
manifestavam na escuridão; aparentara até que seus demônios
haviam retornado, porém ao menos pudera perceber que
aqueles espectros eram todos formas de pensamento, moldados
por sua consciência moribunda, não mais os espíritos
vingativos daqueles que massacrara, que haviam sido
realmente exorcizados no ritual com Yeats. Contudo, ficara em
dúvida se os fantasmas-zumbis que caminhavam pelas ruas
arruinadas da Munchen que deslizara por sua sua mente eram
as almas dos que haviam morrido durante a terrível explosão
ou criações internas. Não o viam, não tinham idéia de quem ele
era, por isso não podiam odiá-lo; no entanto, ele se odiava por
ter causado tamanha desgraça, por não ter sido cauteloso,
mergulhando aqueles pobres espíritos, se o eram de fato, em
uma dimensão de aberrante agonia.
Vira de repente Tyllia olhando em sua direção e sorrindo,
como se apesar de sua morte estivesse certo de que alguém
poderia recuperar sua alma e colocá-la em algum corpo carnal
ou não, a segunda opção resultando em uma espécie de golem,
ou melhor no primeiro andróide efetivamente vivo, em termos
mais condizentes com seu tempo. Seria Alexander capaz disso?
Se fosse mesmo assim, a destruição da capital de Voynich seria
um crime ainda maior nas costas de Joshua, que sequer pudera
eliminar o inimigo, o sacrifício de tantas vidas e da sua própria
sendo em vão. Considerara-se o maior dos idiotas, porém sua
raiva nunca poderia tirá-lo daquele tanque. Ficaria se
retorcendo interiormente, sem a mínima esperança de salvação.
Tentou pensar que estava alucinando, que não era Tyllia que o
encarava e sim uma imagem que tinha do Superior Oculto,
materializando seus medos. O reptiliano fora destruído, não
147
devia ter dúvidas disso, e nem von Strauffenberg e nem
ninguém na Stella tinha o poder de trazer alguém de volta à
vida.
Era seu fim. E Joanna fora o último rosto que vislumbrara
antes de mergulhar na ausência absoluta de toda manifestação.
Iria descansar? Sabia muito bem que morte não significava
descanso. Qual seria seu rumo? Ashtar o resgataria? Se até
aquela hora não aparecera para ajudá-lo, isso devia significar
que não o faria mais. Seu mestre o abandonara. Deus o
abandonara. Reencarnaria logo? Concluiu que sim, que estava
prestes a se apagar, e quando isso ocorresse, sua consciência
migraria depressa para um novo corpo, para um bebê que não
se lembraria de nada de sua vida anterior, em seu choro a dor
de alguém que vivera tanto mas não pudera terminar sua
missão, uma alma tão massacrada que necessitava de um novo
lar o mais depressa possível para retomar um caminho
ascendente em sua existência cósmica. Talvez fosse renascer
deformado, em conseqüência dos deformados que deixara e
deixaria em Munchen, os filhos dos que haviam sobrevivido à
explosão pagando pelas radiações que tinham invadido os
corpos de seus pais. Do lado de fora, sua face estava magra,
ossuda, e quando seu espírito partiu os robôs chamaram
Shekinah, como estava programado. Apesar de ter sido a
captora, praticamente sua carrasca, teria vindo para chorar pelo
amigo de outrora, lamentar os erros que o haviam conduzido à
perdição, e protestar contra seu dever, que a obrigara a executar
alguém muito querido? Nada disso: o que se viu em seu rosto,
a princípio sério, foi um sorriso cínico se abrindo aos poucos,
como se um demônio tivesse tomado sua carne...
Em parte isso era verdade: recentemente, pouco depois da
morte de Orifiel, com o qual não tinha afinidades, por isso não
se poderia dizer que ficara abalada, sua conduta se alterara de
uma forma que parecera inexplicável para os seus aliados e
amigos; e, em um período curto, primeiro afastara-os, depois
148
estes reaparecendo e aceitos de volta também alterados,
manifestando opiniões em tudo opostas às que cultivavam
antes, que eram compatíveis com as de Joshua e as da
verdadeira Shekinah; afinal quem estava ali, manipulando seus
antigos companheiros como marionetes, era Orifiel. Em
nenhum momento ela coordenara a captura de Joshua, afinal
era tão contrária quanto seu amigo Samael Gibor, ou Domingos
Xavier, ao modo de agir do grupo que considerava que os fins
justificavam os meios: fora o espírito de Orifiel em posse de
sua vontade.
Após sua morte física, depois de um tempo indeterminável em
um limbo obscuro, a alma vagante se deparara com uma luz
que a levara de volta, para sua própria surpresa, conquanto
fosse mesmo seu desejo, ao mundo dos encarnados; terminaria
chegando à conclusão, em nenhum momento tendo ficado
inconsciente nas trevas, apesar do medo, e sem ter se
encontrado com nenhuma outra alma, que estava provado que
sua consciência se acostumara a agir sob qualquer
circunstância no mundo material. De tanto entrar em outros
seres humanos, seu espírito se tornara tão desenvolvido que
alcançara um grau de liberdade que os outros não possuíam,
independente de qualquer corpo. De nada servira a violência,
do seu ponto de vista, de Joshua; estava vivo e agindo,
enquanto o rival vencera a batalha, porém fora esmagado pela
guerra.
Ao mover seus dedos espirituais, movimentava ao mesmo
tempo não um, e sim vários bonecos ao mesmo tempo, sem que
conseguissem percebê-lo. A parte do Comando Ashtar que agia
no sistema solar da Terra era inteiramente sua agora. Joshua lhe
fizera um favor destruindo seu antigo corpo, que limitava seus
poderes. Deus sabia usar o Diabo; como estava no livro de Jó,
Satanás seria parte integral da corte de Deus e por mais que
causasse problemas aos homens, acusando e matando, estaria a
serviço do Senhor. Refletia assim que seu rival Samael fora um
149
instrumento divino, que lhe permitira conhecer seu real
potencial desapegando-o da matéria. Seu poder se tornara
portanto não só maior como mais sutil e eficiente após o
desencarne.
Não por acaso fez até uma oração pela alma de Joshua,
agradecendo-o por tudo, pois graças ao fato de ter se tornado
um espírito puro Orifiel enfim pudera unificar o Comando
Ashtar, não havia mais dissidências, e em breve produziria a
mesma unidade na Terra, trazendo o Paraíso tão sonhado ao
planeta e quem sabe, depois que tudo desse certo, a outros
mundos, expandindo o trabalho bem-feito. Ashtar Sheran o
testara ao partir, e estava comprovada sua competência; era o
líder que seu grande comandante desejara, não Samael, que
fugira das responsabilidades para levar uma vida medíocre.
Entrementes, ao olhar para o futuro, não se desapegaria tão
cedo do passado...
Colhido um fio de cabelo de Joshua, dirigiu um grupo de
cientistas do Comando na criação de um clone do condenado,
que batizou de Apollyon, inserindo neste as mesmas
nanomáquinas do original, se bem que reparadas e
aprimoradas, e outras novas, de tecnologia ainda mais
avançada, na intenção de criar o que seria seu mais perfeito
fantoche, a melhor máquina de guerra possível contra a Stella e
qualquer outro inimigo perigoso que aparecesse.
Em poucos dias já tinha um homem adulto idêntico a Samael
Gibor, só faltando os óculos e os cabelos mais longos em
comparação com a aparência mais recente. Estava adormecido
dentro da cápsula, imerso em um soro especial, que alimentava,
estimulava a paranormalidade, acelerando o surgimento e o
desenvolvimento de diferentes dons psíquicos, e fortalecia o
corpo (a fim de permitir que no futuro suportasse o poder do
sétimo nível por um longo tempo, quiçá por horas), recebendo
oxigênio de aparelhos respiratórios. Enquanto Apollyon
dormia, Orifiel, na forma de Shekinah e sob uma postura
150
feminina, bastante doce e maternal e ao mesmo tempo
sedutora, buscava inserir nele a programação desejada,
falando-lhe telepaticamente. Dizia ser sua mãe, e depois de
algum tempo, quando passou a se apresentar como si próprio,
afirmou ser seu pai. Em síntese, era o pai e a mãe
simultaneamente, e aquela criatura ainda não havia nascido e já
julgava amá-la como nunca amara ninguém. Quando tinha que
se retirar, deixava gravações com sua voz.
O rival ainda era sua fraqueza, a contradição em sua alma, por
mais que não reconhecesse isso. Nunca pudera tê-lo como sua
marionete; e de alguma forma estava próximo de realizar esse
sonho, pouco se importando se aquele seria um outro espírito
em um corpo com um código genético idêntico: iria dominá-lo.
Precisava contudo doutrinar, programar e condicionar o clone,
porque Apollyon seria bem mais poderoso do que o original,
forte demais para um fantoche comum. Orifiel planejava
comandá-lo de fora; sabia que nunca conseguiria entrar em um
indivíduo tão superior, por mais que seus poderes tivessem
crescido e adquirido uma maior versatilidade.
Ao menos não teria Joanna para atrapalhá-lo. Ela fora exilada
em um planeta distante e violento, sem esperanças para o
amanhã.

CAPÍTULO 7 – O Nascimento do Rei

O exército de Uther Pendragon, barão de Cymru (Cambria


para os romanos), se caracterizaria pela total ausência de cor
e claridade não fosse pela bandeira branca e verde com o
dragão vermelho expirando fogo. Os cavalos e armaduras
eram negros, e se poderia dizer que condizentes com o cenário
à sua volta, escuro e apagado mesmo durante o dia, as folhas e
os troncos das árvores respectivamente de um verde e um
marrom que beiravam o preto, além da neblina acinzentada.
151
Avançavam pelas terras da Cornualha a fim de se impor sobre
Gorlois, o duque local, pois Uther desejava ardentemente sua
esposa Igraine, que conhecera durante um torneio de
cavalaria e, embora não tivessem se falado, o rosto dela não
saía mais de sua mente e pretendia a todo custo possuí-la,
imaginando seu corpo, e o toque por aquela pele macia.
Enquanto ele, um homem corpulento, tinha os cabelos
encrespados e revoltos negros como sua barba e seus olhos
rijos e carregados de determinação, ela era esguia e ruiva, os
olhos esmeraldinos, e o barão tivera a impressão que, quando
haviam trocado olhares, a duquesa correspondera ao seu
desejo: sorrira-lhe, ainda que de forma tímida, virando o rosto
a seguir. Só não haviam podido se falar ou dizer qualquer
coisa porque estavam cercados pela fina flor da nobreza de
toda a Bretanha.
Contudo, não pretendia mais se deter; agora estava disposto
a, se preciso, caso Gorlois resistisse, deflagrar um conflito
violento entre os dois, que a princípio deveriam ser aliados na
luta contra os invasores saxões. O rei estava doente, e mesmo
que estivesse saudável não seria capaz de impedi-lo. Ao menos
não negava a possibilidade da paz, caso o duque da
Cornualha cedesse pacificamente sua mulher.
Com esse espírito impetuoso seguiram em frente, até se
depararem com um indivíduo de armadura negra diferente da
do barão Pendragon, com espigões nos ombros e nas
joelheiras, o elmo totalmente fechado que lembrava uma
caveira, em seu peitoral o contorno do que parecia ser um
corvo. Simplesmente cruzou os braços, nessa ação espalhando
um ar pesado e difundindo uma névoa turva que fez os
cavaleiros e cavalos passarem mal e despencarem, apenas
Uther, apesar do susto e da queda que se seguiu, seu animal
também perdendo o eixo, permanecendo consciente, erguendo-
se a seguir com fúria e desembainhando sua espada.
“Estarei diante de um demônio ou de um feiticeiro? Não
152
importa. Já que se colocou no meu caminho, irá morrer
agora.”, desafiou o inimigo misterioso que surgira de forma
repentina.
“Tem coragem, sem dúvida, mas é no mínimo imprudente me
desafiar depois de ver o que fiz com seus homens. Só está
acordado porque permiti, e devo esclarecer que se eu
desejasse todos aqui estariam mortos. Portanto, fica óbvio que
minhas intenções são pacíficas, e que se causei algum estrago,
não foi nada permanente e o fiz apenas para atrair sua
atenção e conversarmos. Caso tivesse me limitado a entrar à
sua frente e pedir a palavra, teria seguido em frente e me
ignorado.”, replicou o desconhecido com uma voz metálica
abafada.
“Faça meus homens recobrarem a consciência, se deseja
realmente falar e não lutar.”
“Não posso. E não porque não consiga, e sim porque a
conversa que precisamos ter é particular. Tenho uma
interessante oferta a lhe fazer.”
“Não vai se apresentar? Deveria ter um mínimo de
cortesia.”, pensou por um instante em atacar, porém as mãos
lhe tremiam e a hesitação era forte demais.
“Vocês nobres falam muito em valores e polidez, mas você,
caro Uther, está pronto para roubar a mulher do seu próximo.
Fico admirado com tamanha nobreza de caráter...”
“Eu a amo. Não posso mentir para mim mesmo. Não odeio
Gorlois e não vou lhe fazer nenhum mal se me ceder Igraine.
Porém não há como ela pertencer a nós dois, e eu a desejo
como nunca!”
“Amor...Desejo. Não está confundindo as coisas? Você a quer
na cama, a considera muito bonita, o que não significa que a
ame.”
“Se quer me irritar, está começando a conseguir. Saia do meu
caminho, seja lá o que for.”, acabou por se dar conta do
quanto aquele indivíduo era grande, bem maior do que
153
aparecera a princípio, do alto de seu cavalo; eram quase três
metros de altura.
“Como pensa em me tirar do seu caminho? Mas não se
preocupe, logo irei embora! Só preciso antes lhe fazer uma
proposta, diz respeito à linda Igraine, que neste momento está
sozinha, suspirando de saudades de seu marido ausente, que
partiu em guerra contra os saxões.”
“O que você sabe dela para sentir que está com saudades de
Gorlois?”
“Ele é um bom marido. Queria que estivesse com saudades
de você? Ela mal o conhece!”
“É melhor não zombar de mim, poderá se arrepender, ainda
que seja um bruxo.”
“Você ladra muito, mas sei que não morde. E sei de muitas
coisas, inclusive que seu destino seria o de morrer nas mãos
do duque da Cornualha. No entanto, posso impedir isso,
fazendo com que Gorlois volte da guerra antes do que o
esperado...”
“Não entendo o que quer dizer!”, Uther não disfarçava sua
insatisfação. “É melhor parar de fazer rodeios e dizer de uma
vez o que pretende!
“Tenho poderes para fazer com que se passe por Gorlois.
Tomará a forma dele, entrará em seu castelo e possuirá
Igraine sem precisar derramar sequer uma gota de sangue!”
“Você pode realmente fazer isso?”
“Isso e muito mais. Não viu o que fiz com seus homens?”
“Mas não quero que Igraine pense que sou seu marido.
Quero que ela me ame.”
“Não seja tão orgulhoso. Você a terá em seus braços e, se
gostar mesmo dela, afinal poderá não agradá-lo na cama
tanto assim quanto imagina, será simples seqüestrá-la em
seguida com a aparência de Gorlois. Quem sabe, depois que o
efeito do feitiço se for, ela possa se apaixonar por um homem
tão corajoso e decidido a tê-la...”
154
“Suas ironias me aborrecem profundamente. Todavia, se
provar ser capaz de fazer o que afirma, não cortarei sua
cabeça.”
“Ainda há um ponto final importante em nosso acordo,
digamos que um pequeno pedido.”
“O que seria? Por Igraine, sou capaz de qualquer coisa.”
“Não se preocupe, poque não quero sua alma! Sei que há
idiotas capazes de ir para o Inferno por um rabo de saia, mas
não tenho interesse em você e sim no filho que terão.”
“Quer dizer que vou mesmo me unir a Igraine?”
“Se aceitar minha proposta...”, diante de tão poderosa
tentação, Uther não resistiu mais e terminou dizendo sim à
oferta da entidade misteriosa, que desapareceu em uma
ventania fria a seguir, os homens do barão Pendragon se
levantando sem se lembrar de nada do que ocorrera,
surpreendidos de vez quando seu senhor lhes ordenou para
voltar às terras de Cymru, declarando que mudara de idéia e
que resolveria a questão sozinho.
“Mas não pode fazer isso, senhor! Se entrar dessa forma no
castelo de Gorlois, dizendo que ou aceita ceder a esposa ou é
guerra, ele o prenderá e o matará.”, objetou seu escudeiro, o
fiel Lucius, que, já bem claro de pele, começava a mostrar os
primeiros fios brancos tanto em seus cabelos como em sua
barba.
“Não tema, meu bom amigo. Contarei com a proteção de
Deus e nada e nem ninguém irá me deter. Gorlois não seria
tolo de perpetrar um ato traiçoeiro e desencadear a ira do rei.
Apesar de tudo é um homem honrado, e poderá até propor um
duelo em lugar da guerra. Agora se chegar com todos vocês,
pensei melhor, será uma declaração de guerra que não
permitirá outra possibilidade, ele se sentirá com razão
agredido e intimidado.”
“De qualquer forma irá correr um grande risco.”
“Confie em mim. Teremos um duelo, sairei vencedor e
155
voltarei com Igraine.”
“O Diabo muitas vezes faz seu ninho entre as flores da
paixão, que exalam um agradável perfume mas possuem
inúmeros espinhos, alguns venenosos.”
“Gosto de seus versos, companheiro de tantas batalhas. Mas
estou decidido...”, falando em Diabo, lembrou-se do sujeito
misterioso e pensou se não poderia ser o Maligno, tendo um
calafrio e sendo percorrido por um medo que espantou tão
rapidamente quanto este surgira. Partiu sozinho portanto para
o castelo de Gorlois, quando ficou próximo seu cavalo se
tornando alvo e sua armadura avermelhada com alguns
adornos coloridos, como a do duque; o feiticeiro ou sabe-se-lá
o que fosse cumprira sua promessa. Debaixo do capacete,
Uther se tornara loiro e de olhos azuis, os cabelos lisos e
longos, e nas muralhas, após retirar o elmo, deparou-se com a
surpresa dos guardas.
“Voltou sozinho, senhor? E bem antes do que esperávamos.
Aconteceu algo?”, indagou um dos vigias.
“Os saxões se revelaram mais fortes e perigosos do que o
esperado. Vim buscar reforços, mas estou cansado da viagem,
por isso antes quero descansar um pouco, beber um bom vinho
junto com minha amada Igraine. Amanhã partirei com mais
cavaleiros.”, não havia como duvidar: a voz e os trejeitos
eram os mesmos do duque; o sotaque da região de Cymru
desaparecera; o trabalho do bruxo fora perfeito, e assim o
barão Pendragon entrou sem encontrar qualquer resistência.
Por dentro sorriu, mas se mantinha sério por fora (o duque da
Cornualha era pouco dado a sorrisos), deixando-se conduzir
por alguma magia interna que impunha todas as
características do outro com perfeição.
Assim que esteve dentro, os servos vieram para retirar-lhe a
armadura, o falso Gorlois reproduzindo a serenidade e os
modos polidos do verdadeiro ao agradecer os criados e
abençoá-los em nome de Deus por desempenharem
156
perfeitamente suas funções. Precisou se controlar para não
disparar rumo aos aposentos de Igraine, mantendo as rédeas
sobre sua consciência curtas a fim de que a magia não se
dispersasse. Como se as memórias do duque, parte delas,
tivessem passado de forma instantânea à sua alma, conhecia
todo aquele lugar, assim podendo se dirigir a passos calmos à
residência da duquesa. Encontro-a se penteando em frente ao
espelho de sua alcova, e nessa hora lhe faltaram palavras,
suas pernas tremiam e seus desejos ameaçaram disparar feito
cavalos apavorados. Quando ela se virou e sorriu, ele veio se
aproximando devagar, as mãos geladas e todo o resto ardendo.
“Meu amor, que bom que você voltou!”, foi de súbito
surpreendido pelo carinhoso abraço da amada. “Estava
preocupada, ansiosa para receber um mensageiro nestes dias.
Mas melhor do que qualquer emissário, veio você!”
“Infelizmente não tenho quase tempo, Igraine. Vim buscar
reforços, e não ficarei muito. No entanto, não poderia deixar
de vê-la. O meu coração apaixonado queimava de saudade.”
“Sinta o meu!”, pegando a mão do homem, aproximou-a de
seu peito. Na proximidade dos seios de seu amor, o coração do
guerreiro disparou e o fogo subia à sua face. “A sua mão está
gelada.”
“É o mesmo frio que sinto estando longe de você.”
“Pena que os homens não consigam compreender Deus e por
isso existem as guerras. Se houvesse paz no mundo, não
precisaríamos nunca ficar separados, meu querido duque que
para mim é rei!”
“Eu ter amo, Igraine.”
“E eu também amo você. É diferente de todos os outros
homens, dos únicos que trata a esposa como sua companheira
de verdade, não como uma serviçal ou um bibelô. Você sabe
como é o meu pai, imagine como a minha mãe sofreu. Tive
uma tremenda sorte de não ter que passar por algo parecido.”,
do beijo ao leito foram poucos segundos; não tardou e ela
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estava despida e o ato se consumou com ardor. Nunca Igraine
sentira tanto prazer; Gorlois parecia ter retornado mais
decidido e firme nas carícias. Em determinados momentos, um
pouco brutal, puxando seus cabelos, impondo-se com o peso
do corpo. Porém ela só se incomodou no princípio,
entregando-se ao domínio dele após os primeiros instantes de
surpresa e alguma dor.
Contudo, ao término da relação, Uther percebeu um torpor
inicialmente tímido nos órgãos sexuais, que aos poucos foi se
espalhando por todo o seu corpo. Igraine, por sua vez, sentiu a
semente daquele que pensava ser seu homem queimando em
seu interior, um fogo que se difundiu a ponto de não conseguir
mais manter seus olhos abertos. “Não estou me sentindo
bem...”, disse, enquanto o barão Pendragon não conseguia
falar mais nada e toda a sensibilidade de seu corpo se esvaía.
Foi perdendo a percepção da carne e mergulhando em um
vazio gélido, os estímulos do exterior desaparecendo para dar
lugar a uma única imagem: a do feiticeiro-demônio de
armadura negra, que lhe falou, apavorando-o: “Muito bem,
você caiu como eu imaginava! Como todos os seres humanos,
coloca seus desejos acima de qualquer coisa, não prevendo a
dor. Agora o filho que teria com Igraine nunca vai nascer! E
você vai morrer, e não pela espada de Gorlois! Menti também
quando disse que não queria sua alma...Será meu escravo
para sempre, espírito ignorante!”, o guerreiro, em pânico, em
seu interior atacado por gigantescos cães ferozes por todos os
lados, findou seus dias na Terra com os olhos arregalados
diante da amada, que gritou ao perceber que não só estava
morto como não era seu marido, o feitiço se desfazendo após a
alma ser arrastada para o abismo. A duquesa saiu em
disparada de seu quarto, vítima das adagas que se fincavam
no coração de seu espírito, e chamou pelos criados, falando
em desespero, confusamente, porém os servos compreenderam,
ao ver o corpo de Uther, que um feiticeiro se apoderara da
158
aparência de Gorlois para possuir sua mulher e depois fora
castigado com severidade pela ira divina.
“Mas este é Uther Pendragon de Cymru!”, exclamou pasmo
um senescal que o vira em um torneio. “Meu Deus...Quem
poderia imaginar que se entregava a práticas demoníacas e
que cobiçava nossa senhora! Um homem de fama tão nobre,
de gestas notáveis, considerado um dos maiores defensores da
Bretanha contra os saxões!”, e Igraine adoeceu, vítima de uma
febre forte e repentina, na verdade uma violência do Inimigo,
que entrementes, na caverna onde estava concentrado, sua
intenção sendo o que agredia a duquesa, teve seu ataque
espiritual bruscamente interrompido, perdendo-a de vista em
sua visão mental. A pobre mulher começou a se recuperar, os
médicos pensando que graças aos medicamentos, enquanto o
bruxo ou demônio olhou à sua frente e viu quem menos
desejava ver naquele momento: Merlin, o maior dos magos de
seu tempo, em sua longa túnica azul, o capuz jogado para trás,
mostrando sua face, toda branca, pele, barba e cabelos longos,
os olhos de um celeste ígneo, ao contrário do adversário, que
ocultava o rosto. “Você não vai me impedir desta vez...”,
evidentemente furioso, o indivíduo de armadura da cor da
noite se levantou da pedra onde estava sentado e
desembainhou sua espada de igual negror, que tinha um
dragão decapitado em relevo em sua lâmina. Exalando seu
ódio, ao mover a arma foi materializando nas sombras
criaturas disformes, de garras e dentes afiados, que se
lançaram sobre o mago.
Merlin fechou os olhos e uma esfera de luz o envolveu,
barrando as bestas, depois espalhando uma roda de raios que
as desintegrou. Ergueu seu cajado, repleto de pedras
preciosas, e um pentagrama que estava “preso” em um rubi
saiu deste e atingiu o peito do oponente, que urrou de dor
física e agonia.
“Você é meu filho...Por que continua rebelde desse modo?
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Por que sempre se coloca em meu caminho?”, indagou na
seqüência. “Fui eu quem o gerei e deveria ser grato a mim por
isso!”
O mago não dialogou com o ser pérfido, que retomou a fala
ao perceber que o outro não diria nada, contendo-se em um
irritante silêncio, e sua voz se tornava cada vez mais tortuosa
e feroz: “Não pense que a guerra está terminada porque
venceu uma batalha. A guerra que travamos demorará pela
sua vida inteira, e também depois que ela se encerrar!”, um
novo movimento com a espada e, após se envolver com um
círculo mágico que apareceu no chão e fez desaparecer o
pentagrama, o inimigo sumiu. Merlin suspirou aliviado e focou
sua mente em Igraine, confirmando para si próprio que a
duquesa da Cornualha estava a salvo. Buscou o silêncio em si,
saiu da gruta ao perceber que certos fantasmas pretendiam
cercá-lo e, de volta ao sol que se insinuava timidamente entre
as árvores, desfazendo a névoa, respirou fundo.
Depois que alguns meses se passaram, o pequeno bastardo
nasceu, abandonado por Gorlois na floresta. Igraine, por mais
que chorasse escondida, compreendia seu marido e sua
oposição não foi tão veemente, ao menos por fora.
O garoto, pensou, ou seria devorado pelas feras ou recolhido
por algum camponês. Que Deus fizesse o que lhe parecesse
mais justo, assim orou a mãe, e quando um urso se aproximou
da criança, pareceu que a primeira opção seria o destino
escolhido pelo Senhor. No entanto, após cheirar o bebê, o
animal o recolheu delicadamente com sua boca e o levou a
uma caverna, onde Merlin os esperava...
O mago não o criaria, levando-o a seu amigo Hector.
Tratava-se de um homem rústico, ruivo e troncudo, um
lenhador simples que levava uma vida distante das ambições e
vaidades das cortes e dos campos de batalha. Nada melhor
para aquele menino, que foi entregue nos braços do humilde
viúvo, que tinha já um filho, chamado Kai. “Este garoto um
160
dia será o rei da Bretanha e o homem que contribuirá para a
diminuição dos poderes das trevas. Um dia, a humanidade
voltará a valorizar o saber e a escravidão, embora não
totalmente abolida, será reduzida e considerada uma
aberração. A magia ficará um pouco de lado, é verdade,
porém o propósito disso é para que a magia da destruição não
mais tenha a mesma força que possui hoje. O menino será não
só senhor da terra como do céu, meu discípulo, e virei para
iniciá-lo na linhagem de Taliesin quando for o momento.
Enquanto isso, peço que cuide dele, meu bom amigo, e lhe dê o
nome que os deuses escolheram: chame-o Arthur.
“Claro, Merlin. Seguirei suas instruções, ainda que não me
considere digno de tamanha honraria. Por que me escolheu?”
“Não fui eu e sim os deuses e espíritos da natureza que
protegerão Arthur. Você é meu amigo, mas foi o próprio
Cernunnos que escutei. Ele salientou a simplicidade e a pureza
existentes em seu coração.”
“Não me considero nada disso. Mas se é a vontade do
Supremo, que assim seja.”, após deixar o pequeno futuro rei
com o lenhador, o mago se foi, encontrando no bosque,
sentado de pernas cruzadas entre os cervos, as flores e os
pássaros, uma gigantesca figura meio-humana e meio-animal,
com enormes chifres em sua cabeça, cascos no lugar dos pés e
o corpo peludo e escuro, as mãos poderosas apoiadas sobre os
joelhos, um colosso que parecia conter em si todo o vigor da
natureza.
“Está feito”, disse o amigo àquele ser, que respondeu: “Meus
parabéns. Grandioso és, Merlin.”
“O filho de um demônio não pode ser grandioso.”
“Eu o instruí desde a tenra idade, portanto sou seu pai. Os
laços do espírito são superiores aos de sangue.”
“Estranho ouvir um filho da terra dizer isso.”
“A terra é espírito também, não matéria apenas.”,
Cernunnos abriu seus olhos inteiramente marrons e bem
161
redondos, fitando seu filho adotivo por inteiro. Sua voz tinha
presença, firmeza e uma majestosidade serena. “Tolos são os
que se limitam a conceitos. A terra é uma mãe que precisa ser
abraçada e abençoada a todo instante.”
“Perdão se fui desrespeitoso, meu pai.”
“O que importa é que somos um. E nossa espada se finca na
terra para seu pomo alcançar o céu. Vamos ficar atentos ao
fruto da árvore...”

Arthur cresceu bem mais do que a média dos garotos de sua


idade. Kai chegaria apenas aos seus ombros, pior ainda nesse
sentido a situação de seu atarracado pai. Gostava quando seu
irmão o levava para a feira na cidade mais próxima, onde
ficava com água na boca pelas frutas e carnes secas, a compra
muito menor do que o menino desejaria. Era louro de cabelos
cacheados, os olhos profundamente azuis, e ganhara de Hector
uma espada de madeira aos seis anos. Pena que pela condição
de sua família nunca poderia se tornar cavaleiro, desejando a
luta não por si mesma e sim porque queria se empenhar pela
justiça e pela paz, abolindo o que mais abominava no que
dizia respeito às cidades: as muralhas. Tivera sonhos nos
quais, junto com companheiros dedicados, entre os quais seu
pai e seu irmão, derrubava os muros das cidades, entrando em
uma era na qual saxões e bretões poderiam conviver em paz.
Sua religiosidade tinha aspectos celtas e cristãos, o que
herdara de Hector, tendo aprendido a ler em latim com um
missionário cristão que andara por aquelas terras, ao passo
que seu irmão e seu pai eram analfabetos. O único livro que
tinham em casa era uma Bíblia, que não lia com facilidade,
mas ao menos tivera a oportunidade de conhecer as palavras
do Cristo, que o fascinaram desde o início, em especial o
ensinamento de amar os inimigos, a seu ver o mais difícil de
colocar em prática. Não que tivesse algum inimigo, mas pelo
que já ouvira falar das guerras, os homens nunca se cansavam
162
de derramar sangue.
A pequena família, que não contava com nenhuma mulher,
vivia da lenha que vendiam no burgo, e a atividade de obter
madeira logo deixou Arthur com os braços bem fortes. O
primeiro grande acontecimento de sua vida, contudo, ainda
não ocorrera, dando-se numa noite em que olhava sozinho
para o céu, admirando a lua cheia e as estrelas, e viu uma luz
prateada piscar entre as árvores. Num primeiro momento,
pensou que se tratasse de uma mera impressão, por ter ficado
muito tempo olhando para o alto, mas a misteriosa claridade
tornou a se manifestar, e desta vez não se apagou, indo para o
bosque. O garoto não resistiu, decidindo-se a segui-la, e
enquanto Kai e Hector dormiam entrou na floresta, temida à
noite pelos camponeses mas não por ele, afinal duas luzes
iluminavam a escuridão: a desconhecida, porém de impressão
acolhedora, e a de seu peito. Seguindo adiante, começou a
ouvir os uivos de um bando de lobos, não podendo mais
continuar, e sentindo muito frio, quando as feras apareceram à
sua frente. A luz prateada parou pouco adiante, permitindo que
enxergasse bem os animais, de olhos famintos e bocas
espumando, destacando-se entre estes um que devia ser o líder
da matilha, uma besta incomum, com o dobro do tamanho dos
outros. Tinha as pupilas e a pelugem brancas, uma corcova
nas costas, e era o único que parecia calmo, seus maxilares
fechados, serenos, sem fome. Este lobo o tranqüilizou por
completo, sabia graças a este animal que não seria feito em
pedaços e devorado, aproximando-se e acariciando aquela
grande cabeça. Recebeu uma lambida, e nessa hora os outros
animais pararam de rosnar, alguns ganiram, todos
abandonando a hostilidade e partindo repentinamente. “Meus
parabéns. Você se saiu muito bem, filho.”, uma voz veio da luz,
pregando um pequeno susto em Arthur, penetrando dentro da
criatura alva, que desapareceu na claridade incandescente.
Em seu lugar, o menino viu, depois de descobrir os olhos, que
163
haviam sido ofuscados, um velho de barba e cabelos longos.
“Quem é você?”, indagou. “Sou Merlin, seu futuro pai e
professor.”
“Mas eu já tenho um pai.”
“Serei seu pai espiritual. Vou lhe ensinar os segredos da
alma, os que ficaram entranhados dentro do seu labirinto
interior.”
“Já me disseram que lobisomens são perigosos.”
“Hahaha...Não sou um lobisomem, garoto.”
“É o que pareceu.”
“Isso é magia. É harmonia com a natureza. Cheguei a um
nível em que posso ser homem, lobo, inseto ou árvore, sem
perder minha consciência. Compreendi a essência das formas;
você entenderá quando for a hora.”
“Mas você vai me levar embora?”
“Não precisará deixar seus entes queridos, pelo menos não
por enquanto. E amanhã fale de mim para Hector. Ele é um
velho amigo meu.”
“Então você conhece o meu pai?”, o mago desapareceu de
forma súbita, deixando Arthur na escuridão. O menino ficou
irritado, ainda mais depois que demorou mais de duas horas
para conseguir voltar para casa. Muitas dúvidas, poucas
respostas, cansaço físico, alguns machucados devido às pontas
de galhos e espinhos das plantas. Bufou ao chegar ao lar,
desabando em seu leito humilde, que naquela hora lhe pareceu
a maior e mais confortável das camas, digna de um rei.
Começou a cochilar, porém antes de entrar no sono profundo,
seu pai roncando àquela altura, Kai, que dormia ao seu lado,
indagou-lhe num cochicho parcialmente ouvido, que precisou
repetir: “Que hora é essa, Arthur?? Amanhã precisamos
acordar cedo para ir à cidade. Precisa dormir mais cedo, não
pode ficar zanzando nas estrelas e se esquecer da Terra.”, ao
que o garoto replicou: “Você também ainda não dormiu.”
“Dormi sim, acordei quando você chegou.”, e ia dizer que
164
estava na floresta e que encontrara Merlin, mas desistiu,
sentindo nisso como se não fosse só por sua vontade,
“alguém” lhe impedindo de falar sobre a experiência. Ficou
com medo, seguindo-se um silêncio semelhante ao que reinava
no bosque ao redor no momento. Ficou mudo, não
respondendo mais ao irmão, que, cansado, voltou a dormir.
Mais calmo, Arthur caiu no sono, sacudido pela voz de Kai
assim que o sol nasceu e acordando tonto: “Hora de levantar,
moleque! Precisamos ir! Vá rápido se lavar na lagoa e venha
me ajudar com os sacos.”, contudo, antes de voltar para o
irmão, ruivo, narigudo e sardento, foi até o pai, que já exibia
uma cabeleira grisalha.
“O senhor conhece um velho chamado Merlin?”, perguntou
de forma bem direta e simples, o que levou seu velho a
primeiro arregalar os olhos para depois franzir o cenho.
“Quer dizer que chegou a hora. Sim, claro que o conheço!
Como foi que o conheceu?”
“Segui ontem à noite uma luz prateada na floresta. Ela
entrou em um lobo enorme, que virou Merlin.”
“Se você tivesse entrado no bosque à noite sem ser por
Merlin, iria levar uma boa surra. Graças a Deus que era ele.
Aliás, esse tipo de aparição é bem dele.”
“E o que ele quer comigo?”
“Deve ter dito o que pretendia, não disse?”
“Pensei que o senhor soubesse de algo mais.”
“Não sei nada de magia! Como vou adivinhar o que Merlin
quer com você??”, disse parcialmente a verdade. “Você vai ter
que se entender com ele.”, os enigmas continuaram, e Arthur
passou a aguardar ansioso o segundo encontro com Merlin,
que para a sua angústia demorou mais do que um ano. Já
havia quase desistido, quando em plena luz do dia, estava
cortando lenha, seu pai que havia ido ao burgo com seu irmão
desta vez, olhou para o lado e viu o mago, sentado sobre uma
grande pedra.
165
“Achou que eu tivesse desistido de você?”
“Francamente não sei. Por que demorou tanto para
reaparecer?”
“Você pergunta demais. Mas, resumindo, estava ocupado, e
precisava testá-lo. E nesse teste você foi reprovado.”
“Que teste?”
“De paciência. Foi aprovado no de coragem, lembra-se do
lobo?”
“Claro que lembro.”
“Sempre respondendo de um jeito impaciente, ansioso. Está
na hora de saber que não vai morrer amanhã. E não falo por
metáfora. Digo a verdade.”
“E o que é a verdade?”
“Aquilo no que você acredita.”
“Isso não é verdade, é crença.”
“Tem certeza disso?”, Arthur começou a refletir, e não
demorou para uma vertigem tomar conta de seu corpo e de sua
mente. Por pouco não desmaiou, acolhido pelos braços de
Merlin, que estavam quentes. Sentindo-se bem protegido, desta
vez não teve vontade de fazer perguntas. “O seu olhar constrói
a sua realidade. Ação consciente; foco em si mesmo e no que
realiza: isso é magia.”, fitou os olhos de Merlin, ao penetrar
nestes vendo um céu muito mais belo e completo do que o que
conhecia, o espaço sideral em toda sua intuição e fulgor.
Entregando-se ao Mestre, compreendeu o modo de ser e agir
do mago e passou a respeitá-lo profundamente, se dando conta
que começara a aprender magia desde seu primeiro olhar
sobre a vida. “Agora sim vou iniciá-lo na linhagem de
Taliesin. Sei que, ao parar de perguntar, obteve as primeiras
respostas, e entre estas a única realmente necessária para
aprender.”
“Quem é Taliesin?”
“O primeiro nestas terras que soube o que é magia.”
“Graças ao senhor, agora também sei.”
166
“Aprenderemos muito juntos, Arthur.”, o primeiro passo do
futuro rei-mago fora dado.- Prólogo do livro Sangreal, de
Jerome Yeats.

O pequeno planeta Nibiru, pouco maior do que a lua da Terra,


era um lugar infernal, de violência constante e clima de
extremos, que funcionava de forma simétrica nos dois
hemisférios. No inverno, as tempestades de neve e gelo
transformavam a maior parte da superfície em um desolado
deserto branco; não se via o sol, a noite perdurava. No verão,
seus habitantes se viam obrigados a suportar um calor de mais
de quarenta graus durante o dia, e para completar a falta de
chuvas, a não ser por algumas torrenciais no início da estação,
devido à evaporação do gelo. Nos períodos de seca, os céus
assumiam uma cor amarelo-escura à noite em razão da grande
quantidade de poeira que subia. Nos meses gelados, a luta era
para guardar o gelo, que durante o tempo de calor insuportável
era derretido para se obter água. Também se buscava acumular
a água da chuva das primeiras semanas do verão, antes que se
iniciasse a secura. A maior parte de suas plantas, na maneira de
sobreviver, lembrava os cactos terrestres, com raízes grossas
para acumular água e substâncias nutritivas, a pele espessa com
uma cera que ajudava a evitar a perda de líquido por
transpiração, conquanto se parecessem mais com árvores,
bastante altas, sem folhas ou flores e de galhos túrgidos e
espinhentos, feitas de uma matéria flexível e ao mesmo tempo
resistente, própria para que o vento as dobrasse mas não as
derrubasse, bem distinta da madeira e de qualquer estrutura
vegetal presente na Terra; no verão, acumulavam calor,
represando-o em um órgão que se abria no inverno, permitindo
que o calor interno fosse liberado aos poucos e derretesse o
gelo que caía na superfície da planta, que usava seus poros para
absorver o líquido. A outra parcela de plantas no planeta
consista em plantas carnívoras, algumas de grandes dimensões,
167
capazes de abocanhar uma criatura do tamanho de um ser
humano, de prendê-la em seu interior com uma cera, pêlos e
espinhos grudentos, e de extrair desta, através de enzimas
digestivas, os nutrientes necessários à sua sobrevivência. Em
Nibiru pairava uma perene atmosfera de medo e intimidação,
com animais herbívoros quase todos de pequeno porte e
enormes predadores, estes todavia astutos e habilidosos.
Joanna Flammarion, que fora exilada neste mundo hostil para
que precisasse lutar o tempo todo por sua sobrevivência, sofria
muito tanto no inverno quanto no verão, encaminhando-se com
pisadas cansadas sobre o gelo para a caverna baixa que vinha
sendo seu lar havia um ano, após diversos meses de andanças
pelos dois hemisférios, trazendo consigo seu alimento, um
pequeno animal que lembrava um coelho, apesar das orelhas
curtas, de pelugem grossa e branca, quando uma fera que
estivera camuflada na neve emergiu de maneira repentina: tal
qual muitas das criaturas daquele mundo, seus pêlos alvos
cresciam no inverno e caíam no verão; podia tanto andar de
quatro como ficar sobre duas patas, as traseiras mais possantes,
uma cauda longa e grossa que na caça servia para distribuir
golpes, e na cabeça olhos, narinas e orifícios auditivos
mínimos, a boca imensa, com três fileiras de dentes afiados, o
mau-hálito forte, a saliva pegajosa; de pé, ficava com por volta
de quatro metros de altura.
Acostumara-se a lutar com aqueles predadores, pelos quais
nutria uma considerável gratidão, afinal a roupa que estava
usando era feita da pele de um deles, assim como utilizara seus
ossos como instrumentos, se bem que a carne fosse dura,
coriácea. Não gostava de viver daquela forma, abatendo outros
seres vivos constantemente, mas não tinha outra escolha se
queria continuar vivendo. Queria mesmo? Às vezes se
questionava a esse respeito, refletia que já estava morta na
verdade, apenas o corpo continuando ativo, a alma tendo ido
embora havia muito tempo, e só não tirava a própria vida
168
porque sabia que os espíritos dos suicidas não encontram paz.
Não chegava a pedir pela morte em suas orações noturnas,
porém em seu íntimo desejava o quanto antes se reencontrar
com Joshua. Em Nibiru parecia impossível qualquer contato
com o mundo sutil: não sonhava, seu sono era pesado, e todas
as tentativas para exteriorizar o corpo espiritual por meio das
técnicas de projeção astral que conhecia terminavam em
frustração: conseguia se energizar, ter a sensação do estado
próximo de deixar o corpo físico, só que a saída nunca ocorria,
um peso a retinha, ficava como um balão preso a uma bigorna.
Não que saindo no astral fosse garantido que encontrasse a
alma de Joshua; no entanto, havia a possibilidade, mesmo que
mínima. Aquele planeta parecia não ter a menor vontade de
deixar livres os seres vivos que o habitavam. Devia detestá-los,
considerá-los simples parasitas, e que se digladiassem, que se
massacrassem. Talvez fosse melhor não sair no astral daquele
mundo, que só devia conter mais e mais violência, sem
qualquer espírito elevado. A aura de Nibiru também devia
impedir que as almas que estivessem ali saíssem para explorar
o espaço.
Ao contrário do que poderia parecer, existia uma espécie de
inteligência comparável à humana neste orbe desolado,
vivendo nas montanhas e descendo para caçar. Joanna tivera o
desprazer de encontrá-los algumas vezes. Sem braços ou
pernas, com cabeças pálidas de narizes mínimos, bocas de
dentes pequenos porém pontiagudos, orelhas largas, olhos
inteiramente vermelhos e esbugalhados sem pupilas ou
pálpebras, protegidos cada qual por uma membrana sutil, e o
corpo peludo no inverno e cinza-escamoso no verão,
lembrando o de uma serpente, alimentavam-se de sangue e
possuíam poderes telecinéticos. Nas ocasiões em que a
caçaram, choveram pedras e outros objetos em sua direção.
Joanna, que tinha poderes psíquicos superiores aos de qualquer
um daqueles nativos, devolvia o que lhe era atirado e raramente
169
fugia, apenas quando os inimigos estavam em uma quantidade
difícil de lidar. Talvez pelas sucessivas derrotas, com o tempo
acabaram desistindo de caçar a estranha alienígena.
Comunicavam-se por meio das batidas de um órgão que
ficava ao lado do coração, possuindo uma audição privilégiada,
distinguindo com facilidade uma pulsação da outra. A boca
servia apenas para se alimentarem. Eram belicosos entre si,
inúmeras tribos rivais espalhadas pelo planeta. Moravam em
grutas, não havendo noção de paternidade ou mesmo de
maternidade depois que os filhos nasciam, após três meses de
gestação: todos eram filhos da comunidade. O sexo era livre, e
alguns animais separados para rituais de sacrifício dirigidos aos
seus deuses sangrentos, realizados no centro de círculos de
pedras que constituíam seus templos abertos. O sangue, além
de alimentá-los, quando em maiores quantidades produzia-lhes
um efeito análogo ao de uma droga psicoativa no organismo
humano, levando-os a êxtases e a visões de suas divindades.
Parecia que eram os únicos em Nibiru com alguma
possibilidade de interagir com outros planos. De todo modo
não iam muito longe, pois seus senhores eram terríveis titãs de
corpos e olhos em brasas, que só lhes permitiam permanecer
estendidos no solo, de cabeças baixas, em suas presenças.
Joanna não tinha o menor interesse de interagir com aquele
espécie, filha de um mundo que abominava os sonhos. E em
algumas noites em que não conseguia rezar, meditar ou dormir
se limitava a maldizer Ashtar Sheran, que abandonara o
Comando que era sua responsabilidade, deixando a Terra à
mercê do mal, permitindo o triunfo dos ambiciosos e violentos
sobre os justos, o fim de guerreiros bem-intencionados como
ela e Joshua. De boas intenções o inferno está cheio: acabava
por se ver obrigada a concordar com o velho ditado; lá estava
ela, cheia de boas intenções em um inferno. Não conseguia
chorar mais de tristeza, apenas de revolta; morria vivendo.
Algo de diferente ocorreu entretanto na noite em que comeu
170
aquele animal semelhante a um coelho, após com seus poderes
fazer com que o predador fugisse ao vê-la e senti-la como uma
criatura muito mais terrível do que ele próprio: adormeceu
perto da fogueira que erguia todas as noites e sonhou pela
primeira vez desde que chegara em Nibiru...
O devaneio não podia ser melhor: estava na Terra, e seu exílio
não passara de um pesadelo, despertando nos braços de seu
amor; seu pai estava mesmo morto, mas Joshua bem vivo, e
vencera o Comando Ashtar, assim como a Stella Matutina, e se
tornara o guardião supremo do amado planeta azul, que entrara
em uma era de paz e prosperidade.
“Mãe?”, sim, também haviam tido um casal de filhos,
chamados Emmanuel e Margareth! Como era doce e
pacificador ouvir a voz de sua menina ou de seu menino
chamando-a, e como fora bom amamentá-los e niná-los!
Ao acordar em Nibiru, Joanna notou que estava bem suada
apesar do frio. Seu sorriso, presente durante o sono, se
extinguira ao voltar à realidade. Contudo, o fato de sonhar
acendeu uma luz em sua alma, como se isso tendo ocorrido
fosse um sinal de que alguma coisa iria mudar. O quê?
Racionalmente era impossível ter alguma esperança. Todavia,
se sobrevivera por tanto tempo naquele mundo hostil e
primitivo, devia ter sido por alguma finalidade. Ainda podia ter
fé? Ao menos voltara a sonhar, conquanto não pudesse
compreender com precisão o conteúdo de seu sonho...

Apollyon, ainda imerso em sua cápsula de gestação, já refletia


e maquinava; estava bem desperto, embora não abrisse os olhos
e não falasse. Graças aos seus poderes precoces, voltou-se para
dentro e, com tempo à disposição, foi pacientemente
vasculhando sua memória celular e as informações contidas nas
nanomáquinas, conseguindo a um certo ponto obter inúmeras
lembranças e impressões de Joshua, ora como se o tivesse
conhecido, ora como se fosse o próprio, o que o aterrorizava:
171
sabia não ser ou não queria ser Joshua Christiansen ou Samael
Gibor, mas se sentia em determinados momentos como um
prolongamento, não como um indivíduo. Chegou à conclusão
que eram dois seres diferentes, um ainda puramente biológico,
destinados a compartilhar de uma mesma alma, que ficara com
a consciência original; e um corpo sem espírito era certamente
muito menos vantajoso, considerando que por mais que um
fosse resistente apenas o outro seria eterno, e isso lhe
provocava uma profunda angústia. “Afinal quem sou eu? Todos
os seres humanos em algum dia de suas vidas se perguntaram
isso, porém a minha situação é outra. Qual a minha verdadeira
identidade? Não sou um irmão gêmeo; e não sou ele. Não tive
mãe e nem pai, por mais que Orifiel tente me enganar com seu
discurso. Sei quem ele realmente é, o assassino de Joshua,
daquele que está em posse de nossa alma. Porque hoje não
posso dizer que tenho uma alma...Sou um corpo, e nada mais.
Deveria ter sido criado com Joshua Christiansen vivo, e então
poderíamos nos tornar um só. Mas Orifiel me criou depois da
execução, e agora Joshua está sem um corpo, e eu sem uma
alma. Preciso encontrá-lo para viver; sem nosso espírito, não
sou mais do que um robô de carne e ossos, minha existência irá
se desmanchar após a morte...Como pode haver vida numa
circunstância dessas? Joshua é minha alma, e eu a desejo mais
do que qualquer outra coisa. Aliás, é a única coisa que desejo.”,
precisava buscar sua alma, ir atrás da consciência de Joshua.
Ao contrário dos que já nasciam com um espírito, teria que
lutar pelo seu, por sua transcendência.
Quando encontrasse o espírito do original, pretendia lhe
propor pacificamente a fusão, na qual iria prevalecer no fim a
consciência do clone, por se tratar de uma versão aperfeiçoada.
Caso Joshua não concordasse, o absorveria à força.
O ódio por Orifiel e pelo Comando Ashtar, por sua vez, foi
crescendo, estimulado pela agonia dos últimos momentos de
Joshua, acessado por Apollyon todo o sofrimento que ficara
172
impresso nas células do fatídico fio de cabelo.
Quando enfim o clone fico pronto, considerado perfeito em
todos os aspectos, o manipulador veio usando corpo de
Shekinah, acompanhado por alguns andróides. Estes o
retiraram do tanque onde ficara por tanto tempo e o secaram
com toalhas. Manteve as pálpebras cerradas, ainda que
estivesse bem acordado, até receber o convite: “Abra os olhos,
Apollyon. Este é seu momento. Chegou a hora de ver como é o
mundo. Sou sua mãe, e estou pronta para recebê-lo se quiser
me dar um abraço.”, o clone de Joshua continuou com os olhos
fechados por mais alguns segundos, em silêncio, soltando a
primeira resposta ao finalmente abri-los: “Infelizmente sei
como é o mundo. Ainda que os meus pés não tenham nunca
pisado nele, os pés daquele a partir do qual fui feito pisaram
em brasas quentes, e consigo me lembrar de quase tudo. Há
poucos espaços vazios em minha consciência...”, diante de tais
palavras, Orifiel ficou um pouco apreensivo, enquanto fazia um
sinal para os andróides se afastarem de Apollyon, que
continuou: “O problema é que um desses espaços é grande
demais, seria a parte do meu ser onde eu poderia repousar,
onde residiria minha alma; porém não tenho direito a nenhuma
espécie de descanso: sou uma chama fugaz, uma máquina em
atividade frenética, vulnerável ao vento e às águas; contudo,
preciso nadar por um oceano a fim de chegar ao meu objetivo,
e não tenho um pai para me aconselhar e nem uma mãe para
me dar carinho. Não tente vir com mentiras, assassino Orifiel.”
“Tinha que ter esperado esse tipo de reação...Mas acho que
fiquei um tanto cego com o meu projeto, com as minhas metas,
e não levei em conta que algo poderia dar errado! Ele me
odeia! Afinal, tendo sido estimulado desde o início a
desenvolver poderes psíquicos em um alto grau, tanto pelo soro
como através das nanomáquinas, foi com certeza capaz de
acessar as memórias de Samael. Talvez devesse ter procedido
com mais calma...Será possível que me verei obrigado a
173
destruí-lo, uma criação tão perfeita? Se quer me destruir, não é
perfeito...Apesar que nunca poderá me destruir. É possível que,
sedando-o, se for mesmo necessário, consiga corrigir ao menos
alguns dos erros, introduzir memórias e impressões falsas para
substituir as de Samael, intensificar a lavagem cerebral, não
permitir que reconheça minha mente e minha energia em
diferentes corpos...É o que espero.”, refletiu o manipulador,
indagando à sua criatura: “Está sendo injusto ao me chamar de
assassino. Quem me matou primeiro foi Samael. Só que meu
espírito é mais forte do que o de qualquer outro indivíduo, e
por isso consegui retornar ao mundo dos encarnados. Minha
força se deve ao fato que não dependo de um corpo físico fixo
para me manifestar na matéria. Transcendi todo o apego à
carne, e dessa forma posso utilizar todos os corpos que se
encontram à minha disposição, permanecendo acima deles.”,
ao que Apollyon replicou: “Quase todos. Nunca será capaz de
utilizar o meu. Não pode transformar em fantoches vivos os
que possuem capacidades superiores às suas.”
“Você está certo nisso. Mas está errado quando diz que não
tem alma. Não se deixe levar por um rancor que não é seu.
Você e ele são indivíduos diferentes, portanto não possuem
nem nunca possuirão a mesma alma.”
“Sou só um robô, um pouco mais complexo do que esses
andróides que estão nos olhando.”
“Os olhos deles o incomodam?”
“Toda mecanicidade me incomoda. Ainda mais porque terei
que provar para mim mesmo que posso deixar de ser uma mera
máquina orgânica.”
“Tente me entender e valorizar o meu esforço. Eu não teria
tanto trabalho com uma simples máquina, já temos muitas por
aqui.”
“Você queria uma máquina de guerra ideal, que obedecesse
todas as suas ordens, sei muito bem disso. E tentou fazer uma
lavagem cerebral em mim, antes mesmo que eu viesse à luz.”
174
“Qual o mal em querer um soldado perfeito para trazer a paz e
a justiça a diferentes mundos?”
“Não sou um soldado. E não estou interessado na paz
universal. Com a minha própria paz, já me daria por satisfeito.”
“Comigo, você encontrará a paz que procura. Perceberá que
tem sim uma grande alma.”
“Não quero nada de você. Não pense que sou grato por ter me
criado. Não pedi para nascer. Você não é Deus para saber
quando alguém deve nascer. E muito menos irá decidir quando
irei morrer.”, a sala foi arrebatada por um clarão dourado e uma
violenta explosão. Os andróides que acompanhavam Orifiel
foram feitos em pedaços, e mesmo este ficou seriamente ferido.
Enquanto outros membros do Comando Ashtar vinham acudir,
Apollyon deu a ordem, sem temer qualquer conseqüência:
“Liberação de Poder. Nível Sete.”, não houve luta: o corpo de
Shekinah terminou dilacerado por aquele guerreiro de espada
luminosa, que ao se manifestar com todo seu fulgor lembrava
um arcanjo, revestido por uma armadura branca com detalhes
em dourado, as joelheiras pontiagudas, quatro asas de penas
cândidas nas costas, os cabelos longos até o meio das costas em
um loiro incandescente, os olhos de fogo amarelo, sem pupilas;
em sua testa, um diamante de pura claridade alva, ao passo que
sobre sua cabeça girava um lótus multicolorido cujos raios que
disparava desintegravam quem se aproximasse. Uma
hecatombe estava próxima.
“Mesmo que tenha destruído o corpo de Shekinah, não vai me
vencer! Não pode me alcançar! Sua vitória só pode ser parcial,
por mais corpos que destrua não conseguirá chegar a mim, e
algum dia o pegarei de surpresa e farei com que volte a
dormir!”, bradou Orifiel. “Repense, e seja meu aliado,
Apollyon. Se não quer ser tratado como filho, tente ao menos
me suportar. Ou me verei obrigado a sedá-lo ou a fazer algo
pior, se não houver como corrigir os seus defeitos, que são
responsabilidade minha, e justamente por isso não posso deixá-
175
lo à solta. No fundo, só quero o seu bem e o bem de toda a
humanidade.”
Sem medo, como um espelho de aparente calma absoluta no
qual não se viam de longe algumas discretas ranhuras de
melancolia, Apollyon moveu sua espada de empunhadura
emplumada e esta não cresceu no plano físico, e sim no
espiritual, atravessando as barreiras entre as realidades e não
apenas se estendendo como se multiplicando: milhares de
lâminas deixaram sem saída o inimigo onde quer que ele
estivesse, perfurando-o de todas as direções. Orifiel se achava
em uma dimensão que lembrava o espaço sideral, escura, com
algumas luzes comparáveis a estrelas, que eram as essências
íntimas de cada indivíduo que manipulava; fitando-as, mais de
uma ao mesmo tempo, conseguia controlá-los. No entanto,
estas foram se apagando e desaparecendo de sua visão, para
seu profundo desespero, à medida que sua alma era atravessada
e retalhada. Nunca sentira uma dor tão intensa antes, que
cortou em pedaços toda a sua consciência, impedindo seu
raciocínio, e não havia mais portanto forma de se expressar;
faltavam não somente as palavras como toda a sua inteligência,
e não conseguiria tão cedo voltar à Terra...Certamente não com
sua memória, pois só seria possível retornar algum dia
reencarnando, e não mais como ser humano: seu espírito
sofrera danos tão profundos que seu próximo renascimento só
poderia ocorrer em um corpo de animal. “Adeus, Orifiel...”,
com uma ponta de fria ironia, Apollyon se despediu de seu
criador.
Estavam na que entre as naves-mães do Comando Ashtar era a
mais próxima da Terra. Possuía em seu interior laboratórios,
centros de estudo, meditação e treinamento marcial,
alojamentos para naves menores e era também uma espécie de
arca de Noé, contendo florestas artificiais que tinham como
função preservar diversas espécies animais e vegetais de
diferentes planetas. Conseguia se manter invisível e inacessível
176
a qualquer detecção por parte dos governos da Terra graças à
sua avançada tecnologia, não habituada a enfrentar maiores
problemas naquele sistema solar até a rebelião do clone de
Joshua, que não encontrou ali adversários à altura. Poucos
soldados de Ashtar conseguiram fugir, em sua maioria
desintegrados, rasgados ao meio ou esmagados. Não havia
como resistir, ainda mais com a surpresa, que somada ao
estouro de poder provocou conseqüências devastadoras.
Apollyon não machucou as plantas e nem os animais a bordo,
concentrando-se em aniquilar a presença humana e de
inteligências comparáveis, alguns seres de orbes distantes que,
do seu ponto vista, mereciam ser exterminados por colaborar
com um projeto que não passava de ambição e vaidade: o ideal
de trazer a paz e a justiça aos mundos não passaria de uma
desculpa para exercer a própria vontade sobre outros povos e
manipulá-los, contribuindo para o crescimento dos egos e para
a geração de benefícios gordos dirigidos a uma minoria.
Mesmo Ashtar nunca deveria ter interferido na Terra, os povos
tinham que ser deixados em paz, e talvez o Supremo
Comandante percebera isso e por tal motivo se retirara;
contudo, esta atitude fora de irresponsabilidade e
desconsideração para com os pequenos: como partira sem dar
boas explicações? Era assim o responsável pela morte de
Joshua e de todos os inocentes que haviam perecido nos
conflitos entre a Stella, a Sapiens e o Comando. No entanto,
não que fosse se tornar um paladino e lutar por ideais
verdadeiros contra os inimigos que considerava hipócritas. Seu
único desejo era o de encontrar sua alma, e para isso não
mediria esforços, não se imporia limites, e estava, ao promover
o massacre na nave-mãe, não só se vingando do Comando
Ashtar como principalmente impedindo que algum deles o
atrapalhasse no futuro.
Seu oponente mais trabalhoso foi um alienígena que não
mostrava uma forma fixa, transparente durante a maior parte do
177
tempo, capaz de atravessar paredes e qualquer objeto e de
diminuir e aumentar de tamanho, além de gerar
prolongamentos perigosos; depois de inúmeras fugas, tentou
perfurar a cabeça do clone, atacando-o pelas costas, pensando
que o pegaria desprevenido, porém, mesmo lutando contra
outros simultaneamente, Apollyon o prendeu em suas asas, que
ao baterem fizeram com que sua dissimulada existência
desaparecesse em um vento de luz.
Encerrada aquela Noite de São Bartolomeu espacial, reduziu
seus poderes, voltou à aparência normal e se vestiu com o
uniforme de um dos soldados abatidos. Em breve esperava se
livrar de qualquer resquício do Comando Ashtar, inclusive
daquele traje, mas antes disso precisava descer à Terra e...Falar
com Alexander von Strauffenberg. O que pretendia com a
Stella Matutina? Esperava que não o confundissem com
Joshua, talvez no começo isso seria inevitável...De qualquer
forma iria, e quem sabe a magia o ajudaria a localizar sua alma.
Apesar de ter usado seu poder no sétimo nível, não
apresentava quase nenhum desgaste. Era bem mais resistente
do que o original. Teria orgulhado seu criador, que nunca mais
poderia ver ou ouvir seu filho.
Assim que entrou na nave que o levaria ao planeta azul, uma
certa presença começou a se insinuar em sua consciência...E
aquilo o incomodou, trazendo-lhe uma ternura que conseguia
mas não queria compreender, ladeada pela saudade: era Joanna;
sua face, seus cabelos, sua voz, seu coração. Ela se introduziu
aos poucos, porém quando o quadro ficou completo, foi difícil
dar a partida, assaltado por uma violenta angústia. De repente,
perdeu a consciência por alguns instantes, e ao recobrá-la já
estava no espaço; provavelmente acionara o veículo como um
sonâmbulo. Verificou seu destino, e para seu alívio estava
mesmo se dirigindo à Terra. Como ela estaria em seu exílio?
Indagou-se não só por curiosidade. Algum dia iria conhecê-la?
Que mulher iria querer um homem sem alma? Refletiu, entre as
178
estrelas, que estava condenado à solidão.

Pela primeira vez Joanna conseguia sair de seu corpo físico


em Nibiru, consciente de si na outra realidade, a caverna nesse
contexto, ao invés de escura e áspera, apresentando paredes
mais lisas e claras, cristalinas. Só que ao mesmo tempo que
para a visão eram mais agradáveis, mais sublimes e menos
ameaçadoras, emanavam um ar gelado que penetrava em sua
alma e a fazia sentir lenta e frágil, como se fosse feita de vidro.
A fogueira acesa no plano da matéria não tinha efeito no astral,
o que deixava um frio puro e nu, e ao sair flutuando da gruta
por sobre a paisagem nevada e enevoada sentiu que em breve
se iniciaria uma tempestade de gelo. O medo nos pequenos
seres presentes ao redor, que começavam a se esconder, se
antecipava à catástrofe. Assim como ela, sabiam o que estava
para ocorrer. E nenhum se encontrava em espírito, estavam
acordados, apesar das trevas, pequenos herbívoros que
aproveitavam o sono dos predadores para se alimentar, visto
que as maiores feras da região eram diurnas. Alguns entre
aqueles animais, que lembravam ouriços brancos, subiam pelas
plantas com suas garras e se alimentavam de pedacinhos
destas; parcimoniosos em suas refeições, a evolução os dotara
de uma capacidade de sobreviver com pouco alimento,
adaptando-os ao clima cruel do planeta. Sabiam que não
podiam abusar da vegetação, um tanto escassa, e havia espécies
que se alimentavam também de pedras, digerindo minerais
puros com alguma facilidade, dotados de uma saliva e sucos
gástricos potentes, que serviam além de tudo como arma contra
os carnívoros.
Naquela paisagem, Joanna voltou a experienciar alguma
liberdade, e não precisava temer pela tempestade, que não
poderia afetar seu corpo astral. A solidão que era absoluta e por
isso, tirando proveito da oportunidade, se concentrou e tentou
localizar o espírito de Joshua, porém nenhum sinal, pois sua
179
mente e seu espírito não conseguiam sair de Nibiru, como se
houvesse um campo de força em volta do planeta que a
prendesse. Voou para bem alto, e ao chegar nos confins com o
espaço foi catapultada para perto da terra outra vez, quase
retornando ao corpo físico ao perder o foco com o susto. Talvez
não fosse uma barreira natural, e sim uma criação do Comando
Ashtar, para que mesmo em espírito permanecesse exilada.
Caso fosse natural, uma restrição a todos os seres que viviam
em Nibiru, cogitou que quiçá fosse mais fácil de ser quebrada
por não se tratar de uma nativa daquele mundo. Não estava
arraigada, apegada ao orbe. Na possibilidade de um campo
artificial gerado por Shekinah e seus aliados, seria resultado de
uma força psíquica conjunta muito grande, e certamente
haviam calculado que o suficiente para mantê-la presa. Dessa
forma, sua punição, em conjunto com a de Joshua, seria ainda
mais atroz: ficariam distantes um do outro enquanto ela
vivesse. “Ou será que a situação é ainda pior? E se, depois que
morrer, continuar presa aqui?”, um questionamento que a
apavorava. A esperança tênue que se formara como um
rascunho após o primeiro sonho que tivera em Nibiru se
desenhara logo como uma chance de poder se comunicar com
espíritos elevados, e de preferência com o de Joshua. A
realidade astral apresentava, no entanto, seu espírito
restringido, e num primeiro momento se entristeceu. Só que
como parecia condenada a permanecer ali, chegou à certeza
que devia ao menos tentar, e que fosse artificial ou natural,
tentaria ultrapassar o muro que a separava do restante do
universo.
Apesar dessa vontade, passou a divagar em recordações, o que
levou à formação de algumas formas de pensamento, espectros
com as aparências de seu pai, de seu amado e de seus
companheiros. Nem se deu conta quando a tempestade teve
início, e não cogitou os efeitos astrais além do que era
produzido no plano físico. No centro do furacão, formou-se
180
uma figura sombria, cinzenta, de olhos relampejantes, e algo
como uma barba, que se estendia embaixo de seu queixo, se
mostrava em pura eletricidade. Na matéria, raios pulverizavam
rochas. Notando um intruso por perto, aquele ser, que tinha
dezenas de metros de altura, disparou sua energia e Joanna foi
atingida em cheio, por pouco não perdendo a consciência.
Olhou à sua volta e os fantasmas de Emmanuel, Joshua e Yeats,
entre outros, assumiram feições turvas e aparências sinistras.
Depois passaram a emitir um brilho ofuscante, e se
transformaram esferas eletrificadas. Concentrou-se e dissipou
estas energias hostis, enfim percebendo o gigante elemental da
tempestade, que dirigia sua ira severa contra um ser que devia
se limitar ao plano material, e que do seu rígido ponto de vista
estava interferindo em seu trabalho.
A que para ele era uma alienígena não se intimidou, se
defendendo com uma barreira psíquica que dispersava os
relâmpagos agressivos que vinham em sua direção. “Não quero
lutar com você. Estou indo embora. Não se preocupe.”, Joanna
disse, com toda paciência e compreensão. A entidade que ainda
não parecia convencida e buscou o corpo físico da humana. Ela
conseguiu ler algo do que ele estava pensando, sentiu suas
intenções e, assustada, resolveu voltar de imediato à carne.
O elemental da tempestade fez cair violentos raios sobre a
caverna onde se encontrava o corpo físico de Joanna, que até
aquela noite nunca fora atingida e sempre parecera resistente. A
paranormal teve tempo de criar um campo de força que a
protegeu durante o desabamento. A fogueira se apagou, mas ao
menos as rochas que caíam puderam ser repelidas.
Intensificando seu fluxo de energia vital, para sobreviver
decidiu usar seus poderes em um nível além de tudo o que
fizera até então, pela primeira vez em sua vida aplicando uma
técnica de teletransporte. Se continuasse por perto, mesmo
sobrevivendo à destruição da gruta, a entidade continuaria a
massacrá-la com ventos e raios, até que sua proteção não
181
suportasse mais. Embora correndo o risco de não conseguir se
teletransportar com perfeição, e as partículas que constituíam
seu corpo poderiam se perder por onde não tinha idéia,
precisava arriscar. Se não tentasse, morreria de qualquer forma.
Mentalizou-se do outro lado do planeta, no hemisfério onde
era verão, seu corpo se elevou e uma aura azul de brilho
intenso a envolveu antes de fazê-la desaparecer, para a surpresa
do agressor, que porém ficou satisfeito, pois atingira seu
objetivo, afastando a presença incômoda de seu ambiente. Da
caverna restaram os destroços.
Joanna teria que achar um novo lar. Suas partículas se
reagruparam debaixo de um céu amarelento, sua aura vermelha
em seu retorno. Na sua perspectiva, fora algo instantâneo; o
cansaço repentino que não estivera presente no segundo
anterior. Encontrava-se em uma área seca e deserta, a
temperatura um calor abafado insuportável, mas conseguiu
sorrir e até rir de leve com a situação. Afinal, ainda que fosse
necessário andar por alguns quilômetros até encontrar uma
nova gruta habitável, o teletransporte fora um sucesso e por
isso estava viva. Comparada à aplicação de uma técnica tão
complexa e delicada, a vitória sobre o seu corpo cansado seria
obtida com facilidade; buscou se convencer disso, além do que
espiritualmente ganhara forças para superar as barreiras que se
impunham sobre sua existência. “Consegui transferir o meu
corpo com o pensamento de um lado do planeta pro outro. Por
que não transportar o meu espírito pra fora do planeta?”, e
agradeceu ao elemental agressivo, porque aquela criatura lhe
provara do que era capaz, as adversidades muitas vezes vinham
para fortalecer o espírito, e se persistisse tinha a convicção de
que ao menos sua alma lograria sair do exílio.
Dentro do orbe, pudera transportar com sua vontade primeiro
seu espírito e depois seu corpo. Quem sabe, por analogia, era
extremamente difícil mas não impossível, depois que
conseguisse fazer uma viagem astral para outro planeta, seu
182
teletransporte a tornasse capaz de superar as imensas distâncias
entre os mundos? Passaria assim de um planeta para outro,
física e instantaneamente. “Melhor ir devagar. Mal acertei um
teletransporte, e já estou pensando em me teletransportar daqui
pra Terra? Pelo que sei sobre a técnica, não há registros de algo
do gênero, ou seria fácil para os grandes paranormais vencer a
barreira do espaço sideral e explorar outros planetas. Até os
integrantes do Comando Ashtar usam naves. Quanta energia
seria necessária pra um teletransporte entre sistemas solares
diferentes? Talvez custe a energia da própria vida. Não que
deva me restringir, mas não posso ser precipitada e acabar num
buraco negro. O que devo fazer é continuar treinando e me
aperfeiçoando...”, deu continuidade à sua reflexão.
A caminhada que se seguiu foi até menos longa do que
esperava, encontrando após meia-hora uma abertura em uma
formação rochosa onde pôde se sentar. Depois pensaria em
matar a sede, respirando fundo sem se importar tanto com a
poeira. Pois estava viva: isso era o fundamental.

Tarde da noite, as defesas contra objetos aéreos do casarão


dos von Strauffenberg, que contavam com mísseis e canhões
eletromagnéticos, perceberam uma nave não-convidada se
aproximando e a abateram. Contudo, seu tripulante solitário
sobreviveu à explosão: parecia-se com um anjo, e as armas
foram ficando inativas à medida que se aproximava, flutuando
sem bater as asas, até que pousou no meio do jardim.
Seguranças se juntaram em volta do indivíduo, cercando-o com
fuzis, pistolas e metralhadoras.
“O que quer que deseje nesta casa, não terá.”, disse um dos
homens.
“Quero falar com Alexander von Strauffenberg.”, Apollyon
respondeu com toda a calma.
“Nosso senhor se encontra descansando neste momento. Para
seu próprio bem, é melhor que vá embora. Não parece alguém
183
que tenha relação com os negócios da família.”
“Tenho relação com negócios mais profundos.”, e um dos
homens começou a tremer, e se questionou mentalmente: “O
que é essa coisa? Não parece humano...”
“Seja o que for, telefone para a empresa e agende uma
entrevista.”
“Por acaso tenho cara de quem agenda entrevistas com o seu
patrão?”
“Se é algum mutante criado por terroristas, não vai
sobreviver!”, o líder do grupo, que não tinha idéia das
atividades secretas de Alexander, pois era um simples
empregado contratado para lidar com ladrões e problemas de
segurança corriqueiros, tentou atirar, mas nenhuma bala saiu.
“Atirem!”, ordenou aos outros, só que nenhuma arma
funcionava. O clone de Joshua moveu sua mão direita, o
espaço ao redor deu a impressão de se curvar e todos caíram.
No entanto, um, de cabelos vermelhos repicados, se levantou
quando o invasor começou a se afastar. Apollyon, de costas
para os que deixara para trás, parou ao perceber que esse
sujeito fora o único a continuar consciente.
“Você não é só um segurança...”, disse, e encarou o indivíduo,
que jogou fora os óculos escuros e sorriu, sua pele se tornando
verde e escamosa, uma cauda saindo da base da coluna e
rasgando a parte traseira de sua roupa, garras crescendo em
suas mãos e uma língua bifurcada se manifestando ao falar:
“Você é do Comando Ashtar, conheço muito bem esse
uniforme.”
“Posso explicar...”, contudo, o reptiliano atacou; parecia estar
sedento de sangue, nem um pouco interessado em argumentos.
“Vou vingar nosso Superior Oculto...”, palavras ásperas
deslizaram de seus lábios ofidianos.
A essa altura Alexander já estava a par da invasão, o alarme
da casa tocara, e pediu à sua esposa e a seus filhos que se
refugiassem em uma parte dos subterrâneos da residência que
184
reservava para esse tipo de ocasião, acessível por meio de uma
passagem secreta: havia um livro em uma das estantes do
escritório do grão-mestre da Stella que era na verdade, ao ser
aberto, um controle remoto, que ao abrir uma das paredes
daquele ambiente revelava uma escadaria que levava aos
aposentos destinados aos seus familiares em caso de perigo. O
mesmo controle abria outras paredes da mansão,
disponibilizando outras passagens secretas, como a do corredor
que conduzia ao principal salão de reuniões da Ordem.
“Parece ser um ataque terrorista, tanto que neutralizaram
nossos mísseis. Por favor, fiquem lá embaixo.”
“Mas por que iriam querer matar o senhor, papai?”, indagou
um dos meninos, de oito anos.
“Querido, o seu pai é um homem influente, com muitos
negócios. Isso atrai inveja e outros problemas. Algumas
pessoas não suportam quem é bem-sucedido, além daquelas
que querem se promover às custas do sucesso alheio.”, a
senhora von Strauffenberg deu a resposta que o marido pensara
em dar, sendo mais rápida do que ele ao replicar à criança.
Alexander não demonstrou, mantendo a seriedade no
semblante, mas ficou muito satisfeito. Era uma mulher alta e
sofisticada, os cabelos loiros presos num coque, já trabalhara
como modelo e não se destacava apenas pela beleza, por sua
cultura sendo a pessoa com quem mais o grão-mestre da Stella
gostava de conversar, a esposa se focando no mundo das artes.
Camilla conhecia muitos pintores, fotógrafos, músicos,
escritores, estilistas e havia sido a musa inspiradora de um
escultor, ainda apaixonado por ela, que acabara preferindo o
cavalheirismo e a segurança de Alexander a um artista
descabelado e que gostava de viajar pelo mundo, pelo qual fora
muito atraída, mas que colocava sua arte sempre em primeiro
lugar e costumava ser um companheiro fascinante só que um
tanto negligente e desligado. Seu marido não, era atencioso,
dedicado e nunca se esquecia do seu aniversário e de outras
185
datas importantes. Apesar de ser um homem de negócios, se
mostrava a seu modo um homem quente, intenso e artístico.
Não era ciumento, e nem ela; o casamento dos dois, que tinha
dez anos, se baseava na confiança. Se havia algo que o grão-
mestre conseguia fazer muito bem, era satisfazer a todos que
estivessem à sua volta, competente como empresário (atividade
na qual pouco aparecia em público, preferindo usar
hologramas), presente como esposo e atuante como mago.
No jardim, o reptiliano não foi páreo para Apollyon, que por
prazer não quis liquidá-lo rapidamente com sua espada, por
isso a luta durou mais do que seria o natural: após diversas
esquivas, que cansaram o oponente, primeiro cortou-lhe a
cauda, em seguida um braço, depois o outro; e, enquanto a
criatura esperneava de dor e fúria, derrubou-a e, pisando em
seu peito, imobilizando-a com o peso de sua energia,
atravessou-lhe a garganta com sua lâmina. O adversário parou
de gritar e de se agitar, seus olhos se arregalaram e expirou, a
língua pendendo para fora da boca.
“O que o senhor deseja de nós?”, Bernard que veio se
aproximando após a execução, da qual fora testemunha.
“Também pretende me enfrentar?”, indagou o invasor,
resplandecente na escuridão, sem se voltar para o mordomo,
que chegara às suas costas.
“Não. Por ordem minha, meus homens da Stella ficarão à
espreita, e Bernard à parte.”, Alexander von Strauffenberg saiu
das folhagens próximas, aparecendo à frente de Apollyon.
“Ouvi que quer muito falar comigo. Mas afinal quem é você?”,
e, antes de qualquer resposta verbal, o clone reverteu a
transformação proporcionada pelo incremento de poder,
regressando à aparência idêntica à de Joshua, a não ser pelos
cabelos mais compridos.
“Mas é Joshua Christiansen! Como é possível? Terá o
Comando Ashtar feito nele uma lavagem cerebral para que
viesse de imediato nos destruir?”, inquiriu de Payens.
186
“Não tire conclusões precipitadas como sempre, Bernard.
Observe com calma, pode ficar despreocupado, ele não
demonstra neste momento a mínima intenção de nos agredir. A
aura desse indivíduo, apesar da aparência física deles ser quase
a mesma, é muito diferente da de Christiansen, que imagino
que tenha sido executado.”
“O senhor é mesmo perspicaz. Sim, ele foi executado.”,
Apollyon replicou.
“Mas você...Essa sua forma não é uma ilusão.”
“Sou um clone de Joshua, criado por Orifiel.”, a resposta
surpreendeu tanto o mordomo quanto o grão-mestre, como de
hábito o primeiro demonstrando seu espanto e o segundo
permanecendo praticamente impassível, apenas franzindo um
pouco a testa.
Apollyon expôs sua história e situação. “Bem que ele me
pareceu familiar num primeiro momento. Mas quem iria
imaginar que algo assim fosse possível?”, refletiu Bernard.
“Impressionante a biotecnologia do Comando Ashtar. Aqui na
Terra, nunca conseguimos produzir um clone humano com tal
nível de apuro. Uma pena, para eles, que a criatura se voltou
contra o criador. A velha história de Frankenstein! Que fique
claro que considero o cientista como o verdadeiro monstro.”,
observou Alexander.
“Não preciso de meias palavras ou de palavras amenas. Sei
bem que sou uma máquina biológica, uma criatura que ainda
não encontrou a própria alma e que por isso pretende buscá-la
de forma incansável. É por esse motivo que vim até aqui.
Talvez a magia possa me ajudar no que é impossível para a
tecnologia.”, replicou Apollyon.
“Você é um ser diferente de Christiansen. Não é por ter a
mesma bagagem genética que possui a mesma alma. Sua
personalidade é completamente distinta. Não se conhece ainda
o bastante para perceber isso, talvez...”
“Personalidades são máscaras que ficam na superfície. A
187
essência se encontra na profundidade, nas entranhas do ser, no
núcleo de seu mundo interno.”
“Podemos sim ajudá-lo a encontrar sua essência. Mas não
garantimos que possamos rastrear o espírito de Christiansen.
Na verdade, o que me parece é que, mesmo tendo uma alma,
você quer absorver a dele porque a simples existência do seu
original o perturba. Você quer ser uno e coerente. Deveria
compreender que nos dias de hoje não há unidade ou coerência.
Na realidade nunca houve, a vida é um fluxo caótico e
violento, mas já existiram ilusões a esse respeito, um teatro que
o ser humano montou, cheio de métrica e regras, quando a meu
ver o único teatro lógico, por paradoxal que possa soar, é o do
absurdo. Há racionalidade o bastante nos meandros do caos.”
“Não procurei vocês para ouvir suas interpretações. Estou
aqui porque creio que serão úteis e estão em melhor situação
do que a Sapiens. Se Yeats estivesse vivo, procuraria a
Sapiens.”
“Yeats foi um fracassado, que tombou por acreditar que
poderia domar o mundo, a fera selvagem que é o mundo. Não
tenho essa ambição. E nem pretendo me tornar imperador.
Minha vocação é para conselheiro, ministro de estado, e suas
concepções não me importam, muito menos me ferem, o que
me maravilha é a sua força. Com a morte de nosso Superior,
estamos órfãos...Gostaria de nos liderar, de ser nosso rei?”,
proposta que chocou o chanceler: “O que está dizendo,
senhor??”
“Não se meta, Bernard. Sou o supremo sacerdote desta
Ordem, e decido qual a nossa doutrina.”
“Não vim aqui para me tornar um Superior Manifesto. Só
quero encontrar minha alma, sair deste mundo de sombras.”
“Reflita: mesmo morto, Joshua Christiansen arranjará um
meio de voltar a este mundo caso veja seu clone agindo como
senhor da Terra. Tomará o corpo de algum fraco, reencarnará,
ou influenciará encarnados...De alguma forma, ainda que esteja
188
adormecido, em letargia, despertará e agirá. A consciência dele
não ficará tranqüila ao sentir a sua existência, Apollyon. Por
enquanto ainda não deve tê-la sentido porque você acabou de
surgir e sim, está nas sombras! Mas quem garante que não
sentiu ou que não sentirá em breve? De todo modo você pode
agilizar, acelerar o processo. Christiansen pensa muito, por isso
é preciso que o leve à ação sem permitir que pense demais.
Imponha-se sobre os fracos, e ele irá se culpar. As portas estão
abertas: a Sapiens foi esmagada, o Comando Ashtar em nosso
sistema se encontra debilitado; vamos aproveitar o momento
para unificar as nações e impor nosso domínio, rumo à
extinção dos fracos e dos falsos virtuosos, rumo à natureza, que
é o território da caça do leão, não o do idílio bucólico.”
“Você é um defensor de um mundo sem fronteiras, habitado
por espíritos superiores, que escravizarão os inferiores
enquanto estes existirem. Eu não poderia conceber uma ordem
mais rígida. Isso não entra em contradição com a sua
concepção de vida? Por acaso quer dar ordem ao caos? Não
concebo ambição maior do que essa, ainda mais para um
crítico de Yeats e seu grupo.”
“Não vê que não queremos mudar ou controlar o mundo,
apenas restabelecer o fluxo natural das coisas? O ser humano
perverteu o caos, criou leis a fim de preservar o fraco; nós só
teremos escravos enquanto a natureza nos permitir, e a
unificação política do mundo civilizado não significa unidade
de espírito: é a abolição das limitações impostas ao indivíduo,
que deixará de se curvar às leis do país para criar as suas
próprias. Alguém como você é perfeito nesse aspecto, é o
homem superior que procuramos, pois na busca por sua alma
pretende em verdade criá-la; não se conforma com o fato da
sua existência ser quase igual à de outro, pretende criar a sua
vida, e deseja destruí-lo para apagá-lo da Existência. Não
importa quem tenha vindo antes: o universo passará a
reconhecer apenas Apollyon; Joshua nunca terá existido. Do
189
mesmo modo, no futuro os superiores se afirmarão e os fracos
não serão, nunca terão existido. Isso não será hoje, levará
tempo, não verei a humanidade natural, amante dos impulsos,
mas minha satisfação está em pavimentar o caminho para essa
nova era. Assim sendo, talvez serei considerado digno de
reencarnar nesse mundo justo, justo com a natureza, não de
acordo com as pobres concepções humanas. Teremos uma fase
de ditadura que servirá para que os senhores se tornem homens
superiores; há alguns senhores atualmente, como eu, porém
homens superiores, reis como você, Apollyon, são mais raros.”
“No fundo, pretendem um mundo de iguais.”
“Nada disso. Cada um será único, e a convivência não
precisará ser pacífica. A paz é para os fracos, como os
reptilianos que se amalgamaram à massa humana. A ausência
da guerra leva ao tédio e ao suicídio. O homem que desejar
uma mulher, e vice-versa, poderá matar o seu ou a sua rival
para ter o seu ou a sua amante.”
“Pretendemos retomar a guerra contra a humanidade. E
Alexander sabe disso, o que o rejubila.”, interveio um
reptiliano que estivera oculto nas sombras, logo seguido por
outros.
“Na luta entre as espécies, que não haja fim. Que esta se
prolongue, como um confronto entre anjos e demônios, mesmo
além deste planeta, quando migrarmos para outro em razão do
fim do nosso sol. Nosso verdadeiro sol é o calor da batalha.
Que os homens superiores encontrem a melhor forma de
vencer os combates contra os reptilianos altivos. O Adversário
nos faz fortes, o Diabo é que estimula a busca e o
conhecimento. Que as batalhas se concluam com nossas
vitórias, e inclusive algumas derrotas serão vitórias no sentido
do que aprenderemos com elas, mas que o conflito não se
encerre, assim como nunca cessa a busca pelo saber.”,
complementou o grão-mestre.
“Nunca nos esqueceremos de Tyllia, que não admitia círculos,
190
pois a vida nunca se fecha. Sacrificou inclusive seu corpo
físico por acreditar nisso. Estamos certos que algum dia
conseguiremos trazê-lo de volta, ou ele mesmo retornará. Se
Orifiel pôde, por que não Tyllia? Os que entre nós pararam de
se mover estão mais mortos do que os mortos.”
“No aparente caos dos seus argumentos e nas contradições de
seus discursos, há sentidos. Há estradas na noite. Não preciso
concordar para compreender...E aceitar.”, Apollyon replicou.
“Temporariamente, me adequarei à coerência do caos.”
“Só espero não estar mais vivo quando se tornar nosso pior
inimigo...”, von Strauffenberg deixou um sorriso de ironia
amarga se espaçar.
“Se estiver, o ajudarei a crescer, mesmo que sua expansão
significa explodir.”
“Quando for a hora, nos lançaremos para destruí-lo e varrer
todos os vestígios de Samael Gibor deste universo. Mas antes é
mesmo preciso encontrar seu espírito. Não há como destruir o
que não vemos.” disse o reptiliano.
“Não tenho medo, desde que cultive esperanças de minha
existência persistir, de não ser um círculo...”, e Alexander
hospedou Apollyon em sua casa, alegando à esposa que este
era um de seus amigos mais antigos porém dos mais preciosos,
um colega de infância que não via há anos e que por isso ela
ainda não conhecia, que fora seqüestrado pelos criminosos que
haviam atacado a mansão. Após pagar o resgate, estavam livres
de ameaças.
“Será mesmo? Essa gente não pode voltar?”
“Amanhã vou falar com a polícia, mas não se preocupe tanto,
minha cara. Deus vela por nós, pela dádiva que é a nossa vida.”
“Muitas pessoas boas são assassinadas todos os dias. Confio
mais na polícia do que em Deus.”
“Mesmo com os policiais corruptos?”
“Pelo menos há os honestos. Deus não há, ou não parece
haver.”
191
“A convivência com intelectuais pode deixar a vida com um
sabor de ervas amargas. A fé e o sentimento também são
necessários.”
“Sabe muito bem que meus sentimentos são fortes, o que me
falta é fé.”
“Um dia fui como você.”
“Mas você também é um intelectual, só que um intelectual
místico.”, acariciando os cabelos de sua esposa, que estava com
a cabeça em seu peito, achou aquela definição divertida.
Camilla e seus filhos eram seu tesouro, e não os via como
empecilhos às suas metas e ideais, nem como pontos fracos, e
sim como uma base para suportar a existência. Ainda não se
considerava um homem superior, por isso precisava de um
apoio. Refletiu que o amor servia como um impulso, ao qual o
homem nunca deveria renunciar: cabia ao forte afirmá-lo.
Podia ainda não amá-los como deveria, mas se apoiar neles
era o primeiro passo para o impulso. Precisava tomar distância
para o salto, e assim iria aprender a amar.
“Um intelectual místico...”
“Isso mesmo. E não conheço ninguém tão altruísta. A maioria
não pagaria por um resgate de um amigo de infância.”, entre
suas muitas atividades e subdivisões, as empresas de von
Strauffenberg possuíam diversos setores de filantropia.
“Tendo recursos, que tipo de monstro não faria isso?”
“A maioria preferiria usar o dinheiro pra uma viagem.”
“Em que mundo vivemos, não é mesmo?”
“Pra mim que se dane o mundo. O que me importa é viver
com você. Cuidado, meu querido, porque às vezes você se
arrisca demais! Da próxima vez, deixa os seguranças e o
Bernard resolverem tudo. Fique com a gente no abrigo...”
“Se eu não tivesse aparecido, a situação ainda estaria sem se
resolver.”
“Mas você poderia se comunicar com os bandidos por
hologramas, sem correr tantos riscos, sem eles saberem onde
192
você está.”
“Há certos problemas que só se resolvem pessoalmente, a
presença é necessária. Tratar com bandidos não é como tratar
com sócios e funcionários.”
“Se há mais uma coisa que admiro em você, além do seu
altruísmo, é a sua coragem.”, ele a cingiu com seus braços, e o
leito ficou quente pelo resto da noite. Aparentando serenidade e
ao mesmo tempo intenso, Alexander evitou sentir pena de
Camilla, pois em vários aspectos a admirava e sentia uma
atração profunda por ela, física, espiritual e intelectual. Algum
dia poderia lhe falar sobre a Stella? A paciência era uma de
suas virtudes, e isso o aliviava.

Frio. Escuridão. Despertou de um sonho do qual não se


lembrava. Do que se lembrava? Seus nomes, sim, nomes, lhe
pareciam algo disperso e nebuloso, névoas cinzentas salpicadas
de vermelho fosco. Demorou algum tempo para perceber a
maciez do leito, a massagem sem movimento em suas costas.
Braços e mãos; suas roupas leves possuíam uma coloração
diáfana. Olhou ao redor e a mesma se expandia pelo ambiente,
enquanto que este não apresentava outros móveis além da
cama. Estava sozinho, tocava-o uma solidão serena, até que
entrou alguém, sem abrir a porta, o que não havia. “Seja
abençoado em seu retorno, filho.”, a voz e a vibração eram
familiares, mas custou a reconhecer aquele indivíduo, que ora
via como um velho, mas de fronte lisa e olhos vívidos de um
azul fulgurante, ora como um jovem alto de aparência
guerreira, armadura celeste cristalina, espada de lâmina violeta
flamígera, cabelos loiros compridos e olhos negros pontilhados
de luz, cintilantes estrelas internas, como no espaço.
“Ashtar...”, pronunciava ao mesmo tempo que o nome e a
lembrança chegavam-lhe à mente. Não opôs mais resistência,
entregando-se a lágrimas de tristeza, saudade e alegria.
“Você está vivo, Joshua. Alegre-se apenas.”
193
“Estou vivo, mas em que época, e em que plano?”
“O tempo é irrelevante para a consciência.”
“Mas não estou mais no plano da matéria.”
“Este mundo, embora mais sutil, ainda é matéria.”
“Como é possível?”
“Sei que está confuso e preocupado com Joanna, mas não se
aflija. Em breve irá reencontrá-la. Orifiel destruiu o seu corpo
físico, mas para mim não é difícil construir uma nova máquina,
em verdade aperfeiçoada, para receber seu espírito, que embora
ferido e inconsciente não chegou a despencar no Abismo. No
corpo etérico, em Akasha, estão todos os registros e as
informações do seu corpo físico. O que fiz foi adensar estes
dados, moldando um invólucro quase idêntico ao que você bem
conhecia; de diferente apenas sanei os males registrados no
éter, os recentes e os kármicos, a fim de que a matéria surgisse
perfeita. É o mesmo mecanismo do que chamam na Terra de
curas espirituais ou milagrosas: o material é muito denso,
inerte; o que deve receber a intenção de cura é o corpo etérico.
Dele, onde também ficam registradas as doenças e os
ferimentos, a cura passa ao corpo físico. A maior parte das
enfermidades surge nos corpos mental e astral, devido a
pensamentos e intenções distorcidas, adensando-se como
tumores no etérico que gradativamente se manifestam na
matéria. Se desmanchar o tumor etérico, o mal físico
desaparecerá aos poucos, de forma análoga a como se deu no
sentido contrário. Outros males se originam de acidentes
físicos e envenenamentos, que de qualquer forma são
registrados em Akasha e precisam ser tratados a partir deste,
além do trabalho médico no plano da matéria já prejudicada.”
“Peço sinceras desculpas, Ashtar. Nos meus últimos
momentos, por várias vezes cheguei a pensar que tivesse me
abandonado. Mas não entendi a sua menção a Orifiel.”
“Em primeiro lugar, não se culpe por mais nada. O que
aconteceu, aconteceu, e siga em frente com seu foco na Fonte
194
de todas as coisas. Você já deve ter entendido que o homem só
peca consigo mesmo; Deus não condena, as criaturas e não o
Criador deram origem ao Inferno, que nasceu e nasce de dentro
delas. Deus é a Fonte da vida, é como um sol, enorme em
relação aos universos como a maior das estrelas é em relação
aos seus planetas, que se originaram Dela. A Vida é a luz desse
sol. Quanto a Orifiel, ele tomou posse da existência de
Shekinah, passando a usá-la como fantoche.”
“Meu Deus...Devia ter imaginado! As mudanças na postura de
Shekinah...É que acreditei que o tinha destruído. Como ele
pôde??”
“Agora Orifiel já encontrou seu fim. E você não tinha como
cogitar que ele continuasse a possuir a capacidade de entrar nos
corpos alheios mesmo após a destruição de seu corpo físico, e
até com maior facilidade, livre de suspeitas e do peso da
matéria. Vou lhe expor em detalhes o que aconteceu na Terra
nestes últimos anos.”, narrou ao discípulo seu próprio fim sob
um ponto de vista externo mais amplo, o exílio de Joanna, a
criação de Apollyon, que executou seu criador, e explicou as
motivações do clone ao se aliar à Stella. Ashtar Sheran era um
iluminado no nível de Avatar, por isso possuía uma
clarividência perfeita e mesmo distante, em outro universo, era
capaz de enxergar o que acontecia em outros mundos e com
seus pupilos quando desejasse. “Agora, os membros de alto
escalão da Stella dominam o planeta. Vencido o Comando
Ashtar no sistema solar da Terra, foi simples proceder à
unificação das nações e à dominação global. Os membros
sobreviventes da fragilizada Sapiens e os dos grupos de
resistência de diferentes inspirações foram massacrados.
Bernard de Payens é aparentemente o governante do mundo, ou
seja, da Terra e de Marte, mas as ordens vêm de Alexander, de
um grupo de reptilianos e de Apollyon, que é quem comanda
todo o aparato militar e policial, que reprime qualquer forma de
oposição. Pouco aparece em público, mas Alexander, que
195
permanece nas sombras, fez questão de criar um culto que vê
Apollyon como um messias, aquele que veio para trazer o Bem
à Terra e que está combatendo o Mal de forma ferrenha, que
pode parecer dura demais para alguns, no entanto necessária. É
uma religião que em pouco tempo já formou seu clero, tem
seus templos, e a nova capital do mundo é sua cidade sagrada,
os fiéis incitados a obedecer cegamente os sacerdotes, nada
mais do que integrantes da Stella, e a nunca contestar as
autoridades. Também ingerem uma droga, mas a pior de todas
as drogas é a da inconsciência.”
“Que cenário pavoroso. Von Strauffenberg encontrou um
modo de controlar as massas, tanto pela política como pela fé.
E estão esperando meu retorno, para após minha destruição
definitiva darem início à guerra de todos contra todos.”
“Daqui logo partiremos. Mas ainda é cedo para ir à Terra.
Estamos em outro universo, bastante purificado, que não é o
seu e nem onde eu me encontrava. Devo voltar àquele
universo, que por incrível que pareça precisa ainda mais da
minha ajuda, muito mais do que o da Terra, pois abriga uma
infinidade de mundos hostis e primitivos; estes necessitam de
mim para sua formação e evolução. De qualquer forma, você
não estará sozinho, e não falo apenas de Joanna, que iremos
resgatar: uma nova etapa em seu crescimento terá início. O
Comando Ashtar no sistema solar terrestre precisa ser
reconstituído, e para isso necessita de um novo líder, de um rei
para empunhar Excalibur.”
“Não acredito no que está dizendo, mestre, o senhor que para
mim é Merlin, se eu sou Arthur. Mas sou muito pequeno e
indigno.”
“Não venha com ladainhas! Você é o único que pode
desenvolver essa missão por lá. Não teria partido sem que
tivesse alguém em quem confiar. Isso desde o início...Quando
foi que acha que o escolhi?”
“Mas cheguei a abandonar meu dever. Tanto que deixei o
196
caminho livre para Orifiel cometer suas atrocidades.”
“No seu lugar, se estivesse no nível de consciência que você
tinha na época, eu teria feito a mesma coisa ou agido de forma
semelhante. O que Orifiel fez foi de responsabilidade exclusiva
dele; não é nobre, apesar de parecer, assumir as
responsabilidades alheias. Já lhe disse para não se culpar. Pare
de olhar para o passado.”
“O seu afastamento foi mesmo um teste.”
“Foi uma necessidade para mim e é uma oportunidade para
você. Aprenda. Só mais uma advertência com relação a
Apollyon...”
“O que seria?”
“Se você se deixar vencer por ele, seu espírito sairá tão
danificado que mesmo para mim será impossível recuperá-lo. E
não posso ficar indo e voltando, adiando minhas
responsabilidades.”
“Mas ele pode realmente, como pretende, absorver minha
alma?”
“Ele pode aprisionar você dentro dele. Por isso, muito
cuidado. Fique atento, não se descuide. Por outro lado, seu
corpo de agora é mais limpo do que o anterior, e inseri novas
nanomáquinas. Os níveis mais elevados não o desgastarão
tanto e conseguirá enfrentá-lo de igual para igual.”
“Não sei como agradecer...Por tudo, em especial pela
paciência.”, Ashtar sorriu e, após uma luz ofuscante englobar o
ambiente, desapareceram dali.

O deserto exterior se refletia no interior de Joanna. Ou seria o


contrário? Estava cansada, ou melhor exaurida, e não tanto do
ponto de vista físico, mais em sua mente e em seu espírito, que
ainda não conseguiam sair de Nibiru, muito menos seu corpo.
Suas projeções astrais e teletransportes, na verdade, não a
tiravam do mesmo lugar. Embora tivesse aprimorado sua
técnica e gastasse cada vez menos energia para ir de um ponto
197
ao outro do planeta, isso era muito pouco na sua visão. E
precisava lutar constantemente, sob o sol causticante ou o gelo
inclemente. Naquele deserto, seus principais oponentes eram
criaturas semelhantes a imensos lagartos de saliva ácida, três
olhos em suas cabeças, sendo um traseiro e dois laterais, pele
áspera e sempre famintos. O cheiro da carne de Joanna, o mais
doce que já haviam sentido, os excitava ainda mais. Eram da
sua altura, e muito compridos.
Contudo, estava no meio de mais uma luta contra um bando
desses seres, enfrentando-os com sua telecinese e com uma
espécie de lança, de energia luminosa azul incandescente que
formara a partir de sua aura, quando uma outra luz se
manifestou, e que luz! Uma claridade celeste com reflexos
dourados, que fez todas as feras desaparecerem no ato. Ficou
embasbacada, meio maravilhada, porque na luz viu se
materializar um Ser que sentiu como sendo de puro amor, e
meio apavorada, pensando em fugir do que só podia ser uma
miragem, ou a imagem da morte. Acabara perecendo na luta
contra as bestas e se via agora diante de um anjo? Apesar do
cansaço e do enfado, não queria morrer. Carregava consigo
uma lasca de esperança, e esta não a deixou escapar,
sobrepondo-se ao medo; Ashtar, era ele o anjo, se aproximou e
tocou-lhe a face com ternura. “Você não é um habitante deste
planeta. Quem é você?”
“Aquele que veio para libertá-la. Você conhece um dos meus
nomes...Me conhece como Ashtar Sheran.”, ela retrocedeu
assim que ouviu aquele nome, rechaçando o carinho do mestre.
Seu semblante se torceu. A raiva e a mágoa vinham à tona,
ferindo-lhe a face.
“Você não veio me libertar, isso é uma mentira.”, replicou
com revolta. “E mesmo que tenha vindo pra ajudar, não aceito
a sua ajuda. Dispenso a sua misericórdia. O meu coração não é
tão miserável! Como poderia me esquecer do que você não
fez?? Você se esqueceu do Joshua! Abandonou o seu discípulo,
198
o seu filho espiritual. Está por acaso querendo compensar isso
me ajudando? Meu Deus, devo estar ficando louca! Você deve
ser só uma projeção da minha revolta! E quem me garante que
aqueles bichos que estavam me atacando existem? Não tenho
mais certeza de nada. Posso já ter morrido e a minha alma
ficou presa nesse planeta! Ou esse planeta também não existe,
é uma prisão mental imposta pelo seu Comando, estou dentro
de uma máquina que torna os pesadelos concretos pra
consciência! Se você for real, por mais responsabilidades que
tivesse, era responsável também pelo Joshua!”, e silenciou no
choro.
“Acabou?”
“Não tenho mais nada a dizer. E vá embora. Me deixe em paz,
não importa o que você seja, se realidade ou ilusão!”
“Não preciso explicar nada. Compreendo o seu desabafo.
Melhor professora do que as palavras é a vida.”, apontou para o
lado esquerdo e Joanna não quis olhar a princípio, mas como
ele permaneceu com o braço estendido, terminou olhando: um
homem se aproximava, e usava uma armadura semelhante à de
Ashtar. “Quem será agora?”, indagou-se, enxugando seu rosto;
o do indivíduo estava nublado e ao mesmo tempo era muito
luminoso: uma neblina que encobria um sol ofuscante, diante
do qual era difícil manter os olhos abertos. Estranhou quando
óculos apareceram sobre os olhos do que vinha...E seu coração
por pouco não se desmanchou ao reconhecer Joshua. Começou
a soluçar e gaguejar, mais do que sem encontrar as palavras
apropriadas: esqueceu-se das palavras, de todas estas; só tinha
cabimento receber o abraço do amado, e depois abraçá-lo
ativamente, apertando suas costas, sob a ânsia desesperada de
nunca mais perdê-lo.
“Desse jeito você vai me esmagar e vou acabar morrendo de
novo...”
“Você é real?”
“Você é, não é?”
199
“Seu bobo...Fazendo brincadeiras numa hora dessas, só pode
ser mesmo você!”, o sorriso voltou a desabrochar no rosto dela,
balançando junto com o amado; o nariz se desentupiu, voltou a
respirar bem, um inacreditável alívio sublimando seu espírito.
“Temos muito o que conversar.”, ele disse após um longo
beijo de reencontro; Ashtar se afastara, enquanto Joshua
explicava tudo.
Ao término das explanações, evitando ficar cabisbaixa,
Joanna olhou para o Comandante e, arrependida, todavia sem
deixar de encará-lo nos olhos, aproximou-se. Antes dela expor
suas desculpas, parada à sua frente, ele falou: “Seja bem-vinda
ao Comando Ashtar.”, ao que a mulher reagiu primeiro com
perplexidade e na seqüência com um júbilo radiante,
plenamente grata. “Agora não precisa falar.”, o mestre
interrompeu a efusão. “Aproveite o momento, aprecie a
presença do amor.”, e o teletransporte que ela não pudera
realizar Ashtar colocaria em prática com uma brisa de sua
intenção, fazendo com que Nibiru desaparecesse da visão de
seus filhos, que ficaram a sós em um jardim luxuriante, que de
deserto nada tinha; os galhos das árvores, repletos de flores e
frutos, disponíveis para os esposos, se abriam para acolher a
luz dos céus.

O templo de culto a Apollyon, filho do sol e guardião da


Terra, em Luksor, a nova capital mundial, fora construído
principalmente em mármore e com o oricalco das ruínas
atlantes da região, suas colunas, seu piso e suas paredes
banhadas pelo elemento que era como um fogo metálico. Nos
andares superiores, ficavam os alojamentos dos sacerdotes, o
órgão tocado durante as cerimônias e algumas capelas,
contendo imagens devocionais, pinturas ou esculturas, do
messias solar. Do térreo até a abóboda, cem metros de altura.
As colunas apresentavam bases arredondadas, os fustes lisos,
em seus capitéis representações dos raios solares, assim como
200
todo o conjunto imagético do lugar estava baseado em
símbolos relacionados ao astro-rei, como a roda e o leão,
representados geralmente em dourado. No teto, duas
grandiosas realizações pictóricas: na primeira, o rei dos
animais, ladeado por um pássaro de fogo que lembrava uma
fênix, matava um dragão negro em um pântano; na segunda, o
leão lançava seu olhar imponente sobre um vale verdejante,
provável que o mesmo lugar onde ficara o charco asqueroso,
purificado pela morte do monstro.
Sua principal nave se estendia por quase duzentos metros de
comprimento, e no altar, revestido de púrpura, costumava ficar
um cálice de ouro cravejado de pedras preciosas, durante os
rituais preenchido por uma bebida alaranjada, que o sacerdote
não bebia, sorvendo pequenas quantidades nos copos com água
distribuídos aos participantes: a instasis, uma substância
psicoativa artificial, produzida pelos químicos da Stella a fim
de inebriar os participantes dos cultos, não só produzindo um
falso êxtase como reduzindo aos poucos a capacidade do
indivíduo de raciocinar por conta própria, tornando-o
extremamente sugestionável ao discurso dos oficiantes, que
como era lógico exaltavam o governo único do mundo, ao qual
os cidadãos deviam plena obediência, e afirmavam a divindade
de Apollyon, que punia os que se opunham às autoridades
legitimadas pela lei e por Deus, que determinara o estado das
coisas do mundo, que não deveria ser contestado. A droga,
poucas gotas sendo o bastante para o efeito desejado,
contribuíra para o crescimento de uma religião que começara
tímida e se tornara a mais difundida do orbe, pois se um
homem chegava curioso para acompanhar uma cerimônia e
ingeria a instasis, o que era dito facultativo, não demorava a
retornar inclusive pela dependência química que esta gerava, às
vezes trazendo amigos, parentes e conhecidos de tão
entusiasmado com os efeitos. E mesmo que não a tomasse na
primeira participação, a atmosfera era tão hipnótica que
201
acabava sentindo algum efeito de alteração de consciência e
relaxamento graças à intenção forte dos sacerdotes, que eram
magos da Stella. Na segunda ou terceira vez, não veria mais
nenhum problema em aceitar um pouco, afinal diziam que esta
substância era o suco de um fruto vermelho que só crescia na
árvore central do jardim da residência de Apollyon, que
confirmava sua divindade com seus atos, punindo os
delinqüentes e perseguindo o mal, e com esplendorosas
aparições eventuais durante as cerimônias, em sua forma que
lembrava um anjo. Todos sentiam a sublimidade da energia e se
ajoelhavam.
“Apollyon é o princípio e a verdade da vida. É o arcanjo que
nasceu no sol, mas que se encarnou entre nós para fazer a
vontade de Deus. É a luz e a essência do cosmo, o perfume da
existência! Apollyon será aquele que nos levará ao Paraíso!”, e
enquanto o sacerdote falava, os fiéis se entregavam, reagindo
cada um da sua forma, a única regra sendo a de não interferir
no próximo: uns ficavam estáticos, as bocas e os olhos
escancarados; outros dançavam, e ao órgão se somavam
algumas vezes instrumentos como flautas e violinos, tocados
pelos músicos que participavam do culto, que estimulavam o
movimento; e, entre mais reações, havia os que ficavam orando
em voz baixa. Quando Apollyon abria suas asas, alguns
desmaiavam e sonhavam com um paraíso de delícias, umas
nem tão celestiais e elevadas assim...
“Esses rituais me divertem muito, Bernard. Assisti-los me
ajuda a esquecer dos problemas, mesmo sabendo que não passa
de um teatro. É de toda maneira mais divertido do que qualquer
peça.”, Alexander comentou com o chanceler da Ordem, que
agora não trabalhava mais em sua casa, ocupado no palácio do
governo, durante uma visita que este lhe fez em seu escritório.
A capital fora erguida perto de Hozard.
“Ainda não decidiu que atitude tomar em relação à sua
esposa?”
202
“Tenho lido bastante a Bíblia. E gostei de um versículo em
particular, Apocalipse 9:11, que diz assim: O rei deles era o
Anjo do Abismo. O nome desse anjo é Abaddon, na língua
hebraica; Apollyon em grego. Tenho que reconhecer que o tal
Orifiel tinha cultura.”, e bebeu um gole de vinho. “Como gosto
desse vinho...É muito melhor do que a instasis, sem dúvida.”
“O senhor não respondeu a minha pergunta.”
“Não tenho a menor obrigação de responder as suas
perguntas.”
“Perdão, meu senhor...”, o ex-mordomo dos von
Strauffenberg enrubesceu, abaixou a cabeça e se enrolou com a
língua. “Estou apenas preocupado, pois quero o seu bem.”
“Não se preocupe, Bernard. Eu o conheço bem o suficiente
para saber que não é corajoso o bastante para ser insolente e
intrometido. Às vezes você me entendia, mas é a única pessoa
em quem posso confiar. Não o interpretei mal.”
“Obrigado, meu senhor...”
“Não posso fazer nenhum mal a Camilla.”, Alexander
começou a falar de sua mulher, para a surpresa do governador
do mundo, não porque este lhe perguntara a respeito, e sim
porque quis e sentiu vontade de desabafar. “Por mais que pense
em fazer desabar sobre ela a minha fúria e a minha
insatisfação, sou um fraco diante dela. Meu sentimento detém
minhas mãos. Como isso é ignominioso e humilhante para um
mago, não conseguir controlar os instintos e as emoções! Pois
essa é a única situação em minha vida que me deixa infeliz,
como me entristece e me desgosta...Acho que passei a amá-la
realmente depois que ela me rejeitou, demonstrando ser forte e
corajosa o bastante para me enfrentar. Ela diz que prefere
morrer a voltar a se deitar comigo, e eu penso que se ela não
me serve, deveria me livrar dela. Porém não consigo.”, falava
sem demonstrar por seu rosto sua insatisfação e sua tristeza,
aparentemente frio, porém o chanceler sabia que o grão-mestre
estava sendo sincero. Camilla passara a desprezar Alexander
203
depois que soubera a verdade sobre tudo, revelada pela boca do
próprio após Bernard assumir o governo global e Apollyon se
apresentar como o preservador da ordem pública e pseudo-
messias, acontecimentos que a princípio a deixaram
terrivelmente perplexa. O mordomo não era apenas um
mordomo, o amigo de infância não era um simples amigo, e
por fim seu marido era o exato oposto da imagem que fazia
dele! Por pouco não enlouquecera, trancafiada no abrigo
subterrâneo do casarão, ao passo que Alexander mandara seus
filhos estudarem em colégios internos.
“Eu te odeio...”, e o rechaçava sempre que tentava tocá-la. Era
difícil nessas horas conter sua ira e aplacar sua luxúria, mas se
observava bem, buscava um distanciamento para analisar suas
próprias emoções, e assim evitava o estupro.
“Me desculpe por tudo, meu amor. Mas tente entender: se eu
tivesse dito a verdade desde o princípio, você sempre teria me
detestado.”
“Você nunca perde o controle? Nunca se enfurece? Você é um
monstro! Antes nunca tivesse conhecido você! Ou devia ter me
contado tudo pra eu logo ter fugido de você. Mas
não...Tivemos filhos! E tenho medo do que você possa fazer
com eles.”
“Não fale assim. Amo os meus filhos e amo você. Posso ter
meus defeitos e ter cometido erros, mas não conteste o meu
amor.”
“Você não se arrepende de nada, sinto isso. Por dentro, você é
uma fera selvagem...Não! É muito pior do que isso, porque
uma fera é dirigida pelos instintos! Você é um demônio, que
maquina contra a humanidade às escondidas. Nunca fui de
acreditar muito em Deus, mas vejo em você que o Diabo
existe.”
“Dê graças a Deus que eu seja um mago e possua
autocontrole. Se fosse outro, estaria morta agora.”
“Quem me dera morrer...Mas você não tem nem coragem de
204
me matar.”, sem as respostas que desejaria ter diante dela, se
retirava e ia pensar, ler a Bíblia e beber vinho em seu escritório.
Quando sozinho, seu cenho se franzia sem que percebesse e
sua expressão se tornava mais sombria, um pouco do controle
imposto se esvaindo; não iria tão cedo encontrar uma
consolação para o seu sofrimento...

Quando seus novos companheiros lhe foram apresentados,


Joshua ficou positivamente surpreso ao perceber que entre
estes se encontrava uma que não era assim tão nova para ele, a
bela mulher de cabelos platinados, parecida com uma elfa, que
o iniciara no passado: “Como é bom revê-la, Kramar! Quantos
anos que não conversamos! Quando fui capturado, pensei que
poderia ter na sua pessoa uma boa advogada, mas você não
estava mais na Terra...”, e apresentou-a a Joanna, que a
cumprimentou com um sorriso e beijaram-se as faces, apesar
do leve ciúme ocultado com dificuldade. Kramar percebeu e
sorriu por dentro, sem levar aquilo a mal, afinal a namorada de
Joshua era uma caloura, ainda estava começando na senda do
Comando Ashtar, e não seria um pequeno desvio emocional
que iria anular suas virtudes e prejudicar o entendimento entre
ambas, que viria com o tempo, e com calma. Joshua, que notou
a insegurança da companheira, se sentiu um pouco
envaidecido, logo se dando conta que nesse aspecto estava
errando tanto quanto ela. Mas venceriam a vaidade e o ciúme
juntos, com carinho, boas conversas e principalmente lutando e
evoluindo juntos.
“Parti da Terra após a ascensão de Orifiel e seu grupo. Antevi
que haveria uma guerra interna, violência de membro contra
membro, de irmão contra irmão, e por isso me retirei. Não
tinha a mínima intenção de enfrentar um antigo amigo e de
estimular rivalidades, preferi lidar com os conflitos de outro
planeta, onde não conhecia ninguém, deixando para quem
estivesse mais pronto do que eu nesse sentido colocar ordem
205
novamente na casa. Você, apesar de ter entrado bem mais tarde
no Comando do que eu, tinha um potencial maior do que o meu
e era mesmo o homem adequado.”
“Não venci Orifiel, tanto que ele chegou ao ponto de criar um
clone meu, e de prejudicar a alma desse indivíduo.”
“Ashtar não lhe disse para deixar de lado o passado? Você foi
escolhido por ele, não tem porque hesitar ou se recriminar
mais. Você será o nosso líder e ponto.”, sorriu e o abraçou.
Joanna, percebendo que nesse abraço não havia nenhuma
malícia, e sim puro carinho fraterno, Kramar fechando os olhos
e se concentrando na elevação de seu sentimento, sentiu
vergonha do ciúme que experimentara e refletiu o quanto era
ruim a emoção da posse. Iria aceitá-la, do mesmo modo que
Joshua, como uma irmã, e sorriu aliviada não com o fato da
mulher alienígena, muito mais velha do que aparentava, não
desejar seu amado, e sim por ter se livrado rapidamente de
algumas gotas de sua insegurança emocional.
“Prazer, o meu nome é Eleazar. Vim de Andrômeda, com
alguns dos meus irmãos, para um novo aprendizado na Terra.”,
outro integrante do Comando se apresentou: tinha a pele escura
e pupilas vermelhas de formato oval, a cabeça redonda, sem
cabelos ou barba, e uma estatura bem maior do que a dos seres
humanos terrestres, beirando os três metros de altura. Como os
demais, vestia um uniforme metálico azul e prateado. O
gigante se ajoelhou para cumprimentar os dois.
“Por favor, Eleazar, fique de pé. Está certo que acho que vou
ter torcicolo pra conversar com você, obrigado a ficar com a
cabeça levantada o tempo todo, mas prefiro que permaneça na
sua postura mais confortável, o mais solto possível.”,
respondeu-lhe o novo líder do Comando na Terra, e o colosso
se levantou, não muito expressivo, o que era uma característica
de sua estirpe, que não derramava lágrimas e nem sorria,
deixando os sentimentos intensos se manifestarem por meio de
suas auras, não de suas expressões corporais. Joanna sentiu
206
com perfeição o contentamento e a disposição que irradiavam
daquele homem, assim como diversas emoções e pensamentos
de outros indivíduos de seu povo presentes ali, provenientes da
célebre nebulosa, que em conjunto produziam uma vibrante
claridade rósea. Em comum, os olhos de pupilas rubras, que
variavam nas dimensões e tonalidades, as estaturas elevadas e a
nobreza dos corações. Eleazar era como se fosse um cônsul na
república que governava alguns dos planetas de seu sistema
solar.
Os integrantes da patrulha que iria cuidar da Terra dali em
avante passavam dos mil, e partiriam em uma nave-mãe
esférica de superfície que mudava facilmente de aparência para
se camuflar. Havia homens, de mundos distantes, dos mais
estranhos, alguns com olhos nas laterais de seus crânios, outros
com pares de olhos nas testas além dos dois comparáveis aos
dos terráqueos, afora seres de origens bem distintas, que por
exemplo pareciam de pura luz, além de criaturas de pele
coriácea, as cabeças repletas de chifres e protuberâncias, suas
peles azuis ou vermelhas, assustadoras à primeira vista, mas
que difundiam de si uma valentia tremenda, alguns dos
guerreiros mais valorosos da Via Láctea, como Ashtar
salientara antes a Joshua.
Ao chegar o momento da partida do Comandante, este
preferiu não fazer discursos ou despedidas: “Afinal, com todo o
trabalho que teremos, o tempo passará rápido demais e, quando
estivermos sentindo falta um do outro, nos reencontraremos.”,
disse, recebendo como último abraço o de Joanna; desapareceu,
transformando-se em uma torrente luminosa, bem nos braços
dela.
“Ashtar se afastou já naquela época para que você, que estava
fadado a ser o novo líder do Comando na Terra, crescesse e se
tornasse espiritualmente adulto. Apesar da distância, continuou
mantendo a atenção de lá, não se desligou de você, só agora
está fazendo isso, e a partir de hoje o deixou livre, porque
207
confia na sua força, no seu coração e na sua inteligência. Agora
ele pode finalmente focar toda a energia necessária em mundos
piores do que os que conhecemos. Valorize isso, querido
amigo.”, Kramar disse a Joshua, que meneou a cabeça em
concordância, ao mesmo tempo que enxugava algumas
lágrimas.
Que diferença daquele ambiente para a capital da Terra,
Luksor, onde todos os movimentos dos cidadãos eram filmados
e registrados, e quem não cumprisse com suas obrigações
terminava punido com severidade! O Estado assumira todas as
empresas e serviços, e como empregador absoluto exigia
eficiência absoluta de seus empregados. Embora existissem
salários, de tão baixos que eram se podia falar tranqüilamente
em escravidão. Mas o que fazer, se qualquer greve acabava
reprimida a ferro, fogo e sangue? Tudo para trazer o paraíso à
Terra, segundo as justificativas de Apollyon: a violência só
devia ser usada, direta ou indiretamente, por ele, porque era o
filho do sol, sem o qual não haveria vida no planeta; e a
finalidade alegada era a de mostrar aos cidadãos que a revolta e
a luta só traziam destruição a eles próprios, os sacerdotes
adorando fazer paralelos entre o mundo interno e o externo; a
paz e a harmonia chegariam quando a humanidade fosse mansa
e submissa, aprendendo a dar a outra face; Apollyon premiaria
os resignados com uma vida espiritual melhor do que a dos
rebeldes.
Bernard realizava pronunciamentos freqüentes para explicar
suas medidas, e os seus lambe-botas o elogiavam por isso,
alegando que nunca estava distante do povo. A censura era
rígida no que dizia respeito a qualquer trabalho artístico ou
programa televisivo que apresentasse uma mínima contestação.
Os inspetores da Stella, indivíduos cultos e refinados, ao
contrário de outros censores do passado, estavam atentos
inclusive a alegorias e mensagens subliminares. Incentivavam
o que anestesiasse o povo, como a pornografia, os esportes de
208
massa e tudo o que fosse superficial e leviano. Não que haja
mal em um pouco de diversão e em atrações e obras
despretensiosas; o problema residia na repressão a qualquer
possibilidade de análise profunda. Não existiam mais escolhas.
“Ele está vindo. Posso sentir isso.”, as mãos de Apollyon
suavam ao pensar em Joshua. “Ele voltou a viver em carne e
osso. Sei disso porque estou sentindo sua alma neste plano.”, e
a nave-mãe da nova patrulha de Ashtar no sistema solar
terráqueo, que chegou à Terra rapidamente, após abrir com sua
extraordinária energia um amplo túnel no hiperespaço, não fez
a mínima questão de se ocultar, tomando conta dos céus de um
fim de tarde apagado em Luksor. “Eu estava certo...”, refletiu,
nas sombras, o filho do sol...
“Vem ver o que apareceu no céu, pai! É uma nave enorme! Os
alienígenas vieram ajudar a gente!”, de uma das janelas de seu
prédio, um garoto apontava para o orbe artificial que dominava
o poente.
“Que sejam conquistadores do espaço! Vamos lutar contra
eles até que sejamos destruídos de uma vez por todas. Melhor
assim do que sermos massacrados aos poucos.”, disse um
reptiliano em um dos campos de concentração que haviam sido
construídos para torturar, eliminando de forma gradativa, os
membros daquela espécie que tinham se amalgamado à
humanidade na Terra e em Marte, perseguidos e capturados
com violência logo no princípio da nova ordem mundial. Os
seres humanos que os esconderam e os protegeram tiveram o
mesmo destino.
“Chegou o dia do Juízo! Este é o resultado por freqüentar
cultos espúrios e venerar a Besta! O momento de separar o joio
do trigo chegou!”, clamava um pregador, ouvido por uma
multidão, em uma praça, entre vários sentimentos e concepções
diferentes, da atenção devota ao riso contido, no entanto sem
agressões até que um mendigo furioso saltasse sobre seu
pescoço e começasse a asfixiá-lo. Uma parte tentou separar os
209
dois, mas sem obter sucesso: os indivíduos se desentenderam e
começaram a brigar entre si e com os que haviam ficado
indiferentes e com os que queriam ver o circo pegar fogo;
inciou-se uma confusão generalizada.
Brigas como essa foram surgindo por toda a cidade. O caos se
espalhou, explodindo o que fora reprimido. A agressividade
pura e bestial aflorava. A polícia principiou então a agir, ao
mesmo tempo que o exército e as forças aéreas apareceram
para intimidar a nave desconhecida, ainda sem dar início ao
ataque.
“É preciso preservar as vidas do maior número possível de
pessoas. Vamos disparar o raio atordoante e o de teletransporte.
Muitos dos que estão aqui embaixo não são inocentes, mas
também não são os únicos responsáveis pela situação em que
se encontram. Na falta de discernimento, que mergulhem em
outro sono...”, coordenou Joshua, e um clarão azul se espalhou
da grandiosa nave esférica, cobrindo toda a cidade.
Instantaneamente, todos aqueles que não possuíam poderes
psíquicos desenvolvidos o bastante para resistir perderam a
consciência. Ficariam desmaiados por algumas horas. As naves
comandadas por robôs e as máquinas de guerra terrestres,
interpretando aquilo como uma ação de guerra, avançaram mas
foram rapidamente destruídas. Na seqüência, um segundo
clarão, este dourado, transferiu todos os habitantes, mesmo os
ainda despertos, a outras cidades, em localizações seguras.
“É ele. Posso senti-lo, assim como sinto a presença do
Comando Ashtar, que veio com guerreiros bem melhor
preparados do que os que derrotei anteriormente. Chegou o
momento.”, disse Apollyon, o único de pé entre os membros do
alto escalão da Stella que haviam se reunido às pressas na
residência de Alexander.
“Não devemos nos precipitar. Não precisamos ir até eles. Eles
virão a nós.”, disse von Strauffenberg.
“Não posso esperar mais. A minha alma me chama.”
210
“Acalme-se, senhor Apollyon.”, interveio Bernard.
“Estou calmo. Apenas não posso deixar de agir...”
“Ele está mesmo vindo.”, na sala de controle da nave do
Comando, Joshua também sentia. “Vou fazer a minha parte.
Vocês invadam a casa de von Strauffenberg. Hozard não fica
longe. Mas é preciso que me deixem a sós com Apollyon aqui
em Luksor.”
“Não é a minha vontade.”, disse Joanna, atraindo o olhar do
amado. “Não quero deixar você.”
“Já tínhamos elaborado o plano e discutido isso. Estava tudo
decidido.”
“Mas acho que mudei de idéia. A prática é sempre diferente
da teoria. Estou aflita e agora quero ficar aqui.”
“Se você ficar, por favor entenda, Joanna...Ele vai querer usar
você contra mim, uma forma fácil de me atingir.”
“Se ele é mesmo o seu clone, duvido muito disso...”, e diante
dessa declaração o peito de Joshua ficou apertado e hesitou.
Deveria deixá-la lutar com ele? Não permitir que lutasse ao seu
lado seria uma demonstração de falta de confiança? Ou era
uma preocupação legítima? Afinal não queria perdê-la. Refletiu
por alguns segundos, ficaram em silêncio, e os demais
respeitaram o momento do casal, antes de responder:
“Você tem a sua razão. Afinal, prometemos um ao outro, há
algum tempo, que enfrentaríamos tudo juntos. Talvez esteja
subestimando você, que senti que evoluiu muito durante o
tempo que ficou naquele planeta violento. A sua energia
cresceu, e cresceu ainda mais depois que nos reencontramos e
que foi admitida por Ashtar como integrante do Comando.”
“Não levo você a mal, Joshua. Sei que tem medo que algo de
ruim aconteça comigo; mas também temo por você. Por outro
lado, talvez esteja sendo turrona e inconveniente! Depois de
tanto tempo longe um do outro, não gosto da idéia de me
separar de você em situações perigosas. Mas devo me
conscientizar que, como temos uma missão maior além dos
211
nossos interesses particulares e sentimentos, isso deverá
acontecer mais vezes.”
“Qual a sua decisão então?”
“Realmente é melhor eu ir com o resto do grupo.”, replicou
após um olhar mais profundo. “Ajudarei nossos amigos contra
von Strauffenberg. Ao mesmo tempo, na intenção, não vou
deixar você pra trás...Vou continuar ao seu lado. Que o meu
amor te fortaleça nessa luta.”
“Muito obrigado, Joanna...”
“Eu é que agradeço por você existir na minha vida!”, se
abraçaram e se deram um longo beijo.
Poucos minutos depois, Joshua desceu sozinho da nave, no
olho da cidade deserta, e em seguida esta desapareceu, como se
nunca tivesse passado por aquele céu, locomovendo-se a uma
velocidade extraordinária. O líder do Comando Ashtar na Terra
fechou os olhos e permaneceu de pé em sua meditação,
respirando fundo e se concentrando em seu peito. Ressoavam
tambores de expectativa. Era como se o coração do planeta
batesse junto com o seu; e talvez estivessem mesmo batendo
dessa forma...

Apollyon chegou junto com a noite. Em contraste com esta,


era pura luz, os trajes e as asas em um branco reluzente
adornado de ouro. Ao fitá-lo, Joshua não conseguia acreditar
que aquele ser era seu principal inimigo, num aspecto profundo
a exteriorização de seu Adversário interno. A alma e o corpo; o
bem e o mal; a razão e a paixão; o raciocínio e os impulsos:
dicotomias simples, que não condiziam com os encontros dos
olhos de ambos, que não explicavam a realidade de um e do
outro, chamas de aparência idêntica, porém de diferentes cores
e intensidades de calor; tinham contudo, as duas, calor e cor.
Apollyon já estava em seu auge, anjo com ambições de reinar
sobre seu próprio inferno; Joshua ainda aguardava. Frente a
frente, o clone viu em seu irmão mais velho, estampada em sua
212
aura, a face preocupada de Joanna. Os sentimentos de Joshua
penetravam em sua percepção, mesclando-se a suas angústias,
expectativas, medos e hesitações, avivando as memórias
duplicadas; por um momento, sentiu que era o outro e que por
isso a luta não fazia sentido: em vão dar golpes contra a própria
sombra. Só que ao refletir que considerava a si mesmo a
sombra, por mais luz que emanasse, retornou à sede de corpo,
não a sede de sangue, mas a ansiedade pela substância; desejou
a respiração do ser: e seu espírito deveria pairar sobre o
espelho fluido, acima das águas da morte, que obscureciam aos
olhos de Joshua, por mais que este não desejasse. Apollyon,
por sua vez, ardeu num fogo dourado, invejando o irmão e
desejando Joanna toda para si. Coração e alma deviam ser uma
e a mesma coisa.
“No íntimo somos as duas partes de uma verdade. Pense bem,
Apollyon: este combate não faz o menor sentido. Você só se
deixou manchar, logo na raiz, pelos equívocos de Orifiel. E se
tornou uma planta sem raiz, que deixou para trás, mas não se
livrou das manchas dela, que o perseguiram. Recupere-a, volte
ao terreno, e deixe as flores e os frutos nascerem.”
“Você deve me considerar um ladrão. Sei que é escritor, e
sabe usar as palavras, por isso elas não me importam. Se
quisesse, também poderia usá-las. Só que não sou hipócrita.”
“Como posso estar sendo hipócrita? A hipocrisia é impossível
entre nós, sabe disso melhor do que eu.”
“É justamente por compartilharmos uma única alma que sei
que sua hipocrisia é inocente. Não sabe que está sendo
hipócrita, não percebe isso. A sua formação também deixou
manchas, de outro tipo das minhas.”
“Admite portanto que está maculado.”
“Quem de nós não se encontra maculado neste mundo? No
entanto, quando nos tornarmos Um, nosso mundo será outro.”,
ao desembainhar sua espada, Apollyon espalhou centelhas de
fogo alvo. Joshua não teve escolha a não ser passar diretamente
213
ao sétimo nível de seu poder, mais esplendoroso do que da
última vez que o manifestara na Terra, para libertar Joanna de
Tyllia. As lâminas incandescentes se chocaram; explosões se
espalharam pela cidade abandonada, destruindo casas e
prédios. Quando o terremoto teve início, os dois se elevaram no
ar e passaram a duelar nos céus. Quando um acertava o outro, o
sangue que caía era como magma fluido e derretia o que
atingia abaixo. As feridas cicatrizavam rapidamente,
enunciando um embate que parecia destinado a não alcançar
término...

A mansão da família von Strauffenberg acabava de ser


invadida, as tropas do Comando irrompendo e entrando em
confronto aberto contra os membros da Stella. O equilíbrio
inicial foi aos poucos pendendo em favor dos soldados de
Ashtar, até que uma aura extremamente pesada tentou se impor
sobre os invasores. Os homens de Andrômeda retrocederam,
feridos por lanças a princípio invisíveis, que depois se
materializaram em um negrume metálico e afiado, cravadas em
seus abdomens e ombros. Os gritos de dor eclodiram, Eleazar o
único que conseguira se esquivar do ataque; era Bernard de
Payens que chegava, transformado, não mais o polido
mordomo ou o hábil chanceler, grande orador em seu governo:
seu rosto se retorcera, avermelhado, calombos borbulhavam em
sua testa e a expressão de violência furiosa era como a de um
demônio, um touro do inferno. Dirigira sua força no início
principalmente contra os guerreiros provenientes da galáxia
nebulosa, pois queria atingir, direta ou indiretamente, o que lhe
parecera o melhor dos soldados do Comando, que tinha a maior
das auras do grupo que liderava, e que eram semelhantes entre
si; deduzira que aqueles guerreiros eram como irmãos, e que a
morte de um acarretaria em ruína para os outros. Não
imaginava que tivessem feito um juramento, de não temer a
morte, aceitando o sacrifício e a passagem se esta precisasse
214
ocorrer, desde que não fosse inútil, dando-se no cumprimento
do dever.
No jardim que ia perecendo, Eleazar comunicou aos seus
companheiros telepaticamente que cuidaria do chanceler da
Stella; todos os demais soldados do Comando ali presentes que
enfrentassem os outros membros, não restringindo sua
mensagem aos filhos de Andrômeda. Kramar que, sem ser
notada pelos guaridões da casa, entrara sozinha no lar dos von
Strauffenberg...
“Se pensa que pode nos abalar, está enganado.”, uma espiral
de luz cortante rosa e azul, girando em frenesi, saiu do umbigo
de Eleazar e foi destroçando as lanças que Bernard atirava
contra o líder e seus companheiros, que aos poucos foram
conseguindo desintegrar as que os haviam atingido. Não seriam
parados pelos ferimentos e pela dor. Uma cúpula de luz celeste
que se condensou como um vidro translúcido cobriu os dois,
isolando-os do restante.
“Não confia nos seus subordinados, não é? Não importa.
Quando o seu cadáver estiver estendido sobre o solo, de
qualquer forma eles encontrarão a perdição.”, Bernard
procurava se mostrar firme, calmo e confiante.
“São irmãos caçulas, não subordinados. E cada um entre nós
conhece com perfeição sua própria responsabilidade.”
“Modéstia à parte, sou melhor do que o senhor com as
palavras. Belos discursos, entretanto, não cabem neste
momento.”, as chamas se chocaram, enquanto Kramar, dentro
do casarão, não teve dificuldades para encontrar Alexander, que
a aguardava sentado em seu escritório.
“Bem-vinda, filha de Ashtar. Somos faces opostas de uma
mesma moeda, sabe bem disso. Portanto, sabe que não pode
eliminar o que represento, mesmo que me envie para o outro
mundo. Outro tomará o meu lugar neste. Por que não nos
unimos e quebramos esse ciclo vicioso?”, tentou-a o grão-
mestre da Stella.
215
“Sabe que a união entre nós seria como unir água e óleo.”
“Seria possível, se ficássemos no centro, entre uma substância
e outra. Mas me responda, bela mulher...De onde você veio?”
“Não tenho a menor intenção de satisfazer a sua curiosidade.”
“Não se trata de curiosidade. Caíste, anjo...Caíste em minha
armadilha. A estrela da manhã será apagada, só posso me
lamentar!”, debaixo do tapete onde Kramar pisava, havia um
triângulo mágico para prendê-la. No ambiente escuro, que
estava com as luzes apagadas, principiaram a surgir vultos
disformes e corpos espinhentos.
“Uma teia de aranha...”
“Não deveria me comparar e à minha obra a algo tão reles e
vil.”
“A metáfora não pode ir além do que o gênio do poeta
alcança.”
“Ah, vejo que está familiarizada com poesia...Deve apreciar
literatura! E leio que é muito mais velha do que eu, por isso
tenho que respeitá-la. Mas idade não significa maturidade.
Ainda é ingênua.”
“O que quer saber?”, mesmo aprisionada no triângulo e
cercada pelos demônios evocados pelo mago das sombras, não
demonstrava medo.
“Acho que já lhe fiz uma pergunta. Mas se me permite, quero
que me responda outras: como ressuscitaram Joshua
Christiansen? Por que se importam tanto com a Terra? Por que
não reconhecem que perderam e não se afastam de uma vez de
nosso sistema solar?”
“Você está tremendo por dentro. Sabe que a sua derrota é que
é inexorável.”
“Esta guerra de qualquer forma iria ocorrer, quando nós,
filhos da Terra, resolvêssemos conquistar o espaço. A
Providência nos abençoou, proporcionando a antecipação do
confronto com vocês, que não pertencem à facção degenerada
que estava aqui e que foi massacrada por Apollyon. São
216
representantes legítimos de Ashtar Sheran.”
“Pertenci ao grupo anterior. Mas parti antes deste ser
aniquilado pelas ambições de Orifiel e pela força de Apollyon.”
“Fugiu da morte. Teme a morte, apesar de sua postura altiva.”
“Melhor que eles tenham sido destruídos por vocês do que por
nós. Tinham perdido e renegado todo o equilíbrio. Não
mereciam ser enquadrados por pais e irmãos. Fora que prefiro
enfrentar quem é indigno da morte.”
“Está se referindo a mim?”
“Achou que eu não me anteciparia à sua pobre teia?”, Kramar
manifestou pela primeira vez o círculo que a envolvera desde
que entrara na mansão; na verdade eram três, concêntricos, o
menor girando em sentido horário, os circundantes em anti-
horário. Luminosos e multicoloridos, estavam repletos de
símbolos, alguns que foram sendo projetados ao redor. A
claridade se espalhou, os espíritos infernais urraram antes de
desaparecer, e Alexander ficou cego, enquanto o seu triângulo,
sobreposto pelos círculos da guerreira de cabelos platinados, se
desmanchava.
“Cegos ficam os que vêem a face de um anjo. Por acaso você
é um? Sempre quis conhecer um anjo...”, indagou o grão-
mestre, mantendo sua calma exterior, tateando sobre a sua
mesa. Agora que havia luz em seu aposento, não conseguia
percebê-la.
“Não sou um anjo. Apenas vim para fazer com que perceba a
sua cegueira.”
“Magnífico! Seu esplendor é tal que não se limita ao meu
sentido físico. Os olhos do meu espírito também foram
perfurados. Resta apenas a lembrança da luz.”
“Não vai evocar a morte?”
“Amo demais a vida para isso..”, continuaram trocando, por
algum tempo, palavras que pareciam inócuas. Isso até que,
inesperadamente ou não, uma terceira pessoa entrou. Alexander
não precisava ver para reconhecê-la: a luz de Kramar quebrara
217
as correntes, abrira a porta da prisão e guiara Camilla rumo à
porta da liberdade, que gerava nela hesitação; mas terminara
por abri-la, apesar da sensação torta, incômoda.
“O que está acontecendo? Alexander...”, pronunciou o nome
do pai de seus filhos num tom carregado de ambigüidades; e
ficou pasma ao se dar conta que a Luz vinha daquela mulher de
aparência celestial e que Alexander estava cego, “não por
acaso”, refletiu.
“O meu nome é Kramar. Pertenço ao Comando Ashtar.”
A senhora von Strauffenberg não soube o que dizer,
caminhando devagar na direção do marido e tocando suas
mãos.
“Obrigado, querida. Agora minhas mãos são meus olhos.”
“Não tenho pena de você.”
“Graças a Deus que não. Isso seria humilhante demais.”
“Por que quis ter filhos comigo?'
“Está arrependida dos nossos filhos?”
“Não. Você está?”, diante dessa indagação, Alexander abaixou
a cabeça e silenciou. Camilla, que trazia consigo uma faca, que,
após se ver livre, pegara na cozinha antes de subir ao escritório,
tomou coragem, tirou suas mãos de sobre as dele e, o mais
rápido possível para não tremer, arrancou a lâmina que estivera
presa à sua calça e cortou a garganta do grão-mestre da Stella.
Este, mais indefeso do que nunca naquele instante, diante dela
talvez por vontade própria, morreu na hora.
“Acha que tomei a decisão certa?”, com o rosto começando a
se derreter, Camilla perguntou a Kramar, cheia de angústia. A
Luz se apagou. Mas na escuridão a viúva-negra recebeu seu
abraço.
“Foi uma decisão, isso é o que mais importa.”, disse a
guerreira de Ashtar, ao passo que no jardim Eleazar cravava
outra lâmina, de fogo luminoso, no peito de Bernard. Uma vez
o vazio preenchido pela luz, o inimigo foi sendo incinerado de
dentro para fora, até desaparecer. A vitória era iminente.
218
Apenas se notava uma ausência para que ao final pudessem
comemorar o triunfo: onde estava Joanna?
Eleazar refletiu que ela não devia ter resistido e partira ao
encalço de seu amado. Não iria contestar ou julgar...Aprendia.

De fato, Joanna mudara de idéia logo no início da batalha na


mansão, dando-se conta que não podia participar daquele
combate se sua alma estava em outro. Não seria coerente
consigo mesma e nem justo com seus companheiros.
Terminaria por atrapalhá-los. Desatenta, sucumbiria. E portanto
se teletransportara para Luksor, a cidade planejada que se
tornara uma cidade-fantasma, onde Joshua e Apollyon ainda
lutavam, na plenitude de suas forças. Num primeiro
entusiasmo, enlevada pelo amor, pensou que poderia cessar
com aquele confronto. Colocando-se no meio, nenhum dos dois
iria querer lhe fazer mal, e parariam. Contudo, nem sempre o
querer é respeitado; e permaneceu por algum tempo como
observadora, a chama ainda presente, todavia apaziguada.
Apollyon acabou vendo-a primeiro, depois de alguns minutos
que ela estava ali...
“Não...”, a negação solitária se impôs em sua mente; e sua
força cresceu sobre os olhos de Joanna.
Quando Joshua a percebeu, a raiva o desequilibrou: “Joanna,
por que você veio??”, indagou-lhe telepaticamente.
Ela não respondeu no ato; sentiu que Apollyon iria cravar sua
lâmina no peito do amado, chegando a visualizar a cena,
impedindo-a quando fez sua aura brilhar a partir de seu
coração, de onde saíram os raios que a formaram, e elevou seu
espírito a alturas inauditas; não fora apenas poder mental:
Apollyon não podia matar Joshua na presença do amor de
Joanna. A espada estava parada.
“Você ainda pergunta?”, então ela respondeu. Joshua ficara
perplexo, e os dois decidiram pousar perto dela, aparentemente
suspendendo a luta.
219
“Quis interferir. Não interferi. Acabei interferindo sem
querer...”, ela pensou sobre a seqüência dos acontecimentos.
“Aí está a nossa alma.”, Joshua apontou para a companheira
enquanto se dirigia a Apollyon, surpreendendo-a. “Ainda quer
me enfrentar?”
“Como consegue perguntar isso? Não devia ter dúvida. Ela só
pode pertencer a um de nós...”, replicou o clone.
“Na verdade, não pertenço a ninguém. Mas amo Joshua.”,
Joanna interveio e, após receber um olhar entristecido de
Apollyon, fez-se silêncio. Os dois logo voltaram a se encarar, o
clone esboçou um sorriso de traços aparentemente sádicos, e
Joanna refletiu enquanto sua aura se apagava: “Acho que
fracassei.”
“Você não vai conseguir acabar comigo agora.”, o líder do
Comando na Terra decretou. “Acha que não percebi isso?”
“Mas você pode.”, tal resposta não chegou a surpreender
Joshua, mas não houve como não deixá-lo admirado. “Só
precisa ser digno disso.”
“Você não fracassou. Você só mudou tudo.”, Joshua, com uma
expressão séria, se voltou para a amada. Lera seu pensamento.
Uma tristeza profunda envolveu os corações de Apollyon e de
seu irmão, e nessa hora ambos se sentiram irremediavelmente
unidos, dois vórtices em tênue movimento ligados por um fio;
um dos dois iria parar quando esse fio se rompesse.
Sem peso, Joanna boquiaberta, tornaram a se elevar e
retomaram a luta nos ares. Desta vez, ela não se envolveria de
nenhuma forma. Apollyon se transformou em uma serpente
emplumada, de penas douradas, após mais alguns minutos de
duelo, entre relâmpagos e pequenos sóis, e envolveu seu irmão;
entrementes, as asas cristalinas de Joshua escaparam,
atravessando-o, e uma coluna de luz, resultado da abertura, os
recobriu e os desmaterializou.
A filha de Emmanuel Flammarion não resistiu, não iria se
arriscar a perder seu amor outra vez, e se atirou na mesma
220
claridade ascendente, que também a devorou. Rumo aos céus, a
radiação que chegou ao espaço desintegrou um cometa que
passava e os três desapareceram junto com a cidade, engolida
pelo pilar incandescente que se expandiu.

“Acordem. Despertem, meus filhos.”, Joshua e Joanna


ouviram uma voz maternal, plena porém cansada. Abriram os
olhos e enxergaram o que souberam de imediato ser Gaia, a
alma da Terra, que permite a vida no planeta. Sem Ela, a Mãe,
este não passaria de um orbe rochoso e vazio.
Era gigantesca, suas raízes penetrando na lava sem se ferirem;
não possuía pernas, mas braços e seios enormes, não aos pares:
centenas. Coberta de terra e musgo, a aparência de seu
corpanzil poderia apavorar e enlouquecer os desavisados,
porém seu coração exposto, um imenso rubi, e seu belo rosto,
de traços perfeitos, no qual os olhos eram a origem do mar,
traziam a razão de volta e sublimavam os sentimentos.
“Rainha da natureza, o que deseja de nós?”, indagou Joshua,
ali em sua forma mais poderosa sem cansaço e sem fazer o
menor esforço. Nem parecia que passara pela mais árdua entre
todas as batalhas que tivera até então.
“Em primeiro lugar, agradeço a presença dos dois. E saúdo-os
como novos protetores da Terra. No entanto, infelizmente não
foi apenas para celebrá-los que os chamei.”, respondeu a deusa.
“A senhora...Parece aflita.”, Joanna dominou seu gaguejar,
fruto de tantas coisas que estavam acontecendo ao mesmo
tempo, dentro e fora de si.
“E estou. Pois há um tumor em meu corpo.”, e fez uma pausa,
antes de retomar seu discurso: “Estamos no centro do planeta,
do qual sou o sol interno. Esta é apenas uma das minhas
formas. O problema reside no que a humanidade fez neste
mundo com o presente que lhe foi dado, a vida, envenenando-a
com suas ações e seus pensamentos desarmoniosos. A
civilização da Terra só não foi extinta totalmente devido às
221
boas intenções e feitos de alguns poucos, que minimizaram o
peso que sou obrigada a carregar, e por mim, que como mãe
não posso permanecer indiferente a meus filhos, ainda que
desnaturados. Absorvi o mal em meu interior. Só que isso,
apesar de impedir a catástrofe imediata, está me matando. E
com a minha morte não somente a civilização desaparecerá:
toda a vida no planeta será extinta. Por isso, peço que me
ajudem a eliminar Nemesis, o câncer que a humanidade
provocou em mim.”, puderam ver, no ventre de Gaia, uma
ramificação escura que ia tomando conta da fonte da vida em
seu mundo.
“Mas por que nós? E como podemos fazer isso?”
“Através do amor. Só preciso de amor...”, disse sorrindo com
simplicidade, apesar da dor que sentia. A tez morena de seu
rosto pareceu ainda mais luminescente.
“Se nos chamou, é porque somos capazes.”, Joshua assumiu
convicção. “Mas antes, Mãe, a senhora por acaso sabe qual foi
o fim de Apollyon?”
“Poderia olhar para dentro e saber, assim como soube quem
sou sem precisar me perguntar.”
“Verei depois então. Antes iremos olhar para a senhora, e
ajudá-la.”
“Se isso vai tranqüilizá-lo, saiba que ele partiu em uma longa
jornada, e que por um bom tempo não terá memória de vocês,
para o próprio bem dele, que porém recuperou a primordial
entre as recordações: a da própria Centelha, sua alma.”
“Isso me basta. Fico satisfeito.”
“Agora retornem temporariamente para o meu ventre...”, uma
luz esverdeada do centro do corpo da deusa os absorveu e
foram transferidos para uma nova realidade, para os dois,
porque era na verdade muito antiga: a escuridão primordial; o
antes da vida. Ali porém havia uma presença que não deveria
estar: Nemesis, filha bastarda de Gaia com a humanidade.

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__________________________

A inimiga da vida gargalhava ao torturar os espíritos dos que


haviam caído em sua malha, e entre estes era fácil reconhecer
Bernard e Alexander; rasgava-os, retalhava-os e devorava-os
para depois regurgitá-los; voltavam à forma original e o ciclo
recomeçava. Sobre os pescoços longos, tinha milhares de
cabeças, de diferentes faces, todas disformes e esquálidas, suas
bocas, às vezes mais de uma por rosto, com inúmeras fileiras
de dentes aguçados; um manto escuro, sujo e rasgado, cobria o
resto de seu corpo, vendo-se escapar apenas as mãos ossudas e
às vezes alguns ou todos os treze pés. Não precisava de
nenhuma arma, bastando seus gritos e suas emoções para
massacrar quem desejasse. Só estranhou não ferir de imediato
os dois recém-chegados, que pelo contrário, investiram contra
ela, empunhando espadas fulgurantes que materializaram em
suas mãos a partir da luz que irradiavam. Contudo, parecia
impossível atravessar ou cortar o corpo duro daquela criatura; e
as feridas superficiais logo desapareciam. Joshua expandiu seu
poder, mas a luz emanada foi deglutida por Nemesis, que não
sofreu nenhum dano e, já muito maior do que os dois, cresceu
ainda mais.
“Desapareceu. Nenhum rastro de Luksor, a cidade foi
aniquilada, e nem deles é claro.”, no deserto onde existira por
pouco tempo a capital do mundo, Eleazar comentava com seus
companheiros. “O que terá acontecido? Pode por acaso sentir a
presença deles, Kramar?”
“Não. Parece que desapareceram não só deste mundo como
do outro. É como se tivessem se apagado.”, respondeu a
guerreira de cabelos platinados.
“Isso é muito estranho.”
“É porque você ainda não conhece o Joshua direito.”, deixou
desabrochar um sorriso tênue e confiante. “Não há com o que
se preocupar. Estou certa de que tudo correrá bem.”
223
“Possível que tenham ido parar em uma dimensão inacessível
para nós.”, interveio outro soldado.
“Bem provável. Há muitas coisas que não conhecemos. Por
mais que nos julguemos experientes, não somos nada sábios se
comparados às grandes almas do universo e do cosmo.”, as
palavras de Kramar fizeram o líder dos homens de Andrômeda
afundar em sua introspecção, ao passo que Gaia se contorcia de
dor, fazendo um tremendo esforço para a Terra não sofrer com
os piores terremotos e maremotos que já enfrentara, diversas
regiões do mundo não escapando todavia de abalos
consideráveis e erupções vulcânicas. Dentro da deusa, as
cabeças de Nemesis haviam assumido faces descarnadas,
algumas eram caveiras, e sendo feridos e sem conseguirem
causar o mínimo dano àquela monstruosidade, os poderes
mentais de Joanna de nada servindo contra ela, decorrendo
apenas fortes pontadas na cabeça da hábil paranormal, os dois
chegaram à conclusão que estavam lutando de forma
equivocada. Os cenários de um mundo destroçado surgiram na
mente dela; um mundo sem oxigênio, sem água, de ruínas e
paralisia. Era preciso fazer algo mais.
“Você não se lembra do que Gaia salientou? Ela falou sobre o
amor...”
“É verdade. E Nemesis é o oposto de Gaia, que ama os seres
vivos por mais que estes errem. Nemesis é puro ódio e
destruição.”, observou Joshua, que estava ofegante, e suas asas
quebradas.
“O poder que você tem que acessar agora vai além do sétimo
nível.”
“E é um poder que não posso alcançar sozinho.”, olharam-se
e, no mergulho da alma de um na do outro, seus braços e
pernas espirituais se enlaçaram; em volta de seus corpos, surgiu
o campo de força mais poderoso que possa ser formado,
resultado do magnetismo primordial, resultado da essência da
vida: no fundamento, a junção dos pólos que dá início a tudo.
224
Nemesis tentou atravessar aquela cúpula, ora dourada, ora azul,
ora rósea, porém foi repelida e sua própria violência abriu
ferimentos em seu corpo que não cicatrizariam; a dor foi
tremenda, o sangue escorreu, e as almas que torturava
começaram a reagir e a atacá-la. Ocupada se defendendo, não
pôde mais atrapalhar os amantes; Joanna subiu nas costas de
Joshua e, após isso, desapareceu dentro dele. Duas almas em
um só corpo resultaram em uma drástica mudança de forma:
depois que a luz alva que os encobriu se foi, a face estava bem
diferente, uma mescla de ambos, nem masculina, nem
feminina; os cabelos ora prateados e ora dourados fluíam até o
chão; dois olhos na testa, um de pupila em prata, a do outro
dourada, as mesmas cores que se alternavam na armadura,
assim como das quatro asas duas eram prateadas e as outras de
penas de ouro, da coloração contrária em relação à da pupila
paranormal do mesmo lado: complementação. A pele reluzia e
os olhos da visão física queimavam puros em vermelho-fogo.
No centro do peitoral, o que parecia ser uma rosa metálica.
Joshua e Joanna, que agora compartilhavam de uma única
consciência, sentiram próximos os espíritos dos amigos que
julgavam estar distantes pelo fato de se encontrarem em outros
planos, dando-se enfim conta na prática que a morte e a
distância são conceitos externos e impostos: Emmanuel
Flammarion, Yeats, Margareth, Ingmar, Bela e tantos outros,
que se concentraram nas mãos do ser unificado: em cada uma
surgiu uma espada, uma dourada, repleta de símbolos solares,
os raios do astro-rei saindo de sua empunhadura, a outra
carregada com a cor e a simbologia da lua.
Joshua e Joanna relaxaram ao mesmo tempo no amor da
Fonte de tudo, da qual inclusive Gaia provinha; e, tornando o
interior da Terra semelhante ao íntimo de suas vidas, Nemesis
desapareceu, consumida por uma onda de luz pura, juntamente
com os espíritos atormentados.
Antes de voltar a ser dois, o casal ainda passou alguns
225
instantes além de qualquer forma; o anjo andrógino se
desmanchou, dando lugar à existência essencial, ao amor da
Origem, onde ficaram mergulhados por um período
indeterminado, e aqui as palavras faltam. Gaia, livre, os
agradeceu e abençoou pela eternidade. “Obrigada, meus
queridos filhos...”
Retornando ao mundo da manifestação, primeiro
contemplaram satisfeitos o rosto sorridente da deusa, e também
a agradeceram, afinal haviam alcançado um nível de ser e de
consciência que sem Ela não teriam logrado, e depois
pousaram na matéria, com uma suavidade um tanto inesperada.
“Me sinto como uma pluma.”, disse-lhe Joanna; estavam nus,
estendidos no solo, um abraçado ao outro, e ele lhe respondeu
com um sorriso e um beijo poderoso.
“Lá estão eles!”, um soldado do Comando apontou primeiro,
embora Kramar tivesse sentido antes.
“Acabou o nosso sossego...”, brincou Joshua, enquanto os
companheiros afluíram rapidamente, ansiosos para saber o que
ocorrera, Eleazar indo com calma e Kramar ficando onde
estava por algum tempo e olhando para o alto. Apesar de ser
noite, já enxergava o nascer do dia. “Afinal, o sol está sempre
presente. Enquanto houver vida na Terra, haverá um Rei
luminoso para geri-la.”, refletiu, Joanna e Joshua se levantando
para abraçar seus amigos e comemorar a vitória.

EPÍLOGO

O REI:
Encontrei, perdida na floresta, uma linda donzela trajada de
branco. Interrompi então a caçada ao cervo na qual estava
engajado com meus homens, apaixonando-me à primeira vista.
“Quem é você?”, perguntei, antes de convidá-la a subir em
meu cavalo. “E se dissesse que não sei?”, a princípio replicou
226
com outra pergunta, e bastante estranha. “Se é assim, não sou
eu quem deveria saber.”; “Na verdade, perdi a memória.
Quando dei por mim, acordei entre estas árvores.”; “Este é o
bosque que circunda o meu castelo. Sou o rei de Dujon.”,
trouxe-a portanto à minha morada, entregando-lhe o melhor
dos aposentos afora o meu, despejando deste um dos meus
vassalos, ignorando seus queixumes e enviando-o a um andar
inferior. Passaram-se os dias e, a pedido da própria dama, lhe
dei uma função, a de me servir, trazendo-me as roupas e
refeições. Numa noite, contudo, não resisti, pedindo-lhe que
jantasse comigo. Conversamos e brincamos, pena que seu
passado não fosse acessível, até que com o primeiro beijo
quebrei qualquer distância. Não importavam mais as
pretendentes com berço de ouro: me casaria com meu amor
sem origem.

A RAINHA:
Consegui o que queria. O rei não pôde mais controlar seu
desejo graças à minha arte! Sabia que a poção produziria a
loucura se fosse colocada em excesso no vinho, por isso
bastaram algumas gotas. Além disso, aproximava meu rosto,
mexia nos cabelos, achegava-me com os seios, bem-acolhidos
em meu decote, ainda melhor pelas mãos dele. Nenhuma nobre
me ameaçaria mais, e como rainha de Dujon não tinha poder
para legislar ou promover guerras, só que mais do que isso
possuía em mãos o coração daquele que podia realizar muito
mais.

O DIABO:
A maga pensou que saíra vitoriosa! Doce ilusão. Capturei e
moldei a sombra desprezada, jogando-a na floresta, e as
ambições ocultas não tardaram a se manifestar. É tolo quem
acredita que pode vencer as paixões! E há ainda mais tolice e
estupidez quando quem tenta o impossível é uma mulher.
227
Veremos o que fará nossa rainha!

A MAGA:
A perplexidade tomou conta de minha alma quando, ao
chegar em Dujon, todos me olhavam admirados, e alguns se
inclinavam, como se eu fosse uma rainha ou uma santa. Como
nunca busquei o espiritual para a glória terrena, e sem
entender de que maneira o vulgo podia compreender minha
Realização, a menos que tivesse ido parar em outro mundo,
resolvi me cobrir com um capuz. O maior susto, no entanto, se
deu ao ver o rei que saía em seu passeio matinal com sua
rainha; o espanto: ela era minha imagem ao espelho, ainda
que coroada, repleta de jóias e revestida de púrpura, enquanto
eu estava com os trajes mais simples. Agora compreendia por
que me faziam reverências: certamente não pelo êxito
espiritual.
Nunca ouvira falar de alguma irmã gêmea perdida,
descobrindo a verdade ao fitar a sombra dela, que ao fundo,
por baixo da tênue escuridão, ocultava o ardiloso Demônio,
que se ria de mim e dizia que eu não triunfara, apenas me
dividira; e a rainha me fitou com brevidade, mas seu olhar era
de uma ironia intensa e consciente. Precisava salvar a vida do
rei.

O LOUCO:
Por eu falar e enxergar demais, logo a rainha sugeriu (ou
ordenou?) minha execução, me acusando de conspirar contra
o rei. Cego, ele não se lembrava mais que o bobo é o único
livre para dizer qualquer coisa. No cárcere, enquanto
aguardava a forca, a Inimiga veio até mim; ao menos foi o que
pensei ao vê-la, e esperei pelos piores insultos e provocações,
mas só podia ter ficado louco, surpreendido por uma tremenda
doçura, apesar da voz ser a mesma: “Amigo, você precisa me
ajudar a salvar o reino.”, as grades milagrosamente se
228
abriram, e ela me explicou ser uma maga, que vencera as
tentações do Diabo, mas este capturara sua sombra, que agora
era a rainha de Dujon. Nenhuma outra história faria mais
sentido.

A MORTE:
Tentei adverti-lo de diversas formas: fiz com que sonhasse
todas as últimas noites com cemitérios e mausoléus de
suntuosidade decrépita; enviei corvos e abutres para
sobrevoar seu castelo; deixei alguns bois morrerem à sua
porta, e as carcaças apodreceram. De nada adiantou, a rainha
seduziu um venenoso barão e este contratou o melhor
mercenário do reino para acertar com uma flecha precisa o
peito do rei durante uma caçada. Teria sido seu fim, se o bobo,
que incrivelmente escapara da prisão alguns dias antes, não
tivesse se posto à frente com um amplo escudo, no momento
exato. O mercenário se viu obrigado a fugir, embora não fosse
conseguir escapar de mim; eu, a dama cinzenta, o envolvi com
meu manto: seu coração parou e despencou do cavalo, que
seguiu adiante sozinho.

A RODA DA FORTUNA:
Em meu novo giro, o destino do bufão fora transmutado. E foi
recebido como herói em seu retorno a Dujon, até a rainha se
desculpando publicamente pelo “mal-entendido” e pelas
injustiças que cometera para com sua pessoa. Entrementes, na
intimidade com o rei, tornava a envenená-lo, dizendo que fora
o próprio bobo a contratar o falso assassino para depois se
passar por herói; e devia ser certamente um bruxo, para
escapar do cárcere sem qualquer explicação racional. O rei
replicou que desta vez iria ponderar, a fim de não cometer
nenhum erro. Começava a ter dúvidas sobre sua amada,
enquanto o barão cruel, em sua carruagem, maquinava novos
planos.
229
O MAGO:
Disse à minha irmã que estava procedendo com correção,
porém precisava ser cuidadosa, e não necessitaria mais agir
sozinha. Partimos juntos para Dujon, e nos encontramos com
o bufão no beco de uma taverna. Tomei sua forma, e no castelo
induzi no rei sonambulismo, após fazê-lo adormecer por meio
de chistes e cantos que não tinham como finalidade entreter.
Não havia graça, e as melodias eram tortuosas. Fiz com que
despertasse em frente ao quarto onde a rainha gemia com seu
amante. Pegos em flagrante, o barão foi decapitado pela
espada do monarca, mas a terrível feiticeira escapou,
transformando-se em morcego e voando para a floresta.
Estava ensandecida de ódio, seu vôo cessando quando foi
atraída de volta para o solo por minha irmã. Chegara o
momento do confronto decisivo, entre as árvores da noite.

O JULGAMENTO:
Os anjos da maga se chocaram com os demônios da sombra.
Os três círculos que envolviam a primeira giravam no sentido
horário, os dois da segunda no anti-horário. A terra tremeu.
Os relâmpagos rasgaram o ar. No olho da tempestade, a
decisão. Como terminaria? Tudo dependeria não do que se
diz...- Um jogo de cartas, conto de Joshua Christiansen.

I – Pânico

Os olhos da morte caíram sobre seu corpo, os cipós o


envolviam: serpentes. As árvores sangravam. Nos troncos,
faces amenas, sem dor. O sol estava isolado entre as trevas da
noite; sua luz não saía do lugar. Entretanto, o cadáver escuro
sobre a terra apresentava um intenso calor nos dedos
depostos. Olhos vidrados no terror, porém não havia razão
230
para hesitar. A vida descia pelos degraus de pedra musguenta;
chegava no jardim sem claridade. Hora de plantar suas
sementes.

II – Teatro

Os atores se deram as mãos. Qual o texto da peça? Não se


viam espectadores. Porém estavam presentes. Transparentes;
ouvindo um discurso mudo. Monólogo ou diálogo? Eram dois
atores visíveis. No fundo da cena, um espelho. Um vidro que
nunca refletia nada. Ninguém. Fora do edifício, um ciclope
cego aguardava sentado, contando suas ovelhas. Os carros
passavam através da melancolia do gigante. Dos demais
prédios, saíam as estátuas móveis, cansadas. Gesso ou
mármore; o vento esmigalhava tudo. No palco, as cortinas
rasgadas não tinham como encobrir os atores seminus.

III – Transbordamento

No circo, o executivo se derrama. Na companhia, o palhaço


se sente só. A dona de casa rasga o jornal sem riso.
Indiferente, o rio não escorre. A foice corta o céu. Os pássaros
gemem ao subir. Por baixo das máscaras, faces pintadas. Os
macacos mergulham no mar. Na cidade submersa, sorriem os
que saem dos ovos; o que querem? As formigas não sabem;
trabalham, mesmo debaixo d'água. Na assembléia, gritam as
moscas. Belos ogros se perdem na espuma.

IV – Tempo e espaço

A fotografia e o espelho. Olhos e correntes. A cruz dissipa a


neblina. A porta da cela está aberta, mas o rato não sai. Vejo:
foi. No céu, o demônio bate suas asas. Na terra, o ladrão surdo
à voz do anjo.
231
V – Perdido

Veja, sujeito! O minotauro na porta do labirinto. Perguntas


dúbias se inclinam ao horizonte. Tudo pára; a estrada é certa,
mas o cão se desvia em busca do alimento, ainda que sem
fome. Ninguém chega; todos vão. Alguém aguarda diante da
cachoeira; preferem despencar junto com as águas. Após o
corpo se afogar, o espírito se dissolve. Parece acabado. Quem
disse? As paredes são sim e não.- Ilusões e Alusões, do livro
Pelos olhos da Alma, de Joshua Christiansen.

O dragão expele suas chamas, que se expõem em círculo. Ao


bater de suas asas, respira seu próprio vento. Em seus olhos
sem pupilas, raios dentro de lagos; varia a profundidade. De
seus dentes, nascerão os guerreiros alados que irão marchar
pela ponte inclinada, portando armas incandescentes, prontos
para varar as nuvens onde seu pai e mãe irá aguardá-los...-
Alma, do livro Pelos olhos da Alma, de Joshua Christiansen.

O sono tomou repentinamente conta de Elaine, uma jovem


mulher grávida de seis meses; ao deitar, sentiu-se invadida por
um frio inesperado e a princípio um pouco agradável pelo calor
que fazia naquela noite de verão, depois gelando sua pele e seu
peito, fazendo-a primeiro tremer e em seguida paralisando-a.
Com o sangue dando a impressão de congelar, veio o medo, e a
aproximação de estranhas criaturas de cabeças cinzentas
imensas e olhos enormes e escuros intensificou o sentimento,
transformando-o em terror. O grito não se manifestou, apesar
da vontade e do movimento dos lábios e da língua, como se o
som tivesse sido congelado; o silêncio do lugar, como suas
paredes, era branco e asseado. A moça viu no alto então uma
aparelhagem dependurada, que começou a girar devagar. Uma
espécie de raio laser foi projetada em seu ventre, porém não
232
concretizou sua finalidade porque alguém atirou na máquina ao
irromper naquela sala, interrompendo a experiência dos greys.
Na verdade, entravam três indivíduos em uniformes azul-
prateados, dois rapazes e uma mulher de meia-idade, cuja mão
direita foi envolvida por uma aura azul-clara. Ao projetá-la
sobre a grávida na maca, esta desapareceu, enquanto os jovens
usavam armas que disparavam raios violetas. Estes
imobilizavam os cinzentos, paralisando seus sistemas nervosos
e bloqueando seus poderes mentais.
Mais uma ação bem-sucedida do Comando Ashtar, levada a
cabo por dois membros recém-admitidos e uma mais
experiente: Camilla von Strauffenberg e seus filhos, que depois
relataram suas ações aos líderes no sistema solar, Joshua e
Joanna Christiansen.
“Pouco a pouco, estamos conseguindo expulsar os greys da
Terra. Porém ainda é uma erradicação lenta, afinal a tecnologia
e os poderes mentais deles permitem bons disfarces, um
ocultamento até eficiente.”, expôs Camilla, em um salão
amplo, de paredes translúcidas, onde os cinco se sentaram em
volta de uma mesa de um vidro e cristais celestes.
“Não é preciso ter pressa. O mais importante é que temos
conseguido pegá-los no pulo, bem quando estão agindo.”,
Joshua se mostrou satisfeito.
“Só uma observação e não é uma crítica, Camilla...”, Joanna
interveio. “Não seria a hora de parar de se punir pelo passado,
pelas decisões que você julga equivocadas, e deixar de usar o
sobrenome von Strauffenberg?”, sua aparência ainda era a
mesma de anos antes, pois recebera em seu corpo
nanomáquinas semelhantes às de seu companheiro.
“No começo, realmente cogitei carregar esse sobrenome como
se fosse uma cruz, me considerando cúmplice de um monstro
por ter ficado ao lado dele ao mesmo tempo que ele cometia
seus delitos abomináveis; não sabia de nada, mas me condenei
por pensar que devia ter sido mais atenta e observadora.
233
Portanto, não era digna de me livrar desse peso.”
“Enquanto eu, quando tomei consciência dos crimes do meu
pai, só pensei em tirar o sobrenome dele e em usar o de solteira
da minha mãe, e insisti pra ela abolir qualquer rastro dele...”,
interferiu um dos filhos. “Achava absurda a auto-punição
dela.”
“Nós também nunca aprovamos isso, mas ela que precisava se
conscientizar.”, afirmou Joanna.
“Só que as coisas mudam, e algo que tivemos que admitir foi
que eu e meu irmão não existiríamos não fosse o nosso pai.”,
disse o outro filho.
“E resolvi manter o sobrenome não mais pra me punir, porque
não preciso me castigar, Alexander não foi um erro, sem ele
efetivamente não teria tido os meus queridos, e sim porque
cicatrizes fazem parte da vida. Não adiantaria nada tentar
esconder uma cicatriz tão grande...”, em todas as suas
assinaturas, Camilla fazia questão do sobrenome do falecido
marido, desvencilhando-o aos poucos daquele indivíduo, que
por sua vez, como alma, precisava se libertar do passado para
seguir adiante. Na Terra seus filhos que levariam e purificariam
seu sangue.

Na floresta de Naimisha havia eremitas de todos os gêneros,


que se subdividam em duas espécies básicas: os desiludidos
com a existência e os de sincera aspiração espiritual.
Arda, que fora um vaixia muito rico e obeso, agora era o
mais magro de todos, limitando-se a comer um grão de arroz
por dia, que mastigava dezenas de vezes; chamavam-no
também de “ruminante”, já que adquirira o hábito de
mastigar mesmo quando não tinha nada na boca. Mentalmente
ao menos, comia sem parar.
Punja, com seus cabelos desgrenhados, nunca se lavara
desde que chegara em Naimisha. Chamava de irmãs as moscas
e se martirizava quando pisava em alguma formiga,
234
observando atentamente a atividade dos formigueiros em uma
de suas meditações. Certa ocasião, outros cortaram a ponte de
cordas frágeis, sobre um riacho pouco profundo, que o asceta
estava atravessando, para que enfim tomasse um bom banho.
Contudo, graças a seu siddhi recém-adquirido, levitara sobre
as águas...
Ramana fora fazer corte à sua amada, com o belo cavalo de
seu pai, xátria orgulhoso, porém uma violenta chuva se
abatera. Até aí, apesar de molhado, não carregava maiores
preocupações, quando uma carruagem passara apressada e
emporcalhara seus belos trajes de lama. Chegando imundo à
casa da filha de brâmane, era a mãe que estava na janela, não
a filha. Horrorizada, fechara o vidro de forma brusca,
apavorando o garanhão, que para completar dera um pinote e
fizera despencar o cavaleiro. Levantara-se um bom tempo
depois, quando a lua já despontara no céu, manchando a mão
de sangue ao tocar a testa. O cavalo partira para um
espontâneo Ashvamedha e, após o papel ridículo, a família da
noiva se sentira ofendida com o pouco caso do prometido
(como ousara vir tão sujo?!) e dissolvera o compromisso,
dando uma quantia a seus astrólogos para estes dizerem que
haviam errado seus cálculos (ao declará-los destinados um ao
outro desde a infância) e que na verdade os dois nunca
poderiam se casar, havendo inúmeras incompatibilidades
planetárias. Apesar do casamento ter sido arranjado, Ramana
se apaixonara com sinceridade pela jovem, que nunca lhe
devolveria os anéis de ouro e esmeraldas e rubis que recebera
como presentes...
Após esta desilusão, o rapaz se retirara para a floresta, onde
por coincidência reencontrara sua antiga montaria. Como
penitência, nunca se sentava.
Shuna, que andava cheio de arranhões, cicatrizes e marcas
de mordidas, não temia nenhum animal. Kuja estava com o
corpo repleto de hematomas porque uma vez perdera o
235
controle sobre seu siddhi, seu espírito entrara no corpo de uma
moça e vice-versa, sua carne apedrejada e tendo recebido
diversas pauladas por uma multidão que não admitia sadhus
afeminados, ao passo que ela, ao ver seu terrível reflexo na
água, com uma enorme barba, soltara um grito que enfim
fizera Punja cair num lago.
Nem todos eram tão respeitados portanto. O velho Sauti, que
fora quem lograra devolver o companheiro atrapalhado ao seu
corpo, que era ouvido por todos. Não se tratava só de um
contador de histórias, com milhares de fábulas em sua
memória; sabia todos os Vedas de cor e fazia previsões, para
os indivíduos, e profecias, para o mundo. Alguns o temiam
porque nem sempre anunciava visões auspiciosas. Todavia,
quando precisava dizer algo importante à comunidade,
chamava todos os eremitas, sem fazer exceções, não admitindo
fugas, e os macacos e as serpentes cercavam o lugar. Tinha
uma voz grave, de possância irradiante, que levaria um cego a
pensar que era um gigante, mas “não passava” de um anão
sem medo. Calvo, agradava-lhe acariciar sua barbicha
enquanto falava.
“Onde está Saunaka? Achem-no! É preciso que todos ouçam
o que tenho a dizer hoje.”, pediu a um grupo de seus
discípulos, que saíram tropeçando entre as moitas. Iria falar
sobre Kalki, o avatar vindouro. O sábio Saunaka tinha que
estar presente. Depois se lembrou onde o amigo certamente
devia estar.

Ao contrário de seus irmãos de austeridades, Saunaka não


usava barba. Raspara todos os pêlos do corpo, a cabeça lisa, e
em sua testa havia a representação de um terceiro olho, em
tintas vermelhas, que reluzia e se tornava dourado quando o
sábio se concentrava. Este desenho não era um mero adorno
de exibição, como para alardear que possuía sua terceira
visão aberta, e sim um traçado mágico que expandia seus
236
dons. A partir do verdadeiro terceiro olho, órgão espiritual
invisível aos não-clarividentes, conseguia ver outra realidade
e muito mais: além de descortinar o plano espiritual, o olho da
fronte proporcionava siddhis de um nível superior, que
resultavam de uma vontade inabalável.
Entretanto, naquele momento, sentado em posição de lótus,
parecia perturbado, e não tirava a atenção de uma roda de
madeira que girava sem parar entre as árvores. Do tamanho
de um homem adulto e apoiada sobre um suporte que
lembrava dois braços erguidos próximos, com duas mãos que
permitiam seu giro mas não a deixavam escapar, era uma obra
divina de inúmeros detalhes que ficava no centro da floresta:
em imagens esculpidas de forma minimalista referentes à Krta
Yuga, a idade do ouro, faces serenas de aspirações superiores,
reis cravados numa conduta exemplar, santos brâmanes não
cedendo às tentações, os camponeses felizes em suas
plantações e os habitantes das cidades exercendo seus ofícios
com brilhantismo; nas figuras que diziam respeito à Treta
Yuga, a idade de prata, a necessidade de professores e mestres,
pois as virtudes antes espontâneas começavam a precisar ser
aprendidas, de um embasamento teórico e de leis escritas; na
seção dedicada a Dvapara, a era da dualidade, os conflitos
entre a luz e as sombras, deuses e asuras; e em Kali Yuga
milhares de pequeninos seres batalhando constantemente,
formigas em convulsão, imperando a violência, Saunaka
escutando os estalidos metálicos das armas, os choques entre
as espadas, junto com gritos e tambores, e sentindo o cheiro de
sangue, brâmanes devassos cheios de jóias, sua religiosidade
mero formalismo, os rituais esvaziados.
Um javali descia às águas para resgatar um luxuoso rei-
elefante de um monstro marinho; os deuses e os demônios
batiam o oceano lácteo para obter o elixir da imortalidade;
Vishnu de olhos entreabertos, o fechamento de suas pálpebras
marcando a hibernação de um Brahma, o lótus onde o Criador
237
se sentava se fechando e secando com o fim de um grande
ciclo cósmico, um kalpa: estas e outras cenas marcavam a
roda, esparsas em seus diferentes momentos no interior de
cada representação de era ou ora acima, encimando, e ora
abaixo, quando ocorria a volta, porque o movimento
incessante era a única permanência. Nisso o consolo para o
mal, Saunaka um dos mais preocupados com a degeneração
em curso na Kali Yuga, embora um pouco menos desde que
recebera aquele presente.
Ao seu lado, um pequeno e silencioso cãozinho bastardo,
chamado Kulapati, que o acompanhava aonde fosse, de pêlos
brancos e olhos pretos, agitando o rabo, e o sábio também
nunca o deixava para trás. Não feria um único animal desde a
noite na qual, diante da fogueira acesa naquele mesmo lugar,
no coração de Naimisha, pretendera sacrificar um porco aos
deuses, com o intento de aplacar mesmo que fosse um grão de
areia dos males da era das trevas. Não se conformava com
guerras, adultérios e pestilências. Ignorava porém a aflição e
o terror do suíno amarrado, que teria gritado pela lâmina da
faca antes de ser entregue às chamas e levado por Agni à
morada celestial. Pronunciara alguns mantras evocando o
auxílio de Indra e seu raio para punir os malfeitores;
requisitara a justiça no tempo das injustiças, a sua uma época
em que o ouro comprava a maioria dos juízes; que Varuna
tivesse piedade dos ignorantes.
Contudo, antes que golpeasse o porco, uma luz fulminante
por um triz não o cegou e o animal desapareceu. Espantado,
olhou ao seu redor, mas foi ao se concentrar com sua terceira
visão que viu quem agira: “Carne, sangue e cinzas: tudo isso é
transitório, e os filhos e irmãos de Indra não têm o poder de
realizar o que você pede; algo maior há de vir. Ao invés de
pensar no impermanente, de se preocupar com o que é sonho,
foque-se em compreender o que permanecerá quando eu
estiver morto: a placidez do seu oceano, sua paz profunda, o
238
coração apaziguado e o equilíbrio de seu espírito.”, uma voz
que não precisava de lábios para se manifestar: vinha de um
pássaro fabuloso, branco, que lembrava um cisne, porém
muito maior, e que se aproximou do leite misturado com água
que o oficiante teria abençoado e bebido após o sacrifício.
Bebeu apenas o leite, deixando a água. Tratava-se do próprio
Criador, Brahma; depois do choque inicial, Saunaka se
prostrou. O deus foi crescendo em altura, as asas
permanecendo, seu rosto e seu corpo se humanizando, outras
três cabeças brotando de seu tronco e se arranjando aos
poucos. Uma lenda curiosa dizia que um dia tivera apenas
uma cabeça, porém depois de cortar uma parte de seu corpo,
em uma de suas experiências na formação do mundo, gerara
desta um ser feminino, ao qual dera o nome de Satrupa, mas
que ficaria conhecida como sua futura esposa Sarasvati. O
criador (e não era qualquer criador!) se apaixonou assim que
viu sua criatura, não tirando mais os olhos dela, fascinado
com sua beleza. A deusa, envergonhada, procurou fugir dos
olhares de Brahma se movendo em todas as direções, ao que o
Deva, para não deixá-la escapar, gerou outras três cabeças,
uma à direta, uma segunda à esquerda e a terceira atrás da
original. Satrupa voou até o céu, o que fez o deus criar uma
quinta cabeça que só olhava para cima. Assim o Criador
passara a ter cinco cabeças, e após se transformar em cisne a
alcançara no alto, onde fizeram amor. Dessa união teriam se
originado os seres celestiais e o primeiro humano deste ciclo
cósmico, Suayambhuva Manu. A quinta cabeça, contudo, teria
sido queimada por Shiva, após uma discussão entre os dois
entes supremos, que logo decidiram parar de brigar ou o
universo sofreria sérias conseqüências.
Diante de Saunaka, sua pele era da cor do céu estrelado; sua
cabeça primordial tinha sobre si uma coroa de ouro e pedras
preciosas que se abria em vários andares, a base mais larga e
o topo um botão meticulosamente esculpido; trajado em
239
vermelho, calçava sandálias, seus pés com dez dedos; e
mostrava quatro braços, repletos de colares e braceletes de
ouro e pedras preciosas, segurando em cada uma das mãos um
objeto: uma flor de lótus, um cetro, um rosário e uma roda...
O asceta era também um erudito de grande renome,
conhecido por sua atividade como gramático e pelos tratados
de fonética e fonologia. Do seu ponto de vista, a língua era um
presente dos deuses para que os homens não só se
comunicassem entre si como tivessem acesso a estâncias
superiores. Ensinava a quem desejasse aprender as corretas
pronúncia e entonação dos mantras e hinos védicos. Fora o
professor do grande brâmane Katyayana, matemático e
também estudioso do idioma, famoso por uma reelaboração da
gramática de Panini e pela composição de alguns Sulba
Sutras, textos a respeito da geometria da construção de
altares. Tinha orgulho do discípulo, ao qual dera inúmeras
aulas sobre o valor da palavra: “As sagradas palavras não
são, como parecem, resultados da convenção humana. Elas
foram dadas a nós, advindas de planos superiores. Ainda que o
objeto não seja perene, a essência do seu sentido é como o
ouro usado para fazer diversos ornamentos: as formas
trabalhadas mudam, mas o material é eterno.”, contudo, toda
essa cultura era reduzida a pó, tomava uma aparência
insignificante diante da grandiosidade de um deus como
Brahma.
“Este presente que vou lhe dar irá ajudá-lo a entender a
transitoriedade dos fenômenos, para que se entretenha mas
não se envolva com eles. Tente compreender: um dia o
universo voltará ao estado latente. Quando isso ocorrer, não
haverá mais periferia, só existirá a sua consciência, isso se
quiser permanecer em deleite com o Todo, caso contrário
adormecerá junto com o oceano, que não apresentará mais
ondas, aguardando que estas voltem a se mover e se levantar
pela vontade do Supremo. Este kalpa ainda há de durar muito
240
do ponto de vista humano, só que fatalmente a criação será
dissolvida e até eu terei um fim. O que você prefere? Se manter
desperto mesmo à noite ou despencar no esquecimento?
Trabalhe; mas não se aflija; lembre-se; mas não se angustie
pelo que passou. Liberte-se das convenções e da dor.
Compreenda a renúncia e o desapego. Se quer ajudar ou
receber ajuda, livre-se do desejo a esse respeito. Encontre
satisfação em si mesmo. Só então não precisará mais dormir
quando o sol se puser.”, Saunaka sabia dos dias e noites
daquele que lhe falava, respectivamente as fases de expressão
e manifestação e as fases de potencialidade, às quais todas as
criaturas estavam sujeitas a menos que atingissem a plena
Liberdade, Moksha, mantendo a percepção de Si próprias
ainda que sem veículos para se manifestarem. Para isso, era
preciso alcançar a santidade, a pureza absoluta, sem se
apegar às aparências e aos frutos das ações, agradando-lhe
uma imagem dos jainas segundo a qual as mônadas dos seres
vivos eram como cristais, obscurecidos pelas impurezas do
karma, que se acumulavam feito poeira; uma vez livre do
karma, um espírito se apresentaria como uma mônada
perfeitamente limpa e cristalina. Para chegar a isso, quanto
trabalho! A diferença era que os jainas acreditavam na
autonomia de cada mônada, perfeitas em si mesmas, enquanto
Saunaka, como brâmane, sabia que num determinado
momento chegaria a hora de uma religação a uma fonte
primordial, o Brahman, a Divindade eterna e impessoal, a
Existência essencial da qual emanavam todos os fenômenos,
inclusive o Criador, Brahma. Apesar dos nomes semelhantes,
havia uma grande diferença entre fonte e emanação, causa e
fenômeno, o deus Criador sendo mais um entre tantos
fenômenos, e por isso também perecível, transitório. O
Brahma que aparecera ao asceta ia para o seu último dia, seu
último kalpa, cujo término não significava portanto uma volta
à Divindade essencial para todas as criaturas: sem
241
alcançarem Moksha, com a dissolução cósmica os seres
retornavam meramente ao poder de Brahman, não à Origem,
permanecendo adormecidos num estado imanifesto até o
momento de se re-manifestarem. O poder de Brahman,
conhecido como Prakriti ou Maya, formava a partir de si os
fenômenos mentais e materiais, começando por um corpo que
poderia ser identificado como um deus pessoal, Ishvara, que
posteriormente se manifestava como uma trindade, a sagrada
Trimurti: Vishnu, Brahma e Shiva, preservação, criação e
destruição. Na verdade, os Brahmas eram sempre os últimos a
surgir, pois Vishnu era o aspecto de perene existência do
Brahman e Shiva sua característica de transformação e
mudança, portanto eternos, enquanto um novo criador era
gerado do umbigo do Preservador depois de cem kalpas, ou
seja cem expansões e cem contrações cósmicas: um
mahakalpa, após o qual o falecido Brahma anterior se
reintegrava à roda dos renascimentos, e quando o universo
tornava a existir se encarnava em uma condição privilegiada
para obter a Libertação, com a qual não poderia mais nascer
ou morrer, não estando mais sujeito ao poder de Prakriti,
entrando e deixando o mundo à vontade, e tal era a condição
de todo aquele que se Realizava no yoga, o objetivo de
Saunaka...
O Criador o presenteara, ao fim da conversa que tiveram,
com a roda que agora estava no centro da floresta. Antes de
partir, tomou mais uma vez a forma de esplendoroso pássaro, o
Hamsa, muito mais do que o cisne ou ganso ao qual aludiam
os textos; e voou para os Céus.
“Aí está você. Sabia que iria achá-lo aqui.”, de volta ao
presente, Sauti reencontrou o velho amigo onde esperava.
“Tem algo importante a dizer, que requeira a presença de
todos?”, indagou o lingüista, permanecendo de costas para o
outro eremita.
“O tema será bem interessante para todos, principalmente
242
para você. Recebi uma revelação a respeito de Kalki, o avatar
desta era. A vinda dele não está tão distante como
pensávamos.”
“Na conversa que tive com Brahma quando fomos
presenteados com este chakra, ele aludiu a algo maior que
estaria por vir.”, em sua imensidão, cada kalpa se subdividia
em duzentos mahayugas, cada mahayuga o conjunto das
quatro eras representadas na roda, denominadas yugas, da
idade perfeita, Krta, à era das sombras e da violência, Kali, ao
término da qual o ciclo recomeçava com uma nova idade do
ouro, que depois iria decair, assim até o fim de um universo e o
nascimento de outro.”
“O que para os deuses passa depressa, para nós tarda. De
todo modo, Kalki virá com relativa brevidade e a sua aflição
poderá diminuir, meu amigo.”
“Eu deveria reduzir a minha preocupação com o mundo. Sei
que é tudo transitório, que uma nova idade perfeita virá, e que
mesmo esta terá um fim, pois a decadência é inevitável. Mas
não consigo ignorar a dor das criaturas! Não posso ignorar o
grito, o pranto, as angústias causadas pelos massacres
indiscriminados; não me conformo com o egoísmo
desenfreado, se bem que talvez o meu sentimento seja uma
forma de egoísmo, o que me impedirá de algum dia me unir ao
Brahman.”
“O seu amor pelos seres vivos nunca será um obstáculo.
Afinal, se Vishnu não amasse sua Maya, não haveria
manifestação.”
“Mas é justamente por isso, Sauti. Como vou poder sair do
mundo das formas, e mergulhar na essência, se não me
desapego do palpável?”
“Não há razão para angústia. Algum dia, estou certo que não
irá mais se afligir. E amará da forma mais pura, sem apego,
separando o leite da água. Por enquanto, só lhe resta observar
e aceitar. Se tentar lutar contra esse problema, será uma luta
243
perdida. Não entre em batalhas! Você não precisa alcançar a
Libertação amanhã porque ela já está em você neste exato
momento, o verdadeiro yoga consiste em descobrir que Somos
o que sempre fomos e sempre seremos: o atman, a centelha de
Brahman. O seu problema está em seus condicionamentos, nos
conceitos que criou e que poluem a água no trecho do Oceano
que é você. Tenho a intuição que o seu destino é, antes de
obter Moksha, se tornar um Brahma e criar o seu próprio
universo, que amará com toda a intensidade do seu ser
enquanto durarem os seus dias.”
“Se fosse assim, por que o Criador deste nosso mundo não
teria dito nada a respeito?”
“Vishnu ainda deve estar observando os possíveis sucessores,
entre os espíritos mais nobres. E o atual Brahma não diria
nada de forma direta, mas deve ter deixado, se estou correto,
escapar alguma sugestão, ou algum sinal.”
“Pensando bem, é verdade. Pelo que me disse, consegui
deduzir que este será o seu último kalpa. Será que veio me
procurar justamente para começar a minha preparação? Esta
bendita roda...É uma síntese da criação, uma obra de arte
divina que a cada vez que observo percebo novos detalhes.
Como será criar um universo? Diante de algo de tamanha
magnitude, me perco nas minhas reflexões e perguntas, fico
pensando em como seria moldar cada forma, dar corpo a cada
ser recém-despertado!”
“Deixe de lado os questionamentos e viva. O que é certo é
que tem a eternidade à sua frente para compreender. Não pule
os degraus imaginários de uma escada que não tem nenhum
degrau.”
“Isso é bem típico seu. Joga a moeda, e depois a puxa de
volta.”
“Sou cruel, não sou?”, Sauti esboçou um sorriso.
“Mas me diga, o que de novo lhe foi revelado sobre Kalki que
já não esteja nos sagrados Vedas? Como se encontra na Gita,
244
o senhor de todas as coisas a cada época desce ao mundo e se
encarna com um novo nome para libertar o santo, destruir o
pecado do pecador e estabelecer a justiça.”
“E claro que o demônio a ser enfrentado em uma Kali Yuga,
fruto de toda a degeneração acumulada, será muito pior do
qualquer monstro das eras anteriores. O terrível Ravana, perto
do inimigo que virá, não passaria de uma mosca.”
“Mas o que há de novo?”
“Seja paciente. Saia daí e venha comigo. Venha ouvir com
todos.”
“Está bem...”, e dessa forma Sauti terminou de reunir todos
os eremitas de Naimisha para contar o que sabia e devia sobre
o avatar Kalki.
Kulapati, no qual não estavam reparando, observava tudo em
silêncio. Nunca latia, a ponto de Saunaka se questionar se o
cãozinho era mudo; sua língua estava em perfeito estado. Na
realidade, era muito mais do que um simples cão: em seu
peito, no espelho contido em sua centelha, milhares de rodas e
triângulos, atravessados por raios, se cruzavam sem parar, e
sem perder a constância nos movimentos, que se repetiam sem
erro, sem que nenhum detalhe fosse esquecido; Kulapati era o
deus Dharma, a personificação das leis da vida, da ordem do
cosmo. Vinha treinando seu “dono”, sem que este percebesse,
para levá-lo a compreender a Lei; e mesmo que Saunaka
desencarnasse, que trocasse de corpo, que seu espírito fosse
para outro planeta, não haveria problema: o acompanharia,
sob outra forma, ensinando-o de outra maneira, tudo
perfeitamente calculado para culminar no Dia em que o asceta
fosse se tornar o Criador de um novo universo.- Criação, conto
de Joshua Christiansen.

Com o tempo, a Terra começou a ser introduzida no contexto


cósmico sob a supervisão do Comando. Diferentes civilizações
extraterrestres de intenções construtivas passaram a se
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manifestar primeiro a pequenos grupos de indivíduos,
pesquisadores tanto de ciência como místicos, e depois às
massas.
Alguns séculos transcorreram, os terráqueos já capazes de
viajar para outros sistemas solares, quando Joshua e Joanna
rumaram para estrelas longínquas. Com o crescimento de seu
amor e de sua consciência, uma galáxia distante se abriu à
verdade de seus corações. O Caminho só podia prosseguir,
entre a solidez e a luz.
Seus corpos mudariam e, na noite sem fim, após a semente
dele penetrar em seu ventre, foi parida uma nova espiral de
vida: um ser com milhares de olhos; e cada um destes olhos era
um sol, conquanto nunca fossem se esquecer de seu sistema
solar de Origem e de sua Terra, que continuaria a morar no
interior de ambos mesmo quando deixasse de existir no
espaço...

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