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0007
* Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, MG. Email: alexrezendeh@yahoo.com.br
crise de identidade e decidi procurar uma Esse silêncio, que também é imposto
solução para o conflito. É também aquele ao sujeito, torna-se perceptível quando o
que será posto em processo no sentido da assunto está ligado às questões de gênero,
lei, da justiça, já que será questionado, co- de sexualidade. Há uma pobreza cultural
brado e, certamente condenado pela “socie- para lidar com tais assuntos, vê-se que a so-
dade de vigilância”. Contudo, a decisão de ciedade ainda é patriarcal e heterossexista.
se aceitar prevalece no romance e o sujei- Contudo, essa luta individual representa
to está disposto a enfrentar tais desafios, uma coletividade que é sufocada, reprimida
tornando-se um sujeito questionador das e discriminada, mas que se mostra decidida
estruturas estabelecidas. A passagem reti- a lutar contra a ignorância que é perpetuada
rada do prefácio do romance, escrito pela por discursos pré-constituídos.
autora, nos orienta acerca do caminho a ser Confirmando o exposto, Butler conside-
trilhado pelo personagem: “Alexis, abando- ra haver um controle de corpos por meio do
nando sua mulher, apresenta como motivo “sexo” por meio de uma prática regulatória:
de sua partida a procura de uma liberdade
sexual mais completa e menos corrompida
por mentiras, e é essa razão que, na verda- Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas
de, permanece decisiva.” (YOURCENAR, funciona como uma norma, mas é parte
1981, p. 10). de uma prática regulatória que produz
Percebemos pelo relato de Alexis que os corpos que governa, isto é, toda força
sua infância foi solitária e que, de acordo regulatória manifesta-se como uma espé-
com a tradição da família, muitos assuntos cie de poder produtivo – demarcar, fazer,
eram proibidos. Além disso, uma vivência circular, diferenciar – os corpos que ele
religiosa era frequente. Na passagem que se controla. (BUTLER, 2001, p. 153-4).
segue, o personagem fala desse silêncio, que
é para ele uma falta grave, já que represen-
ta a impossibilidade de se confirmar em si O personagem se sente por um tempo
próprio, de se conhecer: confortável ao assumir uma identidade que
não é sua, mas que é imposta por aqueles
que o cercam: “Sentia-me satisfeito por vi-
Minha infância foi solitária e silencio- ver segundo o ideal de moralidade passiva,
sa, tornando-me tímido e, consequen- um tanto tíbia, exaltado por todos à minha
temente, taciturno. Basta dizer que te volta.” (YOURCENAR, 1981, p. 50). Esse con-
conheço há quase três anos e só agora forto inicial se tornará um conflito no mo-
ouso falar-te de mim pela primeira vez! mento em que essa “identidade outra” não
E ainda assim porque esta carta tornou-se estiver mais de acordo com os desejos cor-
inadiável. É terrível que o silêncio possa porais e sexuais do personagem.
ser uma falta, a mais grave das minhas Percebemos com Nolasco que, além da
faltas. Mas eu a cometi. Antes de tê-la co- família, a escola – que incorpora as deman-
metido para contigo, eu a cometi para co- das comportamentais da sociedade sexista –
migo mesmo. (YOURCENAR, 1981, p. 27). faz que a criança cresça na dúvida sobre os
comportamentos: “No processo de sociali- Não se ver diferente das mulheres mostra
zação de um menino, surgem dúvidas que que o binarismo “homem/mulher, macho/
jamais se extinguem acerca do seu comporta- fêmea, azul/rosa” não é uma fundamen-
mento sexual, produzidas pela família e esco- tação tranquila e que deve ser repensada e
la. Por meio dessa dúvida se estabelece o que questionada em termos de um pensamento
é esperado de um menino: virilidade, agressi- que respeite a diversidade.
vidade e determinação.” (NOLASCO, 1995, p. Esse “sujeito em curso” se vê confron-
18). Esses são fatores problemáticos em rela- tado com limites que cabe a ele atravessar.
ção ao processo por que passa o sujeito. Isso O personagem do romance, Alexis, atraves-
pode ser visto como o motivo de se perpetuar sa esse limite imposto ao gênero e ao sexo
práticas machistas e homofóbicas, que não pela sociedade, como se percebe no excerto:
aceitam comportamentos afeminados para “Repetia-me que a vida seria eternamente
o homem ou masculinizados para a mulher. aquela parede cinzenta, aquelas vozes dis-
Essa prática regulatória faz prevale- tantes e aquele mal-estar perturbador pro-
cer o ideal de uma sociedade heterossexual veniente de não sei que angústia oculta.”
como norma. Utilizando-se da fala do per- (YOURCENAR, 1981, p. 46). A angústia vivi-
sonagem, pode-se dizer que: “A vida é algo da pelo personagem é a mesma vivida por
mais que a poesia e é algo mais que a fisio- aqueles que saem dos limites heterossexis-
logia, e até mesmo mais que a moral em que tas, ou seja, homossexuais, travestis, lésbi-
por tanto tempo acreditei.” (YOURCENAR, cas, transexuais etc.
1981, p. 31-2). Não é a fisiologia do corpo A noção de pecado veiculada pela reli-
ou a moral social e religiosa que devem di- gião, e que pesa fortemente sobre o indiví-
tar as normas sexuais e comportamentais. duo, serve mais uma vez para pôr em crise
É a partir desses apontamentos que haverá a uma identidade que está se processando:
possibilidade de questionar a oposição binária “A princípio, acreditei que se tratava apenas
homem/mulher e todo o discurso ultrapassa- de evitar as ocasiões do pecado; logo percebi
do que caracteriza cada uma dessas esferas. que nossas ações têm apenas o valor de sin-
Essa oposição relacionada ao sexo tomas; é nossa natureza que seria necessá-
pode ser entendida como o motivo causa- rio mudar.” (YOURCENAR, 1981, p. 74). Para
dor da crise de identidade vivida pelo per- estar em acordo com as normas comporta-
sonagem. Quando ele nos diz que: “Não mentais, o personagem acredita ser neces-
nos apaixonamos por aquelas a quem res- sário mudar sua natureza. A angústia será
peitamos, nem mesmo por aquelas a quem o resultado desse choque entre desejos pes-
amamos. E, acima de tudo, não nos apaixo- soais e os desejos do outro (heterossexual).
namos pelos nossos iguais. E não era certa- Esse fato é comum em nossa sociedade que
mente das mulheres que eu me sentia di- impõe ao sujeito práticas heteronormativas.
ferente.” (YOURCENAR, 1981, p. 37), vemos O espelho se torna emblemático no ro-
que ao se identificar com as mulheres o per- mance, pois é ele quem mostra a verdadeira
sonagem se vê cruzando um limite proibido identidade do personagem: “Odiava aque-
pela moral e pela sociedade de controle que le espelho por infligir-me minha própria
não aceita a “inversão dos papéis sociais”. presença.” (YOURCENAR, 1981, p. 75). Uma
identidade que não é aceita pela socieda- máscaras que havia colocado para se confor-
de e nem pelo personagem, que não se viu mar as cobranças da sociedade:
ainda como agente de sua própria escolha.
O espelho representa “frente e verso” que
não se sobrepõe, sendo, portanto, o símbolo Prefiro o erro (se é erro) à negação de
para essa crise que se instala. si mesmo que é o limite da demência.
O conflito se agrava quando o perso- A vida me fez aquilo que sou, isto é, pri-
nagem vê na instituição do casamento2 uma sioneiro (se assim se quer) de instintos
saída possível para seu conflito. Suas ideias que não escolhi, mas aos quais me resig-
religiosas e o peso do pecado o compeliram no e me entrego. À falta da felicidade, essa
a esse fim. O casamento seria uma forma aceitação, assim espero, me proporciona-
de agradar a família e a sociedade que es- rá a paz. (YOURCENAR, 1981, p. 123).
tão em vigilância, mas o caminho tomado
se torna um agravante para a situação do
personagem. A identidade procede, por conseguin-
O suicídio é visto pelo personagem te, de uma tensão conflitante entre as ló-
como uma possibilidade de fuga, mas não gicas sociais e as necessidades do sujeito.
chega a se efetivar: “Posso dizer-te que ama- Pode ser vista como uma forma de estabele-
va a vida. E foi em nome da vida, isto é, do cer ajustamentos num determinado tempo
meu futuro, que me esforcei por reconquis- e contexto.3
tar-me a mim mesmo. [...] Passei pela ob- O romance finaliza mostrando a acei-
sessão do suicídio, como passei por outras tação, com ressalvas, do personagem acer-
ainda mais abomináveis.” (YOURCENAR, ca de sua identidade sexual. Aceita-se, mas
1981, p. 78). Essa crise de identidade pode, sabe que os conflitos ainda persistiram
portanto, ter consequências fatais para por causa da visão restrita da sociedade
aqueles que não conseguem chegar a uma heteronormativa:
compreensão e a uma aceitação de si pró-
prios, como sujeitos de escolha.
Contudo, é a percepção de sua diferença Não tendo podido viver segundo os pre-
em relação às demais pessoas que leva o per- ceitos da moral estabelecida, procuro,
sonagem a negociar sua posição dentro da pelo menos, estar de acordo com a mi-
sociedade. De acordo com Giust-Desprairies nha própria. No momento em que de-
(2005): “A identidade se inscreve no tempo, cidimos renegar todos os princípios, é
nos espaços e situações. Ela é um confronto conveniente que conservemos, no míni-
e uma negociação renovados entre realidade mo, os escrúpulos. [...] Peço-te humilde-
e ideal, cujos resultados se fazem ver em ter- mente, o mais humildemente possível,
mos de escolha, de investimento, de projetos perdão, não por te deixar, mas por ter
ou de renúncias.” (GIUST-DESPRAIRIES p. ficado por tanto tempo. (YOURCENAR,
202). O personagem renuncia, portanto, às 1981, p. 123/124).
4 YOURCENAR, 1981, p. 06
5 FUNK, 1992, p. 67