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Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
O teatro
de Tiago
Rodrigues
está sujo de
realidade
Sopro, no Dona Maria II: a síntese do percurso do encenador
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Flash
Sumário
4: Tiago Rodrigues
O braço-de-ferro entre
Livro póstumo de Sam Shepard
realidade e ficção vai a
palco em Sopro em Dezembro MAGNET/MCT
Ficha Técnica
Director David Dinis
Editor Vasco Câmara
Design Mark Porter,
Simon Esterson
Directora de Arte Sónia Matos
Designers Ana Carvalho,
Ana Fidalgo e Mariana Soares
E-mail: ipsilon@publico.pt
The Spy of the First Person: o narrador é um homem que se deixa guiar pela sua memória e está
totalmente dependente de quem lhe é mais próximo para continuar a viver
Gonçalo
Frota
nova, examinar um tema inédito [no biografia da Cristina Vidal nem com em simultâneo, com dois níveis dife-
seu percurso], aprender sobre um a história do teatro português”, ad- rentes de memória. A memória dos
determinado universo de conheci- mite o autor, reconhecendo que a actores, uma memória funcional e
mento”. “Isso implica colocar-me partir da recolha dos relatos da pon- comum a qualquer habitante deste
na situação às vezes frustrante, mas to do Nacional urdiu depois uma efa- mundo, construída, equivocada,
muito entusiasmante, de não saber bulação em que os factos têm o seu abastardada, sobrevivente durante o
como se faz. Para evitar constante- lugar mas não condicionam nem do- decurso de uma vida, até que se apa-
mente a fórmula e colocar-me, na minam cada cena. ga de supetão ou faseadamente, só
medida do possível, face ao desco- Essa manipulação da realidade em podendo superar a morte no caso de
nhecido. Claro que face ao desco- favor do emergência de uma ficção é ser transmitida a terceiros; mas tam-
nhecido recorremos aos nossos tru- uma das linhas de força no teatro de bém a memória histórica, aquela que
ques, aos nossos hábitos e ao nosso Tiago Rodrigues. E isso vem já de diz respeito não a um indivíduo mas
vocabulário, mas é muito diferente trás. Em Se Uma Janela se Abrisse a um colectivo, uma certa oficializa-
de estar face a um processo de tra- (2010) imagens reais de um telejornal ção do passado. Tais memórias são
balho em que sei exactamente o que das 20h da RTP, apresentado por João convocadas para Sopro, argumentan-
adulteradas, exactamente como fazer”. E esse é estimulava toda uma reflexão e reco- ser indisciplinado.”
truncadas,
incompletas,
mas que por isso Em palco, a ponto Cristina
permitem uma Vidal — há 39 anos nessa
profissão — torna-se o centro
reinvenção” de um espectáculo
6 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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C
ristina Vidal fala sem que aconteceu — mais ou menos
lhe oiçamos a voz. Mas transformado pela escrita —, há
diz-nos, por exemplo, também algo de especialmente
como foi cativada para belo para Tiago Rodrigues na
Sopro, para subir a um “memória do que não aconteceu”.
palco, à vista de todos, “Este espectáculo é, de alguma
quando o maior elogio que se pode forma, uma tentativa de completar
fazer ao seu trabalho é ignorar a algo que não aconteceu.” Tiago
sua presença. “A minha glória é refere-se às falas que Cristina
ninguém saber que existo. Sou a alegadamente nunca esqueceu (no
única pessoa do teatro para quem caso de aceitarmos a veracidade da
receber cumprimentos do público história), de uma actriz que não as
é um fracasso”, revela através da conseguiu dizer em palco, num
escrita de Tiago Rodrigues e da voz sintoma de um carregado drama
de Beatriz Brás durante a peça que pessoal, e que ficaram para sempre
troca por completo as voltas à penduradas na vida da ponto,
profissão a que se dedica há 39 como uma peça fora do sítio, uma
anos — 25 dos quais no Teatro constante sensação de algo
Nacional Dona Maria II. desarrumado e, até agora,
Sopro começa por registar o impossível de corrigir.
primeiro encontro entre Cristina Essa ideia, no entanto, lembra
Vidal e Tiago Rodrigues, num café também o encenador daquilo que
junto ao Dona Maria II, a fim de acontece no final dos espectáculos
puxar o público para o início desta do Teatro Nacional, de uma
improvável subida ao palco de imagem que o comove e a que
quem se dedica a uma profissão assistiu em várias ocasiões, quando
em vias de extinção, uma Cristina Vidal ou João Coelho (os
verdadeira raridade hoje em dois pontos da casa) se dirigem aos
território europeu. Só depois actores para os “relembrar daquilo
dessa discussão prévia, hesitante que não disseram, fazer-lhes a lista
ainda sobre o rumo a dar ao das coisas que não aconteceram
espectáculo, as viagens no tempo naquela noite”. “Sempre achei que
começam a tomar conta da peça, isso tinha uma força poética muito
as memórias de Cristina a agitar-se grande”, admite.
e a ser recriadas como se, no A deslocação de Cristina Vidal
espaço daquelas nove chávenas de pelo palco, ‘pontando’ como
café que leva a ser convencida a habitualmente, mas à vista do
entrar em Sopro, a incerteza público, e dirigindo cada marcação
quanto ao desafio que lhe é dos actores, faz com que a sua
proposta estivesse sempre a ser presença silenciosa, embora
atravessada por algumas das mais orbitando em torno dos outros, se
fortes recordações que guarda torne algo de central em Sopro. Daí
deste seu ofício, em que divide a que Tiago Rodrigues se sinta
atenção entre o texto e o actor / a tentado a colocar esta peça ao lado
actriz em cena. de outras como By Heart, Ifigénia (a
“Aceitei imediatamente, não sua reescrita do clássico de
foram necessários os nove cafés”, Eurípedes), Bovary ou Como Ela
ri-se a ponto do Teatro Nacional Morre (a partir de Anna Karénina,
após a estreia do espectáculo em de Tolstoi) como um texto que
Avignon. “Mais tarde arrependi- elege uma figura feminina como
me várias vezes, porque achava “heroína”, como centro nevrálgico
que não ia conseguir fazer aquilo de toda a acção.
que o Tiago esperava de mim, No emaranhado de factos e
porque achava que as expectativas ficções, não é claro, nem
dele iriam ficar goradas e tinha importante, perceber o que é real
muito medo. Só que já tinha dito ou o que é falso. Talvez muitos
que sim, e a palavra para mim é a momentos sejam ambos, em
coisa mais importante. Não há simultâneo. O que é
contratos escritos que valham inequivocamente verdade é que
tanto quanto dizer sim.” Não uma mulher que nunca teve o
poderia, de facto, ser de outra menor desejo de estar em cena
maneira. A palavra é a matéria de está de facto a pisar as tábuas do
trabalho de Cristina Vidal e o seu palco e a viver um acontecimento
valor é algo de inviolável. biográfico. Essa parte não é falsa.
Se Sopro assenta, numa primeira Está mesmo a acontecer à nossa
linha, na memória daquilo que frente. G.F.
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 7
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Aki Kaurismäki
diz que
O Outro Lado
da Esperança,
história de
amizade entre
um finlandês e
um refugiado
sírio, vai ser o
seu último filme.
Conversa com
alguém que se
define como
preguiçoso,
poeta, idiota e
ecologista.
Jorge
Mourinha,
em Berlim
F
azer perguntas a Aki Kauris-
mäki — numa entrevista ou
numa conferência de im-
prensa — é uma experiência.
Não é que o homem não te-
nha coisas a dizer, que as
tem (e que as sabe dizer). Um jorna-
lista israelita fala do lado abertamen-
te nostálgico que o seu cinema tem,
a sensação de que estamos num fil-
me fora de tempo inspirado nos clás-
sicos dos anos 1930, e o finlandês
responde: “O meu nome do meio
podia perfeitamente ser Nostalgia.
Aki Nostalgia Kaurismäki. Aliás, é
esse o meu nome do meio. Está no
passaporte e tudo.” (Não é nada, o
nome do meio é Olavi.) O jornalista
insiste: essa nostalgia nunca é gra-
tuita, tem sempre uma razão... “Eu
nunca analiso nada. Se um pelotão
de fuzilamento me viesse buscar às
seis da manhã eu batia-lhes a conti-
nência, porque estou sempre inte-
ressado em tudo, até mesmo na ba-
la.” Há um sorriso pelo meio, como
quem pisca um olho, como quem
diz que é tudo mentira ou que é tu-
do verdade.
Será tudo um jogo, ou será que
pelo meio do humor seco, da comé-
dia stand-up em versão desacelerada
a que Aki Kaurismäki (n. 1957) nos
habituou ao longo dos anos se reve-
la mais do que o cineasta aparente-
mente diz? Durante os 30 minutos
de uma entrevista colectiva em que
o Ípsilon esteve presente em Feve-
reiro, no Festival de Berlim, o autor
de Le Havre, Sombras no Crepúsculo,
O Homem sem Passado ou Contratei
um Assassino diz que O Outro Lado
da Esperança, que acabava de ser
recebido triunfalmente no certame
alemão (e ganharia o Urso de Ouro
10 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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“Não sou um
pessimista quanto
É então um filme sobre o futuro? “O
futuro é uma chatice.”
Mesmo que Kaurismäki não pro-
nuncie nunca a palavra, O Outro Lado
Tempos modernos
à humanidade da Esperança é evidentemente um
filme político. Na conferência de im- O desencanto com os “tempos modernos”:
mas acho prensa, tinha dito: “Não temos, no
último século, tomado conta da nos- o retronos filmes de Kaurismaki não
que a nossa sa cultura humanista. Temos um tipo
de organização democrática que se é uma questão de decoração mas antes
curiosidade vai vai desfazer em dez anos porque não
somos boas pessoas. A nossa cultura a expressão de uma “filosofia”.
matar-nos. resume-se a um mílimetro de poeira
sobre os nossos ombros. Há 50 anos Por Luís Miguel Oliveira
Eisenhower disse tínhamos 60 milhões de refugiados
na Europa; então ajudámo-los, hoje
SIVU + BENJAMIN
FRANCIS LEFTWICH
Novembro 2017
TeCA · 10-19 nov TNSJ · 16 nov – 3 dez MSBV · 17+18 nov
Teatro qua+sáb 19:00 qui+sex 21:00 dom 16:00 qua+sáb 19:00 qui+sex 21:00 dom 16:00 Estreia sex 10:00-19:30 sáb 9:30-13:00
Nacional
São João A Grande A Promessa Práticas de
Arquivo em Artes
Teatro Vaga de Frio de Bernardo Santareno
encenação João Cardoso
produção TNSJ Performativas
Carlos com Orlando de Virginia Woolf M/12 anos
Alberto Debate | Workshop | Edição | Espetáculos
organização Centro de Estudos Interdisciplinares
dramaturgia Luísa Costa Gomes
conceção e direção Carlos Pimenta do Séc. XX (CEIS20/UC), Fundação GDA, Instituto
Mosteiro interpretação Emília Silvestre de História da Arte (FCSH/UNL), Teatro Académico
de Gil Vicente, TNSJ
São Bento coprodução Ensemble – Sociedade de Actores,
Centro Cultural de Belém, TNSJ
da Vitória M/12 anos
MSBV · 21 nov · ter 21:00
Leituras
MSBV · 9 nov · qui 19:00
no Mosteiro
Fórum do Futuro Martin Crimp, Anthony Neilson, Sarah Kane,
Repensar o Antropoceno Simon Stephens
MIGUEL MANSO
Lucinda
Canelas
Não há
guiões, nem
personagens,
nem ficção. O
que há nos filmes
e fotografias de
Sharon Lockhart
é pessoas a
fazerem de si
mesmas, sem
inventar nada.
Um universo de
recriações em
que ninguém
perde a noção
da presença da
câmara. Para
ver no Museu
Berardo, em
Lisboa, até 28
de Janeiro.
Aqui toda O
s filmes e as fotografias de norte-americana se tenha dado con-
Sharon Lockhart não são ta disso.
apenas aquilo que vemos “Tenho 53 anos e só agora começo
—são o que acontece antes a ser capaz de olhar para o meu tra-
e o que vem depois, são o balho. Até aqui estava sempre a fa-
que resulta de um encon- zer, a fazer, sem tempo para olhar...
tro com pessoas e com lugares que Acho que este processo de escrita
lhe eram estranhos e que hoje lhe em que eu e as miúdas trocamos tex-
a vida é
são próximos, familiares, íntimos. tos obrigou-me a olhar para o que
Parece haver entre ela e estas actri- faço, a explicar-me, a parar”, diz ao
zes —chamemos-lhes assim à falta Ípsilon minutos depois de uma visi-
de melhor palavra para designar ta guiada à exposição que inaugurou
uma série de adolescentes e jovens recentemente no Museu Colecção
mulheres que fazem de si mesmas Berardo, My Little Loves, durante
-, que conversam em Rudzienko uma conversa em que não poderia
(2016) ou se soltam em When You’re deixar de fora Rudzienko, o segundo
encenada
Free, You Run in the Dark (2016), uma filme da sua trilogia polaca, a que
confiança daquelas que permitem começa com Podwórka (2009) e ter-
correr de olhos fechados e que de- mina com The Little Review (2017),
moram anos a instalar-se. Sharon obra com que representa a Polónia
Lockhart não tem pressa. O tempo, na Bienal de Arte de Veneza, que
aliás, está no centro do seu trabalho ainda está a decorrer.
desde a década de 1990, mesmo que O historiador de arte Pedro Lapa,
só muito recentemente a artista antigo director deste museu instala-
14 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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“Tenho 53 anos e só
agora começo a ser
capaz de olhar para
o meu trabalho. Até
aqui estava sempre
a fazer, a fazer, sem
tempo para olhar...
Acho que este
processo de escrita
em que eu e as
miúdas trocamos
textos obrigou-me
a olhar para o que
faço, a explicar-me,
a parar”
MIGUEL MANSO
do no Centro Cultural de Belém, é o sua obra tem uma participação mui- 2009, parando nos pátios de cidades ções humanas: “A Sharon não quer dwórka, por exemplo, é provável
comissário desta exposição que é to significativa dos envolvidos”, diz, que cresceram à sombra das gran- criar uma grelha de leitura destas que imagine que registou aquela
co-produzida pelo Doclisboa, o fes- sublinhando a preocupação da ar- des indústrias têxteis e em centros comunidades, o que ela quer é mos- brincadeira de crianças, espontâ-
tival que termina amanhã e por onde tista norte-americana em não inva- de reabilitação social para jovens, trar os desvios-padrão, o que nelas nea, sem deixar que a vissem, como
Rudzienko passou. My Little Loves dir a privacidade dos jovens que em particular o de Rudzienko. é singular, diferente.” se as tivesse surpreendido. Nada
deu-lhe a possibilidade de regressar aceitam colaborar com ela, recor- “O tempo, assim como as pessoas Quando se trata desta americana, mais falso. “Estes pátios são como
ao universo de uma artista cuja obra rendo, nos seus filmes, à câmara que são, por algum motivo, ignora- o grau de envolvimento com os con- teatros de vida perfeitos e, quando
tinha já apresentado no Museu do fixa e ao registo em tempo real para das, estão sempre no que faço. Em textos que aborda é de tal forma os filmo, neles tudo é dirigido, tudo
Chiado (Pine Flat, 2006/2007) e que se “salvaguardar de uma excessiva Rudzienko, por exemplo, quis levar profundo, continua o comissário, é encenado a partir da realidade.
nunca deixou de acompanhar aten- interioridade”. as miúdas para o meio da natureza que passa a ser um “substrato” da Nunca capto nada que está a acon-
tamente. É por isso que, quando a Embora tenha obras feitas nos Es- para lhes dar uma sensação de liber- própria obra, tão importante como tecer de forma natural.”
direcção do Doc o convidou a fazer tados Unidos —uma fotografia de dade que elas não têm. Depois quis aquilo que se vê: “As relações huma- Foi neste pátio que se vê em Po-
uma escolha para a programação, 2007 que mostra duas meninas ce- que desenvolvessem a sua própria nas tornam-se um meio, como o dwórka que conheceu uma criança
Lapa pensou de imediato em Lo- gas a ler numa biblioteca de LA ou voz através da escrita, de debates, do filme e a fotografia. E tudo é feito de nove anos, hoje com 18, que se
ckhart e no trabalho que tem vindo Eight Decades of My Life, for Sharon movimento, enquanto tentava mos- com uma tal densidade que todas tornou central no trabalho que tem
a fazer e que nasce, em boa parte, Lockhart (after Harry Smith), uma trar-lhes que tempo e relógio não são estas figuras são chamadas a parti- vindo a desenvolver na Polónia.
da sua capacidade para “consubs- obra de James Benning a partir dos a mesma coisa”, diz a artista. cipar na organização de uma repre- Milena tinha subido ao telhado e
tanciar laços afectivos”. aviões de papel que Smith (1923- Tantas vezes associado aos uni- sentação de si. O processo é matéria estava a brincar no meio dos ou-
“Em muitas das obras que pode- 1991), artista e realizador, apanhou versos da antropologia e da etnogra- de trabalho, torna-se visível.” tros, recorda Lockhart. “As brinca-
mos ver agora no museu, Sharon dá na rua ao longo da vida e que estão fia, por causa da sua entrega às co- deiras em cada um destes pátios
uma voz específica às crianças e aos hoje no arquivo do Museu Getty munidades, o trabalho de Lockhart Sem tradução são determinadas pela arquitectu-
adolescentes, cujas opiniões nos -, My Little Loves concentra atenções é deles absolutamente distinto, de- Quem não conheça a obra desta ra e pelo que podem fazer com ela.
chegam habitualmente através dos no trabalho que Lockhart tem vindo fende Lapa, porque não caminha americana que vive em Los Angeles Naquele pátio há um sítio fantásti-
adultos. E isso acontece porque a a desenvolver na Polónia desde para uma “formalização” das rela- e se veja perante um filme como Po- co de onde podem saltar depois
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 15
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MIGUEL MANSO
MARK HOLTHUSEN
Licenciado em semiótica de Joni
Mitchell, mestrado em cocaína
e doutorado em auto-punição,
Eitzel teve, até hoje, um só
assunto: a instabilidade
Não há redenção
para Mark Eitzel
O antigo líder dos
American Music
Club voltou aos
P
ermitam-me a indulgência abanar o rabo para a câmara, o cú- man é possivelmente o melhor álbum
de por um instante imagi- mulo do glamour pop. do homem desde 60 Watt Silver Li-
seus grandes nar que o passado não é o Agora imaginem que no lugar de ning e será (possivelmente) a base do
passado, o passado é o pre- Brett Anderson estava Mark Eitzel, par de concertos que Eitzel dará,
discos mas isso sente, e permitam-me apli- este senhor aqui em cima, que atira amanhã no Auditório de Espinho e
pouco lhe importa car este, como se diz hoje
no futebol, processo a um famoso
quase para os dois metros e carrega
um pouco de excesso no peso, com
no domingo na Galeria Zé dos Bois,
em Lisboa. Como é que um antigo
— ele só quer não vídeo dos Suede, o mais famoso ví- a sua barba neurótica e a sua motri- rei da pop acaba por emparelhar com
deo dos Suede, Animal Nitrate. Ve- cidade duvidosa. Não fujam da ima- o rei da depressão e da decadência?
morrer na rua. mos Bernard Butler, exímio guitar- gem mental que está a criar-se no A culpa é das crianças.
E cantar bem. rista, a debitar frases de guitarra
herdadas dos Smiths e do glam-rock
vosso cérebro — acarinhem-na, até.
Porque 24 anos depois de Animal Ni-
Algures em Los Angeles o telefone
está a tocar e enquanto ninguém
e depois o andrógino e sensual Brett trate, Bernard Butler juntou-se a Ma- atende vamos aventando hipóteses:
nha fartado da sua música, que mui- tema da conversa, citam sempre um mundo e a única coisa que permite gado e disse-lhe ‘You were great’. E
tos consideram miserabilista, e te-
nha desejado cantar por cima de
“Nunca houve restaurante ou um prato exótico a
despropósito, do género: está-se a
que o este não expluda é o vento que
sopra no cabelo de Geena Rowlands
ele respondeu ‘Yeah’, virou costas e
perguntou aos amigos ‘Quem era
umas valentes riffalhadas; e, quer
dizer, ele disse tantas vezes que so-
redenção. Só deixei falar de um golo de cabeça e o tipo
sai-se com “Há dias comi uma cabe-
(isto é uma referência a What holds
the world together, suprema canção
aquele tipo?’”. Eitzel conta isto e,
como terão certamente adivinhado,
nhava ter um êxito pop, pode até
dar-se o caso de que juntar-se a Bu-
de me importar com ça de cavala marinada em molho de
chispe polvilhado com sal amarelo
de desafecto e angústia).
Uma canção dos American Music
riu-se.
Apesar de se rir de si mesmo tam-
tler tenha sido uma última tentativa
de conseguir trepar tabelas de ven-
o que pensavam do Butão”? Claro que sabem. Eitzel
é assim com o dinheiro.
Club atravessava o ruído para che-
gar à mais suprema comoção, caia
bém fala a sério e está a falar a sério
quando responde à pergunta que lhe
das com a facilidade de um ameri-
cano dopado no Tour.
a meu respeito. “Mas o Bernard achou que o disco
devia ser mais cheio, mais directo e
do épico para o patético, rastejava
aos nossos pés e mordia; a solo Eit-
havia feito dizendo: “Há 20 anos eu
achava que ia ter uma carreira. Tam-
Eitzel atende enquanto lava a loi-
ça e este simples acto dá a entender
Com a ideia tomou uma resolução que permitiu
fazer o disco: tocou todos os instru-
zel tornou-se mais comedido.
60 Watt Silver Lining, todo piano,
bém tinha uma banda e eles não que-
riam que eu falasse destas merdas. E
que hoje é um homem muito dife-
rente do tipo que liderava os Ame-
de carreira ou mentos em todas as canções. Foi a
opção certa — tinha saudades de fa-
todo luxo, prometia um Eitzel mais
próximo da canção tradicional, qua-
agora não”. Estas merdas: uma ten-
dência para o consumo excessivo de
rican Music Club, uma banda perita
em escavar cicatrizes através de um
sucesso. Neste zer discos assim e gosto de um som
maior. Só que custam caro. “
se digno, um Eitzel que se dera ao
trabalho de engomar a camisa. Ao
cocaína, a sua homossexualidade ou,
como ele gosta de dizer, o facto de
vórtex sonoro que partia do
rock’n’roll para sugar toda a música
ponto da minha vida Vamos lá pôr isto nos eixos: Hey,
Mr Ferryman é o disco mais cheio
fim e ao cabo, ele pode ter sido he-
roinómano e conhecido a lixeira das
“ser um fat faggot”.
Um fat faggot que depois de West
em seu redor. Mark Eitzel, caramba,
o homem que cantou Johny Mathis’
só não quero morrer de Eitzel desde 60 Watt Silver Lining
— o seu primeiro a solo — mas não é
ruas mas sempre viveu fascinado
com crooners e glamour — era o pas-
voltou a escrever quase exclusiva-
mente sobre personagens à deriva,
feet, com um vozeirão do tamanho
do buraco do BES. Como era a letra,
no passeio. um disco luxuoso como esse era. “O
60 Watt Silver Lining”, explica Eitzel,
so óbvio para aquela voz. Pasito a
pasito, suave suavecito, Eitzel foi de-
auto-destrutivas, que se deixam abu-
sar, como em La Llorona, extraor-
Markzinho? “You gotta learn how to
disappear/ in the silk and the amphe-
E quero cantar bem” “não era bem um disco a solo. Era
um disco dos American Music Club
saparecendo, mesmo depois de
West, lindíssimo disco que contava
dinária canção de Hey, Mr Ferryman.
Algo aconteceu ali, no início da car-
tamines”. Mark Eitzel. Ainda vivo, o [AMC] sem os músicos dos Ameri- com a participação de Peter Buck, reira a solo — ele parecia redimir-se
que só por si é espantoso. E ainda can Music Club. Aqueles gajos [dos dos REM — que bastas vezes o en- de um passado de pecado e depois
por cima a lavar a loiça. AMC] eram bons músicos e estavam cheram publicamente de elogios. borrifou-se.
Trinta segundos depois esta ima- sempre a falar de fazermos um dis- 60 Watt Silver Lining, West e o tris- “Nunca houve redenção”, diz, a
gem mental de idílio doméstico já foi co mais jazzy, mais de crooner — e tíssimo e sublime Caught In a Trap rir-se. “Só deixei de me importar
à vida — no exacto instante em que eu escrevi canções nesse sentido. and I Can’t Back Out ‘Cause I Love You com o que pensavam a meu respei-
Eitzel diz: “Claro que nunca na vida Quando a banda acabou usei essas Too Much, Baby (isto é uma linha de to. Com a ideia de carreira ou suces-
pensei em ser trabalhar com o Ber- canções. E como os AMC tinham al- Elvis) — estes são, até Hey, Mr Ferri- so. Neste ponto da minha vida só
nard Butler. Porque é que haveria de gum crédito e nessa altura eu tinha man os discos de topo de Eitzel, os não quero morrer no passeio. E que-
trabalhar com ele?” Isto é o bom e uma carreira acabei por conseguir discos que só por si o colocam ao ro cantar bem”. É por isso que Hey,
velho Eitzel que conhecemos e apren- um orçamento maior”. nível de um Nick Cave. Mr Ferryman é um disco menos ho-
demos a amar: bruto, seco, desbra- Na escrita clássica começa-se por Não foi por acaso que chamou The mogéneo que 60 Watt, por exemplo
gado e a borrifar-se para o que even- apresentar a personagem e depois Invisible Man a um dos seus discos — porque ele já não tem “paciência
tualmente pensam do que ele diz. Ah, desenvolvê-la; neste texto é ao con- — é uma piada ao seu anonimato nes- para isso”. “A minha vida é muito
como é bom perceber que no fundo trário, Eitzel surge em andamento te mundo de massas. E também não simples: eu embebedo-me e escre-
continua não-saudável. sem vocês saberem quem ele é, pe- foi por acaso que chamou The Ugly vo. Escrevo e embebedo-me. A úni-
“As coisas são mais simples do lo que esta parece uma boa altura American a um dos seus discos. ca coisa chata é que envelheci e
que as teorias que os jornalistas in- para o apresentar e até oferecer uma Mas ponham os ouvidos em The quando se envelhece tende-se a es-
ventam”, diz Eitzel, entre grunhidos espécie de leitura da sua carreira last ten years, a canção que abre Hey, crever sobre o que se sabe e isso é
— há coisas a cair ali para os seus oração acima com um monólogo que explicará porque é que este é Mr Ferryman: a entrada grandiosa, aborrecido, é aborrecido explicar
lados, não é fácil lavar a loiça e dar dele, em que pretendia exemplificar um momento importante na carrei- o som amplo, aquela sequência de às pessoas a vida. ‘Isto é o conheci-
uma entrevista ao mesmo tempo. a típica reacção de um produtor ale- ra que ele já não tem. acordes à Joni Mitchell, a voz ima- mento que eu tenho, aqui está’. Nin-
“Fuck this shit”, grita — e deixamos atório à sua música: “Eu não queria Durante muitos anos Mark Eitzel culada, lânguida, o refrão evocativo guém quer isto. Por isso prefiro es-
de ouvir o barulho da água e ouvi- o Bernard nem deixava de querer. foi o cantor e compositor da mais de uma tristeza que mói e aquela crever sobre o que não sei”.
mo-lo a atravessar a casa ou pelo Lá tinha dinheiro para o Bernard extraordinária banda a quem nunca capacidade rara de dizer tudo num Por estes dias Eitzel diz ser um
menos a abandonar a cozinha. Não Butler. Eu queria um gajo qualquer ninguém ligou nenhuma: os Ameri- par de linhas: “I spent the last ten ye- homem “completamente fora do
é fácil ser normal. — um tipo que soubesse pôr um mi- can Music Club. Músicos exímios, ars/ trying to waste half an hour”. E mundo e das modas”. Ele exempli-
“O Bernard e o meu agente”, reco- crofone à frente da minha guitarra eram tão herdeiros da ferocidade linhas aqui não é metáfora, que pou- fica com algo que lhe aconteceu há
meça Eitzel, aparentemente refeito enquanto eu cantava. Que era o que do punk como da simplicidade da co mais à frente ele está a falar de uns dias: “Estava num bar que tinha
da azáfama de limpeza, “têm os fi- o disco era suposto ter sido. Um da- folk ou das harmonias do jazz; aque- “bourbon and coke”. uma banda de covers e quando co-
lhos na mesma creche. E o meu agen- queles tipos que quando acabo de la música não era simples, mas do Quando eras uma potencial estre- meçou uma canção qualquer uma
te deve ter achado que o mundo todo cantar diz ‘Isto é uma merda. Que turbilhão de ideias e ruído saía aque- la, digo a Eitzel, ali em meados da data de mulheres de 40 anos desa-
ia parar para ouvir o disco de Mark acordes horríveis. Porque é que as le vozeirão de Frank Sinatra com década de 1990, não eras nem gay taram a gritar e a tirar fotos que pu-
Eitzel produzido pelo Bernard Butler. tuas canções são tão deprimentes? bronco-pneumonia, de vagabundo nem drogado, eras só bêbedo, ou seram no Instagram — quando pou-
Sim, pois. Está-se mesmo a ver que Já ouviste falar em refrão?’ Sabes, o aristocrata, de poeta da lata do lixo, estou enganado? Eitzel ri-se. Uma saram o telefone pareciam ir suici-
isso ia acontecer, não é?” típico produtor”. de filósofo do copo de três. das características mais bonitas de dar-se. Não percebo este mundo”.
Há poucas coisas tão certas na vi- Extraordinariamente, Bernard Bu- Licenciado em semiótica de Joni Eitzel é esse riso fácil, de peito ta- No fundo ele sempre foi e sempre
da quanto a auto-depreciação de tler não é o típico produtor — e não Mitchell, mestrado em cocaína e dou- manho extra-largo, um riso que con- esteve assim — a olhar o mundo de
Mark Eitzel. A morte, o IRS, incên- só gostou do que ouviu como ouviu torado em auto-punição, Eitzel teve, tagia. Note-se, este é o mesmo tipo fora, sem o compreender, e sem en-
dios no Verão, penalties em jogos ali mais do que Eitzel: “Eu queria fa- até hoje, um só assunto: a instabili- que quando se quer definir diz que tender porque é que o mundo que
do Benfica — e Mark Eitzel a dizer zer um disco acústico muito simples. dade. Amorosa, financeira, mental: é “uma merda, um dos maiores pe- ele rejeita o rejeita. Esse desencon-
mal de si próprio. Não importa o O típico disco de quem não tem di- nas suas canções o amor é aquele pi- daços de merda alguma vez existen- tro será certamente muito doloroso
que aconteça, como um banqueiro nheiro”, conta Eitzel, e talvez este co antes da derrota, o dinheiro é tes ao cimo da Terra”; um tipo que mas, se quisermos ser egoístas, tem
perante uma marosca financeira, seja um bom momento para intro- aquela coisa que se troca para ver pretendendo ilustrar quão dúbia é as suas vantagens para o ouvinte — é
como um super-herói viciado em duzir os neófitos ao mundo deste uma bolhinha passear pela prata e a sua reputação e como envelheceu que é dele que nascem lindíssimas
problemas, como um português que homem: Mark Eitzel nunca tem di- uma casa (“withouth love, doors or (“mal”, acrescenta), conta a seguin- canções, como a estupenda An
pára para observar um acidente, nheiro e consegue sempre enfiar o windows/ without peace”) serve ape- te história: “Há uns tempos fui tocar answer, clássico instantâneo deste
Mark Eitzel nunca falha — a dizer tema dinheiro em qualquer conver- nas para ser tomada pela polícia, to- a Amesterdão e vi um concerto do último disco.
mal de si mesmo, isto é. sa. Sabem aqueles tipos que têm ma- mada por junkies, tomada pela luta Bon Iver. E no fim fui ter com ele, Não deixem que Mark Eitzel mor-
Demonstremos a veracidade da nia que são foodies e, seja qual for o suicida de um casal. Não há paz no eu estava muito bêbedo e muito dro- ra na rua.
18 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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EBRU YILDIZ
O furacão
Metz antes da
tempestade
Strange Peace é o álbum em que
os Metz quiseram descobrir novas
formas de continuarem a ser os Metz.
Não são exactamente os mesmos, mas
esta fúria continua tão libertadora
como sempre.
Mário Lopes
Q
uando o ruído da guitarra chegue o dia em que os Metz deixem lake de ritmo maquinal, convivem vida e ainda não me deixou. Trans-
nos explode nos ouvidos, mmmmm crescer longas barbas para gravar com temas interlúdio como Cater- formou-me, quer em relação à for-
quando as peles da bateria um álbum folk nas montanhas. “No pillar, feita de guitarras esvoaçantes ma como vejo a música, quer na
ressoam de forma ensurde- Strange Peace primeiro álbum só havia uma abor- e voz perdida na distância. forma de olhar o mundo. O que fa-
cedora, tocadas com violên- Metz dagem: tudo muito alto o tempo Os Metz não perderam nenhuma zemos é pouco cool para 99% do
cia libertadora, não temos Sub Pop; distri. todo. Resultou bem porque o disco das qualidades que nos obrigaram planeta, mas isso até nos protege de
dúvidas e nem escapatória possível. Popstock era curto e o objectivo é que fosse a olhar na sua direcção. “Não acre- uma série de absurdos. Permite-nos
Estes são os Metz, a banda canadia- um murro no estômago. Continua- dito que se possa perder aquela sen- controlar o nosso futuro, controlar
na que se apresentou sem discrição, mos a tocar muito alto — tendo um sação que te transmite a música ro- o que é e o que será a nossa música”.
em 2012, com um álbum homónimo baterista como o Hayden [Menzies] ck tocada muito alto e seguindo o Ouvimos Strange Peace e não temos
que soava a carga de dinamite com não poderia ser de outra forma -, nosso instinto. Ou apanhas o vírus dúvidas. Por uma vez, o 1% está do
detonação garantida por pavio cur- mas fomos percebendo que o im- ou não. Eu apanhei-o bem cedo na lado certo da barricada.
to. Soava também aos Nirvana de pacto é maior se tivermos momen-
Bleach, os mais crus e mais negros, cupante com ele e, ao mesmo tempo, tos mais calmos como contraponto.
aos Mudhoney mais corrosivos e aos eu tinha um bebé a caminho. Sentia- Em Strange Peace combinamos a
Jesus Lizard sempre inquietos —mas me a viver numa paz estranha, habi- energia de tocar ao vivo com algu-
isso são meros pontos de referência tado pela sensação de calma antes mas das abordagens mais melódicas
para nos organizarmos entre o tur- da tempestade. Uma sensação bizar- que já fizemos. Estamos a tentar
bilhão regenerador provocado pela ra. Sentes que algo não está bem, que crescer para fora de nós do maior
banda. O que temos que reter é que algo está prestes a mudar e que o que número de formas possível”.
os Metz, canadianos de Ottawa mi- virá a seguir é incerto. Pode mudar Tendo em conta tudo isto, saber
grados para Toronto, são daquelas para melhor, pode piorar, não tens que o álbum foi gravado com um dos
bandas que nos gritam aos ouvidos certezas de nada”, diz Edkins. heróis dos Metz, Steve Albini, tem o
até que gritemos com eles que isto seu quê de surpresa. Fundador dos
não está nada bem, que a vida nunca Chegar, tocar, está feito Big Black, actualmente nos Shellac,
foi exactamente o que sonhámos, A inquietação é uma constante na e produtor dos Nirvana, Jesus Lizard,
mas se estamos nisto juntos, entre- música dos Metz. Em Strange Peace, Breeders, Blues Explosion, ou Pixies,
guemo-nos ao caos e sigamos o som ela exprime-se de forma mais urgen- Albini é reconhecido por privilegiar
— eles e nós, furiosos até ao momen- te pelo contexto político e social que a abordagem directa, ao vivo no es-
to em que caímos juntos, cansados acompanhou o álbum. O refrão de túdio e com o mínimo de intervenção
mas novamente crentes. Cellophane explica-o: “It’s all about posterior. Esperaríamos que da co-
Não estamos sozinhos —e eles es- to change / The faces rearrange / Are laboração resultasse o álbum mais
tão tão zangados como nós. Não es- we just standing still? / How will I know cru da banda. Acontece que, como
tamos sozinhos —e eles oferecem-nos it’s real?”. “Encontra-se aí o tema co- explica Edkins, a banda chegou às
a terapia para que a ansiedade e fúria mum a todo o disco. Há outros temas sessões com todas as canções com-
contida se transformem em abraço abordados, mas são adendas ao prin- pletas. Chegados ao estúdio de Albi-
fraterno, cúmplice, quando tomba- cipal”. Curioso então que seja o ál- ni, o Electrical Audio, em Chicago,
mos juntos, felizes, numa poça de bum em que a energia crua dos Metz, entregaram-se à sua vontade. “Foi só
suor. Foi isso que sentimos ao ouvir o seu rock’n’roll, punk rock, noise ligar os instrumentos e tocar para
Metz, foi isso que voltámos a sentir rock em estado bruto, revele mais que ele capturasse tudo como tão
ao ouvir II (2015). E agora, quando matizes, acolhendo passagens am- bem sabe fazer” — bem-vinda lufada
arranca Mess of wires, a primeira can- bientais que funcionam como oásis de ar fresco para uma banda que
ção de Strange Peace, quando o ruído ilusórios no meio do caos — sabemos “tem este problema de pensar dema-
da guitarra nos explode nos ouvidos, que não serão duradouros, antes cur- siado em tudo”. Com Albini, não
quando as peles da bateria ressoam tos períodos de descanso para recu- houve tempo para isso. Chegaram,
com violência libertadora, intuímos perar o fôlego — ou encontrando tocaram, está feito.
que sentiremos o mesmo. espaço para melodias bem desenha- O resultado da colaboração, do
Strange Peace é o terceiro álbum das entre a avalanche sónica: a su- contexto, da nova reunião de Alex
dos Metz. O título, que se refere ao pracitada Cellophane será o melhor Edkins, Hayden Menzies e dos bai-
estado de espírito do guitarrista e e mais meritório exemplo. xista Chris Slorach num estúdio, é
vocalista Alex Edkins durante a pre- Para Alex Edkins, tal é consequên- este álbum a transbordar no limite
paração do álbum, é uma expressão cia de sentir a banda como “uma da distorção, que nos sacode violen-
que resume os efeitos que a música experiência de crescimento cons- tamente e que pede que lhe junte-
da banda provoca. “O Trump subiu tante”. Não, não está a falar de “po- mos a voz. Um disco em que canções
ao poder e trouxe muita coisa preo- lir o som” e é pouco provável que de tensão pós-punk, como a Drained
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 19
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E
le diz que é, provavelmente,
o seu álbum mais simples,
directo e óbvio. Não liguem. Aos 45 anos, e dez álbuns de
Aos 45 anos, e dez álbuns de Destroyer depois, o canadiano
Destroyer depois, o canadia- Dan Bejar vai-se assumindo
no Dan Bejar vai-se assumin- cada vez mais como um dos
do cada vez mais como um dos mais mais brilhantes cantores-
brilhantes cantores-compositores compositores contemporâneos
contemporâneos, capaz de nos de-
volver canções de complexidade in-
terior com alcance universal.
Desta feita regressou à adolescên-
cia, voltou a ouvir as linhas de baixo
dos New Order, o sentido melódico
dos Echo & The Bunnymen ou os am-
bientes sombrios dos Cure dos pri-
meiros tempos, num álbum em torno
do seu desejo de voltar tocar guitarra,
mas que também é povoado por sin-
tetizadores enevoados, fazendo lem-
brar alguns temas de Kaputt, o mag-
nífico álbum de 2011 que deu novo
fôlego à sua carreira. As letras são
excelentes, misto de confronto com
a realidade, enunciação de sonhos
perdidos pelo caminho da vida e ex-
posição da decadência do mundo
ocidental.
Como já acontecia nos mais recen-
tes álbuns, nada parece forçado. Não
é música que deseje explorar novos
mundos, mas que nos devolve uma
identidade precisa, mostrando uma
qualidade sonhadora e uma forma
elegante de expressão que vai sendo
rara e que poderá ser confirmada, em
palco, no Vodafone Mexefest de 24 e
25 de Novembro.
Em conversas anteriores
ficava-se com a ideia que tem
definido o ponto de partida
de cada álbum ao nível das
influências, independentemente
dos resultados o confirmarem.
Em Kaputt (2011) nomeava
Destroyer
Roxy Music e em Poison Season
(2015) nomes do pré-rock como
Sinatra. E agora?
Diferencio bem o processo de compo-
mais tarde, depois dos trinta anos. com a vitalidade de existir. Em, Novembro
Blue Nile ou Scritti Politt só os des-
cobri numa fase adulta. Poison Sea- estará em LIsboa.
son era mais influenciado pela au-
dição de soul dos anos 1970 ou dis-
cos de Billie Holiday e Frank Sinatra
20 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
Vítor Belanciano
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O arquitecto que
fez uma cadeira
para Maria
Bethânia
O arquitecto
brasileiro
Marcelo
Ferraz, que faz
móveis há 30
anos, diz que
o futuro passa
por inventar o
próprio trabalho.
Propor projectos,
expandir o seu
campo, ir à luta
D
iscípulo de Lina Bo Bardi ao final de Dezembro no Palácio Porque é que sentiram a Quando [a cantora] Maria Bethâ-
para sobreviver. — a arquitecta que Álvaro dos Condes da Calheta. necessidade de chegar à escala nia me pediu para fazer uma peça
Siza citou quando cons- O livro, que situa a Marcenaria do móvel? É a procura da para uma exposição comemorativa
A excepção truiu no Brasil —, o arqui- Baraúna na história recente do de- arquitectura como obra de arte dos 50 anos de carreira — ela fez is-
foram mesmo tecto brasileiro Marcelo
Ferraz, tal como a mestra,
sign de mobiliário do Brasil, inclui
um texto do português Frederico
total?
A nossa formação em São Paulo na
so com vários amigos —, fui buscar
uma cadeira em que pensei 15, 20
os últimos dez também desenha móveis. Duarte, crítico de design e curador Faculdade de Arquitectura tem essa anos. É aquela que tem um bico, em
Não gosta da palavra “design” ou da exposição do Mude, que se tem visão de que o arquitecto é um ge- que você se senta de um lado ou de
anos de muito “designer”, porque não é um “no- dedicado a estudar o design brasi- neralista. Sem dúvida que a marce- outro.
trabalho no vidadeiro”, como se explica no li-
vro Marcenaria Baraúna, O móvel
leiro, além de contribuições de Mi-
na Warchavchik Hugerth, Ethel Le-
naria nasce por influência da Lina
Bo Bardi, com quem trabalhei 15
Tinha que tirar tudo, que também
é uma prática de arquitectura, para
Brasil. como arquitectura (Editora Olhares,
São Paulo), sobre a oficina que
on e Mariana Wilderon. anos. Tínhamos acabado de fazer o
Sesc Pompeia [um centro de lazer
chegar na essência. A obra não pode
ter bagaço, mas ser justa. A econo-
criou em São Paulo há 30 anos, que Porquê o “móvel como inaugurado em 1982 em São Paulo], mia tem que estar em todas as deci-
RUI GAUDÊNCIO
Eu tinha uma amiga,
uma crítica de
design muito boa,
que chegava na
marcenaria e dizia
para provocar: “Cada
vez que vejo um
banco desses, eu
vejo uma árvore no
chão.” Mas a gente
acha que é nobre o
uso da madeira da
Amazónia para fazer
mobiliário
fotografamos antes que chegue o Pompeia, projectámos os móveis. entrou para a colecção do MoMA, O arquitecto Marcelo Ferraz
decorador, antes que a obra mude O mesmo quando fizemos a recu- juntamente com a cadeira Egídio. esteve em Lisboa e no Porto
completamente. peração do centro histórico de Sal- A nossa comemoração dos 30 anos para o lançamento do livro.
Mas muitos dos nossos clientes, vador [Bahia], em que provocámos era uma fotografia com uma girafa À esquerda, Linha Maria (2015),
para quem fizemos mobiliário, são a Lina para fazermos os móveis pa- de 1986 e outra de 2016, uma bem uma cadeira de canto feita para
de obras públicas. O grosso do tra- ra o restaurante da Casa do Benin e oxidada e outra novinha. E disse- Maria Bethânia, à direita, a
balho da marcenaria é móvel de en- do Teatro Gregório de Matos. Pro- mos: “Puxa, a gente tanto não é no- famosa Linha Girafa (1987), que
comenda. jectámos a Cadeira Girafa para o vidadeiro que está repetindo uma chegou ao MoMA em 2016
Nas casas tem que haver empatia restaurante do Benim e a Cadeira coisa com 30 anos.”
e aí fazemos muitos móveis especiais, Frei Egídio, aquela dobrável, para É possível continuar a fazer mó-
a cozinha, salas... Eventualmente, o teatro. veis com madeiras maciças? Não
nesses móveis especiais, entra um Na Cadeira Girafa, Lina começou há uma contradição entre o as- deiras são muito densas, cheias de
banco, uma cadeira, uma mesa. por dizer que tinha uma ideia que pecto frugal das peças e essas seiva, de óleo, e não dão bicho. Na
Qual é a história da Cadeira não dava certo, vinda um pouco do madeiras maciças? Olhamos para Europa, nos países nórdicos, há seis
Girafa? Mostra a vossa maneira banco do Alvar Aalto. Foi muito por aquelas madeiras e vemos a Ama- tipos de árvore e as pessoas domi-
de trabalhar: referências insistência da gente, e porque tínha- zónia delapidada... nam-nas. No Brasil, a gente não sabe
históricas ou vernaculares, mos acabado de abrir a marcenaria, Eu tinha uma amiga, uma crítica de ainda exactamente as propriedades
madeiras maciças brasileiras que avançámos. Fizemos muitos design muito boa, que chegava na das madeiras e como usá-las.
e a ligação a um projecto de protótipos até chegar nas cadeiras marcenaria e dizia para provocar: Há muita madeira para descobrir
arquitectura. São estas as três Girafa e Egídio definitivas. “Cada vez que vejo um banco desses, e nós já passámos por 15 madeiras.
pernas dos vossos projectos de Porque é que lhe chamam eu vejo uma árvore no chão.” Quando começámos era permitido
mobiliário? Girafa? Aquelas madeiras todas vêm de usar o mogno, hoje é proibidíssimo.
A Lina Bo Bardi, que foi uma arqui- Porque tem a orelhinha e as pinti- onde? Depois usámos uma madeira cha-
tecta pioneira do desing no Brasil nos nhas. O nome apareceu de olhar A gente acha que é nobre o uso da mada grumixava, incrível, muito
anos 50, a certa altura parou de de- para o objecto. É engraçado que a madeira da Amazónia para fazer mo- bonita, foi proibida também. Hoje
senhar móveis. Teve uma marcenaria, cadeira não pegou logo e sempre foi biliário. Na história da humanidade, até o pinho brasileiro, a araucária,
um estúdio de design, mas deixou de uma cadeira para aquele lugar, há essa transformação fascinante, do está proibido. O tempo todo você
acreditar em fazer móveis para o mer- aquele projecto. Só recentemente, Japão à Finlândia, que é transformar está lindando com novidades, o que
cado, que consome e deita fora. com essa fama que a Lina ganhou, é a árvore numa cadeira, numa mesa, é bom e é ruim, porque não desen-
No entanto, quando veio o Sesc que a Cadeira Girafa foi redescoberta: que vão durar 200 anos. Estas ma- volve [know how].
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 23
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Quando um brasileiro olha À direita, a Praça das Artes você altera o comportamento — a
para estas madeiras vê esse (2012), um projecto do Brasil questão formal não interessa.
lado exótico? Onde é que se Arquitectura para São Paulo. Em O que é que a Lina Bo Bardi lhe
compra essa madeira? baixo, a Cadeira Frei Egídio e o ensinou?
Hoje em dia você tem um mercado Banco Caipira, com um dos Primeiro, a ser livre. Buscar solu-
de madeira de procedência conhe- modelos vernaculares que lhe ções em todos os lados sem precon-
cida e legal. E a gente sabe que tem serviram de inspiração ceitos.
muita documentação falsa. Nós já A Praça das Artes, em São Paulo,
participámos várias vezes em leilões é um filho do Sesc Pompeia?
de manejamento de madeira indíge- Ao projectá-la nós nunca pensámos
na, em que uma etnia tem licença nela como um filho do Sesc Pom-
para colocá-la no mercado. peia. Mas no final, quando pronto,
“Conforto duro”, como se eu tenho que admitir que é.
diz no livro, é uma É um exemplo de como é possível
descrição justa para o pretensioso e hoje não teríamos essa Acho importante dizer o que está usar o fundo dos lotes. Numa me-
vosso trabalho? coragem. A gente começou por escrito no nosso site, porque mesmo trópole não faz sentido mais ter o
Um conforto duro talvez faça pensar pensar em botar o nome de uma no Brasil os nossos colegas dizem quintalzinho de laranjeiras. Em São
mais do que esse sofá em que estou madeira, um nome indígena, a sigla que Brasil Arquitectura é uma coisa Paulo, que falta muito espaço públi-
sentado. A gente tem que pensar na dos nossos nomes... Tinha acabado meio regionalista, ligado às tradi- co, pedestre, a gente abriu uma cla-
postura. Não que a gente não goste de ser lançado o disco Brasil, de ções, ao vernacular. Eu fiz um livro reira para a população caminhar.
das almofadas, mas muitas vezes em João Gilberto, Caetano, Bethânia e de arquitectura vernacular. Uma das tarefas do arquitecto é con-
alguns ambientes é bom sentar ele- Gilberto Gil... Como provocação, acha que quistar espaços para a população.
gantemente. O conforto duro é esta São 38 anos de escritório e quan- há uma maneira brasileira de Aliás, defende que a cidade em
atenção nas coisas. do olho para trás vejo que nós faze- fazer arquitectura associada a São Paulo tem que se abrir.
Significa poucos materiais? mos trabalhos no país todo. Talvez uma certa liberdade permitida A arquitectura tem de ser feita tam-
Significa a verdade dos materiais, seja o escritório que tenha mais tra- por um clima? bém com demolição.
acho que a gente ainda acredita um balho dentro do mapa do Brasil, Não dá para negar que o clima Porque é que tem denunciado a
pouco nisso. desde o confim da Amazónia, na favorece muito. De São Paulo para urbanização das favelas?
Linhas... fronteira com a Colômbia, um cen- o norte as coisas são mais simples, O modelo de urbanização das fave-
... muito rectas, a maior parte das tro que a gente fez com os índios em podemos usar certos elementos sem las é de fazer somente um remendo.
vezes. São Gabriel da Cachoeira, até ao Re- muita preocupação com o vento ou Os europeus e os americanos che-
A sua peça mais recente cife, uma homenagem ao Luiz Gon- o frio. Mas isso é compensado por gam ao Brasil e ficam encantados
chama-se cadeira Isa, d’Après zaga, ou ainda o Museu do Pampa, outros elementos, pois você precisa com as favelas, mas eu sou radical-
Siza. Qual é a história dessa no limite com o Uruguai. de se proteger, ter beirais. mente contra isso. Aquilo é uma vi-
inspiração? A gente também é formada na di- Esse projecto da Amazónia [São da dura, feia, sem conforto nenhum.
Sempre quis fazer uma cadeira em- tadura, estudou nos piores anos do Gabriel da Cachoeira] tem uma pele Reurbanizar, no meu modo de pen-
pilhada. A Girafa é empilhável, mas país. Defender o Brasil, ser brasilei- toda de madeira e palha e o prédio sar, é fazer com que as favelas pos-
eu queria fazer uma mais levinha. ro, conhecer o país era um instinto de alvenaria está dentro. É uma ar- sam honrar o nome de cidades. Vo-
Vi há pouco tempo aqui numa ex- que quase tinha que fazer quem mi- quitectura feita com sabedoria dos cê não pode dizer que uma favela é
posição do Museu do Azulejo uma
cadeirinha que ele tinha feito para Uma das tarefas litava politicamente na esquerda.
Nossos mestres eram Lina, Darcy
índios.
Então, voltando à pergunta, há
uma cidade, o artefacto mais impor-
tante criado pela Humanidade.
a Faculdade de Arquitectura. Tinha
muitas delas quebradas na Univer- do arquitecto Ribeiro, [Vilanova] Artigas, toda es-
sa gente... Aí o Brasil, de repente,
uma arquitectura brasileira?
Ela é brasileira porque é feita por
Em 2017, o vosso site tem
apenas um projecto. A crise fez
sidade do Porto e fui estudando o
jeito de fazer com uma madeira bra- é conquistar coincidiu.
No vosso site fazem a afirmação
brasileiros [risos].
O que é que significou o Sesc
parar a encomenda no Brasil?
A crise fez parar a encomenda prin-
sileira. Decidi fazer uma pecinha
pura, em que o acento é do tamanho espaços das bases culturais da vossa
arquitectura na sua ligação
Pompeia para a arquitectura
brasileira?
cipalmente nos últimos dois anos.
Mas como no Brasil passámos a vida
do encosto. Uma madeira dura, uma
madeira brasileira, me deu a chave para a população. ao lugar. Mas ressalvam
que não estão a fazer uma
O Sesc Pompeia foi uma verdadeira
bomba que caiu no final da ditadu-
inteira em crise, a lutar para pegar
um projecto por menor que fosse,
para fazer a ligação: são dois nozi-
nhos que seguram o eucalipto, que A arquitectura tem arquitectura regional, que a
vossa arquitectura é universal.
ra no Brasil. Foi um choque porque
se aprendia que em arquitectura se
a excepção está nos últimos dez
anos.
é a estrutura dela, e o compensado
naval do assento e do encosto. de ser feita também Também é uma espécie de
regionalismo crítico, no
começa do zero. Durante muito tem-
po fomos um país monotemático em
Como é que um atelier se
adapta a isso?
Já falou com o
arquitecto Álvaro Siza sobre a
cadeira?
com demolição conceito de Kenneth Frampton,
termo que foi muito usado
para falar da arquitectura
termos de arquitectura: era Oscar
Niemeyer e Oscar Niemeyer. Com
todo o respeito, acho que foi um
Primeiro, diminuindo de tamanho.
Alguns escritórios fazem alguma
coisa para o exterior, mas o Brasil
Mandei para Siza o livro e ele man- portuguesa na sua genealogia grande arquitecto, mas tem um mo- não é um país muito conectado.
dou uma cartinha muito bonita. Dis- ligada à Escola do Porto? do de fazer ainda muito da primeira Nós fazemos como sempre, inven-
se que eu tropicalizei um pouco a Nunca gostei desse termo do Framp- metade do século passado, em que tando o próprio trabalho. Isso vai
cadeira dele. ton. Quando dá o rótulo você con- só se fazia com a terra arrasada... ser o futuro dos arquitectos.
Fiquei pensando em botar um no- gela, mata. Claro que com mais dis- De repente, temos uma arquitectu- Como é que se inventa o
me e a minha mulher se chama Isa. tância, mais calma, você pode en- ra que nasce das entranhas, em que próprio trabalho?
Ela adorou. Daí Isa, d’Après Siza pa- tender o que ele quis dizer e claro não se sabe exactamente o que é Significa se preocupar com o espaço
ra assumir de onde ela vem. É outra que a arquitectura de Portugal, da novo ou antigo. público da cidade, ver o que está
coisa que a gente gosta, acha impor- Escola do Porto, tem uma persona- Mas as pessoas gostaram e o Sesc mal e ir na prefeitura propor mudar.
tante a citação. lidade forte. A gente lê essa perso- Pompeia é hoje património nacio- No Brasil são 5600 municípios. To-
Como o Siza, que cita a Lina nalidade. Tem um lado muito bom, nal. dos têm alguma coisa a ser feita,
Bo Bardi no projecto de Porto muito interessante, é uma escola Foi uma experiência grandiosa seja a recuperação das zonas ribei-
Alegre no Brasil? realmente. em que a Lina juntou a experiência rinhas, porque sempre tem um rio,
Pois é, ele me mostrou um dia. Le- Talvez em São Paulo exista um dela dos anos da Bahia, do Masp em um mar, uma praia, uma lagoa, seja
vantou o papel e falou: “Olha, Lina pouco uma escola paulista. Eu sou São Paulo e se dedicou já madura a transformar a preferia de favelas das
Bo Bardi.” de certa maneira ligado a essa escola, fazer a cidade ideal. É a cidade do cidades. O Museu do Pão foi uma
Porque é que o vosso escritório fui formado lá, mas sinto muitas ve- respeito, do convívio, da tolerância. invenção nossa, o museu KKKK tam-
de arquitectura se chama Brasil zes que é muito rígida. Costumo dizer A Lina chegou a dizer que tinham bém. Ninguém encomendou, fize-
Arquitectura? É uma chamada que a FAU-USP me formou e a Lina feito uma experiência socialista. É mos e temos que ficar um pouco
de atenção para a importância me deformou. Tive essa grande sorte impressionante, vamos lá e pergun- cuidando, ajudando a programação,
do território? na vida de ter trabalhado com a Lina, tamos que lugar é esse? Esse é o sen- para não ficar uma coisa muito pro-
Foi uma coisa de jovem. Parece muito uma pessoa de outro mundo. tido mais profundo da arquitectura, vinciana, estanque.
24 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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Isabel Lucas
L
ogo no início de A Estrada
Subterrâna (Alfaguara) há a
referência a um navio de es-
cravos português à deriva ao
largo das Bermudas depois
de toda a tripulação ter sido
dizimada pela peste. Foi num tempo
em que África fornecia a mão-de-
obra à América e portugueses e ho-
landeses dominavam os mares. “De-
pois vieram os outros. Mas não fo-
ram os portugueses que inventaram
a escravatura. Ela é mais antiga do
que isso. Existe desde que uma pes-
soa foi capaz de exercer o seu poder
sobre outra”, refere Colson Whi-
tehead, 47 anos, escritor que tem
arriscado vários géneros. Admirador
de Ralph Ellison, Dostoiévski, Be-
ckett, fala agora do seu sexto roman-
ce que pode ser lido em mais de 40
países. Uma história da escravatura
que é mais do que isso: assenta nos
fundamentos da América e fala de
um presente onde ecoa a premissa
da supremacia branca. Aquela que
permitiu a expansão e a construção
de um projecto que quis ser mais
do que o de um país grande: ser um
território onde todos os homens
fossem iguais, capaz de existir sem
os erros da Europa. A partir da his-
tória de Cora, jovem negra na Amé-
rica esclavagista de meados do sé-
culo XIX, A Estrada Subterrânea
acaba por ser a história desse falhan-
ço. O seu autor fala disso entre timi-
dez e tiradas lacónicas. Se lhe per-
guntassem o que gostaria de estar a
fazer talvez respondesse que prefe-
ria ficar em frente ao computador,
na casa onde vive em Nova Iorque,
a jogar videogames.
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 25
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FOTOGRAFO SECUNDARIO
Vamos ao momento em que o A protagonista, como em
narrador transporta o leitor Beloved, é uma mulher.
para a cabeça do caçador de Interessava-me muito a relação en-
escravos, Ridgeway. “Se o tre mães e filhas. Escolhi uma pro-
branco não estivesse destinado tagonista feminina para falar do
a dominar este novo mundo, dilema da escravatura feminina que
então não seria seu agora (.) é diferente da que os homens en-
Aqui estava o Grande Espírito, o frentavam. Era suposto parir muitos
fio divino que liga todo o esforço filhos porque quanto mais filhos
humano: se o conseguirmos mais escravos. E filhos de boa qua-
manter, então pertence-nos. lidade, por isso os senhores tenta-
É propriedade nossa, seja um vam gerir relações.
escravo ou um continente. O O narrador descreve a
imperativo americano.” Que América como a grande ilusão.
imperativo é este? Concorda?
Quando se fala da história da Amé- Bem... Em relação ao livro, e voltan-
rica, de como a América foi forma- do à Declaração da Independência,
da, há a ideia imediata do cumprir ainda lutamos para que ela se afir-
de um destino, o motivo pelo qual me. A América enquanto novo lugar
a América tem o direito de se mover capaz de corrigir todos os erros da
e de colonizar e que inclui a supre- Europa é um ideal, falhou. Pessoal-
macia branca. Tudo isso se junta na mente, acho que fizemos alguns
voz de Ridgeway para lhe dar uma progressos, e depois recuamos e
razão ao que faz. Tudo é proprieda- progredimos um pouco outra vez
de no suposto novo mundo que é a rumo a esses ideais americanos dos
América. Onde quer que haja pes- pais fundadores.
soas isso dá ao branco o direito de A ideia de grandeza, do
fazer o que lhe apetecer. indivíduo...
Digamos que esta é uma crítica de E de democracia e liberdade, o que
esquerda que assenta nas energias sidente racista e misógino. Inventa- fica alguma coisa quando a experi- Colson Whitehead, 47 anos, quer que essas palavras signifi-
imperativas que formaram a Amé- ram-no. Ele não os persuadiu. Eles ência de vida diz o contrário; como admirador de Ralph Ellison, quem.
rica, mas se alastra ao que aconte- já tinham essas atitudes antes. É as- é que se pode acreditar numa reli- Dostoiévski, Beckett Estamos nos ideais. O que é ou
ceu na História mundial. Quando se sim que pensa uma parte da Améri- gião quando se é violentado e essa o que foi a verdade?
fala de escravatura é preciso falar ca desde a sua fundação. mesma religião é invocada pelos su- Era verdade que as pessoas eram
destas energias filosóficas que a tor- Tem, aliás, dito que não é um premacistas brancos? tratadas como objectos para servir
naram possível. porta-voz da raça, mas um Cora não reza. a empreitada de fazer a América
Começou a escrever este livro
em 2014.
escritor.
Quando se é negro e se tem qualquer
Não reza, não acredita em poesia.
Pensa que essas coisas a distraem
“Obama foi eleito grande. É verdade que a escravatu-
ra americana quase não é ensinada
... em 2014 decidi avançar, mas a
escrita começou e terminou 2015.
tipo de proeminência é suposto ter-
se um pensamento sobre o tema. O
da realidade do seu mundo. Está
concentrada nisso; o resto é inútil
com 51 por cento nas escolas, como quase não é con-
tada a história do movimento dos
Foi rápido. Já tinha tudo na minha
cabeça há muito tempo.
que é a autenticidade cultural? O que
é ser negro? É-se forçado a ser um
para ela.
Por isso compara oração e
dos votos e talvez direitos civis. Só muito mais tarde,
no final do liceu, se alude ao geno-
Entretanto ganhou prémios
em 2016 e nesse mesmo ano
porta-voz da raça só pelo modo como
os media funcionam. Mas se se quer
poesia?
Muitas pessoas perguntam-me se
os 49 por cento que cídio dos nativos. Quando escrevi
este livro não foi numa tentativa de
o livro começou a ecoar
politicamente.
saber sobre sistema prisional deve-se
perguntar a um cientista social e não
não gosto de poesia. Claro que gos-
to. Falo de Cora. Ela não consegue
não votaram nele ensinar História, mas fazer um tra-
balho artístico. A minha ambição era
Sim, escrevo sobre o passado, mas
está lá a América contemporânea.
a um romancista.
Ao escrever sobre a escravatura
chegar a esse nível de abstracção.
Ela vive no contexto da plantação e
tenham votado artística, mas se isso levar a pessoas
a ter curiosidade por partes da His-
Há paralelismo entre senhores de
escravos e a supremacia branca ac-
escreve também sobre o que
aconteceu aos indígenas. Faz
a poesia exige uma liberdade que
ela desconhece. Não consegue acre-
em Trump. tória americana, sobre as experiên-
cias humanas de esterilização, sobre
tual. Uma personagem, Lander,
faz um discurso no fim do livro. Nas
parte desse “imperativo” em
que se fundou a América. O
ditar nas palavras da Bíblia porque
elas são repetidas pelos senhores
Esse segmento da a cultura de linchamento, coisas que
não são discutidas como deveriam...
primeiras leituras públicas do ro-
mance comecei por ler essa parte
imperativo foi a primeira ideia
do livro?
dos escravos. Por isso não gosto de
dizer que ela é cínica, mas sim rea-
população foi fico contente.
Este livro também é sobre
por me parecer muito actual depois
do aparecimento de Trump. Claro
Começou pela ideia de que diferen-
tes estados representam diferentes
lista.
Quando avançou para este
dinamizado por este identidade. Seja quando
descreve uma personagem ou
que o racismo de 1850 não é o racis-
mo de agora, muitas coisas muda-
partes da América. Mas era uma pre-
missa, apenas. Ainda não tinha per-
livro como lidou com o facto
de haver tantas obras escritas
presidente racista um estado, ou um país. Quando
diz que em Cora vivem todos os
ram, mas a leitura do livro começou
a mudar desde Novembro passado.
sonagens. Sabia que havia um cami-
nho-de-ferro subterrâneo — uma
sobre a escravatura, tão
emblemáticas como Beloved, de
e misógino. negros porque todos carregam
a mesma História; quando
A supremacia branca e os ideais
americanos de conquista voltaram
ideia mítica — e estados diferentes.
Mas não havia Cora, não havia o In-
Toni Morrison? Intimidou-o?
Sim. Antes de começar pensei “ca-
Inventaram-no. Ele fala no que faz de alguém um
americano sabendo que se vem
a estar presentes em quem detém o
poder e voltaram a ser populares.
diana, não havia a Carolina do Sul...
Sabia que a Carolina do Norte tinha
ramba, existe Beloved, e existe The
Known World, de Edward P. Jones
não os persuadiu. de outro continente.
Sempre me interessei por História
O discurso acerca de negros
e indígenas veio com outra
sido um estado supremacista e um
estado de utopia negra. A história
[vencedor do Pulitzer em 2004]”.
Quando tinha 20 páginas escritas
Eles já tinham essas Americana, mas quando se pesquisa
como tive de pesquisar, percebe-se
força com Trump. Refez o
seu próprio discurso sobre o
dos estados vinha com a ideia de re-
presentar a existência de Américas
pensei outra vez em Toni Morrison
e em Beloved: “Estou completamen-
atitudes antes. o contexto. Eu sabia umas coisas.
Quando tinha 14 anos vi Raízes [sor-
romance depois da eleição?
O livro estava feito e o livro é o livro.
alternativas, de coisas que fizemos
e por onde poderíamos ter ido. O
te lixado!”. Como é que podia com-
petir? Mas continuei a escrever e
É assim que pensa ri]. Mas aos olhos de um adulto a
devastação causada pela escravatu-
Claro que as pessoas me questio-
nam, sobretudo na discussão acerca
imperativo está no programa da
América. Como a Declaração de In-
mesmo intimidado por todos os es-
critores de que gosto, como Ralph
uma parte da ra torna as coisas muito claras: eu
não era suposto estar aqui; porque
da ligação entre supremacistas bran-
cos e a Casa Branca. Nos anos de
dependência, que parece diversas
vezes no livro e diz que todos os ho-
Ellison, Dostoievski, Beckett, avan-
cei. Não posso competir com eles.
América desde é que a minha família sobreviveu?
Muitas coisas terríveis acontece-
Obama pensou-se que tinham sido
feitos progressos, mas o que acon-
mens são criados iguais. Não são
todos os homens. Nem são as mu-
O que posso é trazer o meu olhar.
Não importa sobre o que se escreve,
a sua fundação” ram... Eu sabia disso, mas com a
pesquisa cheguei a outra dimensão
tece é que se fazem pequenos pro- lheres. Esse é um erro fundacional. escravatura, guerra ou família há de consciência e como escritor jogo
gressos e depois recua-se. Parece Cora é uma personagem sempre alguém mais esperto e ta- com a História, movimento as peças,
que a História é sempre assim. Oba- cínica face ao que ouve dessa lentoso que já o fez. Tudo o que po- ponho elementos fantásticos no li-
ma foi eleito com 51 por cento dos declaração. demos é acreditar que temos uma vro, mas quis que a Georgia fosse
votos e talvez os 49 por cento que Diria que é cinicamente realista. Ela identidade própria e a nossa huma- realista para poder dar o testemu-
não votaram nele tenham votado vem da sua própria experiência. Co- nidade para trazer qualquer coisa nho aos próprios membros da minha
em Trump. Esse segmento da popu- mo é que ela pode acreditar que a nova a uma história tantas vezes família que passaram por isso. Ten-
lação foi dinamizado por este pre- Declaração de independência signi- contada. tei ir pelo que era certo antes de
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j´ò´öŵxØ´ŵƣŵ½åýåŵÞ´ġ´òåòÉ¿ÉßØö
família veio do Sul dos Estados Uni-
dos, e a minha avó veio de Barbados,
nas Índias Ocidentais, das grandes
plantações de açúcar. “Dezasseis anos; era a idade que Cora calculava ter”; HNxųķĽ
O Norte aparece no livro nascera numa plantação de algodão na Geórgia, um G\ųķľ
como terra do sonho para os lugar no qual o único sonho possível a um negro como
escravos. ela era fugir, mas “escapar aos limites da plantação
Sim. Ceasar [uma das personagens] seria escapar aos princípios fundamentais da
sabe o que significa o Norte. Mas existência; impossível.” Cora já ouvira histórias de
Cora, que nunca esteve fora da plan-
tação, tem uma ideia do que é a li-
fuga e da crueldade ilimitada imposta ao fugitivo após
a captura, até que um dia alguém lhe sugeriu fugir. O
AN\jO\6Ndŵ
berdade quando foge e outra ideia
na Carolina do Sul e outra ideia ain-
impossível torna-se a partir daí uma obsessão, a de
uma ideia de liberdade que vai ganhando corpo para ŵ"ŵ +N\GNŵ"GŵH
da no Indiana. Ela sempre foi vista A Estrada se tornar um organismo vivo modelador da existência. ANAŒŵ"öýĉÉåŵåÞïßÇÉŵXćØåŵ\ɧ´Éòåœŵj´ýòåŵxÉòÉýåŵŤxÉö´ćť
enquanto propriedade e à medida Subterrânea Cora é uma escrava na América de meados do século
que acumula aventuras e desventu- Colson XIX e a protagonista de A Estrada Subterrânea, romance
ras vai-se tornando uma pessoa e Whitehead de Colson Whitehaed que em 2016 arrecadou o Pulitzer
não um objecto, vai-se tornando Co- (Trad. Paulo e o National Book Award. A crítica não poupou na Ķĺŵ"ŵĶĻ
ra, um ser humano. Ramos) adjectivação para qualificar o sexto romance do nova- j4"ŵdj\"Gŵ
HNxųķĽ
Começou a escrever enquanto Alfaguara iorquino de 47 anos: arrebatador, brutal, fulgurante, N+ŵ6H+N\Gj6NHŵ
crítico de música no Village poderoso, brilhante, pungente, electrizante, devastador. Ťy\"H"ddŵ6HŵGNj6NHť
Voice. A que se deve tudo isto? A uma narrativa que desmonta
Sim, quando tinha pouco mais de mmmmm a identidade de um país a partir do modo como pôs em
d6A?"ŵ6GG"\GHŵŤA"GH4ť
vinte anos. O jornalismo foi a minha prática uma premissa: a de que ser branco num
aprendizagem na escrita. Escrever território novo lhe confere o poder sobre qualquer outro ĶĿŵ"ŵķĶ
para um editor, para uma audiência, povo em nome da grandeza de um país. Os ecos desta dGŵN\"HŵyN\?d4NX
"ųķĽ
ter prazos, ser pago. Sabia que que- premissa fundadora — como a encara Colson Whitehead dGŵN\"HŵŤ6H,Aj"\\ť
ria escrever ficção, mas andei às — parecem hoje muito vivos numa América onde a
voltas. supremacia branca voltou a ser uma carta que não se
Como foi encontrar a esconde no jogo de tonar a América grande. Num ķĹŵ"ŵķĺ d46+j6H,ŵy"6,4jŵ
>Hųķľ
linguagem para este romance? romance que se lê como uma aventura, Whitehead Ɔŵo6A6H,ŵAHdX"
A voz surgiu rapidamente. Li tantas conseguiu criar um incómodo muito presente.
Gfŵ?NA\ŵŤ\N6ť
narrativas de escravos. Eles descre- A partir de uma personagem feminina e de uma
viam as coisas mais atrozes que acon- história mítica acerca da existência de um caminho
teciam nas plantações com uma voz subterrâneo de fuga que cruzava os estados unindo a ĸļŵ"ŵĸĽ
muito factual. Essa violência era di- imensidão do país, tece uma rede dramática que se lê GNx6H,ŵ+\NGŵj4"ŵ
>Hųķľ
ária e por isso não é necessário dra- com o fulgor e o suspense de uma história de 6Hd6,4jŵNojŵŤ"~XAN\6H,ŵ
matizar ou adornar, não é preciso aventuras, mas se vai revelando sempre mais do que j4"ŵ4"\jŨG6HŨNť
vendê-la ao leitor ou a quem a escu- isso. Da descrição do que é uma plantação no Sul, com
j"\"dŵ\H6"\6ŵŤ6jA6ť
ta. Os factos falam por si. A voz fac- as atrocidades e um programa de riqueza associados,
tual deste romance veio, por isso, do à fantasiosa ideia de uma linha de fuga que em muitos
modo como os escravos descrevem pontos se aproxima do que se pode considerar realismo ķĽŵ"ŵķľ
o seu quotidiano na plantação. mágico, à oralidade dos contos africanos. É impossível X\"d"H"ŵ
+"xųķľ
O que gosta de ler? não lembrar Toni Morisson em Beloved como muitos j4\No,4ŵGNx"G"Hj
Quando escrevo ficção leio sobretu- autores que escreveram com base em testemunhos de y6H6+\"ŵo\H"jŨdG6j4ŵŤ6H,Aj"\\ť
do não-ficção. Esta Primavera viajei escravos. Pergunta-se e o que tem isso de novo? É bem
bastante, li mais, também fiz muitos escrito, de um realismo perturbante e serve-lhe para o
jogos de computador, e como sou que vem a seguir: a fuga pelo caminho-de-ferro secreto ĶĹŵ"ŵĶĺ "++66"HjŵHŵ
um agarrado às notícias e como há em direcção a um Norte olhado como o sonho dos G\ųķľ
tantas noticias a acontecer na Amé- escravos. Ali a liberdade seria possível. Que liberdade? "~X\"dd6x"ŵN
rica, a minha atenção para o que Cora conhece as palavras dos abolicionistas, de 6GNŵ?6\6ANxŵG6A"xŵŤoA,\6ť
vinha fora disso era pouca. Mas li caçadores de escravos, de cientistas que querem
alguns romances, como Ethan Fro- controlar a população negra através da esterilização de
me [Edith Whaton], que nunca tinha mulheres. Sabe de outro tipo de medo, da dimensão da ķĽŵ"ŵķľ +ANy
G\ųķľ
lido, Exit West, de Moshin Amid; li ambição num país que desconhece. “Digo sempre que, Ao6dŵG\\+ŵŤA"GH4ŞXN\jo,Ať
contos e novelas de Denis Johnson se quiserem ver como é esta nação, têm de andar pelos
de que destaco O Filho de Jesus. carris. Olhem para fora à medida que forem ganhando
Ganhar o Pulitzer e o National velocidade e irão ver o verdadeiro rosto da América”, ŵŵG6dŵjdŵŵHoH6\ŵ"Gŵ\"x"Ŕ
Book Award tornaram-no diz-lhe Lumbly, o condutor do vagão onde viaja no
conhecido em todo o mundo. escuro, debaixo do chão.
Isso mudou o quê? As palavras de Lumbley passam a ser uma espécie de
ŵŵX\N,\Gŵ"jA4Nŵ"Gŵ
Estou com um humor bastante me- coro grego na mente de Cora. O engenho de Whitehead
yyyŘXoAN\6"6\NŘNGŵ
lhor agora, mais bem-disposto do que está no modo como faz com que o sonho de Cora não
há dois anos. Não apenas pelos pré- seja só mais um e a sua experiência só mais uma entre ŵŵ6Hd\6V"dŵ
mios mas pela reacção das pessoas. escravos numa alegoria ao que é a América e o seu yN\?d4NXdƠXoAN\6"6\NŘNGŵ
Comecei um romance na Primavera sonho sonhado sobre escombros, entre eles o genocídio
e vou regressar a ele. Ter sucesso não dos índios americanos que Colson convoca para o seu
facilita o trabalho de escrita, continua livro porque também passou por eles o imperativo. ŵNGXH46ŵ
XoANŵ\6"6\NŵµŵćÞŵ åÞïßÇÉŵ
´öýòćýćòŵĮßߨÉŵïåò ò´öÉ´ßý´ ïåÉåŵAå¨Ø
a ser duro. Lá estão as histórias, as Uma nota: a tradução portuguesa tem falhas e retira
personagens as frases. poder ao livro. I.L.
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 27
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ERIC THAYER/REUTERS
atrai a atenção de Lonoff - já por Fantasma Sai de Cena, onde a sua
essa altura condenado a levar uma reflexão sobre ao tempo, o Jogos perversos
vida desinteressante, limitando-se a envelhecimento e a solidão atingem
“dar voltas a frases” - pela sua paroxismos tão trágicos como Este romance é uma
vivacidade e originalidade. hilariantes e onde acabou por
Nathan é o orgulho da família até enterrar este mesmo Nathan provocação que exige ao
à publicação do conto que o torna Zuckerman. leitor uma atitude crítica.
famoso, onde retrata sem As pessoas que acusam Roth de José Riço Direitinho
condescendência a comunidade misoginia e mau gosto esquecem-se
judaica que tão bem conhece. que ele é um escritor cómico e que Nada
Quando entra em casa de Lonoff só o riso é, nele, imensamente
Janne Teller
quer deixar para trás as subversivo. Em O Escritor
(trad. de Ana Diniz)
recriminações do seu próprio pai, Fantasma, mesmo na parte mais Bertrand
homem terno e decente, podólogo lúgubre e solene do livro quando, à
de profissão, que se mostra laia de “expiação”, relata os dramas mmmqm
chocado por Nathan ter usado os dos campos de concentração e o
membros da família como destino de milhões de judeus Passados sete
A reedição deste romance permite releitura salutar de um Roth personagens, oferecendo ao mundo através da história de Anne Frank, anos chega a
ainda não contaminado pelo azedume uma imagem patética dos judeus, aqui representada por mais um Portugal o
daqueles que não sofreram os fantasma, ou “duplo” ( a caprichosa polémico
horrores do Holocausto e que Amy Bellette), Roth não resiste ao romance da
Livros
carregam uma culpa acre e apelo do “riso trágico”, fazendo dinamarquesa
Ficção desoladora, o que, no rescaldo da ecoar a exortação nietzscheana: “ é Janne Teller
IIª Guerra é, obviamente, uma preciso aprender a rir para (n.1964), Nada,
O mundo espécie de sacrilégio. Nathan, à boa
maneira freudiana, anseia por se
podermos ser os pessimistas
destinados ao inferno”.
que teve a sua
venda proibida a adolescentes em
é um palco libertar das restrições morais da sua Desde Adeus Colombo (1959), o algumas regiões da Escandinávia.
comunidade. Pelo caminho, seu romance de estreia que tanto Escrito para jovens, depressa se
Um jogo de espelhos que “matará” o pai, substituindo-o por irritou a comunidade judaica, tornou num romance também para
Lonoff, um “artista, o mais famoso desdobra-se em caricaturas e adultos, mas não sem antes ter
se perde em meandros esteta da América, esse gigante da máscaras, em figuras que se provocado discussões.
agónicos e só resiste ao paciência, da força de vontade e do apresentam deliberadamente como De início parece um comum
tempo porque Roth é altruísmo…”. clichés, no limite do ridículo e do romance para adolescentes: um
sempre interessante. Helena Nathan chega a casa de Lonoff. kitsch. Roth sempre gostou de grupo de jovens, numa cidade
Está a nevar e os dois sentam-se em chocar o mundo e quando o dinamarquesa, começa as aulas, no
Vasconcelos
frente à lareira, o mestre adoptando acusam de atrair o ódio aos judeus sétimo ano lectivo das suas vidas.
O Escritor Fantasma uma jovial condescendência e o ou de mostrar a sua misoginia, ou De repente, um dos alunos, Pierre
discípulo uma estudada reverência. quando resolve “reformar-se” - qual Anthon, levanta-se e diz: “Nada tem
Philip Roth
Um Lonoff desencantado contraria é o escritor que se reforma? - é significado. Sei isso há muito tempo.
(trad Francisco Agarez)
D. Quixote o entusiasmo de Nathan, adoptando impossível esquecermo-nos da Portanto, não vale a pena fazer
um cepticismo mordaz.: “Não tente eterna questão: será que a comédia nada. Também já cheguei a essa
mmmmm (seguir o meu exemplo); Se a sua é a forma mais livre de todas as conclusão.” E depois saiu, deixando
vida for ler , escrever e contemplar expressões ou será que o autor se a porta entreaberta, “como um
No início de O a neve, vai acabar como eu. Trinta deve auto-censurar quando, para a abismo de escárnio”. Subiu a uma
Escritor anos de fantasia.” Mas Nathan está maioria dos seus leitores, ele (ou ameixeira que havia perto da escola
Fantasma, Nathan já distraído por uma jovem que ele ela) têm de observar limites da (a que já não tinha intenções de
Zuckerman, entreviu sentada no chão do decência e do decoro?. Quando voltar) e deixou-se ficar por lá
promessa da nova escritório – Lonoff explica-lhe que Roth coloca em cena os seus durante uns dias, a atirar ameixas
literatura, chega se trata de Amy Bellette, uma aluna professores envelhecidos e verdes para o caminho, a olhar o
ao retiro de E.I. que o está a ajudar a catalogar libidinoso, os seus adolescentes céu e a exercitar-se na arte de não
Lonoff, excelso manuscritos. A visita prolonga-se. masturbatórios, as suas shiksas fazer nada. Quando os colegas
homem de letras, Nathan é convidado para jantar e, deslavadas e agressivas, as suas passavam, ia atirando as suas
uma lenda viva, considerado por mais tarde, para pernoitar. Surge judias eroticamente sedutoras, diatribes para os provocar: “Tudo
alguns como sucessor de Melville e Hope, a mulher de Lonoff, “uma compõe um universo de isto [a vida] é uma enorme farsa,
de Hawthorne e, por outros, gueixa envelhecida”, sarcástica e personagens inesquecíveis que que consiste unicamente em fazer
descartado sem cerimónias por se trágica que desafia o marido, faz habitam um espaço particular, a de conta e em conseguir ser o
ter tornado obsoleto, afastado já uma cena de ciúmes e parte um dos judeus da classe média de Nova melhor nisso, mesmo.” E outras:
dos seus tempos áureos quando, copo. Nathan observa a crise com Iorque e arredores, em permanente sobre o significado de ser alguém na
“tímido, apaixonado e avidez e fica a saber que Amy contenda, no que diz respeito a vida, ou de que quando se nasce
desesperado”, produzia contos Bellette é, afinal – ou talvez não –, esperteza e desenvoltura, com os isso é já o princípio da morte, de
extraordinários, verdadeiras Anne Frank, a adolescente judia judeus de Chicago de Saul Bellow . que não adianta fazermos nada.
parábolas cómicas sobre judeus holandesa, cujo diário se Com a sua habilidade e Esta situação, que a princípio foi
errantes, diferentes de tudo o que transformou numa lenda. Roth perversidade na forma como utiliza ANITA SCHIFFER FUCHS
se escrevera até então. conta a história da família de as palavras, Roth cria uma trama
Nathan, aos 23 anos, está Nathan, a de um outro escritor, infindável de duplos, num jogo de
preocupado com a construção do Félix Abramavel (a cujo encanto espelhos que se perde em
seu próprio Bildungsroman, pelo Nathan resiste), e a de Amy/Anne, meandros agónicos e só resiste ao
que a estreita convivência com um enquanto vai plantando, no leitor, tempo (e ao ridículo) porque é um
autor tão insigne –figura uma complexa teia de dúvidas escritor sempre desafiadoramente
supostamente decalcada dos Philip Roth o autor que, nas interessante. A sua feroz e vitalícia
autores judeus Bernard Malamud palavras de um seu crítico, se meditação sobre a criação artística,
ou Henry Roth, ou de ambos – encontra enclausurado entre Freud as relações humanas e o peso da
representa uma iniciação, o e Kafka, ensaia em O Escritor História surge, em O Escritor
caminho certo no sentido de se Fantasma a sua longa caminhada, o Fantasma, como um ensaio de tudo
tornar “a autoridade em demónios seu penoso destino, que tentou o que escreveu posteriormente.
judaicos” como o próprio dirá, mais exorcizar em A Lição de Anatomia Quem o lê fica preso na rede dos
tarde, na sequência das obras (1983) e fez passar por várias seus truques habilidosos, da sua
(incluindo os nove romances onde é metamorfoses, sempre dolorosas, feroz crítica, da sua incomparável
manipulado por Roth) em que sempre delirantes através de vitalidade. Terá sido mesmo assim
participará como actor/autor sucessivas nemésis. A reedição que tudo se passou? Quem será o Nada é uma provocação que
principal. deste romance de 1979 permite uma fantasma de quem? E, já agora, exige do leitor uma atitude
Mas muita coisa acontecerá releitura salutar de um Roth ainda existirá um escritor chamado Philip crítica, um livro que incomoda,
depois desses anos 50 do século não contaminado pelo azedume Roth? Ou será ele, apenas, e e com um final arrepiante
XX, quando o então jovem Nathan que culminou no shakespereano O também, uma miragem?
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Discos
quase cómica, irritava os colegas,
mas estes não encontravam
maneira de o demover de cima da
ameixeira. E as suas ideias
filosóficas pareciam já baralhá-los.
“Não queríamos viver no mundo
que Pierre Anthon nos deixava
antever. Queríamos ser alguém, ser
alguma coisa.” Este sentimento
leva-os a quererem mostrar a Pierre
Anthon que ele estava enganado,
para isso engendram uma maneira
de o fazer: juntar numa pilha de
objectos aqueles que para cada um
deles terão mais significado, é o
“monte de significados”.
O que logo de início nos
apercebemos é que a escolha das
personagens não foi casual, aquele O Mosteiro de Santa Cruz Aparente agressividade que sabe travestir-se de doçura,
não é um grupo de jovens todos do de Coimbra sensualidade, tesão - síntese, afinal, de toda a música negra
mesmo “tipo”. Janne Teller fez um
grupo heterogéneo que representa
várias partes da sociedade, uma Portugal. Recentemente este solo (como é o caso da belíssima e
espécie de símbolo de grupo social, Clássica trabalho tem sido intensamente intimista interpretação em harpa
não apenas da dinamarquesa, mas desenvolvido pelo grupo de ibérica do [Tento do] 4º Tom de
de outra qualquer nacionalidade
europeia: o patriota e conservador
Esplendor investigação “Mundos e Fundos”
do Centro de Estudos Clássico-
Agostinho da Cruz). Em termos
gerais a interpretação musical
menino da classe alta com valores musical Humanísticos da Universidade de prima pela sobriedade, mas não
de direita, a freak de tranças e Coimbra. Com uma equipa deixa de realçar os diferentes
cabelo azul, o beato protestante, o Vislumbra-se a variedade de constituído por musicólogos e caracteres de um magnífico
imigrante (ou filho de) de religião intérpretes este grupo define-se repertório que, apesar de
islâmica, o líder do grupo (filho de
géneros e de estilos musicais pela forte interacção entre a litúrgico, oscila entre a exultação,
um talhante) que toca guitarra e cultivados no século XVII investigação científica e a prática a introspeção, a austeridade e o
canta canções dos Beatles, a num dos mais importantes musical. Um dos elementos desta humor.
menina bonita, e a menina gorda. centros musicais da equipa é Tiago Simas Freire, Pelo valioso contributo que
Ao optar por esta escolha Teller director e cornetista do Capella representa para a descoberta,
Península Ibérica: o Mosteiro
quis mostrar o que cada Sanctae Crucis. divulgação e revalorização do
“representante” poderia ter por de Santa Cruz de Coimbra. O repertório seleccionado para património musical português do
mais importante no seu grupo Pedro M. Santos o disco Zuguambé é constituído século XVII, mas também pela
social. Naquele jogo cada um dos Zuguambé – Música para maioritariamente por peças de qualidade das propostas musicais
jovens diria o que teria mais liturgia do Mosteiro de Santa autores anónimos que se e pelo rigor científico que as
significado para um outro, e este Cruz de Coimbra c. 1650 enquadram em três importantes fundamenta, Zuguambé é um
era obrigado a entregar isso para momentos de celebração registo fonográfico de referência!
Capella Sanctae Crucis, Tiago
ser depositado no “monte de litúrgica: as festas da Natividade,
Simas Freira (direcção)
significados”. E se a princípio tudo Harmonia Mundi (colecção do Corpo de Deus e da Ascensão
parecia ir bem, ao escolherem, por Harmonia Nova): HMN 916107 do Senhor. Nos géneros Pop
exemplo, uma rosa que fora do representados predomina o
casamento da avó, a bandeira
dinamarquesa, ou uma bicicleta
mmmmm Vilancico, mas também são
incluídos Vilancicos de Negro (de
Young, gifted
nova, de repente a história O primeiro onde é retirada a expressão and black
transforma-se num pesadelo, numa registo Zuguambé), Calendas de Natal,
espiral demolidora: as escolhas fonográfico do Responsórios, Tentos, Versos, um A etiqueta “rap feminino” é
tornam-se mais pesadas e passam a Capella Sanctae Salmo e um Motete de D. Pedro
incluir profanação de um caixão, de Crucis inaugura de Cristo, entre outros. supérflua quando elas são
símbolos religiosos, de mutilação a mais recente Trata-se de repertório de tão boas ou melhores do que
do corpo ou de abuso sexual. Como linha editorial da prestigiada natureza funcional que na época eles. Francisco Noronha
se Teller nos quisesse dizer que a etiqueta francesa Harmonia era objecto de arranjos
necessidade de procurar um Mundi, intitulada Harmonia elaborados de acordo com o Rapsody
significado para as coisas pode levar Nova. Esta nova colecção significado da celebração
Laila’s Wisdom
a que se percam os valores mais promove projectos de jovens litúrgica e dos diferentes Jamla Records, Roc Nation
básicos (como o respeito pela vida), músicos que se destacam pelo momentos que esta integra.
acabando com cada um a esquecer- contributo dado à renovação das Inspirando-se nas práticas mmmqm
se da sua individualidade, dos abordagens interpretativas e do musicais setecentistas dos
outros, e caminhando para uma próprio repertório. É este o caso Crúzios de Coimbra o Capella Quando uma
perdição sem redenção. Mais para o de Zuguambé, disco constituído Sanctae Crucis apresenta um rapper como
final do livro, quando tudo atinge por repertório inédito arquivado conjunto plausível de hipóteses Cardi B chega a
proporções nunca esperadas, o na Biblioteca Geral da de restauro, arranjo e n.º 1 do Top Hot
leitor pode acabar também a Universidade de Coimbra. O interpretação deste repertório, o 100 da Billboard
reflectir sobre o significado (ou o conteúdo do disco permite que justifica a profusão dos e iguala a proeza
seu vazio) de alguma “arte vislumbrar a variedade de estilos musicais propostos de só conseguida na história por
moderna” e de como ela pode géneros e de estilos musicais, entre os quais se destacam a uma outra senhora chamada
espelhar a sociedade que a produz. assim como a profusão de polifonia, a monodia Lauryn Hill, está tudo dito sobre o
Se há alguma “moral” nesta recursos vocais e instrumentais, acompanhada, a policoralidade e foco mediático e o protagonismo
quase parábola nórdica é esta perda cultivados no século XVII naquele o estilo concertante. No mesmo que, actualmente, o rap
de valores, da inocência que que foi um dos mais importantes sentido os arranjos incluem americano feito por mulheres
protege os jovens de um mundo centros musicais da Península propostas diversificadas, recebe. Ou melhor, não está tudo
cruel, mas também como se pode Ibérica: o Mosteiro de Santa Cruz recorrendo em alguns casos a um dito, é importante trocar as
manifestar tão facilmente o nosso de Coimbra. abundante conjunto de meios entrelinhas pela afirmação de
lado obscuro. Mais do que um livro Pelo seu inestimável valor vocais e instrumentais (por uma ideia clara: a pobreza
para jovens ou para adultos, Nada é artístico e cultural o repertório e exemplo no exultante Hodie nobis confrangedora em que uma parte
uma provocação que exige do leitor as práticas musicais do Mosteiro caelorum Rex ou no espectacular do rap americano (mais
uma atitude crítica, um livro que de Santa Cruz de Coimbra são de Zente Pleto), limitando-se noutros concretamente, o trap) está
incomoda, e com um final grande relevância para a casos a interpretações mergulhado estende-se ao
arrepiante. investigação musicológica em instrumentais de câmara ou a consumo de rap feito por
ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017 | 29
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O
filme de Edmundo Cordeiro, Todas as Cartas sinistras irmãs Kardashian). A ajudam a compor um trabalho
de Rimbaud, exibido há poucos dias na responsabilidade é – importa globalmente sólido mas que
Culturgest (fez parte do programa do dizê-lo claramente – de grande nunca ofuscam aquilo que o
Doclisboa 2017), acorda-nos para a filosofia parte da imprensa especializada, ouvinte percebe quando a voz de
como “música suprema”, quando há nela um cada vez mais voraz e acrítica na Aretha se cala e a batida entra: o
nexo tão forte com a linguagem que busca incessante de novos rap de voz segura, acutilante (por
percebemos que a verdade tem a sua morada na protagonistas. Se atrás dissemos vezes quase bélica), de Rapsody,
língua. E aí, filo-sofia e filo-logia coincidem. A matéria que estava “tudo dito” o sentido de comunicação e a Quando se Tem 17 Anos: o
deste filme são as aulas, as palestras, a fala de Maria relativamente ao “foco dicção perfeitos, a personalidade reencontro com um cineasta
Filomena Molder. Como é que o discurso abstracto da mediático” e ao “protagonismo” no momento de exprimir ideias e que sentíamos perdido
filosofia suscita a imagem e a escuta? Este filme nasce concedidos a artistas como Cardi convicções. Aparente
precisamente do fascínio por um modo de ler e de B, e não quanto à qualidade agressividade que sabe ceder nos
Cinema
pensar onde se dá uma união da imagem e do propriamente dita do rap feito momentos certos, travestindo-se
pensamento. Vamos aos factos: Maria Filomena Molder por mulheres, não foi por acaso; de doçura, meiguice,
é professora de filosofia na Faculdade de Ciências confundir as duas coisas seria sensualidade, tesão; mescla-
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. passar um atestado de óbito a síntese, afinal, de toda a música
Mas o seu “magistério” e o seu prestígio saltaram desde mulheres que, não gerando negra, sempre entre a atitude
há muito tempo para fora da Universidade e ganharam milhões de clicks na histeria das combativa e o romantismo
um público muito mais vasto. O filme de Edmundo redes sociais, fazem rap de incurável. Por essa razão é que,
Cordeiro é uma prova disso. Quando isto acontece com excelente nível, de tal forma que, depois de momentos
um filósofo, quase sempre são as más razões que só por pura ignorância (ou tique confrontacionais, introspectivos e
causam o fenómeno: ou porque se tornou um filósofo anacrónico, mesmo que reflexivos em que Rapsody dá uso
pop, ou porque submeteu a filosofia a uma involuntário), se possa continuar à wisdom que lhe foi transmitida
degradação, tornando-a uma disciplina de sapiência e a falar, hoje, em “rap feminino” e pela sua avó Laila (a do título do
imprimindo-lhe um tom oracular. Ora, Maria Filomena “rap masculino” (infelizmente, álbum), casos de Power, Black &
Molder não cai em nenhum desses pecados: a sua lição como sabemos, em Portugal, a Ugly ou Nobody (as fabulosas e
fascina porque torna a filosofia uma intensidade que coisa ainda tem o seu quê de omnipresentes teclas a erguerem
não se define pelo objecto e porque é uma arte da exótico, algo natural quando, um dos melhores momentos do
leitura. Ela reclama a maior responsabilidade para a para além de Capicua, o resto é álbum), a sua voz desliza, com o
tarefa do leitor. E fá-lo perante o seu auditório como paisagem). Rapsody, que não é groove certo, para o funk de Pay
quem executa uma dança que não pode ser contida propriamente uma novata no Up, “Sassy” (com ginga de
nos limites de uma prévia coreografia. Percebemos, panorama (vários EP e álbuns breakbeat) ou U Used 2 Love Me,
então, que ler é uma arte fascinante e que se pode ter o desde 2011), é um dos melhores para depois voltar a emprestar o
estatuto de autor lendo os textos de outros autores. Ao exemplos disso (Akua Naru é flow assertivo às cordas de
ler Goethe, Kant ou Rimbaud perante um auditório (de outro), na medida em que o faroeste, com direito a patada na
alunos, de espectadores do filme que respondeu ao mérito da sua música faz com que porta do saloon, que se ouvem
apelo e ao fascínio dessas leituras), Maria Filomena a etiqueta “rap feminino” deixe em OooWee. Curiosamente, se
Molder consegue reencantar e alargar o mundo. Este de fazer sentido, porque Kendrick Lamar, como acontece
filme mostra-nos não a figura de uma filósofa-sábia, supérflua. É, por isso, a partir em 99% dos casos em que é
mas de uma leitora que faz da leitura uma experiência daqui, desta ideia de um rap convidado para uma faixa, não
do pensamento. O filme de Edmundo Cordeiro (e, já “pós-feminino” (diferente de abafa o protagonismo de Rapsody
agora, também este texto) não serve para dar brilho e “feminista”) – e por isso é que em “Power” (curiosamente,
fama à pessoa que levou às últimas consequências os nunca a ouvimos a fazer ego trip muitas das canções têm um
seus gestos de leitora quando transcreveu para um centrada na sua condição de “b-side”, como acontecia em
caderno – como se fosse um diário - algumas cartas de mulher “no meio de homens”, o DAMN.), é ao veterano Busta
Rimbaud. O que ele exalta é um movimento da leitura que não invalida, lá está, que Rhymes que caberá esse papel no
– o leitor como uma espécie de flâneur, praticando um assuma posições feministas –, que final de You Should Know – Let me
pensamento que deambula –, onde está bem patente a a devemos olhar (a ela e a outras) get on my Barry White shit, diz
tensão entre a percepção e a reflexão, entre a poesia e sob a mesmíssima bitola que antes de uma gargalhada, uma
o pensamento. No início do filme, Maria Filomena usamos para rappers (homens) vez mais nos deixando a
Molder lê a analítica do sublime, da terceira Crítica de reputados (como alguns dos que impressão de que nele se poderá
Kant. E, de repente, aquela coisa complicadíssima e colaboram neste álbum, casos de ter perdido uma grande voz do
eminentemente abstracta dos conflitos entre a Kendrick Lamar, Black Thought jazz ou da soul. Num álbum com
faculdade da imaginação e a faculdade do ou Busta Rhymes). Num álbum composições sempre de elevado
entendimento torna-se bem visível e cheia de em que o produtor 9th Wonder é, nível (a espaços brilhante), há que
consequências. Não porque o filme tente como habitualmente nos seus lamentar, contudo, o discurso por
esforçadamente dar a ver ou “ilustrar”, mas porque há, trabalhos, o principal arquitecto vezes demasiado auto-centrado,
desde logo, algo imagético – uma unidade da imagem e sonoro, a coralidade é marca circular, “de batalha” (vulgo ego
do pensamento - na leitura que Maria Filomena Molder distintiva, sendo uma voz trip), que perde decididamente
faz de Kant. Estas imagens são leituras. Ler e pensar essencial, clássica, que inicia o para o que de relevante se ouve à
não são separáveis. O topos peripatético da filosofia disco, essa de Aretha que americana noutras canções,
grega, a relação entre andar e pensar, encontramo-lo ouvimos samplada de Young, como é o caso de Jesus Coming
modalizado por Maria Filomena Molder de acordo com Gifted and Black, a qual desde (que joga ironicamente com o
um preceito nietzschiano: “Não confiar em nenhum logo imprime o cunho político, Time to go home que se ouve da
pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em emancipador e afro-cêntrico voz samplada de Otis G. Johnson),
plena liberdade de movimentos”. Os Gregos sabiam transversal ao discurso de todo o momento altíssimo, elegíaco, que
que era possível controlar uma sociedade não apenas álbum. Vozes “nos bastidores” encerra o disco na maior das
através da linguagem, mas também através da música. como essa repetem-se, seja a de comoções. Lauryn Hill,
Acordar-nos para a boa música capaz de nos subtrair à Lance Skiiwalker (um dos nomes Bahamadia, Jean Grae, mas
má política e suspender o desencanto do mundo - esta mais brilhantes, se bem que ainda também KRS-One ou Nas: por
é a força de uma leitora que aceita ler à nossa frente, marginal, do rap americano aqui, sim, o seu legado está mais
como se estivesse a ler pela primeira vez. geracionalmente recente, do que assegurado.
30 | ípsilon | Sexta-feira 27 Outubro 2017
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que os rodeia. Não se trata apenas de música e fez sabe-se lá mais o quê aos que Tarantino e Rodriguez mais descritiva na maneira de lançar
uma embirração de grupinhos de neste filme que não é mero projecto exploraram no díptico À Prova de a narrativa num contexto social e
liceu, mas algo que miscigena de vaidade pessoal, mas toda uma Morte/Planeta Terror, sem cultural, tem alguma força, alguma
questões de família, estatuto social, tese de discurso sobre o género — problemas em piscar o olho a agitação na encenação dos impasses
atracção e repulsa, comportamentos cinematográfico e feminino. estilistas aclamados como Dario de Pamela — que está a acabar o
adquiridos ou esperados a Assume-se como pastiche do Argento e Mario Bava. Basta ver liceu mas tem dificuldades para não
esconderem a verdadeira natureza exploitation dos anos 1960/1970, nas que, para lá das composições reprovar, tem dificuldades para tirar
das suas personalidades, que será vertentes de erotismo soft-core e próprias, são temas de época dos a carta, tem dificuldades no
revelada com a ajuda providencial terror gótico, algures entre a pré- giallos italianos (assinados por relacionamento com os pais e com a
da mãe de Damien (Sandrine história do giallo, as cores saturadas Ennio Morricone, Luis Bacalov ou irmã, com os rapazes, e até da
Kiberlain, discretíssima). dos filmes de terror da Hammer e a Piero Piccioni) a funcionarem como melhor melhor amiga se afastou, o
É verdade que Téchiné não displicência das produções de banda-sonora do filme. É verdade seu feito reservado um tanto
inventa aqui nada nem explora Roger Corman. Situado num que a obsessão de Biller em incompatível com a exuberância da
território que já não conhecesse “tempo de ninguém” que ora reproduzir a estética visual do outra. Em suma, “realismo francês”
antes, mas Quando Se Tem 17 Anos remete para as décadas que o cinema de exploitation, somada a num contexto luso-descendente, e
tem uma desenvoltura, uma inspiraram ora para os dias em que uma duração excessiva, corre o pourquoi pas? Mas depois, é no
sensibilidade, que faz deste filme um vivemos, conta a história de Elaine, risco de sufocar o projecto. Mas se forçar de uma relação com a
reencontro com um cineasta que bruxa perseguida pelas más não é um filme perfeito, é também “origem” que o filme soçobra. Toda
sentíamos perdido. Eabe que experiências românticas com um dos mais interessantes objectos a sequência portuguesa, nas férias
também isto vai passar. Vale, homens e pela necessidade de se surgidos do cinema de Verão, é desapontadoramente
Estreiam francamente, a pena reencontrar impor como mulher independente, (verdadeiramente) independente esquemática, o registo soa a falso,
aqui André Téchiné. que acredita que o amor é um americano, um filme que vira do até os actores parecem estar menos
O mundo que absoluto que nos consome e
descobre através das suas magias
avesso as noções pós-modernistas
que o percorrem, e Anna Biller é, a
bem, e tudo acaba, paradoxalmente,
por ter uma função acessória, quase
nos rodeia A bruxa do que nenhum homem consegue julgar pelo que aqui faz, uma autora decorativa, no resolução do
Apresentação do livro
com a presença de
Sérgio Godinho
25 Outubro às 17h no
Auditório do Público
INÉDITO E EM
CAPA DURA O PÚBLICO e a KINGPIN BOOKS lançam
pela primeira vez, uma banda desenhada
inédita de autores portugueses premiados,
onde Sérgio Godinho se aventura na
+12,9AN9C€A
localização do mítico Elixir da Eterna
Juventude, num universo povoado
pelas suas criações de mais de quarenta
anos de carreira. O autor Fernando Dordio
EM B presta uma homenagem e um dos nomes
COM O PÚBLICO maiores da música e cultura portuguesa,
ilustrada pelo multipremiado
Osvaldo Medina.
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