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REVISITANDO O

MESSIANISMO NO BRASIL
E PROFETIZANDO
SEU FUTURO

Lísias Nogueira Negrão

Messianismo, movimento messiânico teristicamente messiânicos concepções de um es-


e milenarismo cathon final.
Constituem-se como movimentos messiâni-
Como conceitos abrangentes e genéricos, cos, milenaristas, ou messiânico-milenaristas des-
messianismo e movimento messiânico são neces- de simples contestações pacíficas quanto a aspec-
sariamente típico-ideais, no sentido de se referi- tos selecionados da vida social, até rebeldias arma-
rem à realidade observável mas não a reproduzi- das, ambos os tipos informados pelo universo
rem ou esgotarem, e isto mesmo no caso em que ideológico religioso, capazes de, ao mesmo tempo,
os autores entendam seus conceitos como tipos diagnosticar as causas das atribulações e sofrimen-
empíricos. Desta forma, o primeiro deles diz res- tos e indicar caminhos para sua superação, desde
peito à crença em um salvador, o próprio Deus os mais racionais até os mais utópicos. O imaginá-
ou seu emissário, e à expectativa de sua chegada, rio religioso pregresso, sua exacerbação ou supe-
que porá fim à ordem presente, tida como iníqua ração por uma nova revelação profética, está sem-
ou opressiva, e instaurará uma nova era de virtu- pre presente, interpretando a realidade, postulan-
de e justiça; o segundo refere-se à atuação coleti- do objetivos e indicando os meios pelos quais estes
va (por parte de um povo em sua totalidade ou serão alcançados.
de um segmento de porte variável de uma socie- Orientando-se sobretudo por valores e senti-
dade qualquer) no sentido de concretizar a nova mentos tradicionais, em descompasso com os ide-
ordem ansiada, sob a condução de um líder de ais de modernidade do momento, tais movimentos
virtudes carismáticas.1 A concepção acima asso- tendem a ser vistos pelas vigências política e
cia os movimentos messiânicos à escatologia, intelectual como irracionalidades e arcaísmos, fru-
embora possam existir movimentos milenaristas tos da ignorância e do fanatismo. Sendo seus
não messiânicos, conduzidos por uma sucessão adeptos historicamente recrutados entre indígenas
ou pluralidade de líderes guerreiros, assembléias destribalizados, populações camponesas, povos
de anciãos, virgens ou crianças inspiradoras etc. colonizados e setores populacionais marginaliza-
Por outro lado, podem faltar a movimentos carac- dos ou excluídos da moderna civilização ocidental

RBCS Vol. 16 no 46 junho/2001


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(os “primitivos da modernidade”, segundo Hobs- Juazeiro, Canudos e Contestado


bawm), tendem a ser interpretados, na ótica oficial,
como arcaísmos deletérios e antiprogressistas, Entre os inúmeros autores que estudaram os
quando não como episódios de loucura coletiva, a maiores movimentos messiânicos ocorridos no
que se chega a partir de efeitos desencadeadores país distingue-se uma espécie de “vertente ficcio-
da loucura do líder. nista”, cujo maior expoente foi sem dúvida Edmun-
do Moniz (1978).3 Segundo essa vertente, os líde-
res messiânicos teriam sido líderes revolucionários
Os movimentos messiânicos-
das massas camponesas e suas “cidades santas”,
milenaristas brasileiros
comunidades socialistas precursoras do futuro das
O Brasil tem sido especialmente pródigo na sociedades modernas. Peças antes políticas que
geração de movimentos messiânicos. Desde o fruto de pesquisa histórica, essas interpretações
primeiro século colonial, índios guarani puseram- consistiram em um contraponto à ideologia oficial
se em busca da “terra sem males” e indígenas que postulava serem aqueles movimentos retróga-
destribalizados constituíram os chamados “movi- dos, antiprogressistas. Talvez tenham exercido um
mentos de santidade”. Mas a maioria deles, ou papel salutar, no sentido de formular uma imagem
pelo menos aqueles sobre os quais se tem maior mais positiva dos movimentos, mas passaram lon-
documentação, transcorreu entre populações ser- ge das motivações e intenções reais dos líderes e
tanejas, do nordeste ao sul do país, no período liderados das sublevações enfocadas.
de pouco mais de um século, a partir de cerca de Nesta ligeira reflexão sobre o messianismo
1820. Maria Isaura Pereira de Queiroz levantou a no Brasil, concentrar-me-ei na análise dos três
existência de nove movimentos documentados movimentos mais instigantes e, por isso mesmo,
no período. mais estudados: pela ordem cronológica, Juazeiro
Trágicos como o de “O Reino Encantado”, do Padre Cícero (1872-1934), Canudos de Antonio
transcorrido entre os anos de 1836-1838 em Per- Conselheiro (1893-1897) e o Contestado dos mon-
nambuco, com sacrifícios humanos e morte violen- ges João e José Maria (1912-1916). Meu interesse
ta dos adeptos, ou bem-sucedidos e acomodados não é exatamente o de comparar os três movimen-
como o “Povo do Velho Pedro”, iniciado na década tos entre si; embora circunstancialmente possa o
de 1940 no interior da Bahia e ainda, de certa estar fazendo sob alguns aspectos, este não é o
forma, existente; pacíficos como este último ou meu intuito. Tal tarefa já foi cumprida, a meu ver de
envolvidos em conflitos como a “Guerra Santa” do maneira exemplar, por Duglas Teixeira Monteiro
Contestado, durante o período 1912-1916, na zona (1977). Meu interesse é inventariar e avaliar o
serrana de Santa Catarina; envolvendo milhares de estado atual da bibliografia sobre tais movimentos,
pessoas e tornando-se fenômenos de repercussão mesmo que com algumas possíveis omissões. Não
nacional, como este último ou o movimento de se trata de um enfoque nos movimentos propria-
Canudos (1893-1897) na Bahia, ou de pequeno mente ditos, mas no que se disse sobre eles de mais
porte e de repercussão apenas local como o do relevante para sua compreensão socioantropológi-
“Beato do Caldeirão”, que sucedeu no Ceará ao ca. Não que inexistam estudos históricos, socioló-
famoso movimento do Padre Cícero, seriam todos gicos e antropológicos relativos a outros movimen-
eles “movimentos rústicos”, segundo a citada auto- tos que não valham, seja pelo seu caráter docu-
ra, movimentos típicos de sociedades tradicionais, mental, seja pelo seu valor analítico, menção e
de base patrimonialista e estruturalmente assenta- exame. Os há e muitos. Mas é nos estudos sobre os
dos em parentelas, motivados pelas crenças do três movimentos considerados que aparecem mais
catolicismo popular.2 Vejamos, a seguir, com base claramente as questões teóricas e metodológicas
nos principais autores que os estudaram, e sem a que me proponho a retomar.
pretensão de os exaurirmos e às questões discuti- Uma primeira controvérsia, de caráter con-
das, quais os principais resultados alcançados. ceitual, já se pode assinalar. Trata-se de seu enqua-
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dramento numa mesma categoria, a de movimento duzindo uma rica e aprofundada base para inter-
messiânico. A marcada liderança carismática apa- pretações posteriores. No entanto, suas interpreta-
rece claramente em dois deles, na Juazeiro de ções, calcadas em referenciais marxistas, também
Padre Cícero e em Canudos de Antônio Conselhei- são marcadamente ideológicas. O movimento, por
ro. Não há dúvidas de que os eventos transcorridos sua fundamentação religiosa, expressaria uma “fal-
em um e outro caso não teriam lugar sem suas sa consciência da realidade, alienada, autista e
lideranças; os movimentos surgem sob sua condu- mórbida”.5 A esquerda dá a mão à direita na
ção, encontram seus rumos na orientação que elas condenação, pelos mesmos motivos, dos movi-
lhes imprimiram e terminam com suas mortes mentos messiânicos.
(mesmo que Juazeiro tenha continuado a existir, Na senda aberta pelo autor aparecem os
sob forma rotinizada, após a morte do Padre). Já estudos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, o
este não é o caso do Contestado. Os monges que primeiro dos quais tratando exatamente do caso do
se sucederam atuaram no sentido da gestação do Contestado (Pereira de Queiroz, 1957). Além deste
mito messiânico, mas não conduziram o movimen- trabalho e do livro acima citado, este com edições
to, tendo desaparecido o primeiro e morto em francesa e espanhola, a autora publicou mais de
combate o segundo antes do desencadeamento do uma dezena de artigos em revistas nacionais e
surto milenarista que se seguiu. internacionais. Sua obra sobre o messianismo é
Aliás, apenas o movimento do Contestado seguramente a mais volumosa e ela tem sido
teria sido caracteristicamente milenarista; faltam reconhecida internacionalmente como a maior es-
evidências da presença de um escathon final no pecialista no assunto. O estudo inicial sobre o
universo de crenças dos movimentos de Juazeiro e Contestado, a partir da documentação levantada
Canudos. Do ponto de vista religioso, estes pare- por Vinhas de Queiroz e generosamente colocada
cem ter sido antes afirmações de um catolicismo à sua disposição, balizou suas interpretações sobre
popular que se queria relativamente autônomo em o messianismo. Além do Contestado, Pereira de
relação à Igreja, com base em um misticismo Queiroz pesquisou diretamente apenas o “Povo do
temido por ela mas conhecido e controlável, do Velho Pedro”, em Santa Brígida, interior da Bahia.
que propriamente heresias cismáticas capazes de Este teria sido seu modelo de “movimento refor-
instituir crenças e igrejas outras, diversas das do mista”, na medida em que a comunidade instituída
quadro católico de origem. Vinhas de Queiroz, um por Pedro Batista, embora exigindo comportamen-
dos maiores estudiosos do movimento, realmente to exemplar de seus membros, recuperando e
levanta a hipótese da gênese de uma nova religião, fazendo vigir os valores da moralidade católica
seguindo a seqüência da história sagrada cristã.4 camponesa, estabelece relações de cooperação
Mesmo Duglas Teixeira Monteiro (1974), que põe com as populações circunvizinhas e mesmo com
em dúvida esta idéia, afirma que apenas no caso do os governos municipal, estadual e federal.
Contestado chegou-se a um “reencantamento do Mas mesmo o Contestado, apesar da guerra
mundo” radical, propiciador de um novo sagrado, civil em que se envolveu, não pode, segundo a
tendo-se rompido totalmente com o “velho século” autora, ser considerado revolucionário, assim
e com a Igreja com ele identificada, mesmo assim como Canudos. Os messias sertanejos brasileiros
criando-se, no caso de seu agente, o padre, uma teriam sido todos líderes reformistas, sem qualquer
ambigüidade derivada da manutenção da santida- veleidade de derrubada da ordem vigente. Envol-
de, não de todo perdida, de sua palavra. veram-se em lutas políticas sim, mas sempre como
Vinhas de Queiroz foi o primeiro a realizar aliados de mandatários regionais ou locais, em
uma pesquisa realmente histórica sobre o Contes- suas disputas contra outros “mandões”. O rompi-
tado, levantando documentos escritos e produzin- mento com as oligarquias locais, temerosas de seu
do documentos primários a partir da tomada de vulto e de sua independência em relação à domi-
depoimentos de remanescentes do movimento e nação rotineira, conduziu à sua posterior destrui-
seus descendentes. Seu trabalho foi seminal, pro- ção pelo inseguro Estado Republicano emergente,
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alarmado pela ameaça de restauracionismo monár- mento regional, como alternativas aos impactos
quico. desestruturantes da modernidade política e econô-
Pereira de Queiroz evolui do estudo de caso mica sobre populações rústicas. Tais seriam os
para um amplo estudo classificatório do “messia- casos de Santa Brígida e de Juazeiro;
nismo no Brasil e no mundo”. Além dos seus 6ª) Contrariamente ao que supunha a “ver-
méritos intrínsecos, relativos aos exaustivos levan- tente ficcionista”, havia, no interior das “cidades
tamentos bibliográficos sobre casos de movimen- santas”, indivíduos das mais diferentes condições
tos messiânicos eclodidos em todo o globo e às sociais, os quais, ao serem incorporados ao grupo,
tipologias dos mesmos em referência ao meio preservavam seus privilégios de condição econô-
social de origem e suas funções em relação a estes, mica e de classe social. No Contestado, por exem-
seus estudos realizam aquisições sobre os movi- plo, muitos coronéis aderiram à luta, com todos os
mentos messiânicos que parecem ser definitivas: seus agregados.
1ª) A ocorrência desses movimentos de- Não obstante seus inúmeros méritos (outros
monstra que as sociedades de base patrimonialista há além dos mencionados, certamente), Maria
não são estagnadas, mas, ao contrário, dotadas de Isaura Pereira de Queiroz não pôde, contudo,
uma dinâmica interna própria, capazes de reação deixar de sentir os efeitos das limitações do seu
contra fatores exógenos ou endógenos (no caso da próprio método. Embora extremamente sensível
análise da autora sobre os movimentos brasileiros, ao drama social e humano em que se constituem os
predominantemente endógenos) que comprome- movimentos que estudou, e apesar de ter se
tam sua existência tradicional; declarado “romeira de Pedro Batista”, os quadros
2ª) Tais movimentos não são aberrantes, nem interpretativos de que se valeu partiram de ques-
integram um capítulo da patologia social, como até tões exógenas ao universo dos agentes estudados,
então se supunha. Ao contrário, seriam reações com base em um referencial teórico e em significa-
normais de sociedades tradicionais em momentos dos que lhe foram atribuídos do exterior.6 A
de crise, de anomia (o mais comum no caso recorrência a conceitos genéricos (messianismo,
brasileiro) ou de mudança de sua estrutura interna. milenarismo, reforma, revolução, tradição, moder-
O apelo a valores religiosos não seria uma atitude nidade, anomia), não obstante sua valia no caso de
alienada, mas a expressão da revolta por meio do estudos comparativos, não deixa de ser apriorística
único canal possível no contexto cultural tradicio- e reducionista da religião vivida no concreto. Esta
nal; seria, para a autora, apenas um simples canal de
3ª) Os líderes messiânicos não seriam psico- reivindicações sociopolíticas, sem eficácia criativa.
patas megalômanos, mas místicos ou ascetas fre- O mito milenarista nada mais seria do que o padrão
qüentes na tradição judaico-cristã, dotados de qua- capaz de moldar a reação contra a crise, esta sim
lificações intelectuais acima da média de seus determinante.
liderados; no mínimo, homens informados, com Duglas Teixeira Monteiro pôde servir-se do
vivência em ambientes sociais diversificados e trabalho pioneiro e esclarecedor de Pereira de
profundos conhecedores da cultura religiosa tradi- Queiroz, de quem obteve ainda a documentação
cional; elaborada por Vinhas de Queiroz. Também partiu
4ª) O conflito eventualmente deflagrado en- do mesmo caso estudado por sua predecessora, o
tre os movimentos e a sociedade global não se Contestado, tendo evoluído, assim como ela, para
deveu à ignorância ou ao caráter retrógrado das estudos comparativos (Monteiro, 1974 e 1977). Seu
massas ou de seus líderes, mas a interesses políti- espectro de comparação, contudo, foi muito mais
cos e econômicos locais e regionais e à intolerância limitado que o dela, restringido-se ao “confronto
das autoridades civis e religiosas; entre Juazeiro, Canudos e Contestado”. Monteiro
5ª) Muitos movimentos, quando não hostili- preocupa-se, no entanto, com a captação do histó-
zados e tolerados em suas especificidades, consis- rico e humano específico de cada caso, mesmo no
tiram em interessantes experiências de desenvolvi- contexto comparativo.
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Inversamente ao procedimento metodológi- rústicos como dotados de total autonomia perante


co usado pela pesquisadora, contudo, Duglas aquela. O autor vem demonstrar como os segmen-
Monteiro opta por partir das concepções dos pró- tos moderno e tradicional se articulam, e que
prios agentes, das relações por eles definidas como estímulos externos a este segundo segmento, ori-
relevantes, de acordo com as indicações do “méto- ginários do primeiro, têm o seu papel na gestação
do compreensivo”. Em sua análise do Contestado, desses movimentos. Por meio da análise das día-
a religião dos agentes e o mito milenarista que a des típicas do mundo político e religioso rústico
caracteriza são eleitos fatores estratégicos para a (padre-fiel; coronel-cliente; padrinho-afilhado;
compreensão do movimento, apesar de levar em beato-seguidor; santo-devoto), demonstra a exis-
consideração as influências e determinações do tência, em todos os pares listados em seu estudo
contexto social. comparativo, de vínculos que acabam por ligar a
O autor parte justamente do contexto de sociedade patrimonialista a setores diversos da
dominação patrimonialista da sociedade brasileira sociedade inclusiva: através do padre, à Igreja da
rústica para chegar à motivação do movimento. qual este é funcionário; através do coronel, à
Assim, chega à conclusão de que a amálgama entre oligarquia que lhe confere o poder; através do
coerção e consenso que a caracterizava rompeu-se padrinho, ao compadrio interclasses reafirmador
em decorrência da modernização da região serra- da hierarquia; através tanto do beato quanto do
na, por meio da introdução do “terror da história”, santo, liga-se novamente à Igreja, na medida em
que dilui as bases pessoais da coesão. Dissociada que se trata de um catolicismo popular por ela
do consenso, a coerção demonstra toda a sua face controlado. O rompimento dos laços pode condu-
cruel, provocando o “desencantamento” do mun- zir ao extremo da autonomia, expressa no imagi-
do rústico. Pela redefinição dos antigos laços do nário milenarista do Contestado; a renovação
compadrio, que se transforma de “santo compa- destes laços, em graus variáveis (mais em relação
drio” em “santa irmandade”, e a elaboração escato- às instituições políticas e menos em relação à
lógica, a religião produz o “reencantamento” capaz Igreja), pode conduzir, no caso de maior inter-
de produzir a “loucura” que se seguiu. câmbio, a heresias religiosas como em Juazeiro
Mas esta “loucura”, interpretada a partir da ou, no caso do congestionamento dos canais de
perspectiva dos próprios agentes, tem a sua lógica e comunicação em geral, à rebelião conservadora,
pode ser compreendida mesmo nas manifestações como em Canudos.
aparentemente mais esdrúxulas, como os ideais Dos três casos “clássicos” de movimentos
monarquistas e de atualização da gesta carolíngea, a messiânicos brasileiros, o mais pesquisado e pro-
utilização de táticas e instrumentos de guerra supe- fundamente analisado foi certamente o do Contes-
rados, a exumação dos cadáveres dos inimigos, tado. Não porque tenha sido o mais trágico: certa-
além de inúmeras ambigüidades (no trato com o mente Canudos se lhe equipara. Não, também,
dinheiro, com as armas, nas relações com o clero pela sua duração (foi o mais curto deles) ou pelo
etc.). Na fina análise do autor estas práticas revelam- número de pessoas envolvidas (sob este aspecto,
se plenas de sentido. Por detrás de tantas aparentes Juazeiro o superaria de longe, possivelmente tam-
irracionalidades, julgadas em termos instrumentais, bém Canudos). Talvez o movimento do Contesta-
há uma racionalidade claramente perceptível quan- do tenha sido o mais instigante devido justamente
do se conhecem os valores que orientam as ações e ao seu claro e evidente imaginário milenarista. Mas
lhes conferem significação. deve também ter pesado a excelente e fertilizadora
Um outro aspecto relevante na obra de influência dos exaustivos levantamentos de Vinhas
Duglas Teixeira Monteiro é ter ele demonstrado as de Queiroz, que propiciaram farta documentação
mediações entre o movimento e a sociedade passível de ser interpretada de diferentes ângulos.
inclusiva. Maria Isaura Pereira de Queiroz, em sua Sem este trabalho não teria havido os de Maria
insistência no caráter endógeno dos movimentos Isaura Pereira de Queiroz e de Duglas T. Monteiro,
messiânicos, termina por considerar os segmentos ao menos em toda a sua riqueza.
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Mas o mais conhecido destes três movimen- critica superficialmente, condenando-os como lei-
tos, certamente, é o de Canudos. Divulgado pela turas elitistas e distanciadas da realidade histórica.
mídia (chegou até a ter filme comemorativo do seu Absolve apenas o “mestre Calazans”, por suas
centenário), inspirador de obras literárias (de Eu- pesquisas pacientes e rigorosas, sem grandes e,
clides da Cunha a Mario Vargas Lhosa) e merece- para ele, desnecessários vôos teóricos.
dor de certa reverência pela intelectualidade, é Para terminar, uma menção a Juazeiro. Dos
contudo o que menos pesquisado foi, sendo, três grandes movimentos, foi o único a não terminar
portanto, o menos conhecido deles. Deve ter tragicamente. A violência, neste caso, foi simbólica
contribuído para tal carência a própria atitude do e transcorreu exclusivamente dentro dos quadros
Exército brasileiro, que não contente em destruir religiosos e eclesiais: a suspensão das ordens sacer-
Canudos, empenhou-se na destruição de sua me- dotais de Padre Cícero e sua posterior excomu-
mória. Parece haver, no entanto, documentação nhão. Talvez esta falta de dramaticidade tenha
para resgatá-la — fala-se em documentos inéditos concorrido para a repercussão menor deste caso,
em poder do Exército, de estudiosos que não os não obstante o grande vulto, não só regional mas
divulgam. A publicação do sermonário de Antonio também nacional, que a figura do coronel, padre e
Conselheiro por Ataliba Nogueira (1978) veio re- beato adquiriu. É com certeza um santo popular-
novar a esperança na existência de documentação mente canonizado, personagem dos mais freqüen-
suficientemente reveladora, o que, no entanto, tes na literatura de cordel, mas talvez não tenha
mais de duas décadas após, não se confirmou. logrado na literatura erudita e na mídia (lembro-me
Não que inexistam pesquisas sobre Canu- apenas de uma novela produzida sobre ele, anos
dos. Há, por exemplo, o recente trabalho do atrás, pela Globo), e entre a intelectualidade mais
americano Robert Levine (1995), sem dúvida histo- sensibilizada pelas massas populares, espaço seme-
ricamente correto, utilizando as fontes já conheci- lhante ao ocupado por Antônio Conselheiro. Tam-
das. No entanto, seu trabalho de historiador com- bém talvez seja menos pesquisado do que merece-
petente e profissional se compromete na interpre- ria. O trabalho de reconstrução histórica dos mean-
tação, ao creditar a Canudos o caráter de exemplar dros políticos e eclesiais de Juazeiro elaborado com
brasileiro único de movimento milenarista. Há competência e profissionalismo exemplares por
também os estudos de José Calasans, velho histo- Ralph Della Cava (1976) talvez tenha, ao contrário
riador baiano que pesquisa Canudos desde a déca- do que ocorreu com Vinhas de Queiroz, dissuadido
da de 50. Calasans é autor de mais de uma dezena estudos posteriores. Mas há uma riqueza de expres-
de artigos de muito interesse e rigor, enfocando sões de catolicismo popular — grupos de peniten-
aspectos variados da realidade de Canudos e de tes, associações de beatos e de romeiros — que
suas repercussões na sociedade, afastando-se dos ainda permanece um veio a ser explorado, embora
mitos da “vertente ficcionista”. muitas delas já sejam objeto de pesquisa.7
Na esteira das comemorações do centenário Dos vários autores que se dedicaram a deci-
da destruição de Canudos, transcorrido em 1997, frar os enigmas do messianismo, a entender suas
foi publicado o livro Os anjos de Canudos, do (aparentes) excentralidades e irracionalidades,
historiador Eduardo Hoornaert. Embora interes- poucos foram além das explicações dos casos
sante em sua perspectiva de interpretar o movi- concretos que estudaram. As generalizações e
mento a partir de sua concepção de “cristianismo explicações globalizantes são escassas. As recons-
beato”, o livro não traz nenhuma contribuição truções históricas e os trabalhos etnológicos, pelo
empírica ou teórica relevante. Sumaria e analisa os seu apego maior aos estudos de casos, disciplinar-
trabalhos mais importantes, desde Euclides da mente requerido, abdicam de fazê-lo. Excetuando-
Cunha, cuja interpretação de Canudos considera se os estudos do “viés ficcionista”, com sua vã
“sacrificialista”, até os autores acadêmicos (Pereira tentativa de afirmar os movimentos como formas
de Queiroz, Vinhas de Queiroz, Monteiro, Levine), pré-socialistas, tal objetivo é apenas encontrável
cujos conceitos de messianismo e milenarismo nos estudos sociológicos, que por mais centrados
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no singular que sejam, abrem-se, em função de sua mentos políticos de grande porte, de outro, como
própria perspectiva, ao plural. Mesmo que discre- distinção de caráter universal, embora invista nesta
tamente, como o faz Duglas T. Monteiro, procuran- hipótese. Os movimentos a que se referiu como
do limitar-se aos movimentos surgidos em um casos excepcionais de movimentos messiânicos
tempo e em um ambiente social relativamente surgidos em ambientes urbanos e modernos foram
homogêneo — a sociedade sertaneja de fins do o de Father Divine, transcorrido nos anos 30 do
século XIX e início do século XX — e circunscrever século XX em Nova York, recrutando sobretudo
suas generalizações ao relacionamento entre esta negros e afetados pela crise de 1929, e o movimento
sociedade e determinadas instituições da socieda- de Yokaanam, surgido no Rio de Janeiro no final da
de brasileira global. década de 40 em torno de um ex-piloto e oficial da
Mais pretensioso, neste sentido de busca da Força Aérea Brasileira (FAB).
generalização, foi o objetivo dos estudos realiza-
dos por Maria Isaura Pereira de Queiroz, muito
Os novos movimentos messiânico-
bem expresso no título de sua obra maior. Em sua
milenaristas brasileiros
busca do genérico e do variável na totalidade dos
movimentos deste tipo eclodidos em todo o globo, Em realidade, a hipótese da autora vinculan-
com finalidades classificatórias, a autora, atrelada a do movimentos messiânicos aos segmentos tradicio-
uma ótica estrutural, chega ao estabelecimento de nais da sociedade brasileira (entre outras), se não se
grandes categorias abarcando movimentos tão dís- afirma com força de “lei sociológica”, ao menos
pares quanto os ocorridos em sociedades primiti- aponta uma tendência bastante evidente. De fato, à
vas e ocidentais (Pereira de Queiroz, 1965). Em medida que a sociedade brasileira se industrializa e
suas “Reflexões finais”, conclui que todos os movi- urbaniza, após os anos 30, escasseiam tais movi-
mentos por ela estudados, aqueles sobre os quais mentos e diminui também sua capacidade mobili-
havia documentação suficiente para tal, apresenta- zadora de adeptos, ao menos nas regiões Sul,
vam como característica constante a presença do Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. Talvez esta afir-
parentesco como elemento estruturador das rela- mação não seja verdadeira para a Região Norte,
ções sociais na sociedade considerada — isolado onde parecem persistir diversos movimentos recru-
ou em associação com o princípio econômico, tando índios destribalizados, serigueiros, pescado-
sempre que tais sociedades passassem por uma res etc.8 O que apenas reforça sua hipótese, saben-
crise de desorganização interna (anomia) ou de do-se as condições de vida nesta região.
mudança (transformação). Nas demais regiões, após meados do século
A autora não os vê como movimentos típicos atual, tais movimentos parecem ter diminuído sua
de sociedades modernas, estruturadas exclusiva- incidência, além de terem diversificado seu cenário
mente com base no princípio econômico; estas de aparecimento. Dentre os cinco de que tenho
produziriam movimentos como o nazismo, o fascis- conhecimento, apenas dois originaram-se em con-
mo e o comunismo (por mais diversos politicamen- texto rural. Em primeiro lugar, por ordem cronoló-
te que possam ser), de muito maior porte que os gica, o famoso caso do “Demônio no Catulé”,
movimentos messiânicos, sempre mais circunscri- ocorrido entre Adventistas da Promessa em um
tos e abrangendo menores contingentes populacio- grotão mineiro e propiciador da peça teatral e do
nais. Com base em dois casos surgidos em grandes filme Vereda da salvação.9 O segundo consistiu no
aglomerados metropolitanos, dos quais tinha notí- “exército da salvação” organizado por Aparecido
cia através de material jornalístico mas sobre os Galdino, o “Aparecidão”, na década de 60, no
quais não havia estudos históricos ou sociológicos, interior paulista.10 Os demais tiveram como cená-
Pereira de Queiroz acautela-se em afirmar categori- rio regiões metropolitanas ou cidades de porte
camente a distinção apontada entre sociedades médio, como a Fraternidade Eclética Espiritualista
tradicionais e movimentos messiânicos, de um lado, Universal, liderada por Yokaanam, surgida em fins
e sociedades modernas urbano-industriais e movi- da década de 40 no Rio de Janeiro; o movimento
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terrorista e ufologista de Aladino Félix, surgido na exercendo sobretudo ocupações manuais, tal não
década de 60 em São Paulo, e o movimento dos era o caso do “messias”. Natural de Alagoas, Yoka-
chamados “Borboletas Azuis” de Campina Grande anam nasceu em família de recursos e tinha ocupa-
(PB), conduzido por Roldão Mangueira na década ção especializada e de alto nível técnico: piloto de
de 70.11 aviação comercial e da Aeronáutica.
Aqueles dois movimentos inicialmente cita- Com sua mensagem espírita e de “umbanda
dos não fogem aos moldes dos movimentos rurais, branca”, seu discurso moralizante e prédica escato-
rústicos. Talvez a novidade seja a presença do lógica, Yokaanam conseguiu mobilizar e levar até
imaginário bíblico protestante entre os elementos o planalto central centenas de famílias do Rio de
desencadeadores do primeiros deles. É fato que a Janeiro. Sua mensagem religiosa era realmente de
revolta dos Mucker, no século XIX, tinha uma base rompimento tanto com a religião dominante quan-
mítica protestante, mas dentro de uma colônia to com o fluxo migratório convencional, embora
alemã, e não em uma população rural mestiça, preservando e mesmo exacerbando o moralismo
caracteristicamente brasileira, como é o caso do de seus adeptos ex-católicos populares. Exceto
Catulé. É curioso notar que Pereira de Queiroz não quanto a isto, a cidade santa que institui é moder-
incluiu este caso entre os “movimentos rústicos na: na tecnologia utilizada, nas formas de trabalho
brasileiros”, por não considerá-lo messiânico. Tal- e produção, nos meios de comunicação.
vez não o seja realmente, de acordo com a concei- De certa forma, o caso de Aladino Félix e seu
tuação da autora. Mas é certamente milenarista, movimento religioso e político, além de contempo-
conforme demonstrou Renato Queiroz (1995). râneo ao de Yokaanam, tem com ele certas afinida-
A incidência, mesmo que diminuta, de movi- des. Embora não tenha se retirado da metrópole,
mentos messiânicos em modernas sociedades in- nem fundado uma cidade santa, o líder paulista
dustriais parece contrapor-se à concepção de também foi piloto, por ocasião da Segunda Guerra,
Pereira de Queiroz de que tais movimentos seriam nos EUA, onde realizou cursos superiores. Tinha,
expressões exclusivas da dinâmica social de socie- portanto, como Yokaanam, uma experiência mais
dades tradicionais em momento de diluição de rica de vida que seus liderados — no seu caso,
valores, que colocaria sua sobrevivência, sob sobretudo soldados da Força Pública. Sua doutrina
aquela forma, em perigo. Parece haver compatibi- diferenciava-se da de seu colega alagoano por
lidade entre tais movimentos e a sociedade moder- introduzir elementos políticos e conduzi-lo à ação
na, haja vista os exemplos de casos norte-america- política pouco convencional, no caso, ao terroris-
nos mais antigos e mais recentes.12 mo. Muitos dos atos terroristas que ocorreram no
Tornando ao caso brasileiro, podemos verifi- final dos anos 60 e que motivaram (ou forneceram
car que a base do imaginário religioso nos três o pretexto para) a edição do AI-5 foram executados
casos de movimentos urbanos acima citados deixa por grupos de militares por ele liderados. No plano
de ser católica. No caso da Cidade Fraternidade do imaginário que informava o grupo e sua ação,
Universal de Yokaanam, o próprio líder e a maioria encontramos uma esdrúxula combinação de esote-
de seus adeptos orientavam-se por concepções rismo, judaísmo (Aladino Félix era descendente de
espíritas, de uma umbanda kardecizada (ou de um judeu pelo lado paterno) e ufologia (era também
kardecismo umbandizado), conforme constatei ufólogo e escrevia livros relatando suas aventuras
pessoalmente. Além disso, pretendiam estar aber- espaciais e terrenas com extraterrestres). Yokaa-
tos a toda e qualquer religião: Yokaanam defendia nam chegou a publicar trechos de seus livros no
o ecletismo religioso e sua cidade santa era conhe- jornal que editava na “Cidade Eclética”, O Nosso, e
cida, por este motivo, como “Cidade Eclética”. Em certamente sob sua influência também viajou por
realidade, se a maioria dos “membros pioneiros” planetas conhecidos e desconhecidos a bordo de
era constituída de migrantes nordestinos e de naves espaciais.
cidades interioranas que se estabeleceram no Rio Quanto ao movimento dos “Borboletas Azuis”,
de Janeiro, com baixo nível de escolaridade e de Campina Grande, embora também tivesse adota-
REVISITANDO O MESSIANISMO NO BRASIL E PROFETIZANDO SEU FUTURO 127

do concepções espíritas, com sessões de incorpora- das pelos demais, e isto mesmo nos países mais
ção e de curas espirituais, não teve, como seus desenvolvidos economicamente, se bem que em
congêneres do Sudeste, as características “moder- grau bem menor que nos países mais pobres.
nas” tanto em seu imaginário quanto em suas Nas sociedades contemporâneas há outras
práticas. Seu espiritismo, inclusive, não era karde- clivagens além da de classe social produtoras de
cista, pois, fiel à Igreja Católica, Roldão não aceitava carências, necessidades e insatisfações. No fundo,
as doutrinas da reencarnação e do karma. Os os problemas da teodicéia e da busca de salvação
espíritos incorporados por ele e seus adeptos eram permanecem, mesmo que outras alternativas não
figuras reais ou míticas do catolicismo: freiras, religiosas com eles disputem o apanágio das solu-
padres, santos, Padre Cícero, o próprio menino ções. Em função mesmo dessa concorrência entre
Jesus. Quanto a seus seguidores, arrebanhou ex- o sacral e o secular, com este oferecendo soluções
pobres rurais que se tornaram pobres urbanos, e o “racionais” para os males da vida, a busca de
próprio líder, Roldão Mangueira, pouco se diferen- soluções do primeiro tipo tende a diminuir. Mas
ciava de seus liderados. É certo que chegou a ser mesmo entre indivíduos de alto nível de escolariza-
um próspero comerciante e exportador de algodão, ção e afeitos à utilização das mais modernas tecno-
mas faliu e empobreceu. Do ponto de vista do nível logias, cidadãos dos mais modernos países, como
de instrução, era semi-analfabeto, havendo alguns vimos nos exemplos dos EUA, a solução mágico-
poucos adeptos que o superavam em muito no grau milenarista ainda permanece. Neste país há jovens
de escolarização. extremamente afeitos à cultura tecnológica que se
suicidam na certeza de serem levados, ressurretos,
por discos voadores.
Conjecturas
No caso do Brasil contemporâneo, em seus
Pelas considerações expostas acima, pode- segmentos urbano-industriais modernos (Rio de
mos perceber que, nas sociedades modernas ou Janeiro, São Paulo) ou nem tanto (Paraíba) também
nos segmentos modernos de sociedades tradicio- continuaram a aparecer manifestações messiânico-
nais, os movimentos messiânico-milenaristas ten- milenaristas. Poderíamos considerá-las como res-
dem a escassear, mas não a desaparecer, como quícios dos antigos movimentos, já que tendem a
indica a hipótese de Maria Isaura Pereira de Quei- arregimentar, preferencialmente, migrantes de ori-
roz. É fato que nelas há outros canais de expressão gem rural ou de pequenas cidades interioranas
das insatisfações maiores, sobretudo econômicas, para metrópoles ou centros regionais. Imbuídos de
que tendem a assumir um caráter político e massi- elementos religiosos compatíveis com a expectati-
vo. Nelas há condições de surgimento não só de va messiânica, em sua socialização primária no
movimentos de grande porte, fascistas ou comu- catolicismo popular, estes seriam sensíveis aos
nistas, como nos revela a história do século XX, apelos escatológicos mesmo em meio urbano,
mas também de populismos e autoritarismos dos sobretudo quando com problemas de integração
mais variados matizes ideológicos. No entanto, a ao novo ambiente. No entanto, é preciso não
falácia de tais propostas e seus resultados frustran- perder de vista dois aspectos:
tes deixam espaço para as tentativas tradicionais de 1º) O ambiente religioso plural da cidade
controle das aflições e busca de soluções mágico- grande, onde estes migrantes abandonam suas
religiosas para os sofrimentos. Aliás, a vida moder- crenças pregressas e aderem a uma nova concep-
na nas grandes metrópoles, se possibilita certas ção religiosa, na maioria das vezes de caráter
vantagens relativamente à vida tradicional/rural espírita. Mesmo que as antigas crenças católicas de
(acesso a sistemas educacionais, de saúde e assis- alguma forma subsistam, como no caso de Campi-
tenciais, mesmo que precários), não consegue na Grande, já não se trata mais do velho catolicis-
superar os problemas da fragmentação, isolamento mo popular santorial e festivo, mas de um catolicis-
e insegurança vividos pelos mais bem aquinhoa- mo mesclado com práticas espíritas, como “passes”
dos, nem a exclusão e as carências várias enfrenta- e transes de incorporação.
128 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 No 46

2º) A modificação do imaginário. Nos casos 2 Cf. Pereira de Queiroz (1965). A exceção seria o movi-
dos movimentos brasileiros rústicos, aqueles que mento dos Mucker, eclodido em colônia de imigrantes
alemães protestantes no Rio Grande do Sul entre 1872 e
se insurgiram contra a ordem eclesial e o Estado o 1874.
fizeram não como uma simples exacerbação dos 3 A expressão “vertente ficcionista” foi utilizada por Re-
elementos messiânicos da tradição judaico-cristã. nato Ferraz em seu artigo “O centenário de Belo Monte
Apelaram, sim, a um passado real, a monarquia, e algumas reflexões sobre biografia e história” (1993-
94). Para ele, Fábio Luz, influenciado pela leitura de
idealizada diante dos desmandos republicanos. Memória de um revolucionário, de Kropotkine, teria
Mas o seu imaginário de um povo quase sem sido o primeiro autor desta vertente, com sua obra O
história apelou para elementos exógenos: o exérci- ideólogo, escrita ainda em 1903. Outro legítimo repre-
to de São Sebastião, a gesta carolíngea. No caso dos sentante desta vertente é Rui Facó, em Cangaceiros e
fanáticos: gêneses e lutas (1972).
movimentos metropolitanos, elementos totalmen-
4 “1) a prenunciação, 2) a vida pública do Messias e sua
te novos são adotados: o esoterismo, com um paixão, 3) a dispersão dos discípulos e surgimento da
apelo constante aos segredos das “ciências ocul- crença na ressurreição, 4) o reagrupamento dos crentes
tas”, às profecias, desde Nostradamus até dom na esperança do millenium, e 5) a evolução posterior,
com a protelação da parusia.” Cf. Vinhas de Queiroz
Bosco, à ficção científica, à astrologia e à ufologia. (1977, pp. 255-256).
Poder-se-ia argumentar, corretamente, que
5 “O messianismo é uma revolta alienada [...] levando os
este seria o imaginário dos líderes e de seus seus membros a isolar-se da realidade e a ensimesmar-
principais coadjuvantes. Mas em qual movimento se [...] parece claro que tais casos se encontram no
não é assim? No caso dos messias rurais, seu terreno da patologia social” (Vinhas de Queiroz, 1977, p.
253).
discurso fazia sentido pela ênfase escatológica
6 Retomo aqui uma discussão presente em minha apre-
bíblica. Mas na cidade grande, os adeptos comuns sentação ao livro O Messianismo no Brasil contemporâ-
já estavam, de alguma forma, minimamente famili- neo, que publiquei em co-autoria com Josildeth G.
arizados com o discurso dos líderes, devido à Consorte. Tal método utilizado por Pereira de Queiroz
freqüência a centros kardecistas e terreiros de foi por mim chamado de “explicativo”.

umbanda, onde elementos esotéricos, ufológicos e 7 Entre os quais merecem ser citados o livro de Luitgarde
O.C. Barros (1988), A terra da mãe de Deus, e a
proféticos circulam ao lado dos preceitos míticos e dissertação de mestrado de Maria do Carmo Pagan Forti
rituais específicos. (1997), E ela fez o milagre... A beata Maria de Araújo no
Como profecia final, devemos estar prepara- Juazeiro do Padre Cícero.
dos para o surgimento de novos movimentos nos 8 Temos notícia apenas de um movimento pesquisado, o
do Divino Pai Eterno, relatado por Maria Antonieta da
centros urbanos, orientados não mais por visões
Costa Vieira (1984). Mas há muitas reportagens dando
religiosas específicas, mas por perspectivas ecléti- conta de grupos semelhantes, os mais famosos reunidos
cas e plurais, introduzindo elementos do imaginário em torno da figura do “Irmão José”.
da vida moderna de alguma forma ligados a antigas 9 Ver Pereira de Queiroz et al. (1957) e Queiroz (1995).
tradições ocultistas e esotéricas. O pluralismo religi- 10 Ver Lopreato (1999).
oso e a difusão pela mídia das mais variadas práticas 11 Ver Consorte e Negrão (1984) e Suenaga (1998).
religiosas e sistemas alternativos de conhecimento 12 Entre os mais antigos, além do caso do Divine Father
criam um caldo de cultura místico capaz de produ- acima mencionado por Pereira de Queiroz, pode-se
zir os mais surpreendentes resultados. citar o caso do pastor Jim Jones, iniciado nos anos 50 em
Indianápolis e com trágico desfecho na República da
Guiana em 1978. Cf. o relato de Marshall Kilduff e Ron
Davis (1978). Entre os mais recentes, o caso da rebelião
NOTAS da seita texana “Ramo Davidiano”, em 1993, liderada
por David Koresh, dissidência da Igreja Adventista do
Sétimo Dia, também com trágico desenlace.
1 Estas definições iniciais seguem de perto as concepções
de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), mas não são
estranhas à maioria dos autores. A referida autora foi
quem mais se preocupou em sistematizar os conceitos e
distinguir suas nuanças, diferenciando crença de movi-
mento e messianismo de milenarismo.
REVISITANDO O MESSIANISMO NO BRASIL E PROFETIZANDO SEU FUTURO 129

BIBLIOGRAFIA PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. (1957), La


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