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O FENÔMENO DA ACRASIA NA ÉTICA PLATÔNICA E

ARISTOTÉLICA
Marcos Luiz da Silva

Resumo: O presente artigo analisa a ideia de acrasia no pensamento de Platão e Aristóteles.


Partindo da posição socrática, Platão delineia a sua ideia de acrasia como um comportamento
irracional ou desviante, que pode se dar mesmo em face do conhecimento ou da reta razão.
Aristóteles diverge desse entendimento e se aproxima de Sócrates ao admitir que o fenômeno
somente se daria no momento da aplicação concreta da regra universal. Expõe-se, portanto, as
duas teorias, de forma breve, para ao final buscar-se apontar a relevância atual do estudo do
tema em termos de filosofia moral, ética e direito.
Palavras-chave: Acrasia. Platão. Aristóteles. Ética. Razão prática.

AKRASIA PHENOMENON IN PLATO AND ARISTOTLE’S ETHICS

Abstract: This article analyses the idea of akrasia according to Plato and Aristotle’s thoughts.
In line with Socratic stand, Plato delineates his idea of akrasia as an irrational or deviating
behavior, which happens although in face of knowledge or right reasoning. Aristotle deviates
from this understanding and he comes closer to Socrates when allowing that this phenomenon
takes place only in time of concrete application of universal rule. Therefore, the two theories
are explained briefly in order to pointing out the current importance about the study of the
theme in terms of philosophy, moral, ethical and right.

Keywords: Akrasia. Plato. Aristotle. Ethics.

Introdução
Acrasia seria, em sua essência, a ação do sujeito em desconformidade com a
razão, e interessa a filosofia especialmente no aspecto das razões que levam o sujeito a
agir dessa forma, ou seja, interroga-se acerca das razões e motivos que levam o
indivíduo a praticar um ato contrariando a reta razão.
Platão e Aristóteles são dois filósofos fundamentais para o estudo da acrasia,
e conceberam ideias em grande parte distintas nesse tema, embora, como veremos ao
final, o primeiro tenha sido tributário ao segundo em alguns aspectos. Platão foi
discípulo de Sócrates, sendo, portanto, mais novo que este. Alguns consideram Sócrates
apenas uma criação de Platão, já que não deixou nenhum escrito de punho próprio. Já
Aristóteles teria sido discípulo de Platão, e notabilizou-se por uma filosofia voltada para
os dilemas morais e éticos, e para a vida em sociedade.
Sócrates, em se tratando de acrasia, adota a posição de que esta não existe, ou
seria fruto da ignorância ou do desconhecimento. Ou seja, para ele em possuindo o


Professor de Direito da Uespi (Universidade Estadual do Piauí). Mestrando em Filosofia (UFPI). E-mail:
mluizsilva@hotmail.com.
sujeito o conhecimento do que é certo e errado jamais praticaria uma conduta que
contrariasse tal entendimento. A violação de alguma norma ou regra somente ocorreria
em face do desconhecimento dessa regra pelo sujeito, e nunca quando este possuísse o
conhecimento correto da regra. Sócrates, portanto, crê no conhecimento como forma de
possibilitar que o indivíduo atue de forma ética e em conformidade com as regras,
podendo-se aqui também acentuar a importância da educação para esse processo de
aprendizado.
A explicação para a ocorrência da acrasia, contudo, ganha outros contornos
em Platão e Aristóteles. Se Sócrates defendia que o indivíduo sempre agiria em pleno
acordo com a regra moral, se dela tivesse conhecimento pleno, Platão em seu diálogo A
República, partindo da ideia dualista do homem (corpo e alma), defende que acrasia
estaria no “desgoverno da alma, a falta de controle quando acontece a discórdia entre as
partes”, como nos lembra Feitosa (FEITOSA, 2017, p. 2017). Ou seja, Platão entende
que é possível a ocorrência da acrasia, mesmo tendo o sujeito o conhecimento
adequado para evitá-la.
Aristóteles, de outra banda, em sua ética nicomaquéia, diverge de Platão e
tende a aproximar-se de Sócrates, posicionando-se no sentido de que acrasia ocorreria
quando o indivíduo ainda não possui o conhecimento completo ou pleno sobre as
premissas que devem nortear o julgamento moral e a ação. Ou seja, ainda que tenha
algum conhecimento do que é moralmente correto, o sujeito ainda estaria vulnerável,
principalmente por motivações psicológicas ou naturais, a cometer atos desviantes em
face de não ter ainda a percepção adequada da premissa menor, ou particular, na hora do
decidir.
Veremos, nos próximos tópicos, pari passu, as posições de Platão e
Aristóteles sobre a acrasia, com suas similitudes e distinções, e ao final buscaremos
apresentar a situação atual e contemporânea dessa discussão.

A concepção platônica de acrasia

Platão, em sua filosofia, faz a distinção entre a alma e o corpo, adotando uma
antropologia que é denominada de dualista. O homem, portanto, seria formado por essas
duas partes, sendo que seria definido pela alma, que seria o lócus das virtudes, emoções,
e o lugar onde se daria o discernimento entre o bem e o mal. É na alma que se
encontraria o lugar de solução dos problemas morais do homem, onde se dariam
efetivamente os conflitos éticos e a solução destes.
Contudo, Platão aponta que se a alma é o lugar das virtudes, é nela que
também se encontram os problemas morais do homem, ou, como nos informa Feitosa, é
nela que se dá a acrasia, ou seja, o “desgoverno da alma, a falta de controle mediante os
conflitos causados pelos desejos e paixões que conduzem o homem ao erro” (FEITOSA,
2017, P. 217). A acrasia é um excesso, um abuso, uma ausência de ponderação que leva
o homem a violar a lei moral que lhe é conhecida e que deveria governar seus atos
naquele momento em que age de forma contrária a tal regra.
Sócrates tinha posição mais rigorosa sobre a questão moral. Para ele, o
homem que conhece a regra moral jamais poderia lhe ferir. Ou seja, se ele é consciente
de que tal conduta é danosa, ou ruim, não poderia praticá-la. E se pratica, o faz porque
não tomou conhecimento integral da norma moral. Sócrates, portanto, não admite a
ocorrência da acrasia, na medida em que ele compreende que o conhecimento da norma
moral pelo homem é suficiente para fazê-lo conduzir-se em conformidade com aquela, e
que qualquer conduta dissonante da regra somente se dá por ausência desse
conhecimento, ou pela falta parcial dele. Para Sócrates, “aquele que se deixa envolver e
é dominado pelos prazeres perde a sua autonomia como homem, passando a ser escravo
de si mesmo” (FEITOSA, 2017, P. 216).
Platão, a despeito de discípulo de Sócrates, supera a sua compreensão do
tema, admitindo a ocorrência de acrasia, ou seja, que o homem, mesmo sendo
conhecedor da regra moral, pode agir em desconformidade com aquela, violando-a. Tal
raciocínio de Platão pode ser encontrado no diálogo A República, onde ele formulada a
ideai de uma tripartição da alma. Segundo ele, existiriam três tipos de indivíduos
classificados a partir de três tipos de virtudes, que se vinculariam ao tipo de
classificação da cidade. Assim, se o sujeito não se identifica com a sua própria virtude e
busca a virtude do outro já teríamos um motivo para um conflito, ou seja, acrasia.
Platão afirma, conforme nos lembra Feitosa, que
a noção de justiça está na aptidão e aceitação das funções da cidade por cada
sujeito, em acordo com a sua virtude própria, ou seja, cada indivíduo não
poderá exercer na cidade senão uma única ocupação, a que por natureza se
encontre mais habilitado (433 a) (FEITOSA, 2017, p. 217).

Platão, portanto, entende que não haveria possibilidade de migração de uma


classe ou categoria para outra, e que a ocorrência disso seria a desordem, o conflito, a
desarmonia, o império da “injustiça no âmbito social e particular da alma do sujeito”
(FEITOSA, 2017, p. 217). Para chegar a tal conclusão, Platão faz uma análise
psicológica da questão, pois, segundo ele, tais conflitos gerados na alma teriam também
uma dimensão moral, e poderiam também se refletir nas condutas e ações realizadas
pelo homem na sua vida em sociedade.
Um dos problemas da teoria platônica sobre a acrasia é a questão relacionada
aos princípios. Se existem três princípios, esses princípios atuariam em conjunto ou
separado na alma do indivíduo? Qual seria a função de qualquer um deles? E como eles
se comportariam no comportamento que geraria uma acrasia? O sujeito age em
conformidade com um único princípio, autonomamente, ou sua reflexão e ação estariam
relacionados ao exercício conjunto deles todos?
Segundo Feitosa, “ao que parece, Platão após discutir a possibilidade de
existência desses dois modos (diverso/único) no livro IV, tende para o primeiro; o
segundo modo ele só afirma nas leis” (FEITOSA, 2017, p. 218). Segundo a citada
comentadora,
na República, Platão mostra que se deve evitar pensar em desejos conflitantes
de forma absoluta, embora em algumas situações seja inevitável, porque daria
como consequência a diferenciação dos sujeitos. Isso iria contra a sua forma
de pensar, sempre pela mediania e pelos intermediários, conceitos peculiares
em sua filosofia. A comparação mais plausível para demonstrar a existência
de contrários não completos no mesmo sujeito é o exemplo do pião que gira e
ao mesmo tempo está parado no próprio eixo (436 d)(FEITOSA,2017, p.
218).

Segundo a teoria platônica, o sujeito possuiria dois princípios opostos, um


voltado para a razão e outro voltado para a emoção ou desejos, e um terceiro que se
colocaria de maneira intermediária, mas mais tendente à razão. Esses princípios da alma
seriam dados de forma diferente aos diferentes sujeitos, o que os tornaria mais propenso
para uma determinada classe ou atividade na cidade. Os mais corajosos, por exemplo,
tenderiam a uma atividade de defesa da cidade, ou guerra. Sendo que os mais racionais
tenderiam a uma atividade política ou de governo.
Mas essas partes seriam plurais ou unas? Segundo Feitosa “Platão nunca
mencionou as partes da alma como pluralidade de almas” (FEITOSA, 2017, p. 218), o
que nos leva a crer que seriam princípios que atuariam em conjunto, na mesma alma,
como um conflito interno que em determinado momento encontra o seu ponto de
equilíbrio a partir da parte intermediária (thimós). As partes seriam tipos de “afecções”
que “nos impulsionam a agir de uma determinada forma, são aspectos de nós mesmos
em respeito do qual nos faz agir de diversas maneiras” (FEITOSA, 2017, p. 218).
Seriam, portanto, características do sujeito e que integram a sua personalidade de forma
plena, e não dividida, cabendo, contudo, indagar-se se esse fato seria o causador da
acrasia. Ou seja, se existem princípios em conflito na alma seria isso o que leva o
sujeito a atuar em desconformidade com uma norma moral?
Platão entende que sim, ao tempo que em que defende que há uma
possibilidade de convivência entre os princípios. Ainda que distintos, com o uso da
razão seria possível estabelecer-se um diálogo, uma diplomacia entre eles, de modo que
uma conciliação seria possível. A acrasia, portanto, seria possível de ser evitada ainda
que se tenha a convivência de princípios opostos no seio da alma, o que se poderia dar
mediante o uso da razão. Os princípios, portanto, seriam vetores, ou forças que
poderiam conduzir o indivíduo mais para um lado ou para o outro da ordem moral, e
que se poderiam controlar e equilibrar mediante o uso da razão.
Assim, ainda que haja o desacordo principiológico, com o uso da razão seria
possível um equacionamento desse conflito e uma convivência “pacífica” desses
princípios ou tendências dentro da alma. Elas se comunicariam, e nessa comunicação
preponderaria a parte mais racional. Caso não haja essa preponderância da razão em
face de desejos ou impulsos, há grande possibilidade de implementar-se a acrasia.
A parte racional, portanto, seria a parte superior da alma, e estaria em
condições de controlar ou de pelo menos tentar estabelecer um equilíbrio entre as partes
baixas, que envolvem os apetites e desejos. Na medida em que se dá essa ordem de
subordinação, impede-se a ocorrência da acrasia. Contudo, se houver inversão dessa
ordem, a acrasia terá a possibilidade de materialização. A parte racional é a que detém
o conhecimento dos fins, e pode então impor-se sobre as outras, que atuam de forma
individualizada, ou seja, em busca do alcance apenas dos seus próprios objetivos ou
desejos. A acrasia seria, portanto, a ação do sujeito contra a sua racionalidade prática.
O problema da comunicação entre os princípios que integram a alma é um
dos pontos discutidos por Platão em sua filosofia. Segundo Chappel, citado por Feitosa,
o problema da acrasia pode estar relacionando não a um problema lógico, mas a um
problema moral, de ordem prática. O sujeito atua de forma irracional, e não de forma
racional e lógica. “Se há um julgamento em que ‘a’ é melhor que ‘b’, mas ‘b’ prefere
‘a’, isso é uma relação que não deve ferir princípios lógicos” (FEITOSA, 2017. p. 221).
Segundo Chapell, comentando Davidson, o que a acrasia seria um problema conflituoso
de ordem prática, e não lógica, pois
O que pode ser considerado é que o conceito não deve ser concebido como
casos em que o agente procura fazer alguma coisa outra que o que ele vê
como melhor alternativa, mas casos de ações que são vistos pelo agente como
ações que ele não deveria fazer (FEITOSA, 2017, p. 221).

Resta ainda uma dúvida com relação a como os princípios conflituosos agem
dentro da alma gerando a acrasia. Platão parece não esclarecer bem essa questão,
embora em sua A República apresente uma formulação que pode ser a resposta para o
problema. Pare ele, considerando que a alma é composta por diversos tipos de desejos e
apetites, ou princípios, estes vão conflitar quando se sobressaem à razão, surgindo neste
momento a acrasia. A acrasia decorreria, portanto, de um apetite ou desejo que conflita
com a razão, ou mesmo com outro apetite ou desejo, tendo o sujeito optado por uma
ação que atenda esse desejo, e não à razão.
A análise platônica é de fundo psicológico, portanto. Para ele a “alma” é
composta de três distintos princípios, que devem dialogar, se comunicar entre si para
que a acrasia seja evitada. O modo como se dá tal diálogo? Não explica muito bem
Platão. Parece uma questão mal resolvida em sua formulação. Contudo, aponta ele uma
solução para a questão, que é a educação. Pela educação as pessoas são levadas a
conhecer o que é bom e mal, e podem, assim, conter os seus impulsos emocionais, ou
seja, seus desejos e apetites. E cada classe que habita a cidade terá ciência do seu papel
naquela comunidade, evitando-se, por exemplo, que haja um desvio de função por parte
de um sujeito. “O conhecimento que cada classe adquire deve servir para que todos
aceitem suas próprias condições por questão de natureza, de forma que ninguém passe a
desejar estar em outro lugar que não o seu” (FEITOSA, 2017, p. 223).
A educação, portanto, é o caminho para o controle dos apetites e desejos, e o
que possibilita que o sujeito possa ponderar em favor da razão, evitando uma ação que
se configura uma acrasia. A alma estabelece os valores e princípios normativos que
devem regular a ação do sujeito, e ainda que não possa ser vista como algo determinante
para a ação, impões como um rumo a ser tomado, constituindo-se, pois, na medida ou
meta a ser alcançada pelo sujeito. A alma funciona, portanto, como um vetor normativo,
impulsionando o sujeito à conduta correta. A educação diz que matar alguém
injustificadamente é errado, e o sujeito guia seu comportamento rumo a essa regra,
ainda que pressionado por impulsos outros que divirjam dela. O que não significa que a
razão sempre prevalecerá diante dos apetites. Mas o que fica claro na teoria moral
platônica é que o sujeito poderá ponderará, e optar por um caminho, caso possua o
instrumento adequado para isso, ou seja, o conhecimento dos princípios éticos que
governam a ação humana, o que é repassado pela educação.

Acrasia na ética nicomaquéia de Aristóteles

Em Aristóteles, na sua Ética à Nicômaco, há uma mudança em relação ao


pensamento platônico. Diferentemente de Platão, Aristóteles não compreende a alma
como uma unidade de um todo, e isso, por óbvio, tem implicações na sua visão ou nas
explicações que dará ao problema da acrasia. É de se notar que Aristóteles busca uma
certa aproximação com Sócrates, na medida em que busca preservar a razão da
ocorrência da acrasia, argumentando que esta se dá não na premissa geral, ou maior,
que é a que contém a regra científica ou teórica, mas na premissa menor, na sua
aplicação prática a uma situação. E o problema estaria na percepção do sujeito, que,
movido por impulsos ou problemas de ordem não racionais ser veria na contingência de
praticar atos desviantes, ou seja, acráticos.
Segundo Feitosa, tanto Aristóteles como Platão concordam que a “motivação
humana tem múltiplas fontes de interesses e todas elas possuem um tipo ou graus de
cognição, no sentido extenso da palavra, ou seja, todos são capazes de entender, ouvir e
obedecer a razão” (FEITOSA, 2017, p. 224). Contudo, o que distinguiria o pensamento
do estagirita em relação a Platão seria o fato de que para aquele não há uma dissociação
das partes intelectiva e sensorial. Ambas se complementariam e formam o “todo da
alma e o homem, como um ser, participa desse organismo vivo” (FEITOSA, 2017, p.
224). Não haveria, portanto, autonomia de partes na alma, como dito em Platão, mas um
conjunto de elementos psíquicos que se integrariam ao todo, sem compartimentação,
sendo que, para Aristóteles, a phantasia seria a capacidade para a representação
sensorial que permite a representação de elementos e objetos de vários tipos (FEITOSA,
2017, p. 224).
Partindo dessa premissa de que é a alma é formada por um organismo, um
sistema, como o estagirita explicou o fenômeno da acrasia? A argumentação de
Aristóteles é de fundo lógico. Segundo ele, o sujeito, ao decidir, parte de uma
racionalidade silogística. Ou seja, ele utiliza uma premissa maior, geral, que é científica
ou teoricamente formada. Seria a regra geral de conduta, a norma universal. E ao
mesmo tempo ele se vale de uma premissa menor ou especifica, particular, do caso
concreto, ou seja, relacionada a ação prática que ele vai praticar. Ele, assim, argumente
que a “acrasia acontece quando a opinião particular não coincide com universal e
particular” (FEITOSA, 2017, p. 225). Como nos lembra Feitosa, ele demonstra que a
“acrasia acontece quando a opinião particular não coincide com a universal,
considerada como a reta razão” (FEITOSA, 2017, p. 225).
Assim, Aristóteles dizia que o sujeito, influenciado por paixões e impulsos,
pode até utilizar uma linguagem científica ou todo conhecimento que possui, mas de
nada adiantaria isso tudo se não o pratica no seu dia-a-dia. Ou seja, ele distingue uma
esfera da racionalidade teórica, científica, da vida prática, que pode estar também
influenciada não só por esses conhecimentos como também por impulsos, emoções,
paixões, apetites. Isso justificaria o fato de nem sempre haver uma coincidência entre as
ações do sujeito e o seu pensamento teórico ou científico. Um filósofo moral, por
exemplo, a despeito do seu conhecimento na área ou em ética, não necessariamente
agiria, em sua vida prática, em consonância com esse conhecimento, e a história é
pródiga em exemplos que confirmariam plenamente esse entendimento.
Para Feitosa, essa formulação de Aristóteles o aproximaria de Sócrates. Ora,
se há uma distinção entre a premissa maior, racional e científica, e uma premissa menor,
particular, prática, concreta, e a conduta desviante se daria nesse segundo momento, o
da aplicação, isso significa que a primeira parte, a do conhecimento sobre a conduta
correta, estaria preservada. Em suma, Aristóteles, partindo de uma argumentação lógica,
termina por, ainda que de forma mitigada, preservar a essência do pensamento socrático
no que concerne à acrasia.
Cabe, contudo, esclarecer esse ponto: Aristóteles fala em opinião, e não em
conhecimento, quando trata da aplicação, ou seja, do momento em que se dá a prática.
Nesse momento o sujeito, diante da necessidade de percepção sensorial da situação
concreta, pode incidir em compreensões várias sobre qual a conduta a adotar no caso
concreto, podendo, então, optar por uma das opções que lhe apareçam como adequadas.
Eventualmente, em face de paixões, ou até mesmo em razão de influências naturais, ou
sensoriais, pode terminar por praticar um ato que não esteja em consonância com a reta
razão, mas isso não se vinculada diretamente ao conhecimento que ele tenha da
premissa maior, ou da regra geral aplicável a tais casos concretos.
Pelo conhecimento universal o homem sabe o que é a justiça, coragem,
temperança, mas não significa que ele seja justo, corajoso ou temperante. É
pelo conhecimento sensitivo ou prático que o homem cede à acrasia, pois
reconhece no conhecimento universal o que seja a justiça, mas ele pode não
aceitar a conclusão de que todo conhecimento justo pressupõe uma ação
justa, porque pode estar movido pelo apetite ou desejo que o empurra para
uma ação injusta (FEIOSA, 2017, p. 225-226)

Vejamos um exemplo prático: o sujeito Y sabe que é diabético e que,


portanto, não pode consumir um produto X, um doce. Ele conhece a regra geral.
Contudo, em se estando em uma situação em que lhe são oferecidos somente doces, e
diante da sua compulsão por alimentos dessa natureza, ele termina, por impulso,
consumindo esse alimento, mesmo tendo conhecimento geral de que comer doce é ruim
para o diabético.
Há que se destacar que Aristóteles mantém de Sócrates a ideia de
conhecimento como sendo de grande importância para que se possa evitar a ocorrência
de acrasia, embora com alguns temperamentos ou mesmo com maior sofisticação em
sua explicação para o fenômeno. Ao determinar que o problema da acrasia se dá na
etapa da aplicação da premissa menor ou particular, e não na premissa maior ou geral, o
estagirita prestigia a teoria socrática, mantendo-a razoavelmente intacta em termos
gerais. O problema é que ele termina por incidir em outra aporia: o que leva o sujeito a
cometer uma acrasia mesmo tendo pleno conhecimento da premissa menor, ou seja, da
situação concreta? Ao que parece Aristóteles deixou em aberto essa questão, limitando-
se a mostrar que o conhecimento que integra a primeira premissa mantém-se incólume
às condutas desviantes, e argumentando que no caso da premissa menor o que se dá não
é conhecimento científico, mas mera opinião sobre a conduta a ser adotada
concretamente.
Assim, diz Aristóteles sobre o problema da acrasia:
Por consequência, ocorre que se é vítima de acrasia por efeito de algum tipo
de argumento, ou seja, de uma opinião. Esta, no entanto, não é, nela mesma,
contrária à reta razão (orthó logo); ela se opõe apenas acidentalmente (kata
sumbebêkos), pois é o apetite que lhe (a ela) é contrário, não a opinião
(ARISTÓTELES, 1962, EM, VII, 5, 1147b13-17).

Em resumo, Aristóteles parece querer realmente prestigiar a tese socrática, o


fazendo, contudo, de forma nada convencional ou pelo menos de fácil aceitação. Parece
querer fazer crer que a premissa geral se dá em termos universais e ancorada em
conhecimentos científicos, enquanto que a premissa menor se daria por mera opinião, e
por isso estaria sujeita a outras influências que não somente o conhecimento científico
ou teórico, como as paixões, impulsos e apetites. O conflito que levaria à acrasia não
estaria na apreensão da premissa maior pelo sujeito, mas na premissa menor, pois
embora ele conheça a regra moral aplicável, o melhor juízo a adotar diante de um caso
concreto pode se mostrar não muito visível e identificável, estando, portanto, em uma
esfera de penumbra onde pulsões podem interferir na vontade do indivíduo e na prática
da ação.

Considerações finais
Para finalizar, convém realizar umas breves considerações sobre a
importância do debate sobre a acrasia na contemporaneidade. Além dos aspectos
relacionados à filosofia moral, podemos destacar a importância dessa discussão no
âmbito da psicologia, da psicanálise e do direito.
No âmbito da filosofia da psicanálise, por exemplo, podemos ver em Donald
Davidson uma procura por descrever os comportamentos não como aqueles desprovidos
de racionalidade, mas aqueles em que “a racionalidade se apresenta como falha”,
conforme nos informa Martins (MARTINS, 2009, p. 201). Davidson defende que
qualquer modelo que deseje contemplar uma solução viável ao desafio de justificar a
ocorrência da acrasia deve considerar algumas premissas importantes sugeridas por
Freud (MARTINS, 2009, p. 202), o que por si só já demonstra que a acrasia teria tido
enorme importância nos estudos realizados pela psicanálise.
No âmbito das neurociências também se desenvolvem pesquisas e acalorados
debates sobre a acrasia. Marino Junior, por exemplo, nos lembra a influência de
aspectos anatômicos e neurofisiológicos no cérebro nos nossos atos, escolhas, decisões,
resolução de dilemas éticos, caráter, emoções e consciência moral, os quais
dependeriam de sistemas e áreas específicas. Segundo ele, “a moderna neurociência tem
permitido a instauração de novos tratamentos nas doenças do cérebro e, também, o
surgimento de surpreendentes e inesperadas aplicações do progresso tecnológico
neurocientífico, no nível individual e da medicina em geral, afetando, inclusive, a
percepção de novos condicionantes culturais em função de novas tecnologias”
(MARINO JR. 2009, p. 110).
Os estudos empíricos em neurociência, portanto, podem ter forte impacto nas
teorias já existentes sobre os comportamentos irracionais ou desviantes, e ajudar a
esclarecer questões que jamais teriam sido pensadas pelos filósofos gregos e que, diante
das novas tecnológicas, se tornaram passíveis de serem entendidos e analisados,
posicionando os estudos sobre ética e moral em outro patamar. Aspectos morfológicos,
danos cerebrais, patológicas de ordem anatômica ou genética, podem ter sérias
influências na formação dos juízos morais, e isso deve ser também considerado pelo
estudioso da ética e da moral em suas investigações.
Por fim, na seara do direito não é menos importante o estudo do fenômeno da
acrasia. Os comportamentos desviantes ou violadores da regra universal, no caso, da
lei, são o ponto central das ciências jurídicas, notadamente no direito penal e na
criminologia. Identificar as razões da prática de crimes, os motivos que levaram o
criminoso ou violador da lei a adotar essa ou aquela conduta contrária à lei, constitui-se
em um aspecto que relaciona toda a teoria filosófica, a psicanálise, e outros estudos
sobre moral e ética ao direito.
Assim, inegável que Sócrates, Platão e Aristóteles foram desbravadores desse
terreno no âmbito não só da filosofia, mas também a fonte originária de estudos dessa
natureza em todas as outras ciências que se dedicaram ao estudo da conduta humana, da
moral e da ética no curso da história. A noção de acrasia mostra-se, no entanto, ainda
carente de novos estudos que possam dar-lhe melhor delineamento diante da maior
complexidade da sociedade e dos fenômenos que envolvem comportamentos desviantes
ou irracionais na atualidade, como é o do discurso de ódio que é fomentado nas redes
sociais e na seara da política, assim como o fenômeno da corrupção, os quais têm
causado perplexidade aos estudiosos do assunto e à sociedade em geral. O que não
implica, por óbvio, no abandono da teoria clássica sobre o tema, cuja relevância mostra-
se ainda maior quando se percebe que muito do que se vê hoje em estudos sobre o
termina por corroborar ou demonstrar algumas das teses dos filósofos da Grécia antiga.

Referências
ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea. Recognovit brevique adnotatione
crítica instruxit I. Bywater. Classicorum Bibliotheca Oxoniensis. Oxford: Oxford
University Press. (1894). 1962.

_____________. Ética a Nicômaco.Tradução Luis Ferreira de Sousa. São


Paulo: Martins Claret, 2016.

FEITOSA, Zoraida Maria Lopes. A questão da acrasia na filosofia de Platão.


Prometeus. Ano 10. Número 23. Maio/agosto/2017. P. 215-229.

FAUSTINO, Dioclésio. Acrasia: de Sócrates a Aristóteles. Revista do


Seminário dos alunos do PPGLM/UFRJ. N. 2, ano 2011.
MARTINS, Eduardo. O problema ético da psicanálise: um estudo da
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UFScar, 19 a 23 de outubro de 2009.

MARINO JR., RAUL. Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da


moral. Revista Bioética 2010; 18 (1): 109 – 120.

PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural,


2004.

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