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P odem as imagens devorar os corpos?

Podem as imagens devorar os corpos?

N orval Baitello Júnior

O
título da minha fala é um pouco provoca- Eu mudei de pessoas para corpos porque,
dor: podem as imagens devorar os corpos? se a gente fala em corpos, a gente enfatiza que a
Tentarei começar pela resposta. A resposta devoração é mesmo material, é a vida que está
é sim. Agora, mostrar como isso acontece sendo devorada – e essa vida com tudo que a
é o que eu vou tentar a partir de agora. vida pressupõe, tem direito, ou seja, é nossa
Há alguns anos atrás eu dei um curso em carne, são os nossos ossos vivos que elas podem
uma universidade européia com o título “Po- devorar. E aí eu vou passear um pouco por esses
dem as imagens devorar as pessoas?”, e imagi- meandros, por esses caminhos das imagens e
nei que não fosse aparecer ninguém para fazer dos corpos.
esse curso. Era inverno, o curso era aos domin- Evidente que vivemos em um mundo no
go de manhã na universidade, 50 cm de neve e qual imagens e corpos se relacionam intensa-
quando eu cheguei à universidade tinham umas mente, às vezes se misturam, às vezes se confun-
100 pessoas na porta da universidade esperan- dem e às vezes se apagam uns aos outros. Mas o
do a universidade ser aberta e ao final 400 pes- que é imagem afinal? De onde vieram as ima-
soas se inscreveram para este curso que foi em gens? De onde nasceram as imagens que nós te-
Viena. Aquilo me deixou intrigado. Afinal, será mos hoje em qualquer lugar por aí, espalhadas
realmente que as pessoas estão com medo das pela rua, nos celulares, nos livros, nas revistas,
imagens ou será que elas estão procurando sa- no espaço público, no espaço privado? As má-
ber se isso vai acontecer e já pode ser percebi- quinas de imagem, as muitas máquinas de ima-
do? E o curso deu um samba, deu um belo sam- gem além das imagens impressas, as imagens téc-
ba porque durou dois meses e nos dois meses o nicas que são imagens de luz, telas, as imagens
público não caiu, os 400 ficaram lá e todos eles estáticas, as imagens animadas. Nós vivemos
testaram, fizeram os trabalhos de conclusão, fi- num mundo povoado pelas imagens e pelas pes-
zeram prova e eu vou tentar resumir um pouco soas e, portanto, não existe porquê, não existe
essa idéia que ao longo desses poucos anos foi um senso, um licenciamento das imagens. Nós
sendo desdobrada e aperfeiçoada, a idéia de que não sabemos qual é a proporção, nós só sabemos
as imagens devoram as pessoas. que elas são muito mais numerosas do que nós.

Norval Baitello Junior é professor de Teoria da Mídia e Teoria da Imagem da PUC-SP.

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A questão da ocupação do planeta, da po- que ele é um ser de cultura. As histórias infantis
pulação do planeta, é uma questão ecológi- que nós contamos para as nossas crianças, as se-
ca. Quando falamos do planeta Terra e seu des- reias etc. Todos eles existem efetivamente como
tino possível, estamos trabalhando com um imagens. Assim como tais seres imaginários, nós
pensamento ecológico. Ou seja, o nosso meio podemos afirmar tranqüilamente que os deuses
ambiente está não apenas ocupado pelos cor- também existem. Todas as religiões ficariam,
pos, pelas pessoas, mas está também ocupado ficam, aliás, muito felizes porque aquela velha
pelas imagens. polêmica, Deus existe ou Deus não existe, está
A ecologia descobriu já há um bom tem- ultrapassada. A idéia de que Deus morreu está
po que afinal de contas nós não somos os seres mais ultrapassada ainda. Deus não vai morrer
mais solitários sobre o planeta. Nós tomamos o nunca, porque como imagem ele está em todos
lugar do planeta para os seres humanos, mas os os lugares, convive conosco. Isso só para dar al-
verdadeiros donos do planeta, que pertencem guns exemplos de imagens. A mesma coisa o
ao reino animal, são os insetos. São eles que co- demônio, que também é uma imagem. Se Deus
mandam e dominam nosso planeta. Quando há existe, nós não podemos negar o direito de exis-
uma crise no mundo dos insetos essa crise afeta tência também aos demônios. E por que não
diretamente a nós e é por isso que até a agricul- falar sempre no plural, porque são muitos? Pre-
tura toma muito cuidado hoje com seus inseti- firo falar também no plural os deuses, que tam-
cidas, porque não é muito econômico matar os bém são muitos. Cada um de nós tem os seus
insetos. Matando os insetos, matam-se os pei- deuses e eles vão se multiplicando. Enfim, esse
xes porque os peixes não têm comida, mata-se a é o mundo das imagens que nós criamos.
agricultura porque os insetos são polinizadores A este mundo nós podemos dar uma por-
e matam-se os pequenos animais que também ção de nomes, como nomeamos as coisas. Pode-
se alimentam dos insetos, e assim por diante. mos dar um nome para um carro, podemos dar
Existe uma cadeia. Quando nós falamos de eco- um nome para o próprio celular, para o bichi-
logia – eu já vou mostrar porque eu estou fa- nho de estimação, para o lápis, para a caneta,
lando dos insetos – nós falamos sempre de um para o computador. Damos que nome para esse
ambiente e as imagens são a população do meio mundo das imagens? O nome mais geral e mais
ambiente cultural em que nós vivemos. Então aceito é cultura. Então a cultura humana é o
elas ocupam o meio ambiente que nós criamos conjunto de todos os imaginários políticos, ima-
e chamamos de cultura humana. ginários sociais, imaginários míticos, religio-
A cultura é enormemente poderosa, por- sos, todos os imaginários possíveis. Conjunto de
que os seres humanos criam, criaram a cultura, imaginários significa conjunto de imagens.
que é o mundo imaginário que nos cerca, e en- A palavra imagem está sendo usada aqui
traram nesse mundo imaginário e vivem depen- para uma coisa que nem sempre pode ser vista.
dendo desse mundo imaginário. Foi assim que nasceram as imagens nos espaços
Uma outra definição de cultura poderia invisíveis, ou seja, no primeiro espaço invisível:
ser o mundo das imagens. Mundo imaginário é na nossa própria mente. Ali nasceram as ima-
o mundo das imagens. Então o que faz parte da gens. Quando sonhamos geramos imagens,
cultura, do mundo da cultura? Todas as nossas quando pensamos geramos imagens, quando
religiões, todas as nossas crenças, todas as nos- estamos em qualquer situação geramos imagens.
sas histórias, todo o nosso imaginário, todos os E estas são as imagens invisíveis.
nossos desejos, tudo o que afinal de contas a As imagens invisíveis competem com as
gente cria e conta de geração a geração. É como imagens visíveis no nosso mundo. As imagens
enxergar um saci-pererê. Eu não preciso enxer- internas ainda têm uma força grande no nosso
gar o verdadeiro corpo de um saci-pererê, por- mundo. Enquanto falo, gero imagens na minha

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mente. E estas imagens e a minha fala transpor- lhavam o pigmento e se colocavam, mas mãos
tam imagens a cada um de vocês que, por sua em negativo. Então provavelmente eles liquidi-
vez, geram as suas próprias imagens a partir ficavam os pigmentos da tinta na boca, asso-
dessa fala. As imagens internas nos fizeram, afi- pravam por meio de um canudinho de forma
nal, seres de cultura. A capacidade de imaginar que as mãos ficavam o negativo e o contorno
faz com que nós fujamos de uma coisa que a de pigmentos de mãos. E havia também seres
gente considera impossível de fugir que é fugir humanos esquemáticos, como aquilo que cos-
do tempo. Quando nós geramos imagens men- tumamos fazer quando estamos com pressa:
tais nós saltamos no tempo, vamos para daqui a costumamos desenhar um risquinho, dois ris-
cem anos, podemos imaginar daqui a mil anos, quinhos que são as duas pernas e dois risqui-
podemos imaginar mil anos atrás, podemos nhos de cima que são os dois braços e uma bola
imaginar hoje, podemos imaginar sem nenhum em cima que é a cabeça. O máximo que era re-
tempo e, portanto, nós fugimos da cronologia presentado dos seres humanos era isso.
e fugimos do que existe de pior da cronolo- Essa foi a grande passagem, a primeira,
gia do tempo que é o inexorável. A cada dia o vamos dizer. A primeira passagem das imagens
espelho nos atualiza em relação a nós mesmos internas para as imagens externas. Vamos dar
ou então quando olhamos uma fotografia de um salto, 40 mil anos, 50 mil anos, para os dias
dez anos atrás, comparada com uma fotogra- de hoje. Todos os espaços estão ocupados pelas
fia de hoje. As imagens internas não estão su- imagens, desde a nossa sala de visita até nosso
jeitas a essa temporalidade, elas têm a própria quarto, até o banheiro, as ruas, os banheiros
temporalidade, assim como a cultura tem a pró- públicos e os carros. Todos os lugares estão ocu-
pria temporalidade. pados por imagens feitas pelos homens. Qual o
Quando o homem começou a querer pôr efeito disso? O efeito é que existe uma lógica
para fora essas imagens, primeiro ele começou a das imagens externas que querem entrar no es-
falar, contar histórias. Depois ele aprendeu téc- paço das imagens internas. Há uma guerra e to-
nicas com pedra, riscando pedra, depois pegou das as imagens querem ocupar o espaço das ima-
pigmentos, carvão, cores, e conseguiu, nas pare- gens internas.
des das cavernas, reproduzir determinadas cenas. A guerra é pela conquista do espaço inter-
Nesse momento, as imagens começaram a sair no e a conquista e ocupação do espaço interno
de dentro e a ocupar o mundo externo e, é cla- podem significar o banimento, o apagamento
ro, elas começaram a ocupar esse mundo exter- ou a destruição das imagens originais que guar-
no para uma função que é, até hoje, misteriosa. damos por tantos anos. Sobre essa guerra das
Nós não sabemos para que os homens do imagens foram escritas coisas muito interessan-
paleolítico desenhavam cenas de bichos. Não só tes, como por exemplo, o que um pensador
se desenhava, mas os animais eram desenhados francês escreveu sobre a guerra das imagens na
com técnica maravilhosa, um realismo perfeito. época da colonização do México. O livro se cha-
Não havia aí nenhum retrato dos seres huma- ma A guerra das imagens e o autor é Sergei
nos, só dos animais. Então não sabemos por Gruzinski. Neste livro ele conta como os índios
que. Se eles estavam ali fazendo uma homena- mexicanos, que tinham um imaginário riquís-
gem, um culto, um sacrifício para melhorar a simo, foram dominados pelos espanhóis na épo-
sua casa, se eles estavam fazendo uma religião ca da colonização. O que o autor afirma é que a
para cantarem louvor à natureza, se eles estavam principal arma dos espanhóis não eram os ca-
adorando aqueles animais como divindade, nin- nhões e nem o cavalo, porque muito se conta a
guém tem a menor idéia. respeito do cavalo, muito se conta a respeito da
O máximo que eles representavam de se- brutalidade dos colonizadores espanhóis e por-
res humanos eram mãos. Não mãos que mo- tugueses. No México, foram as imagens que

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conquistaram os índios mexicanos. E quais ima- lagres, não faz tudo também. Então as pessoas
gens? Que imagens existiam? Quais eram as começaram a querer gerar uma boa imagem:
imagens que dominavam nosso mundo? Eram então vamos ao cirurgião plástico.
as imagens religiosas. Tem uma célebre atriz de televisão que,
Na pré-história, as imagens nas cavernas depois de ser fotografada pela Playboy e de mui-
eram as imagens míticas. Que imagens os gre- to Photoshop, pegou a foto, levou para o cirur-
gos produziam? Imagens sob a forma de escul- gião plástico e disse: “faça isso, não importa o
tura, imagens sob a forma de relevos, imagens que custe”. Passamos a ser cobrados – cobrados
em desenhos sobre pedras. Depois, na era cris- é a palavra, talvez a palavra mais dura. Posso fa-
tã, o lugar das imagens era nas igrejas e era mui- lar que não quero ser aquilo que está ali, boni-
to raro que as pessoas tivessem imagens na por- to, alto, mas nós somos cobrados a ser uma ima-
ta de suas casas. Depois, com o tempo, as gem. Neste momento existe uma inversão
imagens foram também passeando pelas casas: perversa do ambiente cultural sobre o ambiente
então as pessoas tinham sua santa de barro, ou natural, ou seja, das imagens sobre os corpos.
de madeira, na sua própria casa. As pessoas mais As pessoas que são fotografadas, retratadas e
ricas podiam ter belos santos, santuários, nas mostradas pelo mundo das imagens são sempre
suas casas. pessoas consideradas aquele 1% do que se
Antes da invenção das máquinas de ima- convencionou chamar a beleza. Portanto, nós
gens, as pessoas mais ricas podiam contratar um podemos dizer que são irreais, ideais e irreais.
pintor para pintar as suas imagens. E era o que Quem de nós reúne todos esses predicados para
os reis, os príncipes e os nobres faziam. Então ser modelo fotográfico, modelo cinematográfi-
posavam dois, três, quatro dias para um pintor co ou uma atriz dentro do padrão que a pu-
famoso pintar o seu retrato. Quando recebiam blicidade exige? Talvez muito menos que 1%,
o retrato, se não gostavam, mandavam retocar. que ainda são transformados em imagens ideais
Então a gente imagina o que faziam esses reis, porque o defeitinho que ainda tem se apaga, a
esses príncipes, com os coitados dos pintores, gordurinha que ainda restou se emagrece, como
não é? Obrigavam a retratar as pessoas muito uma lipoaspiração na própria imagem. E, por-
mais bonitas do que elas eram. Quando vemos tanto, o que aparece é ideal e irreal. E as imagens
um retrato de Dom João VI, que normalmente aparecem quase como uma obrigatoriedade.
é difamado como muito feio, a gente imagina Todos nós somos cobrados, duramente
que ele deve ter sido muito mais feio do que já cobrados a assumir cada vez mais traços ideais.
é nos retratos. E como é muito difícil resistir, passamos a
Quando foram inventadas as máquinas pautar nossa vida biológica pelos padrões da
de imagens, e não se precisava mais contratar imagem, passamos a querer ser aquilo que a
um pintor para retratar as pessoas, a imagem imagem, só a imagem, pode ser. E isto não ape-
começou a proliferar, a se multiplicar por todos nas no sentido visual, mas também no sentido
os espaços. A partir daí começaram a ter álbuns conceitual, no sentido da carreira. Somos obri-
de fotografias e depois coleções de vídeos, de gados a nos mostrar, a ter visibilidade, e essa vi-
filmes, e assim por diante. E hoje nós vivemos sibilidade é uma outra violência contra o cor-
num mundo cercado de imagens. po. Às vezes nós precisamos durante tempos
Ora, eu discorri a respeito da beleza dos estar com a gente mesmo, estar com os amigos,
príncipes e princesas. Com a fotografia não dá conversar com os amigos e não estar o tempo
para a gente fazer retoques, ou melhor, depois todo desfilando. Mas quem não se mostra o
do computador é possível fazer retoques. Mas a tempo todo não consegue os melhores empre-
fotografia, nos seus primórdios, não tinha como gos. Quem não mostra o melhor do que é, fa-
embelezar. E mesmo o Photoshop, que faz mi- lante e bem apresentável e com roupas sempre

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com aquelas etiquetinhas à vista, acaba sendo filtros, televisão, rádio, cinema, vídeo. E não se
passado para trás nas situações da profissão, nas acostumam a ler mais textos, passam a identifi-
situações da escola, nas situações do espaço pú- car as coisas apenas pelas marcas comerciais.
blico anônimo, ou seja, todos nós somos cobra- Então conhecem Coca-cola pelo desenho da
dos a apresentar qualidades de imagens. E no garrafa, não porque lêem o rótulo. Conhecem
momento em que somos cobrados e nos obri- determinadas revistas pelo desenho, pelo tipo
gamos a fazer isso porque em nome da sobrevi- gráfico da revista e só folheiam.
vência somos obrigados a fazer isso, nós passa- Já existem até mesmo jornais voltados
mos a ter uma vida dupla, a vida do corpo e a para este tipo de público de neo-analfabetos.
vida da imagem. E uma vida dupla em conflito: São jornais de alta tiragem. Um desses jornais
a vida do corpo pede uma coisa e a vida da ima- na Alemanha se chama Bild, que significa ima-
gem pede outra. gem, e tem uma tiragem de sete milhões de
Quanto mais a vida da imagem domina a exemplares por dia. Todos os dias, sete milhões
vida do corpo mais este corpo vai abrindo mão de exemplares, e o que tem nesse jornal? Na pri-
da sua própria existência. Os casos mais extre- meira página tem uma foto, normalmente de
mos, mais dramáticos e reais, são os casos de uma bela mulher seminua, quando não tem
morte por anorexia, pois as modelos são profis- uma bela tragédia com mortes, sangue etc.
sionais da imagem, que têm que levar uma vida E uma matéria de quatro linhas, uma vez que
de imagem. E aí ocorrem os casos extremos da as pessoas que compram esse jornal não sabem
morte do corpo em nome da imagem. Mas a ler mais do que quatro linhas. A partir da quin-
maior parte dos casos não são extremos, a maior ta linha já não sabem mais o que estão lendo, já
parte dos casos são reais. O corpo continua não prestam mais atenção. Isso se chama neo-
sobrevivendo, mas com uma restrição do seu analfabetismo. Isto é a conquista da mente.
imaginário e, conseqüentemente, um empobre- Uma pessoa que não lê significa que já não tem
cimento do mesmo. Portanto, um empobreci- mais capacidade de processar as próprias ima-
mento da cultura, da capacidade de imagina- gens, só recebe as imagens prontas e considera
ção, da capacidade criativa. Um empobrecimen- que aquelas são as imagens. Significa que uma
to da capacidade de gerar imagens internas, pessoa que lê um jornal como esse tem como
porque o ataque das imagens externas foi tão assunto para conversar com seus amigos aquilo
avassalador que as pessoas passam a, ao invés de que está lá nas manchetes do jornal. Significa
produzir as suas próprias imagens, reproduzir as uma restrição de imaginário. Isso foi o que cha-
imagens pré-fabricadas que são entregues diaria- mei de problema ecológico, um problema eco-
mente a elas. lógico que vai afetar a qualidade de vida das pes-
Um exemplo concreto é o que acontece soas. E é claro, todos continuamos vivos,
na Europa, onde cresce um fenômeno que pre- mesmo falando de futebol, falando de moda,
ocupa os governos, que é o fenômeno do neo- falando do tempo.
analfabetismo. No Brasil estamos acostumados Nós não estamos fora do mundo, mas nós
com uma alta taxa de analfabetismo que, apesar temos que ocupar conscientemente o nosso es-
de tanto esforço, não se consegue reduzir dras- paço neste mundo e não deixar que o mundo
ticamente – se reduziu substancialmente, mas ocupe todo o nosso espaço interior. A isso eu
não drasticamente. Na Europa, no Japão, nos chamo de devoração pelas imagens e eu criei,
Estados Unidos, porém, eles conseguiram atin- ou melhor, montei uma palavra para dar nome
gir o analfabetismo zero a partir da idade esco- a esse fenômeno, que é a palavra iconofagia.
lar e estão preocupados que as pessoas saiam da Um ícone é uma imagem e, portanto, fagia é
escola e desaprendam a ler. Por que? Porque devoração. Então quando existe um processo de
tudo o que elas vêem são imagens visuais, são devoração das imagens como é capturado?

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Em primeiro lugar o corpo produz as imagens. e, portanto, queremos nos transformar em


Segunda etapa, o corpo consome as imagens. imagens. Elas começam a nos transformar em
Terceira etapa, se alimenta de imagens. Quem imagens, elas é que nos devoram. A isso dei o
não adora ver um lindo filme? Quem não adora nome de iconofagia, que é a devoração pelas
ver uma linda foto? Quem não adora ver uma imagens.
bela telenovela? Também isso existe, não é? Vale a pena contar uma curiosidade antes
Quem não adora ver, enfim, um belo quadro? de terminar. A palavra imagem em português,
Quem não adora ver uma bela roupa? Quem image em francês, imagen em espanhol, vem do
não adora ver uma bela mulher? Um belo ho- latim e no latim a palavra é imago. E o que sig-
mem? Nós consumimos imagens, é absoluta- nificava imago para os povos que falavam latim?
mente legal, não é proibido, não faz mal à saúde. Significava a máscara de cera ou de gesso, fabri-
Pelo contrário, faz bem à saúde ver coisas boni- cada a partir do rosto de uma pessoa morta e,
tas, ver coisas boas, curtir. Quem não adora? Eu portanto, significava o retrato de um morto.
estou falando de imagem, mas pode ser imagem Em grego era a mesma coisa, a palavra é eidolon
acústica. Quem não adora ouvir uma bela músi- e significa a mesma coisa que em latim. É o re-
ca ou ver um belo show? Portanto, faz parte da trato de um morto. Os familiares de uma pes-
nossa vida alimentar nosso imaginário com ima- soa rica, quando esta morria, mandavam fa-
gens que geram as nossas outras imagens. bricar uma imago, ou, na Grécia, eidolon.
Então as nossas imagens geram novas ima- E guardavam aquilo como única recordação do
gens a partir das nossas imagens interiores: essa morto, pois não havia fotografia, não tinha
é uma etapa. A etapa próxima é quando se de- como pintar a pessoa. Então eles fabricavam e
senvolve um tipo de gula pelas imagens. As ima- era a última recordação do morto.
gens são tantas que elas começam a competir A imagem visual tem uma força enorme
pelo nosso olhar. Então já não basta mais um de captura do nosso olhar e é porque, talvez, na
cartaz, é preciso um outdoor, já não basta mais nossa memória profunda, nós recordemos este
um outdoor é preciso um painel, já não basta medo da morte e por medo da morte nós fabri-
mais um painel é preciso um painel eletrônico camos imagens e por medo das imagens nós fa-
móvel etc. Elas começam a competir pelo nosso bricamos mais imagens e as imagens nos captu-
olhar. Duas coisas podem acontecer: ou o nosso ram lá no canto. Talvez elas nos ameacem e elas
olhar se cansa e começa a não enxergar mais ou nos recordem muito profundamente que todos
então o nosso olhar engole todas essas imagens somos mortais e, para fugir da morte, existe
e as armazena ocupando todo o espaço das nos- uma saída: antecipar a própria morte. E essa é a
sas próprias imagens e, portanto, nós devoramos saída que oferece o mundo das imagens que nos
as imagens quando entramos nessa etapa. devoram, das imagens insistentemente prolife-
A etapa seguinte é que não conseguimos radoras e proliferadas por este mundo afora e
fechar a nossa capacidade de receber imagens que competem pelo nosso olhar.

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