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Norte e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013
Fortaleza-CE.
1
Uma etno-história dos Torá do Baixo Rio Marmelos (AM)
Resumo
2
Introdução
1
Iniciei as pesquisas entre os Torá recentemente (2013), a convite do Prof. Dr. Edmundo
Peggion, meu orientador. Durante a graduação e o mestrado trabalhei com os povos indígenas
do Estado de São Paulo, especificamente com os Tupi Guarani, um subgrupo Guarani. Para o
doutorado, principiei uma reflexão sobre o grupo Torá. A pesquisa de campo está prevista para
esse ano e será realizada em conjunto com a elaboração de um laudo antropológico para
identificação e delimitação da Terra Indígena Torá, pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI.
Um trabalho para demarcação das terras Torá iniciou-se em 1984 e foi concluído em 2004 com
a declaração da posse permanente da terra pelos Torá e Apurinã, no entanto, outras aldeias
habitadas por Torá, localizadas nas margens do rio Marmelos, ficaram de fora da delimitação e
serão contempladas por esse novo estudo.
3
um saber simétrico que traga contribuições para compor um quadro etnográfico
ainda carente de pesquisas.
A escravização e a exploração dos indígenas da região amazônica
atravessam a trajetória dos Torá. A história do contato entre os Torá e os
exploradores de borracha, castanha e caucho, foi extremamente violenta. Os
Matanawi e os Torá foram as principais vítimas de castanheiros e caucheiros
da região (Ribeiro, 1979). A sobrevivência dos Torá mostra-se surpreendente,
visto o quanto foram atacados, já que outros grupos, em contextos similares,
foram completamente extintos. Os Mura, conhecidos como “gentios do corso”,
por ameaçarem os empreendimentos coloniais, saquearem e roubarem outras
aldeias, foram especialmente atingidos pelas expedições punitivas, sofrendo
uma guerra declarada durante o período jesuítico. Essa reação guerreira
contra os missionários na região, de certo modo, protegeu o grupo da
conversão e da contaminação, mas, ao mesmo tempo, “[...] evidenciou os Mura
como nação inimiga dos portugueses” (Amoroso, 1992, p.301).
A região do rio Madeira, um dos principais afluentes do rio Amazonas,
teve sua ocupação efetiva pelos não índios nas décadas de 50 e 60 do século
passado, com o objetivo do reconhecimento do território que seria incorporado
e a abertura do caminho para a colonização. Antes desse período, a presença
nessas áreas era a dos jesuítas, que sucumbiram com a implantação da
política pombalina na Amazônia, responsável pela expulsão das missões
jesuíticas do Brasil. A despeito da falta de material etnográfico sobre os povos
da região, há uma gama de material histórico advinda do período colonial e do
Brasil império, que contém importantes dados e contribuições sobre os
indígenas da área.
4
De acordo com Ménendez (1992) esta documentação denota uma alta
densidade etnográfica na área e apresenta registros de muitos etnônimos, que
se tornaram basilares para a compreensão da configuração etnográfica do
território, revelando amplas unidades sociais, como por exemplo “a nação dos
Irurizes” (compreendida pelos povos Onikoré, Aripuaná, Parapixana e
Torerizes) mencionada em 1690 pelo Padre João Betendorf - segundo
informações colhidas dos jesuítas que missionavam na região do rio Madeira.
O forte domínio dos Tapajós e dos Tupinambá na região tornavam mais
escassas a produção de dados de outros povos, até meados do século XVII.
Na metade do século XIX, as fontes sobre os povos que habitam a região do
rio Madeira, referem-se com maior exclusividade aos Mura, Parintintin,
Munduruku, Arara e Torá, apontando frequentes hostilidades entre estes
grupos e destes grupos com os não índios. Mesmo com essa hostilidade, as
frentes extrativistas promoveram grandes deslocamentos desses povos que
eram obrigados a se submeterem ao poder dos não índios, salvo os Parintintin,
que se mantiveram em seu território por muitos anos, apesar dos inúmeros
confrontos.
Os brancos ocupavam, cada vez mais, a região bacia do Madeira nas
frentes extrativistas e não havia qualquer ação governamental ou religiosa que
freasse a matança e a exploração dos índios, que acabavam coagidos a
aceitarem as condições estabelecidas pelos não índios ou “ [...] a recuarem
frente à sua pressão e a dos outros indígenas, num constante deslocamento”
(Menéndez, 1992, p. 287).
Nos registros sobre a história do povo Torá, é reconhecida a
permanência na região do rio Madeira e em todo o espaço territorial que
abrange seus afluentes, conforme destacado em relatório realizado pela FUNAI
em 1984,
5
Devido intensa resistência às tentativas de ocupação do rio Madeira, O
grupo Torá suportou as pesadas consequências. Em 1871 índios Torá e Arara
foram encontrados no rio Machado (em seu afluente Rio Preto), local da
fundação da missão de São Francisco. Contam que, logo no inicio da missão,
os índios Parintintin assassinaram cruelmente um Torá, cravejando muitas
flechas em seu corpo, mesmo depois de morto. Os Parintintin, entre os séculos
XIX e XX, guerrearam por cerca de 80 anos contra os brancos e os índios
missionados, o que só que diminuiu com a atuação do Serviço de Proteção aos
Índios - SPI. Nesse período a maior parte da população era composta por
índios adultos, pois as crianças haviam sido levadas pelos brancos antes de
seus pais serem missionados, fator que levou muitos Torá a se afastarem das
missões e a viverem escondidos, temendo o roubo de suas crianças (Leonel,
1996).
Segundo relatório elaborado em 18642, os Torá que faziam parte da
missão de São Francisco, dedicavam-se a lavoura. Com a morte por epidemias
que dizimou muitos índios, grande parte abandonou a missão e voltou para a
foz do rio Marmelos. Depois, com o ciclo da exploração da borracha, os Torá
são, novamente, explorados pelos não índios, tornando-se vítimas dos
comerciantes (Nimuendaju, [1925] 1982).
A submissão dos índios ao branco colonizador causou muitas mortes,
não só pela violência com a qual eram tratados, mas pela contaminação de
doenças desconhecidas antes do contato e pela realização das “expedições
punitivas” ou “guerras justas”, que pretendiam dizimar grupos inteiros
(Menéndez, 1992).
Informações sobre os Torá surgiram apenas quando uma dessas “ações
punitivas” foi instaurada, com o objetivo de exterminá-los. De acordo com
Nimuendajú (1925) a primeira notícia que se tem dos Torá (moradores
originários do rio Maici, desde sua foz no Machado até as cabeceiras no rio
Marmelos.) data de 1716, como um povo que desceu o rio Madeira para
promover ataques a outras aldeias e saquear canoas. Foi na região do Maici,
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LACERDA, Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque. Relatório apresentado à Assembleia
Legislativa da Província do Amazonas na Sessão ordinária de 1º de outubro de 1864.
Pernanbuco: Typographia de Manuel Figueroa de Faria & Filho, 1864.
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durante o período de perseguição ao grupo, que este foi atacado por João de
Barros na expedição punitiva em resposta aos ataques dos Torá.
Assim, realizavam ataques às missões de Canumã e Abacaxis, na foz
do rio Madeira e se tornaram visíveis em decorrência da perseguição
promovida contra seu povo, registrada em diversas fontes documentais
(Coutinho, 1861; Nimuendajú, 1925; Bandeira, 1926; Hugo, 1959; Menéndez,
1981, 1982). A partir desses ataques, iniciou-se um processo de perseguição
aos Torá, que acabaram sendo aldeados juntamente com outros índios no rio
Abacaxis, embora uma parte do grupo permanecesse isolada e protegida no
interior dos igarapés ainda não adentrados pelos colonizadores.
Muitos foram presos e forçados a trabalharem como remadores no
Madeira. Em uma tentativa de libertar os parentes aprisionados pelos brancos,
os Torá vão até a cachoeira de Paricá e atacam uma embarcação. O plano era
que os Torá, grandes nadadores, fugissem. O que eles não previam, era que
seus parentes estivessem amarrados, e, portanto, impossibilitados de
nadarem. Nesse episódio morreram todos, prisioneiros e os não índios.
“Contam os Torá que naquela cachoeira, de noite, ainda hoje pode-se, às
vezes, ouvir o estalo do batelão nas pedras e os gritos de desespero dos seus
tripulantes” (Nimuendaju, [1925] 1982, p.112).
Ao deixar a região dos Torá, em 1923, Nimuendaju ressaltou que havia
apenas 12 índios distribuídos em três aldeias: Fortaleza, Surupy e Cabeça
d’Anta. “Eles são completamente civilizados e vivem pacificamente na sua
pobreza, mantendo-se de pequena lavoura e da venda de alguma castanha
que tiram no alto Marmelos” (Nimuendaju, [1925] 1982, p. 113).
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permeada por questões que envolvem esta luta, confundindo o histórico do
grupo com o histórico de luta pela terra” (Peggion, 1997, p.10).
Houve um ocultamento da identidade étnica em decorrência dos
conflitos e muitas pessoas foram residir em Manicoré ou em Humaitá.
Posteriormente a um período de resguardo do reconhecimento étnico, os Torá
retomaram o autorreconhecimento como um grupo indígena que habita a
região do rio Marmelos3. Esta identificação abarca muitos conflitos entre
regionais, os Apurinã4 e, internamente, os próprios Torá. Em decorrência desse
possível “ocultamento de uma identidade indígena” a fim de se proteger frente
à perseguição dos não índios, os Torá perderam o idioma tradicional e hoje se
comunicam em português. Por serem quase exterminados, não falam mais a
sua língua original: Txapacura.
3
Não se trata aqui de pensar os Torá sob a ótica da reemergência étnica, da etnogênese ou de
índios remanescentes, como alguns autores (Cardoso de Oliveira, 1972; Oliveira Filho, 1998;
2004; entre outros) apontam para certos contextos indígenas brasileiros, em resposta ao
contato entre índios e não índios e às suas relações com o Estado brasileiro, mas assemelha-
se a uma alternativa dos Torá diante das transformações históricas e estruturais de sua
organização social. Essa é uma relação que necessita ser analisada fora da lógica da
aculturação e, portanto, perspectivamente, como sugerem Viveiros de Castro (2002) e Gow
(1991).
4
Em 1922, dois casais Apurinã deixaram a região do Juruá-Purus e dirigiram-se ao SPI (em
Manaus) para buscar auxílio, pois estavam sendo ameaçados pela exploração da borracha em
suas terras e buscavam uma solução para a perda de seu território para os seringueiros. O SPI
os enviou para trabalharem nos postos de pacificação dos Parintintin na região do rio Madeira.
Os Apurinã tornaram-se mediadores do conflito entre os Pirahã e os Parintintin. Em 1982, após
um conflito com os Pirahã, foram convidados para se mudarem junto com os Torá. Os Torá
também se desentenderam com os Apurinã e entraram em conflito pela posse e exploração
dos castanhais na área, o que só diminuiu com a regularização da terra pela FUNAI em 2004
(Peggion, 1997).
8
autor conjetura que los tora podían haber adoptado una lengua
tupí abandonando la suya propia. Este 'tupí impuro' bien podría
ser relacionado con el tenharim, lengua hablada en la
actualidad inmediatamente al sur del AI Torá, aguas arriba del
Marmelos, zona donde viven 30 tenharim en Estirão Grande
(CEDI 1990) 5.
5
Fabre, Alain (2005)- Diccionario etnolingüístico y guía bibliográfica de los pueblos indígenas
sudamericanos.CHAPAKURA.
http://butler.cc.tut.fi/~fabre/BookInternetVersio/Dic=Chapakura.pdf. Acessado em: 10/07/2013.
6
CONKLIN, Beth; VILLAÇA, Aparecida. In: Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no
Brasil, http://pib.socioambiental.org/pt/povo/wari/print. Acessado em: 25/11/2012.
7
Ibdem.
9
distribuídos em oito aldeamentos, localizados em cinco diferentes Terras
Indígenas no estado de Rondônia. De acordo com o censo realizado pela
FUNAI no ano de 1998, os Wari' somavam cerca de 1.930 indivíduos. Outros
trabalhos também trazem dados sobre a organização social dos Wari: Mason,
(1977); Graeve (1972; 1989); Meireles (1989) e Conklin (1989).
Já no caso dos Oro Win, situados na Terra Indígena Uru-eu-wau-wau,
em Rondônia, próxima da cidade Guajará-Mirim, localizada às margens do rio
Mamoré, os dados da FUNASA (2010) apontam para uma população de 73
pessoas deste grupo. A língua dos Oro Win, assim como a dos Wari, pertence
à família linguística Txapakura, no entanto, esses dois povos falam línguas
distintas.
A língua Oro Win, até pouco tempo atrás, era falada por apenas seis
pessoas, sendo o português a língua mais usada cotidianamente nas aldeias.
O fato de haver um número reduzido de pessoas que dominam a língua Oro
Win e também de ocorrer pouca transmissão para as novas gerações, pode-se
considerar que esta língua encontra-se em risco de desaparecimento (Birchall,
2011) 8.
De acordo com Mauro Leonel (1996, p.33) ao escrever sobre a fronteira
Tupi-Txapacura, houve uma evidente tensão entre essas fronteiras. O autor
explica que a região de Rondônia era majoritariamente formada por índios
Txapacura. Esses foram praticamente impelidos das margens do Mamoré em
direção as nascentes de seus principais afluentes, que surgem ao entorno das
serras e que possuem em suas encostas a ocupação dos grupos Tupi. Nessa
região de fronteira esses grupos foram empurrados uns contra os outros. Deste
modo, essas dinâmicas por pressão do avanço da colonização ou resultantes
de correntes migratórias opostas geram novas acomodações, sobreposições,
imbricações e conflitos, além de confusões na classificação dos grupos9.
8
BIRCHALL, Joshua. In: Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no
Brasil, http://pib.socioambiental.org/pt/povo/oro-win/print. Acessado em: 25/11/2012.
9
As classificações, nomeações e categorizações não serão jamais estáticas, há sempre um
dinamismo que torna essas categorias passiveis de mutação e que leva o antropólogo a uma
não reificação de conceitos. Como disse Peter Gow (2011): “Então, o Of Mixed Blood parece
muito sofisticado, mas não é não. Eu descrevi o que tinha visto, o que o povo tinha falado pra
mim. E, aquele negócio do nosotros somos de sangre mesclado, eles que me falaram, eu não
entendi o que eles diziam. Eu tinha aquele negócio de rapaz: Ah! vou chamar esse povo pelo
nome que eles usam. E eles falam que são nativos, gente nativa [em espanhol], povo nativo. O
Of Mixed Blood me dá um certo estranhamento. Fui muito politically correct ao dizer que se
10
Com relação à documentação pesquisada sobre os Torá, infelizmente,
não me deparei com subsídios que me permitissem debater com maior
profundidade questões como quais elementos permitem classificar os Torá
como povos de língua txapakura ou onde se assemelham e onde se
diferenciam dos demais povos dessa família linguística.
chamavam por gente nativa, native people, e dez anos depois eles deixaram de se chamar por
native people. Agora eles dizem pueblos indígenas. Eu havia previsto que os nomes iam
mudar. Isso toca na questão do nomear o que você está estudando.” Essa mesma discussão
pode ser observada no texto que trata sobre a onomástica Cocama (Gow, 2003).
11
A figura do patrão nesse sistema de aviamentos permanece ambígua
entre os Torá. Ao mesmo tempo em que há uma relação de exploração, eles
também são considerados como benfeitores, estando presentes em vários
momentos da vida dos Torá, inclusive, em momentos rituais. Quando ocorre a
festa tradicional na aldeia Fortaleza, os regatões estão sempre presentes,
fornecendo mercadorias e participando como convidados. Na festa, que ocorre
anualmente, essas interações assumem uma perspectiva religiosa, pelo ritual
que agencia a reprodução e a renovação dos conflitos. A festa da aldeia
Fortaleza é uma forma de interação entre os grupos Torá e Apurinã e entre
índios e não índios, que acontece sob uma perspectiva religiosa. Essa festa
surgiu de uma promessa do chefe Máximo Torá à nossa Senhora do Carmo 10.
É uma festa com caráter ritual que une diferentes grupos e reproduz diferentes
conflitos.
10
Máximo Torá conta que estava retirando madeira na TI Pirahã quando foi surpreendido por
um forte temporal e uma madeira quase caiu sobre sua cabeça. Desesperado, ele fez uma
promessa à Nossa Senhora do Carmo, para que fosse salvo. Como saiu ileso do susto,
Máximo foi até Humaitá atrás da imagem da santa, mas só foi encontra-la em Belém. A
princípio faziam apenas rezas e posteriormente a festa atingiu o perfil que possui na atualidade
(Peggion, 1997, p. 32).
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dos antigos ou aldeia velha, que fazem parte de uma memória que remete a
um tempo mítico (Peggion, 1997).
Entre os Torá, a dinâmica do parentesco pode ser observada através
das relações estabelecidas pelo sistema de aviamentos e de compadrio. As
relações de compadrio são muito importantes. Há uma preocupação com a
educação do afilhado, mas fundamentalmente, o que se considera é a relação
entre os compadres, que deve ser pautada no estabelecimento de laços que se
fundam no respeito e na consideração. O compadrio é visto como uma espécie
de parentesco religioso que cria conexões entre os índios e os regionais e
constitui um vínculo entre os adultos, por meio de seus filhos. Quando se
deseja atenuar as relações com determinada pessoa, esta pode ser convidada
para apadrinhar um dos seus. Os possíveis padrinhos podem ser os regatões
(patrões), os próprios Torá e até mesmo os Apurinã. Na Terra Indígena Torá, a
relação de aliança com os Apurinã, parece ser constituída mais pelo sistema de
compadrio do que pelos matrimônios11 (Peggion, 1997).
Transformações nos sistemas de parentesco pautadas nas relações com
os outros também são analisadas por Peter Gow (1991; 1993) em diferentes
contextos amazônicos. Ao descrever os Piro, povo da região do baixo
Urubamba na Amazônia ocidental, Gow apresenta como o sistema de
aviamentos e a relação com os patrões (determinadas pelas dívidas e pela
confiança, através dos sistemas de compadrio) constroem relações de
afinidade. Neste caso, a identidade Piro é erigida pelo idioma da mistura face
ao contato com o não índio em um processo de sucessivas incorporações de
novas diferenças, de novos tipos de gente. O autor considera o parentesco Piro
por meio de uma perspectiva histórica, na qual os próprios Piro produzem e
criam o parentesco, como um processo de formação da pessoa, através das
transformações no tempo. Os dados etnográficos de Gow, aliados à
perspectiva Piro acerca da fabricação do parentesco, denotam que a produção
de parentes se faz através da história e está diretamente ligada a produção da
mistura. Os Piro se dizem um povo misturado e nesse caso a mistura não
11
Antes da regularização da TI os Torá lutavam pela saída dos Apurinã de suas terras, pois
vivam em conflitos pelas disputas dos castanhais. Por isso, evitavam os casamentos, pois
temiam que, caso se casassem os Apurinã, eles não mais deixariam a terra. Com a
demarcação da TI, estabeleceu-se uma parte da área para os Apurinã, a aldeia Panorama
(Peggion, 1997).
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significa uma condição pejorativa de pessoa. Esse processo aconteceu em dois
momentos da história Piro: um no qual eles eram índios escravizados e
dominados pelos patrões (wild indians) e outro quando ocorreu uma
“organização”, por parte dos próprios Piro, desse sistema de trabalho (o
sistema de aviamentos) e o início das misturas.
As reflexões de Gow nos permitem pensar o parentesco Torá como um
processo de formação da pessoa através das transformações históricas
sofridas por esse grupo e, ainda, analisar como os próprios Torá veem esse
processo. Pensar a construção desse sistema e de toda a organização social
Torá, não pela ótica da perda e da “aculturação”, mas observando a história
desse povo como uma corresponsável pela criação do parentesco e de outros
elementos que compõem as aldeias Torá.
Considerações finais
14
ali vivem ou viviam – articulações que foram notadas – mas não,
lamentavelmente, descritas em profundidade.” (Vander Velden, 2010, p.118).
Desse modo, o que realizei aqui foi uma reflexão incipiente sobre os
Torá que, com o trabalho de campo, se tornará significativa na compreensão
da perspectiva dos próprios Torá a respeito dos processos de transformações
históricas e estruturais sobre os quais operam o funcionamento de suas
instituições nativas, na tentativa de pensar, como propõe Viveiros de Castro
(1999, p. 119), os acontecimentos Torá “no contexto da atividade situante dos
agentes”.
Referências
CARTAGENES, Rosa; LOBATO, João Carlos. Agora todo mundo quer ser
caboclo. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil:
1987/88/89/90. São Paulo: Cedi, 1991. p. 296-8 (Aconteceu Especial, 18).
15
HUGO, Vitor. Desbravadores. 2 v. Humaitá : Missão Salesiana, 1959.
MÉTRAUX, Alfred. Tribes of eastern Bolívia and the madeira headwaters : the
Chapacuran tribes. In: STEWARD, Julian H. (Ed.). Handbook of South
American Indians. v.3. Washington : Smithsonian Institution, 1963. p. 397-406.
_______, Curt. As tribos do Alto Madeira. In: --------. Textos Indigenistas. São
Paulo : Loyola, [1925]1982, p. 111-22
16
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. "Uma etnologia dos 'índios misturados'?
Situação colonial, territorialização e fluxos culturais". Mana, 1998, 4(1):47-77.
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