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INTRODUÇÃO
“História e poder são como irmãos siameses — separá-los é difícil; olhar para um sem
perceber a presença do outro é quase impossível. A história da humanidade deve neste caso
ter presentes estas duas maneiras de ver a questão das relações entre a história e o poder: há
um olhar que busca detectar e analisar as muitas formas que revelam a presença do poder na
própria história; mas existe um outro olhar que indaga dos inúmeros mecanismos e
artimanhas através dos quais o poder se manifesta na produção do conhecimento histórico. Na
verdade, porém, a historiografia costuma ser muito clara quando se trata do primeiro olhar
mas é quase sempre imprecisa ou cega quanto ao segundo. O tema deste capítulo admite
assim duas leituras opostas mas complementares: o poder visto como objeto da
investigação/produção histórica e o poder enquanto agente instrumentalizador da própria
oficina da história, com o que o conhecimento histórico se converte em seu objeto.” (p.97)
“Já o termo poder não é só mais problemático do ponto de vista conceitual como carrega
consigo, na historiografia, um outro complicador — a freqüência com que os historiadores se
referem à política ou ao político como equivalentes (sinônimos) de poder. [...] No primeiro
tópico observar-se-á a passagem bastante lenta do poder como algo inerente a certos
indivíduos e instituições — a começar pelo Estado — ao conceito de poder como um tipo de
relação social concebida eventualmente como de natureza plural — os poderes. Tratar-se-á aí
da historiografia tradicional e de sua tendência multissecular de abordar apenas a política
como se fosse esta a única forma/lugar do poder. No segundo tópico, a partir da crise da
história política tradicional, tentaremos situar as características do que se convencionou
chamar de nova história política.” (p.97-98)
NASCIMENTO DA HISTÓRIA E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA
HISTORIOGRAFIA MEDIEVAL
“Da história praticada por gregos e romanos àquela dos eclesiásticos e escribas leigos da
Idade Média, há continuidades e diferenças evidentes, a começar pela transformação da
natureza do próprio discurso histórico. Sua essência no entanto — a retenção de certos
eventos e a continuidade narrativa — manteve-se quase intacta. Tratava-se sempre de
múltiplas histórias, sobre assuntos eclesiásticos ou seculares.” (p.99)
HISTORIOGRAFIA RENASCENTISTA
HISTORIOGRAFIA DA ILUSTRAÇÃO
“Mais ou menos a partir de 1870, com o eclipse do romantismo, afirmou-se rapidamente uma
historiografia imbuída dos valores do cientismo. Habituamo-nos a denominá-la positivista,
porém, como ainda recentemente foi argüido por Bourdé,6 trata-se de uma designação
equivocada uma vez que são raros os historiadores propriamente positivistas. A rigor, dever-
seia chamá-la de historiografia metódica, já que era no método histórico que seus adeptos
faziam repousar as garantias de cientificidade julgadas por eles indispensáveis ao verdadeiro
conhecimento histórico. Seja como for, o fato mais importante para nós é o de que essa
historiografia levou a supremacia da história política — narrativa, factual, linear — ao seu
apogeu nos meios acadêmicos em geral. A historiografia metódica instituiu, a partir de seus
pressupostos cientistas, um tipo de discurso histórico próprio e destinado a demonstrar,
através de marcas específicas, as suas diferenças em face do discurso literário. Tratava-se de
distinguir a verdade histórica da ficção literária a partir da separação entre dois tipos de fatos
— os verdadeiros, que podem ser comprovados, e os falsos, de comprovação impossível.
Logo, a história — história política, como vimos — é ciência e não arte, consistindo a tarefa
do historiador não em evocar ou reviver o passado, como desejavam os românticos, mas sim
em narrar/descrever os acontecimentos desse passado tal como eles realmente se passaram.
Este trecho de uma frase de Ranke tornou-se, a posteriori, a própria expressão do horizonte
historiográfico chamado de positivista, o que não deixa de ser bastante curioso se tivermos em
vista que sua significação para o mesmo Ranke e seus colegas era completamente diversa.”
(p.104)
“Ao longo das três primeiras décadas do século XX manteve-se quase inalterada a hegemonia
da escola metódica ou positivista. Foram, no entanto, décadas de críticas e ataques partidos de
inúmeras posições intelectuais, às quais Hughes7 chamou, em conjunto, de revolta
antipositivista. Se esta revolta como um todo não diz respeito ao nosso tema, convém no
entanto mencionar-lhe dois elementos constitutivos importantes para o nosso ponto de vista:
os antecedentes dos Annales e o neo-historicismo.” (p.105)
SÉCULO XX – ANNALES
“A partir de 1929/30 é possível dizer-se que começou de fato o declínio da história política.
Cada vez mais essa história será conhecida como tradicional. Todavia, não exageremos muito
as coisas a partir da nossa própria visão retrospectiva. Na verdade, de 1929/30 aos anos pós-
45, a história política, cada vez mais tradicional, precisa ser encarada em termos de duas
trajetórias paralelas e bem distintas: a trajetória de seu processo e condenação pelos Annales e
a outra, da sua sobrevivência e lenta recuperação. Vejamos inicialmente a primeira trajetória.
Em 1929, quando da publicação do primeiro número dos Annales d’Histoire Économique et
Sociale, sob a direção de Marc Bloch e Lucien Febvre, existiam dois adversários principais a
enfrentar — uma certa concepção acerca da natureza do conhecimento histórico e o primado
da história política no campo da historiografia. Quanto ao primeiro, os Annales propuseram a
ampliação do domínio historiográfico, ou seja, a história como estudo do homem no tempo,
ou a totalidade social em última análise, com a conseqüente redefinição de conceitos
fundamentais como documento, fato histórico e tempo. Com relação à história política
tradicional, as críticas foram incisivas e definitivas: événementielle, recitativo interminável de
eventos políticos e batalhas, ou, como escreveu Febvre: “a História historizante exige pouco.
Muito pouco. Demasiadamente pouco a meu ver, e na opinião de muitos outros além de
mim”.8” (p.107)
“Para o período pós-45 adotamos uma periodização ampla e já bastante conhecida: as décadas
que antecedem e se sucedem aos anos 1968/70. Grosso modo, poder-se-ia localizar no
período de 1945 a 1968/70 a crise final da “história política tradicional” e, no período
seguinte, a progressiva constituição da “nova história política”. No caso da história política,
essa periodização tende a exagerar as diferenças e mudanças em detrimento das permanências
e semelhanças em termos das realidades de cada período.” (p.109)
“Vimos assim que diversas tendências, todas elas, aliás, com algum tipo de reflexo sobre a
história annaliste, convergiram no sentido de desqualificar de uma forma ou de outra qualquer
pretensão científica que se pudesse nutrir ainda em relação à história política de estilo
tradicional. A bem da verdade, negava-se até mesmo sua pertença à história. Observe-se, no
entanto, que o mesmo movimento desqualificador portava em si uma nova história política.
Contraditória como possa parecer tal constatação, o fato é que não faltam exemplos desta
ambivalência. Já em 1958, por exemplo, Braudel lamentou a confusão que se estabelecera
entre a história tradicional e a história política, chegando mesmo a afirmar: “A história
política não é forçosamente événe-mentielle nem está condicionada a sê-lo.”” (p.116)
“Caberia no entanto somente à terceira geração dos Annales tomar a sério essa advertência de
Braudel. Isto decorreu em parte do próprio rumo que se imprimiu à produção histórica a partir
da nouvelle histoire. Esta, como escreve Teixeira, abandonou ou foi obrigada a abandonar
alguns dos paradigmas centrais dos Annales: a unidade de método(s) com as ciências sociais e
humanas e a unidade do objeto — o homem. Inviabilizou-se assim a possibilidade concreta de
uma história total. Cada vez mais o global deixará de ser pensado em termos de totalidade
mas, sim, como espaço de dispersão de múltiplas unidades.19 Tudo que se tem agora são
unidades parciais, locais, definidas por procedimentos específicos.20 Não existe mais a
história, a grande história, mas somente as múltiplas histórias. Ora, se esta era a Nova
História” (p.116)
“Além de seu encontro com o estruturalismo, origem da história estrutural, a nouvelle histoire
possibilitou a abertura para concepções novas e variadas a respeito de temas pouco
freqüentados pela historiografia: os poderes, os saberes enquanto poderes, as instituições
supostamente não-políticas, as práticas discursivas. Foucault, pois foi este o autor que
revolucionou a compreensão desses novos objetos, colocou em destaque a relação entre as
diferentes práticas sociais e a pluralidade e onipresença não do poder, mas dos poderes. A
historiografia política passou a enfocar, nos anos 70, a Microfísica do poder,26 na realidade
as infinitas astúcias dos poderes em lugares históricos pouco conhecidos dos historiadores —
família, escola, asilos, prisões, hospitais, hospícios, polícia, oficinas, fábricas etc.; em suma,
no cotidiano de cada indivíduo ou grupo social.” (p.117-118)
“Poder e política passam assim ao domínio das representações sociais e de suas conexões com
as práticas sociais; coloca-se como prioritária a problemática do simbólico — simbolismo,
formas simbólicas, mas sobretudo o poder simbólico, como em Bourdieu.29 O estudo do
político vai compreender a partir daí não mais apenas a política em seu sentido tradicional
mas, em nível das representações sociais ou coletivas, os imaginários sociais, a memória ou
memórias coletivas, as mentalidades, bem como as diversas práticas discursivas associadas ao
poder.” (p.119)
“Estratégias à parte, a possibilidade efetiva de uma nova história política, obra hoje ainda em
curso, resultou de condicionantes muito diversos, aos quais poderia chamar de históricos,
epistemológicos e disciplinares. Os fatores históricos mais mencionados compõem uma
estrutura explicativa em três etapas: o advento da sociedade pós-industrial, cuja lógica se
baseia no domínio tecnológico, consubstanciado na informática, sobre um conjunto de seres
humanos massificados e manipulados pela mídia; o retorno do acontecimento como notícia e
a percepção aguda do caráter eminentemente político das decisões governamentais
compreendidas na designação políticas públicas; a universalização da burocracia (Weber) e a
programação de vastos setores das atividades sociais. Como conseqüência disso, as decisões
propriamente políticas recobram importância, adquirem um peso específico muito grande,
levando a uma politização inevitável dos acontecimentos, atitudes, comportamentos, idéias e
discursos. “Não se trata mais de saber se a história política pode ser inteligível, mas de saber
se, agora, pode haver uma inteligibilidade da história fora da referência ao universo
político.”31 Houve entretanto que superar os obstáculos epistemológicos até então expressos
de maneira antagônica: “tudo é política” versus “a política não existe”. A primeira proposição,
típica da tradição oitocentista, é idealista e conduz, no máximo, ao “jurisdicismo” formalista e
narrativo; a segunda deriva de uma certa visão marxista das coisas (equivocada, é bom frisar)
em cujo nome se opera a redução dos fenômenos de consciência e de vontade a simples
reflexos de forças econômicas e sociais. A política, neste caso, não passaria de um problema
econômico mal colocado. Superar tais obstáculos, nos anos 70, foi trabalho historiográfico
mas também foi o resultado de desenvolvimentos então havidos na sociologia e na ciência
política, cujos novos modelos teóricos e metodológicos vieram permitir a superação da
confusão entre o político e o factual. O historiador irá assumir as implicações desse fato e será
a partir deste dado que poderá viabilizar-se uma nova história política.” (p.121)
“As discussões, entre historiadores, acerca das possibilidades, natureza e perspectivas dessa
nova história política marcaram os anos 70 e 80. Dentre os mais interessantes cabe mencionar
ou relembrar: Mommsen, Sobre a situação da história política nas ciências sociais (1971);
Barret-Kriegel, História e política ou a história ciência dos efeitos (1973); Julliard, A política
(1974); Vandermeer, The new political history (1979); Blokmans, La nouvelle histoire
politique (1980); Salvadori, Le molte storie (1988); Le Goff, A política será ainda a ossatura
da história (1986); Rémond, Por que a história política? (1993). Esses textos, em conjunto,
traçam com alguma precisão o perfil da história política que se quer agora nova ou renovada.
Sem descer aos pormenores de cada um deles, observemos que a visão prospectiva
predomina, se bem que aqui e ali se encontrem explicações acerca dos erros e equívocos que
teriam conduzido a história política ao descrédito. A tônica mais geral no entanto é a da busca
e afirmação de uma história política realmente nova, capaz de articular o retorno do
acontecimento com as exigências de possíveis paradigmas e modelos teóricos” (p.122)
“Seria possível então definir-se uma problemática própria? Reconhece-se que é fundamental
que o historiador político passe do estudo institucional do Estado para o estudo do poder; e
também que devem ser eliminadas as pseudoquestões tradicionais — como a do conceito de
soberania. O essencial é o conceito de acontecimento político a ser revisto, ponto de partida
para uma história política compreensiva (Vandermeer), embasada em conceitos como sistema
partidário, períodos críticos, além de maior abertura aos elementos culturais tidos até aqui
como extrapolíticos.” (p.124)
“Em resumo, como nota Rémond,34 o importante é deixar claro que o político existe,
distingue-se de outros tipos de realidades, constitui algo específico, é irredutível a outras
realidades, pode ser determinante ou determinado, é dotado de certa autonomia e é capaz de
imprimir sua marca e influir no curso da história; ou ainda, como em Julliard, é o
acontecimento político que deve ser revisto, pois nem é autônomo, nem é simples
subproduto.” (p.125)