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Karl Rahner
A busca de
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 446 - Ano XIV - 16/06/2014
Deus a partir da
ISSN 1981-8769 (impresso)
ISSN 1981-8793 (online) contemporaneidade

Albert Raffelt:
Uma teologia em
estreita união com
a espiritualidade

Herbert Vorgrimler:
Karl Rahner, a vida em
busca de Deus

Mário de França
Miranda:
Os desafios do
cristianismo na
época moderna
E MAIS

Rodrigo Nunes: Adam Kotsko: Castor Bartolomé Ruiz:


Como o mal-estar A monstruosidade O poder pastoral, a economia
se exprimirá depois de Cristo. Paradoxo política e a genealogia do
da Copa? ou dialética Estado moderno
Karl Rahner. A busca de Deus a
Editorial

partir da contemporaneidade

N
o ano em que se completam de Karl Rhaner. Coube a ele superar “es- do Concílio Vaticano II, como a “revela-
os 110 anos de nascimento treitamentos ecumênicos” e chamar a ção como autocomunicação de Deus”.
do teólogo jesuíta Karl Rah- “atenção da teologia católica para a pro- Para Rahner, observa, a modalidade da
ner e 30 anos da sua morte, blemática dos outros caminhos religio- salvação é a oferta.
a IHU On-Line celebra sua memória re- sos”. Para Herbert Vorgrimler, teólogo Segundo o mestrando em Teologia
visitando sua obra no contexto dos 50 docente na Universidade de Münster, Dogmática pela Pontifícia Universidade
anos da realização do Concílio Vaticano Alemanha, “o tema da busca de Deus Gregoriana de Roma, Edisley Batista, o
II e de um pontificado que se pauta pro- e dos problemas de Deus é o tema que cristianismo, a partir do pensamento de
gramaticamente neste evento eclesial permeia e move a vida e o pensamento Rahner, é entendido como um aperfei-
- onde o teólogo alemão, entre outros, de Rahner, desde sua juventude teológi- çoamento da religiosidade dos sujeitos.
teve bastante papel relevante. ca até sua morte”. Duas outras entrevistas e um arti-
Autor de clássicos como Hörer O teólogo italiano Rosino Gibelli- go completam a edição. Adam Kotsko,
des Wortes (O ouvinte da palavra), de ni, diretor literário da editora italiana
teólogo e professor assistente de Ciên-
1941,  Schriften zur Theologie (Escritos Queriniana, reflete que  Rahner  talvez
cias Humanas no Shimer College, em
de Teologia), com 16 volumes escritos possa ser considerado “o primeiro te-
Chicago, Estados Unidos, comentando o
entre 1954-1984 e Grundkurs des Glau- ólogo católico moderno, porque ele se
livro A monstruosidade de Cristo. Para-
bens (Curso Fundamental da Fé), de deparou, ao longo de seu extenso traba-
doxo ou dialética, de Slavoj Zizek e John
1976, Rahner participou como assessor lho, com os desafios da modernidade”.
Milbank, recentemente traduzido para
do Concílio Vaticano II e foi um dos gran- Juan Carlos Scannone, SJ, o maior teó-
des teólogos cristãos do século XX. o português.
logo argentino vivo, recorda os anos de
Mario de França Miranda, da Pon- Rodrigo Guimarães Nunes, doutor
convivência e estudo com Karl Rahner,
tifícia Universidade Católica do Rio de descrevendo a sua importância na Amé- em Filosofia pelo Goldsmiths College,
Janeiro – PUC-Rio, constata que experi- rica Latina através de discípulos como Universidade de Londres e professor da
ência da graça forma o núcleo da teolo- ele próprio e Ignacio Ellacuría para uma Pontifícia Universidade Católica do Rio
gia rahneriana. E, além de ser um cristão compreensão aggiornata e conciliar da de Janeiro - PUC-Rio, aborda o mal-estar
“inquieto” ao se sentir “atingido em sua teologia. no Brasil para além do evento da Copa.
fé pelas transformações socioculturais A questão da liberdade, ou seja, Finaliza a edição o artigo O poder pasto-
de seu tempo”, o jesuíta “previu clara- da “autonomia”, está no cerne da com- ral, a economia política e a genealogia
mente o advento de uma sociedade se- preensão de ser humano em Rahner, do Estado moderno, do professor e pes-
cularizada e fechada à Transcendência”. pondera Manfredo Araújo de Oliveira, quisador do PPG em Filosofia da Uni-
O teólogo alemão Albert Raffelt, da Universidade Federal do Ceará - UFC. sinos,  Castor Ruiz, em que articula os
da Universidade de Freiburg, Alema- Karl Neufeld, SJ, analisa a presença de pensamentos de Foucault e Agamben.
nha, acentua que a autocomunicação noções fundamentais de Rahner e con- A todas e a todos uma boa leitura e
de Deus está no centro da teologia sequências práticas nos documentos uma excelente semana!
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Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos
André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio do Centro de Pesquisa e Apoio
Neutzling (inacio@unisinos.br).
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Telefone: 51 3591 1122 – ramal 4128. IHU On-Line pode ser Márcia Junges MTB 9447 Editoração: Rafael Tarcísio
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Schneider (jacintos@unisinos.br).
Revisão: Carla Bigliardi Machado e Larissa Tassinari

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Mário de França Miranda – Karl Rahner e os desafios do cristianismo na época
moderna
10 Albert Raffelt – Karl Rahner. Uma teologia em estreita união com a espiritualidade
16 Herbert Vorgrimler – Karl Rahner, a vida em busca de Deus
20 Manfredo Araújo de Oliveira – Filosofia, teologia e autonomia a partir de Rahner
23 Rosino Gibellini – Rahner. O primeiro teólogo católico moderno
26 Juan Carlos Scannone – Uma teologia atenta à contemporaneidade
28 Karl Neufeld – O trabalho intelectual de Karl Rahner e a redescoberta de Deus
29 Baú da IHU On-Line
30 Edisley Batista – A implícita presença de Deus no pluralismo religioso

DESTAQUES DA SEMANA
35 Destaques On-Line
36 Teologia Pública. A monstruosidade de Cristo. Paradoxo ou dialética
39 Entrevista da Semana. Como o mal-estar se exprimirá depois da Copa?

IHU EM REVISTA
45 Artigo da Semana. O poder pastoral, a economia política e a genealogia do Estado
moderno
54 Publicação em Destaque. Territórios da Paz: Territórios Produtivos?
55 Retrovisor

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3
Tema
de
Capa

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da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Karl Rahner e os desafios do

Tema de Capa
cristianismo na época moderna
Mário de França Miranda reflete sobre a produção teórica de Rahner e sua
importância no contexto eclesial da segunda metade do século XX
Por Márcia Junges e Ricardo Machado

A
síntese do homem, jesuíta e teólogo Karl ções entre o pensamento de Rahner, o Concílio
Rahner está em sua extensa obra e em Vaticano II e algumas posturas levadas a cabo
seu decisivo papel com relação ao con- pelo Papa Francisco. “As conquistas do Concí-
texto eclesial do pós-guerra na Europa. “A Igreja lio Vaticano II, saudadas entusiasticamente por
se encontrava ainda distanciada da sociedade, Rahner e posteriormente (algumas delas) propo-
desconfiada e hostil à irrupção da modernida- sitalmente esquecidas, marcam as opções ecle-
de, incentivando o neotomismo na formação siais do atual bispo de Roma. Fim da centraliza-
de seus quadros, mas incapaz de um diálogo ção romana, maior espaço para as Conferências
frutífero com os novos tempos”, explica o pro- Episcopais, maior respeito aos bispos como su-
fessor doutor Mário de França Miranda, em en- cessores dos apóstolos, participação do laicato
trevista por e-mail à IHU On-Line. “Karl Rahner dotado com o sentido da fé, valorização do exis-
anteviu como ninguém os desafios futuros para tencial, do vivido, do testemunho, abertura à so-
o cristianismo e lutou para a construção de um ciedade, preocupação com os pobres, são alguns
catolicismo menos monolítico e mais participa- pontos que demonstram quão feliz estaria hoje
tivo, de maior liberdade de expressão, de mais o nosso teólogo com este papa”, complementa.
diálogo com a realidade”, avalia. Mário de França Miranda possui graduação
De acordo com o entrevistado, o teólogo ale- em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa
mão previu claramente o advento de uma socie- Senhora Medianeira, mestrado em Teologia
dade secularizada e fechada à transcendência, pela Faculdade de Teologia da Universidade de
de onde se origina sua preocupação em propor Innsbruck e doutorado em Teologia pela Uni-
um fundamento antropológico às verdades cris- versidade Gregoriana. É professor da Pontifícia
tãs. “Ele mesmo dizia que a teologia fundamen- Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-
tal deveria estar presente em todos os tratados -Rio. É autor de várias obras, entre elas A exis-
teológicos. Ele sabia que o tempo da cristandade tência cristã hoje (São Paulo: Edições Loyola,
estava terminando, que as pessoas não aceita- 2005), A Igreja numa sociedade fragmentada.
vam sem mais os pronunciamentos doutrinais Escritos eclesiológicos (São Paulo: Edições Loyo-
da Igreja e que se fazia necessária esta mediação la, 2006) e Aparecida: a hora da América Latina
antropológica”, aponta Mário de França Miran- (São Paulo: Edições Paulinas, 2006).
da. Nesse sentido, é possível estabelecer rela- Confira a entrevista. www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Quem foi Karl mações do texto. Pergunta difícil tam- das. Avesso ao compromisso fácil ou à
Rahner? bém porque nela podemos distinguir superficialidade, este seu jeito de ser
Mário de França Miranda – Aí o homem, o jesuíta e o teólogo que, vai marcar fortemente sua reflexão
está uma pergunta de difícil resposta. entretanto, só podem ser encontra- teológica.
Primeiramente porque qualquer re- dos unidos na pessoa de Karl Rahner.
lato sobre alguém implica também a Comecemos por sua pessoa de tipo IHU On-Line – E como jesuíta,
pessoa que o expressa. Daí alguns tra- introvertido, pensador, resmungão como caracterizar Karl Rahner?
ços do biografado receberem maior como ele mesmo se considerava, de Mário de França Miranda – Bem,
ênfase, enquanto outros podem ser uma inteligência que buscava sem- a formação da Companhia de Jesus
transcurados ou não devidamente pre aprofundar as questões, jamais irá ajudá-lo a desenvolver seus dotes
tratados. Reconhecemos de antemão se contentando com o que recebia naturais. Primeiramente contribuin-
esta insuficiência, embora defenda- de terceiros, questionando práticas do para que se torne um trabalha-
mos também a consistência das afir- tradicionais ou formulações consagra- dor incansável, disciplinado, vivendo

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 5


com simplicidade e austeridade sua ventura4. De fato, a ação salvífica de e outros ensinavam na França (Four-
Tema de Capa
vocação religiosa. No final de sua Deus no ser humano experimentada vière). E se dedica à leitura dos Santos
vida dizia, brincando, que era natu- pelo jovem Karl o estimulará a ulterio- Padres e se familiariza cada vez mais
ralmente preguiçoso e que aceitava res questionamentos e escritos, como com a história dos dogmas, conheci-
os compromissos para ser estimu- nos comprovam seus textos sobre a mentos que vão se juntar a uma sólida
lado ao trabalho, o que certamente ética existencial, a experiência trans- formação na filosofia e teologia esco-
reflete sua humildade, mas de modo cendental do Espírito Santo, a conso- lástica, como nos comprovam sobeja-
algum a verdade. Porém, bem mais lação sem causa, a decisão existencial, mente seus textos posteriores.
importante e decisiva em sua vida foi a experiência de Deus no amor frater-
a experiência profunda que teve por no, entre outros. IHU On-Line – Então desde jo-
ocasião dos Exercícios Espirituais de vem já demonstrava uma vocação
Santo Inácio. De fato, a experiência da IHU On-Line – E o que dizer do teológica?
graça, segundo Karl Lehmann1, talvez teólogo Karl Rahner? Mário de França Miranda – De
o melhor conhecedor do pensamento Mário de França Miranda – Na- fato não foi bem assim. Pois foi envia-
de Karl Rahner, constitui o núcleo de turalmente a sua entrada na Compa- do a Friburgo para se especializar em
toda a sua teologia. Esta afirmação foi nhia de Jesus lhe proporcionará nos Filosofia, quando então teve Martin
comprovada pelo próprio teólogo ao anos seguintes não só uma sólida Heidegger6 como professor. Entretan-
expressar terem sido os Exercícios Es- espiritualidade, mas também uma to sua tese doutoral sobre a metafísi-
pirituais o fator mais decisivo de seu profunda e séria formação filosófica ca do conhecimento finito em Tomás
labor teológico, bem mais que seus e teológica. Papel decisivo desempe- de Aquino7, publicada depois como
conhecimentos filosóficos e teoló- nhou o contexto eclesial desta época
gicos posteriores. Não é de admirar do pós-guerra. A Igreja se encontra- à Igreja que são as suas Méditations
que seus primeiros escritos fossem va ainda distanciada da sociedade, sur l’Eglise. Foi convidado a participar
do Concílio Vaticano II como perito e o
dedicados à questão dos “sentidos desconfiada e hostil à irrupção da Papa João Paulo II o fez cardeal no ano
espirituais” em Orígenes2, Evagrius modernidade, incentivando o neoto- de 1983. É considerado um dos teólogos
Ponticus3 e especialmente São Boa- mismo na formação de seus quadros, católicos mais eminentes do século XX.
Sua principal contribuição foi o modo de
mas incapaz de um diálogo frutífero entender o fim sobrenatural do homem
1 Karl Lehmann (1936): importante te- com os novos tempos. As recentes e sua relação com a graça. (Nota da IHU
ólogo alemão, atualmente bispo de Mo- pesquisas na área bíblica e no setor On-Line)
gúncia e presidente da Conferência Epis- 6Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
copal da Alemanha, escreveu um artigo
da liturgia, os estudos patrísticos, os alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
sobre Kant que a IHU On-Line traduziu e esforços inovadores da Ação Católi- po (1927). A problemática heideggeriana
publicou na 93ª edição, de 22 de março ca, não eram muito bem vistos pela é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
de 2004. O Instituto Humanitas Unisinos Cartas sobre o humanismo (1947), Intro-
também traduziu e publicou o artigo O
hierarquia eclesiástica. Mas o jovem dução à metafísica (1953). Sobre Heide-
Cristianismo – Uma religião entre outras? Rahner, também inconformado com a gger, a IHU On-Line publicou, na edição
Um subsídio para o Diálogo Inter-religioso teologia dos manuais, é informado da 139, de 02-05-2005, o artigo O pensa-
– na perspectiva católica, de autoria de mento jurídico-político de Heidegger e
Karl Lehmann. O artigo foi publicado em
“nova teologia” que Henri de Lubac5 Carl Schmitt. A fascinação por noções
Multitextos, nº 1, de outubro de 2003. fundadoras do nazismo, disponível para
Em 2011, publicamos o sítio do Institu- download em http://bit.ly/ihuon139.
to Humanitas Unisinos – IHU publicou nas 4 São Boaventura (1221-1274): bispo Sobre Heidegger, confira as edições 185,
Notícias do Dia a entrevista Nova et ve- franciscano, filósofo, confessor e doutor de 19-06-2006, intitulada O século de
tera, sobre a crise de confiança da Igre- da Igreja. Foi uma das mais poderosas Heidegger, disponível para download em
ja católica, disponível em http://bit.ly/ inteligências de seu tempo e de toda a http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-
SN9U89. (Nota da IHU On-Line) história da Igreja. Discípulo de Alexan- 2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
2 Orígenes (aproximadamente 185-254): dre de Hales, era amigo e companheiro trução da metafísica, que pode ser aces-
mestre catequista na Alexandria e dis- de lutas do dominicano Tomás de Aquino. sada em http://bit.ly/ihuon187. Confira,
cípulo de São Clemente. Criador de um Tiveram ambos carreiras paralelas, jun- ainda, o nº 12 dos Cadernos IHU em
sistema filosófico-teológico no qual o tos combateram os erros de doutores de formação, intitulado Martin Heidegger.
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cristianismo se apresentava como a cul- Paris inimigos das Ordens mendicantes. A desconstrução da metafísica, que pode
minância da filosofia grega. (Nota da IHU Ambos faleceram relativamente jovens, ser acessado em http://bit.ly/ihuem12.
On-Line) no mesmo ano. Boaventura teve, diferen- Confira, também, a entrevista concedida
3 Evágrio Pôntico (345-397): monge nas- temente de Tomás, uma vida muito ativa, por Ernildo Stein à edição 328 da revista
cido na Capadócia, em Ibora, no Ponto, que não lhe permitiu dedicar todo o seu IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
por isso chamado de Pôntico. Passou de- tempo ao estudo. Também conseguiu su- em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
zesseis anos de sua vida no deserto do perar a disputa interna de seus pares a biologismo radical de Nietzsche não pode
Egito, como anacoreta. Foi discípulo e respeito do voto de pobreza. Em 1273, ser minimizado, na qual discute ideias de
amigo de São Gregório de Nazianzo, sen- foi nomeado cardeal-bispo de Albano e, sua conferência “A crítica de Heidegger
do ordenado diácono por ele. Conduziu no segundo Concílio de Lyon, desempe- ao biologismo de Nietzsche e a questão
uma das grandes correntes da espirituali- nhou papel fundamental na reconciliação da biopolítica”, parte integrante do ciclo
dade bizantina. Para Evágrio, a ascensão entre o clero secular e as ordens mendi- de estudos Filosofias da diferença – pré-
espiritual consiste em contemplar a Deus cantes. Foi nesse encontro que São Boa- evento do XI Simpósio Internacional IHU:
em si mesmo, de modo que se vê a Deus ventura morreu, em 15 de julho de 1274. O (des)governo biopolítico da vida huma-
como num espelho. O caminho consiste Homem tão inteligente quanto humilde, na. (Nota da IHU On-Line)
em despojar-se dos pensamentos apaixo- foi declarado doutor da igreja e canoni- 7 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa-
nados, depois, mesmo dos pensamentos zado em 1482. (Nota da IHU On-Line) dre dominicano, teólogo, distinto expo-
simples, até a completa nudez de ima- 5 Henri de Lubac (1896-1991): teólogo ente da escolástica, proclamado santo e
gens e conceitos. Escreveu diversas obras jesuíta francês. Foi suspenso pelo Papa cognominado Doctor Communis ou Doctor
sobre oração, a vida monástica e a vida Pio XII. No seu exílio intelectual, es- Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior
ascética. (Nota da IHU On-Line) creveu um verdadeiro poema de amor mérito foi a síntese do cristianismo com

6 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


“O Espírito no mundo”, não foi aceita que outros recebiam sem questionar. IHU On-Line – E como pôde ele

Tema de Capa
por seu orientador, e Rahner viu se fe- Seus primeiros textos, sejam de espi- conseguir esta façanha já que dizem
charem as portas da filosofia para ele. ritualidade, sejam de teologia, deixam ser seu estilo difícil e rebuscado, de
Observo que sua tese ficou famosa, já transparecer esta sua preocupação frases longas com abundância de ad-
recebendo várias traduções, enquanto básica. Textos de espiritualidade que jetivos e advérbios?
poucos conhecem o nome deste seu tratam da oração, da mística, da asce- Mário de França Miranda – Natu-
orientador. Mas como os caminhos de se, da ação de Deus nas pessoas, das ralmente a língua alemã é de enorme
Deus não são os nossos, a faculdade visões, da experiência da graça. Textos riqueza, oferecendo matizes e expres-
teológica de Innsbruck onde lecionava de pastoral que englobam temas diver- sões que nem sempre se encontram
seu irmão Hugo Rahner, também jesu- sos como princípio paroquial ou missa nas línguas neolatinas. A luta de Rah-
íta, necessitava de um professor para a na televisão, ou ainda textos teológi- ner para ser fiel ao seu pensamento o
Teologia dogmática. Rahner apresenta cos como o indivíduo na Igreja, a Igreja levou a longas frases para abrigarem
então seu doutorado sobre “a Igreja pecadora, a concupiscência, a relação em si todas as matizes e riquezas do
que nasce do lado de Cristo”, sendo entre natureza e graça, Deus no Novo que ele queria expressar. Mas desde
aprovado e podendo iniciar sua car- Testamento, as muitas missas e o único que o leitor se acostume com seu
reira como professor de Teologia em sacrifício, o dogma da assunção de Ma- modo de escrever e que se familiarize
1937. Naturalmente seu vigor especu- ria. Embora refletissem originalidade e com as constantes fundamentais de
lativo e sua estadia em Friburgo irão profundidade só se tornaram realmen- sua teologia, então ele se torna mais
marcar fortemente sua teologia. te conhecidos quando a editora Benzin- claro e direto. Em seus escritos espiri-
ger, da Suíça, resolveu publicá-los sob o tuais, não tendo que “lutar com o con-
IHU On-Line – Voltando à histó- título “Escritos de Teologia”, que não ceito”, Rahner pode ser compreendi-
ria: a atividade docente de Rahner se só alcançaram um enorme sucesso, do por qualquer um, como comprova
deu então em Innsbruck? mas atraíram também o olhar dos teó- seu livrinho “Palavras ao silêncio” que
Mário de França Miranda – Não logos para este colega ainda pouco co- foi um sucesso mundial para um pú-
foi só nesta faculdade, pois em 1964 nhecido. Sabemos que os 16 volumes blico não especializado. Aliás, tenho
Rahner deixa Innsbruck para ensinar dos Escritos de Teologia experimenta- a impressão de que este teólogo es-
na cátedra de Romano Guardini o ram muitas edições, sendo traduzidos creveu muito mais textos espirituais
tema da cosmovisão cristã e da filoso- em diversas línguas. Graças ao empe- do que se pensa. Para citar alguns: so-
fia da religião, por convite da Univer- nho de missionários, Rahner foi o autor bre a necessidade da oração, sobre a
sidade de Munique. Mas como aí não alemão traduzido no maior número de Hora Santa, sobre os votos religiosos,
lhe permitiram ensinar na faculdade línguas, ultrapassando nomes como sobre as realidades cotidianas, sobre
de Teologia, Rahner vai para Münster Kant8 e Goethe9. a devoção ao Coração de Jesus, sobre
em 1967, onde desenvolve sua última as visitas ao Santíssimo, sobre a fé do
atividade docente até 1971, quando 8 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo sacerdote, e muitos outros.
então se torna professor emérito. prussiano, considerado como o último
grande filósofo dos princípios da era
Este fato não significou o fim de suas moderna, representante do Iluminismo.
IHU On-Line – E como se explica
pesquisas e reflexões. Basta examinar Kant teve um grande impacto no roman- este fato?
seus inúmeros trabalhos e conferên- tismo alemão e nas filosofias idealistas Mário de França Miranda – Na
do século XIX, as quais se tornaram um
cias depois desta data, coroando as- ponto de partida para Hegel. Kant esta-
minha opinião, ele brota da própria
sim uma vida de dedicação total ao beleceu uma distinção entre os fenôme- pessoa de Rahner. As questões re-
labor teológico e espiritual. nos e a coisa-em-si (que chamou noume- lacionadas com a fé cristã não eram
non), isto é, entre o que nos aparece e o
que existiria em si mesmo. A coisa-em-si
para ele questões teóricas, acadê-
IHU On-Line – Rahner é consi- não poderia, segundo Kant, ser objeto micas, doutrinais. Como um cristão
derado um dos maiores teólogos do de conhecimento científico, como até de profunda fé, tais questões o atin-
então pretendera a metafísica clássica.
século XX. Como se tornou assim giam existencialmente e seus escri-
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A ciência se restringiria, assim, ao mun-
famoso? do dos fenômenos, e seria constituída tos refletem bem o envolvimento de
Mário de França Miranda – Bem, pelas formas a priori da sensibilidade sua pessoa nos temas doutrinais. Por
(espaço e tempo) e pelas categorias do
Rahner sempre foi alguém que não entendimento. A IHU On-Line número
exemplo, sua cristologia não se resu-
se satisfazia com explicações superfi- 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria me a uma sistematização de cunho
ciais ou formulações tradicionais. Daí de capa à vida e à obra do pensador com teológico, mas indaga realmente pelo
o título Kant: razão, liberdade e ética,
seu afã em buscar compreender pro- disponível para download em http://bit.
acesso e pelo relacionamento pessoal
fundamente, de fundamentar solida- ly/ihuon93. Também sobre Kant foi publi-
mente, de expressar diversamente o cado o Cadernos IHU em formação nú-
mero 2, intitulado Emmanuel Kant – Ra- sofo. Como escritor, Goethe foi uma das
zão, liberdade, lógica e ética, que pode mais importantes figuras da literatura
a visão aristotélica do mundo, introduzin- ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. alemã e do Romantismo europeu, nos
do o aristotelismo, sendo redescoberto Confira, ainda, a edição 417 da revista finais do século XVIII e inícios do século
na Idade Média, na escolástica anterior. IHU On-Line, de 06-05-2013, intitulada A XIX. Juntamente com Schiller foi um dos
Em suas duas “Summae”, sistematizou autonomia do sujeito, hoje. Imperativos líderes do movimento literário român-
o conhecimento teológico e filosófico de e desafios, disponível em http://bit.ly/ tico alemão Sutrm und Drang. De suas
sua época: são elas a Summa Theologiae ihuon417. (Nota da IHU On-Line) obras, merecem destaque Fausto e Os
e a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU 9 Johann Wolfgang von Goethe (1749- sofrimentos do jovem Werther. (Nota da
On-Line) 1832): escritor alemão, cientista e filó- IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 7


com Jesus Cristo. Sua pneumatologia Bernard Lonergan11, ou Juan Luis Se- ticou seu enfoque que apenas se limi-
Tema de Capa
não se limita a uma reflexão sobre o gundo12. Ter conhecimento da matriz tava ao ser humano diante de Deus,
Espírito Santo, mas busca como re- filosófica destes teólogos é impres- sendo que todo homem é sempre ho-
almente sua ação é experimentada, cindível para se compreender suas mem com outros homens e este fato
captada e expressa pelo ser humano. sistematizações. No caso de Rahner, não pode ser ignorado na reflexão te-
Sua eclesiologia se ocupa também do mesmo temas avulsos como a noção ológica. Rahner procurou corrigir esta
nosso relacionamento com a Igreja de concupiscência, da unidade de es- lacuna com um texto famoso sobre a
concreta, com suas falhas e imperfei- pírito e matéria, da evolução humana, unidade do amor a Deus e o amor ao
ções. Talvez o segredo da repercussão dos símbolos cristãos, para citar al- próximo. Para mim, pessoalmente, a
enorme de sua teologia esteja aqui: guns. Sabemos que a matriz filosófica relação transcendência e história per-
ela reflete a postura existencial de seu rahneriana, como toda produção hu- manece sempre um ponto ainda pou-
autor e por isso toca profundamente mana, não escapou de certas críticas. co equilibrado, com repercussões em
as pessoas. J.B. Metz13, seu discípulo e amigo, cri- sua teologia.

IHU On-Line – Poderíamos carac- e Literatura modernas, especialmente


IHU On-Line – Embora abrindo
terizá-lo como um cristão inquieto? a franco-germana. Criou sua própria Te- novas trilhas no pensamento teológi-
Mário de França Miranda – Sem ologia, síntese original do pensamen- co, este teólogo conseguiu se tornar
to patrístico e contemporâneo. Entre
dúvida, se entendemos nesta expres- suas obras destacam-se O cristianismo
um dos grandes colaboradores do
são alguém que se sente também e a angústia (1951), O mistério das ori- Concílio Vaticano II. Como se explica
atingido em sua fé pelas transforma- gens (1957), O problema de Deus no ho- este fato?
mem atual (1958) e Teologia da história
ções socioculturais de seu tempo. (1959). A edição 193 da IHU On-Line, de
Mário de França Miranda – De
Karl Rahner anteviu como ninguém 28-08-2006, Jorge Luis Borges. A virtude fato não foi assim tão fácil. Rahner es-
os desafios futuros para o cristianis- da ironia na sala de espera do mistério, teve sob suspeita das autoridades que
publicou uma entrevista com Ignácio J.
mo e lutou para a construção de um Navarro, intitulada Borges e Von Baltha-
exigiam serem seus escritos submeti-
catolicismo menos monolítico e mais sar. Uma leitura teológica, disponível no dos a uma censura prévia, em parte
participativo, de maior liberdade de link http://www.unisinos.br/ihuonline/ devido a sua tese sobre a Igreja peca-
uploads/edicoes/1158343116.57pdf.pdf.
expressão, de mais diálogo com a re- (Nota da IHU On-Line)
dora, que seria mais tarde tranquila-
alidade. Ele previu claramente o ad- 11 Bernard Lonergan (1904-1984): teó- mente acolhida. Entretanto os bispos
vento de uma sociedade secularizada logo jesuíta canadense, provavelmente da Alemanha, reconhecendo seu va-
o pensador mais significativo do século
e fechada à Transcendência. Daí sua XX, pela amplidão dos domínios investi-
lor, conseguiram levá-lo como perito
preocupação em oferecer um fun- gados, pelos resultados obtidos no campo para Roma, onde trabalhou intensa-
damento antropológico às verdades da teologia, filosofia (teoria do conheci- mente na preparação dos textos con-
mento e metodologias de vários domínios
cristãs como a revelação, a graça de do conhecimento) e da teoria geral da
ciliares. Textos sobre a colegialidade,
Deus, os sacramentos, a pessoa de Je- economia. Entrou para a Companhia de as Conferências episcopais, o próprio
sus Cristo, a própria Igreja, até o dog- Jesus em 9 julho de 1922. Estudou filo- Concílio, a Igreja no mundo de hoje,
sofia escolástica no Colégio de Heythrop,
ma da Santíssima Trindade. Ele mes- na Inglaterra, e teologia na Universida-
a maioridade do cristão, a vocação
mo dizia que a teologia fundamental de Gregoriana de Roma, onde obteve o do laicato nasceram neste contexto
deveria estar presente em todos os doutoramento em 1940. Na mesma Uni- eclesial.
versidade, lecionou Teologia Dogmática.
tratados teológicos. Ele sabia que o A partir de 1965, por causa de uma grave
tempo da cristandade estava termi- operação cirúrgica, deixou de ensinar em IHU On-Line – É incrível a quan-
nando, que as pessoas não aceitavam Roma e permaneceu no Boston College, tidade de artigos e livros deste teó-
em Massachussets, até 1983, publicando,
sem mais os pronunciamentos doutri- além de outros escritos, o Método na Te-
logo. Como conseguia ele encontrar
nais da Igreja e que se fazia necessária ologia, em 1972, e dando cursos curtos tempo para tão rica produção?
esta mediação antropológica. nos Estados Unidos e no Canadá. (Nota da Mário de França Miranda – Real-
IHU On-Line)
mente Rahner foi um trabalhador in-
www.ihu.unisinos.br

12 Juan Luis Segundo (1925-1996): uru-


IHU On-Line – Reside neste pon- guaio e jesuíta, um dos mais importantes fatigável, disciplinado, movido por um
to certa dificuldade que experimen- teólogos da libertação. Ë autor de uma enorme zelo sacerdotal. Tudo fazia
vasta obra. Citamos, entre os seus livros,
tam seus leitores em compreendê-lo? Teologia aberta para o leigo adulto (São
para transmitir suas convicções ínti-
Mário de França Miranda – Cer- Paulo: Loyola, 1977-1978), em 5 volumes mas, sua fé cristã, a salvação de Jesus
tamente, mas lembro que todo grande (Essa comunidade chamada igreja; Gra- Cristo, a seus contemporâneos. Sem-
ça e condição humana; A nossa ideia de
teólogo reflete sempre a partir de uma Deus; Os sacramentos hoje; e Evolução e
pre que era solicitado enviava suas
base filosófica, mesmo que não explici- culpa). (Nota da IHU On-Line) colaborações ou pronunciava suas
tamente mencionada. Penso em Hen- 13 Johann Baptist Metz (1928): teólogo conferências. Graças ao seu empe-
católico alemão, professor de Teologia
ri de Lubac, Hans Urs von Balthasar10, Fundamental, professor emérito na Uni-
versidade de Münster, Alemanha. Aluno -Concílio Vaticano II. Seus pensamentos
de Karl Rahner, desfiliou-se da teologia giram ao redor de atenção fundamental
10 Hans Urs Von Balthasar (1905-1988): transcendental de Rahner, em troca de ao sofrimento de outros. As chaves de
teólogo católico suíço. Estudou Filoso- uma teologia fundamentada na prática. sua teologia são memória, solidariedade
fia em Viena, Berlim e Zurique, onde Metz está no centro de uma escola da e narrativa. Dele publicamos uma entre-
se doutorou em 1929, e em Teologia em teologia política que influenciou forte- vista na 13ª edição, de 15-04-2002, dis-
Munique e Lyon. Destacou-se como inves- mente a Teologia da Libertação. É um dos ponível em http://bit.ly/ihuon13. (Nota
tigador dos santos padres e da Filosofia teólogos alemães mais influentes no pós- da IHU On-Line)

8 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


nho (juntamente com outros), temos te teólogo. Que influência teve ele mente por Rahner e posteriormente

Tema de Capa
obras como o Lexikon für Theologie em seu labor teológico? (algumas delas) propositalmente es-
und Kirche, o Sacramentum Mundi, Mário de França Miranda – Pri- quecidas, marcam as opções eclesiais
o Handbuch der Pastoraltheologie, meiramente eu diria que fui impacta- do atual bispo de Roma. Fim da cen-
a coleção Quaestiones Disputatae, a do por seu modo mais existencial de tralização romana, maior espaço para
revista Concilium. Quando estive com pensar a teologia, no qual o teólogo as Conferências Episcopais, maior res-
ele em 1974 ainda trabalhava a cristo- e o cristão estão intimamente unidos, peito aos bispos como sucessores dos
logia do seu Curso Fundamental da Fé, de tal modo que nossa realidade hu- apóstolos, participação do laicato do-
embora me confessasse estar “dema- mana, com suas luzes e sombras, não tado com o sentido da fé, valorização
siado velho, doente e burro” (palavras fica de fora dos enunciados doutri- do existencial, do vivido, do testemu-
suas) para ainda escrever algo. Mas, nais. Desde meus primeiros estudos nho, abertura à sociedade, preocupa-
como sabemos, publicou esta obra e filosóficos senti grande empatia por ção com os pobres, são alguns pontos
ainda outros textos. Rahner ao ler seus textos espirituais, que demonstram quão feliz estaria
nos quais a profundidade temática hoje o nosso teólogo com este papa. É
IHU On-Line – Embora tenha caminha ao lado da vivência pessoal. bastante improvável que Jorge Mario
vivido na Europa, condicionado por Devo também a este teólogo ter me Bergoglio14 não tenha lido os textos de
este contexto sociocultural, teve ensinado a pensar. Confesso que se- espiritualidade de seu irmão jesuíta.
Karl Rahner alguma influência na gui-lo em suas incursões intelectuais Basta retomar sua programática Exor-
teologia latino-americana, mais nem sempre me foi muito fácil, exi- tação Apostólica A Alegria do Evan-
concretamente nas teologias da gindo de mim, às vezes, várias leituras gelho para constatar a afinidade de
libertação? para uma adequada compreensão do várias de suas páginas não só com a
Mário de França Miranda – Eu texto. Mas deste modo, guiado por teologia rahneriana, mas, sobretudo,
diria que uma enorme influência. Em este estilo de pensar em profundida- com a postura existencial, autêntica,
sua obra programática Teologia da de, de questionar o demasiado óbvio, transparente, de se viver a fé e de ser
Libertação, Gustavo Gutierrez reco- de não se contentar com a literalida- cristão. Daí o esforço de renovação e
nhece num capítulo a importância da de das formulações tradicionais, mui- de verdade levado a cabo por ambos.
concepção unitária de natureza e gra- to aprendi deste mestre. Sempre me
ça para a teologia latino-americana.
Só foi possível uma teologia do social,
impressionou também a liberdade
demonstrada por este jesuíta em sua Leia mais...
da história, das realidades terrestres, reflexão teológica. Formado por uma
• “A Igreja não dispõe nem de poder
depois de vencido certo supranatu- pedagogia da liberdade, própria dos
nem de solução mágica para resol-
ralismo da graça de Deus, fortemen- Exercícios Espirituais de Santo Inácio
ver a questão da maioria de seus fi-
te criticada por nosso teólogo junta- de Loyola, Rahner sempre lhe foi fiel,
éis, que são pobres”. Entrevista com
mente com Lubac e Balthasar, entre mantendo-se imune aos diversos gru- Mário de França Miranda na edição
outros. Também sua preocupação em pos na Igreja que buscavam atraí-lo, e 219 da IHU On-Line, de 14-05-2007,
confrontar a fé cristã com as diversas sabendo denunciar os abusos das au- disponível em http://bit.ly/StmuCn.
realidades da vida, da cultura e da so- toridades quando se fazia necessário. • Um teólogo da modernidade. Entre-
ciedade, introduzindo-as na reflexão Não se importava, como se expressa- vista com Mário de França Miranda
teológica, foi fundamental para uma va, se o colocassem à esquerda ou à na edição 297 da IHU On-Line, de
teologia que leva a sério a situação direita, ou se recebesse aplausos ou 15-06-2009, disponível em http://
dos marginalizados latino-america- apupos. Outro ponto que muito me bit.ly/QTutLM.
nos. Sabemos que ele tomou a defesa ajudou foi a amplitude dos temas por • “A Igreja muda para poder conti-
da teologia da libertação numa cola- ele estudados, que proporciona a seu nuar sendo Igreja”. Entrevista com
boração parcial a uma obra sobre a conhecedor um rico horizonte teoló- Mário de França Miranda na edição
mesma, reconhecendo-a legítima e gico capaz de situar qualquer tema na 403 da IHU On-Line, de 24-09-2012,
www.ihu.unisinos.br
mesmo necessária para a dolorosa si- totalidade da teologia e relacioná-lo disponível em http://bit.ly/TTedQx.
tuação social de tantos na América La- com os demais. Também sua insistên- • Leia também o artigo “Rumo a uma
tina. Ele lamentava mesmo, em seus cia na dimensão analógica, simbólica nova configuração eclesial”, de
últimos anos, não ter conhecido este dos enunciados da fé, que apontam Mário de França Miranda, publica-
subcontinente, que certamente teria para o Mistério de Deus, sem poder do em Cadernos Teologia Pública
ampliado seu horizonte teológico. Por aprisioná-lo no conceito, sempre me nº 71, disponível em http://bit.
outro lado, os expoentes das teologias impressionou muito. ly/1kXH5BA.
da libertação estudaram bem a teolo-
gia rahneriana e demonstram sobeja- IHU On-Line – Você vê alguma 14 Papa Francisco (1936): argentino fi-
mente esta verdade em seus escritos. relação entre o pensamento de Karl lho de imigrantes italianos, Jorge Mario
Rahner e a renovação eclesial empre- Bergoglio é o atual chefe de estado do
Vaticano e Papa da Igreja Católica, su-
IHU On-Line – Você defendeu endida pelo papa Francisco? cedendo o Papa Bento XVI. É o primeiro
uma tese doutoral sobre a teologia Mário de França Miranda – Cer- papa nascido no continente americano, o
trinitária de Karl Rahner e, portanto, tamente! Pois as conquistas do Concí- primeiro não europeu no papado em mais
de 1200 anos e o primeiro jesuíta a assu-
teve que dedicar anos ao estudo des- lio Vaticano II, saudadas entusiastica- mir o cargo. (Nota da IHU On-Line)

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Karl Rahner. Uma teologia
Tema de Capa

em estreita união com a


espiritualidade
Pesquisador Albert Raffelt traça um perfil do pensamento de Karl Rahner

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Walter Schlupp

“E
le [Karl Rahner] estudou a es- oprimidos do mundo: não um papa bur-
piritualidade dos primórdios guês cosmopolita, iluminista; não um
da Ordem dos Jesuítas e de papa focado em assegurar a subsistência
seu fundador a partir das fontes. Supe- interna da igreja; e tampouco um papa
rou estreitamentos ecumênicos, chamou focado em promover remendos sociais.
a atenção da teologia católica para a pro- O partidarismo dele pelos pobres e opri-
blemática dos outros caminhos religiosos midos seria expressão do seguimento de
e, ainda em sua última década de vida, Jesus, para o qual os aflitos eram os pri-
percebeu e refletiu sobre a crescente im- vilegiados. Um papa assim colocaria de
portância das outras religiões universais”, novo num contexto prático o programa
explica Albert Raffelt, em entrevista por da santidade cristã e do amor resoluto
e-mail à IHU On-Line. “Não demonizou pelos ‘mais pequeninos dos irmãos’, o
novos movimentos como a teologia da li- programa da oração e da luta, e poderia
bertação, mas aprendeu deles. Além dis- tornar visível algo da relevância política
so, enfrentou questões sociais e pastorais de uma solidariedade isenta de ódio –
bem concretas, incluindo questões cari- chegando até a tolice da cruz”, relembra
tativas específicas como a missão feita Albert ao reproduzir o texto da carta.
nas estações ferroviárias e a assistência a Albert Raffelt cursou Teologia em
jovens mulheres”, complementa. Münster, em München e em Mainz, e foi
Para Albert Raffelt, a teologia de Rah- assistente científico junto a Karl Lehmann
ner parte do ser humano e diz respeito às em Freiburg na Alemanha. É doutor em
condições de possibilidade da compreen- Teologia com a tese Espiritualidade e Filo-
são da revelação. “No centro da teologia sofia: sobre o problema da mediação da ex-
de Rahner, porém, está a autocomunica- periência religioso-espiritual em L’Action de
www.ihu.unisinos.br

ção de Deus. Nada é reduzido às meras Maurice Blondel. Desde 2000, é professor
necessidades humanas!”, pondera. honorário de Teologia dogmática em Frei-
Com relação a uma mudança na pos- burg. Entre suas diversas publicações, cita-
tura teológica do Papa, que desde Ber- mos Theologie studieren: Wissenschaftli-
goglio tornou-se uma pauta mais popu- ches Arbeiten und Medienkunde (Freiburg:
lar, o entrevistado lembra que Rahner, Herder, 2003). Rafelt organizou, ao lado
juntamente com Johann Baptist Metz, do cardeal Karl Lehmann, a obra Rechens-
já propunha uma perspectiva mais aber- chaft des Glaubens: Karl Rahner-Lesebuch
ta no texto Por um papa dos pobres e (Zürich: Benziger; Freiburg: Herder, 1979).
oprimidos deste mundo: carta aberta Juntamente com Hansjürgen Verweyen pu-
aos cardeais alemães. “O futuro papa blicou o livro Leggere Karl Rahner (Ler Karl
de nossa igreja precisa ser – não apenas Rahner), (Brescia: Queriniana, 2004).
simbolicamente – um papa dos pobres e Confira a entrevista.

10 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


IHU On-Line – Qual é a novidade a tradição ocidental desde Agostinho4 tantos enfoques históricos e atuais,

Tema de Capa
da hermenêutica de Rahner1? até Boaventura5 e Tomás de Aquino, e que, ainda assim, foram mediados com
Albert Raffelt – Eu admiro cada até a muito criticada neoescolástica. os temas tradicionais (da chamada
vez mais a amplitude da teologia de Outros teólogos importantes, como “teologia de escola” neoescolástica).
Rahner: como jovem estudante, ele Hans Urs von Balthasar, falaram do Rahner não elaborou uma teologia de
estudou Orígenes2 e Clemente de Ale- deserto da neoescolástica! Ele estu- escrivaninha, mas sempre pensou a
xandria3, grandes padres da igreja que dou a espiritualidade dos primórdios partir do centro da vida cristã.
pensavam contra todo e qualquer es- da Ordem dos Jesuítas e de seu fun- O lado metodológico tem a ver
treitamento. Absorveu e refletiu sobre dador a partir das fontes. Superou com aquilo que se chamou “virada an-
estreitamentos ecumênicos, chamou tropológica”: a teologia de Rahner é
a atenção da teologia católica para a uma teologia que parte do ser huma-
1 Karl Rahner (1904-2004): importante
teólogo católico do século XX. Ingressou
problemática dos outros caminhos re- no e de suas perguntas; daí o questio-
na Companhia de Jesus em 1922. Dou- ligiosos e, ainda em sua última déca- namento “transcendental” a respeito
torou-se em Filosofia e em Teologia. Foi da de vida, percebeu e refletiu sobre a das condições de possibilidade da
perito do Concílio Vaticano II e professor
na Universidade de Münster. A sua obra
crescente importância das outras reli- compreensão da revelação. No centro
teológica compõe-se de mais de 4 mil tí- giões universais. Não demonizou no- da teologia de Rahner, porém, está a
tulos. Suas obras principias são: Geist in vos movimentos como a teologia da li- autocomunicação de Deus. Nada é re-
Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer
des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941,
bertação6, mas aprendeu deles. Além duzido às meras necessidades huma-
Schrifften zur Theologie (Escritos de Te- disso, enfrentou questões sociais e nas! Ainda falarei sobre isso.
ologia). Em 2004, celebramos seu cente- pastorais bem concretas, incluindo
nário de nascimento. A Unisinos dedicou
à sua memória o Simpósio Internacional
questões caritativas específicas como IHU On-Line – Como se deu seu
O Lugar da Teologia na Universidade do a missão feita nas estações ferroviá- diálogo com a escolástica e a filosofia
século XXI, realizado de 24 a 27 de maio rias e a assistência a jovens mulheres. moderna?
daquele ano.
A IHU On-Line nº 90, de 01-03-2004, pu-
A lista poderia ser continuada. Albert Raffelt – O próprio Rahner
blicou um artigo de Rosino Gibellini so- Vejo a genuína realização her- formulou a tarefa da seguinte manei-
bre Rahner, disponível em http://bit. menêutica de Karl Rahner na fusão de ra: “Deve ser possível, numa investi-
ly/17tdY0O, e a edição 94, de 02-03-2004,
publicou uma entrevista de J. Moltmann,
gação histórica, apresentar um grande
analisando o pensamento de Rahner, dis- escolástico de tal maneira que o leitor
ponível para download em http://bit. 4 Santo Agostinho [Aurélio Agostinho] familiarizado com a filosofia moderna
ly/18bsx5S. No dia 28-04-2004, no evento (354-430): bispo, escritor, teólogo, filóso-
Abrindo o Livro, Érico Hammes, teólogo fo foi uma das figuras mais importantes
perceba imediatamente que nesse
e professor da PUCRS, apresentou o livro no desenvolvimento do cristianismo no caso um filósofo pensa, em sua lingua-
Curso Fundamental da Fé, uma das prin- Ocidente. Ele foi influenciado pelo neo- gem, os mesmos problemas com os
cipais obras de Karl Rahner. A entrevista platonismo de Plotino e criou o conceito
com o prof. Érico Hammes pode ser confe- de pecado original e guerra justa. Confira
quais um Hegel7 ou um Kant também
rida na IHU On-Line nº 98, de 26-04-2004, a entrevista concedida por Luiz Astorga se ocuparam. Para quem não conside-
disponível para download em http://bit. à edição 421 da IHU On-Line, de 04-06- ra a filosofia uma série desconexa de
ly/19P9wcZ. Ainda sobre Rahner, publi- 2013, intitulada A disputatio de Santo
camos uma entrevista com H. Vorgrimler Tomás de Aquino: uma síntese dupla, dis-
opiniões mutuamente contraditórias,
no IHU On-Line nº 97, de 19-04-2004, sob ponível em http://bit.ly/ihuon421. (Nota não pode, em princípio, haver dúvida
o título Karl Rahner: teólogo do Concílio da IHU On-Line) de que esse resultado deve poder ser
Vaticano nascido há 100 anos, disponível 5 São Boaventura (1221-1274): bispo
em http://bit.ly/1626wqC. A edição nú- franciscano, filósofo, confessor e doutor
alcançado. Mas é preciso admitir que
mero 102 da IHU On-Line, de 24-05-2004, da Igreja. Foi uma das mais poderosas não há muitas tentativas de demons-
dedicou a matéria de capa à memória do inteligências de seu tempo e de toda a tração aposteriorística desse fato”
centenário de nascimento de Karl Rahner, história da Igreja. Discípulo de Alexan-
disponível para download em http://bit. dre de Hales, era amigo e companheiro
(SW, v. 2, p. 435). Rahner empreendeu
ly/maOB5H. de lutas do dominicano Tomás de Aquino. uma tentativa dessas. Ele não repete
Os Cadernos Teologia Pública publicaram Tiveram ambos carreiras paralelas, jun- os enunciados de Tomás de Aquino,
o artigo Conceito e Missão da Teologia em tos combateram os erros de doutores de www.ihu.unisinos.br
Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico Paris inimigos das Ordens mendicantes.
João Hammes. Confira esse material em Ambos faleceram relativamente jovens, 7 Friedrich Hegel [Georg Wilhelm Frie-
http://bit.ly/18XbPcU. A edição 297 da no mesmo ano. Boaventura teve, dife- drich Hegel] (1770-1831): filósofo ale-
IHU On-Line, de 15-06-2009, intitula-se rentemente de Tomás, uma vida muito mão idealista. Como Aristóteles e Santo
Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, ativa que não lhe permitiu dedicar todo o Tomás de Aquino, tentou desenvolver um
disponível para download em http://bit. seu tempo ao estudo. Também conseguiu sistema filosófico no qual estivessem in-
ly/o2e8cX. (Nota da IHU On-Line) superar a disputa interna de seus pares tegradas todas as contribuições de seus
2 Orígenes (aproximadamente 185-254): a respeito do voto de pobreza. Em 1273, principais predecessores. Sobre Hegel,
mestre catequista na Alexandria e discí- foi nomeado cardeal-bispo de Albano e, confira no link http://bit.ly/ihuon217 a
pulo de São Clemente. Criador de um sis- no segundo Concílio de Lyon, desempe- edição 217 da IHU On-Line, de 30-04-
tema filosófico-teológico no qual o cristia- nhou papel fundamental na reconciliação 2007, intitulada Fenomenologia do espí-
nismo se apresentava como a culminância entre o clero secular e as ordens mendi- rito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel
da filosofia grega. (Nota da IHU On-Line) cantes. Foi nesse encontro que São Boa- (1807-2007), em comemoração aos 200
3 Papa Clemente I, São Clemente ou ventura morreu, em 15 de julho de 1274. anos de lançamento dessa obra. Veja
Clemente Romano: quarto papa da Igre- Homem tão inteligente quanto humilde, ainda a edição 261, de 09-06-2008, Car-
ja Católica, entre 88 e 97. Foi um dos foi declarado doutor da igreja e canoni- los Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo
primeiros a receber o batismo de São zado em 1482. (Nota da IHU On-Line) modo de ler Hegel, disponível em http://
Pedro. É autor da Epístola de Clemente 6 Teologia da libertação: para saber mais bit.ly/ihuon261 e Hegel. A tradução da
aos Coríntios, o primeiro documento de leia a edição nº 401, Concílio Vaticano II. história pela razão, edição 430, disponí-
literatura cristã, endereçada à Igreja de 50 anos depois, disponível em http://bit. vel em http://bit.ly/ihuon430. (Nota da
Corinto. (Nota da IHU On-Line) ly/ihuon401. IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 11


mas procura reconstitui-los pensando. heideggerianos também influenciaram Danielou13 e De Lubac14) e alemães
Tema de Capa
Aliás, uma de suas publicações iniciais os trabalhos de Rahner; no Kleines the- (Vorgrimler15, Küng16, Von Balthasar
sobre esse assunto saiu primeiro em ologisches Wörterbuch, por exemplo, e Metz)?
português, e só em 1972 em alemão ele interpreta o conceito heideggeria-
(A verdade em S. Tomás de Aquino. no de Befindlichkeit [disposição] com
ria da Igreja. Aplicou o método sociológico
Revista Portuguesa de Filosofia, v. 7, o termo básico cristão “coração” como à análise eclesiástica (A doutrina social da
p. 353-370, 1951; em alemão agora expressão da decisão fundamental to- Igreja como ideologia, 1979). Seu pensa-
SW, v. 2, p. 301-316). mada de maneira pré-reflexa (SW, v. mento influenciou no movimento de refor-
ma que culminou no Concílio Vaticano II,
17/1, p. 499) – que se chama, na tradi- em cujas sessões participou como perito.
IHU On-Line – Qual era a funda- ção francesa, de option fondamentale. (Nota do IHU On-Line)
mentação filosófica da teologia de O cardeal Karl Lehmann apontou para 13 Jean Danielou: jesuíta francês, que,
com os dominicanos Chenu e Congar e os
Rahner? o fato de que a teologia do mistério jesuítas Henri De Lubac e Karl Rahner,
Albert Raffelt – Rahner estudou a de Rahner tem uma proximidade com entre outros, foi um dos grandes teólo-
filosofia neoescolástica a fundo e não a o Heidegger tardio, mas não uma de- gos do Concílio Vaticano II. (Nota da IHU
On-Line)
menosprezou. Mas ele tentou realizar pendência dele. Certamente não há 14 Henri de Lubac (1896-1991): teólogo
a intenção, acima mencionada, de re- dependências genuínas na teologia jesuíta francês. Foi suspenso pelo Papa Pio
almente pensar junto com a tradição, em termos de conteúdo, como Rahner XII. No seu exílio intelectual, escreveu um
verdadeiro poema de amor à Igreja que
e não apenas conservá-la repetindo-a. acentuou repetidamente. são as suas Méditations sur l’Eglise. Foi
Segundo sua autocompreensão, ele foi Após suas obras iniciais, Rah- convidado a participar do Concílio Vatica-
marcado especialmente pelos traba- ner não fez mais uma filosofia autô- no II como perito, e o Papa João Paulo II o
fez cardeal no ano de 1983. É considerado
lhos de Joseph Maréchal SJ8. Para ele, noma, e sim enunciados teológicos um dos teólogos católicos mais eminentes
Maréchal – que, por sua vez, foi in- sobre muitos temas filosoficamente do século XX. Sua principal contribuição
fluenciado por pensadores como Mau- importantes (liberdade, responsabili- foi o modo de entender o fim sobrenatu-
ral do homem e sua relação com a graça.
rice Blondel9 ou Pierre Rousselot SJ10 – dade, culpa e outras, e naturalmente (Nota da IHU On-Line)
seguramente empreendeu o programa também sobre a questão do conheci- 15 Herbert Vorgrimler (1929): foi um dos
esboçado na resposta anterior. As pala- mento de Deus e as outras questões colaboradores mais íntimos de Rahner, a
quem sucedeu como catedrático de Dog-
vras-chave para isso são a dinâmica do metafísicas fundamentais), que cer- mática e História dos Dogmas na Univer-
processo cognitivo, a abertura do es- tamente contêm um trabalho em ter- sidade de Münster. Publicamos uma entre-
pírito humano para a transcendência, mos do pensamento filosófico – como vista com H. Vorgrimler na IHU On-Line nº
97, de 19-04-2004, sob o título Karl Rah-
que implica uma relacionalidade ime- Tomás de Aquino e muitos outros teó- ner: teólogo do Concílio Vaticano nascido
diata com Deus, e metodologicamente logos, cuja “filosofia” só pode ser de- há 100 anos. Disponível em http://bit.
a abordagem filosófico-transcendental preendida de seu trabalho teológico. ly/1llijLn. (Nota da IHU On-Line)
16 Hans Küng (1928): teólogo suíço, pa-
que parte do sujeito. dre católico desde 1954. Foi professor na
O fato de ter estudado com Mar- IHU On-Line – Quais foram os Universidade de Tübingen, onde também
tin Heidegger certamente influenciou a frutos do debate de Rahner com os dirigiu o Instituto de Pesquisa Ecumênica.
Foi consultor teológico do Concílio Vatica-
natureza de seu filosofar. Alguns temas teólogos franceses (os dominica- no II. Destacou-se por ter questionado as
nos Congar11 e Chenu12, e os jesuítas doutrinas tradicionais e a infalibilidade do
Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar como
8 Joseph Maréchal (1878-1944): padre teólogo em 1979. Nessa época, foi nomea-
jesuíta belga, filósofo e psicólogo no Ins- 11 Yves Marie-Joseph Congar do para a cadeira de Teologia Ecumênica.
tituto Superior de Filosofia da Universi- (1904:1995): teólogo dominicano fran- Atualmente, mantém boas relações com
dade de Leuven. A sua obra fundamental cês, conhecido por sua participação no a Igreja e é presidente da Fundação de
é Le point de départ de la métaphysique: Concílio Vaticano II. Foi duramente per- Ética Mundial, em Tübingen. Um escritó-
leçons sur le développement historique seguido pelo Vaticano, antes do Con- rio da Fundação de Ética Mundial funciona
et théorique du problème de la connais- cílio, por seu trabalho teológico. A isso dentro do Instituto Humanitas Unisinos
sance, (O ponto de partida da metafísica: se refere o seu confrade Tillard quando desde o segundo semestre do ano passa-
lições sobre o desenvolvimento histórico fala dos “exílios”. Sobre Congar a IHU do. Küng dedica-se, atualmente, ao estu-
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e teórico do problema do conhecimento, On-Line publicou um artigo escrito por do das grandes ‘religiões, sendo autor de
em tradução livre) 5 vols, (Bruges-Lou- Rosino Gibellini, originalmente no site da obras como A Igreja Católica, publicada
vain, 1922–47). (Nota da IHU On-Line) Editora Queriniana, na editoria Memória pela editora Objetiva, e Religiões do Mun-
9 Maurice Blondel (1861-1949): filósofo da edição 150, de 08-08-2005, lembrando do: em Busca dos Pontos Comuns, pela
francês. Mestre de conferências na Uni- os dez anos de sua morte, completados editora Verus. De 21 a 26 de outubro de
versidade de Lille, 1895-1896. Professor em 22-06-1995. Também dedicamos a 2007 aconteceu o Ciclo de Conferências
em 1897 na Universidade de Aix-en-Pro- editoria Memória da 102ª edição da IHU com Hans Küng – Ciência e fé – por uma
vence, permanecendo no posto até sua On-Line, de 24-05-2004, à comemoração ética mundial, com a presença de Hans
enfermidade em 1927. Conhecido por sua do centenário de nascimento de Congar. Küng, realizado no campus da Unisinos e
filosofia da ação, que partia de um in- (Nota da IHU On-Line) da UFPR, bem como no Goethe-Institut
tuicionismo inicial, irrompendo para um 12 Marie-Dominique Chenu (1895-1990): Porto Alegre, na Universidade Católica de
espiritualismo metafísico antipositivista, teólogo dominicano francês, foi professor Brasília, na Universidade Cândido Men-
com aparência neoplatônica e tomista, de teologia medieval (1920-1942) e di- des do Rio de Janeiro e na Universidade
eclética e misticista, com algumas mode- retor (1932-1942) da Universidade de Le Federal de Juiz de Fora – UFMG. Um dos
rações, e que o aproximam ao existen- Saulchoir (Bélgica), cargo do qual foi des- objetivos do evento foi difundir no Brasil
cialismo cristão. (Nota da IHU On-Line) tituído por decisão do Santo Ofício, que a proposta e atuais resultados do “Projeto
10 Pierre Rousselot (1878-1915): autor incluiu no Índice sua obra Le Saulchoir, de ética mundial”. Confira no site do IHU,
jesuíta do polêmico Les yeux de la foi e uma escola de teologia (1937). Em suas em http://migre.me/R0s7, a edição 240
teve uma grande influência sobre Henri obras, A fé na inteligência e O Evangelho da revista IHU On-Line, de 22-10-2007,
de Lubac, importante teólogo jesuíta do na história (1964), defende a liberdade na intitulada “Projeto de Ética Mundial. Um
século XX. (Nota da IHU On-Line) investigação teológica e na ação missioná- debate”. (Nota da IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


Albert Raffelt – Neste caso é pre- lado Über den Versuch eines Aufrisses IHU On-Line – Em que consisti-

Tema de Capa
ciso fazer várias distinções. Rahner to- einer Dogmatik, que Rahner publicou ram as principais divergências que
mou conhecimento bastante cedo da sozinho mais tarde (SW, v. 4, p. 404- Karl Rahner teve com Hans Küng?
teologia dos jesuítas franceses. Ele leu, 448), pois a trajetória de vida de von Albert Raffelt – Rahner incenti-
por exemplo, os trabalhos de Lubac e Balthasar seguiu outros rumos depois vou Küng, apoiou sua tese de douto-
também os resenhou e louvou (SW, de ele sair da Companhia de Jesus. A rado por meio de um grande ensaio,
v. 4, p. 484-485). Através de seu ami- obra Mysterium salutis: compêndio aceitou seu livro Strukturen der Kirche
go Hans Urs von Balthasar havia mais de dogmática histórico-salvífica (2. em sua série Quaestiones disputatae,
uma ligação com essa teologia. Na dis- ed., Petrópolis, 1978) se baseia nesse fundou junto com ele e outras pesso-
cussão em torno da nouvelle théolo- esboço. Por isso, Rahner ficou profun- as a revista Concilium, entre outras
gie, ele tentou produzir uma mediação damente surpreendido com a crítica coisas. Rahner não pôde aceitar o li-
com a “teologia de escola” neoescolás- incisiva de von Balthasar em seu livro vro Unfehlbar? [Infalível?] de Küng,
tica (“existencial sobrenatural”). Penso Cordula oder der Ernstfall (1966), que porque, em sua opinião, neste caso
que ao menos para a eclesiologia e a levou a um alheamento que nunca se abandonou o terreno da interpre-
doutrina da graça se pode verificar mais foi superado, embora também tação católica dos dogmas. A con-
uma grande proximidade nesse caso. mais tarde tenha havido colaboração frontação com Küng acabou levando
Vejo menos ligações diretas com em diversas publicações. a um desfecho conciliatório. Mas em
os dominicanos. Naturalmente as pu- Johann Baptist Metz sempre foi termos de conteúdo as divergências
blicações dos teólogos mencionados considerado o mais especulativo dis- permaneceram. A análise mais exata
influenciaram Rahner. Mas ele buscou cípulo de Rahner. Por um lado, sua tem de mostrar até que ponto essas
o contato direto com iniciativas dos crítica à teologia transcendental de divergências podem ser superadas. O
dominicanos franceses na pastoral Rahner o surpreendeu. Assim, quando próprio Rahner levou muito longe a
(no esboço do Handbuch der Pasto- Metz escreve: “A doutrina da fé trans- relativização de uma teologia da infa-
raltheologie). Naquela época, entre- cendental [...] não carrega por demais libilidade extrema – Küng pressupõe
tanto, isso era difícil, pois as medidas os traços de uma gnosiologia elitista e uma teologia dessas como pano de
tomadas por Roma contra os sacerdo- idealista?” (Metz, Glaube in Kirche und fundo de sua crítica ao dogma da infa-
tes operários tornavam suspeitas al- Gesellschaft, Mainz, 1977, p. 141). Por libilidade – em seu ensaio Zum Begriff
gumas iniciativas pastorais, de modo outro lado, Rahner levou a crítica a sé- der Unfehlbarkeit in der katholischen
que provavelmente isso não pode ser rio e refletiu sobre ela. Contudo, tam- Theologie [O conceito de infalibilida-
comprovado no projeto posterior do bém se podem fazer algumas objeções de na teologia católica] (SW, v. 22/2,
livro Handbuch der Pastoraltheologie. à crítica de Metz. Basta mencionar o p. 689-703). No engajamento ecumê-
Já a relação com os teólogos ale- seguinte: Rahner fez uma teologia rela- nico ambos estão muito próximos.
mães mencionados deve ser definida cionada com a sociedade muito antes
de modo bem diferente. Havia uma do surgimento da chamada “teologia IHU On-Line – E quais foram
grande proximidade com Hans Urs política” e, em minha opinião, fez isso os pontos fundamentais do rom-
von Balthasar, e um paralelismo no de maneira muito mais concreta, como pimento teológico entre Rahner e
caso dos estudos dos primeiros pa- já foi dito no início. É só comparar o Ratzinger18?
dres da igreja (por exemplo, ambos se volume SW 10, intitulado Kirche in den Albert Raffelt – Não é fácil iden-
ocuparam ao mesmo tempo com a te- Herausforderungen der Zeit [Igreja nos tificar uma ruptura teológica entre
ologia monacal de Evágrio Pôntico17). desafios do tempo]. Rahner e Ratzinger. Existem, em minha
A intenção comum de elaborar uma Herbert Vorgrimler foi, durante opinião, várias divergências em termos
grande dogmática científica levou até muito tempo, um dos mais próximos de política eclesiástica. Elas se devem,
ao fechamento de um contrato com colaboradores de Rahner e decerto em parte, a razões pessoais. Isso tem
tinha um relacionamento particular- a ver com o fato de que o cardeal Rat-
uma editora. Entretanto, neste caso só
mente estreito com ele. Ambos tam- zinger e o então secretário da Educa-
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se chegou até o esboço comum intitu-
bém cooperaram como autores (Klei- ção da Baviera Hans Maier impediram
nes theologisches Wörterbuch [SW, v. a convocação de Johann Baptist Metz,
17 Evágrio Pôntico (345-397): monge
nascido na Capadócia, em Ibora, no Pon- 17/1, p. 461-873]); eles se empenha-
to, por isso chamado de Pôntico. Passou ram pela introdução do diaconato 18 Joseph Ratzinger (1927): teólogo
16 anos de sua vida no deserto do Egito, alemão, de 2005 a 2013 assumiu o tro-
como anacoreta. Foi discípulo e amigo permanente na Igreja Católica (SW, no de Pedro sob o nome de Papa Bento
de São Gregório de Nazianzo, sendo or- v. 16, 534-536); Vorgrimler foi o edi- XVI e hoje é chamado de Papa Emérito.
denado diácono por ele. Conduziu uma tor das Pregações bíblicas (São Paulo, Autor de uma vasta e importante obra
das grandes correntes da espiritualidade teológica, tem como um dos seus livros
bizantina. Para Evágrio, a ascensão es- 1968; em alemão: SW, v. 14, p. 221- fundamentais Introdução ao cristianismo
piritual consiste em contemplar a Deus 326), que destroem a lenda de um (São Paulo: Loyola, 2006). Renunciou em
em si mesmo, de modo que se vê a Deus Rahner que estaria distante da Bíblia fevereiro de 2013 ao pontificado. Sobre
como num espelho. O caminho consiste esse fato confira o seguinte material
em despojar-se dos pensamentos apaixo- (em SW, v. 1, haverá outros testemu- publicado pelas Notícias do Dia do site
nados, depois, mesmo dos pensamentos nhos disso). As cartas francas que do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
simples, até a completa nudez de ima- Rahner escreveu a Vorgrimler durante em 03-03-2013: Conjuntura da Semana.
gens e conceitos. Escreveu diversas obras Bento XVI. As primeiras avaliações de um
sobre oração, a vida monástica e a vida o Concílio mostram toda a familiarida- pontificado, disponível em http://bit.ly/
ascética. (Nota da IHU On-Line) de que havia entre eles. XkPinw. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 13


discípulo e amigo de Rahner, para a rada” na igreja, Rahner será a base cia da graça e do objetivo da autoco-
Tema de Capa
Universidade de Munique (quanto a dela e voltará a ser um autor de refe- municação de Deus – podem-se de-
isso, SW, v. 31, p. 464-475). Isso tem a rência. A ascensão do Papa Francisco senvolver todos os temas da teologia
ver, ainda, com uma visão diferente de poderia ser esse momento? Por quê? de Rahner, desde a antropologia até a
questões sociais; também com ques- Albert Raffelt – Existe um belo doutrina da trindade. Por isso também
tões do engajamento político dentro texto de Johann Baptist Metz e Karl há, em Karl Rahner, uma unidade tão
do espaço eclesiástico entre as comu- Rahner escrito antes da eleição papal estreita entre espiritualidade e teolo-
nidades de estudantes universitários de 1978 e intitulado Por um papa dos gia científica – e entre publicações es-
(quanto a isso, SW, v. 24/2, p. 820- pobres e oprimidos deste mundo: carta pirituais e acadêmicas!
832). Disso provinha também a avalia- aberta aos cardeais alemães (SW, v. 28, Seria possível mencionar exem-
ção diferente da teologia da libertação p. 74s.). Nela eles afirmam o seguinte: plos. Assim, no texto intitulado All-
latino-americana, que Rahner – bem “O futuro papa de nossa igreja preci- tägliche Dinge [Coisas do cotidiano]
ao contrário de Ratzinger – defendeu sa ser – não apenas simbolicamente (SW, v. 23, p. 475-487), Rahner procura
diversas vezes. A crítica incisiva de Rat- – um papa dos pobres e oprimidos do evidenciar vestígios da transcendência
zinger ao plano de uma possível unifi- mundo: não um papa burguês cosmo- em atos humanos básicos como andar,
cação das igrejas apresentado por Karl sentar, ver, rir, etc. O que impressionou
polita, iluminista; não um papa focado
Rahner e Heinrich Fries19 (SW, v. 27, p.
em assegurar a subsistência interna da a mim foi – por assim dizer, na outra
286-396; contra isso, Ratzinger, Inter-
igreja; e tampouco um papa focado em extremidade da reflexão em compara-
nationale katholische Zeitschrift, v. 12,
promover remendos sociais. O partida- ção com os fenômenos do cotidiano,
p. 568-582, 1983) também foi formu-
rismo dele pelos pobres e oprimidos em meio à “alta teologia” – a pequena
lada publicamente. Por trás disso se
seria expressão do seguimento de Je- doutrina da trindade que se encon-
podem, naturalmente, identificar di-
vergências eclesiológicas; ainda assim, sus, para o qual os aflitos eram os pri- tra no Curso fundamental da fé (4, nº
elas se encontram num terreno co- vilegiados. Um papa assim colocaria de 4), com sua explicação da proposição
mum. Na área propriamente teológica novo num contexto prático o programa de que a trindade histórico-salvífica
há, finalmente, estilos muito diversos. da santidade cristã e do amor resoluto (econômica) e a imanente são uma só
Rahner opera no marco da “teologia pelos ‘mais pequeninos dos irmãos’, trindade; o que ele diz sobre a proximi-
de escola” neoescolástica e procura le- o programa da oração e da luta, e po- dade do Espírito Santo “no mais íntimo
vá-la adiante, situando-se na tradução deria tornar visível algo da relevância centro da existência”, a presença do
escolástica jesuítica. Ratzinger se for- política de uma solidariedade isenta de Logos na história concreta e, além dis-
mou na teologia alemã em sua versão ódio – chegando até a tolice da cruz”. O so, as afirmações sobre Deus Pai como
corrente em Munique, menos com- programa do papa Francisco em Evan- “o fundamento e origem inapreensível
prometida com a neoescolástica. Mas gelii gaudium20 é muito semelhante a de sua chegada no Filho e no Espírito”
não se deveriam exacerbar demais as esta conclamação daquela época. (SW, v. 26, p. 135). Isso parece compli-
divergências. Rahner também iniciou cado ao ser resumido mais uma vez
com um amplo estudo dos padres da IHU On-Line – Em que medida o assim, mas essa é uma teologia que se
igreja, ocupando-se com Orígenes, “coração” da teologia de Rahner é a pode orar quando se medita sobre o
Clemente de Alexandria, Agostinho e experiência da graça? que ela diz. Também se poderia men-
outros, não sendo, portanto, simples- Albert Raffelt – É possível abordar cionar aqui o pequeno escrito intitula-
mente um neoescolástico. Além disso, essa pergunta a partir de dois lados. do Erfahrung des Geistes [Experiência
ele tem muito mais abertura para a No primeiro texto sobre a oração que do Espírito] (SW, v. 29, p. 38-57). Mas
modernidade do que Ratzinger. Mas, Rahner publicou quando tinha 20 anos também haveria abordagens bem dife-
como mostra a resenha que Ratzinger (SW, v. 1, p. 3-4), ele afirma, fazendo rentes para deixar clara a centralidade
escreveu (Theologische Revue, v. 74, referência à Epístola de Tiago, que da experiência da graça. Penso, por
p. 177-186, 1978) sobre o Curso fun- Deus se aproxima da pessoa que ora, exemplo, em algumas contribuições
damental da fé: introdução ao concei- cristológicas.
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comunica-se à sua criatura e a envolve


to de cristianismo de Karl Rahner, um em seu amor e louvor. E em sua última
respeita o labor teológico do outro e grande palestra, 60 anos depois, Rah- IHU On-Line – Como o evento do
não se constata – ao contrário do que ner afirma que a autocomunicação de Holocausto repercute na Teologia de
ocorre no caso das afirmações sobre Rahner?
Deus se encontra no centro de sua te-
política eclesiástica – a existência de Albert Raffelt – Os traços bási-
ologia (SW, v. 25, p. 47-57). A partir de
antagonismo. cos da teologia de Karl Rahner foram
ambos os lados dessa realidade última
e una – do polo subjetivo da experiên- elaborados antes que ele pudesse se
IHU On-Line – Especialistas di- confrontar com o Holocausto. No fim
zem que, assim que houver uma “vi- da 2ª Guerra Mundial ele já tinha 41
20 Evangelli Gaudium: (A alegria do
Evangelho. Sobre o anúncio do Evangelho anos. O horror desse acontecimento
19 Heinrich Fries (1911-1998): foi um no mundo atual), é a exortação apostóli-
dos mais comprometidos teólogos católi- ca do Papa Francisco, publicada no dia 24 também só se tornou paulatinamen-
cos do movimento ecumênico na segunda de novembro de 2013. Ela constitui-se no te claro em toda a sua extensão. Os
metade do século XX. Foi professor de documento programático do pontificado processos de Auschwitz – lembro-me
teologia fundamental e teologia ecumê- do Papa atual. A íntegra do documento
nica na Universidade de Munique. (Nota foi publicada pelas Edições Loyola e Pau- dos noticiários sobre eles na época
da IHU On-Line) lus, 2013. (Nota da IHU On-Line) da minha juventude – só tiveram lu-

14 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


gar a partir de 1963, quando Rahner nada mais sobre a teologia de Rahner tensivamente como mestre espiritual

Tema de Capa
já tinha quase 60 anos. Foi só nessa em termos de conteúdo. Mas talvez – afinal, os livros dele sobre o assunto,
época que teólogos começaram a re- seja bom fazer ainda uma breve refe- como Trevas e luz na oração (São Pau-
fletir sobre a relevância teológica do rência ao tema “Rahner e o Concílio lo, 1961) e Apelos ao Deus do silêncio
acontecimento – no caso de Johann Vaticano II”, pois nos volumes SW 21/1 (Lisboa, 1968), estão entre suas obras
B. Metz a confrontação intensiva com e 21/2 foram publicados agora, pela mais disseminadas em nível interna-
ele ocorreu na década de 1980. primeira vez, todos os textos de Rah- cional; belos são também os pequenos
Rahner se posicionou sobre ner sobre o assunto, desde as primei- escritos, há pouco reeditados, Por que
questões concretas, como na discus- ras reações e os pareceres da época da razão nos deixa Deus sofrer? (Braga,
são sobre a prescrição desses crimes preparação do concílio para o cardeal 2011) e, muito atual face ao jubileu do
(SW, v. 24, p. 873). Posicionou-se tam- König (Viena), passando pelos esboços Concílio, O Concílio – começar de novo
bém em sua Introdução ao texto Dein elaborados para os bispos alemães – (Braga, 2013). Naturalmente, a obra
verkannter Bruder [Teu irmão não em parte, em conjunto com Ratzinger, teológica em seu conjunto continua
reconhecido], de André Neher21 (SW, mas principalmente com os teólogos sendo uma tarefa para o pensamen-
v. 27, p. 31-35). Trocou ideias com jesuítas alemães A. Grillmeier24, O. to de todo teólogo também hoje em
Friedrich Georg Friedmann22 sobre o Semmelroth25, o bispo e depois cardeal dia. Olhando-se a lista da bibliografia
diálogo judaico-cristão (SW, v. 27, p. H. Volk26 e outros –, até os textos inter- secundária, com mais de 4.500 títulos
43-48). Um de seus últimos livros, Heil pretativos sobre o evento do Concílio. (disponível em: http://dspace.ub.uni-
von den Juden? [A salvação vem dos Como quase ao mesmo tempo foram -freiburg.de/handle/25/2), vê-se que
judeus?], é um diálogo com o filósofo apresentados, nos Gesammelte Schrif- ele continua sendo o mais discutido
e teólogo judeu Pinchas Lapide23 (SW, ten [Escritos completos], os trabalhos teólogo católico do passado mais re-
v. 27, p. 397-453). Outros vestígios são de Joseph Ratzinger sobre o Concílio, cente. Quando a edição de suas obras
apenas indiretos quando ele se ocu- agora é possível avaliar, contra as len- completas, Sämtliche Werke, com
pou com o tema da teodiceia. das de que teria havido uma manipula- quase 40 volumes, estiver concluída
Não se deve limitar o tema a re- ção do Concílio (R. M. Wiltgen, The Rhi- – o que deve acontecer em breve –, o
ferências diretas ao Holocausto, mes- ne flows in the Tiber, New York, 1967), conjunto de sua obra também estará
mo que neste caso certamente haja o grande trabalho real desses teólogos disponível para leitura. A primeira edi-
lacunas e oportunidades não apro- para o concílio. Para quem busca uma ção em língua estrangeira está sendo
veitadas. Felizmente os últimos papas interpretação do trabalho de Rahner publicada atualmente na França (Œu-
trataram intensivamente do diálogo para e sobre o Concílio, remeto à pa- vres, Paris: Éd. du Cerf, 2011ss). É de se
entre judeus e cristãos e o papa Fran- lestra sobre Rahner de Günther Wassi- esperar que outras áreas linguísticas se
cisco retomou esse tema de forma lowsky, Als die Kirche Weltkirche wurde sigam a ela.
ainda mais intensiva (cf. o Osservatore (disponível em: www.freidok.uni-frei-
Romano de 17 jan. 2014). burg.de/volltexte/8551/). A carta nela Referência
citada de Karl Rahner a seu irmão Hugo SW = Karl Rahner, Sämtliche Werke,
IHU On-Line – Gostaria de sobre o trabalho do Concílio (“Es ist Freiburg i. Br.: Herder, 1995ss; a con-
acrescentar algum aspecto não merkwürdig bei einem Konzil”: Bericht clusão está prevista para 2015 – até
questionado? und Ermutigung für den älteren Bruder agora foram publicados 29 volumes
Albert Raffelt – As perguntas Hugo Rahner SJ, Stimmen der Zeit, n. em 35 tomos, e um outro volume está
eram de caráter muito fundamental. 230, p. 590-596, 2012) contém, aliás, no prelo (SW, v. 1). Faltam ainda o vo-
Por isso, não gostaria de acrescentar também uma referência à colaboração lume 5 (De gratia Christi) e o volume
com os bispos brasileiros. com os índices, SW, v. 32). Um panora-
21 André Neher (1914-1988): foi um eru- Além disso, gostaria apenas de ex- ma se encontra em www.ub.uni-frei-
dito e filósofo judeu. Professor no Collège pressar minha esperança de que tam- burg.de/fileadmin/ub/referate/04/
Erckmann-Chatrian em Phalsbourg, e no
bém no futuro Karl Rahner seja lido in- rahner/rahnerma.htm.
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Liceu Kléber, em Estrasburgo. Durante a
Segunda Guerra Mundial, viveu em Brive-
la-Gaillarde, onde ele era um membro
da comunidade do Rabino David Feu-
erwerker. Após a guerra, tornou-se pro-
24 Aloys Grillmeier (1910-1998): foi um
padre jesuíta alemão, teólogo e foi feito
Leia mais...
fessor na Universidade de Estrasburgo, cardeal-diácono da Igreja Católica, em
antes de se mudar com sua esposa, Renée 1994, pelo Papa João Paulo II. (Nota da
• “Deus é o homem e o será eterna-
Neher-Bernheim, para Jerusalém, Israel. IHU On-Line) mente”. Entrevista com Albert Ra-
(Nota da IHU On-Line) 25 Otto Semmelroth: professor de teo-
22 Georg Friedrich Friedmann (1912- logia dogmática na Faculdade Filosófico- ffelt Publicada na edição 102 da IHU
2008): foi um historiador cultural alemão Teológico de St. Georgen. O estudo “A On-Line, de 24-05-2004, disponível
e um grande representante do diálogo Igreja como sacramento primordial”
entre judeus e cristãos na Alemanha. (Frankfurt am Main 1953) foi considerado em http://bit.ly/1qHHtED;
(Nota da IHU On-Line) inovador para a recuperação da compre- • Rahner e a inovação do pensamento
23 Pinchas Lapide (1922-1997): foi um ensão sacramental da Igreja. Ele foi um
teólogo e escritor judeu e historiador. teólogo influente no Concílio Vaticano II. teológico. Entrevista com Albert Ra-
Foi diplomata israelense de 1951 a 1969 (Nota da IHU On-Line) ffelt Publicada na edição 297 da IHU
e, neste período, cônsul em Milão. Teve 26 Hermann Volk (1903-1988): teólogo
relevante papel no reconhecimento in- alemão, foi bispo Mainz de 1962-1982, e On-Line, de 15-06-2009, disponível
ternacional do Estado de Israel. Publicou elevado ao cardinalato em 1973. (Nota em http://bit.ly/1qHHSae.
cerca de 35 obras. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 15


Karl Rahner, a vida em busca
Tema de Capa

de Deus
Professor Herbert Vorgrimler apresenta o pensamento e a obra de Rahner em
paralelo com a vida do teólogo alemão

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução Walter Schlupp

“O
tema da busca de Deus e dos do sua admissão aos ministérios eclesiásticos,
problemas de Deus é o tema por um ecumenismo verdadeiro, particular-
que permeia e move a vida e o mente com os cristãos protestantes, incluindo
pensamento de Rahner, desde sua juventude o reconhecimento de seus ministérios, pelo
teológica até sua morte”, explica o professor esforço por um conhecimento aprofundado da
doutor Herbert Vorgrimler em entrevista por Sagrada Escritura”, acentua Herbert Vorgrim-
e-mail à IHU On-Line. “Uma parte substancial ler. Despido de vaidades eclesiásticas, Rahner
do legado conquistado por Rahner é a liber- pensava o papel do sacerdote a partir de dois
dade de expressão na igreja. Existem diferen- eixos: ser servo de Jesus Cristo e servidor de
ças qualitativas entre a teologia nas univer- sua palavra. O teólogo alemão considerava
sidades estatais e a teologia nas instituições “repugnantes exaltações ideológicas da con-
de ensino superior puramente eclesiásticas. dição de sacerdote do tipo “ser um segundo
Em muitos lugares existe um diálogo inten- Cristo”, “tornar Jesus Cristo presente como
sivo, também institucional, entre as ciências interlocutor da comunidade”, “atuar no lugar
naturais e a teologia que é muito importante de Jesus Cristo”, porque fazem com que a vida
para a validade da teologia na esfera pública”, se baseie numa mentira”, recorda Vorgrimler.
argumenta. Herbert Vorgrimler é teólogo docente na
A postura hospitaleira de Karl Rahner com Universidade de Münster, Alemanha, autor
relação ao outro, ao diferente, levou-o a uma de dezenas de obras e conhecido por sua co-
postura de diálogo, inclusive com os leigos. laboração, em 1965, com Karl Rahner na pro-
“Ele [Rahner] atuou em prol do engajamento dução do livro Theological Dictionary (Cross-
dos chamados leigos em pé de igualdade na road Pub Co; 2 edition,1985).
igreja, pela valorização das mulheres, incluin- Confira a entrevista.
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IHU On-Line – Quais são os prin- sidade, é o que, ao mesmo tempo, meia e move a vida e o pensamento
cipais entrelaçamentos entre vida, está no mais exterior e no mais íntimo de Rahner, desde sua juventude teo-
obra e pensamento de Karl Rahner? das mil realidades fragmentadas que lógica até sua morte. Na citação aci-
Herbert Vorgrimler – O mais im- chamamos de mundo de nossa expe- ma, Rahner fala do amor ‘adorante’
portante e duradouro entrelaçamento riência. Esse mistério está aí, se mani- a Deus, o mistério eterno. Esse tema
é o tema do mistério incompreensível, festa ao silenciar; deixa serenamente constitui a unidade de sua vida e seu
infinito que chamamos de “Deus”. Nas falar aqueles que declaram que falar pensamento. Mas e a obra de Karl
palavras do próprio Rahner: “O misté- dele só produz palavrório sem senti- Rahner? Ele não apresentou uma obra
rio eterno me envolve e penetra, o do. No momento em que não se ama, coesa e conexa. Publicações substan-
mistério infinito, que é completamen- em atitude de adoração, esse mistério ciais se ocupam com o tema da ora-
te diferente dos resquícios juntados que tudo envolve silenciosamente, ção. O primeiro texto impresso dele,
do que por enquanto ainda não se ele se torna um escândalo”. do ano de 1925, tem o título “Por
sabe e ainda não se experimentou, o O tema da busca de Deus e dos que a oração é necessária para nós”.
mistério que, em sua infinitude e den- problemas de Deus é o tema que per- A uma coletânea de orações de 1937,

16 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


que teve uma enorme repercussão,
“A busca de Deus ram muito mais raras desde o Concílio

Tema de Capa
ele deu o título “Palavras para dentro Vaticano II5.
do silêncio”. Uma compilação de ho-
milias foi publicada no ano de 1949 e dos problemas IHU On-Line – A partir do legado
sob o título “A necessidade e a bênção desse teólogo, qual é o lugar da Teo-
da oração”. de Deus é o tema logia em nosso tempo?
O jovem docente Karl Rahner ti- Herbert Vorgrimler – Uma par-
nha um plano de publicar, junto com que permeia e te substancial do legado conquistado
companheiros de jornada, uma expo- por Rahner é a liberdade de expressão
sição do conjunto da fé cristã em no- move a vida e o na igreja. Existem diferenças qualitati-
vas entre a teologia nas universidades
vas perspectivas que deveria ter o tra-
dicional título “Dogmática”. Quando
Hans Urs von Balthasar (1905-1988),
pensamento de estatais e a teologia nas instituições
de ensino superior puramente eclesi-
depois de um assentimento inicial,
desistiu de participar desse projeto,
Rahner” ásticas. Em muitos lugares existe um
diálogo intensivo, também institucio-
pois tinha problemas com a Ordem nal, entre as ciências naturais e a te-
dos Jesuítas, da qual fazia parte na ologia que é muito importante para a
época, e quando o jovem e talento- Andreas R. Batlogg4 SJ) está editando validade da teologia na esfera pública.
so jesuíta Alfred Delp1 (1907-1945) as Sämtliche Werke [Obras completas]
foi executado pelos asseclas de Hi- dele, que compreenderão 32 volumes IHU On-Line – Qual é a peculiari-
tler2 porque fizera parte do grupo de (com previsão de conclusão em 2014). dade do projeto teológico de Rahner
conspiradores do 20 de julho de 1944, como um todo?
Rahner suspendeu esse plano. Assim IHU On-Line – Qual é o seu iti- Herbert Vorgrimler – Correspon-
surgiram os 14 volumes de Schriften nerário intelectual até chegar à obra dendo ao interesse dos ouvintes e lei-
zur Theologie [Escritos de teologia], “Escritos de Teologia”? tores, Rahner partia das experiências
uma coletânea de escritos ocasionais Herbert Vorgrimler – Esse itine- das pessoas, em que buscava vestígios
que tiveram uma história diversifica- rário está marcado por seu ingresso, das experiências de Deus. Sempre que
da. Um grupo de discípulos de Rahner aos 18 anos, na “Companhia de Je-
(Karl Lehmann, Johann Baptist Metz, sus”, a Ordem dos Jesuítas. Rahner 5 Concílio Vaticano II: convocado no dia
11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorre-
Albert Raffelt3, Herbert Vorgrimler, entrou deliberadamente nessa ordem ram quatro sessões, uma em cada ano.
– e não na dos beneditinos – e per- Seu encerramento deu-se a 08-12-1965,
maneceu jesuíta de modo consciente pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por
1 Alfred Delp (1907-1945): padre jesuíta este Concílio estava centrada na visão
alemão executado por sua resistência ao e fiel até sua morte em 1984. da Igreja como uma congregação de fé,
regime nazista. (Nota da IHU On-Line) substituindo a concepção hierárquica do
2 Adolf Hitler (1889-1945): ditador aus- Concílio anterior, que declarara a infali-
tríaco. O termo Führer foi o título adota- IHU On-Line – Como era a Teolo- bilidade papal. As transformações que in-
do por Hitler para designar o chefe máxi- gia à época em que Rahner ingressou troduziu foram no sentido da democrati-
mo do Reich e do Partido Nazista. O nome zação dos ritos, como a missa rezada em
significa o chefe máximo de todas as or-
na Companhia de Jesus? O que mu- vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis
ganizações militares e políticas alemãs, e dou de lá para cá? dos diferentes países. Este Concílio en-
quer dizer “condutor”, “guia” ou “líder”. Herbert Vorgrimler – Ao passo controu resistência dos setores conserva-
Suas teses racistas e anti-semitas, bem dores da Igreja, defensores da hierarquia
como seus objetivos para a Alemanha que as disciplinas históricas tinham e do dogma estrito, e seus frutos foram,
ficaram patentes no seu livro de 1924, grande liberdade na igreja, as siste- aos poucos, esvaziados, retornando a
Mein Kampf (Minha Luta). No período Igreja à estrutura rígida preconizada pelo
máticas, especialmente a dogmática
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da ditadura de Hitler, os judeus e outros Concílio Vaticano I. O Instituto Humani-
grupos minoritários considerados “inde- e a teologia moral, encontravam-se tas Unisinos – IHU promoveu, de 11 de
sejados”, como ciganos e negros, foram agosto a 11-11-2005, o ciclo de estudos
perseguidos e exterminados no que se sob a mais rigorosa supervisão do ma- Concílio Vaticano II – marcos, trajetórias
convencionou chamar de Holocausto. Co- gistério do Vaticano. O que estava em e perspectivas. Confira a edição 157 da
meteu o suicídio no seu Quartel-General IHU On-Line, de 26-09-2005, intitulada
(o Führerbunker) em Berlim, com o Exér-
vigor era a “teologia escolástica” em Há lugar para a Igreja na sociedade con-
cito Soviético a poucos quarteirões de forma de teses e distinções, e estava temporânea? Gaudium et Spes: 40 anos,
distância. A edição 145 da IHU On-Line, em vigor com a aprovação da igreja disponível em http://bit.ly/mT6cyj. Ain-
de 13-06-2005, comentou na editoria Fil- da sobre o tema, a IHU On-Line produziu
me da Semana, o filme dirigido por Oliver oficial. As medidas tomadas pela Cú- a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do
Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas ria romana contra teólogos se torna- Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em
de Hitler, disponível em http://bit.ly/ http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edi-
ihuon145. A edição 265, intitulada Nazi- ção 401, de 03-09-2012, intitulada Con-
simo: a legitimação da irracionalidade e cílio Vaticano II. 50 anos depois, disponí-
da barbárie, de 21-07-2008, trata dos 75 IHU On-Line. vel em http://bit.ly/REokjn, e a edição
anos de ascensão de Hitler ao poder, dis- 4 Andreas R. Batlogg (1962): é um te- 425, de 01-07-2013, intitulada O Concílio
ponível em http://bit.ly/ihuon265. (Nota ólogo austríaco, jesuíta, editor-chefe da Vaticano II como evento dialógico. Um
da IHU On-Line) revista Stimmen der Zeit e diretor cientí- olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu
3 Mais informações sobre ele, confira fico do arquivo Karl Rahner. (Nota da IHU Círculo, esta disponível em http://bit.
a entrevista publicada nesta edição da On-Line) ly/1cUUZfC. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 17


possível, abria mão do jargão da teo-
“Uma parte relações do cristianismo com o judaís-
Tema de Capa
logia acadêmica. Ele não queria dizer mo e o islã.
coisas novas, mas também não dizer
coisas antigas de maneira antiga, e
substancial IHU On-Line – Qual é a influên-
sim dizer o antigo de maneira nova.
Para ele, os escritos espirituais eram
do legado cia da filosofia de Heidegger6 no pen-
samento de Rahner?
mais importantes do que seus trata-
dos teológicos.
conquistado Herbert Vorgrimler – Rahner
não se contava entre os discípulos de

IHU On-Line – Em que medida


por Rahner é Heidegger na filosofia e também não
queria que se falasse da existência de
se apresenta a sua consciência de
responsabilidade teológica frente às
a liberdade de uma “escola católica de Heidegger”.
Por ocasião do 70º aniversário de
necessidades religiosas do tempo? expressão na Heidegger, ele escreveu o seguinte:
Herbert Vorgrimler – Rahner
queria ajudar toda pessoa a des- igreja” “Mas ele nos ensinou uma coisa: que
em tudo podemos e devemos buscar
cobrir o mistério (mistagogia) que
aquele mistério indizível que dispõe
vive nela cheio de amor; por isso,
correspondência com eles. Tinha rela- de nós, mesmo que quase não o pos-
encontrava-se com toda pessoa com
ções especiais com um lar dos jesuítas samos nomear com palavras.”
o máximo de respeito e tolerância,
sem condenação. Como teólogo, en- para jovens em Viena, em que viviam
jovens que tinham se envolvido com IHU On-Line – Por outro lado,
sinou a “vontade salvífica universal
a criminalidade em diversos níveis e, como se deu a busca de diálogo entre
de Deus”. Ele estava convencido de
por isso, também tinham estado na Rahner e a filosofia moderna como a
que Deus não perde nenhuma pes-
soa. Voltarei a esta questão na pe- prisão, bem como jovens dependen- kantiana, por exemplo?
núltima resposta. tes de drogas. Mas ele também se Herbert Vorgrimler – Nos anos
preocupava muito com a “cura do cor- 1930, Rahner se ocupou intensiva-
IHU On-Line – Por outro lado, po”, com as necessidades materiais mente com a filosofia de Kant, por ins-
como se manifesta a preocupação das pessoas. Como religioso pobre, piração de Joseph Maréchal SJ (1878-
genuinamente pastoral e querigmáti- ele próprio não tinha dinheiro, mas 1944), da Bélgica. Desde a década de
ca de sua teologia? podia estimular outras pessoas a dar 1950 até sua morte, ele participou
Herbert Vorgrimler – Rahner e ajudar. Na última palestra de sua
estava sempre disposto a travar “con- vida, aos 80 anos, pediu aos ouvintes 6 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
versas espirituais”, que as pessoas doações para a aquisição de uma mo- po (1927). A problemática heideggeriana
esperam de curas d’alma. Na “Com- tocicleta para um missionário atuante é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
Cartas sobre o humanismo (1947), Intro-
panhia de Jesus”, foi ordenado sacer- na África. dução à metafísica (1953). Sobre Heide-
dote da Igreja Católica. Para ele, ser gger, a IHU On-Line publicou, na edição
IHU On-Line – Qual é a contri- 139, de 02-05-2005, o artigo O pensa-
sacerdote tinha dois focos: ser servo mento jurídico-político de Heidegger e
de Jesus Cristo e servidor de sua pa- buição de Rahner para a abertura das Carl Schmitt. A fascinação por noções
lavra. Ele achava profundamente re- ideias surgidas a partir do Concílio fundadoras do nazismo, disponível para
download em http://bit.ly/ihuon139.
pugnantes exaltações ideológicas da Vaticano II? Sobre Heidegger, confira as edições 185,
condição de sacerdote do tipo “ser Herbert Vorgrimler – Para Rah- de 19-06-2006, intitulada O século de
Heidegger, disponível para download em
um segundo Cristo”, “tornar Jesus ner era decisiva a ideia de que a igreja
www.ihu.unisinos.br

http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-


Cristo presente como interlocutor da tinha de voltar a uma amplitude de 2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
trução da metafísica, que pode ser aces-
comunidade”, “atuar no lugar de Jesus coração e de espírito que era caracte- sada em http://bit.ly/ihuon187. Confira,
Cristo”, porque fazem com que a vida rística de seus primórdios. Assim, ele ainda, o nº 12 dos Cadernos IHU em
formação, intitulado Martin Heidegger.
se baseie numa mentira. Ele pregou atuou em prol do engajamento dos A desconstrução da metafísica, que pode
e interpretou o evangelho inúmeras chamados leigos em pé de igualdade ser acessado em http://bit.ly/ihuem12.
vezes. Particularmente importantes na igreja, pela valorização das mulhe- Confira, também, a entrevista concedida
por Ernildo Stein à edição 328 da revista
para seu serviço pastoral e querig- res, incluindo sua admissão aos minis- IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
mático eram, para ele, os exercícios térios eclesiásticos, por um ecumenis- em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
biologismo radical de Nietzsche não pode
inacianos. Durante sua vida, ele deu mo verdadeiro, particularmente com ser minimizado, na qual discute ideias de
esses exercícios para outras pessoas os cristãos protestantes, incluindo o sua conferência “A crítica de Heidegger
ao biologismo de Nietzsche e a questão
mais de 50 vezes. Via neles uma ex- reconhecimento de seus ministérios, da biopolítica”, parte integrante do ciclo
celente fonte da teologia. Ele buscava pelo esforço por um conhecimento de estudos Filosofias da diferença – pré-
evento do XI Simpósio Internacional IHU:
especialmente o diálogo com jovens, aprofundado da Sagrada Escritura. Ele O (des)governo biopolítico da vida huma-
e há dois livros que documentam sua se preocupava especialmente com as na. (Nota da IHU On-Line)

18 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


ativamente dos diálogos de uma enti-
“Ele [Rahner] Muitas vezes, ao mencionar esse

Tema de Capa
dade chamada “Paulus-Gesellschaft”, nome, Rahner acrescentava: “o cruci-
que reunia cientistas naturais, em
grande parte agnósticos, e teólogos.
atuou em prol ficado e ressurreto”. Em sua unidade
com Deus e em sua solidariedade in-
Apoiou os esforços feitos por essa do engajamento condicional com todos os seres huma-
nos, Jesus é o acontecimento da pro-
entidade junto ao papa para obter a
reabilitação do cientista Galileu Gali- dos chamados ximidade não mais anulável de Deus
lei7 (1564-1641), porque sua conde- para com o mundo. Ele manteve essa
nação pelo Vaticano tinha causado leigos em pé de proximidade na queda para dentro do
vazio e da impotência da morte e foi
um trauma duradouro entre muitos
cientistas naturais. O cardeal König8,
igualdade na vivenciado como aquele que, em sua
entrega completa ao mistério, chegou
arcebispo de Viena e amigo de Rah-
ner, apoiou esse projeto. Em 1992,
igreja” com toda a sua existência até Deus.
Junto com o pai de sua Ordem, Inácio
após a morte de Rahner, o papa aten-
de Loyola10, Rahner fala da escuridão,
deu esse desejo. No marco da mesma
entidade ocorreram também diálogos de uma escuridão que se estabelece
7 Galileu Galilei (1564-1642): físico, ma- intensivos entre marxistas e teólogos, principalmente no coração huma-
temático, astrónomo e filósofo italiano dos quais Rahner participou intensi- no, na sensação de uma distância de
que teve um papel preponderante na
chamada revolução científica. Desenvol-
vamente. Ele publicou livros em con- Deus, de uma experiência de Deus na
veu os primeiros estudos sistemáticos do junto com o – na época – comunista sensação de um silêncio inexorável,
movimento uniformemente acelerado
e do movimento do pêndulo. Descobriu
Roger Garaudy9 (1913-2012), da Aca- de um Deus vivenciado por meio do
a lei dos corpos e enunciou o princípio demia Francesa das Ciências em Pa- padecimento, da solidão, da frustra-
da inércia e o conceito de referencial ris. Pouco antes da morte de Rahner,
inercial, ideias precursoras da mecânica ção. Certa vez ele perguntou: “Não é
newtoniana. Galileu melhorou significa- em 1984, ocorreu um grande evento verdade que, a rigor, Deus habita e
tivamente o telescópio refrator e foi o científico de marxistas – também da
primeiro a utilizá-lo para fazer observa- pode ser encontrado antes na terra
ções astronôomicas. Com ele descobriu Academia das Ciências em Moscou – inóspita, desprovida de contornos e
as manchas solares, as montanhas da e teólogos, bem como representantes
Lua, as fases de Vênus, quatro dos saté- nebulosa da vaidade [no sentido da-
lites de Júpiter, os anéis de Saturno, as do Vaticano, em Budapeste, em que quilo que é vão]?” Rahner menciona,
estrelas da Via Láctea. Estas descobertas Rahner fez a palestra introdutória. como exemplos concretos dessa situ-
contribuíram decisivamente na defesa
do heliocentrismo. Contudo, a principal ação de experiência de Deus pelo ca-
contribuição de Galileu foi para o méto- IHU On-Line – Gostaria de
do científico, pois a ciência se assentava minho do padecimento, “o amor que,
acrescentar algum aspecto não
numa metodologia aristotélica de cunho muito frequentemente, se encontra
mais abstrato. Por essa mudança de pers- questionado?
pectiva é considerado o pai da ciência sob o signo da frustração, fidelidade
Herbert Vorgrimler – A “aborda-
moderna. (Nota da IHU On-Line) absoluta à consciência moral, cum-
8 Franz König: austríaco, foi nomeado gem” de Rahner tem, em ternos filo-
arcebispo de Viena, em 1956, pelo papa
primento do dever com a sensação
sóficos, um caráter muito fortemente
Pio XII e nomeado cardeal por João XXIII, candente da autonegação, poder per-
em 1958. Foi, juntamente com os car- transcendental. Não obstante, não se
deais Alfrink, da Holanda, Suenens, da
doar sem retribuição, abrir mão sem
deve esquecer que ela também tem
Bélgica, Lercaro, da Itália e Doepfner, agradecimento, sem reconhecimento
da Alemanha, um dos grandes homens do uma dimensão histórica. Para Rahner,
e sem satisfação interior, experiência
Concílio Vaticano II. Faleceu em março de isso significa que a percepção do mis-
2004, aos 98 anos de idade. Já arcebispo do fracasso radical do próprio projeto
tério infinito como “realização do ser
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emérito, em 1999, concedeu uma entre-
de vida, o despedaçamento do pró-
vista à revista inglesa The Tablet, em que humano” não só é, a partir de Deus, o
defendia “a descentralização do poder prio mundo intelectual, a percepção
do papa e da cúria romana. Por mais de dom de uma realização radical do ser
da própria banalidade e aleatorieda-
mil anos os bispos foram eleitos pelos humano na história de sua liberdade,
fiéis e confirmados pelo papa. Devemos de”. A fé de Rahner não era sempre
retomar as formas descentralizadas das
mas que essa proposta ou oferta divi-
um “por causa de” (porque Deus é
estruturas de comando da igreja, como na é um acontecimento histórico que,
se fazia nos primeiros séculos”. Era um
a partir de Deus, é irreversível e “pal- tão bondoso e a vida é tão bela), mas
grande estudioso das grandes religiões da muitas vezes uma fé do “apesar de”
humanidade. Ele organizou, em 1951, a pável”. A fé cristã encontra esse acon-
obra, em três volumes, Christus und die tecimento histórico em Jesus Cristo. (embora ele não dê uma realização
Religionen der Erde (Cristo e as Religiões maravilhosa).
da Terra). Numa das últimas declarações
públicas dada por ele, logo depois do 11 9 Roger Garaudy (1923): intelectual ide-
de setembro de 2001, se contrapôs àque- alista francês, protestante, que tornou-se 10 Inácio de Loyola (1491-1556): funda-
les que defendiam “a superioridade da comunista, depois marxista, depois cató- dor da Companhia de Jesus, conhecida
religião cristã”, apelando ao respeito à lico e depois muçulmano. Do anátema ao como os Jesuítas, cuja missão é o serviço
diversidade religiosa e distinguindo a fé diálogo e A grande virada do socialismo da fé, a promoção da justiça, o diálogo
autêntica do integralismo. (Nota do IHU são dois de seus livros publicados em por- inter-religioso e cultural. (Nota da IHU
On-Line) tuguês. (Nota do IHU On-Line) On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 19


Filosofia, teologia e autonomia a
Tema de Capa

partir de Rahner
O professor Manfredo Araújo de Oliveira faz uma aproximação dos conceitos
teológicos de Karl Rahner no sentido de reconstruir uma metafísica transcendental

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

E
nquanto na metafísica clássica o ser huma- mano se transformou num ser que em todas as
no se entende como o lugar onde o sen- dimensões de sua existência planeja racional-
tido se mostra, na modernidade o sujeito mente e manipula a si mesmo, o que significa
aparece como produtor de sentido e é nessa que no sentido estrito da palavra ele se tornou
esteira que Karl Rahner desenvolve suas refle- capaz de projetar e planejar seu próprio futuro.
xões. “O método transcendental emerge aqui Isto marca decisivamente sua autocompreen-
como uma estratégia importante no contexto são e sua compreensão do todo”, argumenta.
moderno para justificar a postura ontológica que Manfredo Araújo de Oliveira é graduado
a tradição sempre teve. Rahner vai partir daqui, em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de
mas seu esforço teórico se propõe reconstruir Fortaleza, mestre em Teologia pela Pontifícia
toda a metafísica transcendentalmente, ou seja, Universidade Gregoriana de Roma e doutor
a virada transcendental é assumida por ele não em Filosofia pela Universität München Ludwig
apenas como uma estratégia útil no contexto do Maximilian. Atualmente, atua como docente
pensamento moderno, mas como um elemento da Universidade Federal do Ceará (UFC). Entre
constitutivo do pensamento metafísico enquan- seus livros mais recentes, citamos O Deus dos
to tal”, explica Manfredo de Oliveira, em entre- filósofos contemporâneos (Petrópolis: Vozes,
vista por e-mail à IHU On-Line. 2003) e Dialética hoje: lógica, metafísica, histo-
“A compreensão originária do ser humano ricidade (São Paulo: Loyola, 2004), Ética, direito
sobre si mesmo que se tematiza na filosofia é e democracia (São Paulo: Paulus, 2009), Antro-
o espaço em que se situa a reflexão teológica e pologia filosófica contemporânea – Subjetivida-
isto decorre da própria natureza da teologia en- de e inversão teórica (São Paulo: Paulus, 2011)
quanto ‘ciência da fé’, isto é, enquanto reflexão e A religião na sociedade urbana e pluralista
metodicamente dirigida sobre a revelação de (São Paulo: Paulus, 2013).
Deus dada na fé”, destaca Manfredo. “O ser hu- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as condição de possibilidade, a quem ela amor livre); da relação entre história
ideias fundamentais de Rahner que é indevida, mas sem o qual não pode- universal e história especial da salva-
estabelecem o diálogo entre a Teolo- ria haver comunicação. O ser espiritu- ção e da revelação (a história da sal-
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gia e a Filosofia? al é a condição de possibilidade que vação é coextensiva à humanidade


Manfredo Araújo de Oliveira – a própria revelação pressupõe para si enquanto tal. Por isso, em cada filo-
Partindo da concepção usual entre mesma e com isto a põe livremente sofia já se faz inevitável e atematica-
os católicos da diferença radical entre para que ela possa ser o que é: graça mente teologia, porque não depende
filosofia e teologia, Karl Rahner vai enquanto autocomunicação pessoal do ser humano ser envolvido ou não
desenvolver uma tese desafiadora: a e livre de Deus); da relação entre re- pela graça de Deus. Nós cristãos é que
filosofia é um “momento interno” que velação e teologia (a revelação pres- somos muito cegos, porque não so-
ela mesma pressupõe como sua con- supõe a filosofia enquanto diferente mos capazes de ver este cristianismo
dição de possibilidade. Ele legitima dela e livre enquanto espaço de sua oculto na história do ser humano, da
sua tese tanto teológica quanto filo- própria possibilidade, porque só ao religião e da filosofia). Filosoficamen-
soficamente. Teologicamente: a par- ser que compreende a si mesmo e dis- te: o ser humano é compreensão de si
tir da relação entre natureza e graça põe autonomamente sobre si mesmo, e do ser em seu todo. A teologia, en-
(a graça, enquanto autocomunicação o ser espiritual finito, pode dirigir-se quanto atividade humana, está subor-
absoluta de Deus, para poder ser tem à automanifestação de Deus em re- dinada, como qualquer conhecimen-
que pressupor um parceiro, como sua velação pessoal enquanto ato de seu to, às condições necessárias de todo

20 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


conhecimento humano. Assim, a filo- IHU On-Line – Qual é a influên- rico se propõe reconstruir toda a me-

Tema de Capa
sofia enquanto explicitação transcen- cia dos filósofos Kant e Maréchal no tafísica transcendentalmente, ou seja,
dental das condições de possibilidade pensamento de Rahner? a virada transcendental é assumida
do conhecimento teológico constitui Manfredo Araújo de Oliveira – por ele não apenas como uma estra-
um momento interno de seu próprio Rahner teve consciência da transfor- tégia útil no contexto do pensamento
trabalho. mação da filosofia enquanto tal no moderno, mas como um elemento
pensamento de Kant e é esta virada constitutivo do pensamento metafísi-
IHU On-Line – Nesse sentido, transcendental que ele vai considerar co enquanto tal.
qual é a necessidade de se filosofar necessária, embora a articulando de
na teologia a partir dos escritos desse uma forma diferente de Kant. O mo- IHU On-Line – Que outros filó-
teólogo? delo de articulação da teoria filosófica sofos marcaram o pensamento desse
Manfredo Araújo de Oliveira – A na modernidade, que, em sua elabo- teólogo e o influenciaram?
compreensão originária do ser huma- ração paradigmática em Kant se auto- Manfredo Araújo de Oliveira
no sobre si mesmo que se tematiza na denominou “filosofia transcendental”, – Em primeiro lugar, Rahner foi sem-
filosofia é o espaço em que se situa a se interpretou a si mesmo como uma pre profundamente influenciado pelo
reflexão teológica e isto decorre da “reviravolta na arte de pensar” e ca- pensamento metafísico de Tomás de
própria natureza da teologia enquan- racterizou-se pelo estabelecimento do Aquino. Quando iniciou em Freiburg
to “ciência da fé”, isto é, enquanto re- ser humano como “sujeito”, ou seja, seu doutorado em filosofia, frequen-
flexão metodicamente dirigida sobre como a instância doadora de sentido tou os seminários de Heidegger1, o
a revelação de Deus dada na fé. Este a tudo, o princípio e a fonte de inteli- que foi decisivo na formulação de seu
empreendimento teórico é possível e gibilidade de tudo, e isto tem enormes pensamento uma vez que isto tornou
necessário porque a própria revelação consequências. possível ir além de Maréchal na dire-
de Deus já contém em si, enquanto Na metafísica clássica, o ser hu- ção da ontologia fundamental e sua
seu momento constitutivo, um saber mano se entende como o lugar em nova formulação da questão decisiva
de caráter conceitual e sentencial que que todo e qualquer sentido se mos- do ser. Este contato com Heidegger o
a teologia tem precisamente como tra. Na modernidade, ao contrário, o conduziu também a introduzir em seu
tarefa desenvolver, refletir e confron- sujeito é o espaço em que se cons­titui pensamento a questão central da his-
tar com outros conhecimentos. Nesta sentido. Trata-se de uma inversão ra- toricidade. Estes estímulos que lhe vie-
perspectiva, a teologia é ciência da fé dical: ao invés de uma presentificação ram de Heidegger foram aprofundados
na medida em que a fé cristã é base, ocorre uma produção de sentido pelo através da convivência com grandes
norma e fim desta ciência. Numa pa- sujeito. O fundamento é o próprio ser pensadores católicos que nesta época
lavra, a teologia é a reflexão metódi- humano: ele é “hypokeimenon” (sujei- também foram marcados pelo pensa-
ca e sistemática da autorrevelação e to) de todo e qualquer sen­tido em sua
autodoação gratificante de Deus ao vida teórica e prática. Dessa forma, o 1 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
ser humano captada e aceita na fé. sujeito se faz a instância decisiva da po (1927). A problemática heideggeriana
Enquanto atividade cognoscitiva hu- arquitetônica da razão. é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
mana tem como sua condição de pos- O confronto crítico de Rahner Cartas sobre o humanismo (1947), Intro-
dução à metafísica (1953). Sobre Heide-
sibilidade as condições necessárias com Kant se vai fazer através da me- gger, a IHU On-Line publicou, na edição
de todo e qualquer conhecimento diação do pensamento de J. Maréchal, 139, de 02-05-2005, o artigo O pensa-
humano, numa palavra, está subor- cujo objetivo fundamental foi mediar mento jurídico-político de Heidegger e
Carl Schmitt. A fascinação por noções
dinada como qualquer conhecimen- a metafísica clássica através do méto- fundadoras do nazismo, disponível para
to humano à estrutura apriórica de do transcendental, ou seja, tratava-se download em http://bit.ly/ihuon139.
suas condições de possibilidade: o de justificar transcendentalmente o Sobre Heidegger, confira as edições 185,
de 19-06-2006, intitulada O século de
ser humano que faz teologia possui ponto de partida da metafísica – a Heidegger, disponível para download em
sempre, enquanto ser humano, “uma afirmação do ser – que constitui o fun-
www.ihu.unisinos.br
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-
compreensão atemática de si e da damento da teoria do ser da tradição 2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
trução da metafísica, que pode ser aces-
totalidade do ser”, transcendental e metafísica. A tese básica de Maréchal sada em http://bit.ly/ihuon187. Confira,
historicamente, que em última aná- vai, então, consistir na afirmação de ainda, o nº 12 dos Cadernos IHU em
lise se explicita como abertura abso- que a metafísica, enquanto explicação formação, intitulado Martin Heidegger.
A desconstrução da metafísica, que pode
luta a Deus. Sendo assim, a teologia sistemática da ordem ontológica, é ser acessado em http://bit.ly/ihuem12.
que verdadeiramente reflete, pensa possível porque o ser humano, em sua Confira, também, a entrevista concedida
e pretende ser algo mais do que um constituição ontológica, é metafísico, por Ernildo Stein à edição 328 da revista
IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
simples relato da história da salva- isto é, a afirmação do ser é condição em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
ção, tematiza uma filosofia como seu de possiblidade de todo e qualquer biologismo radical de Nietzsche não pode
momento interno, isto é, explicita a conhecimento. O método transcen- ser minimizado, na qual discute ideias de
sua conferência “A crítica de Heidegger
filosofia, enquanto reflexão transcen- dental emerge aqui como uma estra- ao biologismo de Nietzsche e a questão
dental sobre as condições de possibi- tégia importante no contexto moder- da biopolítica”, parte integrante do ciclo
lidade de seu próprio conhecimento, no para justificar a postura ontológica de estudos Filosofias da diferença – pré-
evento do XI Simpósio Internacional IHU:
o que enquanto tal já é sempre um que a tradição sempre teve. Rahner O (des)governo biopolítico da vida huma-
momento interno de seu trabalho. vai partir daqui, mas seu esforço teó- na. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 21


mento de Heidegger: G. Siewerth, B. é radicalmente distinto do mundo, ele afirma nos Escritos Teológicos VI
Tema de Capa
Welte, M. Müller e J. B. Lotz2. portanto, transcendente. Porém, em (Schriften VI, p. 223): “a liberdade deve
virtude mesmo de sua transcendên- ser pensada antes de tudo como liber-
IHU On-Line – Quais os pontos cia absoluta está presente em tudo, dade de ser. Isto quer dizer que o ser
fundamentais de diálogo estabeleci- perpassa tudo, é radicalmente ima- humano é aquele ente que tem a tare-
dos por Rahner com a modernidade? nente a tudo. Daí porque para Rahner fa de seu próprio ser; é aquele que já
Manfredo Araújo de Oliveira – O o axioma fundamental para pensar a está sempre em relação consigo mes-
ponto absolutamente central a que se relação entre Deus e o mundo é: dis- mo, aquele que é subjetividade e não
vinculam todos os outros é a compre- tância e proximidade, dependência simplesmente natureza. Portanto, esse
ensão que o homem moderno tem de e poder próprio crescem na mesma eu não é algo que possa ser deduzido
si mesmo e sua compreensão da rea- medida, isto é, dependência radical de outra coisa, ou seja, que possa ser
lidade em seu todo. O ser humano se e realidade genuína do existente que fundamentado em outra coisa”. Em
transformou num ser que em todas as procede de Deus crescem na mesma virtude desta sua concepção do eu, foi
dimensões de sua existência planeja proporção e não inversamente. acusado de ter articulado um pensa-
racionalmente e manipula a si mesmo, A pergunta a respeito da moder- mento de base individualista, o que o
o que significa que no sentido estrito nidade parece pressupor que a moder- levou várias vezes a mostrar que esta
da palavra ele se tornou capaz de pro- nidade é um pensamento da imanên- postura não significa uma defesa de
jetar e planejar seu próprio futuro. Isto cia radical. Normalmente quando se um individualismo possessivo como
marca decisivamente sua autocom- fala assim a referência é pelo menos ele emergiu na modernidade.
preensão e sua compreensão do todo. implicitamente ao pensamento pós-
Rahner denomina a especificidade da -idealismo alemão, pois não foi esta IHU On-Line – O senhor conhe-
compreensão do homem moderno de a posição dos grandes metafísicos da ceu Rahner pessoalmente. Quais
“antropocêntrica” e fala de uma “revi- modernidade (a respeito: OLIVEIRA são suas lembranças mais marcantes
ravolta antropocêntrica” como a carac- M./ALMEIDA C. (org.), O Deus dos Filó- dele como intelectual e, por outro
terística da humanidade moderna. Ele sofos Modernos, 2a. Ed., Petrópolis: Vo- lado, como pessoa?
aceita o desafio do pensamento mo- zes, 2002), nem mesmo de Kant com Manfredo Araújo de Oliveira – Co-
derno, porque não o considera apenas que Rahner se confrontou. Creio que nheci Rahner primeiramente durante o
uma moda filosófica passageira, mas a aqui se trata de um grande equívoco. Concílio Vaticano II em conferências que
conquista de um patamar crítico que O que certamente se pode dizer é que ele deu ao episcopado brasileiro. Nesta
não permite mais um retorno às for- de certo modo há uma “ambiguidade” oportunidade ele falava em latim e co-
mas de pensar pré-modernas. de fundo no pensamento de Rahner na meçava sempre pedindo desculpas por
medida em que ele não se deu conta seu “latim teutônico”. Deu certamente
IHU On-Line – Para o Cardeal suficientemente do caráter restrito do através destas palestras uma grande
Ratzinger, Rahner concedeu demais à pensamento transcendental enquan- contribuição para a atualização teoló-
modernidade, acentuando a imanên- to tal por situar tudo no horizonte da gica do episcopado brasileiro. Depois,
cia em demasia. Qual a pertinência autofundamentação do ser humano. quando estudante na Alemanha, segui
dessa crítica e suas implicações para Mesmo que em Rahner o centro do seus cursos de teologia na Universida-
a Igreja e, por outro lado, para a filo- pensamento seja o “Ser”, em última de de Munique. O estilo universitário
sofia do nosso tempo? análise Deus (e não a subjetividade alemão não abria muitas possibilidades
Manfredo Araújo de Oliveira – finita), o Ser (Deus) é pensado a par- para um contato pessoal. Acompanhei-
Certamente é preciso distinguir aqui tir da subjetividade (no pensamento -o com enorme interesse como homem
entre o relacionamento de Rahner transcendental a subjetividade é a ins- do saber que procurava responder ao
com a modernidade e a questão me- tância doadora de sentido a tudo), o que ele chamava a enorme “concupis-
tafísica da unidade e da diferença do que manifesta a limitação fundamental cência cognitiva” que marca o ser hu-
ser em seu todo que se exprimiu como e a ambiguidade desta postura. mano. Era sempre muito interessante
www.ihu.unisinos.br

pergunta a respeito da transcendência ver seus esforços para tornar compre-


e da imanência. Para Rahner é impos- IHU On-Line – Em que modo o le- ensível sua “teologia transcendental”
sível pensar aqui dicotomicamente: o gado teológico de Rahner oferece sub- através de exemplos tirados da publici-
ente contingente (imanente) só é en- sídios para a construção da autono- dade da televisão alemã.
quanto participa de seu fundamento mia e uma crítica ao individualismo?
(transcendente), pois não possui seu
próprio ser, mas o recebe. Assim, o
Manfredo Araújo de Oliveira – A
questão da liberdade, ou seja, da “au-
Leia mais...
Absoluto é o fundamento último do tonomia”, está no cerne da compreen- • Contingência e liberdade. A aporia
ser contingente, de tal modo que o são de ser humano em Rahner. Para
fundamental do sistema hegeliano.
contingente só é enquanto participa ele a liberdade é a capacidade que a
do Absoluto que enquanto absoluto Entrevista com Manfredo Araújo de
pessoa tem de realizar a si mesma e
desta forma ela não é simplesmente Oliveira na edição 261 da IHU On-
2 João Batista Lotz (1903-1992): jesuíta uma qualidade própria de um tipo de Line, 09-06-2008, disponível em ht-
e filósofo alemão do neotomismo e filoso- ação, mas é um distintivo transcenden-
fia católica da existência. (Nota da IHU
tp://bit.ly/1jmDA2Y.
On-Line) tal do ser humano enquanto tal. Como

22 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


Rahner. O primeiro teólogo

Tema de Capa
católico moderno
Rosino Gibellini aborda a postura crítica de Rahner com relação aos desafios da Igreja
Católica no século XX

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Sandra Dall Onder

“P
ode-se dizer que Rahner seja o pri- agnósticos em forma atemática, com o ‘sim’
meiro teólogo católico moderno, ao sentido positivo da existência”. “Este sim
porque ele se deparou, ao longo de ao sentido positivo da existência torna-se, pela
seu extenso trabalho, com os desafios da mo- graça (como existência sobrenatural), aceitação
dernidade”, argumenta Rosino Gibellini em en- atemática e implícita, do mistério fundamental
trevista por e-mail à IHU On-Line. “A tentativa da salvação, que em Cristo encontra a revelação
de Rahner é mais ousada. E a tarefa do exercício histórica e categorial do cristianismo anônimo
da racionalidade crítica na teologia permanece (o cristianismo como a graça escondida e vivi-
ainda no período da pós-modernidade, que é da)”, argumenta.
interpretada como ‘modernidade tardia’ ou Rosino Gibellini é doutor em Teologia pela
como ‘nova modernidade’: o exercício da racio- Universidade Gregoriana de Roma e doutor em
nalidade crítica deverá ser conjugado no perí- Filosofia pela Universidade Católica de Milão.
odo da pós-modernidade, focando em temas Dirige as coleções Giornale di Teologia e Bi-
que foram esquecidos ou marginalizados pelo blioteca de teologia contemporânea da Editora
projeto moderno”, complementa. Queriniana de Brescia, Itália. O estudioso é au-
De acordo com Rosino, para a revelação tor, entre outros livros, de A teologia do século
divina o homem responde com um ato de fé XX (São Paulo: Edições Loyola, 1998).
“possível, mesmo para não cristãos, ateus e Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a teologia ção dos métodos e práticas eclesiais. ideias surgidas a partir do Concílio
de Rahner estava em plena sintonia Como se pode ver, a teologia de Rah- Vaticano II?
com o grande projeto inovador do ner estava em sintonia com o grande Rosino Gibellini – Um estudio-
Concílio? projeto de João XXIII no Concílio. so do Concílio escreveu: “Se explo-
Rosino Gibellini – O Concílio Va- rarmos os arquivos em busca de ci-
ticano II tinha como tema: a Igreja ad IHU On-Line – Em que medi- tações escritas durante o Concílio,
intra e ad extra. Rahner não era um da Rahner se ocupava em lançar não encontramos um único texto
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eclesiólogo, mas tinha dentro de si um uma ponte entre tradicionalistas e que tenha sido elaborado ‘somen-
forte sentido da missão cristã no mun- progressistas? te’ por Rahner”. A colaboração de
do. Exatamente em 1959 – ano em Rosino Gibellini – As palavras teólogos e especialistas foi a marca
que foi anunciado o Concílio – Rahner “tradicionalistas” e “progressistas” do trabalho em comum. Podemos
publicou Missão e Graça, que abre são estranhas ao vocabulário teoló- acrescentar ainda o testemunho de
com um ensaio intitulado “Significado gico de Rahner. Porém, ele constrói Rahner: “Participei da Comissão Teo-
da teologia do cristão no mundo mo- uma ponte entre as duas posições, lógica, que redigiu a Lumen Gentium1
derno” (1954). Ali ele discute a transi- uma vez que coloca o problema es-
ção do regime de cristianismo à situa- sencial da missão cristã no mundo. A 1 Lumen Gentium (Luz dos Povos): é um
ção de diáspora, em que a igreja passa ponte é a lembrança da essência da dos mais importantes textos do Concílio
Vaticano II. O texto desta Constituição
a existir como uma minoria dentro de mensagem cristã, que vai além da dogmática foi demoradamente discutido
cada país, e argumenta que esta situ- polarização rígida. durante a segunda sessão do Concílio.
ação não deve ser sofrida, mas toma- O seu tema é a Igreja enquanto institui-
ção. Foi objeto de muitas modificações e
da como um “imperativo histórico de IHU On-Line – Qual é a contri- emendas, como, aliás, todos os documen-
salvação”, enfrentada com a renova- buição de Rahner para a abertura das tos aprovados. Inicialmente surgiram,

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 23


e Dei Verbum2, e também colaborei Iluminismo4, Kant), e Rahner introdu- tardia” (Habermas7) ou como “nova
Tema de Capa
um pouco com Gaudium et Spes”. A ziu na teologia católica o exercício da modernidade” (Robert Schreiter8):
principal contribuição de Rahner, que racionalidade crítica, que substituía o exercício da racionalidade crítica
se expressa em todas as suas páginas, a racionalidade abstrata metafísica deverá ser conjugado no período da
consiste na abertura da sua teologia escolástica e os tratados católicos. A pós-modernidade, focando em te-
como “ouvinte da Palavra”. grande teologia francesa se destinava, mas que foram esquecidos ou mar-
sobretudo, a uma reforma do tomis- ginalizados pelo projeto moderno
IHU On-Line – Qual é a impor- mo na linha de Maritain5 e Gilson6. A (David Tracy9).
tância de Rahner e De Lubac na orga- tentativa de Rahner é mais ousada. E
nização do Concílio Vaticano II? a tarefa do exercício da racionalidade IHU On-Line – Em que consiste o
Rosino Gibellini – Ambos os teó- crítica na teologia permanece ainda conceito de cristão anônimo e qual é
logos citados eram considerados sus- no período da pós-modernidade, que seu impacto nas discussões do Concí-
peitos pela Inquisição romana, mas é interpretada como “modernidade lio Vaticano II?
foram, como poucos, os artífices da
teologia que preparou o Concílio. De
Lubac, com sua intensa Meditação mática modernas, inspirou os seus con-
sobre a Igreja (1953), foi mais ecle- temporâneos e gerações de filósofos. 7 Jürgen Habermas (1929): filósofo ale-
Na opinião de alguns comentadores, ele mão, principal estudioso da segunda ge-
siólogo que Rahner. Rahner era mais iniciou a formação daquilo a que hoje ração da Escola de Frankfurt. Herdando
atento, em seus Escritos teológicos, se chama de racionalismo continental as discussões da Escola de Frankfurt,
que começaram a aparecer em 1954, (supostamente em oposição à escola Habermas aponta a ação comunicati-
que predominava nas ilhas britânicas, o va como superação da razão iluminista
aos desafios do mundo moderno, dos empirismo), posição filosófica dos sécu- transformada num novo mito, o qual en-
quais há um eco na Gaudium et Spes. los XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU cobre a dominação burguesa (razão ins-
Ambos seguiram o pós-concílio, mas On-Line) trumental). Para ele, o logos deve con-
4 Iluminismo [Aufklärung]: em portu- truir-se pela troca de ideias, opiniões e
Rahner o fez de forma mais militante, guês, Esclarecimento, ou ainda mais informações entre os sujeitos históricos,
sendo um dos fundadores da revista apropriado, Iluminismo – movimento in- estabelecendo-se o diálogo. Seus estudos
teológica internacional Concilium, que telectual surgido na segunda metade do voltam-se para o conhecimento e a ética.
século XVIII (o chamado “século das lu- (Nota da IHU On-Line)
se inicia em 1965, e ainda com o vo- zes”) que enfatizava a razão e a ciência 8 Robert Schreiter: teólogo norte-ame-
lume programático para a reforma de como formas de explicar o universo. Foi ricano, padre dos Missionários do Precio-
1972, intitulado Transformação estru- um dos movimentos impulsionadores do síssimo Sangue e doutor em Teologia da
capitalismo e da sociedade moderna. Universidade de Nijmegen, na Holanda.
tural da Igreja. Foi um movimento que obteve grande Leciona teologia na Universidade Católi-
dinâmica nos países protestantes e len- ca de Chicago, nos Estados Unidos, e na
IHU On-Line – Por que Rahner ta porém gradual influência nos países Universidade de Nijmegen. Seus livros e
católicos. O nome se explica porque os artigos sobre reconciliação têm sido pu-
pode ser considerado o primeiro te- filósofos da época acreditavam estar blicados em vários idiomas. É Conselhei-
ólogo moderno? iluminando as mentes das pessoas. É, ro Geral dos Missionários do Preciosíssimo
Rosino Gibellini – Pode-se dizer de certo modo, um pensamento her- Sangue. É detentor da cátedra de “in-
deiro da tradição do Renascimento e do terculturalidade” instituída em homena-
que Rahner seja o primeiro teólogo Humanismo por defender a valorização gem a Schillebeeckx na Universidade de
católico moderno porque ele se de- do Homem e da Razão. Os iluministas Nimega, pela publicação de seu livro A
parou, ao longo de seu extenso tra- acreditavam que a Razão seria a expli- Nova Catolicidade (Loyola, 1998). (Nota
cação para todas as coisas no universo, da IHU On-Line)
balho, com os desafios da moderni- e se contrapunham à fé. (Nota da IHU 9 David Tracy (1939): licenciado e dou-
dade. A modernidade é caracterizada On-Line) tor em Teologia pela Universidade Gre-
pela racionalidade crítica (Descartes3, 5 Jacques Maritain (1882-1973): filó- goriana de Roma, professor de Teologia
sofo francês. O pensamento tomista de Contemporânea e Filosofia da Religião
Maritain serviu-lhe de parâmetro para a na University of Chicago Divinity Scho-
para o texto base, cerca de 4 mil emen- abordagem e julgamento de situações ol, nos Estados Unidos. Entre seus livros,
das. Sobre o tema, confira os Cadernos concretas como a política, a educação, citamos The Achievement of Bernard Lo-
Teologia Pública número 4, intitulado No a arte e a religião vigentes. Mas tratou nergan (1970); Blessed Rage for Order:
www.ihu.unisinos.br

quarentenário da Lumen Gentium. (Nota também da base da gnosiologia, decidin- The New Pluralism in Theology (1975);
da IHU On-Line) do-se pelo realismo imediato e intuição The Analogical Imagination: Christian
2 Dei Verbum: Revelação Divina. É do ser, tal como no aristotelismo e na Theology and the Context of Pluralism
uma constituição dogmática em forma escolástica originária. Diferenciou a filo- (1981); Plurality and Ambiguity: Herme-
de bula pontifícia e um dos principais sofia e a ciência experimental, bem como neutics, Religion and Hope (1987); e
documentos do Concílio Vaticano II. É as diversas ciências filosóficas. Advertiu Dialogue with the Other (1990). Tracy
designada “constituição dogmática” para a diferença entre o tema da lógica esteve na Unisinos, convidado pelo IHU,
por conter e tratar “matéria de fé”. De e o da gnosiologia. Foi um dos principais para fazer a conferência Entre o apoca-
fato, o seu conteúdo aborda o delicado e expoentes do tomismo no século XX. Uma líptico e o apofático. O fazer teológico
complexo problema da relação entre as de suas obras principais é Por um huma- na universidade, hoje, a partir da pós-
Sagradas Escrituras e a Tradição.(Nota nismo cristão (São Paulo: Paulus, 1999). -modernidade no Simpósio Internacional
da IHU On-Line) Sobre Maritain, confira o recém-lançado O Lugar da Teologia na Universidade do
3 René Descartes (1596-1650): filóso- Maritain à contre-temps: Pour une dé- século XXI, acontecido em maio de 2004.
fo, físico e matemático francês. Nota- mocratie vivante (Paris: Desclée de Brou- Ele concedeu entrevista à IHU On-Line nº
bilizou-se sobretudo pelo seu trabalho wer, 2007), do filósofo jesuíta Paul Vala- 103, de 31 de maio de 2004. Confira o ar-
revolucionário da Filosofia, tendo tam- dier. (Nota da IHU On-Line) tigo “O Deus oculto: o resgate da apoca-
bém sido famoso por ser o inventor do 6 Étienne Gilson (1884-1978): filósofo e líptica” de David Tracy em: NEUTZLING,
sistema de coordenadas cartesiano, historiador da filosofia e um dos mais des- Inácio (org.), A teologia na universidade
que influenciou o desenvolvimento do tacados autores da filosofia neoescolásti- contemporânea. (São Leopoldo: Editora
cálculo moderno. Descartes, por vezes ca, especialista no estudo da obra de São Unisinos. 2005, p. 85-98). (Nota do IHU
chamado o fundador da filosofia e mate- Tomás de Aquino. (Nota da IHU On-Line) On-Line)

24 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


Rosino Gibellini – À revela- Babel a Pentecostes (2006). Geffré linha, a última contribuição é ofereci-

Tema de Capa
ção divina o homem responde com estabelece três critérios a serem apli- da por Metz, que produziu, em cola-
um ato de fé, possível mesmo para cados na era do pluralismo: 1) o res- boração com a Faculdade Católica de
os não cristãos, ateus e agnósticos peito ao outro e à própria identidade, Teologia, um denso volume, Dem Lei-
em forma atemática, com o “sim” praticando a imaginação analógica den ein Gedächtnisgeben (2012) [Dar
ao sentido positivo da existência. teorizada por David Tracy, como uma memória ao sofrimento], em que se
Este sim ao sentido positivo da exis- atitude hermenêutica: descobrir uma desenvolvem as linhas de uma cristo-
tência torna-se, pela graça (como semelhança na diferença; 2) fidelida- logia anamnéstica.
existência sobrenatural), aceitação de à própria identidade; 3) necessi-
atemática e implícita, do mistério dade de um grau de igualdade entre IHU On-Line – Em que ponto es-
fundamental da salvação, que em os parceiros, para que exista diálogo. tamos com a edição da Opera Omnia
Cristo encontra a revelação históri- Agora, o cristianismo tem a capacida- de Rahner?
ca e categorial do cristianismo anô- de de atingir essas condições para o Rosino Gibellini – Quando vivo,
nimo (o cristianismo como a graça diálogo, mostrando-se como cristia- Rahner havia organizado a coletânea
escondida e vivida). Tese de grande nismo relacional. dos seus escritos teológicos (Schriften
impacto para a atividade dialógica zur Theologie) em 16 volumes, 1954-
com o mundo na sua pluralidade de IHU On-Line – Como o evento do 1984. Após a sua morte, iniciou-se
culturas e religiões. Holocausto repercute na Teologia de a edição da Opera Omnia, em 1995,
Rahner? que está prevista para ser concluída,
IHU On-Line – Em que medida Rosino Gibellini – O evento do em 32 volumes, em 2015. Será um
a ideia do cristão anônimo encontra Holocausto não toca, de forma par- relançamento da obra de Rahner, que
acolhida na igreja atualmente? ticular, a teologia de Rahner. A pri- envolverá a nova geração de teólogos
Rosino Gibellini – Em geral, não meira elaboração teológica tem lu- e teólogas.
está mais presente, até mesmo por- gar nos anos 1960 no pensamento
que não se deve falar propriamente judaico com Rubenstein11 (1966) e
de “cristãos anônimos”, como o faz Fackenheim12 (1970). Toca a teologia
principalmente Rahner. Hoje se de- cristã na obra de Moltmann, na tran- Leia mais...
senvolve mais, de várias maneiras, sição da teologia da esperança à teo-
o grande tema da universalidade da logia da cruz (1972), e na condução • O primeiro teólogo católico moder-
salvação em Cristo, evitando a teori- da teologia política de Metz (1978). no. Entrevista com Rosino Gibellini
zação do cristianismo anônimo, para Teologia do Holocausto pressupõe na edição 297 da IHU On-Line, de
não atribuir aos outros, uma etiqueta, a transição da racionalidade críti- 15-06-2009, disponível em http://
ignorada e indesejada. ca – aqui se situa a contribuição de
bit.ly/1n7A2Ej;
Rahner – ao primado da razão práti-
IHU On-Line – A partir de Rah- ca, passagem operada pela teologia • Von Balthasar e o problema de
ner, como podemos compreender a política de Metz e Moltmann13. Nesta Deus. Artigo de Rosino Gibellini pu-
mudança do cristianismo anônimo blicado no sítio do Instituto Huma-
para um cristianismo relacional? nitas Unisinos – IHU, nas Notícias
da IHU On-Line)
Rosino Gibellini – A vontade sal- 11 Richard Lowell Rubenstein (1924): do Dia de 05-05-2013, disponível
vífica universal é feita de diferentes pesquisador e escritor americano de ori- em http://bit.ly/SNcIlP;
maneiras pela teologia contempo- gem judaica, reconhecido por suas cola-
borações com a teologia do Holocausto. • As memórias de Hans Küng. Artigo
rânea. Menciono particularmente o (Nota da IHU On-Line)
teólogo francês Claude Geffré10, De de Rosino Gibellini publicado no sí-
12 Emil Fackenheim (1916-2003): reco-
nhecido filósofo judeu e ex-rabino. (Nota tio do Instituto Humanitas Unisinos
da IHU On-Line)
– IHU, nas Notícias do Dia de 28-
www.ihu.unisinos.br
10 Claude Geffré: teólogo, frade do- 13 Jürgen Moltmann (1926): professor
minicano, francês, professor honorário emérito de Teologia da Faculdade Evan- 10-2013, disponível em http://bit.
do Instituto Católico de Paris. É autor, gélica da Universidade de Tübingen. Um
juntamente com Régis Debray, do livro dos mais importantes teólogos vivos da
ly/1kXJEDH;
Avec ou sans Dieu ? – Le philosophe et atualidade. Foi um dos inspiradores da • A vida como história de liberdade.
le théologien (Paris: Bayard, 2006). No Teologia Política nos anos 1960 e influen-
ano passado, publicou o livro De Babel à ciou a Teologia da Libertação. É autor Artigo de Rosino Gibellini publicado
Pentecôte – Essais de théologie interreli- de Teologia da Esperança (São Paulo: no sítio do Instituto Humanitas Uni-
gieuse (Paris: Cerf, 2006). Em português, Herder, 1971) e Deus crucificado: a cruz
a Editora Vozes traduziu o livro Crer e de Cristo como fundamento e crítica da sinos – IHU, nas Notícias do Dia de
Interpretar, em 2004. Confira uma entre- teologia cristã (Petrópolis: Vozes, 1993), 28-10-2013, disponível em http://
vista exclusiva que ele concedeu à IHU entre outros. Do autor, a Editora Unisinos
On-Line na edição número 207, de 04- publicou o livro A vinda de Deus. Escato- bit.ly/1qULe9U.
12-2006, intitulada “Retorno religioso”. logia cristã (São Leopoldo, 2003). Confira
De Geffré, confira, no site do Instituto a entrevista de Moltmann na IHU On-Line
Humanitas Unisinos – IHU, as entrevistas nº 94, de 29-03-2004 em http://bit.ly/
A obsessão pela ditadura do relativismo, ihuon94. Sobre o tema, Frei Luiz Carlos título Da possibilidade de morte da Terra
em 09-07-2007, Os cristãos e o desafio de Susin deu uma entrevista na edição 72, à afirmação da vida. A teologia ecológica
Babel, em 15-02-2007, e Religião com ou de 25-08-2003, disponível em http://bit. de Jürgen Moltmann, de autoria de Pau-
sem Deus? Um diálogo de Régis Debray ly/ihuon72. A edição 23 dos Cadernos Te- lo Sérgio Lopes Gonçalves. (Nota da IHU
com um teólogo, em 28-01-2007. (Nota ologia Pública, de 26-09-2006, tem como On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 25


Uma teologia atenta à
Tema de Capa

contemporaneidade
Juan Carlos Scannone relembra os quatro anos de convívio com Karl Rahner e destaca a
importância do pensamento do teólogo alemão aos desafios contemporâneos à Igreja

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: André Langer

“U
ma das minhas melhores recor- conciliar da teologia, assim como nos predis-
dações dos quatro anos de convi- pôs a estar atentos à nossa realidade latino-
vência e estudo com Karl Rahner americana, como ele estava em relação à sua
são os ‘Colloquiatheologorum’ que ele ofere- realidade centro-europeia. Foi um modelo de
cia todas as sextas-feiras, depois da janta, das convergência pessoal entre fé e espiritualida-
19h30 às 21h. Nessa hora e meia respondia a de vividas, preocupação pastoral e reflexão
duas, no máximo, três perguntas, porque ex- filosófico-teológica”, frisa.
planava exaustivamente sobre o assunto per- Padre Juan Carlos Scannone, jesuíta de 81
guntado”, relembra o professor doutor Juan anos, é doutor em Filosofia pela Universidade
Carlos Scannone em entrevista por e-mail de Munique (Alemanha), é licenciado em Teo-
à IHU On-Line. De acordo com Scannone, logia pela Universidade de Innsbruck (Áustria).
além das ideias de Rahner, o pensamento do Instrutor no Seminário Jesuíta de San Miguel,
alemão contribuiu para um debate sobre a ne- na Argentina, foi professor em diversas uni-
cessidade de diálogo e abertura da Igreja para versidades latino-americanas e europeias, in-
as questões contemporâneas. “Parece-me cluindo a Pontifícia Universidade Gregoriana
que, além das suas ideias, seu influxo na Igre- de Roma, e ex-reitor da Faculdade de Filoso-
ja de hoje se dá através da abertura do seu fia e Teologia da Universidad del Salvador, em
pensamento ao diálogo com a modernidade e Buenos Aires. Foi um dos principais professo-
seu ir além desta, na linha do Concílio Vatica- res de Jorge Bergoglio, o atual Papa Francisco.
no II, no que se pode notar um espírito seme- Scannone é também o principal formulador ar-
lhante ao seu”, argumenta. gentino da teologia do povo, relacionado à fi-
Com relação à influência de Rahner à teo- losofia e teologia da libertação. No sábado, 22
logia latino-americana, Scannone explica que fevereiro de 2014, foi anunciado que ele seria
“um dos modos pelos quais Rahner influiu um escritor-em-residência, membro da comu-
na América Latina foi através de discípulos nidade de escritores por pelo menos um ano
seus, como Ignacio Ellacuría, e outros, entre de La Civiltà Cattolica – revista cultural italiana
www.ihu.unisinos.br

os quais me incluo, pois abriu as nossas men- da Companhia de Jesus.


tes para uma compreensão “aggiornata” e Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são suas janta, das 19h30 às 21h. Nessa hora o passar do tempo, os que participa-
maiores lembranças dos anos de vi- e meia respondia a duas, no máxi- vam assiduamente desses colóquios
vência e aprendizado com Rahner? mo, três perguntas, porque explana- podiam ir compreendendo todo o
Juan Carlos Scannone – Uma va exaustivamente sobre o assunto seu pensamento sobre todos os prin-
das minhas melhores recordações perguntado. Mas deviam ser verda- cipais temas da teologia dogmática,
dos quatro anos de convivência e es- deiras “questões disputadas”, e não fundamental e moral, assim como da
tudo com Karl Rahner são os “Collo- meras perguntas de sala de aula; hermenêutica bíblica. A eles se so-
quiatheologorum” que ele oferecia caso contrário, dizia: veremos isso mavam as suas aulas e os seminários,
todas as sextas-feiras, depois da em sala de aula. Desse modo, com e a leitura das suas obras.

26 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


IHU On-Line – Quais são as IHU On-Line – Em que aspectos e outros, entre os quais me incluo,

Tema de Capa
concepções mais instigantes desse as raízes da teologia de Rahner bro- pois abriu as nossas mentes para uma
teólogo? tam da experiência inaciana? compreensão “aggiornata” e conciliar
Juan Carlos Scannone – Entre as Juan Carlos Scannone – O pró- da teologia, assim como nos predis-
suas concepções mais centrais está a prio Rahner escreveu sobre “A lógica pôs a estar atentos à nossa realidade
de mistério, que é núcleo de sua com- existencial de Santo Inácio”2, referin- latino-americana, como ele estava
preensão teológica da Trindade, da do-se ao tema do discernimento ina- em relação à sua realidade centro-
Encarnação e da Graça (e Igreja), e sua ciano, mostrando as raízes inacianas -europeia. Foi um modelo de conver-
compreensão filosófica de Deus. do seu pensamento teológico. Pen- gência pessoal entre fé e espirituali-
so que se relaciona com sua experi- dade vividas, preocupação pastoral
IHU On-Line – Qual é o impacto ência e compreensão do mistério de e reflexão filosófico-teológica. Dada
dessas ideias na igreja de hoje? Deus que, como disse mais acima, a sua situação geocultural, não deu
Juan Carlos Scannone – Parece- se explicita nos mistérios fundamen- tanta importância à problemática dos
-me que, além das suas ideias, seu in- tais da nossa fé e sua inter-relação. pobres, como nós damos na América
fluxo na Igreja de hoje se dá através
Latina e como está dando hoje o Papa
da abertura do seu pensamento ao IHU On-Line – Como suas ideias Francisco4.
diálogo com a modernidade e seu ir influenciaram a teologia da América
além desta, na linha do Concílio Vati- Latina dos anos 1960 em diante?
cano II, no que se pode notar um es- Juan Carlos Scannone – Um dos Leia mais...
pírito semelhante ao seu. Além disso, modos pelos quais Rahner influiu na
dado o seu “olfato” teológico, reco- América Latina foi através de discí- • A teologia de Francisco. Entrevista
nheceu duas contribuições originais pulos seus, como Ignacio Ellacuría3 com Juan Carlos Scannone publica-
da Igreja e teologia latino-america-
da nas Notícias do Dia, de 27-05-
nas à Igreja universal, editando, res- A desconstrução da metafísica, que pode
ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. 2013, do sítio do Instituto Humani-
pectivamente, livros sobre “teologia Confira, também, a entrevista concedida
libertadora” e “religiosidade popular, por Ernildo Stein à edição 328 da revista tas Unisinos – IHU, disponível em
IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível
religião do povo”. em http://bit.ly/ihuon328, intitulada O
http://bit.ly/1v4Tl6n.
biologismo radical de Nietzsche não pode • ‘’Quando Jorge Mario era meu alu-
IHU On-Line – Qual é a impor- ser minimizado, na qual discute ideias de
sua conferência “A crítica de Heidegger no no seminário’’: o teólogo Scanno-
tância de Joseph Maréchal para Rah- ao biologismo de Nietzsche e a questão
da biopolítica”, parte integrante do ciclo
ne sobre Francisco. Entrevista com
ner? Além desse pensador, que ou-
de estudos Filosofias da diferença – pré- Juan Carlos Scannone publicada nas
tros filósofos influenciaram Rahner evento do XI Simpósio Internacional IHU:
fundamentalmente? O (des)governo biopolítico da vida huma- Notícias do Dia, de 26-05-2013, do
na. (Nota da IHU On-Line)
Juan Carlos Scannone – Seu pen- 2 Inácio de Loyola (1491-1556): funda- sítio do Instituto Humanitas Unisi-
samento filosófico, fundamental para dor da Companhia de Jesus, conhecida nos – IHU, disponível em http://bit.
como os Jesuítas, cuja missão é o servi-
entender sua teologia especulativa, ço da fé, a promoção da justiça, o diá- ly/1xP59Mg.
parte da confluência entre o tomismo logo inter-religioso e cultural. (Nota da
IHU On-Line) • “A Teologia da Cultura não se opõe
transcendental de Joseph Maréchal e 3 Ignacio Ellacuría: filósofo, especialis- à Teologia da Libertação”. Entrevista
o assim chamado primeiro Heidegger1 ta em Zubiri, jesuíta, foi assassinado no
(o do Ser e Tempo). dia 15 de novembro de 1988, juntamen- com Juan Carlos Scannone publica-
te com mais quatro companheiros jesu-
ítas e duas senhoras, em San Salvador, da nas Notícias do Dia, de 06-09- www.ihu.unisinos.br
1 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo El Salvador. Ele era reitor da Universida- 2007, do sítio do Instituto Humani-
alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem- de Centro Americana, em San Salvador,
po (1927). A problemática heideggeriana confiada à Companhia de Jesus. Ele e tas Unisinos – IHU, disponível em
é ampliada em Que é Metafísica? (1929), seus companheiros foram barbaramen-
Cartas sobre o humanismo (1947), Intro- te assassinados por terem conseguido http://bit.ly/1xP59Mg.
dução à metafísica (1953). Sobre Heide- fazer da Universidade uma importante
gger, a IHU On-Line publicou, na edição força social na luta pela promoção da
139, de 02-05-2005, o artigo O pensa- justiça social. Sobre Ellacuría, confira a
mento jurídico-político de Heidegger e entrevista especial concedida por Héc-
Carl Schmitt. A fascinação por noções tor Samour, em 16-11-2007, ao site do mártires jesuítas e o memorial criado
fundadoras do nazismo, disponível para IHU, www.unisinos.br/ihu, intitulada pelo IHU em sua homenagem: http://
download em http://bit.ly/ihuon139. Inteligência, compaixão e serviço. Ce- migre.me/11DOt. (Nota da IHU On-Line)
Sobre Heidegger, confira as edições 185, lebrando o martírio de Ignacio Ellacuría 4 Papa Francisco (1936): argentino fi-
de 19-06-2006, intitulada O século de e companheiros, disponível em http:// lho de imigrantes italianos, Jorge Mario
Heidegger, disponível para download em migre.me/11DN8. Na mesma data, nosso Bergoglio é o atual chefe de estado do
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07- site publicou a notícia Ignacio Ellacuría Vaticano e Papa da Igreja Católica, su-
2006, intitulada Ser e tempo. A descons- e companheiros assassinados no dia 16- cedendo o Papa Bento XVI. É o primeiro
trução da metafísica, que pode ser aces- 11-1989, disponível em http://migre. papa nascido no continente americano, o
sada em http://bit.ly/ihuon187. Confira, me/11DO7. No site do IHU visite a Sala primeiro não europeu no papado em mais
ainda, o nº 12 dos Cadernos IHU em Ignacio Ellacuría e Companheiros, onde de 1200 anos e o primeiro jesuíta a assu-
formação, intitulado Martin Heidegger. podem ser lidas notícias, a história dos mir o cargo. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 27


O trabalho intelectual de
Tema de Capa

Karl Rahner e a redescoberta


de Deus
Professor emérito da Universidade de Innsbruck, na Áustria, Karl Neufeld fala sobre o
trabalho teórico de Rahner

Por Márcia Junges e Ricardo Machado | Tradução: Walter Schlupp

“J
esus Cristo redimiu o mundo, e isso mento. Porém mais importantes são as ideias
tem efeito real sobre a realidade. fundamentais do concílio, a ‘vontade salvífica
Esta é a premissa para que a pessoa geral de Deus’, ‘revelação como autocomuni-
humana possa consciente e responsavelmen- cação de Deus’, ou mesmo reformas práticas
te aceitar e acreditar na mensagem de Jesus”, como a concelebração, diaconato perene, ou
explica o professor doutor Karl Neufeld em seja: trata-se não tanto de conceitos, e sim de
entrevista por e-mail à IHU On-Line, ao co- noções fundamentais e consequências práti-
mentar o pensamento teológico de Karl Rah- cas”, aponta Neufeld.
ner. “Somente nessa aceitação explícita é que Karl Heinz Neufeld é jesuíta e foi professor
a obra de Jesus Cristo atinge plenamente seu de Teologia Fundamental na Universidade de
objetivo. Isso naturalmente não é anulado Innsbruck e diretor dos arquivos Rahner. Os
pelo simples fato de algum indivíduo não o temas de sua pesquisa são: o pensamento
aceitar. Rahner diz: a modalidade da salvação teológico nas igrejas protestante e católica
é a oferta”, complementa. desde o início do século; o encontro do cris-
O trabalho intelectual do jesuíta alemão tianismo com o hinduísmo e o budismo; a te-
Karl Rahner teve um papel importante duran- ologia das religiões. Participou recentemente,
te o Concílio Vaticano II onde discutiram al- nos dias 25 e 26 de abril de 2014, do even-
guns conceitos trabalhados por ele. “Existem to Rahner Lecture 2014 como conferencista
conceitos como ‘reconciliação com a igreja’, principal.
ligada ao profundo conceito de arrependi- Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Em que aspectos IHU On-Line – Qual é a relação Rahner tenta fazer uma intermedia-
as raízes da teologia de Rahner bro- de Rahner com a teologia francesa, a ção entre as propostas francesas e as
tam da experiência inaciana? chamada nouvelle theologie? reservas que se poderia esperar de
Karl Neufeld – Rahner era jesuíta. Karl Neufeld – Karl Rahner se Roma.
Além de praticar os respectivos exer- familiarizou bastante cedo com as
cícios inacianos, ele propôs exercícios ideias provenientes da França. Para IHU On-Line – A partir de Rah-
para outros também. Nesse aspecto, tratar dessas questões, jesuítas pro- ner, como podemos compreender a
para ele era importante a questão da venientes de Fourvière e Innsbruck mudança do cristianismo anônimo
vontade concreta de Deus enquanto reuniram-se em Schönbrunn, Suíça. O para um cristianismo relacional?
opção (electio). Isso foi determinante resultado encontra-se em „Orientie- Karl Neufeld – Jesus Cristo redi-
para sua cognição e seu pensamento. rung“ 14 (1950), 141-145, onde Karl miu o mundo, e isso tem efeito real

28 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


sobre a realidade. Esta é a premis-
“Jesus Cristo Escritos sobre teologia e do Dicionário

Tema de Capa
sa para que a pessoa humana possa de teologia e igreja. Naquela época,
consciente e responsavelmente acei-
tar e acreditar na mensagem de Jesus.
redimiu o mundo, Metz estava reeditando os primeiros
livros de Rahner, Geist in Welt (1939)
Somente nessa aceitação explícita
é que a obra de Jesus Cristo atinge
e isso tem efeito e Hörer des Wortes (1941). Isso de-
sencadeou uma discussão sobre as
plenamente seu objetivo. Isso natu-
ralmente não é anulado pelo simples
real sobre a implicações desses trabalhos de Rah-
ner, discussão essa que não havia
fato de algum indivíduo não o aceitar.
Rahner diz: a modalidade da salvação
realidade” ocorrido anteriormente. O próprio
Rahner entrou nessa discussão. Por
é a oferta. isso suas contribuições pastorais nes-
comunidade eclesial das ideias de sa época passaram para o segundo
IHU On-Line – É possível iden-
Rahner? plano, como, por exemplo, Handbu-
tificar conceitos de Rahner nos do-
Karl Neufeld – Nesse sentido ch der Pastoraltheologie ou o léxico
cumentos do Concílio Vaticano II?
existe uma série de exemplos, como Sacramentum Mundi. Antes disso, a
Quais seriam esses documentos?
suas opiniões sobre a inspiração da publicação Sendung und Gnade já ti-
Karl Neufeld – Existem conceitos
escritura, sobre a teologia da morte, nha dado significante impulso nesse
como „reconciliação com a igreja“,
ligada ao profundo conceito de arre- introdução a um curso preliminar da sentido.
pendimento. Porém mais importantes fé como fundamento para o estudo da
teologia, etc. IHU On-Line – Gostaria de
são as ideias fundamentais do concí-
lio, a „vontade salvífica geral de Deus“, acrescentar algum aspecto não
„revelação como autocomunicação IHU On-Line – Qual é a relação questionado?
de Deus“, ou mesmo reformas práti- entre Rahner e Metz e qual é o im- Karl Neufeld – O impulso pasto-
cas como a concelebração, diaconato pacto de eventos como o Holocausto ral teológico e a ênfase pastoral do seu
perene, ou seja: trata-se não tanto de em suas teologias? pensamento e das suas contribuições
conceitos, e sim de noções fundamen- Karl Neufeld – Metz é aluno do merecem uma reflexão mais aprofun-
tais e consequências práticas. Rahner pré-conciliar, que também dada. Isso porque a partir daí os estí-
quer se diferenciar do seu mestre. An- mulos espirituais se explicam de uma
IHU On-Line – Como se pode tes do concílio, Rahner estava ocupa- forma mais natural do que a partir da
avaliar a recepção teológica pela do principalmente com a edição dos questão teológica e transcendental.

Baú da IHU On-Line


Outras edições que abordaram a teologia de Karl Rahner e sua influência na teologia cristã.
www.ihu.unisinos.br
• Deus e a humanidade: algo a ver? Karl Rahner 100 anos. IHU On-Line nº 102, de 24-05-2004, disponível em
http://bit.ly/TT0olb;
• J. B. Libânio. A trajetória de um teólogo brasileiro. Testemunhos. IHU On-Line nº 394, de 28-05-2012, disponível em
http://www.bit.ly/ihuon394;
• Jesus e o abraço universal. IHU On-Line nº 248, de 17-12-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon248;
• Projeto de Ética Mundial. Um debate. IHU On-Line nº 240, de 22-10-2007, disponível em http://www.bit.ly/ihuon240;
• Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II. IHU On-Line nº 297, de 15-06-2009, disponível em http://www.bit.ly/ihuon297;
• O futuro que advém. A evolução e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin. IHU On-Line nº 304, de 17-08-2009, dis-
ponível em http://www.bit.ly/ihuon304
• Concílio Vaticano II. 50 anos depois. IHU On-Line nº 401, de 03-09-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon401
• Igreja, Cultura e Sociedade. IHU On-Line nº 403, de 24-09-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon403
• Congresso Continental de Teologia. Concílio Vaticano II e Teologia da Libertação em debate. IHU On-Line nº 404, de
05-10-2012, disponível em http://www.bit.ly/ihuon404

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 29


A implícita presença de Deus no
Tema de Capa

pluralismo religioso
O mestrando em teologia Edisley Batista fala sobre a importância do trabalho de Karl
Rahner na compreensão do diálogo no pluralismo religioso

Por Márcia Junges e Ricardo Machado

O
cristianismo, a partir do pensamen- gia rahneriana deve necessariamente levar
to de Rahner é entendido como um em consideração que não se trata de um tra-
aperfeiçoamento da religiosidade balho monográfico, ou seja, não é limitada
dos sujeitos. “Rahner considera o não cris- a uma única temática, por mais importante
tão como um cristão que ainda não chegou que ela seja. Rahner desde seus primeiros
à consciência refletida sobre si mesmo, as- escritos até a sua maturidade afrontou di-
sim, a pregação do Evangelho não se des- versas problemáticas no âmbito da antropo-
tina a uma pessoa abandonada por Deus e logia, da dogmática, da eclesiologia, teologia
que não tenha nenhuma relação com Cristo, fundamental, até mesmo da ética, da moral,
transformando-a, portanto, em um cristão”, etc.”, esclarece Edisley Batista. “Rahner se
explica Edisley Batista em entrevista por encontra diante de um ambiente que não
e-mail à IHU On-Line. “Karl Rahner, na sua correspondia mais ao mundo cristão da sua
obra Ouvinte da Palavra (Hörer des Wor- juventude, por isso, ele demonstra sua in-
tes), refere-se ao homem como ser de aber- satisfação. Isso explica todo o seu empenho
tura ilimitada ao ser absoluto, e como ser em elaborar uma teologia que fosse sinal do
de transcendência, o homem está sempre testemunho da fé em Jesus Cristo, e que pri-
aberto a Deus. Isso significa dizer que não masse por um cristianismo verdadeiramente
se pode fazer teologia sem considerar a re- autêntico, atento às necessidades concretas
alidade humana, pois a vida do homem é o do homem”, aponta.
lugar da fé; no dizer de Rahner, ‘toda palavra Edisley Batista da Silva nasceu em For-
sobre Deus é também uma palavra sobre o moso do Araguaia, no interior do Tocantins,
homem’”, complementa. e é sacerdote da diocese de Porto Nacional,
Para o teólogo alemão Karl Rahner, as ou- também no Estado. Graduado em Filosofia e
tras religiões têm em comum umas com as Teologia pelo Centro de Estudos Superiores
outras mais que a simples crença em Deus, Matter Dei (TO), atualmente é mestrando em
argumento defendido ainda em 1961, antes Teologia Dogmática na Pontifícia Universida-
mesmo da realização do Concílio Vaticano II. de Gregoriana, em Roma, na Itália.
“Uma tentativa de caracterização da teolo- Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – Em que consiste a selitismo. A missão cristã, segundo encontre existencialmente em uma
missiologia em Rahner? Rahner, se direciona, sobretudo, ao situação de justificação e graça, a
Edisley Batista – Rahner consi- “cristão anônimo” com o objetivo de missão se faz necessária precisamen-
dera o não cristão como um cristão torná-lo consciente por via refletida te porque esta tomada de consciên-
que ainda não chegou à consciência (consciência subjetiva) e objetiva do cia representa a própria essência do
refletida sobre si mesmo, assim, a cristianismo que pulsa no mais pro- cristianismo e é a expressão mais alta
pregação do Evangelho não se des- fundo do seu ser tocado pela graça, do seu desenvolvimento. O cristianis-
tina a uma pessoa abandonada por em virtude da sua existência sobre- mo é entendido no pensamento do
Deus e que não tenha nenhuma re- nosso teólogo como o aperfeiçoa-
natural1. Embora o homem já se
lação com Cristo, transformando-a, mento da religiosidade do indivíduo.
portanto, em um cristão. A ação mis- 1 Cf. K. RAHNER, Saggi di antropologia so- O cristão anônimo, graças à missão, é
siológica não se confunde com pro- pranaturale, 567. (Nota do Entrevistado) chamado a explicitar a sua fé e fazer

30 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


parte de uma comunidade de fé, a ser de abertura ilimitada ao ser abso- se notam resquícios, ou mesmo in-

Tema de Capa
Igreja. Para o teólogo alemão, o últi- luto, e, como ser de transcendência, fluências, da sua teologia. O decreto
mo fundamento da atividade missio- o homem está sempre aberto a Deus. Ad gentes faz emergir na Igreja a sua
nária se justifica pelo simples fato de Isso significa dizer que não se pode mais alta vocação, que é a sua ação
que o cristianismo é a mais alta for- fazer teologia sem considerar a reali- missionária universal. O documento
ma de religião, a qual todos tendem. dade humana, pois a vida do homem representa um salto em relação às
Em 1959, Rahner publica um texto in- é o lugar da fé; no dizer de Rahner, concepções antigas quando admite a
titulado Missão e Graça, onde ele faz “toda palavra sobre Deus é também existência de verdade e de graça nas
uma interpretação teológica da pre- uma palavra sobre o homem”. A sua demais religiões, ainda que tenha
sença do cristão no mundo moderno, antropologia transcendental nos per- necessidade de uma “purificação”
das suas obrigações e, sobretudo, da mite confrontar com o pensamento através da missão. É justamente nes-
missão do cristão. Faz também uma pós-moderno, salvaguardando a es- te ponto que aparece a contribuição
análise dos problemas teológicos sência mais profunda do ser humano, fundamental do teólogo alemão, pois
fundamentais da pastoral, tentando sua realidade espiritual mais profun- em 1961 Rahner já defendia a ideia
descrever que a finalidade última da da e, como consequência, sua aber- de que as outras religiões possuem
pastoral é a abertura às diversas for- tura ao mistério de Deus. Ainda po- muito mais do que uma mera cren-
mas de vivência da fé. demos dizer da sua relevância para ça natural em Deus, e afirma efeti-
o atual contexto religioso. Rahner é, vamente que existem “substanciais
IHU On-Line – Qual é a sua atua- necessariamente, referência no con- traços sobrenaturais da graça”5. Esta
lidade e importância na teologia dos texto do pluralismo religioso, pois concepção e reconhecimento das de-
nossos dias? sempre defendeu e sempre escreveu mais religiões que Rahner antevira
Edisley Batista – Falar da atua- sobre a necessidade e importância influenciou profundamente a nova
lidade e da importância de Rahner de reconhecer a real presença de relação e abertura da Igreja e do cris-
para os nossos dias é sempre uma Deus mesmo onde a fé não é vivida tianismo com as religiões não cristãs,
questão aparentemente simples, mas explicitamente. pois a atividade missionária consiste
que é preciso estar atento. Ele é um propriamente nisto, em abrir-se a to-
teólogo do século XX, portanto, um IHU On-Line – Qual é a contri- das as realidades e fazer vir à tona a
contexto diferente do nosso, com pro- buição desse teólogo para a redação fé que já é vivida ‘atematicamente’
blemáticas peculiares. Podemos ver a do documento Ad gentes3? em todas as religiões.
atualidade da sua obra no fato de que Edisley Batista – Karl Rahner,
o seu pensamento perdura em seus juntamente com outros grandes teó- IHU On-Line – O que Metz6 quer
seguidores, inúmeras teses são ainda logos, contribuiu sobremaneira para dizer com a “capacidade em relação
feitas e temas bastante explorados da a nova visão eclesiológica oriunda do à humanidade imediata” de Rahner?
sua teologia. O arcabouço teológico Vaticano II4. Em muitos documentos
de Rahner oferece ainda hoje uma
Concílio Vaticano II – marcos, trajetórias
possibilidade enorme de investigação 3 Ad gentes: em 7 de dezembro de 1965, e perspectivas. Confira a edição 157 da
e de confronto, bem como indicações o Papa Paulo VI promulgava o decreto Ad IHU On-Line, de 26-09-2005, intitulada
relevantes no âmbito da antropologia, gentes, sobre a “Actividade Missionária Há lugar para a Igreja na sociedade con-
da Igreja”, um dos documentos mais re- temporânea? Gaudium et Spes: 40 anos,
eclesiologia, missiologia, etc. levantes e mais trabalhosos que resulta- disponível em http://bit.ly/mT6cyj. Ain-
Porém, o legado fundamental ram do Concílio Vaticano II. A ele se deve da sobre o tema, a IHU On-Line produziu
de toda a teologia rahneriana talvez toda uma revolução na forma de encarar a edição 297, Karl Rahner e a ruptura do
e praticar a missão. E também o respeito Vaticano II, de 15-6-2009, disponível em
seja o de conceber a “experiência de pela cultura, pela história e pelas religi- http://bit.ly/o2e8cX, bem como a edi-
Deus” como categoria fundamental ões dos povos a evangelizar. (Nota da IHU ção 401, de 03-09-2012, intitulada Con-
do ato de teologizar, de tal forma que On-Line) cílio Vaticano II. 50 anos depois, disponí-
4 Concílio Vaticano II: convocado no dia vel em http://bit.ly/REokjn, e a edição
leve em consideração antes de qual-
www.ihu.unisinos.br
11-11-1962 pelo Papa João XXIII. Ocorre- 425, de 01-07-2013, intitulada O Concílio
quer coisa a relação existente entre ram quatro sessões, uma em cada ano. Vaticano II como evento dialógico. Um
o homem e Deus, através de Jesus Seu encerramento deu-se a 08-12-1965, olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu
pelo Papa Paulo VI. A revisão proposta por Círculo, esta disponível em http://bit.
Cristo. Existe, com isso, uma perspec- este Concílio estava centrada na visão ly/1cUUZfC. (Nota da IHU On-Line)
tiva ou acentuação mística2 na teolo- da Igreja como uma congregação de fé, 5 K. RAHNER, Saggi di antropologia so-
gia deste teólogo. Outro ponto que substituindo a concepção hierárquica do pranurale, 545. (Nota do Entrevistado)
Concílio anterior, que declarara a infali- 6 Johann Baptist Metz (1928): teólogo
se pode referir como herança para bilidade papal. As transformações que in- católico alemão, professor de Teologia
a teologia hodierna é sem dúvidas a troduziu foram no sentido da democrati- Fundamental, professor emérito na Uni-
relevância antropológica no pensa- zação dos ritos, como a missa rezada em versidade de Münster, Alemanha. Aluno
vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis de Karl Rahner, desfiliou-se da teologia
mento teológico. Karl Rahner, na sua dos diferentes países. Este Concílio en- transcendental de Rahner, em troca de
obra Ouvinte da Palavra (Hörer des controu resistência dos setores conserva- uma teologia fundamentada na prática.
Wortes), refere-se ao homem como dores da Igreja, defensores da hierarquia Metz está no centro de uma escola da
e do dogma estrito, e seus frutos foram, teologia política que influenciou forte-
aos poucos, esvaziados, retornando a mente a Teologia da Libertação. É um dos
Igreja à estrutura rígida preconizada pelo teólogos alemães mais influentes no pós-
2 Cf. E. KLINGER, L`assoluto nel quoti- Concílio Vaticano I. O Instituto Humani- Concílio Vaticano II. Seus pensamentos
diano. La teologia spirituale di Karl Rah- tas Unisinos – IHU promoveu, de 11 de giram ao redor de atenção fundamental
ner, 86. (Nota do Entrevistado) agosto a 11-11-2005, o ciclo de estudos ao sofrimento de outros. As chaves de

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 31


Edisley Batista – No capítulo 10 sentar-se “a uma alteridade vazia, o grandes obras Espírito no Mundo e
Tema de Capa
da sua obra Hörer des Wortes (Ou- homem estaria em si ainda insepará- Ouvintes da Palavra, bem como em
vinte da Palavra), Rahner fala sobre vel de si (não mediato)”. Por isso, ele seus inúmeros ensaios, Rahner tenta
o homem como ser material, evi- realiza esta sua capacidade em rela- demonstrar a necessidade da aná-
denciando que “o homem só realiza ção precisamente a uma humanida- lise sobre o homem como ponto de
um retorno sobre si mesmo (este é de concreta, em direção da qual ele partida para a teologia, pois se trata
o princípio transcendental baseado transcende. Vale recordar que Metz sempre de refletir sobre a possibi-
na metafísica de Tomás de Aquino7) não entende transcendência em ter- lidade de estabelecer uma relação
saindo no mundo diverso de si”. Se- mos de categorias espaciais, como entre Deus e o homem. Para Rahner,
gundo Rahner esta abertura do ho- aquilo que é “ultramundano”, mas o homem é sempre um “ouvinte da
mem ao mundo através do qual ele a entende segundo categorias histó- palavra”, está invariavelmente aber-
realiza a sua transcendentalidade ricas, isto é, o aperfeiçoamento no to à escuta da palavra de Deus (que
é o que favorece a capacidade au- interior mesmo da história9, por isso, é um evento) que acontece através
torreflexiva do ser, precisamente no esta relação imediata se concretiza da sua revelação; por isso, segundo
possuir o ser próprio do homem. historicamente. este teólogo, é imprescindível uma
Esta relação, sempre transcendental, reflexão antropológica ao considerar
mesmo que histórica, ou melhor, jus- IHU On-Line – Por que teólogos a autocomunicação de Deus.
tamente a causa disso, se transforma como Metz consideram a teologia de H. U. Von Balthasar11 foi um dos
por si na possibilidade de o homem Rahner uma “teologia voltada para a grandes críticos do pensamento rah-
ter junto de si um outro como “pri- antropologia”? neriano, pois, conforme o teólogo
meiro conhecido” (no sentido gno- Edisley Batista – Esta é uma suíço, trata-se de um reducionismo
siológico). Este outro é, na verdade, a das maiores críticas ao pensamen- antropológico, ou seja, Rahner teria
“possibilidade subjetiva” da posse do to de Rahner. Metz, que foi um dos reduzido a teologia a uma antropo-
ser, que é necessariamente real, que seus mais eminentes discípulos, em logia, invertendo o polo da reflexão.
condivide o elemento substancial e sua obra O antropocentrismo cristão Também W. Kasper se mantém um
imediato8. Metz, ao fazer um comen- (1961), faz uma análise antropológi- pouco distante da teologia de Rahner,
tário sobre esta passagem da obra ca da teologia, partindo, assim como considerando-a como uma incomple-
de Rahner, ressalta que a realidade Rahner, da interpretação da forma ta reflexão teológica, restrita ao cam-
desta “possibilidade subjetiva” não mentis de Tomás de Aquino. Para po antropológico.
pode ser entendida como se perten- Metz é evidente que o pensamen-
cesse a si mesmo absolutamente, in- to de Aquino é, no que se refere ao IHU On-Line – Qual é a peculiari-
dependentemente do ser ao qual ela seu conteúdo, fundamentalmente dade do projeto teológico de Rahner
é atribuída. A realidade dessa capaci- teocêntrico, mas do ponto de vista como um todo? Quais são suas prin-
dade imediata de possuir o ser deve formal, isto é, ontologicamente, é an- cipais intuições?
ser entendida sempre em relação ao tropológico10. E é precisamente deste Edisley Batista – Uma tenta-
homem, como sua realidade imedia- ponto do pensamento de Tomás de tiva de caracterização da teologia
ta, como componente da sua trans- Aquino que Rahner parte para elabo- rahneriana deve necessariamente
cendentalidade. Segundo Metz, ain- rar sua teologia transcendental, que levar em consideração que não se
da na interpretação de “Ouvintes da considera fundamental falar do ho- trata de um trabalho monográfico,
Palavra”, esta materialidade conduz mem em teologia. Para Rahner, não ou seja, não é limitada a uma única
o homem por si ao espaço determi- existe uma palavra sobre Deus que temática, por mais importante que
nado do outro, onde se realiza o seu não seja simultaneamente e necessa-
ser. Assim, no simples fato de apre- riamente uma palavra também sobre
o ser humano. Ele coloca no centro 11 Hans Urs Von Balthasar (1905-1988):
teólogo católico suíço. Estudou Filoso-
da sua teologia a questão antropoló-
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sua teologia são memória, solidariedade fia em Viena, Berlim e Zurique, onde
e narrativa. Dele publicamos uma entre- gica, pois para fazer teologia é neces- se doutorou em 1929, e em Teologia em
vista na 13ª edição, de 15-04-2002, dis- sário antes de tudo considerar aque- Munique e Lyon. Destacou-se como in-
ponível em http://bit.ly/ihuon13. (Nota vestigador dos santos padres e da Filoso-
da IHU On-Line)
la realidade na qual Deus mesmo se fia e Literatura modernas, especialmen-
7 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa- tornou. É voltada para a antropologia te a franco-germana. Criou sua própria
dre dominicano, teólogo, distinto expo- porque no plano ontológico e antro- Teologia, síntese original do pensamento
ente da escolástica, proclamado santo e patrístico e contemporâneo. Entre suas
cognominado Doctor Communis ou Doctor
pológico Rahner procurou analisar obras destacam-se O cristianismo e a
Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior profundamente as condições de pos- angústia (1951), O mistério das origens
mérito foi a síntese do cristianismo com a sibilidade, para o homem, de expe- (1957), O problema de Deus no homem
visão aristotélica do mundo, introduzindo atual (1958) e Teologia da história
o aristotelismo, sendo redescoberto na
rimentar no íntimo da sua própria (1959). A edição 193 da IHU On-Line, de
Idade Média, na escolástica anterior. Em existência uma abertura ao mistério 28-08-2006, Jorge Luis Borges. A virtude
suas duas “Summae”, sistematizou o co- sacro e absoluto de Deus. Nas suas da ironia na sala de espera do mistério,
nhecimento teológico e filosófico de sua publicou uma entrevista com Ignácio J.
época, são elas: a Summa Theologiae, a Navarro, intitulada Borges e Von Baltha-
Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU 9 Cf. J. B. METZ, Sulla teologia del mon- sar. Uma leitura teológica, disponível no
On-Line) do, 160. (Nota do Entrevistado) link http://www.unisinos.br/ihuonline/
8 Cf. K. RAHNER, Uditori della parola, 10 Cf. G. COCCOLINI, Johann Baptist uploads/edicoes/1158343116.57pdf.
164. (Nota do Entrevistado) Metz, 34. (Nota do Entrevistado) pdf. (Nota da IHU On-Line)

32 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


ela seja. Rahner, desde seus primei- relação com a graça salvífica e univer- jovem teólogo J. Ratzinger16. É possí-

Tema de Capa
ros escritos até a sua maturidade, sal de Deus. vel, porém, reconhecer aspectos da
afrontou diversas problemáticas no sua contribuição teológica em vários
âmbito da antropologia, da dogmá- IHU On-Line – Como a teologia temas conciliares, tais como o dever
tica, da eclesiologia, teologia fun- de Rahner repercute em documentos da descentralização eclesial, abertu-
damental, até mesmo da ética, da conciliares como a Gaudium et spes? ra para o diálogo ecumênico17, e, em
moral, etc. Ignazio Sanna12 diz que a Edisley Batista – Mesmo que o virtude de ter sido nomeado para a
teologia de Rahner poderia ser cha- contexto do Vaticano II seja o período Comissão dos sacramentos, a sua con-
mada de “kairológica” no sentido de em que Rahner começa a despontar tribuição para a renovação do diaco-
que ele faz uma leitura dos diversos no cenário teológico, e embora ele nato. Empenhou-se também em cola-
momentos de kairós da vida huma- tenha participado do evento conciliar, borar com a reflexão de documentos
na à luz da Palavra de Deus. Toda não foi, contudo, o teólogo ou perito como Lumen Gentium, Dei Verbum e
produção teológica, bem como fi- mais notável do Concílio. Rahner foi Gaudium et Spes18. No que se refere a
losófica de Rahner, é no intuito de convidado a participar do Concílio esta última, a contribuição do teólogo
responder às questões mais funda- pelo então Arcebispo de Viena, car- alemão é relevante para a compreen-
mentais da vida humana, questões deal König13, como seu perito parti- são da categoria de “mundo”, pois,
profundamente existenciais e bem cular. Trabalhou ao lado de grandes para ele, um documento que ressalte
concretas, de forma a oferecer ele- teólogos da época e de agora como a relação entre Igreja e mundo deve
mentos teóricos para que, do mo- Yves Congar14, H. de Lubac15 e o ainda necessariamente partir de problemá-
mento em que Deus se revela a todo ticas tipicamente humanas.
homem sem distinção, cada pessoa 13 Franz König: austríaco, foi nomeado
arcebispo de Viena, em 1956, pelo papa
seja capaz de compreender e inter- Pio XII e nomeado cardeal por João XXIII, Referências
pretar esta revelação, levando em em 1958. Foi, juntamente com os cardeais RAHNER, K. Saggi di antropologia sopra-
Alfrink, da Holanda, Suenens, da Bélgica,
consideração sua própria existência. Lercaro, da Itália, e Doepfner, da Alema-
naturale, Ed. Poline- Roma, 1969.
Porém, Rahner dedicou bastante nha, um dos grandes homens do Concílio RAHNER, K. Uditori della parola, Borla-
atenção a temas como método trans- Vaticano II. Faleceu em março de 2004, Roma, 1967.
aos 98 anos de idade. Já arcebispo emé- COCCOLINI, G. Johann Baptist Metz, Mor-
cendental, onde procura justificar a rito, em 1999, concedeu uma entrevista à
necessidade de verificar no próprio revista inglesa The Tablet, em que defen- celiana, Brescia, 2007.
dia “a descentralização do poder do papa KLINGER, E. L`assoluto nel quotidiano. La
homem as suas condições de possibi- e da cúria romana. Por mais de mil anos teologia spirituale di Karl Rahner, Ed. Mes-
lidade para acolher a autocomunica- os bispos foram eleitos pelos fiéis e con-
sagero Padova Padova, 1994.
ção de Deus. De fundamental impor- firmados pelo papa. Devemos retomar as
METZ, J.B. Sulla teologia del mondo, Que-
formas descentralizadas das estruturas de
tância também é a sua reflexão sobre comando da igreja, como se fazia nos pri- riniana, Brescia, 1969.
o Existencial Sobrenatural, onde o ho- meiros séculos”. Era um grande estudioso RAFFELT. A.; VERWEYEN, H. Leggere Karl
mem se encontra permanentemente das grandes religiões da humanidade. Ele
organizou, em 1951, a obra, em três volu- Rahner, Queriniana, 2004.
aberto ao mistério absoluto, Deus, mes, Christus und die Religionen der Erde Teologia del Vaticano II, a cura della Scuola
não devido à sua natureza, mas como (Cristo e as Religiões da Terra). Numa das del Seminario di Bergamo, San Paolo, Mi-
últimas declarações públicas dada por ele,
pura e unicamente oferta da graça de logo depois do 11 de setembro de 2001, se
lano, 2012.
Deus. Por consequência, toda pessoa contrapôs àqueles que defendiam “a su-
é já envolvida pela graça salvífica de perioridade da religião cristã”, apelando Papa João Paulo II o fez cardeal no ano
ao respeito à diversidade religiosa e dis- de 1983. É considerado um dos teólogos
Cristo, temática ou atematicamente. tinguindo a fé autêntica do integralismo. católicos mais eminentes do século XX.
Daqui Rahner elabora sua controver- (Nota do IHU On-Line) Sua principal contribuição foi o modo de
sa doutrina dos “cristãos anônimos”. 14 Yves Marie-Joseph Congar (1904:1995): entender o fim sobrenatural do homem
teólogo dominicano francês, conhecido por e sua relação com a graça. (Nota da IHU
Não menos importante, e sobretudo sua participação no Concílio Vaticano II. On-Line) www.ihu.unisinos.br
hoje num contexto de pluralismo re- Foi duramente perseguido pelo Vaticano, 16 Joseph Ratzinger (1927): teólogo ale-
antes do Concílio, por seu trabalho teoló- mão chamado Joseph Ratzinger, de 2005
ligioso, é a atenção que este teólogo gico. A isso se refere o seu confrade Tillard a 2013 assumiu o trono de Pedro sob o
dá às religiões não cristãs, sempre quando fala dos “exílios”. Sobre Congar a nome de Papa Bento XVI e hoje é chama-
defendendo a originalidade e presen- IHU On-Line publicou um artigo escrito por do de Papa Emérito. Autor de uma vasta
Rosino Gibellini, originalmente no site da e importante obra teológica, tem como
ça salvífica de Deus nestes homens e Editora Queriniana, na editoria Memória da um dos seus livros fundamentais Introdu-
mulheres que vivem a radicalidade da edição 150, de 08-08-2005, lembrando os ção ao cristianismo (São Paulo: Loyola,
vida, e que por isso mesmo estão em dez anos de sua morte, completados em 2006). Renunciou em fevereiro de 2013
22-06-1995. Também dedicamos a editoria ao pontificado. Sobre esse fato confira
Memória da 102ª edição da IHU On-Line, o seguinte material publicado pelas No-
12 Ignazio Sanna (1942): é um arcebispo de 24-05-2004, à comemoração do cente- tícias do Dia do site do IHU, em 03-03-
católico romano e teólogo italiano, atual- nário de nascimento de Congar. (Nota da 2013: Conjuntura da Semana. Bento XVI.
mente arcebispo de Oristano, Presidente IHU On-Line) As primeiras avaliações de um pontifica-
da Comissão para Estudos Superiores de 15 Henri de Lubac (1896-1991): teó- do, disponível em http://bit.ly/XkPinw.
Teologia e Ciências da Religião da CEI e logo jesuíta francês. Foi suspenso pelo (Nota da IHU On-Line)
membro da Pontifícia Academia de Te- Papa Pio XII. No seu exílio intelectual, 17 Cf. A.RAFFELT-H.VERWEYEN, Leggere
ologia, o Comitê de Projeto Cultural da escreveu um verdadeiro poema de amor Karl Rahner, 118. (Nota do Entrevistado)
Igreja italiana e da Comissão Episcopal à Igreja que são as suas Méditations 18 Cf. Teologia del Vaticano II, a cura del-
da CEI para a doutrina da fé, o anúncio e sur l’Eglise. Foi convidado a participar la Scuola del Seminario di Bergamo, 34.
a catequese. (Nota da IHU On-Line) do Concílio Vaticano II como perito e o (Nota do Entrevistado)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 33


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
34 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Destaques On-Line

Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 09-06-2014 a 13-06-2014, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do site do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Vale do Sinos preparado para os maiores Mais da metade dos municípios não tem
níveis de chuva? serviços de saneamento básico
Entrevista especial com Jackson Müller, biólogo e Entrevista especial com Édison Carlos, químico
professor da Unisinos e da Pós-Graduação em Direito industrial pós-graduado em Comunicação
Ambiental da Universidade de Caxias do Sul Estratégica
Publicada no dia 09-06-2014 Publicada no dia 10-06-2014
Acesse o link http://bit.ly/ihu090614
Acesse o link http://bit.ly/ihu100614
Para o biólogo Jackson Müller, a falta de planejamento O monitoramento das obras de saneamento básico
no crescimento e urbanização das cidades e redução realizadas pelos PAC 1 e PAC 2, realizado pelo Instituto
das áreas de banhados, que atuam como reservatórios Trata Brasil, revela não só que a maioria das obras estão
naturais para amortecimento das cheias, são alguns atrasadas ou paralisadas, mas que “17% da população
dos fatores que intensificam os impactos gerados não recebe água tratada e 51% não tem acesso à
pela alteração no regime das cheias, que ocasionam coleta de esgotos”, informa Édison Carlos em entrevista
enchentes e deixam famílias desabrigadas na região concedida à IHU On-Line. Das 219 obras analisadas
do Vale do Sinos, no Rio Grande do Sul. Em entrevista – 149 de esgotos e 70 de água – em municípios com
à IHU On-Line, ele propõe que os desafios postos população superior a 500 mil habitantes, no período de
à gestão pública estão diretamente relacionados à 2007 a 2013, “foram 24% de obras de esgotos do PAC 1
realização de obras de saneamento básico, em especial concluídas e 19% considerando a soma dos 2 PACs. Nas
à drenagem urbana. Aliado a isso, Müller enfatiza que obras de água, o cenário vai de 34% de obras concluídas
a falta de consciência social de que as ações individuais no PAC 1 até 27% quando se consideram os 2 PACs”,
geram um efeito que se multiplica, o que “constitui um diz. O atraso das obras, segundo ele, está relacionado
dos maiores problemas para a efetividade das medidas a problemas gerados pela apresentação de “projetos
de prevenção dos episódios mais críticos”. desatualizados ou tecnicamente falhos”.

Copa do Mundo: “O brasileiro, louco por A cidade enfeitada e o não


futebol, está alijado dos campos” enfrentamento da exploração sexual
durante a Copa
Entrevista especial com Rafael Alcadipani, vice-
chefe do Departamento de Administração Geral Entrevista especial com Daniella Alencar, militante
e Recursos Humanos da FGV e pesquisador de feminista da Associação Frida Kahlo do Ceará
organizações policiais e manifestações. Publicada no dia 12-06-2014
Publicada no dia 11-06-2014 Acesse o link http://bit.ly/ihu120614
Acesse o link http://bit.ly/ihu110614 www.ihu.unisinos.br
Conhecida como uma das 241 rotas do tráfico sexual
Uma “apatia no ar”, “um clima de medo” e “a presença de mulheres, Fortaleza, uma das cidades-sede da Copa
do Exército nas ruas”. É com esse cenário que os do Mundo, não promove, “por parte do Poder Público,
brasileiros vão assistir aos jogos da Copa do Mundo no nenhuma força-tarefa que seja para o enfrentamento
“país do futebol”, diz Rafael Alcadipani, um dia antes a essa questão e isso é muito cruel”, diz Daniella
do início do mundial, na entrevista a seguir, concedida Alencar em entrevista à IHU On-Line. Segundo ela,
à IHU On-Line. A sensação, acentua, é a de que “o a preocupação do Poder Público hoje é “enfeitar a
Brasil está triste por sediar o evento, o contrário do cidade e tentar concluir o que não foi concluído no
que se imaginaria em um país de fanáticos por futebol que diz respeito às obras físicas”. E continua: “Não
e um país que gosta de festas”, assinala. Apesar das se vê na cidade uma campanha institucional para o
manifestações recorrentes nas ruas e nas redes sociais, enfrentamento da exploração sexual ou aliciamento de
seguidas do grito “não vai ter copa”, “a tendência é de mulheres durante o período da copa”. Daniella acentua
que os protestos contra a Copa não vinguem tanto, que, apesar de não haver uma prevenção em relação
pois o evento está aí”, propõe. No entanto, demandas ao tráfico de mulheres, há uma preocupação social em
específicas de categorias podem ganhar corpo. “De todo torno da questão, tendo em vista que o grande público
modo, não podemos negar que existe um grande clima que virá para assistir aos jogos da copa do mundo são
de insatisfação nas ruas no Brasil”, avalia o pesquisador. homens.
EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 35
Teologia Pública
Destaques da Semana

A monstruosidade de Cristo.
Paradoxo ou dialética
O teólogo Adam Kotsko analisa o livro de Slavoj Žižek e John Milbank, em que a morte
de Jesus na cruz serve de eixo central para o diálogo entre os dois autores sobre as
condições humana e divina de Cristo

Por Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Walter Schlupp

O
diálogo travado entre o filósofo Sla- gel, que a modernidade é fruto autêntico do
voj Žižek1 e o teólogo John Milbank2 cristianismo, e não uma espécie de bastarda
no livro A monstruosidade de Cristo. ou órfã”, afirma Kotsko, em referência a um
Paradoxo ou dialética (São Paulo: Três Estre- dos tantos pontos em que há importante di-
las, 2014) (original inglês: The Monstrosity of vergência entre os paradigmas teóricos dos
Christ: Paradox or Dialectic (2009) é o tema autores da obra.
central desta entrevista de Adam Kotsko, Adam Kotsko é teólogo, professor assis-
concedida por e-mail à IHU On-Line. “A te- tente de Ciências Humanas no Shimer Colle-
ologia da morte de Deus é um lembrete de ge, em Chicago, Estados Unidos. É autor de
que a modernidade secular é uma conse- Politics of Redemption: The Social Logic of
quência do cristianismo, não uma rejeição Salvation (Cambridge, James Clarke and Co,
do mesmo. Milbank toma isso como prova 2010); Awkwardness (Ropley: Zero Books,
de que precisamos voltar para o ‘real’ cris- 2010) e Why We Love Sociopaths: A Guide to
tianismo dos tempos pré-modernos, porque Late Capitalist Television (Ropley: Zero Books,
a modernidade seria uma visão herética do 2012).
cristianismo, enquanto Žižek afirma, com He- Confira a entrevista.

12
IHU On-Line – Qual é o confron- estabelecem ao debater filosofia, te- guma figura importante como Agosti-
to “provocador” que Žižek e Milbank ologia e política em A monstruosida- nho3 ou Tomás de Aquino4, mas com
de de Cristo (São Paulo: Três Estrelas,
1 Slavoj Žižek (1949): filósofo e teórico
2014)?
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crítico esloveno. É professor da European 3 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho,


Graduate School e pesquisador senior no Adam Kotsko – Para mim, o as- 354-430): bispo, escritor, teólogo, filóso-
Instituto de Sociologia da Universidade pecto mais importante do livro é que fo, foi uma das figuras mais importantes
de Liubliana. É também professor visitan- no desenvolvimento do cristianismo no
te em várias universidades estaduniden-
um grande filósofo como Žižek está Ocidente. Ele foi influenciado pelo neo-
ses, entre as quais estão a Universidade em diálogo com um teólogo contem- platonismo de Plotino e criou os concei-
de Columbia, Princeton, a New School for porâneo, não só com a Bíblia ou al- tos de pecado original e guerra justa.
Social Research, de Nova York, e a Uni- Confira a entrevista concedida por Luiz
versidade de Michigan. Publicou recente- Astorga à edição 421 da IHU On-Line,
mente Menos que nada. Hegel e a som- cionismo. Para Milbank, a “dialética” é de 04-06-2013, intitulada A disputatio
bra do materialismo dialético (São Paulo: uma nova variante da política e da eco- de Santo Tomás de Aquino: uma sínte-
Boitempo, 2013) (Nota da IHU On-Line) nomia política moderna, razão pela qual se dupla, disponível em http://bit.ly/
2 John Milbank: teólogo inglês, profes- teria obtido menos sucesso do que o posi- ihuon421. (Nota da IHU On-Line)
sor da Universidade de Virgínia. Lecionou tivismo na superação do liberalismo, das 4 São Tomás de Aquino (1225-1274): pa-
também nas universidades de Oxford, teorias econômicas e da heterogênese. dre dominicano, teólogo, distinto expo-
Cambridge e de Birmingham. É conside- Ele é autor do livro Theology and Social ente da escolástica, proclamado santo e
rado o líder da “Ortodoxia Radical”, mo- Theory, em 1990, e traduzido para o por- cognominado Doctor Communis ou Doctor
vimento crítico ao liberalismo que tem tuguês por Edições Loyola. Ele também é Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior
em sua perspectiva política o encontro autor de Paul’s New Moment: Continental mérito foi a síntese do cristianismo com
com o pensamento do homem moderno Philosophy and the Future of Christian a visão aristotélica do mundo, introduzin-
e, simultaneamente, com o desconstru- Theology (2010). (Nota da IHU On-Line) do o aristotelismo, sendo redescoberto

36 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


alguém que está fazendo teologia
“A visão ateísta passa rápido demais para a estrutura

Destaques da Semana
agora. Muitas vezes, em discussões institucional-burocrática da Igreja ofi-
filosóficas sobre teologia, fica pare-
cendo que a teologia está morta há
de Žižek do cial, enquanto Žižek vê a possibilidade
de uma estrutura social fundamental-
centenas de anos.
O que talvez seja mais provo-
cristianismo é mente não institucional ou não ideo-
lógica a surgir com a morte de Deus
cativo, porém, é que ele é o filósofo
que está fazendo o trabalho teológico
mais interessante em Cristo. Por isso eu acho que Žižek
aponta para um caminho em que a
mais criativo e desafiador. Žižek está e radical do que a “monstruosidade de Cristo” empurra
trabalhando ativamente a partir da o pensamento de Hegel para além dos
sua posição no diálogo crítico com a posição ortodoxa seus próprios limites.
tradição, muitas vezes tomando dire-
ções inesperadas, enquanto Milbank, de Milbank. IHU On-Line – A partir desse de-
para mim, parece estar repetindo,
essencialmente, os mesmos pontos Pode não ser bate, que pistas são dadas por ambos
os autores do livro para uma resis-
de vista que ele sempre apresentou.
Até certo ponto, eu acho que o livro é
‘mais cristã’, mas tência ao niilismo capitalista?
Adam Kotsko – A visão de Mil-
uma oportunidade perdida por causa
dessa incompatibilidade: as posições
certamente é bank é consistente em todos os seus
escritos: precisamos voltar a uma ver-
de Žižek e de Milbank são simples-
mente diferentes demais para um
mais produtiva e são idealizada de estruturas sociais
medievais, caracterizadas por uma
diálogo produtivo. Um debate entre promissora” hierarquia social com justiça ordena-
da, em que todos pertencem a vários
Žižek e Catherine Keller5 ou Enrique
Dussel6 teria sido muito mais interes- grupos ou instituições que se sobre-
sante, na minha opinião. põem, sem uma pretensão dominan-
Adam Kotsko – Žižek adota uma te como a do Estado-nação moderno.
IHU On-Line – Como essa “mons- visão hegeliana do cristianismo. Nes- Isso criaria espaço para uma econo-
truosidade” de Cristo pode ser com- sa visão, que foi retomada por teó- mia de doação mais autêntica, que
preendida adequadamente a partir logos da “morte de Deus” do século nos permitiria afastar-nos dos piores
do referencial de Hegel7? XX, como Thomas Altizer8, Deus se efeitos do capitalismo, etc.
encarna em Cristo irrestritamente, A meu ver, a solução proposta
na Idade Média, na escolástica anterior. tudo que significa ser Deus é despe- por Milbank é pura fantasia; na verda-
Em suas duas “Summae”, sistematizou jado em Cristo, sem Pai transcenden-
o conhecimento teológico e filosófico de
de, eu concordo com Žižek de que se
sua época: são elas a Summa Theologiae te deixado para trás no céu. Quando trata basicamente de “fascismo soft”.
e a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU Cristo morre, essa divindade é des- No entanto, Žižek não oferece uma
On-Line)
5 Catherine Keller (1953): professora pejada para o Espírito Santo, enten- alternativa totalmente desenvolvida,
de teologia na Universidade de Drew, de dido como vínculo social singular da de forma alguma. Ele sempre diz que
Nova Jersey. (Nota da IHU On-Line) comunidade cristã. o que precisamos é deixar de lado as
6 Enrique Dussel (1934): filósofo argen-
tino radicado desde 1975 no México. É exigências de uma ação imediata e
um dos maiores expoentes da Filosofia IHU On-Line – Como a “cristolo- nos concentrar no desenvolvimento
da Libertação e do pensamento latino-
americano em geral. Autor de uma gran-
gia” de Hegel se apresenta na argu- de nossa teoria tão rigorosamente
de quantidade de obras, seu pensamen- mentação sustentada por Žižek? quanto possível. Isso é o que ele faz
to discorre sobre temas como: filosofia, Adam Kotsko – No meu ponto em suas respostas no livro.
política, ética e teologia. Tem se colo-
de vista, Hegel domestica o poder
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cado como crítico da pós-modernidade
chamando por um novo momento deno- transformador do novo vínculo social IHU On-Line – Que reflexões “a
minado transmodernidade. Tem mantido representado pelo Espírito Santo. Ele monstruosidade de Cristo” enseja
diálogos com filósofos como Apel, Gianni
Vattimo, Jürgen Habermas, Richard Ror- a partir de um contexto secular que
ty, Lévinas. É um crítico do pensamento 261, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho fala sobre a morte de Deus?
eurocêntrico contemporâneo. (Nota da Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, Adam Kotsko – A teologia da
IHU On-Line) disponível em http://bit.ly/ihuon261 e
7 Friedrich Hegel (Georg Wilhelm Frie- Hegel. A tradução da história pela razão, morte de Deus é um lembrete de
drich Hegel, 1770-1831): filósofo alemão edição 430, disponível em http://bit.ly/ que a modernidade secular é uma
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás ihuon430 (Nota da IHU On-Line) consequência do cristianismo, e não
de Aquino, tentou desenvolver um siste- 8 Thomas Altizer (Thomas Jonathan Ja-
ma filosófico no qual estivessem integra- ckson Altizer, 1927): teólogo estaduni- uma rejeição dele. Milbank toma isso
das todas as contribuições de seus princi- dense, atualmente professor da Emory como prova de que precisamos voltar
pais predecessores. Sobre Hegel, confira University, em Atlanta. Tornou-se co-
no link http://bit.ly/ihuon217 a edição nhecido mundialmente a partir de um
para o “real” cristianismo dos tempos
217 da IHU On-Line, de 30-04-2007, inti- artigo publicado pela revista Time com pré-modernos, porque a modernida-
tulada Fenomenologia do espírito, de Ge- o título Christian Atheism: The “God Is de seria uma visão herética do cris-
org Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), Dead” Movement (“Ateísmo cristão: o
em comemoração aos 200 anos de lança- movimento ‘Deus está Morto’”). (Nota tianismo, enquanto Žižek afirma, com
mento dessa obra. Veja ainda a edição da IHU On-Line) Hegel, que a modernidade é fruto

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 37


autêntico do cristianismo, e não uma
“As visões uma elaborada metáfora de dirigir por
Destaques da Semana
espécie de bastarda ou órfã. uma estrada do interior no meio do

IHU On-Line – Qual é o significa-


dominantes nevoeiro. Mas eu não tenho certeza
de chamar isso parte de um “debate”
do do cristianismo e de Jesus para a
história e futuro da humanidade?
de Jesus e do com Žižek. Esse livro simplesmente
deu a Milbank uma oportunidade de
Adam Kotsko – Isso ainda vamos
ver. As visões dominantes de Jesus e
cristianismo, reafirmar seus pontos de vista de uma
forma um pouco diferente.
do cristianismo, parece-me, não ofe-
recem muita esperança para o futuro.
parece-me, não IHU On-Line – Como podemos
Na melhor das hipóteses, são visões
nostálgicas; na pior das hipóteses, são
oferecem muita compreender o posicionamento de
Žižek, para quem seu ateísmo é “mais
profundamente reacionárias. Se é que esperança para o cristão” do que a fé de Milbank, e a
o cristianismo tem futuro, ele será en- posição de Milbank a respeito de um
contrado no trabalho de teólogos he- futuro. Na melhor “Žižek católico”?
terodoxos que trabalham à margem Adam Kotsko – Eu acho que a
da Igreja (como teólogos feministas, das hipóteses, são visão ateísta de Žižek do cristianismo
teólogos homossexuais, da libertação) é mais interessante e radical do que
ou totalmente fora dela (como Žižek visões nostálgicas; a posição ortodoxa de Milbank. Pode
ou Agamben). não ser “mais cristã” segundo todos
na pior das os critérios, mas certamente é mais
IHU On-Line – Em que sentido
o Deus que se fez homem na pessoa hipóteses, são produtiva e promissora. A visão de
Milbank de um “Žižek católico” é uma
de Cristo enseja debates sobre uma
transcendência que se faz imanen- profundamente forma de tentar assimilar Žižek à po-
sição do próprio Milbank. Acho que é
te, com todos os paradoxos que isso
pode significar?
reacionárias” forçado e pouco convincente.

Adam Kotsko – Debates sobre


transcendência e imanência muitas Leia mais...
vezes me parecem estéreis. Cada um se entrelaça no debate estabelecido • Agamben e o repensar da teologia
dos lados pressupõe que a sua abor- com Žižek? a partir de seus fundamentos. En-
dagem é intelectualmente mais rigo- Adam Kotsko – Milbank acredita trevista com Adam Kotsko e Colby
rosa e moralmente mais adequada, que a modernidade é essencialmente Dickinson publicada no sítio do Ins-
de modo que qualquer tipo de dis- uma heresia cristã e que todas as suas tituto Humanitas Unisinos – IHU em
cussão é praticamente inútil. Embora falhas óbvias apontam para a neces-
eu simpatize mais com os adeptos da 15-09-2013, disponível em http://
sidade de voltar para o cristianismo bit.ly/1qbbTSf.
imanência, prefiro evitar a questão autêntico, ortodoxo. Para Milbank, a
por completo, para me concentrar em • Žižek e a tentativa radical de re-
modernidade secular se baseia numa pensar a tradição cristã. Entrevis-
outras preocupações. ontologia da violência e da luta, ao
ta com Adam Kotsko publicada na
passo que o cristianismo nos fornece
edição 431 da IHU On-Line, de 04-
IHU On-Line – Quais são os tra- uma ontologia da paz. Milbank afirma
11-2013, disponível em http://bit.
ços fundamentais da crítica de Mil- esses pontos de vista ao longo de sua
ly/1hQkdV2.
bank à modernidade e como esta resposta a Žižek, em um caso, usando
www.ihu.unisinos.br

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38 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446
Entrevista da Semana

Destaques da Semana
Como o mal-estar se exprimirá
depois da Copa?
“A Copa é simbólica porque, vendida como algo em que ‘todo mundo ganha’,
na verdade é um processo em que alguns perderam tudo, para que uns poucos
ganhassem muito, de forma que outros mais pudessem ganhar algo”, destaca o
filósofo Rodrigo Nunes.
Por Patricia Fachin

N a semana em que se inicia a Copa do Mundo no


Brasil, depois de tantas manifestações em torno
dos protestos de #NãoVaiTerCopa, “poucos re-
almente chegaram a crer que seria possível impedir a
denúncias de corrupção que os cercam. Seu business é
vender (literalmente, a se julgar pela história sobre a es-
colha do Qatar como sede da Copa) o que poderíamos
chamar de ‘pacote de estado de exceção’ para países in-
realização do torneio”, avalia Rodrigo Nunes em entre- teressados em atrair investimentos”.
vista à IHU On-Line, publicada originalmente no sítio do O que é específico do país, pontua, “é uma série de
IHU, em 13-06-2014. Com tanto dinheiro empenhado demandas sociais reprimidas: a distribuição de renda,
no mundial, acentua, era difícil que o evento “não fosse o problema da habitação, o extermínio da juventude
em frente, nem que se tivesse – como estamos vendo – negra e pobre, a baixa qualidade dos serviços públicos,
que botar as Forças Armadas na rua”. a impermeabilidade do sistema político. Embora na
Entretanto, o fato de a Copa ter sido marcada por última década tenham sido dados passos importantes
inúmeros protestos sinaliza que parte da população em algumas dessas áreas, tudo isso vem à tona junto
estava dizendo: “não contem conosco para sermos fi- com a Copa. Neste sentido, ela é apenas um ponto focal
gurantes felizes numa festa que sabemos não ser nos- temporário para um mal-estar social muito mais amplo,
sa. As pessoas recusaram o papel que lhes fora dado profundo e (inclusive) antigo, e na verdade a grande
naquela narrativa”, diz o pesquisador. Para ele, o movi- questão é como este mal-estar se exprimirá uma vez
mento “Não vai ter Copa” “era performativo: o simples passada a Copa. Parece claro que ele não desaparecerá
fato de ser dito por milhares de pessoas já o tornava tão cedo, mas não está claro como as diferentes lutas
real. Por quê? Porque este tipo de evento é construído farão para se compor entre si, que formas organizativas
em cima da ideia de uma unidade indivisa: a Copa é boa e relações com as instituições elas estabelecerão”.
para o país, é uma grande oportunidade para o Brasil, Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo
será uma grande festa para todos... Mas, claro, a verda- Goldsmiths College, Universidade de Londres, e profes-
de não é bem assim”. sor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Rodrigo destaca que a Copa é um grande negócio – PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacio-
para um grupo muito restrito: “a FIFA – que é literal- nais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le www.ihu.unisinos.br
mente impedida por lei de ter prejuízo, segundo a le- Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazee-
gislação que ela impõe aos países-sede –, os patrocina- ra. Como organizador e educador popular, participou de
dores, as construtoras, etc”. E acrescenta: “Para as 250 diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições
mil pessoas que foram ou seguem ameaçadas de serem do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Clea-
expulsas de suas casas, para os familiares e amigos dos ners, em Londres.
trabalhadores mortos, para os trabalhadores vivos que Foi membro do coletivo editorial da Turbulence, uma re-
enfrentam condições laborais perversas, para os mora- vista influente entre os movimentos sociais da Europa e da
dores ou vendedores de rua atingidos pela higienização América do Norte na segunda metade da década passada.
das cidades, ela foi catastrófica”. É autor do livro Organisation of the Organisationless: The
Na entrevista a seguir, Nunes ainda chama a atenção Question of Organisation After Networks (London: Mute,
para as consequências da Copa e assinala que os gastos 2014). Nunes publicou recentemente um artigo na edição
excessivos de dinheiro público e a corrupção em torno especial da revista Les Temps Modernes, fundada por Jean-
do mundial não são algo “excepcional no caso brasilei- Paul Sartre e Simone de Beauvoir, sobre os protestos no
ro. É necessário entender que este não foi um modelo Brasil. O dossiê reúne análises de pesquisadores como
particularmente mal aplicado; o modelo é este. A FIFA e Marcos Nobre, Idelber Avelar, Vladimir Safatle e Jessé
o Comitê Olímpico Internacional – COI são dois corpos Souza.
privados, sem nenhuma accountability, notórios pelas Confira a entrevista.

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 39


IHU On-Line – Como o senhor in-
“Há uma tentativa, IHU On-Line – Por que as mani-
Destaques da Semana
terpreta as manifestações #NaoVai- festações só iniciaram entre dois e
TerCopa que têm ocorrido nas redes
sociais e nas ruas antes da realização por parte do um ano antes da Copa? À época em
que Lula anunciou o mundial, o país
da Copa do Mundo no Brasil, sendo
este o país do futebol? Há algo estra- governo, de colar vibrou. Esperava-se outro modelo de
gestão em relação aos investimen-
nho nessa relação? tos? Ou as manifestações de junho
Rodrigo Nunes – Para mim, foi no ‘Não vai ter também possibilitaram novas críticas
claro desde quando o “Não vai ter à Copa?
Copa” surgiu, que ele podia ser lido Copa’ a pecha de Rodrigo Nunes – O argumento
de duas maneiras. A primeira era con- do “por que não protestou antes?”
dicional: se não houver sinalizações ‘complexo de seria cômico se não estivesse sendo
claras em resposta às demandas que usado por tantas pessoas com um his-
estão sendo levantadas (transporte vira-latas’” tórico de mobilização política. Ora, se
público, serviços públicos em geral, houvessem explicado à população a
as remoções causadas pela Copa, o verdade sobre o que aconteceria, se-
não cumprimento das promessas do impõe aos países-sede – , os patroci- ria difícil justificar sequer a candidatu-
“legado”, a violência policial nos pro- nadores, as construtoras, etc. Para as ra do Brasil a país-sede!
testos e nas favelas...), a insatisfação 250 mil pessoas que foram ou seguem As pessoas protestam “tarde”
e a mobilização só vão crescer. E se ameaçadas de serem expulsas de suas porque a informação de que elas pre-
elas crescerem, tudo pode acontecer. casas, para os familiares e amigos dos cisam para formar opinião é “adminis-
As pessoas haviam (re)cobrado a con- trabalhadores mortos, para os traba- trada” de modo a fazer com que, de-
fiança em seu poder coletivo, em sua lhadores vivos que enfrentam condi- pois, elas se deparem com os efeitos
capacidade de interromper o business ções laborais perversas, para os mora- de “fatos consumados” sobre suas vi-
as usual de um sistema político tão dores ou vendedores de rua atingidos das. Se ser idealmente bem informa-
pouco permeável como o nosso; elas pela higienização das cidades, ela foi do fosse pré-requisito para poder se
estavam conscientes de que aquela catastrófica. E para a maioria da po- expressar politicamente, estaríamos
capacidade de mobilização subita- pulação, ela foi uma queima de gigan- perdidos – porque uma das coisas pe-
mente (re)descoberta inspirara medo tescas quantidades de dinheiro públi- las quais as pessoas sempre lutaram
na classe política. Neste contexto, co para construir estruturas privadas, é exatamente o direito a não ter deci-
“Não vai ter Copa” era uma ameaça: ou que serão privatizadas, ou que se sões tomadas em seu nome ou à sua
vocês vão nos ouvir, senão... tornarão imediatamente obsoletas revelia, sem que tenham plenas con-
Por outro lado, acho que pou- – enquanto quase nada do “legado” dições de sobre elas se posicionar.
cos realmente chegaram a crer que prometido se realizou. O que aconteceu entre o anún-
seria possível impedir a realização do O que aconteceu desde junho cio da escolha do país-sede e agora
torneio. Era muito difícil, com tanto do ano passado foi que as pessoas se foi justamente que as pessoas foram
dinheiro empenhado, com tantos in- deram conta do quão mal distribuída informadas – na prática. Mas aqui é
teresses envolvidos, que o evento não era essa “grande oportunidade”, do preciso desfazer um engano. Os me-
fosse em frente, nem que se tivesse – quanto essa unidade a quem a Copa gaeventos não são uma coisa “boa”
como estamos vendo – que botar as supostamente se destinava era uma que no Brasil “deu errado”. É certo
Forças Armadas na rua. cortina de fumaça para disfarçar um que houve corrupção e inépcia admi-
processo extremo de privatização dos nistrativa, em nível municipal, estadu-
Unidade indivisa lucros e socialização dos prejuízos. Di- al e federal; talvez mais que em alguns
Mas isso não importa, porque o zer “Não vai ter Copa”, então, signifi- lugares, talvez menos que em outros.
outro sentido do “Não vai ter Copa” Mas não há nada de muito excepcio-
www.ihu.unisinos.br

cava dizer: não contem conosco para


era performativo: o simples fato de sermos figurantes felizes numa festa nal no caso brasileiro.
ser dito por milhares de pessoas já que sabemos não ser nossa. As pes- É necessário entender que este
o tornava real. Por quê? Porque este soas recusaram o papel que lhes fora não foi um modelo particularmente
tipo de evento é construído em cima dado naquela narrativa. mal aplicado; o modelo é este. A FIFA
da ideia de uma unidade indivisa: a E isso não tem volta: como as e o Comitê Olímpico Internacional
Copa é boa para o país, é uma grande pesquisas apontam, o consenso em – COI são dois corpos privados, sem
oportunidade para o Brasil, será uma torno da Copa e das Olimpíadas e, nenhuma accountability, notórios
grande festa para todos... Mas, claro, portanto, a pretensa unidade a que pelas denúncias de corrupção que os
a verdade não é bem assim. A Copa elas se referem, acabou. Neste senti- cercam. Seu business é vender (literal-
é um grande negócio para um grupo do, já não teve Copa. mente, a se julgar pela história sobre a
muito restrito: a FIFA – que é literal- escolha do Qatar como sede da Copa2
mente impedida por lei de ter pre- o que poderíamos chamar de “paco-
juízo, segundo a legislação1 que ela Dia”, no sítio do IHU, na entrevista Lei
Geral da Copa: um equívoco político e
jurídico, de 16-03-2012, disponível em 2 Veja mais sobre o caso nas Notícias do
1 O tema foi abordado em “Entrevista do http://bit.ly/ihu160312. Dia do IHU, em http://bit.ly/1iu5NVz.

40 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


te de estado de exceção” para países
“Como as lado – em oposição a um “eles” que

Destaques da Semana
interessados em atrair investimentos. seria o Estado, os políticos. Daí nasce
Isso oferece a estes países as condi-
ções ideais – o consenso em torno da pesquisas a redução da política a uma questão
de moralidade individual (como se
unidade nacional, a desculpa do inte-
resse público, a “pressa” para concluir apontam, o não fosse perfeitamente possível ser
honesto e fazer escolhas políticas de-
obras “em atraso”, a legislação que sastrosas) ou a uma questão adminis-
já vem pronta – para uma rodada de consenso em trativa (como se um padrão de “boa
acumulação capitalista violenta. Ou administração” pudesse ser fixado em
seja: para um processo brutal, mas torno da Copa e abstração dos objetivos políticos que
perfeitamente legal, de privatização se pretende realizar). Nascem tam-
de lucros e socialização de custos. das Olimpíadas bém ideias ingênuas, como a de que,
Naomi Klein3 fala de “doutrina caso não houvesse desvio de verbas,
do choque” em referência a como o e, portanto, a haveria dinheiro para tudo, só isso
capitalismo neoliberal toma situações nos distanciaria do bem-estar gene-
extremas como guerras e desastres
naturais por “oportunidades de ne-
pretensa unidade ralizado. Tudo isso serve para desviar
a discussão do realmente essencial:
gócios”; o modelo dos megaeventos
consiste na criação de uma situação
a que elas se a distribuição desigual da renda e da
influência política, a natureza das es-
extrema. Que isto seja tão ampla-
mente aceito como “oportunidade
referem, acabou” colhas políticas e o processo pelo qual
elas são tomadas.
de desenvolvimento” dá uma medi- Por isso costumo dizer que o
da da penúria de imaginação política -la. É curioso, aliás, que os únicos dois problema é menos a corrupção ilegal,
e econômica em que vivemos desde atores que insistem em confundir que é tipificada penalmente e passível
a ascensão do neoliberalismo. Que estes dois discursos (um claramente de punição, que a corrupção legal: a
isto comece a ser mais amplamente de esquerda, o outro de centro ou maneira como alguns interesses eco-
questionado é, sem dúvida, o grande direita) sejam a mídia corporativa e o nômicos têm um poder desproporcio-
“legado” de junho de 2013 ao mundo. governo. nal de influenciar as decisões estatais,
o modo como o Estado intervém para
IHU On-Line – Muitas pessoas Corrupção e antagonismo real favorecê-los, privatizando lucros e so-
veem o problema como sendo espe- Aqui entra também o tema da cializando custos, os lobbies, o finan-
cífico do Brasil? corrupção, cujo funcionamento ideo- ciamento privado de campanha. No
Rodrigo Nunes – Há uma tentati- lógico constitui um “obstáculo episte- caso de um estádio que se tornará ob-
va, por parte do governo, de colar no mológico” sério. A corrupção seria um soleto, por exemplo, o escândalo não
“Não vai ter Copa” a pecha de “com- atavismo específico do Brasil, país cor- é que este ou aquele item tenha sido
plexo de vira-latas”. Esse componen- rupto por natureza ou tradição. Mas, superfaturado: o escândalo é que ele
te, de achar que nada que façamos curiosamente, o problema é sempre tenha sido construído. E isto foi feito
pode dar certo, que algum ativismo só do Estado, sem envolver o merca- absolutamente dentro da lei. Repito:
compromete todos os nossos esfor- do: pensa-se no “homem cordial” que parece-me claro que é deste tipo de
ços, é sem dúvida um fator para uma usa a máquina estatal em favor do corrupção que quem está nas ruas
certa classe média, de perfil despoli- amigo, mas nunca se pergunta quem agora está falando.
tizado ou diretamente conservador. é este amigo e o que ele oferece em
Trata-se do horror a “esse Brasil atra- troca. Logo, tripla função: demoniza-
Especificidade brasileira
sado”, onde o “atrasado” é sempre os ção do Estado, absolvição do mercado O que é “específico” do Brasil é
outros – em última análise, os pobres, uma série de demandas sociais re-
www.ihu.unisinos.br
e isenção dos corruptores – eles só
que existem em si, milagrosamente corrompem os agentes porque estes primidas: a distribuição de renda, o
separados das condições sociais que já são corruptos, como se “corrom- problema da habitação, o extermínio
mantêm e reproduzem a sua pobreza, per” e “ser corrupto” fossem inde- da juventude negra e pobre, a baixa
e que implicam todos os demais. pendentes entre si. qualidade dos serviços públicos, a
Mas é bastante claro que não Aí está o ponto fulcral, que ex- impermeabilidade do sistema políti-
é disso que os movimentos que têm plica sua quarta função. A corrupção co. Embora na última década tenham
ido à rua estão falando. Pelo contrá- serve para deslocar o antagonismo sido dados passos importantes em
rio, eles têm falado exatamente sobre real, que tem a ver com distribuição algumas destas áreas, tudo isso vem
como essa reprodução da desigualda- de renda e acesso às decisões políti- à tona junto com a Copa. Neste sen-
de social segue funcionando, e como cas, projetando-o num antagonismo tido, ela é apenas um ponto focal
algo como a Copa serve para reforçá- falso. Enquanto o antagonismo real temporário para um mal-estar social
opõe, digamos, o banqueiro ao fa- muito mais amplo, profundo e (inclu-
velado, o antagonismo falso cria um sive) antigo, e na verdade a grande
3 Naomi Klein (1970): jornalista, escri-
“nós” imaginário – um “povo brasi- questão é como este mal-estar se ex-
tora e ativista canadense. (Nota da IHU
On-Line) leiro” que inclui banqueiro e fave- primirá uma vez passada a Copa. Pa-

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 41


rece claro que ele não desaparecerá
“Não estamos jam o único segmento que claramen-
Destaques da Semana
tão cedo, mas não está claro como as te perdeu na última década, especial-
diferentes lutas farão para se compor
entre si, que formas organizativas diante de um mente no governo Dilma, mas porque
estes são sintomas de um sentimento
e relações com as instituições elas
estabelecerão. movimento, mas crescente de que é preciso repensar
de cima a baixo o conceito meramen-
te quantitativo, extensivo, econômico
IHU On-Line – Em artigo recente4 de um momento” de desenvolvimento com que esta-
o senhor diz que a Copa condensa em mos operando. E aí há uma diferença
um símbolo de uma falha fundamen- importante. Demandas como as do
tal no projeto do PT. Qual foi a falha com a esquerda, percebeu a admi- MTST, dependendo da capacidade po-
nesses doze anos de governo? Que nistração de Dilma como um retro- lítica (que, no caso do MTST, está de-
parcela da população não foi benefi- cesso, é porque em seu mandato as monstrando ser grande), podem en-
ciada pelo PT? forças conservadoras com quem o contrar acolhida pontual, como agora
Rodrigo Nunes – Quase todo PT fez compromissos cobraram uma em São Paulo. Mas, por hora, a ideia
mundo foi beneficiado pelo PT: dos série de faturas e foram atendidas. de que é preciso reformular o próprio
banqueiros aos trabalhadores for- Pode-se enxergar, então, o processo conceito de desenvolvimento não en-
mais, dos latifundiários ao subprole- que se desencadeia em 2013 como o contra representação nenhuma den-
tariado, das construtoras à juventu- outro lado – que não tem outra op- tro do tabuleiro político-partidário
de que teve acesso à universidade. ção senão conquistar sua influência nacional.
Mesmo as famílias que perderam política nas ruas – apresentando as
suas casas por causa da especulação suas faturas. Num certo sentido, é IHU On-Line – É possível vislum-
imobiliária e dos megaeventos prova- uma disputa pelo legado do Lulismo: brar qual será o impacto dessas ma-
velmente tinham, antes disso, melho- quando não é possível que todos ga- nifestações e da desunião em torno
rado de vida. nhem, qual é o lado que vai perder? da Copa do Mundo nas eleições?
A “falha” a que me referia está A Copa é simbólica porque, vendida Rodrigo Nunes – É difícil prever o
justamente aí. Graças a uma situação como algo em que “todo mundo ga- quão grandes serão as manifestações;
internacional favorável, durante um nha”, na verdade é um processo em vai depender de fatores relativamente
momento foi possível manter uma que alguns perderam tudo, para que contingentes. Se elas forem tão gran-
situação onde todos ganhavam. Os uns poucos ganhassem muito, de des quanto o ano passado, o que por
ricos ficavam muito ricos, os pobres fi- forma que outros mais pudessem ga- hora parece improvável, ou se algo
cavam menos pobres. Este foi o gran- nhar algo. muito grave ocorrer, tudo pode acon-
de sucesso do chamado Lulismo. Foi, tecer. Caso contrário, a tendência é
ao mesmo tempo, aquilo que – junto Luta pela redefinição dos mais uma vitória do PT.
com a extorsão política que se institu- problemas Agora, da mesma maneira que
cionalizou de verdade depois da eclo- junho de 2013 nos lembrou que “po-
Esta queda de braço está bas-
são do escândalo do “Mensalão” – o lítica” não é apenas aquilo que fazem
tante clara, por exemplo, no discur-
fez estacionar. os políticos, seria um erro olhar ape-
so do Movimento dos Trabalhadores
Não se falou mais em reforma nas para o tipo de protesto de rua
Sem-Teto5: o Minha Casa Minha Vida
política, nem numa reforma tributária que foi dominante na época e julgar
transformou o lucro das empreiteiras
que, espera-se, criaria uma tributação que, caso eles não sejam tão grandes,
na precondição para a solução do pro-
progressiva e redistributiva. Não se os movimentos fracassaram. Porque
blema da habitação; o MTST se mobi-
falou mais da concentração da mídia, a tendência desde o ano passado é
liza para garantir uma solução do mes-
não se comprou mais briga e, pelo que, à medida que este tipo de pro-
mo problema que seja vantajosa para
contrário, fizeram-se cada vez mais testo refluía (seu auge tendo sido o
www.ihu.unisinos.br

os trabalhadores.
concessões. O PT se virou com as con- único e breve momento em que posi-
Mas a coisa não acaba aí; não
dições que lhe foram dadas, mas fez ções de esquerda, centro e direita de
se trata apenas de uma disputa pela
muito pouco para mudar estas condi- fato se misturaram), o dissenso ia se
solução de problemas que já estão
ções no médio prazo, de tal modo que espalhando e diversificando em sua
dados, mas também uma luta pela
sua situação hoje é paradoxal: virtual- composição política e social. Desde
redefinição dos próprios problemas. É
mente imbatível nas urnas, ele parece então, temos visto um número cada
significativo que as mobilizações con-
ter menos forças para transformar as vez maior de protestos contra a vio-
tra Belo Monte e os ataques aos Gua-
condições em que opera do que quan- lência policial nas favelas, ocupações
rani Kaiowá, bem como a ocupação da
do Lula ganhou pela primeira vez. urbanas, a ascensão do MTST em São
Aldeia Maracanã, sejam ancestrais di-
Se boa parte de seu eleitorado Paulo, o #OcupeEstelita6 em Recife,
retos dos protestos de junho de 2013.
histórico, claramente identificado greves – muitas das quais selvagens, o
Não só porque os indígenas talvez se-
4 Leia o artigo There will have been no
World Cup, publicado no site da Aljaze- 5 Veja mais sobre o tema nas Notícias do 6 Veja em http://direitosurbanos.word-
era em http://aje.me/STj7fB. (Nota da Dia do IHU, em http://bit.ly/1qbBxq7. press.com/ocupeestelita-0/ocupeesteli-
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) ta/.

42 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


que também é sintomático. Estas últi-
“Os movimentos soas descobrem a alegria de sua pró-

Destaques da Semana
mas, por exemplo, podem ter um im- pria força, mais a exercem, e quan-
pacto muito mais grave sobre a Copa
que as manifestações de rua. sociais têm falado to mais a exercem, mais força têm.
Reações como a do governo de São
Não estamos diante de um mo-
vimento, mas de um momento – ou, exatamente Paulo, que responde aos metroviá-
rios com violência e demissões, me
parecem brincar com fogo, porque
antes, de um sistema-rede em cons-
tante diferenciação, do qual o “Não sobre como essa subestimam profundamente esta
transformação.
vai ter Copa” já é, ele mesmo, uma
mutação. reprodução da
Por um lado, isso significa que Descompasso
as ações de um grupo ou segmento desigualdade O aspecto mais importante des-
criam oportunidades para outros, te momento é que ele tornou visível
de forma que diferentes movimen- social segue e reforçou um descompasso entre a
tos agem “no vácuo” uns dos outros política tal como ela se exprime no
sem que necessariamente precisem funcionando, e corpo social e a política tal como ela
coordenar-se entre si. Por outro, o é representada pelo sistema político.
que ocorreu e segue ocorrendo é como algo como a Qualquer tentativa de ler a primeira
nos termos da segunda é necessa-
uma transformação subjetiva: as pes-
soas estão redescobrindo o poder e Copa serve riamente falha, porque uma crise de
representação é justamente quando a
o prazer da ação coletiva, estão fi-
cando menos tolerantes com aquilo para reforçá-la” segunda se torna insuficiente para dar
conta da primeira. É significativo que,
que veem como abusos. Os petistas
nas últimas pesquisas, Dilma caia sem
dizem que, por trás das greves, estão
que ninguém suba. Há um número
os partidos de esquerda que sempre
crescente de pessoas que prefeririam
agitaram contra o governo. Pode ser,
La Boétie8, estamos vendo um cres- uma opção que por hora não existe, o
mas a pergunta é: se a agitação sem-
cimento da “inservidão voluntária”, que não impede muitas delas de, na
pre esteve lá, porque só agora ela
última hora, optar por aquela, entre
está surtindo efeito? Como diria Mi- da “indocilidade refletida”. E, como
as disponíveis, que elas acham menos
chel Foucault7, invertendo Étienne de diria Spinoza9, quanto mais as pes- pior. Essa outra opção vai aparecer? O
que acontecerá se ela não aparecer? É
7 Michel Foucault (1926-1984): filósofo edição 119, de 18-10-2004, disponível
francês. Suas obras, desde a História da em http://bit.ly/ihuon119, edição 203, cedo para dizer.
Loucura até a História da sexualidade (a de 06-11-2006, disponível em http:// Mas é um equívoco achar que a
qual não pôde completar devido à sua bit.ly/ihuon203, e edição 364, de 06-06- paisagem pós-junho possa ser contida
morte) situam-se dentro de uma filosofia 2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
do conhecimento. Suas teorias sobre o discurso racional em debate, disponível dentro das coordenadas que existiam
saber, o poder e o sujeito romperam com em http://bit.ly/ihuon364. Confira, tam- antes: há novos atores, novos alinha-
as concepções modernas destes termos, bém, a entrevista com o filósofo José Ter- mentos, novas posições. É muito pri-
motivo pelo qual é considerado por cer- nes, concedida à IHU On-Line 325, sob o
tos autores, contrariando a sua própria título Foucault, a sociedade panóptica e marismo achar que, se até ontem só
opinião de si mesmo, um pós-moderno. o sujeito histórico, disponível em http:// “x” e “y” eram críticos do governo,
Seus primeiros trabalhos (História da bit.ly/ihuon325. De 13 a 16 de setembro quem hoje o critica é necessariamen-
Loucura, O Nascimento da Clínica, As de 2010 aconteceu o XI Simpósio Inter-
Palavras e as Coisas, A Arqueologia do nacional IHU: O (des)governo biopolítico te ou “x” ou “y”. Estamos passando
Saber) seguem uma linha estruturalista, da vida humana. Confira a edição 343 da por uma redefinição de coordenadas
o que não impede que seja considerado IHU On-Line que traz o mesmo título que políticas; quanto tempo vai levar para
geralmente como um pós-estruturalista o evento, publicada em 13-09-2010, dis-
que o sistema político reflita essa mu-
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devido a obras posteriores como Vigiar e ponível em http://bit.ly/ihuon343, e a
Punir e A História da Sexualidade. Fou- edição 344, intitulada Biopolítica, estado dança, e como isso se dará, não se
cault trata principalmente do tema do de exceção e vida nua. Um debate, dis- sabe. Mas fingir que ela não existe
poder, rompendo com as concepções clás- ponível em http://bit.ly/ihuon344. Além
sicas desse termo. Para ele, o poder não disso, o IHU organizou, durante o ano de pode, por diversos motivos, se tornar
pode ser localizado em uma instituição 2004, o evento Ciclo de Estudos sobre Mi- cada vez mais insustentável. Também
ou no Estado, o que tornaria impossível a chel Foucault, que também foi tema da pode, no médio ou longo prazo, co-
“tomada de poder” proposta pelos mar- edição número 13 dos Cadernos IHU em
xistas. O poder não é considerado como formação, disponível para download em brar um custo político alto dos atores
algo que o indivíduo cede a um soberano http://bit.ly/ihuem13 sob o título Michel de quem se esperaria estar sensíveis
(concepção contratual jurídico-política), Foucault. Sua contribuição para a educa- a ela.
mas sim como uma relação de forças. Ao ção, a política e a ética. (Nota da IHU
ser relação, o poder está em todas as On-Line)
partes, uma pessoa está atravessada por 8 Étienne de La Boétie (1530-1563): ju- do um dos grandes racionalistas do sécu-
relações de poder, não pode ser conside- rista e escritor francês, fundador da filo- lo XVII dentro da Filosofia Moderna e o
rada independente delas. Para Foucault, sofia política moderna na França. (Nota fundador do criticismo bíblico moderno.
o poder não somente reprime, mas tam- da IHU On-Line) Confira a edição 397 da IHU On-Line, de
bém produz efeitos de verdade e saber, 9 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632– 06-08-2012, intitulada Baruch Spinoza.
constituindo verdades, práticas e subje- 1677): filósofo holandês. Sua filosofia é Um convite à alegria do pensamento, dis-
tividades. Em várias edições a IHU On-Li- considerada uma resposta ao dualismo ponível em http://bit.ly/RPZqOi. (Nota
ne dedicou matéria de capa a Foucault: da filosofia de Descartes. Foi considera- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 43


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
44 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Artigo da Semana

IHU em Revista
O poder pastoral, a economia
política e a genealogia do
Estado moderno
O filósofo Castor Ruiz articula conceitos de Foucault e Agamben para buscar
compreender Estado e Governo

Por Castor Ruiz

P
ara Foucault, a prática política que ti- das quais destacamos: Os paradoxos do ima-
nha por objetivo cuidar e governar a ginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os
vida dos outros nas sociedades antigas labirintos do poder. O poder (do) simbólico e
era associada à figura do rei-pastor. A isso ele os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escri-
designa o “poder pastoral”. Agamben, por sua tos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo.
vez, trabalha a ideia de uma “teologia eco- A subjetividade e alteridade ante os dilemas
nômica”, remetendo a oikonomia divina – o do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006). Leia,
governo divino do mundo, da providência, da ainda, o livro eletrônico do XI Simpósio Inter-
liberdade e dos ministérios. “As pesquisas de nacional IHU: o (des)governo biopolítico da
ambos os pensadores se cruzam na noção de vida humana, no qual Castor contribui com
governo”, aponta o filósofo Castor Ruiz, neste uma reflexão – A exceção jurídica na biopo-
artigo em que se debruça sobre o tema. lítica moderna, disponível em http://bit.ly/
Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cur- castor343.
sos de graduação e pós-graduação em Filoso- O professor está ministrando o curso
fia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Estado, governo e tecnologias biopolíticas:
Universidade de Comillas, na Espanha, mestre Foucault e Agamben, na Unisinos, em São
em História pela Universidade Federal do Rio Leopoldo, cuja programação começou em
Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filoso- 10 de março e segue até 30 de junho. Mais
fia pela Universidade de Deusto, Espanha. É informações estão disponíveis em http://bit.
pós-doutor pelo Conselho Superior de Inves- ly/CastorFeA.
tigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, Confira o artigo.
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1. Há uma consolidada tradição consolidado a partir das filosofias que filosóficas contratualistas são respon-
que atribui a origem do Estado moder- apresentavam a noção de estado de sáveis, em grande medida, pela cons-
no, conjuntamente com seu aparato natureza humano diferente do estado trução, legitimação e manutenção dos
burocrático, às revoluções políticas dos de sociedade e concebiam a constitui- aparatos formais do Estado de direito.
séculos XVII e XVIII. Nesta perspecti- ção da sociedade como resultante de Essa é uma das grandes contribuições
va, a gênese do Estado moderno teria um contrato social. A noção de contra- que estas filosofias fizeram e conti-
acontecido na ruptura política com os to social teria sido o elo da nova ordem nuam a fazer para a contemporanei-
regimes de soberania absoluta, instau- social em que o Estado de direito, junto dade. Ao formular e desenvolver os
rando em seu lugar, de forma imediata, com o mercado, se consolidaram como princípios formais do direito, como
outros tipos de regimes políticos acor- instituições hegemônicas. a liberdade e a igualdade, como cri-
des com o Estado de direito moder- Sem dúvida que as revoluções térios reitores das instituições mo-
no. Essa ruptura se teria legitimado e políticas burguesas e as concepções dernas, propiciaram uma isonomia

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 45


formal de todos perante a lei, assim Adorno3, Arendt4, Benjamin5, produzi- e G. Agamben7 pesquisaram conexões
IHU em Revista
como o desenvolvimento de procedi- ram estudos imprescindíveis nesta linha.
mentos e regulamentos de liberdade Também recentemente, M. Foucault6 saber, o poder e o sujeito romperam com
e igualdade formal de direitos acaba- as concepções modernas destes termos,
ram com a lógica do poder absoluto motivo pelo qual é considerado por cer-
3 Theodor Adorno [Theodor Wiesen- tos autores, contrariando a sua própria
e a desigualdade estamental vigente grund Adorno] (1903-1969): sociólogo, opinião de si mesmo, um pós-moderno.
nas sociedades tradicionais. filósofo, musicólogo e compositor, definiu Seus primeiros trabalhos (História da
Neste ponto cabe questionar o perfil do pensamento alemão das últi- Loucura, O Nascimento da Clínica, As
mas décadas. Adorno ficou conhecido no Palavras e as Coisas, A Arqueologia do
dois aspectos: 1) por que o mero re- mundo intelectual, em todos os países, Saber) seguem uma linha estruturalista,
conhecimento e desenvolvimento à em especial pelo seu clássico Dialética o que não impede que seja considerado
exaustão dos princípios formais não do Iluminismo, escrito junto com Max geralmente como um pós-estruturalista
Horkheimer, primeiro diretor do Institu- devido a obras posteriores como Vigiar e
consegue neutralizar os autoritaris- to de Pesquisa Social, que deu origem Punir e A História da Sexualidade. Fou-
mos e totalitarismos modernos que ao movimento de ideias em filosofia e cault trata principalmente do tema do
se instalam no marco das liberdades sociologia que conhecemos hoje como poder, rompendo com as concepções clás-
Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, con- sicas desse termo. Para ele, o poder não
formais, assim como as desigualdades fira a entrevista concedida pelo filóso- pode ser localizado em uma instituição
estruturais e sociais que não cessam fo Bruno Pucci à edição 386 da Revista ou no Estado, o que tornaria impossível a
de se alargar em escala global; 2) cabe IHU On-Line, intitulada Ser autônomo “tomada de poder” proposta pelos mar-
não é apenas saber dominar bem as tec- xistas. O poder não é considerado como
questionar-se também se esta inca- nologias, disponível para download em algo que o indivíduo cede a um soberano
pacidade do procedimentalismo para http://bit.ly/ihuon386. A conversa foi (concepção contratual jurídico-política),
penetrar nas contradições contempo- motivada pela palestra Theodor Adorno e mas sim como uma relação de forças. Ao
a frieza burguesa em tempos de tecnolo- ser relação, o poder está em todas as
râneas não exige pesquisar uma outra gias digitais, proferida por Pucci dentro partes, uma pessoa está atravessada por
genealogia dos dispositivos de poder da programação do Ciclo Filosofias da In- relações de poder, não pode ser conside-
a partir da qual também se teceram a tersubjetividade. (Nota da IHU On-Line) rada independente delas. Para Foucault,
4 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e o poder não somente reprime, mas tam-
lógica do Estado e a racionalidade do socióloga alemã, de origem judaica. Foi bém produz efeitos de verdade e saber,
mercado modernos. influenciada por Husserl, Heidegger e constituindo verdades, práticas e subje-
Karl Jaspers. Em consequência das per- tividades. Em várias edições a IHU On-Li-
seguições nazistas, em 1941, partiu para ne dedicou matéria de capa a Foucault:
2. Instigados pelas contradições os EUA, onde escreveu grande parte das edição 119, de 18-10-2004, disponível em
inerentes e persistentes no Estado de suas obras. Lecionou nas principais uni- http://bit.ly/ihuon119, edição 203, de
direito e no mercado modernos, di- versidades deste país. Sua filosofia as- 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/
senta numa crítica à sociedade de mas- ihuon203, e edição 364, de 06-06-2011,
versos pensadores contemporâneos sas e à sua tendência para atomizar os intitulada ‘História da loucura’ e o dis-
tentaram pesquisá-las em outras pers- indivíduos. Preconiza um regresso a uma curso racional em debate, disponível em
pectivas. Já Max Weber1 apresentou concepção política separada da esfera http://bit.ly/ihuon364. Confira, tam-
econômica, tendo como modelo de ins- bém, a entrevista com o filósofo José Ter-
um excelente estudo sobre as profun- piração a antiga cidade grega. Entre suas nes, concedida à IHU On-Line 325, sob o
das conexões havidas entre a “Ética obras, citamos: Eichmann em Jerusalém título Foucault, a sociedade panóptica e
protestante e o espírito do capitalis- – Uma reportagem sobre a banalidade do o sujeito histórico, disponível em http://
mal (Lisboa: Tenacitas, 2004) e O Sistema bit.ly/ihuon325. De 13 a 16 de setembro
mo”. Outros autores contemporâneos Totalitário (Lisboa: Publicações Dom Qui- de 2010 aconteceu o XI Simpósio Inter-
da teoria crítica como Horkheimer2, xote, 1978). Sobre Arendt, confira as edi- nacional IHU: O (des)governo biopolítico
ções 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, da vida humana. Confira a edição 343 da
sob o título Hannah Arendt, Simone Weil IHU On-Line que traz o mesmo título que
e Edith Stein. Três mulheres que marca- o evento, publicada em 13-09-2010, dis-
1 Max Weber (1864-1920): sociólogo ram o século XX, disponível para downlo- ponível em http://bit.ly/ihuon343, e a
alemão, considerado um dos fundado- ad em http://bit.ly/ihuon168 e a edição edição 344, intitulada Biopolítica, estado
res da Sociologia. Ética protestante e 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo de exceção e vida nua. Um debate, dis-
o espírito do capitalismo (Rio de Janei- moderno é o mundo sem política. Han- ponível em http://bit.ly/ihuon344. Além
ro: Companhia das Letras, 2004) é uma nah Arendt 1906-1975, disponível para disso, o IHU organizou, durante o ano de
das suas mais conhecidas e importantes download em http://bit.ly/ihuon206. 2004, o evento Ciclo de Estudos sobre Mi-
obras. Cem anos depois, a IHU On-Line Veja também, na edição 207 de 04-12- chel Foucault, que também foi tema da
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dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17- 2006, a entrevista Um pensamento e uma edição número 13 dos Cadernos IHU em
05-2004, intitulada Max Weber. A ética presença provocativos, de Michelle-Irène formação, disponível para download em
protestante e o espírito do capitalis- Brudny, disponível em http://bit.ly/ http://bit.ly/ihuem13 sob o título Michel
mo 100 anos depois, disponível para ihuon207. (Nota da IHU On-Line) Foucault. Sua contribuição para a educa-
download em http://migre.me/30rKx. 5 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo ção, a política e a ética. (Nota da IHU
De Max Weber, o IHU publicou, em alemão. Foi refugiado judeu e, diante da On-Line)
2005, Cadernos IHU em formação nº perspectiva de ser capturado pelos nazis- 7 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita-
3, chamado Max Weber – o espírito do tas, preferiu o suicídio. Um dos principais liano. É professor da Facoltà di Design
capitalismo. Em 10-11-2005, o profes- pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre e Arti della IUAV (Veneza), onde ensina
sor Antônio Flávio Pierucci ministrou a Benjamin, confira a entrevista Walter Estética, e do Collège International de
conferência de encerramento do I Ciclo Benjamin e o império do instante, conce- Philosophie de Paris. Formado em Direi-
de Estudos Repensando os Clássicos dida pelo filósofo espanhol José Antonio to, foi professor da Università di Mace-
da Economia, promovido pelo IHU, inti- Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível rata, Università di Verona e da New York
tulada Relações e implicações da ética em http://bit.ly/zamora313. (Nota da University, cargo ao qual renunciou em
protestante para o capitalismo. (Nota IHU On-Line) protesto à política do governo norte-
da IHU On-Line) 6 Michel Foucault (1926-1984): filósofo americano. Sua produção centra-se nas
2 Max Horkheimer (1895-1973): filósofo francês. Suas obras, desde a História da relações entre filosofia, literatura, poe-
e sociólogo alemão, conhecido especial- Loucura até a História da sexualidade (a sia e, fundamentalmente, política. Entre
mente como fundador e principal pen- qual não pôde completar devido à sua suas principais obras, estão Homo Sacer:
sador da Escola de Frankfurt e da teoria morte) situam-se dentro de uma filosofia o poder soberano e a vida nua (Belo Ho-
crítica. (Nota da IHU On-Line) do conhecimento. Suas teorias sobre o rizonte: Ed. UFMG, 2002); A linguagem

46 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


mais íntimas do capitalismo, especi-
“A noção moderna governo dos outros, oikonomia, por

IHU em Revista
ficamente da economia política, com isso não era considerado um espaço
o poder pastoral (Foucault) e com a
teologia econômica (Agamben). As de economia político. E vice-versa, o espaço político
não poderia incluir a administração da
pesquisas de ambos os pensadores se
cruzam na noção de governo. política, para vida, nem o governo dos outros, por-
que na Ágora da polis todos são iguais
A prática e o discurso dominante e tudo se decide por deliberação de-
na contemporaneidade é o da econo- os gregos, seria mocrática. São duas práticas antagô-
mia política, que penetrou e absorveu nicas, para os gregos. Na polis vigora
o conjunto das instituições modernas, um absurdo, a isonomia e a democracia, na oikos
inclusive a própria racionalidade do rege a hierarquia e a soberania. No
Estado de direito. O cerne discursivo uma contradição entanto, na modernidade, elas se tor-
da economia política é o do governo naram sinônimos. A noção moderna
da vida humana. A economia políti- performativa dos de economia política, para os gregos,
ca não se faz sobre as coisas, mas se seria um absurdo, uma contradição
realiza como governo das pessoas.
Economia é sinônimo de governo dos
termos” performativa dos termos. Ou é econo-
mia (governo hierárquico da vida dos
outros. Neste ponto, a economia se outros) ou é política (autogoverno
torna biopolítica, uma política cujo de governo, por isso a genealogia das democrático dos sujeitos). A questão
objetivo é o governo da conduta dos práticas de governo implementadas que cabe pesquisar é como isso acon-
outros. A economia política tem por pela economia política remetem a teceu na modernidade.
escopo administrar pessoas, geren- outro campo discursivo, diferente das Foucault, na sua obra Seguran-
ciar condutas, liderar processos, diri- teorias da soberania. Foucault inves- ça, Território e População (São Paulo:
gir equipes, gerir comportamentos, e tigou a tese de que as noções de go- Martins Editora, 2008), apresenta a
um amplo vocabulário em que o ver- verno dos outros e governo das popu- tese de que a prática política que tinha
bo é sempre sinônimo de governar e o lações remetem às práticas de poder por objetivo cuidar e governar a vida
complemento verbal é sempre um ser pastoral. Agamben, diferentemente, dos outros nas sociedades antigas era
humano, uma população que deve ser defendeu a tese de que a economia associada à figura do rei-pastor. A de-
gerenciada e governada. política moderna encontra seu apa- nominação do rei como pastor se en-
Foucault e Agamben mostram, rato conceitual já amplamente desen- contra amplamente documentada nas
de forma diversa, que os discursos da volvido na teologia cristã que, desde principais civilizações da Antiguidade,
soberania se diferenciam qualitativa- o século II até o século XVII, discutiu exceto nos gregos. O Faraó era deno-
mente dos discursos e das práticas longamente o conceito de oikonomia minado pastor, os persas atribuíam
divina a respeito do governo divino ao rei o título principal de pastor, os
do mundo, da providência, da liber- sumérios, babilônios e certamente o
e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2005); Infância e história: destruição da dade e dos ministérios, oferecendo povo hebreu desenvolveram a figura
experiência e origem da história (Belo o discurso teológico da oikonomia do pastor como título do governante.
Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de
muito amadurecido nas mãos dos A figura política do pastor está
exceção (São Paulo: Boitempo Editorial,
2007); Estâncias – A palavra e o fantasma economistas modernos, que só fize- longamente documentada nas prin-
na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. ram secularizá-lo na nova conjuntura cipais sociedades da Antiguidade. De
UFMG, 2007); e Profanações (São Paulo:
governamental. forma muito especial, a figura bíblica
Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-
2007, o sítio do Instituto Humanitas Uni-
do pastor teve grande repercussão
sinos – IHU publicou a entrevista Estado 3. A noção de cuidado da vida as- posterior na concretização do pasto-
de exceção e biopolítica segundo Giorgio
sim como o governo dos outros eram rado cristão, que por sua vez influen-
Agamben, com o filósofo Jasson da Silva
ciou diretamente os discursos da go-
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Martins, disponível em http://bit.ly/jas- completamente alheios à polis grega.
son040907. A edição 236 da IHU On-Line, A política grega se caracterizava pela vernamentalidade moderna, como
de 17-09-2007, publicou a entrevista
isonomia dos cidadãos, a autonomia veremos a seguir. Porém, o simbolis-
Agamben e Heidegger: o âmbito origi-
nário de uma nova experiência, ética, dos sujeitos e autogestão na Ágora. mo do pastor como governante não
política e direito, com o filósofo Fabrí- A oikos (casa) era o espaço onde se é criação do povo hebreu, senão que
cio Carlos Zanin, disponível em http://
administrava a vida, onde se gover- um registro comum às principais cul-
bit.ly/ihuon236. A edição 81 da publica-
ção, de 27-10-2003, teve como tema de navam os outros, onde se cuidava da turas e sociedades da Antiguidade.
capa O Estado de exceção e a vida nua: vida dos outros. Como bem referencia
a lei política moderna, disponível para
acesso em http://bit.ly/ihuon81. Além Aristóteles8, a oikos era o espaço do pensar que se estenderia por séculos.
disso, de 16 de abril a 23 de outubro de Prestou inigualáveis contribuições para
2013, o IHU organizou o ciclo de estudos o pensamento humano, destacando-se
O pensamento de Giorgio Agamben: téc- 8 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 nos campos da ética, política, física,
nicas biopolíticas de governo, soberania a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Es- metafísica, lógica, psicologia, poesia,
e exceção, cujas atividades integraram o tagira, um dos maiores pensadores de retórica, zoologia, biologia, história na-
I e o II seminários preparatórios ao XIV todos os tempos. Suas reflexões filosó- tural e outras áreas de conhecimento. É
Simpósio Internacional IHU – Revoluções ficas – por um lado originais e por ou- considerado, por muitos, o filósofo que
tecnocientíficas, culturas, indivíduos e tro reformuladoras da tradição grega mais influenciou o pensamento ociden-
sociedades. (Nota da IHU On-Line) – acabaram por configurar um modo de tal. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 47


O pastor tem a responsabilida- sociedade. No espaço da política, da política, que é a autogestão e au-
IHU em Revista
de principal de cuidar e governar ninguém é governado por ninguém, tonomia dos sujeitos. Por outro lado,
bem o rebanho. O pastorado está todos se autogovernam. A essência o poder pastoral, ao centrar-se no cui-
associado a estas duas grandes ca- da democracia grega está no exercí- dado dos outros, ajuda e apoia aque-
tegorias de cuidado e governo dos cio direto do poder, sem mediações les que dele necessitam, porém inibe
outros. O bom pastor é aquele que de outro, nem governos dos outros. a autonomia, ou como mínimo não a
cuida e governa os outros para bem Aquele que não tem possibilidade desenvolve. O poder pastoral é funda-
do rebanho, sem procurar tirar pro- de governar-se, não tem o direito mental para cuidar os outros quando
veito próprio nem explorar o reba- de exercer a política na democracia. necessitam, porém ele pode ser um
nho. O mau pastor é aquele que se A política exige o exercício da auto- grande entrave para a autonomia
aproveita do cuidado e do governo nomia direta e não consente sequer dos sujeitos. Aquele que é cuidado
dos outros para seu benefício pró- a delegação das deliberações ou a o tempo todo, perde capacidade de
prio. O bom pastor sabe das neces- representação, que é sempre uma decidir por si mesmo. De outro lado,
sidades do rebanho e providencia negação da democracia. a pura política deixaria de lado a pre-
os melhores pastos e caminhos para É certo que o político, como o ocupação com aqueles que não con-
seu conforto; o bom pastor defende pastor, também tem seu lado obs- seguem se valer por si, e, no entanto,
o rebanho, se arrisca por ele pre- curo ou pervertido. O mau político em muitas ocasiões, algumas pessoas
servando-o dos perigos que possam é aquele que se vale da suposta au- necessitam de apoios e cuidados por-
assediá-lo. Há uma longa literatura tonomia para convencer falaciosa- que não têm possibilidades ou capa-
que debate os critérios do bom e mente os outros, neste caso a de- cidades suficientes para valer-se por
do mau pastor; inclusive, como de- mocracia vira demagogia. Como diz si mesmas. Neste caso, a política que
senvolve a literatura bíblica, o bom Aristóteles, o mau político se torna apela para autonomia e autogestão
pastor há de saber sacrificar-se pelo demagogo, mantém a aparência for- de si, aparece, para as pessoas que
rebanho quando necessário for, já mal da autonomia política, enquanto necessitam e não podem, como um
que o objeto de seu pastorado não é prática a falácia da demagogia. Da discurso formal correto, porém vazio
ele mesmo, mas o bem do rebanho. mão dos demagogos a democracia de sentido.
Jesus Cristo inverterá esta relação, se perverte numa demagogia; esta, Nesta análise, fica transparente
ele mesmo se tornará o “cordeiro” no sentido estrito do termo, significa que em ambas as formas de poder há
que se oferece em sacrifício, de uma arte de conduzir ou governar o povo. uma limitação interna a respeito da
vez e para abolir todos os sacrifícios. Assim como a pedagogia é a arte de vida humana e uma tensão entre si
conduzir as crianças, que por defini- a respeito dos sujeitos. A política se
4. Embora o poder pastoral e a ção ainda necessitam de cuidados e omite do cuidado daqueles que não
oikos tenham por objetivo o gover- condução, a demagogia perverte a podem, o pastorado cuida dos que
no da vida humana, há uma diferen- autonomia política transformando-a necessitam com perigo de inibir a au-
ça significativa entre o pastorado e a numa técnica ou arte de condução tonomia possível. Mutatis mutandis,
oikos, entre o modo de governar do dos outros. Não é difícil encontrar podemos ver refletida contempora-
pastor e o do kyrios (senhor) da oikos. paralelismos contemporâneos desta neamente esta tensão, por exem-
Na oikos ou lar (romano) vigora o po- problemática, que tornaram nossas plo, em algumas das denominadas
der soberano (pater familias romano), democracias modernas muito próxi- políticas públicas compensatórias
o governo é feito de forma soberana, mas do que poderíamos denominar: ou assistenciais. São políticas desti-
absolutista, com poder de vida e mor- demagogias de massas. nadas a compensar necessidades da
te sobre todos os membros da casa. população, elas são extremamente
Não se tem conhecimento de dis- 5. Independentemente da atitu- necessárias para aqueles que vivem
cursos a respeito da necessidade do de boa ou má do pastor ou do políti- em estado de necessidade, já que
kyrios ou dominus sacrificar-se pelo co, há algumas diferenças qualitativas sem elas encontrar-se-iam vulnerá-
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bem dos outros, já que todas as vidas entre o poder pastoral e a política. O veis e carentes de aspectos funda-
das oikos e dos lares estavam, por de- poder pastoral desenvolve o cuida- mentais da sobrevivência humana.
finição, a serviço dos interesses dos do dos outros, o cuidado da vida na Porém, se estas políticas públicas
seus senhores. forma de bom governo, enquanto a perdurarem por muito tempo ou se
A política foi criada na Grécia política tem por princípio o autogo- aplicarem de forma indiscriminada,
como o espaço de desenvolvimen- verno dos sujeitos, a autogestão e au- podem desenvolver, de um lado, uma
to da autonomia dos cidadãos, ain- tonomia. Independentemente de que atitude paternalista de dependência
da que na verdade era restrito aos exista um bom ou mau uso do poder dos poderes do Estado, do qual se
homens livres e eupátridas, que era pastoral ou da política, fica claro que espera que resolva tudo de forma
uma ínfima minoria dos habitantes ambas as formas de poder lidam de generalizada, e concomitantemente
da polis. Contudo, o valor da política modos diferentes com a vida e com os desenvolver-se-ia uma atitude assis-
consistiu em ter criado este espa- sujeitos. A política, por princípio, não tencialista que gera dependência de
ço inédito de isonomia e autono- se ocuparia daqueles que necessitam um outro superior. De outro lado,
mia entre cidadãos, absolutamente cuidados, qualquer forma de cuidado os governantes do Estado aliciam
desconhecido em qualquer outra dos outros foge ao escopo originário as pessoas e populações que obtêm

48 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


benefícios públicos permitindo obter
“Para Foucault, senvolveu, desde o século V até sécu-

IHU em Revista
mais votos através de políticas assis- lo XVI, as artes de cuidado e governo
tenciais. As políticas públicas são um dos outros associados ao regime esta-
exemplo concreto, uma versão con- a prática política mental do feudalismo. Esta aliança fez
temporânea, do poder pastoral, que com que o pastorado cristão da alta e
refletem a tensão histórica entre o que tinha por baixa Idade Média se caracterizasse
pastorado e a política. O que está em por consolidar o modo de subjetiva-
questão não é a bondade ou malda-
de intrínseca de alguma das formas
objetivo cuidar e ção do súdito, fundamentado na obe-
diência como virtude principal. Por
de poder (pastorado ou política), mas
as estratégias que os conjugam e as governar a vida sua vez, o pastorado cristão manteve
uma certa distinção das formas de so-
táticas que os desenvolvem. Especifi- berania absoluta praticada pelos prín-
camente, como veremos, a noção de dos outros nas cipes e senhores feudais. Ao longo
economia política moderna operou destes séculos, o poder pastoral sus-
uma estratégia precisa que transtro- sociedades antigas tentou sua especificidade como forma
cou os modos de condução governo de governo dos outros, sem fundir-se
da vida (pastorado) em formas polí-
ticas com aparência de democracia,
era associada à com as formas de soberania represen-
tadas pelos nobres, senhores feudais
anulando os espaços da autonomia e
deliberação dos sujeitos e tornando figura do e príncipes. Esta especificidade fez do
cristianismo uma experiência política
nossas democracias, cada vez mais, singular em vários aspectos, pois mes-
regimes de administração da vida, de rei-pastor” mo com as profundas alianças e cum-
condução das populações, de geren- plicidades havidas entre os poderes
ciamento de desejos, de direciona- políticos feudais e o poder pastoral, o
mento de tendências, etc. der pastoral não foi assumida como cristianismo manteve a peculiaridade
modelo de governo na Grécia antiga. do pastorado como forma de cuidado,
6. Embora a figura do pastor O cruzamento da cultura grega com governo e condução dos outros, dife-
encontra-se em Homero9, Pitágoras10, o poder pastoral ocorrera em vários renciada da soberania política.
Isócrates11, Demóstenes12, inclusive momentos. Já em Fílon de Alexan- A inversões e perversões do pas-
no próprio Platão13, a noção de po- dria14 (entre 10 e 50 d.C.), um filósofo torado cristão a respeito do modelo
neoplatônico judeu, encontramos vá- do bom pastor, na forma de um poder
rios escritos desenvolvendo a noção controlador extremo e produtor da
9 Homero: primeiro grande poeta grego,
que teria vivido há cerca de 3500 anos e de poder pastoral como forma de go- subjetivação do súdito, provocaram
consagrado o gênero épico com as suas verno. Contudo, foi o cristianismo que durante séculos inúmeras reações,
grandiosas obras: A Ilíada e a Odisseia.
consolidou ao longo de mais de XVII denominadas por Foucault de con-
Nada se sabe seguramente da sua exis-
tência; mas a crítica moderna inclina-se séculos o discurso e a prática deter- tracondutas. Estas reações visavam
a crer que ele terá vivido no século VIII minada do poder pastoral na forma retornar ao ideal do pastorado como
a. C., embora sem poder indicar onde
de pastorado cristão. Este discurso e serviço aos outros e não como do-
nasceu nem confirmar a sua pobreza, ce-
gueira e afã de viajante, caracteres que prática desembocaram diretamen- mínio dos outros. É fácil identificar
tradicionalmente lhe têm sido atribuídos. te nos teóricos da economia política nessas contracondutas muitas das re-
(Nota da IHU On-Line)
moderna. formas religiosas, os novos carismas,
10 Pitágoras de Samos (570 a.C.–497
a.C.): filósofo e matemático grego, fun- Como não poderia ser de outra os novos movimentos religiosos, etc.
dador de uma escola mística e filosófi- forma, o cristianismo desenvolveu o Essas reações ou contracondutas in-
ca – a Escola Pitagórica. (Nota da IHU
poder pastoral de forma paradoxal. O surgentes contra o pastorado cristão
On-Line)
dominante não deixavam de ser elas
www.ihu.unisinos.br
11 Isócrates (436 a.C.-336 a.C.): ora- pastorado cristão cuidava e controla-
dor e retórico ateniense. (Nota da IHU va, ajudava e conduzia. Era um poder mesmas formas de poder pastoral,
On-Line)
que concomitantemente com o cui- uma vez que propunham refundar
12 Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.): ora-
dor e político grego de Atenas. (Nota da dado dos outros realizava a condução o verdadeiro objetivo do pastorado.
IHU On-Line) de suas vidas. O pastorado cristão de- Nesta perspectiva, seria pertinente
13 Platão (427-347 a.C.): filósofo ate- reescrever a história da Igreja como
niense. Criador de sistemas filosóficos
influentes até hoje, como a Teoria das
uma história das práticas pastorais,
Ideias e a Dialética. Discípulo de Sócra- intitulada Platão. A totalidade em mo- de suas lutas, inovações, imposições,
tes, Platão foi mestre de Aristóteles. vimento, disponível em . (Nota da IHU insurgências e novos métodos.
Entre suas obras, destacam-se A Repú- On-Line)
blica (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e 14 Fílon de Alexandria (10 a.C.-50 d.C.):
Fédon (São Paulo: Martin Claret, 2002). filósofo judeo-helenista que viveu duran- 7. Ao longo destes séculos, o
Sobre Platão, confira e entrevista As im- te o período do helenismo. Tentou uma pastorado cristão manteve a carac-
plicações éticas da cosmologia de Platão, interpretação do antigo testamento à luz
concedida pelo filósofo Marcelo Perine à das categorias elaboradas pela filosofia
terística principal do poder pastoral
edição 194 da revista IHU On-Line, de grega e da alegoria. Foi autor de nume- antigo, que por sua vez será o mote
04-09-2006, disponível em http://bit. rosas obras filosóficas e históricas, onde a partir do qual se tecerá o discurso
ly/pteX8f. Leia, também, a edição 294 expôs a sua visão platônica do judaísmo.
da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, (Nota da IHU On-Line)
da economia política moderna. O que

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 49


caracteriza o poder pastoral é que a dos, ele os imitou dos antigos, porém população possibilitou introduzir a
IHU em Revista
noção de cuidado e governo envolve inovou criando dispositivos governa- categoria do mercado como entida-
tanto a totalidade do rebanho como mentais através dos quais inseriu o de natural reguladora das relações
a singularidade de cada ovelha. Ou governo da vida humana, a condução humanas. O surgimento de novos sa-
seja, o poder pastoral se preocupa de dos outros, como parte da política beres como a estatística (ciência do
governar o todo e cada um, omnes et moderna. As técnicas de governa- Estado) e a demografia contribuíram
singulatim. O poder pastoral se carac- mentalidade foram desenvolvidas por significativamente para identificar na
teriza por preocupar-se em pensar a vários discursos e práticas: medicina, população a principal variável econô-
forma de governo para articular o urbanismo, trabalho, etc., porém foi mica a ser governada.
bem geral do todo (o rebanho) com a economia política que sintetizou to- Um exemplo ilustrativo deste
o conhecimento particular de cada das elas e deu formas às novas estra- momento crítico ficou refletido no
ovelha. O critério para o bom gover- tégias de governo em escala estatal. verbete que Rousseau15 escreveu para
no não se encontra na vontade do Foucault defende a tese de que a Enciclopédia de 1755, intitulado:
pastor, como sustentam as teorias da o Estado moderno é o resultado dos Economia Política. Rousseau, que se
soberania, mas na realidade daqueles dispositivos de governo, um resultado destacou por construir uma teoria
que devem ser governados: o reba- fruto do complexo processo de técni- da soberania baseada no conceito
nho na sua totalidade e os indivíduos cas governamentais que confecciona- de contrato e cidadania na obra O
na sua singularidade. O bom pastor ram seus aparatos burocráticos, seus contrato social (Porto Alegre: L&pm,
deve conhecer cada ovelha, saber de métodos de gestão, e suas instituições 2007), reconhece neste verbete que a
suas necessidades, potencialidades, conexas. O Estado é o produto das definição moderna de economia deve
limites. O conhecimento singular de técnicas de governo, e sua existência ser entendida como arte de governo,
cada indivíduo em suas peculiarida- e continuidade é correlativa a elas. e que esta não tem mais como refe-
des é critério de um bom governo Esta tese desenha a hipótese prová- rência a oikos. O objetivo da nova eco-
pastoral. De igual forma, para melhor vel segundo a qual a transformação nomia política, segundo Rousseau, é
poder conduzir a totalidade do reba- do Estado deverá acontecer de forma governar da melhor maneira possível
nho, o pastor deve ter noção do todo interna, através da transformação de e com a máxima eficiência visando à
desse rebanho: de quantas ovelhas seus dispositivos de governo e suas felicidade dos homens.
são, de quanto consomem cada dia técnicas de gestão. O novo discurso governamental
de alimento, de quanta água necessi- construído pelos fisiocratas, principal-
ta todo o rebanho, da dimensão dos 9. Até metade do século XVIII, as mente pelo liberalismo e mais recen-
abrigos necessários para proteger a técnicas governamentais desenvol- temente pelo neoliberalismo, enten-
todos. O conhecimento do rebanho vidas principalmente pela incipiente deu que as novas técnicas de governo
exige técnicas peculiares de governo economia política estavam atreladas tinham como referência principal o
como uma totalidade, omnes, que ao modelo da soberania, ao poder conceito de natureza, mais concreta-
são diferentes e complementares das absoluto dos monarcas. Nesta lógica, mente o de natureza humana. O que
técnicas de governo de cada indivíduo as técnicas de governo encontravam- as novas formas de governo devem
na sua especificidade, singulatim. O -se engessadas pelo decisionismo do aprender a governar são as expectati-
bom pastor deve conhecer cada ove- soberano que se instituía princípio e vas, anseios e tendências da natureza
lha, se está enferma ou sadia, jovem finalidade das próprias técnicas de humana, constitutiva da população.
ou velha, se tem alguma dificuldade governo. Os teóricos cameralistas e O governante moderno não pode im-
ou suas habilidades. O conhecimen- mercantilistas sofreram em seus mo- por a sua vontade contra a natureza
to do singulatim lhe permitirá tomar delos de governo estas restrições, por da população, ele deve conduzir, e se
decisões apropriadas a respeito desse isso não conseguiram pensar técnicas necessário for, produzir as aspirações
indivíduo, que repercutirá no bem do de governo econômicas diferentes do
rebanho. O poder pastoral desenvol- modelo clássico da oikos.
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15 Jean Jacques Rousseau (1712-1778):


veu ao longo dos séculos a articulação Como e quando foi possível pen- filósofo franco-suíço, escritor, teórico po-
lítico e compositor musical autodidata.
destas duas dimensões como parte sar os novos dispositivos e tecnologias Uma das figuras marcantes do Iluminismo
constitutiva desta forma de governo. da governamentalidade moderna? francês, Rousseau é também um precur-
Para que isso acontecesse, foi preciso sor do romantismo. As ideias iluministas
de Rousseau, Montesquieu e Diderot, que
8. Para Foucault, a genealogia abandonar o modelo de gestão clás- defendiam a igualdade de todos perante
do Estado moderno é conexa com a sico que concebia o soberano gover- a lei, a tolerância religiosa e a livre ex-
genealogia da governamentalidade. nando sabiamente a oikos. No lugar pressão do pensamento, influenciaram a
Revolução Francesa. Contra a sociedade
O específico do Estado moderno não do modelo limitado do governo da de ordens e de privilégios do Antigo Regi-
são as teorias da soberania, que já se oikos foi introduzida a categoria de me, os iluministas sugeriam um governo
encontravam na Grécia clássica, mas população. O que a nova economia monárquico ou republicano, constitucio-
nal e parlamentar. Sobre esse pensador,
as técnicas governamentais que possi- política deveria governar era a popu- confira a edição 415 da IHU On-Line, de
bilitaram introduzir o governo da vida lação. Esta, por sua vez, foi ressignifi- 22-04-2013, intitulada Somos condenados
humana como característica da políti- cada simbolicamente como a dimen- a viver em sociedade? As contribuições
de Rousseau à modernidade política, dis-
ca moderna. O Estado moderno não são biológica da espécie humana. Este ponível em http://bit.ly/ihuon415. (Nota
inventou a democracia nem seus mo- novo recorte simbólico-conceitual da da IHU On-Line)

50 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


da população de tal modo que essas
“O simbolismo desejos consegue realizar. Este mode-

IHU em Revista
aspirações venham a coincidir com as lo moderno e liberal de liberdade foi
metas previstas por seu governo. Em forjado para se ajustar às demandas
suma, o ideal do governo moderno do pastor como requeridas pelos dispositivos gover-
é produzir a natureza da população, namentais que o Estado e mercado
ou seja, criar seus desejos, modelar governante não modernos não cessaram de produzir.
suas tendências, formatar seus hábi- Sendo o objetivo da governamentali-
tos, forjar suas expectativas. O bom
governo é aquele que consegue criar
é criação do dade conseguir gerenciar a natureza
da população de modo que suas as-
dispositivos e técnicas que governam
a população de tal modo que os dese-
povo hebreu, pirações venham a coincidir com as
metas do governo, o ideal do governo
jos e a natureza desta coincidam com moderno é gerenciar a liberdade para
as metas previstas por aquele. senão que um que o exercício desta se direcione
A população aparece como figu- aos objetivos daquele. Como isso é
ra secularizada do rebanho. A gover- registro comum às possível?
namentalidade do Estado moderno Ao identificarem os indivíduos
haverá de cuidar do rebanho, a popu-
lação, encontrando em sua natureza
principais culturas sua liberdade com a realização dos
seus desejos, o ideal do governo
a referência para seus dispositivos
de governo. A potência do Estado
e sociedades da moderno será conseguir produzir os
desejos dos indivíduos, e consequen-
depende diretamente da qualifica-
ção de sua população. Esta é a nova Antiguidade” temente da população; de tal modo
que ao realizar o que eles desejam
variável que originará os discursos e estão executando os comportamen-
práticas da economia política. Cuidar tos induzidos pelos dispositivos ex-
bem da população é sinônimo de po- ternos. Os dispositivos governamen-
tenciar a riqueza do Estado. Este cui- tais tendem a governar a população
dado é em si mesmo paradoxal por- divíduo. Esta problemática da econo- produzindo seus comportamentos,
que se cuida a população enquanto mia política moderna remete stricto administrando suas aspirações, ge-
significa riqueza real ou potencial sensu aos métodos do poder pasto- renciando suas habilidades, para tan-
para o Estado. Porém, quando essa ral onde o bom governo se realiza na to, e entre outras técnicas, utiliza-se
população se tornar inútil, o Estado intersecção do omnes et singulatim. a indução dos desejos e a fabricação
também tenderá a suspender o cui- Por outro lado, cabe resenhar que a da liberdade. Neste contexto, fabrica-
dado sobre ela e a abandonará à sua denominada economia política não -se a liberdade como um quesito im-
sorte. O cuidado da população está existia como tal antes do século XVIII, portante para o bom funcionamento
perpassado pelos princípios da utili- e que os temas que ela destaca en- dos dispositivos governamentais.
dade, da eficiência e do lucro. Ela é contravam-se dentro dos tratados de O deste dispositivo governamental
cuidada por ser útil, e será abando- moral, mais concretamente, de teo- encontra-se plenamente ativo na de-
nada quando não se tornar impro- logia moral. Não é por acaso que os nominada sociedade de consumo. O
dutiva. A relação direta da economia primeiros e principais economistas consumismo é o resultado de uma
política com o governo da vida hu- eram todos eles formados em filoso- ingente constelação de dispositivos
mana a torna, cada vez mais, uma fia moral, e quase todos em teologia. produtores de desejos, indutores de
biopolítica. Foucault acunhou uma Destarte, vemos reaparecer a eco- condutas, formatadores de hábitos
conhecida máxima da biopolítica mo- nomia política moderna como uma que sujeitam os indivíduos numa
derna que diz: “o poder soberano faz espécie de secularização dos dispo- sensação de liberdade permanente
morrer e deixa viver, o biopoder faz de ter o que se deseja.
www.ihu.unisinos.br
sitivos clássicos de poder pastoral e,
viver e deixa morrer”. ainda, segundo Agamben, a secula- É importante destacar que es-
rização dos dispositivos da teologia tes processos governamentais não
10. O específico da economia oikonomica. acontecem de forma linear ou uni-
política moderna é seu objetivo de lateral. Há complexidades, sinuo-
governar a população a partir da sua 11. É pertinente fazer um desta- sidades, resistências, confrontos,
natureza. O que está em destaque que à inversão e captura que a liber- diferenças. A governamentalidade
nas artes de governo modernas é o dade humana sofreu nos dispositivos econômica moderna consegue ser
governo da natureza ou o governo governamentais modernos. A noção hegemônica, mas, ainda, não conse-
segundo a natureza das coisas, mais moderna de liberdade está referen- guiu a totalidade de uma imanência
especificamente a natureza humana. ciada à natureza. Somos livres por absoluta. Porém, não se pode deixar
Esse novo modo de governo enfren- natureza e identifica-se a liberdade de reconhecer que o ideal a que as-
tava, nos seus primórdios, a pecu- com os desejos naturais dos indiví- piram os dispositivos econômicos
liaridade de ter que governar uma duos. Para o indivíduo moderno, ser modernos coincide com o governo
totalidade, a população, devendo livre é poder realizar o que deseja. Por total (totalitário) da população. O
conhecer a singularidade de cada in- isso, sente-se mais livre quanto mais que está em questão, entre outras

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 51


muitas questões, é o sentido da po- bipolar, o mesmo ser humano é con-
Leia mais...
IHU em Revista
lítica contemporânea cada vez mais comitantemente povo e população,
reduzida a um espaço de adminis- sujeito de direitos e objeto de gover- • Homo sacer. O poder soberano e a vida
tração da vida e gerenciamento das no. Esta é uma bipolaridade parado- nua. Revista IHU On-Line, edição 371,
condutas dos outros. A política foi xal inerente à arquitetura do Estado de 29-08-2011, disponível emhttp://bit.
capturada pelas técnicas corporati- e do mercado modernos. Todos os ly/naBMm8
• O campo como paradigma biopolítico
vas de governo e esvaziada da au- seres humanos somos, para estas moderno. Revista IHU On-Line, edição
tonomia deliberativa dos sujeitos. O instituições modernas, concomitan- 372, de 05-09-2011, disponível emhttp:
corporativismo governamental inva- temente cidadãos sujeitos formais //bit.ly/nPTZz3
diu quase todos os espaços políticos de direitos (povo) e população bio- • O estado de exceção como paradigma
de governo. Revista IHU On-Line, edição
submetendo a política e o próprio lógica que deve ser governada. Esta 373, de 12-09-2011, disponível emhttp:
Estado à lógica governamental dos tensão percorre os longos séculos de //bit.ly/nsUUpX
interesses corporativos. Estas novas modernidade e se explicita, por um • A exceção jurídica e a vida humana. Cru-
perspectivas genealógicas abrem zamentos e rupturas entre C. Schmitt e
lado, nas lutas pelos direitos funda-
pistas para pensarmos possíveis al- W. Benjamin. Revista IHU On-Line,
mentais em nome do povo; por outro edição 374, de 26-09-2011, disponível
ternativas da democracia efetiva e lado, no avanço dos dispositivos de em http://bit.ly/pDpE2N
a autonomia deliberativa a partir da controle, governo e administração da • A testemunha, um acontecimento. Re-
criação de novos dispositivos de au- população como recurso natural útil, vista IHU On-Line, edição 375, de 03-10-
togoverno e autogestão. 2011, disponível emhttp://bit.ly/q84Ecj
eficiente e produtivo. A hegemonia • A testemunha, o resto humano na dis-
atual dos dispositivos econômicos solução pós-metafísica do sujeito. Re-
12. Nos séculos XVII e XVIII representa a vitória da população vista IHU On-Line, edição 376, de 17-
se arquitetaram as bases do Esta- sobre o povo, a preeminência da ob- 10-2011, disponível em  http://migre.
do e do mercado modernos. Esta me/66N5R
jetivação da vida sobre o sujeito de • A vítima da violência: testemunha do
arquitetura se alicerçou, entre ou- direitos. incomunicável, critério ético de justiça.
tras, sobre duas categorias cen- Revista IHU On-Line, edição 380, de 14-
Certamente que estas bipola-
trais: povo e população. O povo é 11-2011, disponível em  http://bit.ly/
ridades conceituais não são meras vQLFZE
a categoria que fundamenta todo
abstrações filosóficas, elas repre- • Genealogia da biopolítica. Legitima-
o alicerce da soberania moderna.
sentam a produção discursiva que ções naturalistas e filosofia crítica. Re-
O povo é proclamado, formalmen- vista IHU On-Line, edição 386, de 19-
legitima as práticas do modelo ca-
te, sujeito da soberania e a ele se 03-2012, disponível em  http://bit.ly/
pitalista de produção. O capitalismo GHWSMF
lhe atribui a potestas do poder. O
não é um sistema econômico-finan- • A bios humana: paradoxos éticos e po-
povo é sujeito, formal, de direitos
ceiro independente ou concomi- líticos da biopolítica. Revista IHU On-
inalienáveis. Estas duas caracterís- Line, edição 388, de 09-04-2012, dispo-
tante com este debate. Muito pelo
ticas do povo estão registradas em nível em http://bit.ly/Hsl5Yx
contrário, se o Estado moderno é o
todas as constituições dos Estados • Objetivação e governo da vida humana.
de direito modernos. Concomitan- resultado das artes de governo, o Rupturas arqueo-genealógicas e filoso-
temente com a categoria povo, foi capitalismo é o modo de produção fia crítica. Revista IHU On-Line, edição
resultante desta lógica bipolar que 389, de 23-04-2012, disponível em ht-
emergindo a categoria população. tp://bit.ly/JpA8G3
Se o povo é concebido como o su- objetiva a vida humana como recur- • A economia e suas técnicas de governo
jeito formal dos direitos, a popu- so produtivo útil a ser explorado à biopolítico. Revista IHU On-Line, edição
lação foi forjada como o objeto de exaustão pelos interesses corporati- 390, de 30-04-2012, disponível emhttp:
vos, enquanto se mantém o apara- //bit.ly/L2PyO1
governo. A população é o recorte • O advento do social: leituras biopolíticas
biológico da vida humana que deve to formal do Estado de direito afir- em Hannah Arendt. Revista IHU On-Li-
ser governado. A população repre- mando, também à exaustão, que o ne, edição 392, de 14-05-2012, disponí-
povo é sujeito da soberania e sujeito vel em http://bit.ly/J88crF
senta a objetivação simbólica da
www.ihu.unisinos.br

formal de direitos inalienáveis. Es- • O trabalho e a biopolítica na perspecti-


vida humana como recurso biológi- va de Hannah Arendt. Revista IHU On-
co que pode ser governado, instru- tes direitos são fórmulas vazias cujo Line, edição 393, de 21-05-2012, dispo-
mentalizado. A população não é um conteúdo foi tomado pelos disposi- nível em http://bit.ly/KOOxuX
sujeito, mas uma objetivação bioló- tivos biopolíticos que governam a • Giorgio Agamben, genealogia teológica
vida humana como um recurso na- da economia e do governo. Artigo de
gica do coletivo “espécie humana”. Castor Bartolomé Ruiz na Revista IHU
Curiosamente, a população não fi- tural a mais. Pensar a transformação On-Line edição 413, de 01-04-2013, dis-
gura como categoria jurídica reco- do Estado moderno implica trans- ponível em http://bit.ly/1aobf9t.
nhecida em nenhuma constituição, formar qualitativamente o modo de • A verdade, o poder e os modelos de sub-
jetivação em Foucault. Publicado nas
porém ela é a categoria central de produção capitalista. Ambos emer-
Notícias do Dia, de 25-09-2013, no sítio
todas as políticas de governo. As giram conexos e se mantêm numa do Instituto Humanitas Unisinos, dispo-
estratégias de governo são realiza- aliança híbrida e sinuosa de para- nível em http://bit.ly/GB38Nt.
das sobre a população. A atribuição doxos bipolares em que se afirmam • Genealogia do governo e da economia
política. Artigo de Castor Bartolomé
de direitos é conferida ao povo. ao povo como sujeito da soberania e
Ruiz na Revista IHU On-Line edição 437,
Este recorte simbólico possibili- dos direitos e se objetiva a popula- de 17-03-2014, disponível em  http://
tou caracterizar o humano de forma ção como recurso natural lucrativo. bit.ly/1jtTFnB.

52 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 53
IHU em Revista
Cadernos IHU Ideias

Publicação em Destaque
Territórios da Paz: Territórios Produtivos?

A edição nº 207 dos Cadernos IHU Ideias pu-


blica Territórios da Paz: Territórios Produtivos?, de
Giuseppe Cocco, professor da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro – UFRJ. O autor propõe uma
série de reflexões sobre as Unidades de Polícia
Pacificadora – UPPs, que, conforme ele enfatiza,
estão em crise. A análise é estruturada em três
pontos principais: o processo de “pacificação”
das favelas no Rio de Janeiro; as “jazidas de cres-
cimento pró-pobres” entre capitalismo e milícias;
as políticas de mobilização nas favelas pacificadas.
Para isso, Cocco parte da segunda plenária popu-
lar organizada no Complexo do Alemão, realizada
no dia 17 de março de 2014, na qual foi lança-
do um manifesto para uma mobilização popular
em prol de uma verdadeira paz, disponível em
http://bit.ly/1kT7d0A.
Conforme Cocco, naquele local, assim como
em outros, a UPP “aparece como mera militariza-
ção, sem nenhum projeto social. Ao contrário, visa
mesmo aumentar a segregação espacial e social.
Ao mesmo tempo, a regulação dos pobres no res-
to da cidade é entregue a um hediondo regime de
terror. A única inovação é que agora, de vez em
quando, temos acesso às imagens do modo de
funcionamento do Estado assassino. O extermínio
dos pobres e dos negros não tem, infelizmente,
nada de excepcional, pois se trata de uma prática
normal. A exceção é composta por duas brechas: a
www.ihu.unisinos.br

democratização da mídia (como no mais último


caso revoltante, o de Claudia Silva Ferreira, uma
mãe de oito filhos assassinada e arrastada pelas
forças de um Estado que não tem mais legitimidade, a não ser sua dimensão mafiosa e miliciana) e a mobilização de-
mocrática que continua desde junho. No meio desses crimes hediondos do Estado, que todos os dias nos confirmam
tristemente, que Amarildo é o nome de uma das milhares de estações que compõem a via crucis da resistência popular
nas cidades brasileiras, o envolvimento de governo e congresso com projetos de lei para limitar o direito de manifesta-
ção soa como algo ainda mais vergonhoso. O manifesto começa dizendo: ‘Queremos ser felizes e andar tranquilamente
na favela em que nascemos’, construído de forma colaborativa e apresentado durante a segunda plenária popular
realizada no Complexo do Alemão”.
Esta e outras edições dos Cadernos IHU Ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone
55 (51) 3590-8213. A publicação também está disponível em pdf no link http://bit.ly/1xUdtKC. Já as demais edições dos
cadernos IHU Ideias podem ser acessadas em www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-ideias.

54 SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 | EDIÇÃO 446


Retrovisor

IHU em Revista
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II


Edição 297 – Ano IX – 15-06-2009
Disponível em http://bit.ly/ihuon297

Desde o Concílio do Vaticano II, realizado na década de 1960, a Igreja traçou


novas perspectivas, renovou-se, marcou sua entrada oficial na modernidade. A
construção desse novo paradigma contou com a participação de um dos teólogos
mais importantes do século XX, Karl Rahner. Por ocasião do centenário de nasci-
mento de Karl Rahner, em 2004, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o
Simpósio Internacional sobre Teologia Pública. Em 2009, quando se celebrou o 25º
ano do falecimento do teólogo alemão, a revista IHU On-Line dedicou uma edição
especial ao debate do legado da sua obra teológica.

Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação


Edição 435 – Ano XIII – 16-12-2013
Disponível em http://bit.ly/ihuon435

“Nada é profano para quem sabe ver.” Nas palavras de Michel de Certeau, a
mística é, ao mesmo tempo, estranha e essencial. Já Theodor Adorno, na esteira de
Gershom Scholem, propõe que a mística é uma secularização que representa um
avanço emancipatório. Dotada destas características, a mística volta a ser destaque
nesta edição da IHU On-Line, que reúne pesquisadores, professores e professoras
de diferentes áreas do conhecimento.

Deus e a humanidade: algo a ver? Karl Rahner 100 anos


Edição 102 – Ano IV – 24-05-2004
Disponível em http://bit.ly/ihuon102
www.ihu.unisinos.br
A edição foi elaborada sob o impacto do Simpósio Internacional O Lugar da Te-
ologia na Universidade do Século XXI, cujos debates coincidiram com o centenário
de nascimento do teólogo Karl Rahner – assunto ao qual se dedicaram as entrevis-
tas e artigos publicados no tema de capa da revista. A edição também recordou o
nascimento do teólogo Yves Congar. Rahner nasceu no dia 5 de março de 1904 em
Freiburg, Alemanha. Ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em
Filosofia em 1932, com a tese Espírito no mundo; foi aluno de Martin Heidegger e,
em 1936, doutorou-se em Teologia. Teve sua passagem em 1984, em Innsbruck, na
Áustria.

EDIÇÃO 446 | SÃO LEOPOLDO, 16 DE JUNHO DE 2014 55


Contracapa Observatório da Realidade e das
Políticas Públicas do Vale do Sinos
O ObservaSinos é um programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU que tem como propósito contribuir
com as comunidades dos municípios do Vale do Sinos para o conhecimento, análise e debate sobre a realidade
vivida e também aquela desejada pela população. Para tanto, reúne, sistematiza e publiciza informações destas
realidades a partir de indicadores socioeconômicos acessados em diferentes bases de dados públicas. Con-
tribui também na avaliação das políticas públicas implementadas e o seu impacto na realidade local e regional.
Assim, o ObservaSinos pauta-se pelo assessoramento e defesa na garantia de direitos e pela qualificação dos
processos de trabalho no campo das organizações, políticas e projetos sociais. Outras informações podem ser
obtidas no link http://bit.ly/obvSinos, pelo e-mail observasinos@unisinos.br ou pelo telefone 3591-1122, ramal
1139. Conheça algumas das ações:

O ObservaSinos tem entre seus objetivos a sis- terças-feiras, e estão disponíveis nas Notícias do
tematização e análise dos indicadores ambientais, Dia e na seção “De Olho no Vale” no sítio do Instituto
econômicos, sociais, políticos, culturais e religiosos Humanitas Unisinos – IHU. Como as demais ações
dos 14 municípios que integram a região do Vale do do programa, a proposta é que a população reúna
Rio dos Sinos, a partir de diferentes bases de dados conhecimento e ferramental analítico para avaliar os
públicas. Estes dados sistematizados e analisados dados e indicadores, intervindo na realidade a partir
são publicados na forma de relatórios semanais, às do aperfeiçoamento das politicas públicas.

Outro objetivo é o desenvolvimento de processos de dades religiosa e ambiental da região. As oficinas são
acompanhamento, formação e articulação com os di- abertas à comunidade e podem ser realizadas também
ferentes agentes para a implementação, monitoramen- a partir das demandas de cada população. A criação e
to, avaliação e controle social das práticas e políticas fortalecimento da Rede de Observatórios atende a este
públicas. Neste sentido, o ObservaSinos realizou duas conjunto de ações e tem como resultados concretos a
oficinas no primeiro semestre de 2014, voltadas à ca- a articulação com os observatórios sociais do Estado
pacitação para o acesso e análise dos indicadores de e a realização conjunta do IV Seminário Observatórios,
realidade, e tem prevista a organização de outras duas Metodologias e Impactos: território e politicas públicas
atividades no segundo semestre deste ano, direciona- entre 29 e 30 de setembro de 2014, no Auditório Central
das à capacitação para a análise dos dados das reali- da Unisinos.

O ObservaSinos tem suas ações voltadas para a nicípios e região, entre os quais a criação e atualização
publicização e promoção do debate sobre as reali- de jogos eletrônicos educativos sobre esta realidade
dades locais e regional do Vale do Sinos junto à so- e a construção de um totem digital para acesso aos
ciedade civil, aos conselhos de direitos e políticas, à jogos digitais e dados. A estratégia é mostrar a reali-
comunidade acadêmica e às gestões governamentais. dade a partir dos indicadores sociais, promovendo o
Assim, estão sendo desenvolvidas ações de criação debate e incentivando a intervenção da população nas
de aplicativos digitais e interativos com dados dos mu- políticas públicas.

twitter.com/_ihu bit.ly/ihuon

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