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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.

; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

As mil faces do inspetor

Rosane Kaminski (UFPR)

O curta-metragem O Inspetor (Arthur Omar, 1988) é um instrumento poético


com, no mínimo, dupla função referencial. Por meio de uma narrativa não-linear
e provocativa, ele apresenta o ambiente de trabalho de um detetive da polícia do
Rio de Janeiro e remete à violência urbana no Brasil dos anos 1980. Ao mesmo
tempo, volta-se criticamente à estrutura da linguagem cinematográfica e às
delimitações conceituais sobre seus gêneros. Quaisquer distinções entre
documentário, ficção e experimentação são problematizadas neste filme.

O Inspetor será avaliado, aqui, como desdobramento da obra fílmica que Arthur
Omar vinha construindo desde o início dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, como
uma forma de inserção do artista nas discussões estéticas e políticas do Brasil
em seu tempo de produção. Sabe-se que um filme, tal qual um livro ou uma
exposição, com suas invenções no âmbito da linguagem e deslocamentos de
sentido, pode nos ensinar a “notar melhor a vida” 1. Nesse sentido, o abalo das
percepções já assentadas parece ser um propósito consciente de Omar. Numa

1 WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: CosacNaify, 2012, p.63. O caráter de exemplaridade
das experiências estéticas diante da vida é assunto amplamente discutido pelo filósofo francês Jacques
Rancière, em obras como: A partilha do sensível; O inconsciente estético; e O Espectador Emancipado.

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entrevista em 2001, ele disse que “cinema é provocar reações fortes. Provocar
reações, e não exatamente emoções. Reações deslocam o espectador do lugar.
Emoções afundam”2.

O cinema de Omar, desde cedo, caracterizou-se pelo questionamento3. Por um


lado, o questionamento às formas assentadas e padronizadas da linguagem
fílmica, em especial a do documentário; por outro, aos assuntos que discute em
cada uma de suas obras. Nesse sentido, quanto ao conjunto de seus filmes, e
de um modo amplo, percebe-se que o cineasta maneja uma série de elementos
referentes às ideias de brasilidade, cultura brasileira, identidade, sempre de uma
forma pouco usual, ou seja, subvertendo estereótipos e sem traçar
considerações explicativas. Suas obras são construções caleidoscópicas que
misturam fragmentos “capturados” do cotidiano com elementos narrativos
ficcionais, trabalhados num tipo de montagem perturbadora, opaca e densa.

A atitude fílmica de Arthur Omar é coerente com a observação de Silvio Da-Rin


de que desde os anos 1970, ao menos, alguns autores “vêm identificando no
documentário uma tendência a adotar estratégias anti-ilusionistas, mostrando a
obra como produto, remetendo a uma instância produtora e desnudando seu
processo de produção”4, engajando-se num “metacomentário sobre os
mecanismos que dão forma” ao argumento desenvolvido num filme. Da-rin
destaca o caráter auto reflexivo desse tipo de filme, no sentido anteriormente
apontado por Bill Nichols quanto a um “modo reflexivo de representação”, que
“assimila os mais diversos recursos retóricos desenvolvidos ao longo da história
do documentário e produz uma inflexão deles sobre si mesmos, problematizando
suas limitações”5.

Vários estudiosos sobre o cinema brasileiro já destacaram características


provocativas nos filmes de Arthur Omar. No texto “A voz do outro”, publicado por

2 L.C.O. O provocador das palavras e das imagens. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30.07.2001, p.4
3 Em 1971, Arthur Omar realizou seus primeiros curtas-metragens em 35 mm, Serafim Ponte Grande e
Sumidades Carnavalescas. Em 1972, realizou o curta O Congo, e em 1974 o longa Triste trópico, filmes
que se destacaram pelo experimentalismo de linguagem. Nos anos seguintes, produziu: O anno de 1798
(1975), Tesouro da Juventude (1977), Vocês (1979), Música Barroca Mineira (1981), O Som ou tratado da
harmonia (1984). Nesse ano se aproximou do vídeo e produziu nessa bitola: Tony Cragg in/no Rio (1984)
e O nervo de prata (1987). Em 1988 produziu os curtas O Inspetor e Ressurreição, ambos em 35mm. Depois
disso, dedicou-se ao vídeo, à videoinstalação, fotografia, instalações sonoras, entre outros tipos de obras
multimidiáticas. É artista e cineasta atuante até hoje, e também escreve ensaios estéticos e poéticos.
4 DA-RIN, Sílvio. Auto-reflexividade no documentário. Cinemais nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p. 73.
5 Ibidem, p.74

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Jean-Claude Bernardet em 1979, ao apontar atitudes de ruptura no


documentário brasileiro a partir de filmes que o “perturbaram e modificaram” nos
anos 1970, o autor enfatizou o curta-metragem O Congo, feito por Arthur Omar
em 1972. Bernardet considerou o filme O Congo “paradoxal por não fornecer ao
espectador o que ele anuncia”6. Omar aborda um assunto recorrente no cinema
de curta-metragem, referente à cultura popular, mas sem apresentar nenhuma
imagem sobre a temática anunciada pelo título. “Filme de sonegação”, disse
Bernardet sobre isso, em comparação aos documentários que oferecem
abundantes imagens sobre os temas que representam. Ele também observou
que Arthur Omar problematiza a própria possibilidade de se fazer um filme sobre
aquilo que chamamos de cultura popular. O cineasta “nega radicalmente um tipo
de cinema sociologizante que pretende falar sobre o outro tomado como objeto,
que se recusa a reduzir o outro a ser falado” 7. Juntamente com outros
documentaristas comentados por Bernardet naquele texto, o filme de Omar se
destacaria por não tentar representar a realidade “achatada por uma
compreensão unívoca”8.

Num sentido parecido, Ismail Xavier, em 1985, ao estabelecer um retrospecto


sobre o cinema brasileiro produzido entre 1964 e 1984 e apontar uma visão de
conjunto sobre as tendências criativas daquele período de vinte anos, entre as
quais estaria o “metacinema”, afirmou que Omar, nos seus primeiros curtas,
“discute a própria possibilidade de o cinema falar sobre a experiência vivencial,
histórica”9. E João Luiz Vieira, uma década depois, ao falar dos caminhos
experimentais do curta-metragem brasileiro, também disse que com O Congo “o

6 BERNARDET, Jean-Claude. A voz do outro. In: AVELLAR, José Carlos; BERNARDET, Jean-Claude;
MONTEIRO, Ronald. Anos 70. Cinema. Rio de Janeiro, Europa, 1979, p.7.
7 Ibidem, p.10.
8 Jean-Claude Bernardet mencionou também outros autores que apontavam para a multiplicidade da

realidade ao longo dos anos 1970 por meio de seus filmes, ainda que com propostas bem distintas entre
si. Por exemplo: Antônio Manuel, Glauber Rocha, Juana dos Santos, Aluísio Raulino, João Batista de
Andrade e Vladimir de Carvalho. Além desse texto, há outros em que Bernardet fallou do caráter de
“pesquisa radical” nos documentários de Omar, como: BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens
do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985; e ainda “A pornochanchada contra a cultura ‘culta’”, publicado
originalmente em 1974 no jornal Opinião, sob pseudônimo, e atualmente disponível em: Cinema Brasileiro:
propostas para uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.210-215.
9 XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O desafio do cinema: a

política do Estado e a política dos autores. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.34. Ao falar de um “metacinema”,
Xavier referiu-se ao trabalho experimental e consciente de alguns cineastas sobre as “experiências já
empilhadas”, tornando mais explícito o diálogo com o repertório cinematográfico, e “discutindo o cinema
dentro do cinema”. Mencionou filmes de Júlio Bressane, Glauber Rocha, Arthur Omar e Rogério Sganzerla,
entre outros.

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realizador já interrogava, com muita clareza, a (im)possibilidade do cinema


registrar, sem distorção, qualquer experiência cultural estranha ao realizador” 10.

Já Sílvio Da-rin, em 199711, afirmou que o trabalho de Omar “não é facilmente


classificável”, e que “desde os seus primeiros filmes, no início dos anos 1970,
Omar optara por um complexo trabalho no âmbito da linguagem, provocando
imediato espanto entre os documentaristas”, que atuavam num ambiente
formalmente pouco inovador. Sua proposta seria a de produzir objetos estéticos
que se opusessem aos esquemas tradicionais.

Tais considerações feitas sobre O Congo e demais documentários produzidos


nos anos 1970 podem ser estendidas a vários outros filmes de Omar: ele enfatiza
a multiplicidade dos aspectos da realidade, que não são excludentes, mas que
articulam-se entre si de forma complexa e sem obviedade. Nesse
questionamento constante das formas de fazer cinema e de se relacionar com a
realidade brasileira, atitude do cineasta que persistiu ao longo dos anos 1980,
reside o meu interesse sobre os seus filmes.

Quanto à relação de Arthur Omar com o cinema documentário durante os anos


de 1970-80, a pesquisadora Guiomar Ramos observou algumas variações de
posicionamento do cineasta, uma vez que ele parte da problematização sobre a
linguagem do documentário para construir o seu próprio cinema. Ramos apontou
três diferentes momentos nessa relação, que vão desde uma postura negativa
de Omar em relação ao modelo de documentário padrão, passando por uma fase
de “ausência de tema”, quando o cineasta aprofundou as relações entre sons e
imagens de forma mais abstrata, desembocando num estágio de “compreensão
bem maior”, em que se nota a “produção de sentido numa relação positiva com
o tema proposto”12. Noutro momento, a pesquisadora esboçou uma definição

10 VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Cinemais, Rio de Janeiro, n.30, jul-ago 2001. “Este ensaio foi
originalmente publicado no catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema, realizada no Rio de Janeiro, Centro
Cultural Banco do Brasil, e Niterói, Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de 1994. Escrito nesse ano,
propunha uma prática comum na crítica brasileira ao desenvolver um panorama e um balanço da produção
de curtas-metragens na década de 80, mapeando os diversos caminhos tomados pelo cinema reflexivo ‘de
citação’, marca incontestável de uma época e de uma geração de jovens realizadores”. Texto completo
disponível em: http://www.vivacine.org.br/site/textos/ver/?id=8
11 DA-RIN, Sílvio. Op.cit., p.75-76.
12 RAMOS, Guiomar. O espaço fílmico sonoro em Arthur Omar. Dissertação de Mestrado. SP: USP, 1995,

p.23-24. A autora identifica um primeiro momento de “negação do documentário padrão” (filmes de 1972
até 1975), em que a estrutura do documentário padrão está presente, mas de forma desconexa, nonsense
e constantemente ironizada; seguida de um segundo momento de composição fílmica mais abstrata, sem
referência a um tema, e nos quais não se observa mais o confronto com a estrutura do cinema documental

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para “documentário experimental” 13 e, para construir sua argumentação, deu


destaque à atuação experimental de Arthur Omar tanto em seus filmes quanto
na publicação, em 1978, de um ensaio sobre “o antidocumentário”. Neste texto,
quase um manifesto, redigido a partir da experiência de realização de O Congo,
Omar criticava o documentário tradicional e sua “função-espetáculo” para
chamar a atenção sobre a “função do cinema dentro do real” 14.

Mais recentemente, Mariana Pimentel buscou situar duas fases na obra


imagética de Omar: a primeira seria constituída pelos filmes da década de 1970
e também pelos O Som ou tratado da harmonia (1984) O Inspetor e Ressurreição
(ambos de 1988); a segunda englobaria a produção videográfica (iniciada nos
anos 1980, como discutiremos mais adiante) e fotográfica 15. Dentro da primeira
fase, Pimentel distinguiu os antidocumentários ou “filmes-denúncia”, como ela se
referiu aos filmes de 1970 já estudados por Guiomar Ramos e denomidados por
Omar como “antidocumentários”, dos “filme-experiência”, que seriam, na sua
opinião, O Som, O Inspetor e Ressurreição: “Produzidos nos anos 80, tais filmes
aparecem como herdeiros daquela desarticulação, daquela primeira crítica ao
documentário tradicional, crítica através da qual ele já constrói uma nova
linguagem no âmbito destes três últimos filmes da primeira fase” 16.

(filmes de 1977 a 1979). As experiências de desconstrução dos documentários no primeiro momento e o


aprofundamento das relações entre sons e imagens nos filmes que se seguiram, conduzem, de acordo com
Ramos, a um terceiro momento da obra de Omar, marcado pela busca de produção de sentido numa
relação positiva com o tema proposto (filmes de 1981 e 1984). Nota-se, nesse momento, uma presença
“modificada” do documentário. Guiomar Ramos realiza uma análise detalhada dos filmes que compõem
esses três momentos da produção fílmica de Arthur Omar, que pode ser lida nas páginas 29 a 53 de sua
dissertação de mestrado. Também publicou uma boa síntese desse assunto em: RAMOS, Guiomar. O
documentário como fonte para o experimental no cinema de Arthur Omar. In: TEIXEIRA, Francisco E. (org.).
Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004.
13 RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? In: MACHADO, R. Jr.; SOARES,. R. de L.; ARAÚJO,

L. C. (orgs.) Estudos de Cinema SOCINE VII. São Paulo: Annablume, Socine, 2006, p.265-271. A autora
discute “o momento em que o formato experimental se interliga ao formato documentário” e o exemplifica a
partir de quatro filmes feitos na década de 1970, entre os quais está O Congo.
14 OMAR, Arthur. O antidocumentário, provisoriamente. Cinemais, nº7, Rio de Janeiro: set/out. 1997, p. 202.

Obs: Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978 na Revista Vozes nº 72, p.405 a 418.
15 PIMENTEL, M. Arthur Omar: corpo, tempo e experiência. Dissertação de Mestrado em História Social da

Cultura. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004, p.11.


16 Ibidem, p.14. A autora argumenta que a diferença de uma fase para outra implica “na maneira pela qual

o cineasta vai articular a problemática do falso em seus filmes, problemática ontológica decerto, que vai
influir diretamente na forma como o tempo vai ser trabalhado em seus filmes. Se num primeiro momento o
falso será articulado a partir de um embate entre ficção e realidade, fazendo com que esses dois planos
apareçam sempre embaralhados e indiscerníveis, onde o mesmo é pensado em oposição à identidade
como não identidade - temporalidade crônica -, num segundo momento esta dicotomia se desfaz em favor
de uma terceira instância, a fabulação, de modo que o falso desponta como potência criadora - imagem-
tempo”. Ibidem, p.18.

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No entanto, apesar desta divisão em fases feita por Pimentel, considero que ao
produzir o filme O Inspetor a relação de Arthur Omar com o documentário
estabelecia-se ainda naquela dinâmica positiva observada por Guiomar, dentro
da qual o tema pôde ser desenvolvido, mesmo que observemos um confronto
entre os elementos fílmicos representativos do universo temático, dispostos em
múltiplas ramificações de significados possíveis através de uma narrativa
estranha e de uma montagem perturbadora. Ao mesmo tempo, pode-se dizer –
se aceitarmos as fases propostas por Pimentel – que este filme, juntamente com
o Ressurreição, marcou um momento de transição e de desdobramento na
trajetória autoral de Omar, indo do cinema para outros suportes, embora sem
abandonar sua postura questionadora quanto ao caráter paradoxal de
incompletude e de complexidade sígnica do audiovisual.

Algumas facetas do curta O Inspetor

O curta-metragem O Inspetor foi produzido por Arthur Omar em 1987 e exibido


a partir de 198817. Tem como centro a figura do detetive carioca Jamil Warwar
que é, ao mesmo tempo, o assunto do filme, o depoente que fala diante da
câmera como num documentário, e o ator que representa a si mesmo.

Quanto ao filme como um todo, destaca-se a mescla de elementos da linguagem


do documentário padrão (a voz do narrador que é o próprio Omar; as falas do
detetive Warwar sobre o seu universo de trabalho; excertos de um depoimento
do suposto irmão de uma vítima de assassinato; fotografias documentais; cenas
em que a câmera acompanha uma batida policial na periferia do Rio de Janeiro;
trechos de entrevistas com travestis) com elementos da linguagem ficcional
(imagens de fotonovela, aparência de encenação de algumas cenas em que o
Warwar representa a si mesmo em momentos de investigação) e experimental

17 No banco de dados da Cinemateca Brasileira, aparecem as seguintes informações sobre o filme: O


Inspetor, 1987. 11 minutos, 35 mm. Argumento, roteiro, narração, trilha musical, som direto: Arthur Omar.
Elenco: Jamil Warwar. Direção de Fotografia: Walter Carvalho. Assistência de fotografia: Carlos Azambuja.
Montagem: Aída Marques. Efeitos Sonoros: Geraldo José. Produtora: Melopeia/Cortex. Co-produtora:
Embrafilme. No entanto, como a exibição do filme começou a ocorrer em 1988, e como o material de
divulgação sobre o filme que acessei até este momento atribui essa data à produção do filme, assumo-a
aqui.

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(montagem fragmentária de elementos visuais e sonoros que geram


estranhamento).

A referência à linguagem da mídia e à violência urbana evoca aspectos estéticos


do cinema marginal do final da década de 1960. Essa conexão pode ser
pensada, inicialmente, a partir da montagem fragmentária e das remissões à
mídia, mas também pela questão identitária vinculada à relação “polícia e
bandido”: o Bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla, por
exemplo, perguntava-se desde a abertura do filme “quem sou eu?” e espelhava-
se no que a mídia dizia sobre ele, colecionando recortes de jornal numa valise
cujo interior continha a inscrição “eu”18. No filme de Omar, o assunto não é a
identidade do bandido, e sim a do detetive, que coleciona matérias sobre os
crimes que solucionou e demonstra prazer em falar sobre suas técnicas de
trabalho.

Entretanto, a questão problematizada do início ao final do filme é a


impossibilidade de se fixar uma imagem identitária “real” para o detetive, que
trabalha mergulhado em disfarces. Quanto a essas conexões, já na ocasião de
lançamento do filme, o crítico Ahmed disse que “talvez O Inspetor seja um
documentário de ficção. Como a história”, que consiste na “outra face da moeda
de O Bandido da Luz Vermelha, a obra prima de Rogério Sganzerla”19. Já para
Mariana Pimentel, neste filme Omar explora “o problema da identidade versus o
disfarce”. Para esta autora, “o disfarce é a chave para compreendermos esse
filme, pois, em si mesmo, ele também é um disfarce: seria ele um documentário
disfarçado de ficção ou uma ficção disfarçada de documentário?”20. De qualquer
modo, o curta escancara a impossibilidade mesma de se cercar quaisquer
identidades, seja a do bandido, seja a do policial, seja a do cinema, seja a da
nação, e isso é problematizado do início ao final do filme, conforme será aqui
discutido.

Realizado em película de 35 mm, O Inspetor possui 11 minutos de duração e é


composto de cerca de 150 planos, organizados numa montagem rápida e sem
compor uma narrativa linear. Pode ser dividido em quatro momentos: 1) uma

18 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.124-184.
19 AHMED, Flávio Villela. Dois curtas de Omar. Cine Imaginário nº 35, outubro de 1988, p.7.
20 PIMENTEL, Mariana. Op.cit., p.29.

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apresentação inicial sobre o “universo temático” do filme, com duração


aproximada de dois minutos; 2) a apresentação que o detetive Jamil Warwar faz
de si mesmo e de suas técnicas de trabalho, alternada com trechos de
depoimentos, cenas aparentemente documentais de uma batida policial na
favela e algumas inserções verbais do narrador, tudo em cerca de seis minutos;
3) a atuação de Warwar como ator de fotonovelas da Editora Bloch e as relações
entre o trabalho do policial e o trabalho do artista, em que se problematiza “a
relação com a verdade” na construção de sentidos, em cerca de dois minutos; e
4) a conclusão, no último minuto de filme, com ar de carnavalização, numa
montagem caleidoscópica com cenas de travestis, o detetive Warwar disfarçado
de empresário, armas do exército, imagem de fotonovela, ao som de música
orquestral, de efeitos sonoros do tipo “filme de ação” e um grito apavorado como
arremate antes da palavra “fim”. As quatro partes não são estanques, visto que
a montagem não é linear, e vários elementos anunciados numa parte são melhor
evidenciados em outra. Em todo o filme, há pontuações feitas pela voz masculina
de um narrador (Omar), de caráter mais reflexivo do que informativo.

Primeiras cenas de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).

Na primeira cena, após a exibição do Certificado de reserva de mercado 21, som


e imagem entram juntos, de supetão. O som instrumental é parecido com o de
“filmes de ação”. No plano inicial, de dois segundos, se vê o rosto de um homem
negro que aponta uma arma para a câmera. A arma está mais nítida e é

21 Certificado de Reserva de Mercado No. CRM/052-01-35mm/137/87, de 19 de agosto de 1988. Refere-


se à “Lei do Curta” ou seja, a Lei 6.281 de 9/12/1975, que foi sendo complementada por várias resoluções
até 1984, e garantia uma reserva de mercado ao curta-metragem.

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agressiva, enquanto o rosto do homem, em segundo plano, fica levemente


desfocado. Logo em seguida, apresenta-se o letreiro em vermelho sobre fundo
preto, com o título do filme, rapidamente substituída pela imagem de um fusca
da polícia civil em movimento na rua. O narrador declama: “Qualquer filme sobre
ele era uma maneira de falsear sua identidade”. Essa voz já alerta para o meio
discursivo (o filme que estamos vendo) e a impossibilidade de qualquer filme ser
um equivalente ao assunto sobre o qual discursa. Neste caso, a “verdadeira face”
do inspetor. A seguir, juntamente com o som brusco de uma freada, aparece a
legenda: “com Jamil Warwar”, indicando que ele é a estrela do filme 22.

Desde o instante inicial, o som de filme de ação pontua o ritmo da montagem,


som que se estenderá por um minuto e meio, mesclado a outros elementos
sonoros: voz do narrador, gritos, sons de automóveis, um rádio em que se busca
sintonizar alguma transmissão, e a expressão radiofônica “Brasil-il-il”, entonada
da forma como os locutores de futebol exclamavam no momento em que a
seleção brasileira marcava um gol. A montagem rápida de vários planos em
pormenor mostra uma sucessão de desvendamentos de esconderijos utilizados
no tráfico de drogas: papeletas de maconha e de cocaína dentro de objetos tão
inusitados quanto uma bisnaga de creme dental ou um radinho de pilhas. Após
enunciar algumas frases de efeito, o narrador diz, enigmaticamente: “O
teatrólogo alemão Bertold Brecht teve muitos discípulos no Brasil. O Inspetor foi
talvez o mais original deles”. A partir daí, iniciará a segunda parte do filme, em
que o detetive Jamil Warwar aparecerá pessoalmente em seu ambiente de
trabalho.

22 Vale a pena lembrar que, apesar da impressão de nome artístico, e até de um aparente trocadilho com
a repetição da palavra “war”, esse era o nome utilizado pelo policial já nos anos 1970, quando atuava na
polícia do Rio de Janeiro, como pode ser observado em reportagens referentes às investigações das quais
ele participou. Ver, por exemplo: “Uma história sem mistérios, 24 horas depois da descoberta do corpo”. O
Globo: Matutina. Rio de Janeiro, 4 set. 1977, p.20; e “Morte de Cláudia: polícia apressa inquérito”. O Globo:
Matutina. Rio de Janeiro, 6 set. 1977, p.15.

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Desvelamento de esconderijos para tráfico de drogas. O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Todos os elementos que foram descritos até aqui apontam para a temática do
filme: violência, tráfico, Brasil, universo da ação policial, e o próprio detetive Jamil
Warwar. Mas também para o universo do filme em si e da encenação: um
universo de “falseamento de identidade”, que condiz com o perfil do detetive,
conhecido por usar disfarces.

O tema primário, pode-se dizer, é a atuação do detetive Jamil Warwar na polícia


do Rio de Janeiro, no combate ao tráfico e desvendamento de casos de
homicídios. Mas envolve outras questões, como a relação entre real e ficção
tanto na atuação do detetive (que também foi ator de fotonovelas, como
anunciado na terceira parte do filme), quanto na edificação de um documentário
experimental. O primeiro ponto que remete a essa questão, é a presença de
Jamil Warwar “representando a si mesmo”. Não se trata de apresentar
fragmentos de entrevistas feitos pelo diretor com o detetive, como se esperaria
de um documentário convencional. Mas de vê-lo travestindo-se diante da
câmera, ou encenando a própria ação de refletir sobre os indícios que tinha ao
seu alcance num determinado caso a solucionar ou, ainda, lendo um trecho do
livro escrito por ele mesmo, para remeter à violência policial e a “opinião pública
iludida”. Um segundo ponto, é a insistência em estabelecer comparações entre
o trabalho do inspetor e o trabalho de um artista. Isso é feito pela voz do narrador,
naquela remissão aos seguidores de Brecht, e pela voz off de Warwar, quando
ele mesmo diz que “O policial tem que ter um pouco de artista nas suas

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encenações para poder penetrar no mundo do crime sem levantar suspeita” 23. E
um terceiro ponto referente a essa questão, é a forma de insinuar a condição
inapreensível da verdade, bem como a impossibilidade de imprimir uma única
face para o Inspetor. A ambiguidade na construção de sentidos, o caráter fugidio
das noções de verdade e autenticidade, as múltiplas tinturas entre o bem e o
mal, a opinião pública iludida, são ideias que pontuam o filme desde a primeira
frase até o final do curta-metragem.

Primeira aparição de Jamil Warwar no filme O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Quando Warwar aparece em imagem pela primeira vez, está ao lado de uma
viatura policial com a sirene ligada, vestindo uma jaqueta. Ele despreza a
presença da câmera, enquanto o narrador afirma: “O inspetor tinha mil faces mas
nenhuma delas se imprimia no espelho”. Nova cena, e Warwar está fantasiado
de padre, numa praça, dando milho aos pombos. Agora é sua voz que ouvimos,
falando em primeira pessoa: “Desde garoto eu sempre tive o ideal de ser policial”.
Mas será de frente para a câmera que ele se apresentará objetivamente, na
sequência seguinte: “Meu nome é Jamil Warwar. Estou na polícia desde 1963”.
O ambiente é um suposto “salão de processos” extremamente precário, com

23 Sobre isso, sugiro a leitura do artigo: GUÉRON, Rodrigo. “O Inspetor” de Arthur Omar: fabulação e gestus.
Estudos da Língua(gem). Vitória da Conquista v. 12, n. 1 p. 157-173 junho de 2014. Guéron diz que “Jamil
se tornou um personagem midiático: um personagem criador de personagens que virou, exatamente por
isso, um personagem também” (p.158). Diz ainda: “De fato, um detetive de polícia é já um “papel” que se
assume: um personagem. Warwar, como sabemos, é um detetive criador de personagens – os disfarces –
, e que pelas suas performances como policial se torna ele mesmo um personagem midiático frequente nas
manchetes de jornais a ponto, inclusive, de ser convidado a participar como ator em fotonovelas onde ele
protagoniza um personagem de um policial: o “inspetor” propriamente dito. São as múltiplas fabulações de
Warwar que jogam o próprio Omar em suas múltiplas fabulações”. (p.167).

251
KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

letreiro escrito à mão, o que insinua as condições toscas de trabalho da Polícia


num país de tantos contrastes.

Jamil Warwar no filme O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Para se identificar, ele menciona o caso de assassinato de Cláudia Lessin


Rodrigues: “Já trabalhei em muitos casos de repercussão, entre os quais o crime
de Cláudia Rodrigues, que apurei em três dias”. De fato, Warwar ficou famoso
pela sua participação no desvendamento desse crime ocorrido em julho de 1977,
quando descobriu o nome do principal suspeito de assassinato a partir da placa
de um automóvel que fora visto no local de despejo do corpo da vítima, nas
pedras ao lado da Avenida Niemeyer no Rio de Janeiro24. No entanto, ao indicar
como suspeito do crime o nome de Michel Frank, filho de um industrial milionário
e envolvido com o tráfico de cocaína, Warwar foi afastado e removido para o
interior do Rio de Janeiro. Esse caso, amplamente difundido pela mídia, nunca
foi completamente esclarecido, pois Michel Frank fugiu para a Suíça poucos dias
após a morte de Cláudia. Os depoimentos dos demais envolvidos eram confusos
e vários deles “desapareceram”. Dez anos depois, em 1987, o jornal carioca O
Globo anunciava que os acusados ainda não haviam sido julgados, estavam

24 Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, foi morta em 24 de julho de 1977. Seu corpo foi encontrado dois dias
depois, nas pedras do Chapéu dos Pescadores, na Avenida Niemeyer. Ela estava nua e tinha um saco
cheio de pedras amarrado ao pescoço. Pela indicação de uma placa de carro, a polícia chegou aos nomes
de dois suspeitos que estavam com ela em uma festa na noite de seu desaparecimento: George Khour e
Michel Frank. Este fugiu para a Suíça e nunca foi julgado. O caso teve ampla repercussão na mídia, e o
inquérito se estendeu por vários anos. O afastamento “suspeito” de Jamil Warwar do caso é mencionado
no Programa do Globo Repórter que foi ao ar em 25 de julho de 1988, disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/claudia-lessin-morte/claudia-lessin-
morte-a-historia.htm

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

livres25. Nesse mesmo ano Arthur Omar iniciou a produção do seu filme O
Inspetor, com o qual trouxe novamente à tona a participação de Warwar no
desvendamento do crime, inicialmente pela própria verbalização do investigador,
mas também através de outros elementos.

Imagens que remetem ao “Caso Cláudia”. O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

Uma das cenas que remete ao caso do assassinato de Cláudia é aquela em que
vemos Warwar andando de um lado para o outro diante de uma espécie de
fachada de uma loja, sobre a qual vê-se um enorme letreiro em vermelho com o
nome “Claudia”. Ele mostra-se pensativo, com a mão no queixo, como se
estivesse concentrado tentando resolver um enigma. Representa a si mesmo em
plena atividade mental. Tais imagens são alternadas com fotografias
documentais em preto e branco, que mostram um homem abrindo, com as
próprias mãos, a boca de uma mulher deitada, como se fosse segurar a sua
língua. Isso se relaciona com o depoimento de Michel Frank em 1977, quando
afirmou que Cláudia havia sofrido uma overdose e que ele próprio tentara salvá-
la puxando sua língua, pois “estava enrolada, a ponta voltada para dentro,
tapando-lhe a garganta”26. Logo em seguida, no filme, aparece uma legenda
mencionando a remoção de Warwar para o interior do estado por ordem do
governador do Rio de Janeiro, sugerindo uma articulação de interesses entre o
tráfico de cocaína e o poder político. A legenda vai aparecendo como se fosse
um telegrama sendo datilografado: “Inspetor soluciona caso Cláudia. Verdade

25 Após dez anos, acusados ainda não foram julgados. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro, 12 de julho de
1987, p. 27. Ver também: Estão livres acusados da morte de Cláudia. O Globo. Matutina. Rio de Janeiro,
31 de julho de 1987, p. 26.
26 Depoimento publicado em: O mistério vai acabar? Revista Veja, São Paulo, 7.09.1977, p.31.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

prejudicará nossos amigos. Afastem o Inspetor do caso. Transfiram-no para o


interior.”

Aí se dá a passagem para um terceiro momento do filme, em que Warwar conta


sobre sua experiência como ator de fotonovelas brasileiras, e vemos páginas
dessas revistas publicadas pela Editora Bloch nos anos 1970, como é o caso da
“Sétimo céu”27. Nesse trecho, se ouve a voz do inspetor comentando a sua
atuação simultânea como ator e como investigador, enfatizando as inter-relações
entre tais atividades. Enquanto ele fala, são exibidas páginas de fotonovelas com
Warwar encarnando um personagem que também é investigador. Essa parte me
parece ser um dos pontos centrais do curta-metragem, pois problematiza as
ações de “documentar” e “ficcionalizar”. Arthur Omar documenta a atuação do
detetive nesses dois âmbitos profissionais, aponta para os limites tênues entre
eles, e aproxima o personagem de si mesmo, enquanto artista, na sua tarefa
constante de investigar assuntos para suas obras28. Para Guéron, “o
personagem é um notável falsário, um extraordinário fabulador, que transita num
mundo que se constitui de cruzamentos de inventividades e ficções múltiplas,
mesmo que algumas delas ganhem tintas (por vezes caricatas) dos regimes de
verdades mais efetivos de nossa ‘civilização’”29. Warwar traz consigo,
imiscuídos, signos herdados de filmes de ficção e de séries televisivas sobre
policiais, com o discurso sobre o desvendamento da “verdade” por meio da
investigação policial, misturado ao discurso falacioso de “apresentação da
realidade” nos jornais televisivos. Em certa ocasião, ao falar do filme, Omar

27 Um exemplo de fotonovela com a participação de Warwar é “Destino Fatal”, In: Sétimo Céu nº 264, Editora
bloch, 1978. De acordo com Raquel de Barros Pinto Miguel, a “grande maioria das fotonovelas publicadas
nas revistas brasileiras era italiana ou francesa. A produção de uma fotonovela era bastante onerosa, por
este motivo as editoras brasileiras preferiam importá-las a produzi-las. Apenas a editora Bloch produzia
com regularidade suas próprias fotonovelas. Para tornar tal empreendimento economicamente viável, a
revista contava com a participação de ídolos da televisão em suas histórias, assim como utilizava hotéis e
restaurantes como cenário, fazendo merchandising, mesmo que discreto, destes”. In: MIGUEL, Raquel de
B. P. Fotonovelas e leitoras: um romance. AlcarSul 2014: Anais do 5º Encontro Regional sul de História da
Mídia. Florianópolis, UFSC, 2014.
28 Essa aproximação entre o inspetor e o cineasta é sugerida por Marcelo Leitão, que diz: “Ele próprio,

Arthur Omar, assim como o inspetor, utiliza disfarces (melhor: fantasias) menos para frequentar locais
indevassáveis do que para apurar os crimes cometidos entre fotógrafos, cineastas, videastas...” LEITÃO,
Marcelo Magalhães. Modulações em fuga: movimentos acerca de Arthur Omar. Dissertação em Letras,
PUC-RIO, 2003, p.22.
29 GUÉRON, Rodrigo. Op.cit., p.159.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

chegou a afirmar que “a história de Warwar é uma metáfora do artista como herói
popular”30.

Jamil Warwar como ator de fotonovelas. Imagens de O Inspetor (Arthur Omar, 1988)

No último minuto de filme, à guisa de conclusão, os assuntos e elementos


semânticos se misturam: a câmera revela o corpo de uma travesti na rua, à noite,
com os seios à mostra. Vemos Warwar conversando com ela, mas na faixa
sonora ouvimo-lo dizer que: “Fui designado para apurar o travesti que foi
assassinado em Mesquita. Então, fazendo-me passar como empresário de show
de travesti, consegui contactar com vários travestis que batalhavam em Mesquita
e me deram o serviço – coisa que eu não conseguiria se me identificasse como
policial”. A travesti declara (a quem? Ao detetive? Ou a nós, espectadores?): “Eu
quero estar sempre autêntica como eu sou”, enquanto a câmera mostra corpos
de travestis dançando ao som de um hino militar. Qual autenticidade Omar quer
discutir por meio dessa inserção? Aqui vale lembrar que, num momento anterior
do filme, já havíamos assistido ao próprio Warwar se travestir, enquanto ele
explicava os métodos de disfarce que costumava usar em suas investigações.

Em seguida, são apresentadas imagens de armas de fogo em vários


enquadramentos rápidos, entre eles um close num revólver com o Selo Nacional
e a legenda “Exército Brasileiro”. A montagem sonora é complexa: a execução
instrumental de um hino, sons de tiros, efeitos de filmes de ação. Ao final, ouve-

30KLEIN, Cristian. Trópicos no MOMA. Jornal do Brasil, 17/9/1999. Nessa matéria, afirma-se que Warwar
desvendou mais de 2 mil homicídios ao longo de sua carreira.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

se a exclamação “Até breve, inspetor!”, seguida de um grito, enquanto a câmera


se aproxima de um quadro numa fotonovela, em que Warwar beija a mocinha.

Arma do exército. Cenas finais de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).

Após essa breve descrição do caráter geral do filme e de suas partes, pretendo
ainda situá-lo em relação ao seu contexto de produção, ou seja, os anos 1980
no Brasil. Para tanto, ao estabelecer um percurso de reflexão, nas próximas
páginas serão destacados dois aspectos referentes àquela década: 1) O cenário
cinematográfico nacional, em especial no que tange à produção de curtas-
metragens; 2) As questões referentes à ampliação da violência, um dos mais
candentes problemas urbanos do período, que se articulava ao momento de
crise e à projeção de uma imagem negativa do Brasil.

O lugar do curta-metragem brasileiro nos anos 1980

Quanto ao primeiro aspecto, é evidente que o filme O Inspetor não se trata de


caso isolado, nem na obra de Omar, nem no campo cinematográfico brasileiro.
Na virada dos anos 1980 para os 90, num momento crítico para a produção de
cinema de longa-metragem no Brasil – uma crise que se articulava aos
problemas econômicos do país e à desmobilização do projeto cultural do

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

Estado31 –, muito se estimulou a produção e a valorização de curtas-metragens,


com a ampliação do número de mostras e festivais dedicados a esse formato.
Segundo Francisco Cesar Filho e Rafael Sampaio, curadores da mostra Anos
80: cinema e vídeo, realizada pelo CCBB em 2010, a década de 1980 assistiu a
uma “explosão de prestígio do cinema de curta duração” 32. Até então, o curta
brasileiro não havia tido grande repercussão. No entanto, com a sua presença
constante na mídia, com os elogios em festivais e mesmo com sua circulação
nas salas comerciais graças à “Lei do Curta” (Lei 6.281 de 9/12/1975), observar-
se-ia uma “exuberante produção”, revelando nomes como Jorge Furtado, Tata
Amaral, Betto Brandt, Anna Muylaert e Cao Hamburger, entre outros 33.

Apesar de nenhum filme de Omar constar na programação dessa mostra Anos


80: cinema e vídeo, no final daquela década destacou-se a participação dos seus
filmes em eventos nacionais e internacionais. O Inspetor foi bastante premiado,
e convidado para participar do New York Film Festival de setembro de 1989
como o único representante da América Latina, entre longas e curtas 34. Em 1993,
O Inspetor teve lugar especial no IV Festival Internacional de Curtas Metragens
promovido pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo, com curadoria de
João Luiz Vieira e Amir Labaki35. Já desde alguns anos antes desse festival no
MIS de São Paulo, João Luiz Vieira vinha assumindo papel importante na
construção da visibilidade internacional dos filmes de Omar, intermediando,
enquanto diretor da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, a participação do

31 Segundo Tonico Amâncio, “Durante os anos 1980 a Embrafilme enfrentou a crise econômica e a
reorganização e redemocratização da sociedade civil (com a Anistia e as Diretas-Já) reduzindo o número
de filmes produzidos”, além disso “O aumento galopante da inflação fez com que os orçamentos se
tornassem problemáticos, exigindo reajustes constantes.” AMÂNCIO, Tonico. Pacto cinema-Estado: os
anos Embrafilme. Alceu, v.8, nº15, jul./dez. 2007, p.180.
32 CESAR FILHO, Francisco e SAMPAIO, Rafael. Anos 80: cinema e vídeo. Catálogo. Centro Cultural Banco

do Brasil. São Paulo, 19 de fevereiro a 7 de março de 2010, p.5.


33 Ibidem. Na mostra Anos 80: cinema e vídeo não foram incluídos filmes de Omar. No entanto, foram

exibidos diversos curtas em 35 mm que são contemporâneos ao O Inspetor, entre os quais: Queremos as
ondas do ar! (Tata Amaral e Francisco Cesar Filho, 1987, 11 min); História familiar (Tata Amaral, 1988, 11
min); Rock paulista (Anna Muylaert, 1988, 11 min); Caramujo-flor (Joel Pizzini, 1988, 21 min); A mulher do
atirador de facas (Nilson Villas Bôas, 1988, 11 min); Ilha das flores (Jorge Furtado, 1989, 12 min); e Pós-
modernidade (Mirella Martinelli, 15 min).
34 O Inspetor foi contemplado com os seguintes prêmios: Melhor montagem no Festival de Brasília em 1988;

Prêmio Leon Hirzman, da Fidalc, no FestRio, 1988; Prêmio Joaquim Pedro de Andrade do Governo do
Estado do Rio de Janeiro de Melhor Curta de 1988; Troféu Muiraquitã de Melhor Curta Metragem de 1988.
35 CARVALHOSA, Zita. Sem título. In: IV São Paulo Internacional Short Film Festival. Museu da Imagem e

do Som, São Paulo. 19 a 29 de agosto de 1993. Catálogo do festival.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

cineasta numa mostra em Toronto e outra no Museu de Arte Moderna (MoMA)


de Nova York36.

Em 1994, num texto escrito para o catálogo da Quarta Mostra Curta Cinema,
realizada no Rio de Janeiro e em Niterói, Vieira comentou essa visibilidade que
o curta-metragem experimental conquistara ao longo dos anos 1980, em meio à
crise do cinema brasileiro que, segundo ele, vinha se delineando “quando os
governos Figueiredo e Sarney iniciaram a retirada gradual do apoio do Estado à
cultura, radicalizada, no caso do cinema, a partir da omissão federal frente ao
vazio criado com a falência do modelo Embrafilme”37, apesar da criação de um
Ministério da Cultura em 1985 e da Lei Sarney em 1986 38.

Além disso, nos anos 1980 também foi constatado um afastamento do público
das salas de cinema (geralmente atribuído à concorrência da televisão e à crise
econômica). Uma matéria da revista Filme Cultura em 1986 comentava a
“redução de 67% do público nos últimos 10 anos”, provocando o fechamento de
1.848 salas de cinema no Brasil. “Entre 1975 e 1985 as salas de cinema
perderam 184 milhões de espectadores” 39. A mesma matéria anunciava a
iminente construção de salas de cinema menores, em shoppings centers, uma

36 “Levado pelo curador do Brasil no Congresso, o diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do
Rio, João Luiz Vieira, a mostra com onze curtas, quatro vídeos e um longa-metragem do cineasta [Arthur
Omar] foi a única que, divulgada pela imprensa e pelo ‘boca a boca’ local, mereceu um bis da
selecionadíssima plateia, que incluía desde o cineasta Stan Drakhage ao crítico do The New York Times,
Noel Carol.” REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989. Ver também:
VIEIRA, João Luiz. Toronto/Nova York. Letras & Artes, Rio de Janeiro, ano IV, no 10, setembro de 1990,
p. 9; e MOCARZEL, Evaldo. Omar, um artista de múltiplas artes. Folha da tarde, 21.12.1989. Dez anos
depois, em 1999, Arthur Omar realizaria uma retrospectiva completa de seus trabalhos em cinema e vídeo
no MoMA, “tendo sido o primeiro latino-americano a receber esse convite”. COCCHIARALE, Fernando.
Sobre filmes de artista. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007.
Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com
a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 72.
37 VIEIRA, João Luiz. A reflexividade na tela. Op.cit. A Quarta Mostra Curta Cinema aconteceu no Rio de

Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil, e em Niterói, no Cine Arte-Uff, de 6 a 11 de dezembro de 1994.
38 Contraditoriamente, na gestão do presidente José Sarney se disfarçou esse desinteresse do governo

através do estabelecimento de um Ministério da Cultura, criado por meio do Decreto nº 91.144 em 15/3/1985
com o argumento de que “os assuntos da cultura nunca haviam sido objeto de uma política consistente”.
Entre os órgãos que compunham o novo ministério, figuravam o Conselho Nacional de Cinema (Concine)
e a Empresa Brasileira de filmes S.A (Embrafilme). Já a Lei Sarney (Lei 7.505, de 2/7/1986) foi criada na
gestão do Ministro da Cultura Celso Furtado e concedia benefícios fiscais na área do imposto de renda para
operações de caráter artístico-cultural. Cf: CALEBRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao
século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p.99-101.
39 1986: mais público para novos cinemas. Filme Cultura nº 47, agosto, 1986, p.128. A Filme Cultura era

uma revista publicada pela Embrafilme. Parou na edição nº 48, que seria publicada apenas em novembro
de 1988. Ou seja: a própria interrupção da revista já é parte da crise vivenciada pelo meio cinematográfico
brasileiro naquele momento.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

vez que “as taxas de ocupação insignificantes tornaram anacrônicos os palácios


de cinema característicos do apogeu da indústria cinematográfica”.

No entanto, como antes dito, nesse mesmo contexto observava-se o


fortalecimento do curta-metragem. Dizia João Luiz vieira: “mais que uma
resposta e forma de resistência à crise, os curtas recentes assumiram a
vanguarda da produção cinematográfica brasileira e mostraram, principalmente
na segunda metade dos anos 80, a face mais dinâmica de nossa produção”40.

Vários fatores estiveram envolvidos naquele rico período de amadurecimento


técnico e estético do curta-metragem. Um deles, que teve implicações positivas
e negativas, foi a política de incentivo à produção e exibição de curtas imposta
pela já mencionada “Lei do Curta”. À margem dos oportunismos atrelados a ela,
a Lei dinamizou a produção do curta-metragem brasileiro. O Inspetor foi
beneficiado, como se vê pelo certificado que aparece nos segundos iniciais do
filme.

Mas a grande questão destacada por Vieira foi a tendência à experimentação de


estratégias reflexivas “tanto narrativas – temas, conteúdos, histórias – quanto no
próprio processo de narração, ou seja, na forma específica de construção dos
filmes”41. Eram traços que estavam em sintonia com um cinema internacional
contemporâneo, mas também tinham como referência o cinema mais
experimental feito no Brasil dos anos 1960-70, como era o caso da “colagem de
materiais díspares” no cinema marginal e a carnavalização da “tradicional arte
erudita”, estratégias que seriam assimiladas pelos curtas vinte anos depois,
ainda que com intenções diversas, quando os cineastas “potencializariam ao
máximo a crítica paródica, não só como forma de autocrítica mesmo, como,
principalmente, tentando provocar uma compreensão mais profunda das
complexas relações entre a tradição cinematográfica e a consciência”42.

Num bordão parecido, Ivana Bentes afirma que “a experimentação mais radical
no cinema encontra no curta-metragem um espaço privilegiado”43, e Guiomar

40 VIEIRA, João Luiz. Op.cit.


41 Ibidem.
42 Ibidem.
43BENTES, Ivana. Vídeo e cinema: rupturas, reações e hibridismo. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in
Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p.119.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
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Ramos reitera a tendência reflexiva desse tipo de cinema quando esboça sua
definição para “documentário experimental”. Segundo Ramos, esses filmes
“propõem uma reflexão do mundo real a partir de uma visão subjetiva” 44.

Para Ivana Bentes, a ideia de um “documental transcendido” em que a


subjetividade do diretor e do espectador se dissolvem com o “objeto” do
documentário – ideia presente no conceito omariano de antidocumentário –
marcaria tanto a produção dos curtas-metragens do artista nas décadas de 1970
e 1980, quanto a de seus trabalhos mais recentes em vídeo45. Isso aponta para
outro diálogo estabelecido em suas obras, que diz respeito à experimentação de
suportes variados.

O vídeo entrou com força na produção audiovisual brasileira dos anos 198046.
Muitos realizadores começam “a usar o vídeo como meio, orientados, no entanto,
por conceitos formulados mais no cinema experimental que na incipiente esfera
de produção de arte eletrônica no Brasil”47. Omar, no caso, começou a trabalhar
com vídeo em 1984, com o média-metragem Tony Cragg in/no Rio. Em 1987
realizou O nervo de prata, sobre o artista plástico Tunga, produção praticamente
simultânea ao O Inspetor. Em 1989, numa entrevista ao Jornal do Brasil referente
à sua participação no Festival de Cinema e Vídeo do Canadá (ocasião em que
expôs onze curtas, quatro vídeos e um longa-metragem), disse que o vídeo
“revolucionou o ato de ver”48. Noutra matéria, se declarou “um apaixonado pelo
vídeo, já que a mídia eletrônica tem uma linguagem mais quente e mais febril,
principalmente na hora da edição”, e também afirmou a importância de “um
cinema que fale sobre a realidade, o aqui-e-agora com impacto e
contemporaneidade, aguçando a sensibilidade do telespectador sempre pelo
excesso”49. Ao falar de “telespectador” na mesma frase em que remetia ao tipo

44 RAMOS, Guiomar. Documentários experimentais? Op.cit, p.265-271. A autora aponta a produção de


documentários como uma das tendências observáveis no cinema brasileiro entre 1985-2005. Mas
questiona: que tipo de característica experimental há nesse tipo de cinema? Trabalha a questão discutindo
alguns filmes dos anos 1970, nos quais observa o formato experimental se interligando ao formato
documentário, conforme dito antes.
45 BENTES, Ivana. Op.cit., p.115.
46 Os sistemas portáteis de gravação de vídeo só se tornaram disponíveis no Brasil entre 1979-80. O

videocassete de uso doméstico e suas pequenas câmeras com gravadores-reprodutores chega em 1982.
Cf: FECHINE, Yara. O vídeo como um projeto utópico de televisão. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in
Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p.87-88.
47 Ibidem, p.95.
48 PÉROLAS na mediocridade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 18.08.1989.
49 REGO, Alita Sá. Cinema rolando quente. Última Hora. Rio de Janeiro, 06.07.1989.

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P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

de cinema que aspirava, já denunciou a mescla de meios que caracterizaria seus


trabalhos posteriores, compostos de videoinstalações, fotografias, instalações
sonoras, etc. Para Christine Mello, Omar possui “papel fundamental nos
caminhos de hibridização na arte ao entrecruzar as linguagens da fotografia, do
cinema e do vídeo e tem um trabalho considerado dos mais densos na
potencialização dos sentidos da imagem” 50.

Enfim, em diálogo com os debates estéticos envolvendo cinema e vídeo no


Brasil, sua postura questionadora sobre a linguagem e sobre a “função do
cinema dentro do real” é candente no curta-metragem O Inspetor. Pouco tempo
após a exibição deste curta em festivais, José Guimarães afirmou que “em O
Inspetor Arthur Omar aproveita alguns de seus achados em vídeo moldando-os
segundo a métrica do curta-metragem”; e que neste filme Omar “faz, desfaz e
refaz o documentário em forma de prosa-poética”, sendo capaz de “revelar o
documentário pelo avesso; mostrá-lo na sua essência como ficção pura e
simples”51.

As observações do crítico demonstram coerência entre o produto fílmico e


aquele desejo enunciado por Omar de provocar reações e deslocamentos de
sentidos através de suas obras, desejo ao qual já me referi no início deste texto.
Em O Inspetor nota-se uma forma de remissão ao mundo fatual e próximo, ao
escancaramento da violência urbana, mas não por uma retórica expositiva ou
descritiva, e sim por meio da linguagem, do sensorial e do rítmico. Omar não
propõe um ponto de vista objetivo ou afirmativo no filme, ele oferece os signos
ao espectador para que tire suas próprias conclusões sobre o que está vendo,
sobre os assuntos aos quais imagens e sons remetem e sobre a realidade
material do filme que sempre será, antes de tudo, um filme, e não aquilo a que
ele se refere. Assim, “verdade e mentira se misturam no intuito [...] de instruir o
espectador sobre a natureza de qualquer representação e sobre o significado da
obsessão pela verdade”52. Ele nos dá subsídios para pensar o curta como um
instrumento poético.

50 MELLO, Christine. Arte nas extremidades. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil: três décadas de
vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007, p.155.
51 GUIMARÃES, José Claudio. As pernas cabeludas do polícia. Caderno de Crítica, n.6, maio de 1989. p.74-

75.
52 VIEIRA, João Luiz. Op.cit.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

Um universo de violências

O curta experimental é, então, um instrumento poético, mas sua elaboração se


dá “em cima de realidades concretas como imagens de assassinatos na Baixada
Fluminense (no curta Ressurreição), a vida de um inspetor de Polícia
(Inspetor)”53.

Não é preciso grande esforço para perceber que esses dois curtas produzidos
por Omar entre 1987-88 apresentam uma conexão forte com seu entorno
imediato, em especial com a violência urbana. Diversos estudos acadêmicos
constatam que no Brasil dos anos 1980 aumentaram os indicadores associados
à violência na sociedade, como “a mortalidade por causas externas, crimes
violentos e homicídios”54. Basta um passeio pelas matérias de jornais e revistas
publicadas naquela década para estabelecer contato com os temas referentes à
violência por homicídios, corrupção no interior do aparato policial, chacinas e
tráfico de drogas. Eram assuntos constantes. O próprio interesse acadêmico
sobre o tema eclodiu naquele período, com estudos pioneiros que discutiam a
relação entre a pobreza e o aumento de criminalidade que vinha sendo
observada desde fins dos anos 1970. Esse interesse, segundo a antropóloga
Alba Zaluar55, pode ser associado à comoção pública e ao destaque na mídia
que o aumento da criminalidade provocou a partir da década de 1980. São
questões que perpassam O Inspetor.

O tema “violência” ganhava tal corpo que, aos poucos, passou a ser tratado
como assunto social de amplitude nacional não apenas no sentido jurídico, mas
como caso de saúde pública, mobilizando o interesse de intelectuais que
trabalhavam nas universidades e em organizações não-governamentais, além

53 Declaração de Arthur Omar para o jornal Última Hora. In: REGO, Alita Sá. Op.cit.
54 DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Violência, direitos civis e democracia
no Brasil na década de 1980: o caso da Área Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, Vol. 14 nº 39, fevereiro/1999, p.156.
55 ZALUAR, Alba. Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização. São Paulo em

Perspectiva, nº13 (3), 1999, p.9. Ver também a nota nº7, p. 14. A autora afirma que no contexto urbano “os
pobres figuraram simultaneamente como protagonistas principais dos crimes violentos cometidos e como
vítimas preferenciais deles”. Ver p.3.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

de entrar na pauta das grandes preocupações do governo federal 56. No final da


década se tornou um dos assuntos que mais ocupava o debate público na
grande imprensa, como também o debate acadêmico em seminários e
congressos57. Poucos anos depois, estudos estatísticos comprovam a violência
crescente, enfatizando a necessidade de compreender as articulações deste
fenômeno com fatores socioeconômicos e com o crescimento da desigualdade58.

Num âmbito amplo, em termos políticos os anos 1980 constituíram, para o Brasil,
um período de importantes transformações. Experimentava-se um complexo e
lento processo de transição democrática, pontuado por muitas tensões, sendo
que entre 1985 e 1989, espaço de tempo considerado por Kinzo como “terceira
fase” do processo de transição59, a economia brasileira tropeçava num “caminho
de pedras e espinhos”. Segundo sua análise do processo de democratização, a
sucessão de fracassos nas medidas econômicas propostas pelo governo e
agravamento da crise comprometeram a capacidade do Estado de governar60.
Todavia, apesar da grave crise econômica e social, essa autora observa que se
intensificava a democratização que culminaria na elaboração da Constituição de
1988. Nesse ambiente, os debates sobre direitos humanos e civis que pautavam
as discussões sobre reforma constitucional foram associados ao combate à
violência e à insegurança pública. Ainda antes da formação de uma Assembleia
Constituinte que contaria com a participação de grupos sociais organizados, os

56 Ibidem, p.9. Ver também: SOUZA, Edinilsa Ramos. Homicídios no Brasil: O Grande Vilão da Saúde
Pública na Década de 80. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 45-60, 1994; e SOUZA, Edinilsa
Ramos. Mortalidade por homicídios na década de 80: Brasil e capitais de regiões metropolitanas. Rio de
Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1998.
57 ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba, os enigmas da violência no Brasil. In:

SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da Vida Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p.246.
58 De acordo com Minayo, “de 2% no total da mortalidade geral em 1930 (Prata, 1992), a violência subiu

para 10,5% em 1980; 12,3% em 1988 (Minayo & Souza, 1993); e 15,3% em 1989 (Souza & Minayo, 1994),
correspondendo, no final da década, à segunda causa de óbitos no país, abaixo apenas das doenças
cardiovasculares”. MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde
Públ. 10, Rio de Janeiro, 1994, p.10. [grifos meus].
59 Maria D’Alva Kinzo diz que o processo de transição da ditadura militar para a democratização brasileira

foi o mais longo da América Latina: 11 anos para que os civis retomassem o poder e mais 5 anos para que
o presidente da Repúbica fosse eleito por voto popular. A autora aponta três fases nesse processo: 1) o
período de 1974 a 1982, com as estratégias de transição totalmente conduzidas pelo governo militar; 2) o
período entre 1982 e 1985, marcado pelas eleições de 1982 e sucessão presidencial, os novos partidos e
a volta de políticos que haviam perdido seus direitos no início dos anos 1960; e 3) o período entre 1985 e
1989, quando uma “nova República” nascia sob circunstâncias frágeis”, com a morte de Tancredo e o início
do governo Sarney, vulnerável a todos os tipos de pressão. KINZO, Maria D’Alva G. A democratização
brasileira: um balanço do processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva, nº15, 2001, p.5-
9.
60 “Entre 1986 e 1994 o país mudou quatro vezes de moeda e teve seis experimentos em estabilização

econômica”. Ibidem, p.8.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

discursos antiviolência já se faziam ouvir, vindos de várias direções e com


interesses díspares.

Em 1983 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançara a


Campanha da Fraternidade com o lema: “Fraternidade sim, Violência não”.
Poucos anos depois, em 1986, outra iniciativa viera do próprio governo federal,
durante o tempo de governo de José Sarney. Tratava-se da campanha do
Ministro da Justiça Paulo Brossard, denominada “Vamos viver sem violência”,
com logotipo e slogan criados por Ziraldo e utilizados amplamente em
diversas mídias, desde propagandas educativas na Rede Globo até
estampas em carroceiras de caminhões.61 Vale lembrar a atuação
paradoxal de Brossard, que naquele momento foi o responsável pela
censura de diversos filmes violentos, argumentando que a televisão (e o
cinema) não deveriam ser instrumentos de difusão da violência.

Arte de Ziraldo para a campanha do governo contra a violência.


Exibida em comercial na Rede Globo, abril de 1987

Entretanto, apesar das campanhas oficiais e da tentativa de evitar a


violência na programação ficcional, os eventos envolvendo mortes, crimes
e suas repercussões na mídia se intensificavam. Os tipos de violência eram
vários, incluindo desde acidentes de trânsito, homicídos grotescos nas
periferias das grandes cidades, torturas praticadas pela polícia, até o
envolvimento de policiais em práticas ilegais de extermínio, extorsão,
corrupção e repetida violação dos direitos humanos ou civis dos cidadãos,
e isso, muitas vezes, com apoio popular62. Nesse contexto, enquanto o

61 Sem violência. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17.09.1986, p.6.


62Zaluar aponta que os estudos sobre o medo e sobre o apoio dado pela sociedade a políticas despóticas
ou extremamente repressivas devido à crise dos anos 1980, conduziram alguns autores a “qualificar a

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

famoso Esquadrão da Morte praticava a justiça ao seu modo, caçando e


executando supostos “marginais”63, no espaço público debatia-se, por
exemplo, a legitimidade da pena de morte. As opiniões por parte dos
representantes políticos variavam. Em entrevista ao vivo ao programa
Roda Viva de 29/9/1986, o ministro Brossard declarou-se contrário à pena de
morte, dizendo que não acreditava em uso da violência para “solucionar a
violência”64. À mesma época, uma campanha de Paulo Maluf veiculada na
televisão se pautou na ideia de combate à violência e à insegurança pública de
uma forma agressiva, afirmando que “lugar de bandido é na cadeia”. Tais
assuntos eram de grande interesse popular, o que é perceptível pela quantidade
de notícias que focalizavam a violência cometida pelos policiais contra
criminosos comuns e, aos poucos, a “incapacidade do Estado de controlar a
violência e suas causas foi percebida e condenada por todos os setores
sociais”65.

Vários aspectos dessas questões aparecem ou são insinuadas em O Inspetor.


Lá pela metade do filme, após ouvirmos Jamil Warwar falar sobre suas técnicas
de trabalho envolvendo disfarces e assistirmos o detetive maquiando-se e
vestindo-se de mulher, há uma cena num ambiente de penumbra em que o
mesmo aparece lendo um trecho de livro de sua autoria, o Répto à morte, no
qual menciona o Esquadrão da morte.

sociedade brasileira como antônimo da cordialidade e cooperação: a inversão da teoria do homem cordial
brasileiro”. ZALUAR, Alba. Um debate disperso... Op. Cit., p.5.
63 “Com origem policial, o Esquadrão da Morte surgiu fundado em um discurso moralista de defesa da

sociedade contra os elementos indesejáveis e de manutenção da ordem pública. Mas, desde o seu início
[nos anos 1950], ele esteve ligado com corrupção, venda de proteção para traficantes de drogas,
associação com grupos de criminosos”. Para maiores detalhes, sugiro: COSTA, Marcia Regina. São Paulo
e Rio de Janeiro: A Constituição do Esquadrão da Morte. Anais do XXII Encontro anual da Anpocs.
Caxambu, Minas Gerais, 1998.
64 Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/834/entrevistados/paulo_brossard_1986.htm
65 DELLASOPPA, Emilio; BERCOVICH, Alicia; ARRIAGA, Eduardo. Op.cit., p.154.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

Warwar lendo o seu próprio livro, e o “jurista” que declara-se favorável à pena de morte.
Cenas de O Inspetor (Arthur Omar, 1988).

Sentado numa sala obscura, com uma réstia de luz que entra por uma janela e
o ilumina parcialmente, Warwar lê dramaticamente enquanto a câmera se
aproxima dele. Durante toda a cena, ouve-se uma música melodramática que
evoca algum filme épico em momento de grande heroísmo, o que carrega a cena
de uma tonalidade kitsch, reforçada pelas frases lidas em rima:

Mais um bandido que surge deitado com diversos tiros no matagal.


Um crânio sobre dois ossos desenhado num papelão está em cima do marginal.
Esquadrão da morte age: horrorizado exclama em grande manchete o jornal.
O bandido que sucumbiu, coitado, só tinha dez crimes mas não era mau.
E a opinião pública então é iludida, pois policial arrisca sempre a vida e para não
morrer tem que ter sorte.
Não há policiais que matam sem piedade, o que há são policiais, eis a verdade,
que o esquadrão desafia à morte.

Em seguida, há um plano sequência no qual ouvimos uma declaração em defesa


à pena de morte. Em plano americano, um cidadão (talvez um oficial de justiça,
talvez um ator) está numa sala em que se veem pilhas e pilhas de processos ao
fundo, o que sugere que ele trabalha num ambiente penal. Está com um dos
processos aberto em suas mãos, mas olha para a câmera e assume uma atitude
explicativa, em clara remissão ao formato dos documentários tradicionais. Diz
pausadamente que é favorável à pena de morte, “desde que seja a decretação
dessa pena precedida de um parecer de um assistente social que teria por
escopo principal verificar se o criminoso, até a prática do crime, tenha tido ou
não oportunidade de ser útil a sociedade”. Nesta cena não há música ou outros
efeitos sonoros, o que diminui a impressão de ficção e amplia o efeito
documental. Assim como o cenário, o vocabulário do cidadão também evoca o
universo jurídico. Mas não há nenhuma legenda que o identifique, como é usual
nos documentários que trabalham com entrevistas, e ele também não se
identifica. Sendo assim, pode-se pensar que seja um charlatão, ou simplesmente
um ator representando esse discurso jurídico.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

Na cena a seguir, acompanhada do som melancólico de um piano, vemos um


grupo de homens à paisana que pegam armas num armário. São policiais, que
no instante seguinte aparecem numa favela numa batida policial, agora
acompanhados por efeitos sonoros de filme de ação. Até que ponto essa batida
policial é uma encenação feita para o filme de Omar? Sobre esse trecho, Guerón
aponta para uma aproximação com Bertold Brecht, autor citado logo no início do
filme.

A mise en scène dos policiais pegando as armas, um depois do outro, para sair numa
“operação”; a cena desta operação numa favela miserável, com a radicalização do
distanciamento na frase cômica e ácida de Omar narrador, “O Inspetor sentiu a certeza
de não estar em Paris”; a cena dos policiais alinhados de perfil e atirando contra um
terreno baldio numa clara performance para a câmera, e o policial que coloca a arma
“estilosamente” na cintura e dá uma olhada para a câmera revelando a sua
representação são exemplos claros da descoberta do gestus brechtiniano à maneira de
Omar66.

Há um outro recurso presente em O Inspetor que, senão “agressivo”, evoca um


engodo ou outra forma de subversão narrativa: começamos acompanhando o
discurso de um investigador policial que descreve suas técnicas de trabalho, e
terminamos por vê-lo enquanto farsante (entendido, aqui, no sentido de ator ou
profissional de farsas, pequenas peças cômicas), investigador fictício estampado
em páginas de fotonovela. Sobre isso, concordo com Pimentel quando diz que
nos filmes de Omar “o falso será articulado a partir de um embate entre ficção e
realidade, fazendo com que esses dois planos apareçam sempre embaralhados
e indiscerníveis” 67
. Trata-se também de um modo de problematizar a nossa
constante suscetibilidade às imagens da mídia, aos discursos oficiais, aos
boatos, enfim, a tudo o que nos chega enquanto informação elaborada por uma
linguagem que se quer fazer crer transparente e isenta. Neste filme, em especial,
Omar escancara a não isenção da linguagem e declara, no papel de narrador,
que “o bem e o mal são pequenos distúrbios tingindo a informação”.

Apesar de aparentemente evidentes, essas conexões do filme O Inspetor com


as facetas da realidade social do seu tempo de produção não são literais ou
óbvias, nem no sentido de espetacularizar a violência – expediente que se

66 GUÉRON, Rodrigo. Op. cit., p.171


67 PIMENTEL, Mariana. Op.cit., p.18.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

tornará recorrente na mídia e no cinema de ficção a partir dos anos 199068 –,


nem em tentar transformar o assunto em melodrama. Se há agressão no filme
de Omar, ela é, sobretudo, simbólica, resultante da montagem fragmentária e
disjuntiva, bem como da apropriação e combinação de elementos visuais e
sonoros pertencentes a diversos discursos. Isso também é um modo de
violência, se admitirmos, como Renato Ortiz, que existe “uma distância entre a
violência como realidade e a violência como metáfora” 69. Os anos 1960, no
Brasil, contém diversos exemplos dessa transmutação da violência em
propostas estéticas violentas, geralmente estruturadas em estratégias de
subversões de linguagem. Era isso que Glauber Rocha fazia quando propunha
uma “estética da fome” para o cinema brasileiro: ele convocava a violência para
o plano simbólico, e o fazia sobre os moldes da convocação a uma violência real,
segundo os termos de Franz Fanon em Os condenados da terra70. E, como disse
João Luiz Vieira, a inspiração no cinema experimental dos anos 1960-70 teria
dado origem a um tipo de “método-matriz” observável nos curtas experimentais
dos anos 1980. Isso fez com que ampliassem sua potência política de provocar
reações e deslocamentos perceptivos. Compreendo, enfim, que em filmes desse
teor coexistem a convição poética e a violência. São produtos com os quais se
pretende uma intervenção na sociedade ou, ao menos, constituem uma forma
pela qual o cineasta pode posicionar-se, enquanto formador de opinião, entre
aqueles que discutem e problematizam o seu entorno histórico, político e cultural.

Gotas distópicas

Por fim, gostaria ainda de pontuar algumas remissões à ideia de Brasil e às


cicatrizes do passado autoritário presentes em O Inspetor, como um tema
secundário mas coerente com a crise identitária que se espraiava e com o

68 Quanto à espetacularização da violência na mídia, Zaluar comentava, em 1998, que “as notícias de
violência tornaram-se mercadoria”, e que “o próprio conceito de violência tem sido usado de maneira
abusiva para encobrir qualquer acontecimento ou problema visto como socialmente ruim ou
ideologicamente condenável”. ZALUAR, Alba. Para não dizer... Op.cit, p.247.
69 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 62.
70 Sobre a violência simbólica no cinema de Glauber e suas relações com Franz Fanon, sugiro: XAVIER,

Ismail. Considerações sobre a estética da violência. In: Sertão mar. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.183-
184.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

pessimismo referente ao país71. Tais remissões aparecem como respingos,


como sinais rápidos que poderiam até passar desapercebidos, mas gritam
quando vistos à luz do contexto. Por exemplo, as cores da bandeira nacional nas
imagens em que uma embalagem amarela de creme dental Kollynos aparece
em close sobre um fundo verde. Num primeiro momento, a bisnaga é aberta e
simplesmente usada para colocar creme sobre uma escova de dentes também
amarela. Em seguida, é colocada diagonalmente sobre uma superfície verde-
escura e tem o seu fundo aberto. Dali são retirados papelotes com cocaína,
droga que estava “na moda” entre a elite carioca desde fins dos anos 1970, e a
posição diagonal da bisnaga somada à composição cromática da cena remetem
claramente à bandeira do Brasil. Uma contradição importante sobre a ampliação
do consumo de cocaína no país, e que perpassa a questão da corrupção no
interior do aparato policial, atesta-se com a leitura de uma matéria publicada na
revista Veja em 197772: a cocaína ganhava espaço, por um lado, nos hábitos de
consumo de uma elite milionária; por outro lado, aparecia como vilã no discurso
de combate necessário ao tráfico de drogas – assunto, aliás, que “abre” o filme
O Inspetor, no momento de desvelamento dos esconderijos para papeletas de
entorpecentes e reaparece na apresentação verbal que o detetive faz de si
mesmo. Os lugares sociais, no entanto, não eram tão bem delimitados no que
diz respeito à relação entre policiais e traficantes: de acordo com a antropóloga
Marcia Costa, “era comum que policiais desonestos vendessem proteção aos
traficantes, matassem os seus concorrentes e até compradores que não
pagassem suas dívidas”73.

Outro elemento irônico em relação imagem nacional distópica é aquela voz


radiofônica que entoa um Brasil-il-il no momento em que são encontradas drogas
no interior de um radinho de pilha. Trata-se do único momento do filme em que
aparece o nome do país, festejado pelo locutor como se houvesse sido marcado
um gol, e isso é simultâneo ao desvelamento do tráfico. Era essa a cara do
Brasil? A pergunta é retórica, claro, pois o filme não é nada literal. Mas essa

71 No Brasil dos anos 1980 “as dúvidas quanto às possibilidades de construir uma sociedade efetivamente
moderna tendem a crescer e o pessimismo ganha, pouco a pouco, intensidade”. MELLO, J.M. e
NOVAIS, F. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia. (Org.). História da Vida
Privada no Brasil, vol. IV. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 560. [grifos meus].
72 A ascensão da cocaína. Revista Veja. São Paulo, 7.09.1977, p.32-38.
73
COSTA, Marcia Regina. Op.cit., p.29-30.

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KAMINSKI, R. “As mil faces do inspetor”. In: KAMINSKI, R.; FREITAS, A.; GRUNER, C.; HONESKO, V.; REIS,
P. Imagem, narrativa e subversão. São Paulo: Intermeios, 2016, p. 241-270.

impressão dúbia poderia ser uma, ao menos, dentre as tantas faces possíveis
daquele Brasil ressentido e desarticulado em que viviam Jamil Warwar e Arthur
Omar em fins do anos 1980.

Há, ainda, o Selo Nacional e a inscrição do Exército Brasileiro na arma que


aparece em close nos segundos finais do filme, ao mesmo tempo em que o
narrador exclama: “Este filme só terá sentido para ele se funcionar como
Ressurreição”.

Se a primeira imagem do filme era ambígua, aquela de um homem que apontava


uma arma para a câmera (afinal, era um policial à paisana ou um “bandido”?),
nos segundos finais do filme não há dúvida alguma de que a arma de fogo que
nos é mostrada pertence ao exército. E a exclamação do narrador instiga a uma
nova pergunta, talvez menos retórica: quem é o ele a que se refere a frase?
Poderia, sem dúvida, ser simplesmente o personagem/assunto/depoente
Warwar, afastado desarrazoadamente do seu local de trabalho dez anos antes
da realização do filme, considerando que o filme recuperaria sua dignidade. Aos
meus olhos, no entanto, entre inúmeras outras interpretações, poderia ser
justamente o país “Brasil” (ou a probabilidade de uma nação) que soava, naquele
momento, tão indigno e tão pouco promissor perante a opinião pública.

O Inspetor, no final das contas, não traz respostas, mas suscita muitas questões
que nos levam a pensar, ao mesmo tempo, o cinema e a história à qual pertence.
É isso que nos convida a voltar repetidamente ao filme sem, no entanto, esgotá-
lo.

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