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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

6º PERÍODO – Semestre 2011.2

Profª. Maria Cristina Rocha Barreto


[E-mail: mcrbarreto@gmail.com]

Mossoró, RN
Dezembro de 2011
Copyright © 2010 Claudia Barcellos Rezende

1ª edição - 2010

Impesso no Brasil | Printed in Brazil

Todos os direitos reservados à EDITORA FGV. A reprodução não autorizada desta


publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor.

Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
aprovado pelo decreto Legislativo nº 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo
Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.

COORDENADORES DA COLEÇÃO: Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco


PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS: Mariflor Rocha
REVISÃO: Fátima Caroni, Adriana Alves Ferreira, Aleidis de Beltran DIAGRAMAÇÃO: FA
Editoração
PROJETO GRÁFICO E CAPA: Dudesign

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Rezende, Claudia Barcellos, 1965-

Antropologia das emoções / Claudia Barcellos Rezende, Maria Claudia


Coelho. - Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010.
136 p. (Coleção FGV de bolso. Série Sociedade & Cultura)

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-225-0795-5

1. Antropologia social. 2. Emoções. 3. Comportamento humano.


IJ. Coelho, Maria Claudia. Il. Fundação Getulio Vargas. III. Título. IV.
Série.

CDD - 301.2

EDITORA FGV
Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 I Rio de Janeiro, RJ I Brasil Tels.: 0800-
021-7777 I 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 editora@fgv.br I pedidoseditora@fgv.br
www.fov.hr/editora
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Aos nossos alunos

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Sumário

Introdução 9

Capítulo 1 19

Emoções: biológicas ou culturais?


As emoções e o corpo hu mano
O o lhar das ciências sociais
O medo
A raiva

Capítulo 2 43

Emoções: individuais ou sociais?


O lugar da emoção nas ciências sociais: formu lações clássicas
As gramát icas dos sentimentos

Capítulo 3 75

A micropolítica das emoções


A perspectiva contextualista: u m mapeamento
do campo d a antropo log ia das emoções
A micropolít ica das emoções: estudos de caso
Dád iva, hierarqu ia e emoção: as trocas de
presentes entre patroas e emp regadas do mésticas

Capítulo 4 97

As emoções nas sociedades ocidentais modernas


A tensão entre sentir e expressar
O contro le das e moções
A ênfase hedon ista no fazer
Contro le e p razer co mb inados: do is exemp los
Autenticidade, p razer e contro le: amo r nos tempos modernos

Conclusão 123

Referências bibliográficas 131 3


Página
Introdução

Em um texto em que explora o tema da natureza universal das grandes


tragédias, a antropóloga norte-americana Laura Bohannan narra e comenta uma
experiência muito particular: contar a história de Hamlet para uma tribo africana. Sua
convicção inicial, discutida em Oxford com um amigo inglês, é de que as grandes
tragédias falam da condição humana, podendo, portanto, ser universalmente
compreendidas da mesma maneira.
A situação surge de forma inesperada. Durante uma estação chuvosa, Laura vê-
se isolada na habitação de uma família, encarapitada no alto de uma colina, à qual
poucos têm acesso. Impossibilitados de realizar seus afazeres cotidianos, os membros
da família dedicam-se todos os dias, meses a fio, a beber cerveja e contar histórias. Um
dia, Laura é instada a explicar o que faz ao contemplar incessantemente seus "papéis";
neste momento, pedem-lhe que conte uma história da sua terra. Recordando a
conversa com seu amigo inglês, Laura vê aí uma chance ímpar de "testar" a
universalidade da compreensão de Hamlet. E decide contar ao grupo a tragédia de
Shakespeare.
Ao longo da narrativa, uma profusão de mal-entendidos e interrupções se
sucedem. A primeira delas é a incredulidade dos africanos diante da natureza da
aparição do fantasma do pai a Hamlet: o que é um "fantasma"? Afinal, pessoas mortas
não falam, não têm materialidade. À ideia de "fantasma", os nativos contrapõem a
possibilidade de um "agouro", enviado por um feiticeiro, ou de um "zumbi". E
ridicularizam Hamlet por acreditar estar diante de seu pai.
Outras dificuldades surgem para o entendimento da história: por que o
sucessor do chefe é seu filho, e não seu irmão? Por que o chefe morto tinha uma
única esposa - quem iria alimentar seus convidados? Por que Polônio não permitia que
Hamlet cortejasse sua filha - ele não percebia que um chefe o compensaria por isso?
Por que Polônio não se identificara atrás da cortina ao ser ameaçado por Hamlet -
qualquer criança se apresentaria para não ser morta! Por que Hamlet não recorrera
aos anciãos para vingar-se de Cláudio - todos sabem que não se pode erguer a mão
contra os mais velhos! E que dizer da exiguidade da família de Ofélia - como assim seus
únicos parentes masculinos eram o pai e o irmão? Deveria haver muito mais!
Um leitor minimamente familiarizado com questões canônicas da antropologia
reconhece, por trás desses mal-entendidos, problemas tradicionais das teorias do
parentesco e da dádiva - construção de descendência, dádiva e poder, concepções de
família (extensa versus nuclear) etc. Essas questões entrelaçam-se com a emergência
dos afetos, também eles suscetíveis de variações provocadas pelo ambiente
sociocultural em que se encontram. A experiência de Laura Bohannan traz um
momento de fertilidade ímpar para a apresentação da relação entre cultura, sociedade
e emoções.
O núcleo da tragédia de Hamlet é a traição que seu pai sofre da parte de sua
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esposa, Gertrudes, com seu irmão Cláudio. É este o responsável por seu
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envenenamento, com a anuência de Gertrudes. Pouco após a morte do rei, Gertrudes


e Cláudio se casam e este assume o trono. A tragédia tem início com a aparição do
fantasma do rei a seu filho, denunciando a traição. Elemento nodal da tragédia é a
revolta de Hamlet quanto à decisão de sua mãe em casar-se novamente,
desrespeitando o período ritual de dois anos de luto.
Por essa revolta, Hamlet é unanimemente considerado um bobo pelos
africanos: que besteira é essa de esperar dois anos - quem iria cuidar da fazenda de
seu irmão, se a viúva esperasse tanto assim para casar-se novamente? E então ele não
sabe que é dever do irmão mais novo casar-se com a viúva de seu irmão? Quem
cuidaria melhor de seus filhos e de seus bens?
A regra do levirato é um evidente obstáculo à "compreensão universal" da
tragédia de Hamlet. A prescrição matrimonial que define como preferencial o
casamento com a viúva de seu irmão impede a compreensão da vivência desse
casamento como uma traição, e torna absurdo o ciúme de Hamlet. Afinal, por que ter
ciúme, se sua mãe fizera exatamente o que mandava o costume, agindo no melhor de
seu interesse e de seu filho? E por que ter raiva do irmão do pai, se este apenas
cumprira seu papel?
Essa pequena fábula antropológica tem uma "moral": os sentimentos são
tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem. O ciúme de
Hamlet faz sentido à luz das teorias do parentesco ocidental, mas é absurdo se
levarmos em conta outros sistemas de parentesco, com suas prescrições e interdições
próprias. O ciúme não é, assim, um sentimento universal, decorrência espontânea de
exigências de exclusividade sobre aqueles a quem amamos; ao contrário, sua eclosão é
pautada por "regras de relacionamento", que o tornam legítimo e esperado em
relações governadas por expectativas prescritas de reciprocidade e exclusividade, mas
que o condenam em outros modelos de relacionamento nos quais a "regra" é o
compartilhar do outro, a exemplo dos modelos poligâmicos.
A convicção de que os sentimentos têm uma natureza universal faz parte do
senso comum ocidental, que os considera um aspecto da natureza humana marcado
pelas ideias de "essência" - no sentido de uma universalidade invariável- e de
"singularidade" - como algo que provém espontaneamente do íntimo de cada um.
Fazer uma "antropologia das emoções" é colocar em xeque essas convicções,
tratando-as como "representações" de uma dada sociedade; construir as emoções
como um objeto das ciências sociais é inseri-Ias no rol daquelas dimensões da
experiência humana as quais, apesar de concebidas pelo senso comum como
"naturais" e "individuais" - a exemplo da sexualidade, do corpo, da saúde e da doença
etc. -, estão muito longe de serem refratárias à ação da sociedade e da cultura.
O processo de construção das emoções como objeto das ciências sociais é
longo, podendo remontar aos esforços pioneiros de fundação das ciências sociais
como campo de saber autônomo. Embora o tema das emoções figure nos trabalhos de
muitos antropólogos e outros cientistas sociais, sua aparição se dá com frequência de
forma secundária. A presença dos afetos foi sempre notada como parte da dinâmica
da vida social, sem que contudo a eles se dedicasse atenção como objeto autônomo de
investigação. Por trás disso estava o status dúbio das emoções: embora se tornassem
elementos da interação social, eram vistas como fatos "naturais", realidades
5

psicobiológicas que já eram dadas a priori e modificadas até certo ponto pela
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socialização em uma cultura específica. Mais ainda, eram consideradas também


fenômenos subjetivos, individuais e particulares, mesmo que as sociedades
regulassem sua expressão. Mantinham-se, portanto, assunto prioritariamente da
psicologia.
Sociólogos clássicos como Émile Durkheim e Georg Simmel fizeram
contribuições significativas no sentido de mudar essa perspectiva. Embora em seus
textos programáticos ambos tratem as emoções como estados subjetivos e não sociais,
por caminhos distintos, eles mostram como há sentimentos que são produzidos
socialmente - nas relações sociais - e que têm efeitos significativos para as interações
e a coletividade de modo amplo. Seus estudos são, portanto, elaborações importantes
na direção de tomar as emoções como elementos sociais.
Contudo, a ambivalência em torno do estatuto das emoções perdurou por
muito tempo no desenvolvimento das diversas escolas antropológicas. Esse quadro de
atribuição aos sentimentos de um espaço menor na teoria social, por conta de sua
representação como elementos de natureza psicobiológica (cuja marca social residiria
apenas na regulação de sua expressão por regras sociais) persiste por várias décadas.
Alguns pensadores das escolas britânica, americana e francesa de antropologia, como
A. R. Radcliffe-Brown, Ruth Benedict e Marcel Mauss, respectivamente, detiveram-se
nas regras e formas coletivas de expressão dos sentimentos, ora explorando seu papel
ou função social, ora comparando padronizações culturais distintas das emoções.
Ainda percebemos nesses autores, com exceção de Mauss, uma visão ambígua da
emoção, que ora é pensada como um estado interno, subjetivo e não social, ora
resultaria de situações sociais, sendo assim de ordem social.
O estudo das emoções ganhou força na antropologia com o desenvolvimento
da abordagem interpretativa na década de 1970 nos Estados Unidos. Nessa
perspectiva, a noção de cultura como padrões de comportamento habituais e
tradicionais foi repensada e redefinida em termos de teias de significados, transmitidas
por símbolos e interpretadas de maneira específica de sociedade para sociedade. Essa
mudança produziu muitos estudos em torno da construção cultural dos significados
nas mais variadas esferas da vida social, em particular os conceitos de pessoa e self,
bem como das emoções. Esses trabalhos também enfatizavam a articulação entre
emoção e concepções de pessoa com as esferas da moralidade, da estrutura social e
das relações de poder.
Nos Estados Unidos, a tônica dos estudos antropológicos em torno das
emoções na década de 1980 partia de uma perspectiva relativista que tratava os
sentimentos como conceitos culturais que mediam e produzem a experiência afetiva.
Assim, a separação antes feita entre estados subjetivos e sentimentos sociais foi
problematizada, uma vez que as próprias ideias de pessoa e de subjetividade passam a
ser vistas como construções culturais. Além disso, como propõe Catherine Lutz (1988),
uma das expoentes deste campo, os conceitos de emoção implicam negociações sobre
a definição da situação e sobre vários aspectos da vida social, devendo ser vistos como
elementos de práticas ideológicas locais. Com isso, as emoções passam a ser tomadas
como um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e as outras
(Lutz e White, 1986). Resulta dessa orientação uma série de etnografias (entre outras,
Abu-Lughod, 1986; Lutz, 1988; Rosaldo, 1980), que formam o chamado campo da
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antropologia das emoções (Lutz e White, 1986).


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Recentemente, o estudo antropológico das emoções passou a enfatizar o
elemento do contexto em que se manifestam os conceitos emotivos, buscando ir além
das relativizações para analisar sob um ponto de vista pragmático as situações sociais
específicas em que eles são expressos (Abu-Lughod e Lutz: 1990). A preocupação dessa
abordagem contextualista aqui e dupla: mostrar como o próprio significado das
emoções varia dentro de um mesmo grupo social dependendo das circunstâncias em
que se manifestam, e atentar para as consequências da expressão dos sentimentos
nas relações sociais e de poder.
Assim, o campo da antropologia das emoções estruturou-se não apenas com
uma variedade de estudos etnográficos, mas também com um conjunto de questões
teórico-metodológicas que buscavam fornecer instrumentos para a comparação. Das
relativizações iniciais passou-se para um esforço maior em mostrar a dimensão
micropolítica das emoções, revelando como são mobilizadas em contextos sempre
marcados por relações e negociações de poder em vários níveis.
Como em outros lugares, no Brasil as emoções também aparecem
ocasionalmente em estudos das ciências sociais há muito tempo. Como mostra Koury
(2005a), é uma temática que ocupou pensadores da década de 1930, como Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que discutiram as emoções em suas
preocupações relacionadas à constituição de uma identidade nacional brasileira.
Já na década de 1980, encontramos uma maior atenção a esses fenômenos,
ainda que o foco das análises estivesse nas variações do conceito de pessoa e nas
emoções em contextos e segmentos sociais distintos. Roberto DaMatta (1997) analisa
como as formas de expressão das emoções, entre outros comportamentos, se ajustam
às diferenças entre espaços públicos e privados. Velho (1981 e 1986), Dauster (1986) e
Salem (2007), entre outros, examinam como a emoção e sua expressão vêm a ser um
componente central na construção de projetos de pessoas das camadas médias
urbanas, marcados pela tensão entre a individualização e o pertencimento. Duarte
(1986), por sua vez, busca compreender a centralidade da categoria emotiva "nervoso"
nas concepções específicas de pessoa entre classes trabalhadoras urbanas, mais
holistas em sua orientação.
Como foco de estudos que forma um campo próprio, o interesse nas emoções
vem gradualmente ganhando espaço entre as ciências sociais brasileiras desde a
década de 1990. Há não apenas movimentos em direção a uma institucionalização do
campo, mas também uma diversidade de temáticas estudadas. Entre as iniciativas
institucionais pioneiras, podemos destacar a criação, em 2002, da Revista Brasileira de
Sociologia das Emoções, revista virtual editada por Mauro Koury (Universidade Federal
da Paraíba - UFPB). Outras formas de institucionalização são a realização de grupos de
trabalho nas principais reuniões científicas, entre elas a Reunião de Antropologia do
Mercosul (RAM) e a Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em
Ciências Sociais (Anpocs), e a criação de núcleos de pesquisa como o Grupo de Estudo
e Pesquisa sobre Emoção (Grem) da UFPB, e o Núcleo de Antropologia das Emoções
[Nante], na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Entre os autores que vêm contribuindo para o desenvolvimento do campo,
Mauro Koury, na UFPB, já pesquisou as emoções do luto e a dor nas cidades (2003) e
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examina o sentimento de medo nas relações entre indivíduos no meio urbano (2005b).
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Na Uerj, Maria Claudia Coelho trabalha com a temática das emoções em torno de
questões distintas: os sentimentos expressos por Ias na idolatria (1999), a dádiva nas
trocas materiais (2006a) e as experiências de vitimização em assaltos a residências
(2006b). Também na Uerj, Claudia Barcellos Rezende fez uma análise comparativa
sobre amizade em Londres e no Rio de Janeiro, discutindo essa relação que também é
vista como sentimento (2002), e recentemente pesquisou a elaboração subjetiva da
identidade brasileira entre pessoas que fizeram pós-graduação no exterior, ressaltando
a dinâmica dos elementos emotivos dessa construção (2009). 1
Este livro está estrutura do em torno de alguns temas principais do estudo das
emoções nas ciências sociais. Os dois primeiros capítulos discutem as questões que
fundam o campo. No primeiro está o debate em torno da natureza das emoções: são
elas biológicas ou culturais? O segundo capítulo analisa o outro problema fundamental
dessa área: a emoção é um estado individual ou social?
O terceiro capítulo apresenta a perspectiva que vincula as emoções à estrutura
social, enfatizando em particular seu potencial micropolítico, ou seja, de expor e afetar
as relações de poder e hierarquia de um modo amplo. O quarto capítulo trata das
emoções nas sociedades ocidentais modernas e as questões que marcam a experiência
emotiva neste contexto.

1
Esses projetos de pesquisa desenvolvidos pelas autoras constituíram os campos de investigação que
formam a base da concepção deste livro. Todos os projetos, a partir de outubro de 1997, foram
8

desenvolvidos no âmbito Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (Prociência) da


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Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Uerj.


Capítulo 1

Emoções: biológicas ou culturais?

Seria o amor um sentimento que contribui para a manutenção da espécie


humana? Esta é a ideia apresentada em uma reportagem do jornal O Globo, na edição
de 29 de junho de 2008, segundo a qual as emoções "seriam forjadas pela seleção
natural". Como outras características físicas, os sentimentos teriam sido fundamentais
na evolução da espécie, garantindo a ela vantagens reprodutivas. Assim, o amor seria
importante para a reprodução da espécie, pois une os seres humanos para reproduzir
e proteger a prole, já que o filhote humano precisa de tempo para poder viver de
forma independente. O medo ajudaria na sobrevivência, evitando, por exemplo, que
uma pessoa passe na frente de um leão tranquilamente e corra o risco de morrer. A
raiva é outra emoção que incitaria a defesa pessoal, contribuindo assim para a
sobrevivência.
Nesse artigo de jornal, encontramos uma ideia muito constante no
pensamento das sociedades ocidentais modernas: as emoções são fenômenos comuns
e naturais a todos os seres humanos. A capacidade <te sentir emoções resultaria do
equipamento biológico e psicológico inerente à espécie humana e seria, portanto,
universal. Seriam assim invariáveis no tempo e no espaço, de modo que as pessoas
poderiam se identificar com outras em sociedades distintas ou em épocas passadas em
função de sentirem emoções como amor, tristeza, raiva, medo etc. Nesse modo de
pensar, as emoções trariam poucas ou nenhuma marca das culturas nas quais as
pessoas vivem. Essa visão está presente no senso comum, na mídia e também em
algumas áreas disciplinares.
Neste capítulo, vamos primeiramente analisar essa visão das emoções, que
compõe uma etnopsicologia ocidental moderna. A noção de etnopsicologia, discutida
por Lutz (1988), se refere ao sistema de conhecimentos que define e explica o que é a
pessoa seus atributos, suas reações, seu modo de se relacionar com os outros que
permite que ela monitore a si própria e aos outros, possibilitando assim alguma
antecipação dos comportamentos. É principalmente um campo de conhecimento que
varia de sociedade para sociedade, bem como ao longo da história. Na etnopsicologia
ocidental moderna, encontramos dois pressupostos fundamentais no modo de pensar
a pessoa e suas emoções que serão discutidos aqui: a percepção de que as emoções
estão ancoradas à dimensão psicobiológica do indivíduo e a noção consequente de que
as emoções são constantes e universais. Exploraremos em seguida o modo como as
ciências sociais problematizam esses argumentos, colocando o debate sobre o caráter
biológico ou cultural das emoções em outras bases. Nossa preocupação é distinguir as
visões de mundo ocidentais modernas das posturas teóricas para o estudo das
emoções. Ao final, apresentamos alguns estudos que relativizam emoções
consideradas básicas, como o medo e a raiva, para ilustrar esta discussão.

As emoções e o corpo humano


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Um dos pressupostos fundamentais da etnopsicologia ocidental moderna, na


visão de Lutz (1988), é a noção de que a pessoa é constituída por um dualismo
fundamental: a oposição entre corpo e mente. Embora estejam articuladas na pessoa,
são dimensões pensadas separadamente uma da outra, produzindo por isso campos
de conhecimento d:stmtos para lidar ora com o corpo, ora com a mente. Os
fenômenos associados a esta última instância são também divididos em doi s: as
emoções e a razão. Esta segunda dicotomia está relacionada com a primeira, na
medida em que as emoções estão geralmente associadas ao corpo, enquant o a razão
seria um fenômeno basicamente da mente. Na associação entre emoção e corpo,
encontramos tanto as causas quanto as manifestações dos sentimentos, que teriam
também certas qualidades comuns às reações corporais.
Nessa visão de mundo, as emoções são pensadas como tendo, muitas vezes,
origem no funcionamento do corpo. Dois exemplos desta ideia são a s concepções dos
hormônios e do funcionamento neurológico do cérebro como causadores e/ou
reguladores das emoções. Os hormônios ditos masculinos e femininos
respectivamente a testosterona e o binômio estrogênio e progesterona explicariam
muitas características emotivas dos gêneros. Os homens seriam mais agressivos do
que as mulheres em função da maior presença d,a .testosterona no seu organismo. Já
as mulheres teriam varias reações emotivas atribuídas aos hormônios, que marcariam
as varias etapas de seu ciclo de vida. Haveria uma maior instabilidade emotiva nos dias
anteriores à menstruação, o que, Junto a aspectos físicos, configuraria a síndrome da
tensão pré-menstrual (TPM). Como mostra Juer (2007) em sua análise da visão
biomédica dos hormônios, o desejo de ter filhos é às vezes explicado pela forte
presença do estrogênio após a menarca. A gravidez é considerada também um período
no qual a mulher teria uma instabilidade emocional, além da forte presença do medo e
da ansiedade, em muito associada às alterações hormonais na gestação. A menopausa
é outro momento na vida das mulheres no qual a diminuição do estrogênio e da
progesterona afetaria as emoções.
O funcionamento do cérebro, em particular as reações químicas que lá
acontecem, é apontado como outra fonte responsável por algumas manifestações
emotivas. Os jornais já escreveram sobre o amor como resultado de certas reações
químicas do cérebro, e como mulheres e homens apresentariam características
cerebrais distintas teriam também experiências diferentes do sentimento. Nessa
perspectiva, também a ansiedade e os estados emotivos que conformam a depressão
resultariam principalmente de reações químicas desequilibradas, sendo muitas vezes
tratadas por meio da química de ansiolíticos e antidepressivos.
Considera-se também que os sentimentos produzam reações corporais. Assim,
a tristeza vem muitas vezes acompanhada de lágrimas e soluços, reações que também
podem vir da alegria e da felicidade. O medo provocaria arrepios, palpitações e até
mesmo enfartes cardíacos, dando sentido literal à expressão popular "morrer de
medo". A ansiedade e a angústia podem ter variadas manifestações, como falta de ar,
insônia, sensação de aperto no estômago. Há inclusive no senso comum e na medicina
a visão de que mulheres muito ansiosas têm dificuldade de engravidar.
Encontramos também a atribuição do surgimento de algumas doenças à
presença de alguns estados emotivos. Em um estudo clássico, Sontag (1984) analisa
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como, no século XIX, a tuberculose era considerada uma doença da paixão, que
acometeria pessoas melancólicas e apaixonadas, enquanto: no século XX, o câncer
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seria mais comum entre pessoas contidas, tensas e estressadas.


Nessa etnopsicologia. as emoções teriam vários atributos em comum com os
fenômenos corporais. Por exemplo, apresentariam muitas vezes o mesmo caráter
involuntário e espontâneo que muitas reações corporais. Explicações como aquelas
que veem hormônios e reações neurológicas como produtores de emoções reforçam a
ideia de que eles aconteceriam de maneira independente da vontade do sujeito. Diz-se
também que a paixão e o amor são sentimentos que não es colhem seu objeto. Em
outros momentos acredita-se que a raiva sentida surja de maneira incontrolável.
sendo também difícil de ser manifestada de modo contido. As lágrimas de tristeza
exemplificariam uma reação emotiva e ao mesmo tempo corporal vista como
involuntária, a tal ponto que chorar em cena seria um aprendizado difícil para atores.
Outra qualidade compartilhada é a ideia de que, assim como existe uma
unidade biológica entre os seres humanos, há também uma unidade psíquica entre
eles. Entretanto, se a razão seria uma capacidade cujo desenvolvimento depen de de
vários fatores externos à pessoa, sendo, portanto, variável entre grupos e sociedades,
as emoções, como fenômenos mais próximos ao corpo, estariam menos sujeitas
também ao controle externo, sendo assim menos variáveis e mais constantes através
das culturas. Por esse motivo, as emoções são consideradas qualidades essenciais dos
seres humanos, no sentido de caracterizar um núcleo essencial do indivíduo que se
manteria relativamente intacto apesar da intervenção da sociedade. Neste sentido,
encontramos uma tensão entre a visão da emoção como emanando de uma natureza
interior e não social do indivíduo e a concepção que a toma como qualidade universal
de todos os seres humanos. Passaríamos assim do plano da singularidade individual
para o universal sem qualquer mediação da sociedade ou cultura.
Por outro lado, embora nessa etnopsicologia as emoções tenham uma
dimensão psicobiológica, admite-se que a sociedade influencie o modo de expressar os
sentimentos. Assim, reconhece-se a existência de regras de expressão que afetam a
manifestação dos sentimentos não apenas de acordo com os contextos sociais, como
também entre sociedades diferentes. Há, por exemplo, normas para a expressão das
emoções em uma situação de luto, que independem do indivíduo sentir tristeza ou
pesar pela morte de uma pessoa. O luto, por sua vez, varia de sociedade para
sociedade, de modo que em certos lugares pode-se chorar copiosamente enquanto,
em outros, pede-se expressões mais contidas de pesar e tristeza. Nessa ótica, faz-se
uma distinção entre o sentimento, entendido como individual e não cultural, e sua
expressão, vista como regra da por prescrições sociais.
Outra característica vista como social é a linguagem verbal e corporal para
expressar as emoções. A manifestação de afeto por uma pessoa pode ou não envolver
gestos, como beijos e abraços, que implicam o toque no corpo do outro. O vocabulário
emotivo de uma sociedade é reconhecido como distinto do de outra, dificultando, por
exemplo, o exercício de tradução de categorias emotivas de uma língua para outra. No
entanto, as palavras nem sempre são vistas como expressando "de fato" o que o
sujeito sente, reforçando novamente a distinção entre uma forma de expressão de
ordem social e o sentimento de natureza individual. Nessa perspectiva, abre-se a
possibilidade para que as pessoas sintam uma emoção mesmo que em sua sociedade
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não exista um termo de linguagem para expressá-Ia, como por exemplo sentir
"saudade" em culturas que não possuem essa categoria.
Página
Assim, as emoções são consideradas fenômenos que acontecem no corpo,
tanto em função de sua origem quanto também de suas manifestações. Como já
afirmamos, essa estreita relação entre emoção e corpo estaria em contraste com a
associação entre razão e mente. Essa oposição mostra como estas noções estão
vinculadas e como recebem valores distintos, questão que Lutz (1988) analisa com
atenção. Em muitos contextos, considera-se a mente superior ao corpo, e do mesmo
modo a razão em relação à emoção. A razão como característica da mente permitiria o
conhecimento, o planejamento, o progresso, o domínio sobre o mundo natural, do
qual o corpo, e também as emoções, fariam parte. O corpo e a emoção podem ser
controlados pela mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais
involuntários e mais incontroláveis. Enquanto a razão e a mente colocariam o ser
humano em um plano distinto e acima hierarquicamente de outras espécies animais,
as emoções e as necessidades corporais o igualariam a elas. Assim, o caráter mais
incontrolável das emoções daria à pessoa mais emotiva uma vulnerabilidade e ao
mesmo tempo uma aura perigosa que a pessoa mais racional não teria.
Por outro lado, nem sempre a emoção é menos valorizada que a razão. Em
alguns contextos os termos se invertem e a emoção torna-se uma força positiva,
criadora, natural e autêntica. Constituiria também a dimensão mais verdadeira da
subjetividade individual. Em contraste, a razão representaria, nessa visão, o
pensamento consciente tomado como artificial. Afinada com esses sentidos,
encontramos também a ideia de que a emoção é sinal de acolhimento e humanidade,
tanto em relação à frieza e distanciamento do racional, quanto à fisicalidade dos
instintos nos animais. Nessa ótica, então, a pessoa mais emotiva seria mais
comprometida, mais envolvida, mais humana, em oposição à alienação e à frieza da
pessoa mais racional.
Nesse modo de pensar ocidental moderno, alguns grupos de pessoas são
considerados mais emotivos do que outros, qualidade que implica os atributos
positivos e negativos já discutidos. As crianças são vistas como mais emotivas, pois
ainda não desenvolveram seu domínio da razão. Lutz (1988) também chama a atenção
de que, durante muito tempo, para os segmentos médios e altos da sociedade
euroamericanas, pessoas negras e pobres em geral, bem como os povos tidos como
primitivos, eram também pensadas como tendo menos controle sobre suas emoções,
sendo mais vulneráveis e ao mesmo tempo perigosas. Entretanto, o grupo que ainda
hoje é fortemente associado às emoções são as mulheres. Com seus comportamentos
tidos pelo senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos
hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos
racionais. Se essa caracterização é negativa em várias situações, principalmente no
mercado de trabalho, em outros contextos é positiva e valoriza as mulheres como mais
acolhedoras e cuidadosas nas relações do que os homens. De um modo geral, a
qualificação de pessoas como mais emotivas revela-se elemento de relações de poder
nas quais se justifica a subjugação da parte mais fraca em virtude de seu menor
controle sobre as emoções, demonstrando a dimensão micropolítica dos sentimentos
que discutiremos mais detalhadamente no capítulo 3.
12

O olhar das ciências sociais


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Quando tratamos esse conjunto de ideias como uma etnopsicologia,


apontamos para o fato de que tal sistema de conhecimento é relativo no tempo e no
espaço, problematizando assim o pressuposto fundamental das emoções como
essências constantes e presentes em todos os seres humanos. Para embasar essa
afirmação, é preciso repassar os elementos dessa visão de mundo apresentados antes
e analisá-los.
O primeiro ponto em questão é a relação entre as emoções e o corpo. A ideia
de que certos processos corporais, como a produção de hormônios. causam ou afetam
as emoções é problemática em função das mudanças no próprio conhecimento da
medicina. Como Juer (2007) discute, a noção de hormônio como substância secretada
em certas partes do corpo só surge ao longo do século XX. A forma de pensar a
distinção entre corpos femininos e masculinos que estaria por trás de parte da
discussão sobre hormônios já variou ao longo da história, como demonstra Laqueur
(1990). Na Grécia antiga, o corpo feminino era pensado como a imagem invertida do
corpo masculino, de tal maneira que a diferença entre eles era de graus e não de
substância, como vem a ser a partir do século XIX. Assim, atribuir tal ou qual
característica emotiva as mulheres em função dos hormônios mais presentes em seus
corpos é uma visão que não existia nas sociedades ocidentais um século atrás.
Pode-se argumentar que essas visões não são novas leituras e sim
"descobertas" de "fatos científicos" até então desconhecidos. Mas, como Foucault
(1977), Bourdieu (1983) e muitos outros já demonstraram, a ciência não é um campo
neutro, pois os cientistas são, antes de tudo, pessoas que vivem em sociedades e
momentos históricos específicos. O conhecimento produzido pela ciência é
atravessado por relações de poder que disputam o que é legítimo, verdadeiro ou não.
Neste sentido, o corpo, na análise de Foucault (1977), torna-se, a partir do século XVIII,
objeto de escrutínio, tanto em termos de sua utilização quanto de sua explicação, e
algo de novas formas de poder que o disciplinam sob todos os aspectos. Os cuidados
do corpo, através de dietas, exercícios, medicamentos preventivos etc., revelam não
apenas as preocupações tem torno dele, mas também um controle estrito e detalhado
de tudo o que acontece com ele. Foucault discute como em torno do corpo
desenvolvem-se saberes – médicos, psicológicos, jurídicos, demográficos – que
atravessam vários campos de poder, pensando-o não apenas como controle e
repressão, mas também como produtor de práticas e interesses. A medicina em
particular implica um campo de conhecimento que segmenta o corpo em partes como
forma de construção de saber para então articulá-lo e regulá-lo, para torná-lo cada vez
mais produtor e eficiente. Assim, a medicalização do corpo implica não apenas um tipo
de conhecimento que reflete as relações de poder de sua sociedade e sua época, mas
também uma forma de cuidar dele marcada por um extenso detalhamento que
objetiva discipliná-Ia.
Como exemplo da relativização do discurso médico, Martin (1997), em sua
análise de manuais de medicina, observa que a linguagem descritiva da concepção
humana espelha noções culturais encontradas nas sociedades ocidentais modernas
sobre homens e mulheres. Assim, na reprodução, o óvulo foi durante muito tempo
pensado como um elemento passivo a ser penetrado pelo espermatozoide, a parte
ativa no processo, reproduzindo assim ideias sobre os papéis das mulheres como
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passivas e os homens como ativos nos encontros amorosos. Mesmo quando na década
de 1980 surgiu uma visão mais interativa e o óvulo passou a ser visto também como
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participante ativo da concepção, os termos usados para descrever essa participação tal
como o óvulo "prende" o espermatozoide refletem uma visão da mulher como
ameaçadora e perigosa e mantêm ainda o gameta masculino no papel principal da
fertilização.
A questão principal aqui é que o modo como entendemos e vivenciamos o
corpo é sempre mediado pelas formas de pensar cultural e historicamente construída:.
Assim, torna-se difícil separar o que seria um fato biológico de um fato cultural.
Embora seja inegável que na espécie humana o corpo possui uma mesma estrutura
orgânica: a percepção da morfologia e da fisiologia corporal varia muito. Para citar um
exemplo clássico na antropologia, em sua análise sobre as ilhas Trobriand, Malinowski
(1986) mostrou como os trobriandeses pensavam a concepção e a gravidez excluindo a
participação biológica dos homens. Sua percepção da fisiologia humana atribuía aos
rins a produção de fluido seminal enquanto os testículos eram vistos como adornos
para tornar o pênis apresentável. Para eles, o fluido seminal masculino não contribuía
para a concepção, que ficava ao encargo dos espíritos dos antepassados da mulher. Na
argumentação d.e Malinowski, essa representação era congruente com a orga nização
social dos trobriandeses, baseada na matrilinearidade, um sistema de parentesco no
qual a descendência é traçada do irmão ou outros parentes masculinos da mãe para
seu filho. Assim, tanto a transmissão de direitos e deveres quanto o reconhecimento
de descendência entre gerações excluíam a figura do pai, explicando portanto sua
ausência nos processos de concepção e gravidez. Mas este mantinha sua Importância
social para a unidade doméstica, devendo cuidar tanto da mulher quanto da criança.
Uma vez que as ideias sobre como o corpo funciona são diversas, assim serão
também as formas de relacioná-Io às emoções. Dessa maneira, o modo como
explicamos as emoções tendo origem em certos processos corporais torna-se parte de
uma visão culturalmente específica sobre o corpo, mas não é uma associação
universalmente feita. Faz parte da nossa etnopsicologia, mas não de outras. Isso
implica problematizar a qualidade de universalidade das emoções em função de uma
unidade biológica e psíquica dos seres humanos. Novamente, se esse aparato biológico
e psíquico é uniforme, as percepções sobre ele não o são, o que conduz também a
experiências corporais e psicológicas muito variadas, posto que são sempre mediadas
pela linguagem que é um elemento da cultura.
Isso não quer dizer, entretanto, que não podemos propor uma visão teórica
sobre a relação entre o corpo e as emoções. Alguns autores (Abu-Lughod e Lutz, 1990;
Fajans, 2006) argumentam que as emoções são fenômenos incorporados, situados no
corpo, sem que isso signifique afirmar que sejam "naturais". Fajans (2006) defende
que, embora as emoções possam surgir inicialmente em um bebê como reações
biológicas a estímulos externos, elas são lembradas desde cedo como parte de um
contexto de interação social, e não são pensadas de forma isolada. As emoções
tornam-se então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com
o ambiente social e cultural, que são internalizados no início da infância e acionados de
acordo com cada contexto. Assim, como ressaltam Abu-Lughod e Lutz, o aprendizado
de como, quando e por quem certo sentimento deve ser manifestado inclui a aquisição
também de um conjunto de técnicas corporais que Incluem expressões faciais, gestos
e posturas (1990:12).
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Essa visão da relação entre corpo e emoção problematiza várias ideias já


discutidas. Primeiro, temos a noção de que, embora seja possível reconhecer a
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variedade cultural de formas de expressar as emoções , o sentimento em si seria da
ordem de uma essência humana e, portanto, mais invariável.
Contudo, se a lembrança das reações emotivas está sempre associada ao
contexto de interação que as produziu, já temos o fato de que o sentimento não é
sentido de forma abstrata nem independente de interações sociais específicas. Além
disso, desde muito cedo o aprendizado da linguagem passa a mediar a experiência, de
modo que se torna difícil separar o sentimento de sua percepção e expressão, mesmo
que esta aconteça apenas para o próprio indivíduo. Assim, a distinção entre sentir e
expressar tem relevância teórica nessa etnopsicologia ocidental moderna, que parte
de uma visão específica de sujeito cujos sentimentos localizam-se em uma
interioridade que nem sempre é manifestada publicamente. Integra, portanto, uma
visão de mundo particular. Torna-se, entretanto, teoricamente problemático para
estudos comparativos feitos em outras sociedades.
Outra ideia questionada pelas ciências sociais é a que atribui às emoções um
caráter impulsivo, de reações que, como os fenômenos corporais, até certo ponto
fogem ao controle da pessoa. Porém, se levarmos em conta que desde cedo na
infância se aprende como, quando e com quem expressar os sentimentos, torna -se
difícil encontrar um estado inicial no qual as emoções seriam vivenciadas em estado
puro, de forma espontânea e sem controle algum. O que vemos é um aprendizado
emocional que, por ser internalizado muito cedo, deixa de ser percebido como uma
forma controlada de viver os sentimentos. Isso não anula o fato de que as pessoas em
certas situações percebem regras explícitas de como expressar suas emoções,
sentindo-se assim obrigadas a se manifestar de uma dada maneira, enquanto, em
outros momentos, nos quais as normas não são evidentes, acreditam na
espontaneidade de suas expressões, conforme veremos no próximo capítulo.
Há, portanto, entre as sociedades formas distintas de lidar com o controle
emotivo, com conjuntos variados de regras que também apresentam graus diversos de
explicitação. Como veremos com mais profundidade no capítulo 4, o estudo clássico de
Elias (1993) mostra as várias formas de controle emotivo ao longo do processo
civilizador nas sociedades ocidentais. Se, nos últimos séculos, surgiu a necessidade de
autocontrole sobre o corpo e as emoções a ser mantido pelo sujeito em todas as
situações, antes, o controle era exercido em alguns contextos, mas não em todos, e
era monitorado de fora para dentro, ou seja, pelos outros principalmente. A questão é
que atualmente, em muitas situações, esse autocontrole é percebido como a forma
natural de o sujeito se expressar, embora esse modo também tenha sido aprendido e
regrado.
Este último ponto vai problematizar também a oposição feita entre emoção e
razão, fonte de outras associações e valorações, como explicamos na seção anterior. O
aprendizado das emoções na infância tem necessariamente uma dimensão cognitiva,
qualidade geralmente pensada como racional. Além disso, se as emoções são desde
sempre regradas, a ideia de uma pulsão que existe à parte de um controle exercido
pela razão deixa de fazer sentido nessa perspectiva. Michelle Rosaldo (1984)
desenvolve bem esta questão quando diz que a emoção recebe sua forma do
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pensamento e o pensamento é sempre carregado de emoção. A diferenciação entre


eles, que ela denomina uma cognição "quente" e outra "fria", não seria de substância,
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mas sim em termos do envolvimento do sujeito. Assim, ela define que "as emoções
são pensamentos de alguma maneira 'sentidos' em rubores, pulsações, movimentos
do fígado, mente, coração, estômago, pele. São pensamentos incorporados,
pensamentos permeados pela percepção de que 'estou envolvido'" (1984:143,
tradução nossa).
A distinção entre emoção e pensamento é exemplificada, pela autora, através
da diferença entre escutar e sentir o choro de uma criança, como quando se percebe
que há algum perigo ou que a criança que chora é seu filho.
Portanto, as emoções, embora situadas no corpo, têm com este uma relação
que é permeada sempre por significados culturalmente e his toricamente construídos.
A visão de que as emoções são fenômenos universalmente compartilhados, posto que
fruto de uma unidade biológica e psicológica do ser humano, é problematizada pelas
ciências sociais, que a toma como elemento da etnopsicologia ocidental moderna.
Ilustraremos, na seção a seguir, o caráter cultural das emoções com a análise de dois
sentimentos específicos: o medo e a raiva, emoções frequentemente atribuídas a uma
essência humana universal.

O medo
O medo é um sentimento que ocupa lugar de destaque em alentadas análises
das transformações por que passou a sociedade ocidental moderna, como é o caso das
obras de Norbert Elias e Jean Delumeau. Suas perspectivas compartilham um traço
fundamental: a afirmação da universalidade da experiência do medo, entendida como
inerente à espécie humana, em combinação com uma perspectiva historicista que
atenta para as várias configurações que este potencial humano pode receber.
Em seu estudo sobre a natureza do processo civilizador, Elias (1993) atribui ao
estudo do medo um lugar estratégico na compreensão das formas do controle social.
Para Elias, o medo é um canal de transmissão das estruturas sociais à estrutura
psicológica individual. Incutir medo seja através de punições ou ameaças explícitas ou
de mecanismos velados de negação da aprovação social está entre as estratégias de
socialização pelas quais valores e normas são transmitidos de geração para geração,
passando a ser "adotados" pelo indivíduo como objetivos "seus", os quais, se não
atingidos, poderão gerar sentimentos de fracasso, perda de autoestima etc. O medo
está assim entre os sentimentos com os quais o indivíduo exerce o autocontrole, em
um aprendizado que, conforme veremos mais adiante, está para Elias no cerne do
processo civiliza dor.
O potencial de sentir medo, em sua visão, faz parte da natureza humana.
Entretanto, as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa capacidade são fruto de
circunstâncias históricas e culturais. É neste sentido que Elias inventaria, entre os
medos modernos, o temor de perder o emprego ou de cair na miséria, entre os grupos
sociais de menor poder aquisitivo; ou, entre as camadas médias e altas, o receio da
degradação social ou da perda de prestígio.
Os medos mudam ainda em função de outras variáveis, tais como o "medo de
sobrar" identificado por Novaes (2006) entre jovens brasileiros quando falam de suas
expectativas em relação ao mercado de trabalho; ou o "medo de mostrar medo",
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analisado por Gay (1995) em seu estudo sobre os duelos travados por jovens
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universitários alemães.
Essa perspectiva, em que o medo é visto como um potencial universal que se
realiza de formas particulares a cada contexto histórico e social, é adotada também
por Delumeau (1989). Nessa obra, ele propõe fazer uma história social do medo na
sociedade ocidental entre os séculos XIV e XIX. Seu argumento é que a necessidade de
segurança desempenhou um papel significativo na história das sociedades humanas,
que entretanto foi pouco compreendido em função da vergonha de admitir o medo.
Com a valorização nos séculos XIV e XVI da coragem, principalmente entre os nobres e
os cavaleiros, o medo figurava pouco nas crônicas da época, aparecendo basicamente
como característica do povo, da massa, e portanto razão de sua sujeição. Com a
Revolução Francesa, houve um discurso semelhante mas invertido, no qual o medo era
também camuflado para "exaltar o heroísmo dos humildes" (1989:15). Aos poucos,
durante o século XIX, a literatura passou a se preocupar abertamente com o medo.
O autor apresenta uma visão do medo que, embora remeta a qualidades
essencialistas, adquire configurações sociais distintas ao longo da história. Para ele, o
medo decorre de uma necessidade de segurança que "está na base da afetividade e da
moral humanas" (1989: 19). Entretanto, a própria afetividade está mergulhada na
"natureza social do homem", de forma que tanto indivíduos quanto coletividades
constroem sua segurança e seus temores em função de laços sociais significativos com
a mãe, no caso das crianças, ou com o grupo dominante, no caso de minorias. Assim,
ele argumenta, um grupo dominante que recusa a relação com dominados engendra
neles medo e ódio. Exemplificando, relata como os vagabundos do Antigo Regime, na
França, provocaram em 1789 o "Grande Medo" dos proprietários e a ruma dos
privilégios jurídicos sobre os quais a monarquia se assentava.
Ele distingue entre tipos de medos espontâneos e refletidos, cíclicos e
permanentes que ora afligiam amplos segmentos da população, ora alguns setores
específicos. Os medos espontâneos podiam ser permanentes, associados a certo nível
técnico (por exemplo, medo do mar ou de fantasmas), ou cíclicos, como medo das
pestes ou dos aumentos dos Impostos. Como exemplo dos medos refletidos,
Delumeau analisa o papel da Igreja em construir adversários para os homens como
turcos, judeus, heréticos e as mulheres (especialmente as feiticeiras).
Em ambos os estudos, vemos que o sentimento do medo surge associado a
noções de perigo e risco que ameaçam o indivíduo – seja sua integridade física, sua
autoimagem ou sua posição social – ou um determinado grupo social. E importante
frisar que essas noções são construídas histórica e socialmente, como mostram
Delumeau e Elias, e o medo torna-se também uma resposta socialmente regra da a
situações percebidas como ameaçadoras. Assim, a universalidade da experiência do
medo, que eles atribuem a uma essência inerente aos seres humanos, pode ser
relacionada ao fato de que todas as sociedades e os indivíduos que as compõem lidam
com ameaças a uma estrutura física e social que é construída, não sendo portanto
garantida nem certa.

A raiva
Essa mesma perspectiva um potencial universal realizado sob formas histórica
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e culturalmente variáveis pode ser encontrada na análise do ódio feita por Gay (1995)
com base na experiência, já mencionada, dos duelos universitários entre jovens
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alemães.
O Mensur é um duelo de sabres popular entre jovens pertencentes às
fraternidades que povoavam o mundo universitário alemão no século XIX. Seu objetivo
principal era infligir e, paradoxalmente, obter cicatrizes, preferencialmente no rosto. A
sutura dos ferimentos, realizada pelos estudantes de medicina, era muitas vezes feita
de maneira propositadamente tosca, com o objetivo de produzir uma cicatriz nítida
insígnia corporal da coragem. Expor-se em um combate capaz de produzir, diante de
uma plateia entusiasmada, ferimentos deste tipo era motivo de grande ansiedade
entre os jovens estudantes, produzindo, entre outras manifestações subjetivas, aquele
medo comentado acima o medo de demonstrar medo. Inúmeras podiam ser as razões
para duelar, muito embora o duelo fosse com frequência um fim em si duelava -se para
prçvar aos outros, e portanto a si mesmo, que se podia fazê-lo, e com isso afirmar sua
própria honra. Assim, muitas vezes não era uma ofensa que provocava o duelo, mas o
contrário: buscava-se uma ofensa capaz de justificar um duelo. Como exemplo
extremo dessa motivação, podemos citar o caso narrado por Gay em que a clássica
associação entre honra masculina e duelos aparece quase invertida: a história do
estudante que, apesar de apavorado, lutou até ser golpeado no rosto de forma a
deixar uma cicatriz, afirmando fazê-Io "por amor", mas não porque outro homem
tivesse assediado sua noiva – ao contrário, ela mesma assim lhe pedira que fizesse,
para obter "uma bela cicatriz" ...
A que necessidade atende, então, o Mensur? Para Gay, a agressividade é um
impulso inato do ser humano, e a explicação para fenômenos como esse tipo de duelo
está no duplo sentido do termo "cultivo". Ao forjarem razões para se agredir, os
rapazes estariam ao mesmo tempo dando vazão a um impulso primário e moldando-o
segundo normas sociais, incentivando-o e controlando-o. O Mensur seria assim um
exercício em que se combinariam dois aspectos fundamentais da natureza humana: o
impulso para agredir ("ódio" ou "raiva") e a necessidade, exigência da convivência com
o outro, de conter esse impulso. Fazer correr por canais socialmente aprovados o fluxo
da agressividade é assim simultaneamente uma maneira de cultivá-Ia, fazendo-a
florescer, e de cultiváIa, domesticando-a.
Sob outra perspectiva, que prioriza sua dimensão sociocultural, o sentimento
da raiva recebeu também bastante atenção no campo da antropologia das emoções
por ser uma emoção que põe em questão as relações sociais em jogo. Escolhemos
mostrar como o sentimento é experimentado em sociedades distintas, contrastando a
análise de Katz (1988) sobre raiva nos Estados Unidos com a etnografia de Lutz (1988)
sobre os Ifaluk, na Micronésia.
Katz (1988), em seu estudo sobre as seduções do crise, detém-se nas
motivações de pessoas que matam por questões que consideram legítimas. Ele abre
sua análise com o caso de um pai que espanca seu bebê de cinco semanas até a morte,
porque a criança não parava de chorar. O autor aponta. que, nesse assassinato
"justificável" (righteous slaughter), a interpretação da cena não difere muito de
eventos cotidianos em que pais demandam respeito e reagem a desafios e
provocações com castigos físicos. A questão em jogo naquele episódio específico teria
sido uma interpretação do choro da criança como desafiador e desrespeitoso, e o uso
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da violência como forma de restabelecer a autoridade paterna.


Com uma abordagem interacionista e comparando dados de diversos processos
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judiciais, o autor destaca que esse tipo de interpretação é comum em várias cenas de
interação anteriores a essa modalidade de crime que produzem um processo emotivo
específico, exigindo assim uma organização de comportamento particular. Katz
destaca então três aspectos que marcam a experiência do assassino: o ato de matar
torna-se uma forma de defender valores coletivos: o ataque é conduzido sem
premeditação, à base da raiva e da ira; e a vítima é marcada por meio de xingamentos
de modo que o assassino possa restituir o bem. A vítima é interpretada como alguém
que desafia o assassino moralmente, de maneira que o assassinato torna-se então a
última instância de defesa da respeitabilidade.
Nessa análise, Katz dedica-se aos sentimentos de humilhação e de raiva como
parte da engrenagem da ação. Embora a análise da humilhação seja aprofundada no
capítulo 3, queremos mostrar aqui como essa emoção transforma-se na raiva. O
sentimento de humilhação surge quando o indivíduo experimenta ser um objeto
pressionado por forças fora de seu controle. Neste caso, o sujeito acredita na intenção
dos outros de degradarem a sua pessoa. A humilhação pode se transformar em raiva e
ódio quando, segundo Katz, a pessoa acredita que o único modo de resolver esse
sentimento é inverter a estrutura que o originou o movimento de inferiorização ou
degradação percebido no outro. Nessas situações, quando a imagem pública da pessoa
é manchada, como nos casos de infidelidade conjugal que muitas vezes levam aos
assassinatos "justificáveis" que Katz examina, perde-se o domínio sobre a identidade e
produz-se a ira. Assim, a raiva e o ódio são tingidos de consciência da humilhação,
havendo uma percepção de dominação moral que toma conta fisicamente da pessoa.
Neste sentido, a raiva do outro é sempre uma confirmação da humilhação, cuja
superação e transcendência passam por ações movidas pela ira.
É importante destacar alguns pontos na análise de Katz sobre a raiva e o ódio. A
articulação da raiva com a humilhação põe em relevo a identidade da pessoa que é
afetada pelo evento que produz esses sentimentos. Como o respeito pela imagem
pública de uma pessoa é um valor importante nessa sociedade, há portanto um forte
componente moral na raiva, para além de um sentimento que o indivíduo sinta
privadamente. Está em questão assim não apenas a pessoa que sente a raiva mas
também o conjunto de relações sociais ao seu redor como os outros irão vê-lo e se
relacionar com ele.
A etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk oferece um contraste interessante e
revelador sobre o sentimento da raiva. A categoria song, que ela traduz como "raiva
justificada", é um dos principais conceitos usados para expressar julgamentos morais
nessa sociedade. Ao contrário da noção americana de raiva, que fala de eventos que
frustram desejos individuais, a raiva justificável dos Ifaluk manifesta-se para condenar
socialmente certos acontecimentos e assim conduzir aos comportamentos valorizados
coletivamente.
Ela explica que os Ifaluk reconhecem vários tipos de raiva, como a irritação que
vem com uma doença ou a raiva frustrada com infortúnios ou eventos que fogem ao
controle da pessoa. Mas todas essas formas distinguem-se do sentimento da raiva
justificável e são alvo de crítica e reprovação. A emoção song é tratada como a
sensibilidade moral que toda pessoa deve ter e é por isso aceita como legítima.
19

O cenário de interação que produz o sentimento da raiva é aquele em que há


uma violação de regras ou valores que é apontada por uma pessoa que abertamente
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condena o ato. O responsável pelo ato então reage com medo dessa raiva, temendo
que a pessoa zangada se torne violenta, e corrige assim seu comportamento. Lutz
apresenta alguns contextos mais comuns nos quais a emoção song é expressa. Quando
jovens rapazes que haviam bebido voltaram à noite para a aldeia, agindo
ruidosamente e contrariando assim o estilo calmo e pacífico dos Ifaluk, muitas pessoas
temeram a raiva justificável dos chefes, os líderes morais considerados os responsáveis
pelo bem-estar da ilha e seu povo. Outro contexto comum em que se manifestava o
sentimento era quando uma pessoa deixava de cumprir com a obrigação de dividir
com os outros. Compartilhar tudo desde comida, trabalho e até as crianças era um dos
principais valores dessa sociedade e em torno dele surgiam conflitos cotidianos. Assim,
quando alguém achava que o outro não estava dividindo como esperado, declarava
sua raiva justificável como forma de afirmar uma determinada interpretação dos
acontecimentos, o que às vezes era contestado pela pessoa acusada. Com frequência,
a possibilidade de que alguém viesse a expressar esse sentimento tornava-se uma
razão explícita para dividir com o outro. Na educação das crianças também recorria -se
muitas vezes à emoção song para sinalizar que algum valor não estava sendo
observado e que a criança estava apresentando um mau comportamento.
Há também um componente ideológico no acionamento dessa categoria
emotiva, que contribuía para a manutenção das relações de poder. Como explica Lutz,
através das manifestações de raiva justificável era possível delinear a hierarquia social
dos Ifaluk. Assim, chefes sentiam raiva dos membros da comunidade, adultos das
crianças, mulheres mais velhas das mulheres mais novas, e irmãos de suas irmãs mais
novas. A direção em que a raiva justificável seguia era sempre para baixo na escala
social. Em alguns casos, esse sentimento era usado para tentar alterar as relações de
poder, como entre irmãos ou entre as mulheres e seus maridos, mas nunca entre o
povo e seus chefes.
De um modo geral, portanto, a expressão da raiva justificável servia para
estimular comportamentos adequados aos valores sociais, tanto em crianças quanto
em adultos. Ela sintetiza que "o conceito de song é particularmente útil na organização
do desvio social e na proteção dos interesses pessoais que são afetados por tal desvio.
Simultaneamente, [os roteiros de interação gerados a partir desta emoção] promovem
a reprodução de relações interpessoais gentis que caracterizam a ilha" (1988:176).
Lutz destaca alguns elementos dessa concepção Ifaluk de raiva justificável que
contrastam com a visão norte-americana de raiva. Esta implica sentimentos de ofensa,
injúria ou frustração que impediriam a pessoa de agir da maneira desejada. Neste
sentido, a raiva seria uma resposta a essa contenção pessoal que é sentida como uma
violação do princípio moral da liberdade individual. Aqui, estaria em questão uma
visão do indivíduo como um centro de direitos, distinta da concepção Ifaluk que toma
a pessoa como componente de relações. Além disso, apesar de ressaltar um valor
moral Importante para os americanos, a raiva é considerada um sentimento
antissocial, que pode gerar comportamento agressivo. Por outro lado, a retenção da
raiva também não é bem-vista em função da ideia de uma emoção que precisa ser
expressa para não "explodir" de forma violenta.
Em comum nas duas sociedades e aqui acrescentamos pontos colocados por
20

Katz –, encontramos que a expressão dos sentimentos de raiva fala da violação de


valores culturais importantes, seja o controle de si e de sua identidade ou o
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compartilhamento de bens e pessoas. Daí que, nas situações em que a raiva está em
questão, há sempre um julgamento moral do responsável pelo ato que produz essa
emoção. Assim, em ambas as sociedades os modos de lidar com a raiva funcionam
como formas de controle social. Lutz aponta também que as semelhanças entre a raiva
e song surgem do fato universal de que há divergências entre os mundos ideal e real e
delas resultam conflitos. Neste sentido, ambos os conceitos são usados para dar
sentido e lidar com a discrepância moral e o conflito interpessoal. Como ela sintetiza,
“o que difere e a interpretação que cada um faz do que são mundos reais e ideais e o
quão vigorosamente, coletivamente, verbalmente ou não verbalmente se resolve o
problema ou a ofensa" (1988:181).

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Capítulo 2

Emoções: individuais ou sociais?


As ciências sociais têm no par indivíduo-sociedade uma oposição fundadora.
Entre os clássicos, Émile Durkheim e Georg Simmel a elegeram como eixo em torno do
qual formularam seus projetos teóricos para a recém-criada disciplina. Naquele
momento, esses esforços iniciais de fundação da sociologia eram voltados para a
demarcação de um campo próprio de atuação intelectual, em larga medida tomando a
ciência da psicologia como" outro" diante do qual delimitar uma abordagem particular
do ser humano.
Deriva daí uma dificuldade histórica para a possibilidade de construção da
emoção como um objeto das ciências sociais. Associada, como vimos no capítulo
anterior, na etnopsicologia ocidental ao domínio da psicologia individual, a emoção é
entendida, no senso comum das sociedades modernas complexas ocidentais, como
algo que diz respeito à singularidade psicológica do sujeito, o que a tornaria portanto
refratária a condicionamentos de natureza sociocultural. A emoção "autêntica" seria
aquela que emana do íntimo de cada um, tendo raízes nas histórias de vida
particulares, no que a sociedade e a cultura não teriam qualquer participação.
O exercício que propomos neste capítulo é uma desconstrução dessa visão da
emoção como um aspecto da experiência humana que seria, por sua natureza
individual, refratária a uma abordagem socioantropológica. Para isso, retomaremos na
primeira seção as formulações de Durkheim e Simmel em seus textos programáticos,
contrastando-as com a maior sutileza de outros trabalhos em que os autores se
voltaram para o estudo de emoções ou estados emocionais específicos, quando
podemos entrever então um esforço de encompassamento da emoção como um
objeto de estudo possível. Em seguida, exporemos a maneira como Marcel Mauss fez
avançar a compreensão dessa tensão indivíduo-sociedade no estudo das emoções,
com uma exploração do modo como o obrigatório e o espontâneo entrelaçam-se na
experiência emocional individual. Na segunda seção, analisaremos alguns sentimentos
selecionados explicitamente pelo seu potencial para a compreensão dessa tensão
individual-social na experiência das emoções.

O lugar da emoção nas ciências sociais: formulações clássicas

Georg Simmel e a oposição forma-motivação


Em "O problema da sociologia", cuja publicação original data de 1908, o
sociólogo alemão Georg Simmel esboçou um projeto teórico no qual buscou definir o
objeto da sociologia. Sua proposta baseia-se em uma concepção da sociedade como
formada pela interação entre indivíduos. Para Simmel, interagir é "relacionar sua
condição com a do outro", ou seja, levar em conta, na forma de agir, a presença ou
existência de um outro. Toda interação é composta por uma "forma" e uma
"motivação". A "motivação" é o conteúdo, o interesse ou objetivo do indivíduo q ue se
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engaja em uma interação; a "forma" é o modo, um formato por meio do qual aquele
conteúdo passa a existir.
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Forma e motivação, contudo, não constituem pares fixos. Há um sem-fim de
motivações, que podem ser eróticas, associativas, cooperativas, competitivas,
agressivas, religiosas etc.; há também incontáveis formas através das quais essas
motivações ganham realidade, tais como jogos, guerras, casamentos, grupos de ajuda
mútua, igrejas, partidos, clubes ou sindicatos. Os elos entre formas e motivações s ão
também fluidos, no sentido de que tanto uma mesma motivação pode assumir formas
diversas o impulso erótico pode, por exemplo, levar ao casamento (monogâmico ou
poligâmico), ao adultério, ao "ficar com" etc. quanto uma mesma forma pode ser
gerada por motivações distintas o casamento pode ser motivado pelo amor, pela
atração sexual, pela necessidade/desejo de estabelecer uma relação de aliança, por
interesses pecuniários etc.
Do ponto de vista empírico, forma e motivação são indissociáveis: nenhuma
forma de sociação é imotivada, nenhuma motivação é amorfa. Toda e qualquer
motivação só pode ganhar realidade sob uma forma socialmente estabelecida, do
mesmo modo como toda forma precisa de uma motivação para existir. Entretanto, do
ponto de vista conceitual, Simmel as separa de maneira a propor uma definição da
"unidade de análise" da sociologia: a forma. Usando o exemplo do ódio entre ex-
companheíros, ele afirma que, como ocorrência, trata-se inegavelmente de um
fenômeno psicológico. A pergunta "sociológica", contudo, seria dirigida às categorias
de "união" e "discórdia". O autor é enfático ao afirmar que os dados da sociologia são
processos psicológicos, os quais contudo estariam fora do escopo analítico da
sociologia, sendo preciso deles abstrair a "realidade objetiva da sociação".
Contudo, essa nitidez com que ele separa o psicológico do sociológico em um
texto de natureza programática fica esmaecida quando volta sua atenção para a
análise de sentimentos. Um exemplo seria o texto "Fidelidade e gratidão", em que
discute sua contribuição essencial para a estabilidade e coesão da vida social. A
fidelidade é descrita como um sentimento" sociologicamente orientado", ou seja, em
vez de gerar novas relações, ela decorreria da antiguidade de uma relação. Já a
gratidão seria o sentimento que motivaria a reciprocidade, mesmo na ausência de
coerções externas. O ponto fundamental aqui é a atenção que Simmel dá, ao examinar
o problema da coesão social, à dimensão afetiva da estabilidade das formas sociais,
permitindo-nos assim entrever uma concepção da relação forma-motivação mais
nuançada do que aquela esboçada em seu texto programático.

Émile Durkheim e o "fato social"


Em 1895, Émile Durkheim (1984) formula seu projeto teórico-metodológico
para a nova disciplina da sociologia em um texto que integra hoje o cânone das
ciências sociais. Neste pequeno livro, postula como unidade de análise o "fato social".
Este é definido como algo que "existe fora das consciências individuais", sendo capaz
de exercer uma ação coercitiva sobre a vontade individual.
Esse poder de coerção, contudo, é algo além de uma característica, entre
outras, do fato social: é uma espécie de "prova dos nove" para estabelecer a natureza
social de um fato. Para Durkheim, é ao ser capaz de coagir a vontade individual que um
23

fenômeno estabelece sua condição de "social", uma vez que atesta assim a
externalidade, em relação à consciência individual, de sua existência. Essa coerção
Página
pode ser exerci da de diversas formas, como por exemplo constituições, códigos
penais, condenação pela opinião pública ou costumes.
Essa importância atribuída à existência externa ao indivíduo como "atestado"
da natureza social de um fato é expressão do esforço feito pelo autor para encontrar
um lugar em meio às ciências que, no cenário intelectual em que atuava, estudavam o
homem: a filosofia, a biologia e a psicologia. Elas tinham, cada qual, sua dimensão
própria do humano para perscrutar: sua transcendência. sua fisiologia, seu psiquismo.
Ele sugere a existência de uma quarta dimensão a social -, cuja especificidade e
independência em relação às demais se empenha em demarcar como forma de criação
de um espaço de atuação intelectual que legitime falar em uma "nova disciplina".
Reencontramos assim um movimento intelectual que compartilha com o
programa de Simmel ao menos esse traço fundamental: a eleição da psicologia como
"outro disciplinar", com a exclusão de tudo aquilo que é associado ao psicológico do
escopo da sociologia. Entretanto, também na sociologia durkheimiana a oposição
indivíduo-sociedade (ou psicológico-sociológico) se complexifica em outros momentos.
Um bom exemplo é a noção de "efervescência", discutida por Durkheim ao analisar
ritos e crenças religiosas. A "efervescência" é um estado alterado da atividade psíquica
individual, que somente se produz quando o sujeito está imerso em meio a uma
coletividade, cuja marca é a intensidade. A participação em uma coletividade desse
tipo pode ainda, segundo ele, provocar a posteriori uma impressão de não
reconhecimento de si.
Essa possibilidade a existência de fenômenos coletivos capazes de alterar o
estado de consciência individual-, se, por um lado, atesta a natureza coercitiva do fato
social, por outro introduz ao mesmo tempo um matiz nessa concepção da relação
indivíduo-sociedade como uma oposição, sugerindo que o social pode estar também
dentro do indivíduo, nuançando assim a formulação programática do fato social como
aquilo que existe "fora da consciência individual".

Marcel Mauss e a expressão dos sentimentos como linguagem


É nessa direção que Marcel Mauss faz avançar a reflexão em torno do par
indivíduo-sociedade. Em um pequeno artigo no qual examina ritos funerários
australianos, ''A expressão obrigatória dos sentimentos", mostra o caráter ritualizado
da expressão dos sentimentos, que se acentua ou recua segundo momentos
socialmente demarcados na sequência ritual, obedecendo além disso a uma estética
comum. Gritos, lamentações ou lágrimas não seriam apenas expressões externas de
sentimentos oriundos do íntimo de cada um, mas, ao contrário, seriam pautados por
uma gramática comum.
Entretanto, Mauss complexifica o problema central da sociologia durkheimiana
da qual é herdeiro e continuador referente à natureza coercitiva do fato social. Se, por
um lado, a reflexão sobre o modo como o obrigatório e o espontâneo relacionam-se
na experiência individual continua central, por outro nos oferece um quadro mais
nuançado dessa relação. Para ele, a natureza ritualizada e coletiva da expressão dos
sentimentos é prova cabal de seu caráter de "fato social"; isto, contudo, não impede
24

que os sentimentos sejam espontâneos, por serem assim vivenciados por quem os
expressa. Para ele, a expressão dos sentimentos é uma linguagem, em que o indivíduo
Página
comunica aos outros aquilo que sente em um código comum, nesse movimento
comunicando também a si mesmo suas emoções.
Surge assim um modelo teórico para se pensar as emoções como objeto das
ciências sociais cuja contribuição maior está na porta que abre para construirmos,
como objeto de nossa reflexão, a percepção ocidental moderna das emoções como
provenientes do íntimo de cada um, em vez de deixarmos que esta representação
tolde a possibilidade de reconhecermos a experiência emocional como algo histórica,
social e culturalmente configurado. Esta tensão é o eixo que orienta a análise dos
sentimentos que examinaremos a seguir.

As gramáticas dos sentimentos


Estar só ou estar com o outro pode ser entendido como uma clivagem
fundamental da experiência humana, que recebe, nas várias maneiras que o ser
humano inventou para conviver, um sem-fim de configurações distintas. Escolhemos
para discutir dois sentimentos que podem ser entendidos como esforços emocionais
de fusão com o outro (o amor e a admiração); dois sentimentos suscitados pela
ausência do outro (a solidão e a saudade); e um tipo de relação engendrado pelo
desejo de estar com o outro (a amizade).

De todas as maneiras que há de amar: a concepção moderna de amor


Entre os sentimentos aos quais as ciências sociais já devotaram sua atenção, o
amor tem certamente um lugar de destaque, com sua natureza tendo sido objeto das
reflexões, entre outros, de Simmel (1993) e Luhmann (1991). As transformações
produzidas nas relações amorosas também vêm merecendo a atenção dos teóricos da
modernidade, como atestam as reflexões de Bauman (2004) sobre o "amor líquido" ou
de Giddens (2002) sobre as “relações puras".
O campo das reflexões sobre a comunicação de massa é .outro espaço pródigo
em análises sobre o amor. O foco principal é a forma como esse sentimento é
representado nas produções discursivas midiáticas. tal como na obra clássica de Morin
(1984), em que o amor é incluído no rol das temáticas centrais da indústria cultural. No
Brasil, alguns autores também envidaram esforços de reflexão sistemática sobre o
sentimento amoroso, como Lázaro (1996, 1997).
Em um artigo publicado em uma coletânea dedicada à antropologia da arte,
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977) realizaram uma análise da concepção
de amor presente na tragédia shakespeariana Romeu e Julieta, sugerindo ser uma
espécie de "mito de origem" da noção moderna de amor. O argumento apresentado
pelos autores é uma excelente "porta de entrada" para a compreensão da natureza
histórica e culturalmente construí da desse sentimento, razão pela qual o escolhemos,
em meio à pluralidade de trabalhos sobre o amor, para expor de modo mais
detalhado.
Os autores ancoram sua análise na concepção de mito de Lévi-Strauss (1975):
uma narrativa em que as sociedades discutem a si mesmas, suas tensões e
contradições. O mito não teria assim um autor individual, sua "autoria" sendo sempre
25

coletiva. O ponto central aqui é que, ainda que o mito possa ter recebido uma versão
Página

literária consagrada - como no caso do mito de Édipo em Édipo-Rei, de Sófocles, ou no


caso aqui discutido de Romeu e Julieta -, a história contada fala de tensões e conflitos
que dizem respeito a um grupo social que nele se espelha, residindo aí a razão
principal de sua perenidade. E essa concepção de mito que nos autoriza a "ler" nessa
narrativa algo mais do que a visão de seu autor, permitindo-nos ai entrever uma forma
de representar e vivenciar o amor comum a toda uma coletividade que se reconhece
nessa narrativa.
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro tomam a oposição entre holismo e
individualismo, proposta por Dumont (1992), como eixo principal para a análise da
concepção de amor presente na história de Romeu e Julieta. A partir de um exame da
lógica que orienta o sistema de castas na Índia, Dumont formula sua clássica oposição
entre holismo e individualismo: duas ideologias distintas acerca da posição do
indivíduo em relação à sociedade. No holismo, o indivíduo é concebido como parte de
um todo, com seu lugar no mundo sendo definido a partir de seu "lugar" de
nascimento, ou seja, sua identidade é conferida a partir de seu pertencimento a um
grupo familiar e do lugar deste no todo social. O nascimento em um dado grupo define
assim, entre outras possibilidades, direitos e deveres políticos, profissões ou parceiros
possíveis para casamento. O individualismo, por sua vez, é uma ideologia que entende
o indivíduo como valor supremo ao qual a sociedade estaria subordinada, sendo esta
concebida como uma "associação" de indivíduos cuja existência lhe seria anterior e
que se agrupariam por vontade própria. Nessa ideologia, a identidade é entendida
como uma construção de dentro para fora, ou seja, a singularidade individual,
combinada aos princípios da igualdade e liberdade no mundo público, seria a fonte da
construção do lugar do indivíduo na sociedade.
O holismo seria uma ideologia típica das sociedades tribais e de algumas outras
formas complexas de organização social, como a sociedade de castas da Índia; o
individualismo, por sua vez, seria a ideologia predominante no Ocidente moderno.
Entretanto, o Ocidente nem sempre teria sido individualista, tendo conhecido um
período holista na Idade Média, com a transição de uma ideologia para outra se
dando, na interpretação de Dumont, durante o Renascimento.
Ora, é exatamente nesse momento que se dá a consagração da história de
Romeu e Julieta sob a forma de tragédia por Shakespeare. É bom lembrar que a
história, em suas linhas gerais, não é uma criação original de Shakespeare, já
circulando em poemas e outras formas narrativas anteriores a sua versão teatral. O
que sua retomada durante o Renascimento e seu "sucesso" estrondoso expresso na
perenidade de seu tema nos dizem sobre a representação moderna do sentimento
amoroso?
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro realizam uma análise estrutural da
tragédia, identificando três pares de opostos que estruturam a narrativa: amor/família,
corpo/nome, alma-coração/corpo. A primeira delas é dada pelo próprio cerne da
trama: o amor que une Romeu e Julieta encontra em suas famílias de origem um
ferrenho opositor, contra o qual o casal se insurge ao casar-se em segredo.
A segunda oposição corpo/nome surge na famosa cena do balcão, em um
diálogo citado pelos autores, em que Julieta apela a Romeu para que renegue seu
nome, alegando ser o nome irrelevante em sua identidade, algo que "não faz parte
26

dele":
Página

Julieta – Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu? Renega teu pai e abandona esse
nome! Ou se não queres jura então que me amarás, e eu deixarei de ser Julieta
Capuleto!

Em ti, só o teu nome é que é meu inimigo! Tu não és Montecchio, mas tu mesmo!
Afinal, o que é um Montecchio? Não é um pé, nem a mão, nem um braço, nem um
rosto. Nada do que compõe um corpo humano. Toma outro nome! Um nome! Mas,
que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, deixaria por isso de se r
perfumosa? Assim também, Romeu, se não fosses Romeu, terias, com outro nome,
esses mesmos encantos, tão queridos por mim! Romeu, deixa esse nome, e, em troca
dele, que não faz parte de ti, toma-me a mim, que já sou toda tua!

A resposta de Romeu confirma essa cisão entre nome e identidade, em que o


sobrenome atestado de pertencimento a um grupo familiar é prontamente deixado de
lado como um entrave à vivência do amor:

Romeu Farei o teu desejo de bom grado! Por ti, trocarei seja o que for! Por ti, serei de
novo batizado! Não me chames Romeu ... mas sim o Amor!

Não, minha bela, nem Montecchio nem Romeu! Já que meu nome não te agrada, eu
não sou eu!

Citado por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977:150)

A terceira oposição alma-coração/corpo surge na peça por ocasião do exílio


imposto a Romeu pelo Príncipe, por ter desobedecido à proibição de duelar e, em um
embate, ter matado Teobaldo (parente de Julieta) ao sair em defesa de seu amigo
Mercúcio (morto também na mesma ocasião). Fisicamente afastados, contudo, Romeu
e Julieta continuam espiritualmente ligados pelo amor: é possível afastar seus corpos,
mas não romper a união entre suas almas, metaforizadas pelo" coração".
Essas três oposições podem ser sintetizadas em uma única: a oposição entre
um eu individual (amor, corpo, alma-coração) e um eu social (família, nome, corpo). Ao
melhor estilo das análises estruturalistas, vemos que os elementos deslocam-se, seu
sentido estando na relação que estabelecem com os demais elementos – é assim que
"corpo", quando oposto a “nome”, significa o eu individual, mas quando oposto a
“alma”, representa o eu social. Esta oposição entre uma dimensão individual do sujeito
e uma dimensão social, estrutura a interpretação proposta pelos autores para esta
tragédia.
Para Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, Romeu e Julieta pode ser
entendido como um "mito de origem" do amor moderno, exatamente por situar-se na
passagem de uma ordem holista para uma ordem individualista. É a convivência entre
esses dois códigos que engendra a tragédia, com o apaziguamento eventual do conflito
entre as duas ideologias destruindo as condições de possibilidade da trama.
Se não, vejamos: em uma ordem holista. Romeu e Julieta não se amariam,
plenamente reconhecidos que estariam em suas identidades dadas pelo
pertencimento a suas famílias de origem. Ou ainda, poderiam até se amar, mas
27

certamente não veriam nisso um motivo para casar-se, uma vez que o amor como
motivação para o casamento é invenção recente. Tragédia desfeita, uma vez que a
Página
mola propulsora da tragédia – o casamento em segredo, à revelia das famílias – não
ocorreria.
Por outro lado, em uma ordem individualista, Romeu e Julieta poderiam (ao
menos no plano ideal) amar a quem quisessem, e escolher seu cônjuge por questões
de foro íntimo, sem preocupações com o estabelecimento de relações de aliança
(motivação para o casamento típica das sociedades tradicionais e holistas). Suas
famílias poderiam não aprovar suas escolhas, poderiam se opor, mas dificilmente um
casal moderno, se tomado de paixão tão avassaladora. se submeteria a esses ditames.
Tragédia desfeita, uma vez que a mola propulsora da tragédia - o casamento em
segredo, à revelia das famílias - não ocorreria.
É portanto essa convivência entre códigos contraditórios, o holismo e o
individualismo, típica das fases de transição, que engendra a tragédia de Romeu e
Julieta. Tomada como mito, ela nos mostra a emergência de uma noção de amor em
que um sentimento proveniente do íntimo do sujeito o faz voltar-se contra o social, a
ele impondo sua vontade - é um sentimento embebido pela ideologia individualista.
Esse sujeito determinado de dentro, contudo, e livre em relação à sociedade,
está amarrado a ditames de outra ordem. Esse amor todo-poderoso, que o faz
enfrentar qualquer obstáculo, não é escolha sua: é de natureza cósmica, estando ele
destinado a amar aquela pessoa. Romeu e Julieta se apaixonam em um baile de
máscaras, sem que um tenha noção de quem é o outro. A determinação cósmica desse
sentimento surge aí com toda a nitidez: livre para agir em nome do amor, o indivíduo
moderno não é, contudo, livre para não amar, ou mesmo para escolher a quem amar.
O amor é assim concebido como algo que se abate sobre o indivíduo: ou será que
alguém acharia que, tendo em vista o desenlace, Romeu e Julieta escolheriam se
apaixonar um pelo outro, caso lhes fosse dada essa chance?
Vemos assim o surgimento de uma concepção de amor em que o indivíduo é
tomado por um sentimento de origem sobredeterminada, em nome do qual insurge-se
contra qual- quer determinação de ordem social que se oponha à vivência plena desse
sentimento. Mas esta é uma maneira de amar que, embora tendo em Romeu e Julieta
seu mito de origem, o transcende em muito, podendo esta narrativa ser tomada como
uma "matriz" para inúmeras outras produções discursivas contemporâneas, que lotam
o universo da comunicação de massa. São filmes, poemas, romances, letras de música,
peças de teatro, todas elas tematizando o "amor impossível", aquele que arrebata o
sujeito e em nome do qual ele move montanhas, encontrando sem tantas versões o
mesmo destino trágico de Romeu e Julieta. Os obstáculos enfrentados, contudo,
variam, ampliando o leque dos "antagonistas", que já não se restringem à família:
podendo ser guerras, morte, tempo ou mesmo a natureza. E assim em Love story ou
Ghost (a morte); em Doutor Jivago, Casablanca ou E o vento levou (guerras e
revoluções); em Em algum lugar do passado (o tempo); e em Splash ou Xanadu (a
natureza).
Nessa lista de produções cinematográficas há um pouco de tudo, entre dramas
e comédias, filmes clássicos e produções mais recentes de orientação marcadamente
comercial. Entre os clássicos, contudo, há uma constante: os protagonistas terminam
28

separados. Mas não será exatamente por isso que são clássicos, no sentido de se
eternizarem na memória do público? Se o amor está entre os temas centrais da
Página

indústria cultural e se o happy end, conforme afirmou Morin (1984), é um


compromisso desse tipo de produção cultural, não faria sentido então aventar a
hipótese de que o lugar tão central desses filmes no imaginário romântico popular do
Ocidente contemporâneo estaria justamente ligado a esses finais, que, justamente por
não serem "felizes", não seriam propriamente "finais"? Será que, por não permitirem a
seus protagonistas viverem seu amor, esses filmes permaneceriam inacabados na
imaginação de seu público, à maneira de um "gancho" de telenovela? Ou quem, entre
os aficcionados por esses filmes, nunca sonhou com a volta de Rhett para Scarlett, ou
nunca refez a cena final de Dr. Jivago, fazendo com que Lara se voltasse e o visse
agonizando na calçada?
Os temas de Romeu e Julieta, assim, ecoam até hoje em um sem-fim de
produções discursivas contemporâneas, atuando como uma "matriz" para esse
imaginário do amor romântico. Em muitas dessas narrativas, reconhecemos
essencialmente seu núcleo temático do amor impossível; em outras, um conjunto
maior dos traços apontados por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro em sua
exposição sobre as características da noção moderna de amor. É o caso de Exagerado,
composição de autoria de Cazuza, que tomamos aqui para ilustrar este lugar
"matricíal" do amor de Romeu e Julieta. Diz a letra:
Amor da minha vida Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados Na maternidade
( ... )
Eu nunca mais vou respirar Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome Se você não me amar
E por você eu largo tudo Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais
Pra mim é tudo ou nunca mais
( ... )2

O "apaixonado" de Cazuza é um sujeito que, como Romeu, afronta a sociedade,


em versão ainda mais exagerada, em nome de seu amor: ele mendiga, rouba e mata.
Aqui, a sociedade não é o único antagonista, com sua própria natureza humana sendo
também alvo de enfrentamento: ele deixa de respirar, morre de f ome. Entretanto,
heroico em sua determinação de viver seu amor, este sujeito apaixonado é submisso
diante do destino: sua vida inteira é determinada por uma instância cósmica, da
maternidade até a eternidade.
Em uma letra da música pop brasileira dos anos 1980, vemos assim
reproduzida, em pinceladas gerais, a concepção do amor moderno identificada por
Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro na tragédia renascentista "Romeu e Julieta",
sugerindo assim a acuidade de sua interpretação deste texto como um "mi to de
origem" deste amor. Esta análise, ao sugerir a relação entre este sentimento e a
ideologia individualista, é um excelente exemplo da perspectiva que entende as
emoções como construções históricas, a exemplo desta maneira de amar típica da
modernidade ocidental.
29
Página

2
Letra obtida junto ao site http://catuza.musicas.mus.br/letras/43861(. Acesso em: 29 selo 2008.
Uma outra maneira de amar: o fã e a experiência do fascínio
O amor moderno tem, entre suas características centrais, o poder de
singularizar, ou seja, de fazer o indivíduo sentir-se especial. O sujeito enamorado vive
sua paixão como algo único, que nunca alguém sentiu igual; ora, se este traço é
recorrente nas experiências da paixão, então ao menos isso todos os apaixonados têm
em comum: a convicção de que nunca alguém sentiu algo parecido antes.
Este paradoxo – igualar-se na percepção de ser diferente – é típico da
experiência moderna, consistindo em uma configuração historicamente particular
daquela tensão que Simmel (2006) já apontava como constitutiva da condição
humana: a tensão entre compartilhar, saber-se igual, e diferenciar-se, saber-se
singular. Este dilema acentua-se, evidentemente, na sociedade de massas, com seu
apelo indiferenciado à singularização. Nesta seção, queremos acompanhar o modo
como este drama é vivenciado em uma experiência indissociável da sociedade de
massas: a condição de Ia e as emoções a ela associadas, a saber, o amor e a fascinação.
Em trabalho voltado para a compreensão da experiência da fama, Coelho
(1999) analisou um conjunto de cartas endereçadas por Ias a seus ídolos televisivos,
um ator e uma atriz de grande projeção no meio televisivo brasileiro, sendo ambos
protagonistas de novelas no horário nobre da Rede Globo de Televisão. Lidas em
conjunto, estas cartas chamam a atenção por trazerem um esforço recorrente da parte
dos Ias em diferenciar-se perante seus ídolos, justificando a expectativa de uma
resposta. Este esforço é baseado em uma certeza, mais ou m:nos explícita, mais ou
menos nuançada, da própria singularidade, de ser único em meio a muitos, certeza
essa que surge sob duas formas principais: o recurso frequente à expressão "Ia
número 1", utilizada por muitos para reivindicar do ídolo o reconhecimento da
natureza diferenciada da admiração que lhe dedicam, e a utilização recorrente do
discurso amoroso para expressar a natureza de seus sentimentos.
O conjunto de cartas analisado é composto por cerca de 280 cartas, sendo 80
para o ator e as demais para a atriz. O t0rr:. e sempre afetuoso, com manifestações de
apreço e admiração, independentemente das variações de gênero tanto do Ia quanto
do ídolo. O escopo deste afeto é amplo, podendo ir de elogios respeitosos até elo
quentes declarações de amor.
Morin (1980), discutindo o universo das estrelas de cinema hollywoodianas,
afirma que nas cartas de Ias "a linguagem do amor ( ... ) se mistura com a da adoraç ão"
(p. 58). É para a análise desta "mistura" que Coelho volta sua atenção, sugerindo uma
interpretação para o porquê do recurso, pelos Ias, ao discurso amoroso para expressar
seus sentimentos.
Sua interpretação baseia-se em uma estranheza inicial: se o modelo da relação
amorosa ideal é diádico e baseado na reciprocidade e na exclusividade, por que os Ias
a ele recorrem para falar do que sentem por seus ídolos? Não seria flagrante a
distância entre a relação amorosa ideal e uma relação entre líder carismático-seguidor
(típica das relações de idolatria)? Não é esta, ao contrário, definida por um modelo
"centrípeto" muitos devotando seu afeto a um único, o qual, por definição, não o
retribui em natureza ou intensidade, além de reparti-lo por um grupo, não sendo
30

jamais exclusivo?
Página

A autora recorre à comparação realizada por Lindholm (1993) entre as


experiências do amor e do carisma para sugerir uma interpretação para o porquê do
recurso ao discurso amoroso pelos Ias. Com base na noção freudiana de
"identificação", Lindholm discute as formas possíveis de satisfação do desejo humano
de "escapar aos limites do eu", elencando, ao lado da terapia, do consumo e da adesão
a ideais de nação, o pertencimento a grupos carismáticos e o amor romântico.
Estas experiências compartilhariam a capacidade de propiciar ao sujeito a
vivência de um "estado fusional", um perder-se no outro que compensaria as
incertezas do eu, permitindo a eclosão de uma sensação de êxtase. Amor e carisma
teriam assim em comum a capacidade de provocar no indivíduo enamorado/fascinado
uma sensação de conforto gerada pela "fusão" com o outro. Por esta mesma razão,
seriam mutuamente excludentes, ou seja, impossíveis de serem vivencia dos
simultaneamente, mas nem tanto porque o sujeito não possa; é mais porque não
precisa, uma vez que o desejo fusional pode ser atendido tanto por um quanto pelo
outro, sendo uma impossibilidade de sua natureza uma vivência parcial, que
permitisse ou exigisse "complementações" de qualquer espécie.
Entretanto, ainda segundo Lindholm, haveria uma diferença fundamental entre
o amor e o carisma: sua valoração social. Para ele, o amor romântico seria uma
experiência socialmente valorizada na modernidade ocidental; basta lembrarmos, em
favor de seu argumento, a profusão de discursos ficcionais que giram em torno da
experiência do enamora mento, (quase que) invariavelmente descrita como desejável.
Não é o sujeito apaixonado um dos principais protagonistas dos enredos matriciais da
comunicação de massa?
O carisma, por sua vez, seria objeto de uma desvalorização social, com a
adoração carismática sendo alvo de sentimentos de hostilidade e menosprezo nesta
mesma modernidade ocidental, e com frequência associada a formas várias de
patologia mental. A comunicação de massa novamente é uma boa fonte de
argumentos a favor da postulação de Lindholm; conforme demonstra Coelho neste
mesmo trabalho, os filmes que tematizam a relação Ia-ídolo invariavelmente
descrevem o primeiro como um sujeito adoecido, solitário e descontrolado, a quem as
narrativas reservam sempre um "unhappy end": o abandono ou a morte, jamais a
relação desejada com o ídolo.
Temos assim duas experiências emocionais capazes de produzir no sujeito um
mesmo efeito: a satisfação de um desejo de fusão com o outro. Estas duas
experiências, contudo, são objeto de valorações sociais distintas, sendo o amor
recomendável e o carisma execrável. Se, contudo, a experiência do Ia pertence tão
evidentemente ao elenco dos eventos carismáticos, por que o Ia fala de amor? Por que
não fala de adoração ou fascínio?
Coelho recorre à combinação de duas ideias para propor uma interpretação
para esta estratégia típica das cartas de Ias: a noção de Morin (1984) de que a
indústria cultural seria uma "escola de interpretação da experiência" e a concepção de
Mauss (1981), discutida acima, de que a expressão dos sentimentos seria uma
"linguagem". Para Morin, a indústria cultural ofereceria um conjunto de modelos para
a conduta privada, seria um espaço de produção de mitos e discurs os que os
indivíduos tomariam como guias para a compreensão e condução de suas vidas
31

privadas, a vivência afetiva ai Incluída. Em sendo assim, os consumidores das


narrativas midiáticas aprenderiam a valorizar a experiência do amor, ao mesmo tempo
Página
em que se veriam diante de uma produção discursiva que maciçamente condena o
sentimento do fascínio como algo patológico e desqualificante.
Ou seja: ser fã é algo a ser evitado. Dizer-se fascinado e um risco para a
autoimagem. O fã vê-se assim diante de um dilema, imprensa do pela necessidade de
expressar o que sente e a percepção, mais ou menos clara, mais ou menos difusa, da
natureza socialmente desvalorizada deste afeto.
Mauss, conforme vimos, entende a expressão dos sentimentos como uma
linguagem. Aqui, interessa destacar a natureza de "mão-dupla" desta linguagem: o
indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo mesmo através da comunicação
com os outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente.
Coelho toma esta concepção de Mauss da expressão dos sentimentos como
uma forma do sujeito compreender o que sente como alicerce teórico para sugerir
uma interpretação de por que o fã fala de amor para seu ídolo, apesar de todas as
inadequações aparentes desta escolha. E porque, confrontado com uma imagem
socialmente desvalorizada de sua experiência emocional, e tendo diante de si uma
experiência de natureza vizinha porém, ao contrário, objeto de valorização social, o fã
"traduziria" o fascínio em amor, neste movimento resgatando, para o outro e para si,
uma imagem favorável de seus sentimentos.
E mais: dizer-se fascinado é inserir-se em uma multidão, é aceitar ser um em
meio a muitos. Dizer-se apaixonado é resgatar a dimensão singular de sua identidade,
colocando-se no lugar daquele herói apaixonado convicto da originalidade e força de
seus sentimentos. O fã que fala de amor para seu ídolo reencontra assim aquele
paradoxo com que abrimos esta seção: igualar-se no movimento mesmo de
demarcação da própria singularidade.

"Estou só e não resisto": as gramáticas da solidão


Sentir-se único e especial, contudo, nem sempre é apenas fonte de satisfação.
A ênfase na própria singularidade pode tornar difícil a comunicação com o outro, um
compartilhar de experiências que é parte integrante da compreensão da própria
vivência, sensações e emoções. O encapsulamento no próprio mundo interno pode
criar uma percepção distorcida e exagerada da própria "originalidade", trazendo
consigo um sentimento de incompreensão pelo outro. Este sentimento é uma forma
possível da solidão – mas não a única.
Simmel (1964b), ao discutir o isolamento individual, já assinalava que mesmo aí
há um traço da sociedade, uma vez que não se trata exatamente da ausência do social,
mas de uma existência imaginada e em seguida rejeitada da sociedade. Esta visão da
sociedade como algo presente na experiência do isolamento abre a porta para
realizarmos com a solidão mais um exercício de questionamento do senso comum, que
nela enxerga um sentimento que diz respeito somente ao íntimo. Este é o ponto
abordado por Wood (1986), que descreve a solidão como marca da pelo paradoxo de
ser experimentada pelo sujeito como um sentimento de separação do outro, ao
mesmo tempo em que é possível encontrar "gramáticas" sociais para a emergência
deste tipo de sentimento. Em outras palavras: há "regras" socialmente definidas para
32

que o sujeito possa sentir-se só.


Página

Sábados à noite, por exemplo, nos grandes centros urbanos são ocasiões de
sociabilidade prescrita; estar sozinho, sem companhia para alguma forma de lazer,
suscita comumente um forte sentimento de solidão, conhecido e "validado" pelo
grupo social como uma reação emocional legítima diante da situação concreta. Esta
"regra", contudo, não apenas "valida" este sentimento nestas circunstâncias; ela
praticamente o prescreve como uma reação emocional que atesta a "normalidade" do
indivíduo. Alguém que se sinta bem estando sozinho em um sábado à noite seria, em
muitos grupos urbanos, visto como "esquisito" e "antissocial". Por outro lado, sentirse
sozinho em uma segunda-feira pela manhã também não é lá muito "normal": é que
esta "gramática" da solidão é regida por uma temporalidade marcada pelas oposições
noite/dia, lazer/trabalho, O tempo da solidão, neste exemplo, pode ser caracterizado
como noturno e de lazer, ou seja, momentos para os quais há uma sociabilidade
prescrita/desejada que não se concretiza.
Esta "gramática", contudo, além de evidentemente não ser universal, não é
também de aplicação homogênea em meio a um mesmo grupo social. Sua força é
muito mais acentuada entre os jovens, para quem a experiência de estar só em um
sábado à noite pode ser muito penosa; por outro lado, a sociabilidade de pessoas
idosas ocorre com frequência mais cedo, muitas vezes em dias úteis, não havendo
nada de "antissocial" em sentir-se bem sozinho em casa às oito da noite de um sábado,
após uma sessão vespertina de cinema, por exemplo.
Há assim muitas formas de sentir-se só. Há formas mais cotidianas de solidão,
como estas regidas pela lógica da sociabilidade; há aquelas de orientação
religiosa/espiritual, como na realização de "retiros"; e há também formas-limite, que
em sua dramaticidade nos ajudam a entender algo sobre a natureza eminentemente
social do ser humano. Este é o caso da solidão dos moribundos discutida por Elias
(2001).
Em sua análise, Elias discute a atitude moderna diante da morte, partindo da
constatação de que no Ocidente contemporâneo os indivíduos teriam enorme
dificuldade em identificar-se com os moribundos, devido ao desconforto trazido pela
lembrança da própria morte. A morte seria duplamente recalcada: pelo indivíduo
(como uma forma de proteção contra o terror provocada pela evocação de sua
mortalidade) e pela sociedade, que "traduziria" este terror em medidas de
afastamento dos moribundos do convívio social, com seu confinamento a espaços
destinados a gerir a morte, tais como os hospitais.
Esta atitude de afastamento diante da morte expressaria, para Elias, uma forma
de negar a finitude da vida individual. Negá-Ia seria um imperativo diante da forma
como o sujeito moderno concebe a própria vida: como algo isolado, sem a dimensão
das cadeias de interdependência que conectam cada existência individual a uma rede
social. Para o autor, esta incapacidade de ver-se como um elo em uma rede de
relações seria responsável por uma forma de sofrimento típica da modernidade: a
percepção da vida como absurda e destituída d.e sentido. Em sua visão, o sentido da
vida está na importância que temos para os outros; do momento em que deixamos de
valorizar, como fonte de sentido para a existência individual, o lugar que ocupamos na
vida dos outros, nossa própria existência se torna de fato vazia e absurda, uma vez que
não haveria qualquer outro sentido além do que somos para os outros. Vem daí o
33

terror diante da própria morte, imaginada, diante desta desvalorização do laço com o
outro, como a dissolução absoluta de tudo aquilo que importa.
Página
O medo inspirado pelos moribundos e seu consequente afastamento para os
espaços ocultos de gestão da morte geraria então uma experiência emocional de
muita dramaticidade. Para Elias, em toda sociedade morre-se do mesmo jeito como se
vive. A percepção da vida como absurda, ao gerar um sentimento de solidão
proveniente da desvalorização do pertencimento a uma rede de interdependência,
impõe sobre os moribundos um ônus adicional: a percepção, ainda em vida, de não ter
mais sentido para os outros, de saber-se excluído antes mesmo de morrer, em uma
forma extrema de solidão.

"Saudades, só portugueses .. :': emoção e temporalidade


É possível, assim, estar só de muitas maneiras. Mas a solidão não é a única
forma de experiência emocional que fala da percepção de uma falta, de uma ausência.
Há outros sentimentos que são também suscitados pela relação com algo que não está
acessível ao sujeito, como a saudade.
No Brasil gostamos de dizer, com orgulho, que "saudade é uma palavra que só
existe em português", como se isso nos fizesse detentores exclusivos de uma
possibilidade afetiva incomum de experimentar um sentimento especial e valorizado.
Podemos, neste nosso "bordão", entrever temáticas caras ao estudo das emoções,
como por exemplo a relação entre experiência emocional e identidade coletiva (aqui
colocada de forma um tanto paradoxal, porque, ao nos orgulharmos de nossa
"exclusividade" sobre a saudade, parece que nos esquecemos de que, antes de ser
"brasileira", a "saudade." é "portuguesa", aparecendo em muitos discursos nacionais
portugueses como um traço distintivo de sua Identidade).
Um segundo ponto importante levantado pela análise do sentimento da
saudade é que este é um sentimento que fala de uma forma de relacionar-se com o
passado. Dois autores, o ensaísta português Eduardo Lourenço (1999) e o antropólogo
brasileiro Roberto DaMatta (1993), exploraram em textos sobre a saudade essa sua
característica de ser uma maneira de sentir e de refletir sobre o passado. Este passado,
contudo, não é pensado como etapa de um tempo concebido cronologicamente, como
algo que "passa" inelutavelmente em um ritmo regrado e constante, mas sim como
algo que, do ponto de vista subjetivo, pode ser recuperado, revivido, por meio da ação
da memória. Sentir saudade seria "subtrair-se à passagem inexorável do tempo", ou,
nos termos de Lourenço, recusar a "ordem do tempo".
Em uma busca por aprofundar a compreensão da particularidade desta relação
que o indivíduo saudoso mantém com passado, Lourenço estabelece uma comparação
entre os sentimentos da saudade, da nostalgia e da melancolia, entendidos como três
modalidades de relação com o passado. Estes sentimentos estabeleceriam com o
tempo diferentes "jogos de memória, inventando-o como ficção". Para Lourenço,
enquanto na melancolia o passado seria vivenciado como "definitivamente passado" e,
na nostalgia, estaria fora do alcance mas seria imaginado como "recuperável", na
saudade o sujeito se furtaria à ordem do tempo, reapropriando-se emocionalmente de
algo passado.
Entretanto, não é somente com o passado que os sentimentos estabelecem
34

formas de relação. As conexões entre experiências afetivas e temporalidade abarcam


também o futuro e o presente. É assim que poderíamos, por exemplo, pensar na
Página

ansiedade e na esperança como formas de relação com o futuro, a primeira falando de


uma "ânsia" pelo porvir, a segunda remetendo a uma sensação – pertencente, ela
mesma, ao momento presente de quem sente – de otimismo. Também como parte de
seu esforço por compreender a natureza do vínculo com o passado estabelecido pela
saudade, Lourenço contrasta-o com as temporalidades de outros sentimentos ligados
ao presente, tais como a angústia e o tédio. Para ele, na angústia não há futuro,
havendo somente um presente sem dimensões"; já no tédio, o tempo "roda em torno
de si mesmo", com o indivíduo sendo esmagado por um excesso de realidade.
O universo da música pop brasileira novamente pode nos oferecer um exemplo
das vivências afetivas contemporâneas. Esta percepção do tédio como um sentimento
cuia característica central está em uma forma de relação com o tempo em que este é
subjetivamente vivenciado como imóvel, em um descompasso com seu ritmo externo,
pode ser encontrada em Tédio, da banda carioca Biquini Cavadão. Diz a letra:
Sabe esses dias em que horas dizem nada
E você nem troca o pijama, preferia estar na cama
O dia, a monotonia tomou conta de mim
É o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim

Sentado no meu quarto O tempo voa


Lá fora a vida passa E eu aqui à toa
Eu já tentei de tudo
Mas não tenho remédio Pra livrar-me deste tédio
Vejo um programa que não me satisfaz
Leio o jornal que é de ontem, pois pra mim, tanto faz
( ... )3

O ponto principal que podemos reconhecer aqui é a defasagem entre a


passagem do tempo cronológico e sua vivência subjetiva pelo indivíduo. Ele sabe que o
tempo está passando, sob a forma de dias ou horas, mas sua experiência interna é
percebida como "descolada", obedecendo a um tempo "psicológico" cuja marca é a
imobilidade, acentuada pela percepção racional de que as horas passam (mas "não
dizem nada") e os dias também (mas o jornal pode ser de ontem, "tanto faz").
Saudade, tédio e esperança, assim, entre outros sentimentos, expressam uma
maneira de o indivíduo relacionar-se com temporalidade, reanimando um passado,
debatendo-se com o presente, apostando no futuro. Esta perspectiva mostra o quanto
estes sentimentos, embora possam ser vivenciados por sujeitos específicos como
gerados por momentos particulares de suas histórias de vida pessoais, são ainda assim
tributários de gramáticas compartilhadas de natureza sociocultural. Este exercício
intelectual encontrar a sociedade e a cultura em meio à experiência emocional tem na
amizade ainda mais um terreno de fértil exploração.

"Amigo é coisa pra se guardar": escolhas e normas da amizade


Chegamos assim ao último sentimento que gostaríamos de examinar à luz
desta clivagem indivíduo-sociedade: a amizade. Ao mesmo tempo um sentimento e
35

3
Letra obtida junto ao site http://biquini.com. brjindex.cfmjhomejmusicajdetalhesjtedio. Acesso em: 04
Página

novo 2008.
um tipo de relação, a amizade foi, durante muito tempo, pouco estudada pelas
ciências sociais, pois era considerada uma relação muito subjetiva, voluntarista e
pouco estruturada por regras sociais, contrastando assim com o domínio do
parentesco, tema consagrado na antropologia. Somente na década de 1980, com
trabalhos exclusivamente voltados ao assunto, esta visão passou a ser relativizada e
tomada como parte de uma visão de mundo das sociedades ocidentais modernas,
sujeita também a variações internas, como mostraremos através dos estudos de
Papataxiarchis (1991) feito na Grécia e de Rezende (2002) sobre a Inglaterra e o Brasil.
No estudo de Papataxiarchis sobre amizade entre homens na aldeia grega
Mouria, a relação constrói-se em nítida oposição à família e ao mundo doméstico. Este
é essencialmente um espaço de identidade feminina. Para as mulheres, o foco de suas
relações e lealdades se concentra nos parentes consanguíneos, uma vez que fora
destes há muito receio de fofoca e conflitos. São poucas as possibilidades de amizade
entre mulheres, que surgem nos interstícios das relações de parentesco e são
expressas nestes termos.
Entre os homens, as amizades são extremamente valorizadas por seu
distanciamento da esfera doméstica e também das relações de trabalho. Em contraste
com estas, que são marcadas pela obrigação, as tensões da hierarquia e a preocupação
com status, as amizades são pautadas na reciprocidade e na espontaneidade das
trocas emotivas. Os amigos se relacionam no espaço da cafeteria, onde o ato de
beberem juntos torna-se fundamental na aproximação e desenvolvimento da amizade.
O convite ao drinque deve ser retribuído e é a companhia constante com troca de
bebidas que permite comportamentos mais relaxados, espontâneos e mais emotivos.
Na medida em que a relação se desenvolve, a preocupação com a reciprocidade
diminui e os aspectos instrumentais da amizade são desvalorizados em função da
qualidade emocional da relação. A experiência da amizade torna-se então
fundamentalmente um compartilhar das experiências e emoções entre homens,
constitutiva do processo de construção da identidade masculina.
Neste contexto, as amizades são vividas como exemplos de voluntarismo e
escolha individual. Isto não significa que escolha seja irrestrita. A igualdade normativa
é enfatizada e os amigos tendem a ter idade, origem familiar, classe social, ocupação e
estado civil semelhantes. Guardadas estas condições, os amigos são escolhidos
livremente a partir da dinâmica de sociabilidade nas cafeterias. A dimensão do
voluntarismo se destaca principalmente no fato de a amizade e constituir como
antítese do trabalho e da domesticidade espaços marcados por relações assimétricas e
obrigatórias.
Esta antítese desaparece no estudo de Rezende (2002) sobre amizade no RIO
de Janeiro. Entre os cariocas de camadas médias entrevistados, a amizade pode surgir
entre colegas de trabalho e também nas relações de família. O elemento da hiera rquia
presente nestes espaços não é visto como impeditivo, pois a amizade e baseada na
afinidade, na intimidade, na confiança e na doação ao outro. Na família, a amizade
torna-se mais um modelo de relação a inspirar as relações familiares, transmitida, pelo
uso frequente da expressão "pai amigo", mãe amiga . A confiança e a doação ao outro
36

são aspectos em geral presentes, mas a afinidade e a intimidade muitas vezes não
existem, o que é explicado pela falta de escolha sobre os parentes. No meio de
Página

trabalho, é possível encontrar colegas que reúnam qualidades para transformá-Ios em


amigos. O quesito mais difícil de assegurar nestas relações é a confiança no bem-
querer e na doação ao outro, pois a competição e outros interesses profissionais
podem falsear as intenções na aproximação de um amigo em potencial.
Ao falarem sobre as interações no espaço de trabalho e no público em geral,
era comum ouvir dos entrevistados a referência a muitas pessoas por quem se "tinha"
amizade relações estruturadas em outros critérios que continham, porém, o
sentimento de amizade. Era uma percepção de amizade bastante inclusiva e,.em geral,
abarcava relações entre pessoas com características sociais, como origens de classe,
raça, orientação sexual e religião, mais distintas entre si. Nelas o afeto da amizade
parecia fornecer o solo comum de bem-querer e de "humanidade" que diminuía a
percepção da diferença que podia afastá-los. Por isso as pessoas estudadas repetiam
tanto que era possível fazer amizade com qualquer um atravessando as barreiras
sociais.
Ficava claro, entretanto, que estes amigos, às vezes referidos mais pelo termo
adjetivo ("uma pessoa amiga”) do que pelo substantivo, eram diferentes dos amigos
próximos, em número tão reduzido que "se podia contar nos dedos . Estes vinham de
condições sociais bastante próximas e tinham. se conhecido no colégio, na faculdade
ou na vizinhança, meios sociais relativamente homogêneos. O tempo era um fator
Importante na relação, pois permitia que os amigos provassem sua confiabilidade e
sua doação ao outro, elementos Importantes nas amizades próximas.
Para os ingleses de camadas médias estudados por Rezende (2002) em
Londres, o tempo e a confiança também eram valorizados na amizade. No entanto, na
comparação feita com os cariocas, destaca-se que a noção de amizade como um
sentimento, que poderia até estar presente em outras formas de relação, não figurava
para estes londrinos. Ao contrário, as relações de amizade pertenciam unicamente à
esfera privada, junto com as relações de parentesco. No espaço de trabalho, era difícil
desenvolver amizade pois, mais do que a hierarquia e a competitividade, era preciso
ter um comportamento eficiente, produtivo e polido, contrário ao relaxamento que
marcava a relação entre amigos.
Os amigos eram vistos como pessoas com quem era possível se expor sem
reservas e ter seu verdadeiro eu aceito. Como eles diziam, o amigo é alguém com
quem "eu posso ser 'eu mesmo"'. No início da relação, a afinidade é importante
sobretudo nos interesses de lazer e no senso de humor. Com o tempo, desenvolve-se a
confiança necessária para se expor, processo este que deve ser recíproco e
sincronizado. Como cada um prezava sua privacidade e tempo para si, não gostando
de imposições indevidas, ter confiança em que o amigo aceitaria compartilhar
emoções era fundamental para a relação.
Por isso, era difícil estabelecer amizade no trabalho ou em outros espaços
marcados pela diversidade social. No trabalho, prevalecia a ênfase na contenção
emotiva em função da eficiência e produtividade, antitética à amizade. Com pessoas
de origem de classe distintas, em particular as que vinham da classe trabalhadora,
havia a percepção de que as noções de privacidade eram distintas, de forma que se
tornava difícil sincronizar os processos de autorrevelação. Como as pessoas de classe
37

trabalhadora eram vistas como mais espontâneas e pouco polidas, a preservaç ão do


espaço pessoal era ameaçada.
Página
Deste modo, as relações de amizade se estabeleciam entre pessoas de origens
sociais muito semelhantes, com trajetórias também similares. Contrastando com a
diversidade étnica e social de pessoas em Londres, os ingleses estudados formavam
redes muito homogêneas nas quais encontravam as qualidades de amizade desejada.
Como a polidez e sua contenção emotiva eram o modus operandi no espaço público,
era com os amigos que eles podiam relaxar e ser espontâneos. Se na família havia a
confiança do apoio quando necessário, faltava a eles a percepção de afinidade que
permitia o tipo de exposição de si que acontecia entre amigos. A amizade tornava -se
mesmo um ideal para as relações familiares.
Estes três exemplos mostram como a amizade é uma relação afetiva que
contém falgum grau de escolha individual, se dá dentro de um campo de
possibilidades. Embora vivida como uma opção subjetiva, a amizade é concebida e
praticada com significados, normas e valores culturalmente definidos. Estas definições
não valem apenas para unidades culturais mais amplas, como no contraste entre os
contextos grego, brasileiro e inglês, mas também para segmentações mais finas, como
nas diferenças de gênero em Mouria ou as de origem de classe em Londres. Assim, a
amizade como uma relação afetiva exemplifica, como o amor, a admiração, a solidão e
a saudade, experiências emocionais que são a um só tempo subjetivas e sociais.

38
Página
Capítulo 3

A micropolítica das emoções

Entre os diversos temas envolvidos na gramática sociocultural que rege as


relações de amizade está, como vimos, a oposição hierarquia-igualdade. A criação de
vínculos de amizade pode ser assim favorecida ou interditada por relações
hierárquicas ou igualitárias em função do modo como cada grupo entende sua
natureza, define as expectativas afetivas, de sociabilidade, de reciprocidade etc.
A relação entre um sentimento, tão associado no senso comum ocidental à
espontaneidade da escolha individual, e as formas de estratificação social nos conduz à
dimensão da experiência emocional que gostaríamos de explorar neste capítulo: a
capacidade micropolítica das emoções, ou seja, seu potencial para
dramatizar/alterar/reforçar a dimensão macrossocial em que as emoções são
suscitadas e vivenciadas. É com essa dimensão que o estudo das emoções pode
contribuir para a compreensão de temas "consagrados" da agenda de pesquisa das
ciências sociais, como por exemplo as dinâmicas de inclusão/exclusão que «regem as
relações entre os grupos sociais - o nojo, o desprezo, a indiferença - ou as fontes da
inconsistência dos laços sociais - a fidelidade, a gratidão, a compaixão.
Para explorar este aspecto da experiência emocional, exporemos a seguir a
perspectiva teórica proposta por Abu-Lughod e Lutz (1990) para a análise das emoções
- o "contextualismo" -, buscando situá-Ia em meio a outras perspectivas possíveis,
acompanhando o mapeamento do campo da antropologia das emoções feito pelas
autoras. Em seguida, discuti- remos o modo como a capacidade micropolítica das
emoções surge nas análises empreendidas por alguns autores sobre sentimentos
específicos: a compaixão, o nojo, o desprezo, a humilhação e a gratidão. A última
seção do capítulo é dedica- da a uma exploração da fecundidade dessa perspectiva
para a compreensão de aspectos da cultura brasileira, com base no estudo de caso
realizado por Coelho (2006a) sobre as trocas de presentes entre patroas e empregadas
domésticas.

A perspectiva contextualista: um mapeamento do campo da


antropologia das emoções
Em texto introdutório ao campo da antropologia das emoções, as antropólogas
norte-americanas Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod realizaram um mapeamento das
principais vertentes teóricas que fizeram da emoção um objeto de pesquisa. Nesse
mapeamento, elas sugerem a existência de três correntes: o "essencialismo", o
"historicismo" e o "relativismo". A elas, Lutz e Abu-Lughod irão opor uma quarta
perspectiva alternativa: o "contextualismo".
O essencialismo é descrito pelas autoras como o viés predominante nos
estudos psicológicos e psicanalíticos, apoiados na premissa de que as emoções teriam
39

um substrato universal e natural, sendo, em seu núcleo, as mesmas por toda parte.
Entre as perspectivas mencionadas como representativas dessa abordagem, as autoras
Página

incluem a psicanálise freudiana, com sua concepção das energias pulsionais como algo
a ser "modelado" ou "canalizado" pelas forças civilizatórias. Para Lutz e Abu-Lughod, o
problema maior dessa perspectiva seria uma espécie de "reificação" das emoções,
tidas como preexis- tentes ao social, que com elas deveria "lidar", "expressando- as"
ou "reprimindo-as" ou ainda "ritualizando-as".
O historicismo e o relativismo compartilhariam um ponto- chave que os oporia
ao essencialismo: a crença na "construção cultural das emoções", que seriam
fenômenos histórica e socialmente circunscritos. Uma estratégia central desses
estudos seria a comparação entre contextos socioculturais distintos, capaz de colocar
em xeque a suposição dos essencialistas de que as emoções teriam substratos
universais. O eixo eleito para comparação diferenciaria essas vertentes: enquanto o
historicismo recorreria a um escrutínio temporal, o relativismo se valeria de
comparações entre culturas contemporâneas entre si.
Essas vertentes, contudo, nem sempre aparecem em "estado puro". Se por um
lado é possível identificarmos trabalhos de inspiração claramente historicista (como a
análise já comentada da concepção moderna de amor em Romeu e Julieta realizada
por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, 1977; ou a "história das lágrimas" fei ta
por Vincent-Buffault, 1988) e textos marcadamente relativistas (como o exame da
"etnopsicologia" ocidental feito pela própria Catherine Lutz, 1988), por outro há
também estudos que mesclam traços essencialistas com matizes historicistas e/ou
relativistas, como por exemplo os estudos já mencionados de Peter Gay (1995) sobre o
ódio ou de Jean Delumeau (1989) sobre o medo.
A inovação do contextualismo está em sua inspiração na noção foucaultiana de
"discurso". Essa proposta teórica baseia-se na concepção de discurso como uma fala
que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Ou
seja, nela o real não preexiste ao que é dito sobre ele, mas, ao contrário, é formado
por aquilo que se diz sobre ele. Para as autoras, a emoção não seria apenas um
construto histórico-cultural; a emoção seria algo que existiria somente em contexto,
emergindo da relação entre os interlocutores e a ela sempre referida. É nesse sentido
que se pode falar de uma "micropolítica da emoção", ou seja, de sua capacidade para
dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações
interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. E assim, então, que
as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou
igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos
sociais, conforme veremos a seguir na análise de alguns sentimentos específicos.

A micropolítica das emoções: estudos de caso


Em sua obra clássica intitulada Teoria dos sentimentos morais, Adam Smith
empreende uma alentada análise da "simpatia", por ele definida como a solidariedade
do ser humano em relação às paixões vivenciadas pelos outros. Ela, contudo, variaria
em grau (podendo mesmo ser inexistente) de acordo com a natureza da paixão. As
paixões "insociáveis" - o ódio e o ressentimento - suscitariam pouca ou nenhuma
simpatia; as paixões" do corpo" seriam também de difícil compartilhamento, devido à
sua natureza "incomunicável" porque de difícil imaginação. Há ainda as paixões
40

"egoístas" - a dor e a alegria - e as paixões "sociáveis", entre as quais relaciona a


generosidade, a humanidade, a bondade, a amizade, a estima recíproca e a
Página

compaixão.
O ponto fundamental da obra de Smith é o desvendar de uma "lógica da
simpatia": em que situações estaria o ser humano mais propenso a identificar-se com
o sentimento alheio - na desgraça ou no sucesso?
Discutindo um conjunto de situações, entre as quais o sucesso repentino, o
autor aborda o problema da inveja, descrevendo-a como um sentimento capaz de
emergir diante do rompimento de uma igualdade original. Dois temas entrelaçam-se
assim em sua obra: a relação entre sentimentos e posições relativas entre os sujeitos e
a articulação entre a vivência vicária da experiência alheia e a emergência da simpatia.
Os sentimentos "morais" seriam assim aqueles que falam de uma relação
estabelecida no íntimo do sujeito com a alteridade: o que o sofrimento ou a alegria do
"outro" suscitam Qual a lógica que rege essa dinâmica emocional?
Diversos são os critérios envolvidos nessa regulagem dos sentimentos diante
do outro: o sofrimento alheio pode suscitar compaixão, indiferença ou até mesmo
regozijo, de- pendendo das macrorrelações a que uma dada interação se reporte. Em
meio a esses critérios, podemos destacar a fronteira nós-outros, ou seja, os
sentimentos morais fariam um trabalho de inclusão/exclusão social, sendo suscitados
por "mapas de navegação emocional" ao mesmo tempo em que reforçariam os seus
traçados. Compaixão, nojo, desprezo, gratidão, humilhação seriam assim, todos eles,
sentimentos capazes de realizar o trabalho micropolítico de dramatização, reforço e,
por que não, alteração das macrorrelações sociais.

Compaixão: a responsabilidade pelo infortúnio


Uma comparação entre a gramática da compaixão em dois contextos histórico-
sociais distintos pode nos servir como porta de entrada para a exploração dessa
capacidade micropolítica da emoção: o trabalho de Lindsay French (1994) sobre a
hostilidade de que são alvo as vítimas de amputações por minas terrestres em um
campo de refugiados no Camboja e o estudo de Candace Clark (1997) sobre a lógica
que rege o dar e receber da compaixão nos Estados Unidos contemporâneos.
French realizou uma etnografia em um campo de refugiados cambojanos em
1989-91. Ela relata a onipresença de pessoas que haviam sofrido algum tipo de
mutilação por mi- nas terrestres. As perguntas iniciais de sua pesquisa dizem respeito à
natureza da experiência corporal da amputação e ao efeito sobre a população do
campo dessa "hiperexposição" às mutilações corporais. Sua hipótese inicial é a de que
a presença cotidiana dos amputados consistiria em uma lembrança recorrente da
guerra e de que seu infortúnio seria alvo de compaixão.
Seus dados etnográficos, contudo, revelam algo bastante distinto da compaixão
esperada. Os refugiados cambojanos têm duas reações emocionais principais diante
dos amputa- dos: medo e desprezo. O medo é suscitado pela reputação dos
amputados de serem pessoas violentas, agressivas e desonestas, afeitas à extorsão e
ao roubo. Já o desprezo viria de sua representação como pessoas" diminuídas" pela
mutilação corporal, e portanto incapazes de agir como um ser humano íntegro (no
duplo sentido do termo). Paradoxalmente, o maior efeito da amputação sobre as
virtudes morais do sujeito atingido seria sobre sua capacidade de compadecer-se, da
41

qual a amputação o teria destituído.


Página

Para o amputado, a mutilação representaria uma violenta alteração de seu


lugar no mundo social. A proteção de que gozava, como soldado, da parte de seu
comandante lhe é radicalmente retirada quando de sua "inutilização" para o com-
bate; o apoio de sua esposa e família é também ameaçado, pois sua capacidade de
desempenhar suas funções de protetor e provedor é abalada pela mutilação. O
amputado vê assim seu lugar no mundo ser devastado pela mutilação, e com isso seu
"valor moral" ser também diminuído. A experiência emocional do amputado é de
degradação e abandono, sendo encompassada por um sentimento geral de
incapacidade e desvalorização no mundo.
French vai buscar na doutrina budista sobre karma e reencarnação uma
explicação para esses contornos emocionais da experiência da amputação. Segundo
ela, o karma seria acionado no budismo como forma de compreender aquilo que não
se pode controlar ou para o qual se busca consolo; o futuro, contudo, estaria aberto à
influência de ações meritórias no presente. O budismo traria ainda, associada a essas
noções, uma hierarquia do mérito e da virtude, à luz da qual a amputação seria um
infortúnio que atestaria um "valor diminuído" do sujeito, caracterizando sua
proximidade como um "risco" para os demais.
A autora coloca assim essa experiência corporal em relação com uma dinâmica
emocional que, ao associar uma mutilação física a uma diminuição da ca pacidade
humana de compadecer-se, evidenciaria sua relação com um contexto religioso,
cultural e político mais amplo, em que a gramática da com- paixão seria orientada por
uma hierarquia engendrada pelas condições de vida nos campos de refugiados. Essa
"negociação da compaixão" encontrada em sua etnografia, contudo, aparece como
uma surpresa, contrariando sua hipótese inicial de que a amputação geraria no outro
uma reação emocional compassiva. Por que French entra em campo com essa
expectativa? Haveria outra "gramática da compaixão" possível que nortearia sua
hipótese inicial?
A análise de Clark (1997) sobre a compaixão nos Estados Unidos
contemporâneos fornece uma pista para entendermos essa "surpresa" de French. A
autora mapeia as regras que governam o da r e receber da compaixão, mostrando a
centralidade do critério da responsabilidade pelo infortúnio. Quando o sujeito é
percebido pelo outro como tendo cometido atos, adotado comportamentos ou
mesmo meramente sendo de uma determinada forma capaz de, em alguma medida,
provocar o ocorrido, seu status como merecedor de compaixão é diminuído; quando,
ao contrário, seu infortúnio é atribuído ao acaso ou a outrem, facultando assim sua
representação como vítima de algo alheio à sua vontade ou possibilidade de
intervenção, suas chances de suscitar compaixão no outro aumentam sensivelmente.
Entretanto, o problema da responsabilidade do sujei- to pelo que lhe ocorre
não é simples, apresentando enorme diversidade social, cultural e histórica. Clark
sugere que a ampla divulgação do olhar das ciências humanas e sociais teria levado a
um alargamento do campo dos "atenuantes". E assim que um agressor pode ser
"desculpado" por seus atos se for representado como "produto" de circunstâncias
socioeconômicas desfavoráveis, responsáveis pela criação de um ambiente social que
não deixaria alternativas ao sujeito; ou que uma pessoa pode ser isentada de
responsabilidade por uma derrocada em sua vida se o comportamento adotado - o
42

alcoolismo, por exemplo - for concebido não mais como um vício moral, mas como
uma doença que o sujeito sofre. A compaixão criaria assim "fronteiras morais",
Página

separando aqueles representados como merecedores de compaixão - porque isentos


de culpa ou responsabilidade pelo que lhes acontece - e aqueles a quem se destina
uma reação de im- piedade, uma vez que são percebidos como responsáveis por suas
desventuras.
Essa análise de Clark da gramática da compaixão norte- americana nos aponta
o caminho para a compreensão da discrepância entre a hipótese original de French
para a experiência carnbojana e sua surpresa diante daquilo que encontra em sua
etnografia. A suposição de que os amputados suscitariam compaixão no ambiente ao
seu redor é evidentemente tributária da etnopsicologia ocidental que os considera
merecedores desse sentimento porque vítimas de um acidente de natureza
inteiramente aleatória, "algo que poderia acontecer com qualquer um". Nessa
concepção, o abandono de que são alvo é uma nova forma de vitimização, que
espantaria a um ocidental pela aparente "impiedade". A investigação etnográfica,
contudo, demonstra estar em ação outra "gramática emocional", a qual, através do
recurso a uma doutrina religiosa, insere a experiência da amputação em uma lógica de
"responsabilidade". A comparação entre essas duas for- mas de dar/receber
compaixão ilustra assim a dimensão micropolítica do sentimento, capaz de demarcar e
reforçar micro- hierarquias articuladas a contextos culturais e históricos mais amplos.

Nojo e desprezo: afetos, hierarquia e moral


Em seu livro, Miller (1997) narra um episódio ocorrido entre ele e um pedreiro
que contratara para um serviço em sua casa. O pedreiro é forte, de compleição
avantajada e tem o corpo coberto por tatuagens. Enquanto trabalha, suas calças
escorregam de sua cintura, deixando parte das nádegas à mostra. Um dia, quando o
autor saía de casa de mochila nas costas, pedalando sua bicicleta, o pedreiro voltou-se
para sua esposa e indagou: "Ele é professor?", em um tom que poderia significar algo
como "isso aí é um professor?".
Miller faz dessa história uma pequena fábula sobre o desprezo. Explorando-a
em minúcias, transforma a si mesmo e suas reações subjetivas em um campo para
observação da dinâmica emocional das relações sociais. Seu ponto principal é a
comparação entre o desprezo que sente pelo pedreiro e o desprezo que este sente por
ele. Do seu ponto de vista, o desprezo é suscitado por questões ligadas à fisicalidade -
as tatuagens (por Miller entendidas como uma forma de vulgaridade), a exposição das
nádegas, a exibição de força física. Por outro lado, sua suposição é de que o desprezo
do pedreiro está ligado a uma atribuição de fraqueza física a ele, o intelectual.
Nessa pequena fábula, está em questão a natureza recíproca dos desprezos
devotados entre o intelectual e o pedreiro, girando em torno de um atributo central
em tantas construções de identidades masculinas: a força física. Entretanto, Miller
aponta para uma diferença fundamental: o desprezo do pedreiro é desinibido; ele não
parece sentir-se culpado ou envergonhado por nutrir esse tipo de sentimento. Já ele,
um intelectual liberal, envergonha-se por reconhecer em si um sentimento condenado
pelas teorias políticas que estuda e pelas quais procura pautar sua vida, não apenas
como intelectual, mas também em seu cotidiano como cidadão. O conflito emocional
deflagrado pelo desprezo ocorre devido à contradição entre a crença na igualdade
43

fundamental de to- dos os seres humanos e a emergência de um sentimento que é em


si mesmo um atestado de existência e/ou reivindicação de hierarquia.
Página
A reciprocidade desse sentimento, contudo, traz ainda novas nuances.
Tradicionalmente, o desprezo é um sentimento que emerge em relações hierárquicas,
sendo devotado por quem ocupa as posições superiores àqueles em situação
inferiorizada - a essa modalidade Miller refere-se como "desprezo para baixo". Nas
sociedades tradicionais, essa parece ser a única modalidade do desprezo, ou ao menos
a única que adentra a cena pública. As sociedades modernas democráticas criam a
possibilidade de outra modalidade de desprezo: o "desprezo para cima", devotado,
como no exemplo da história acima, por aqueles que ocupam posições socialmente
desvalorizadas (os trabalhadores manuais) àqueles detentores de status mais elevado
(os intelectuais). Surge assim outra função micropolítica do desprezo: a contestação da
hierarquia em sua versão "para cima", e não mais somente seu reforço/ demarcação,
como no desprezo "para baixo". É assim que Miller sugere, então, de forma um tanto
irônica, que esta parece ser uma conquista fundamental dos regimes democráticos: a
instauração da possibilidade dos desprezos mútuos, em uma espécie de
"socioeconomia" emocional da igualdade.
Na análise de Miller, o nojo figura ao lado do desprezo como uma "emoção de
demarcação de status": Recorrendo a Adam Smith e sua discussão sobre empatia e
moralidade, Miller arrola o nojo entre os "sentimentos morais", capaz de demarcar,
com sua eclosão, as fronteiras entre os "iguais" e os "diferentes".
Nesse esforço de demonstrar a capacidade micropolítica das emoções,
interessa destacar a associação entre nojo e moralidade. Comumente associado a
experiências físicas, o nojo pode ser descrito como aquilo que fere as categorias
discriminadas em sistemas de classificação, transitando de forma agramatical por
áreas que deveriam ser mantidas apartadas. É assim que Rodrigues (1975), com base
em um conjunto de depoimentos sobre experiências descritas como "nojentas" por
seus entrevistados, identifica uma "gramática" que permite descrever o nojo como
uma reação fisiológica suscitada pela transgressão de uma regra inconsciente
relacionada à demarcação interior/exterior do corpo humano. A quase totalidade dos
depoimentos descreve situações de contato sensorial (visual, tátil, olfativo) com
secreções do corpo humano; seria a violação dessa fronteira interior/exterior que
suscitaria uma reação fisiológica de horror à transgressão. O interesse maior desse elo
transgressão-nojo seria a ponte criada entre o sensorial e o intelectual, uma vez que o
desrespeito ao sistema de classificação seria capaz de provocar uma reação fisiológica,
atestando assim a importância, para o conforto do sujeito, daquela ordenação do
mundo.
Miller, contudo, vai mais longe em sua análise ao definir o escopo de situações
capazes de suscitar nojo. O nojo, em si mesmo uma reação percebida no corpo, não
teria suas motivações restritas ao corpo em si, sob a forma de características ou
secreções, podendo também ser suscitado por traços que agrediriam convicções
morais, como por exemplo a cupidez ou a hipocrisia. Entre as atividades capazes de
suscitar nojo nos Estados Unidos contemporâneos, Miller menciona a advocacia e a
política. O nojo surge como um "idioma" para a expressão de "julgamentos morais",
como quando dizemos, a respeito de, por exemplo, uma atitude de desrespeito a
44

direitos consagrados do outro com vistas ao atendimento de interesses próprios


considerados venais, que "isso me revira o estômago"; ou quando presenciamos a
Página

manipulação de ideias e princípios a serviço da consecução de objetivos interessados e


reagimos dizendo ter "vontade de vomitar".
O nojo é, assim, uma reação fisiológica possível à transgressão de normas
morais, permitindo, conforme afirma Miller, atestar a força dessas regras, uma vez que
elas, literalmente, nos retorcem as entranhas ao mero pensamento de sua violação.
Nojo e desprezo, assim, realizam um trabalho semelhante de vinculação entre
os níveis micro da experiência pessoal e macro da organização social, costurando
hierarquias e nor- mas morais aos afetos e sentimentos. Outras emoções realizam
trabalhos semelhantes, a exemplo da humilhação.
Humilhação: princípios morais e identidade
Em sua análise sobre crimes hediondos, Katz (1988) dis cute, conforme já
comentamos no primeiro capítulo deste livro, as motivações das pessoas que
cometem crimes marcados por uma enorme desproporção aparente entre as atitudes
das vítimas e as agressões de que são alvo (um pai que mata seu bebê por não parar
de chorar ou um morador que mata seu vizinho por obstruir a entrada de sua
garagem). O foco de sua análise é a dinâmica emocional desse tipo de agressão, cujo
cerne estaria na emergência de uma "ira santa", capaz de autorizar um massacre aos
olhos do agressor. Para este, a vítima desafia, com suas atitudes, princípios
fundamentais na visão de mundo do agressor: a autoridade paterna desres peitada
pelo bebê que não atende às ordens sucessivas para parar de chorar; o direito
feminino ao trabalho, afrontado pelo marido que põe fogo nos livros da esposa; o
direito à propriedade, infringido pelo vizinho que estaciona seu carro diante da
garagem do outro.
Esse não é, contudo, um processo racional e consciente (ainda que
precariamente dimensionado) da parte do agressor: há uma dinâmica emocional que
principia pela humilhação e que deslancha um processo cujo ápice é a agressão. A
humilhação decorre, para Katz, da tentativa de evitar a raiva provoca da pelas atitudes
da vítima; a raiva é, em um primeiro momento, percebida pelo futuro agressor como
uma" concessão", como um "igualar-se" que estaria implícito no reconhecimento da
ofensa; a indiferença representaria assim uma "elevação" do agressor diante da vítima.
A constatação, contudo, por parte do próprio sujeito de que essa indiferença é
"fingida", não mais do que uma estratégia para simular uma superioridade que não
existe - uma vez que a "provocação" atinge o alvo ao ponto de exigir essa estratégia -
pode ser, por si mesma, humilhante. Quem não reconhece a irritação que uma
provocação do tipo" olha só, ele está fingindo que não liga", em meio a um conflito,
pode causar?
O sentimento de humilhação apresentaria assim cinco características. A
primeira é sua dimensão pública, ou seja, sentimo-nos humilhados diante de um outro
(ainda que esse outro possa não estar presente na cena física imediata, bastando
muitas vezes a consciência de sua existência); essa humilhação parece, no calor das
circunstâncias, ser eterna, ou seja, algo de que o sujeito nunca se poderá livrar, e que
por isso parece-lhe insuportável; o sentimento vem de fora para dentro, é algo que
"toma conta" do sujeito, que se vê como objeto de uma experiência emocional; a
humilhação é "holística", ou seja, ela envolve todo o corpo; e, finalmente, ela acarreta
uma perda de controle da identidade. Na humilhação, não sou mais quem eu pensava
45

ser, mas alguém inferiorizado diante de todos, e pior, alguém que tentou disfarçar essa
inferioridade simulando uma indiferença, em estratégia óbvia aos olhos de todos. É em
Página
defesa desse núcleo de quem é que o sujeito agride aquele que, a seus olhos, o
ameaça em um plano tão fundamental de sua existência.
Princípios morais e experiência subjetiva entrelaçam-se aqui novamente, dessa
feita atingindo a própria identidade individual pela emergência do sentimento da
humilhação. Mas nem só de mal-estares e agressões é feito esse entrelaçamento,
como veremos a seguir no caso da gratidão.

Gratidão: a "memória moral da humanidade"


"Memória moral" é uma expressão utilizada por Simmel (1964a) para falar do
trabalho feito pelo sentimento da gratidão em favor da solidez dos laços sociais.
Discutindo a emergência da gratidão no contexto das dádivas materiais, ele afirma ser
este afeto que impulsiona a reciprocidade, condição sine qua non da vida social. A
gratidão seria assim aquilo que impele à retribuição mesmo na ausência da coerção
externa, desempenhando portanto um papel fundamental na coesão dos vínculos
sociais.
Simmel analisa as dimensões de liberdade e coerção presentes no universo da
dádiva, afirmando ser o primeiro presente o único realmente espontâneo, uma vez
que nele não há qualquer obrigação. Toda e qualquer retribuição, por sua vez,
comportaria já uma dimensão coercitiva, sendo a gratidão a consciência de haver
entrado em uma relação infinita, pois a decisão da primeira oferta comporta uma
liberdade que retribuição alguma poderia conter, com o eventual desejo autêntico de
retribuir sendo sempre, em alguma medida, turva- do pela sua obrigação.
La Rochefoucauld afirmava que Na pressa em retribuir é uma forma de
ingratidão". É como se a aceitação do primei ro presente e do adiamento da retribuição
equivalesse a uma aceitação do estado de dívida, do qual a gratidão seria uma
expressão emocional. Ora, estar em dívida é também estar em relação, mas em uma
posição inferiorizada, em que reconheço que o outro tem/pode mais, uma vez que me
deu algo que não pude retribuir, nesse movimento me "inferiorizando". Apressar-se
em retribuir é então um esforço para sair desse lugar, para" quitar" a oferta inicial,
recusando assim o senti- do último do presentear: o estabelecimento de uma parceria.
O sentimento da gratidão seria a expressão afetiva da aceitação desse lugar de
dívida, que é, em última instância, a aceitação de uma relação marcada por uma
hierarquia, em que o sujeito entra em relação com alguém que pode mais: daí a
afirmação de que a gratidão teria "um gosto de servidão". Sua emergência obedece,
portanto, a regras morais, em uma "gramática" que define o valor moral do sujeito em
função de sua capacidade de sentir-se grato àquele que o beneficia, ainda que à custa
de uma diminuição de seu status pela incapacidade de retribuir. É talvez esse o sentido
último daquela fórmula linguística do agradecer, já tão desgasta da pelo uso que não
nos apercebemos de seu sentido último: "obrigado".
A gratidão faria assim um trabalho de coesão e estabilização dos laços sociais.
Entretanto, isso é feito obedecendo a regras que são tributárias das macrorrelações
sociais em meio às quais os indivíduos se movem em suas relações interpessoais. A
análise de um tipo particular de dádiva - aquela realizada entre patroas e empregadas
46

domésticas - nos servirá como exemplo para o aprofundamento da compreensão


Página

dessa capa- cidade micropolítica das emoções.


Dádiva, hierarquia e emoção: as trocas de presentes entre patroas
e empregadas domésticas
As trocas de presentes são um tema consagrado da antropologia desde as
obras seminais de Malinowski (1976) e Mauss (1974), atravessando a história da
disciplina em sucessivas formulações teóricas. Originalmente baseadas em da- dos
etnográficos de sociedades tribais, as teorias da dádiva acompanham o movimento da
antropologia de voltar-se para o estudo das sociedades complexas, tendo engendrado
também estudos sobre os sistemas de troca de aldeias (Yan, 1996), cidades (Cheal,
1988) ou mesmo países (Hendry, 1995; Miller, 1993; Yang, 1994).
Nos estudos voltados para a dádiva em ambiente urbano, sua associação com a
expressão emocional é frequente. Seguindo essa linha, Coelho (2006a) empreendeu
uma análise da dádiva junto a segmentos de camadas médias da Zona Sul do Rio de
Janeiro, procurando perceber de que forma as trocas de objetos materiais são aí
utilizadas como meio para que os sujeitos falem de si, de quem são e do que sentem.
Retomando a clássica formulação de Mauss de que a dádiva dramatiza o vínculo
existente entre doador-receptor, a autora identificou a existência de uma elaborada
gramática que regula, entre outros aspectos da troca, a escolha dos objetos e as
expectativas de retribuição.
Os dados utilizados foram um conjunto de seis entrevis tas realizadas com
mulheres de um mesmo grupo profissional (professoras de línguas estrangeiras), com
idades variando aproximadamente entre 50 e 70 anos, residentes na Zona Sul do Rio
de Janeiro (à exceção de uma moradora da Barra da Tijuca). Nesses depoimentos, as
entrevistadas falaram dos presentes que davam e recebiam, das ocasiões do
presentear, dos critérios que utilizavam para escolher os presentes que dariam.
Contaram também diversas histórias sobre presentes marcantes que haviam dado ou
recebido. Em meio a esses rela- tos, falaram sobre os presentes que davam a suas
empregadas domésticas, em trocas regidas por critérios bastante diversos daqueles
utilizados no presentear de amigos, filhos, maridos e parentes. Esses depoimentos
foram em seguida contrastados com a "fala" das empregadas domésticas a respeito
dos presentes recebidos de suas patroas. Essa "fala" foi obtida pela autora através de
relatos recolhidos por uma babá e a ela transmitidos e por u ma entrevista concedida
por uma acompanhante que trabalhava para um senhor idoso.
Nessas trocas, um tema emergia com enorme clareza: a importância atribuída
pelas patroas à demonstração, pelas em- pregadas, de gratidão pelo objeto recebido, e
que entrava em flagrante contraste com a recusa destas em sentir-se gratas. Algumas
histórias ilustram bem esse "embate emocional" entre patroas e empregadas.
A primeira história foi narrada por uma patroa como exemplo de uma pessoa a
quem não gostava de dar presentes porque, segundo ela, a empregada "não sabia
receber presentes". Ela havia comprado para a empregada um descascador de abacaxi
idêntico ao que comprara para si mesma, e a em- pregada reagira com desagrado ao
presente, como costumava fazer sempre que a patroa lhe dava um presente. Na
avaliação da patroa, a moça era "amarga", "se supervalorizava", "não compreendia" .
47

A segunda história nos mostra o outro lado da moeda: a satisfação da patroa


com a evidente alegria da empregada com o presente recebido - uma tampa plástica
Página

para micro- ondas. A história é narrada pela patroa como exemplo de um presente que
ela havia gostado especialmente de dar, porque a faxineira (ao contrário da
personagem da história anterior) ficava "tão agradecida com as coisas que a gente dá".
Fica clara, assim, a importância da gratidão para as patroas nesse tipo de
dádiva. Esse sentimento, contudo, não é um "suplemento" da troca, um aspecto entre
outros. Ele parece ser a própria retribuição, uma vez que as patroas não esperam
receber de suas empregadas qualquer objeto material e mesmo, no limite, não
querem receber nada, dizendo-se "constrangidas" ou com "pena" diante da ideia de
que a retribuição viesse sob uma forma também material.
O modelo ideal dessa forma de troca parece ser assim, para as patroas, um
objeto material em troca de um senti- mento - a gratidão. A "boa empregada" é aquela
que demonstra estar agradecida sem fazer qualquer esforço para retribuir no plano
material. Ora, essa "gramática", parece contrariar o modelo da troca esboçado por
Mauss, em que a retribuição é não só desejada como obrigatória. Qual o sentido
subjacente a essa forma que a dádiva assume entre patroas e empregadas?
Vimos, com Simmel, que a gratidão tem um "gosto de servidão". Para ele,
sentir-se grato seria a expressão emocional da aceitação de uma impossibilidade de
retribuir, o que colo- caria o receptor em uma posição de inferioridade hierárquica.
Receber um presente sem esforçar-se por retribuir e, além disso, demonstrar-se grata,
seria assim aquilo que, aos olhos das patroas, dramatizaria a aceitação pela empregada
de seu lugar de submissão em uma relação marcada pela hierarquia.
Mas e se invertermos o ponto de vista e olharmos para essas trocas pelo
ângulo das empregadas? Qual imagem dessa patroa que se autorrepresenta como
"generosa" surgiria daí?
Hobbes afirma que:
Receber de alguém, a quem nos consideramos iguais, benefícios maiores do que
poderíamos esperar retribuir, dispõe a um amor contrafeito, que em verdade é ódio secreto.
Isto coloca um homem no estado de um devedor desesperado, que, ao evitar ver seu credor,
silenciosamente deseja que ele esteja onde nunca mais possa vê-Ia. Porque os benefícios criam
obrigações, e as obrigações são uma servidão, e as obrigações que não podemos quitar, estas
são uma servidão perpétua, o que, para um igual, é odioso.
Citado por Miller (1993:15, tradução nossa)

Temos aqui um nuançar da experiência afetiva da gratidão, em que, em vez de


uma resignação tranquila à ocupação de um lugar de dívida que expressaria uma
inferioridade hierárquica, esse sentimento aparece mesclado ao ódio por ver-se
relegado a essa posição. Duas histórias, contadas pela acompanhante entrevistada,
permitem compreender melhor a dinâmica afetiva.
Na casa em que trabalha como acompanhante de um senhor idoso, há duas
outras empregadas: a cozinheira, que está na casa há muitos anos, e a acompanhante
com a qual reveza. Esta colega dera à patroa, como presente de aniversário, uma
cafeteira, a qual comprara a prestações devido ao preço, muito alto em comparação
com seu poder aquisitivo. A patroa, contudo, em vez de apreciar o sacrifício embutido
no presente, ficara irritada e não usara a cafeteira, sequer" colocando-a sobre a cama"
48

ao lado dos demais presentes (forma implícita de recusa), tendo mais tarde
Página

comentado com a cozinheira que a moça era "muito metida" por dar um presente
daquele valor.
A segunda história é sobre um presente de Natal dado por essa patroa à
entrevistada: uma lata de biscoitos. A entrevistada fala sobre esse presente de forma
irritada e ressentida, mencionando duas razões para seu desagrado: o baixo valor ("a
gente trabalha o ano inteiro pra no final ganhar uma lata de biscoitos?") e a
desatenção quanto a sua maneira de ser ("então ela não vê que eu vivo de dieta?").
Nessas duas histórias há de saída três elementos importantes para
entendermos a "negociação" em que se engajam patroas e empregadas por meio
dessas dádivas. O primeiro deles é que receber um presente material de sua
empregada, em particular se for caro, ofende a patroa, em vez de agradá-Ia; à luz de
sua expectativa de ser "paga" com gratidão, essa oferta pode ser entendida como uma
reivindicação de igualdade, ferindo a regra implícita de dramatização do vínculo
hierárquico que as une (aos olhos da patroa). O segundo é a recusa da empregada, por
sua vez, a receber um presente: a lata de biscoitos, ao desagradar por seu baixo valor,
é equiparada ao salário, como se fosse remuneração por um trabalho, e não uma
dádiva. O terceiro elemento é a reivindicação, da parte da acompanhante, de ser vista
como sujeito singular que tem gostos e idiossincrasias, em vez de ser encarada como
ocupante de um papel: a lata de biscoitos, ao desconsiderar sua preocupação com
dietas, seria um presente de uma patroa para uma empregada, ou seja, uma troca
entre papéis sociais, e não entre sujeitos individualizados.
Se acrescentarmos ao quadro o relato da acompanhante sobre os presentes
que dá à sua patroa, poderemos ver com mais nitidez o modo como essa relação
trabalhista que emoldura o relacionamento entre ambas é negociada no plano afetivo.
Seus presentes para a patroa são sempre os mesmos: "meias de três reais". Isso é dito
com certo desprezo tingido de raiva, porque essas meias são aceitas e "colocadas
sobre a cama", apesar da desvalorização de que são alvo pela própria doadora.
Ao escolher assim seu presente, essa acompanhante realiza um movimento
ambivalente: conforma-se à sua posição de "inferioridade" ao aceitar entrar na relação
como aquele que pode dar menos, nesse movimento alcançando, paradoxalmente,
certa igualdade ao ser recebida como "parceira" de trocas, pois seu presente é
"exposto na cama" e usado (ao contrário da cafeteira). Ao receber a lata de biscoitos,
contudo, essa resignação desaparece e surge em seu lugar uma agência expressa no
plano emocional: a acompanhante não fica grata, e as "meias de três reais" não são
assim exatamente uma retribuição, mas antes um revide à lata de biscoitos.
A gratidão desejada pelas patroas surge assim como um sentimento capaz de
atuar no reforço dos vínculos hierárquicos, quando expresso docilmente pelas
empregadas em resposta às dádivas materiais recebidas e não retribuídas. Por sua vez,
essa mesma gratidão, quando negada pelas empregadas e substituída por indiferença
e/ou ressentimento, é a tradução emocional da recusa em ocupar o lugar que aquela
dádiva, ao não poder ser retribuída no plano material, insiste em colocá-Ias. Essa
"ingratidão" teria assim um "gosto de insubordinação", realizando um trabalho
micropolítico de contestação das hierarquias sociais.
49
Página
Capítulo 4

As emoções nas sociedades ocidentais modernas


Até o momento, falamos das emoções nas sociedades oci- dentais como uma
etnopsicologia que precisa ser relativizada quando pensamos as relações entre o
indivíduo e a sociedade ou entre a biologia e a cultura. Colocamos em questão nos
capítulos anteriores a necessidade de separar visões nativas dessas sociedades de um
instrumental teórico para estudar as emoções nas ciências sociais. Neste último
capítulo, restringimos o foco da discussão para tomar agora essa etnopsicologia não
mais como problema, mas como visão de mundo que orienta e organiza a experiência
emotiva das pessoas nas sociedades ocidentais modernas.
Quando pensamos a vida em uma sociedade ocidental moderna, é comum vir à
mente a imagem de massas de pessoas transitando pelas ruas de uma grande
metrópole, ao lado de muitas outras desconhecidas. Nesse quadro, há frequente-
mente certa pressa no ar bem como a sugestão de relativo isolamento entre as
pessoas, apesar da proximidade dos corpos na rua. Programas jornalísticos de
televisão recorrem sempre a imagens assim ao tratar sobre temas variados que dizem
res- peito à vida nas sociedades ocidentais modernas. No cinema, os muitos filmes de
Woody Allen rodados em Nova York tornaram-se exemplos clássicos com seu
tratamento constante das angústias e dificuldades na construção das relações pes-
soais, e das amorosas em particular, naquele contexto. O que gostaríamos de ressaltar
é que essas imagens e sentimentos são tão frequentemente apresentados na televisão
e em filmes porque mostram questões significativas da experiência subjetiva em uma
grande metrópole ocidental moderna.
Assim, pretendemos aqui analisar em maior profundidade alguns aspectos em
torno da vivência das emoções nessas sociedades, tomando como base a obra de
alguns autores. A partir de Sennett, examinaremos a tensão entre a expressão dos
sentimentos e sua autenticidade, uma vez que o ato de expressá-los é visto como
afetando sua qualidade. Discutiremos também a preocupação com o controle das
emoções, referindo-nos para tanto aos estudos de Elias sobre o processo civilizatório e
de Simmel sobre a vida na metrópole moderna. Como contraponto dessa questão,
analisaremos o valor dado também ao hedonismo, pensando com os trabalhos de
Duarte e de Campbell a associação entre consumo e busca de prazer. Ilustraremos a
presença desses valores com a discussão da felicidade na mídia, do risco nos esportes
radicais e da vivência do amor nas sociedades ocidentais modernas.

A tensão entre sentir e expressar


Já apontamos no primeiro capítulo que, na etnopsicologia ocidental moderna, a
expressão dos sentimentos é vista como um domínio sujeito às regras sociais que
regulam quando, como e para quem manifestar emoções. Em contrapartida, o
sentimento em si seria uma reação da ordem do natural ou mesmo do biológico que
pode ser distingui da das normas sociais. Seria, portanto, um fenômeno ao mesmo
50

tempo individual, no sentido de particular a cada um, e comum a todos como seres
Página

humanos.
Fundamental nessa visão é a concepção de que a pessoa possui uma dimensão
interna e privada, que se distingue de sua apresentação pública. As emoções
localizam-se assim nessa interioridade, surgindo daí a ideia de uma distinção entre o
sentimento sentido e o sentimento expresso. Essa diferenciação reproduz então
aquela entre as esferas privada e pública, que, no caso das emoções, ganha uma
valoração específica: o que é sentido e pensado no privado é verdadeiro enquanto o
que é apresentado em público pode ser falso. Cria-se, por- tanto, uma tensão entre
sentir e expressar os sentimentos, questão bem explorada no estudo de Sennett
(1988) sobre o declínio do homem público.
Ele busca compreender o surgimento de uma desvaloriza- ção da vida pública,
propondo também uma análise de seus efeitos sobre a subjetividade do in divíduo. O
autor traça as origens desse quadro à queda do Antigo Regime na França e de
processos instaurados com a formação de uma nova cultu ra capitalista, urbana e
secular. Até então, o domínio público significava basicamente uma região da vida
social separada da esfera da família e dos amigos, povoada por conhecidos e estranhos
de origens sociais diversas. O foco da vida pública era a capital e era cosmopolita a
pessoa que se movimentava confortavelmente nessa diversidade social. A distinção
fundamental no século XVIII entre público e privado dava-se pela separação entre as
demandas da civilidade, expressas no comportamento público e cosmopolita, e as
demandas da natureza, satisfeitas pela família. Apesar de conflitantes, eram exigências
que podiam se equilibrar. Nessa perspectiva, era possível interagir com estranhos de
forma emocionalmente satisfatória, mantendo-se ao mesmo tempo indiferente a eles,
e esse era o modo como o ser humano se transformava em um ser social. A
capacidade para estar com a família e os amigos era vista como uma potencialidade
natural. Assim, relacionar- se com o mundo público era uma questão de cultivo social,
do aprendizado de regras de convívio, enquanto no mundo privado realizava-se o que
seria da natureza do indivíduo.
Sennett identifica três fatores principais que levaram a uma mudança nesses
significados em torno do público e do privado. Primeiramente, o desenvolvimento do
capitalismo industrial gerou uma pressão para uma maior privatização. que
transformou a família não apenas em um refúgio idealizado como também em um
padrão moral com o qual avaliar a esfera pública, que passou a ser vista como
moralmente inferior. A qualidade material da vida pública também foi afetada pela
produção em massa de roupas, de tal modo que os marca dores de classe social pela
vestimenta se tornaram a princípio confusos e a diversidade de pessoas foi adquirindo
uma aparência mais homogênea no mundo público. Com isso, os estranhos passaram a
ser mais misteriosos e a vida pública mais incerta, contrastando então com o
aconchego oferecido pela família.
Em segundo lugar, aponta para uma mudança na subjetividade em função de
uma nova forma de secularização. Todas as sensações experimentadas passaram a ter
estatuto de fato. Portanto, nada que provocasse sensações devia ser excluído da
esfera privada de uma pessoa, tendo assim uma qualidade i mportante a ser
descoberta. Tornou-se plausível considerar as emoções fatos em si, compreendendo-
51

as a partir das situações em que eram manifestadas. Essa mudança teve como efeito
sobre a vida pública o esmaecimento das fronteiras entre O que era tido como pessoal
Página

e como impessoal, uma vez que todas as experiências contam igualmente. As


aparências apresentadas na esfera pública deixaram de ter um significa- do próprio e
passaram a ser vistas como pistas de uma essência interior a ser descoberta.
Por último, o autor destaca a força da sobrevivência da vida pública nos moldes
do Antigo Regime, no qual aquele era o espaço de possíveis transgressões morais. Em
contraste com os ideais de comportamento esperados no mundo da família, em
público as pessoas experimentavam sensações distintas de outros contextos, havendo
tolerância à quebra das regras de respeitabilidade. Sennett observa que essa relação
com o público era distinta para homens e para mulheres, que corriam um risco moral
mais significativo. Mesmo assim, a experiência de vida entre estranhos, que já era
fundamental para o exercício da civilidade e para a construção da orde m social,
continuou considerada importante, mas com um novo sentido. Agora, o foco era não
mais o coletivo e o público, mas sim o individual e o privado - a formação da
personalidade, que precisaria do contato com estranhos para se desenvolver.
Da atuação dessas três forças resultou, na visão de Sennett, uma sociedade
intimista que passou a subjugar a experiência da vida em público ao seu significado
subjetivo para o indivíduo. Assim, a expressão de si na vida pública tornou-se um
problema. Antes do século XIX e das mudanças discutidas acima, expressar-se em
público significava apresentar estados emotivos através de formas já estabelecidas e
padronizadas, independentemente de quem os estivesse apresentando. No presente,
espera-se que a expressão seja absolutamente pessoal e idiossincrática, como parte de
uma busca constante do eu. Ser1nett ressalta que não se trata de uma distinção entre
o expressivo e o inexpressivo, mas entre formas distintas de transação emocional.
Antes, os modos convencionais de expressar uma emoção permitiam que ela pudesse
ser manifestada várias vezes, por pessoas diversas. Agora, o foco da interação deixa de
ser o outro e passa a ser um trabalho incessante para descobrir o que cada um sen- te.
As formas ritualizadas e convencionais de se comportar tornam-se alvo de
desconfiança por não serem vistas como autênticas, além de cercearem o mergulho na
descoberta de razões e impulsos internos.
Por sua vez, as expressões autênticas dessa interioridade são valorizadas,
principalmente quando acontecem em público. Como a personalidade passa a ser vista
cada vez mais como algo que não é controlável, mas que tem existência e força
próprias, as emoções são vistas igualmente como reações nem sempre controláveis. As
expressões de sentimentos em público são consideradas então sinal de autenticidade,
principalmente entre figuras públicas como políticos e artistas, que estariam sempre
representando. Com isso, a separação entre comportamentos públicos e privados
deixa de ser vista como algo controlável pelo sujeito e a linha entre o sentimento
privado e sua apresentação pública torna-se fluida. Produz-se assim uma
supervalorização do mundo privado e a erosão do mundo público.
Essa crise na distinção entre os domí nios da vida social gera, segundo Sennett,
desordens de "caráter" provocadas pela emergência do narcisismo como configuração
subjetiva predominante. A autoabsorção que o narcisismo promove, longe de ser fonte
de gratificação, fere o eu, pois nada de novo o atinge. Como as interações passam a
não ter o outro como foco e sim um processo de descoberta de si, surgem sensações
52

de falta de conexão e de vazio. As relações impessoais deixam de ter qualquer


significado, pois não são autênticas. Nesse quadro, a busca pelas motivações e
Página

intenções do outro na interação conta mais do que suas ações. Cria-se então uma
cultura pautada no sentimento de intimidade como medida de significado de
realidade.
A valorização da intenção sobre a ação pode ser bem ilustrada no filme norte-
americano Denise está chamando (1995), do diretor Hall Sawen. Trata-se de um grupo
de amigos que moram em Nova York que está constantemente em contato por
telefone (ainda é uma época sem as tecnologias de comunicação da internet], mas que
têm dificuldades de se encontrar face a face. O filme começa com os amigos se
perguntando se vão à festa de uma das personagens e, embora todos digam que sim,
ninguém aparece no encontro. Todos justificam que quiseram ir, mas, no último
momento, não puderam compare- cer. O mes mo acontece com o enterro de uma das
amigas, que morre em um acidente de carro causado por estar dirigindo e falando ao
telefone ao mesmo tempo. Todos manifestam sua intenção de ir, mas não vão. Em
seguida, outra personagem inicia um relacionamento amoroso com um homem que se
dá apenas por telefone. Após algum tempo o namoro começa a esfriar porque um
passa a desconfiar dos verdadeiros senti- mentos do outro, em função da mudança do
tom da voz ao telefone. O filme termina com uma festa de ano-novo, organizada por
um dos personagens, para a qual todos se dirigem, mas acabam passando direto pela
porta do edifício, sem tocar a campainha. Quando Denise, que vai à festa para também
conhecer o pai do filho que ela concebeu por inseminação artificial, aperta o interfone,
não é atendida.
Embora o filme possa ser pensado sob vários aspectos, em particular o
paradoxo de relações que são alimentadas pelo fio do telefone, mas não pela presença
física diante do outro, o que vale a pena destacar aqui é a aceitação da intenção - e
não de sua concretização - de estar junto como força motora das relações. Todas as
ausências nos encontros são aceitas e não vemos no filme nenhuma reação de raiva ou
desaponta- mento em relação aos outros. Mais do que agir pelo e com o outro - ir à
festa que ele prepara, compartilhar a dor de sua perda com outros, e
significativamente conceber um filho com o outro - importa fundamentalmente a
intenção de estar com ele. A intenção é entendida como autêntica, como reveladora
dos verdadeiros sentimentos que uma pessoa tem, ilustrando assim a ênfase intimista
que Sennett identifica nas sociedades ocidentais modernas.

O controle das emoções


A segunda questão que se coloca para a experiência das emoções nessas
sociedades é a ideia de que o sujeito deve ter um autocontrole emotivo. Podemos
exemplificar esse valor com a discussão sobre as emoções presentes durante a
gravidez nas matérias da Revista da Gestante, publicação da editora Online, veiculadas
nos números de 2007 (Rezende, 2008). Se a ansiedade e o medo são considerados
sentimentos normais às mulheres que estão na primeira gestação, há por outro lado
uma recomendação constante de que se deve bus- car um "equilíbrio" emocional.
Através das dicas e conselhos da revista, o objetivo é controlar assim a intensidade da
ansiedade e do medo para que se mantenham dentro de níveis "normais" e para que a
gestante se sinta tranquila.
53

A noção de que um equilíbrio das emoções é o ideal a ser atingido e mantido


foi analisada no estudo clássico de Elias (1993) sobre o processo civilizatório na
Página

Europa. Pela leitura dos manuais de etiqueta e bons costumes do final da Idade Média
até o início do século XX, Elias examina as mudanças nas regras em relação ao corpo e
às emoções que promoveram uma padronização do "aparato psicológico", como ele
denomina, articulando-as a transformações mais amplas na organização social. São
duas as principais forças atuando na formação da configuração social presente nas
primeiras décadas do século XX: a diferenciação cada vez maior de funções sociais e o
monopólio pelo Estado do controle da violência.
A crescente diferenciação das funções sociais gerou uma maior
interdependência entre as pessoas. Como consequência, o comportamento de cada
indivíduo passou a ser ajusta- do em relação ao dos outros, criando assim a
necessidade de um controle de si mais uniforme, mais estável e mais amplo. A
preocupação com a consequência de cada ato tornou-se elemento constante das
interações, reforçando, portanto, as exigências de manter o autocontrole. Embora o
processo de desenvolvimento desse controle afete diferentemente pessoas com
funções distintas, ele se dissemina por todos os setores da sociedade. Se, nos séculos
anteriores, a fonte de controle do comportamento vinha principalmente de fora, de
pessoas geralmente em situação social superior ou equivalente, que avalizavam ou
recriminavam as ações, gradualmente desenvolveu-se um autocontrole internalizado e
automatizado.
Por sua vez, o monopólio da força física pelo Estado, bem como a estabilidade
de suas instituições centrais, favoreceu também a contenção emocional como traço
psicológico significativo. Se nos séculos anteriores as disputas eram resolvidas de
forma mais individualizada, o uso da violência torna-se restrito aos aparatos de força
do Estado, criando a necessidade na pessoa de reprimir impulsos de agressão ao outro.
As ameaças físicas ao indivíduo foram gradativamente tornadas impessoais, de modo
que, segundo Elias, a vida tornou-se menos perigosa.

O resultado dessas forças sobre o indivíduo é um auto- controle constante que


leva a uma moderação dos afetos. A estrutura psicológica passa a estar dividida em
uma parte consciente e controladora e outra inconsciente e impulsiva. Com a
contenção dos impulsos passionais, as emoções ficam menos intensas. A percepção
das pessoas e das coisas torna- se mais neutra em termos afetivos, determinada
menos por medos ou desejos e mais pela observação direta do comportamento
humano.
O uso da observação de si e do outro integra dois processos destacados por
Elias: a racionalização e a psicologização dos comportamentos. A contenção emotiva e
a necessidade de ajustar a conduta em função dos outros e de suas possíveis
consequências produz uma forma cada vez mais racionalizada de agir. Nela, a
dimensão de planejamento e cálculo se destaca não apenas no modo como o sujeito
se comporta, mas também na maneira como ele lida com a conduta dos outros.
Desenvolve-se uma visão psicologizada dos indivíduos, que contribui também para a
previsão de comporta- mentos. Do mesmo modo que a pessoa adquire consciência de
seus impulsos e motivações no processo de controlá-los, passa também a perceber o
outro de modo similar, com nuances mais ricas. Assim, Elias afirma que a reflexão
54

contínua, a capacidade de prever e calcular, a regulação precisa de sua própria


conduta, bem como o conhecimento de todo o contexto de ação tornam-se condições
Página

indispensáveis de sucesso na vida social.


O controle dos outros tem sua contrapartida interna. Se a racionalização é uma
forma de observar e monitorar o comportamento do outro surgida com o processo
civilizatório, os sentimentos do medo (discutido no capítulo 1) e da vergonha tornam-
se meios de incutir a autorregulação. De um modo geral, essa emoção remete a uma
preocupação com a transgressão de normas que pode levar a uma degradação social
diante de outros. Ao longo do período que Elias analisa, o limiar de vergonha se
expandiu muito e mudaram as regras às quais o sentimento se refere. Segundo ele, o
sentimento de vergonha está estreitamente articulado à estrutura social. Tomando o
exemplo das atitudes diante das funções naturais do corpo, Elias mostra como a
exposição do corpo em público foi passando por um processo de isolamento
crescente, acompanha- do igualmente por mudanças na arquitetura das residências
que adquiriram um espaço reservado para os cuidados corporais. Se no século XVI a
vergonha da exposição do corpo surgia apenas na companhia de algumas pessoas de
posição social igualou superior, as funções naturais do corpo vieram a ser no século XX
objeto de controle constante diante de to- dos e de vergonha a ponto de não se falar
sobre o assunto.
Assim como o corpo, as emoções passam a ser foco de um controle estrito
regulado pela possibilidade da vergonha. Esse sentimento agora se vincula a uma
ansiedade e um medo de que o indivíduo perca o controle dos impulsos e emoções
que devem ser contidos. Se antes a fonte de repressão dos impulsos era externa -
pessoas e manuais de etiqueta -, agora é interna. Essa divisão da personalidade em
uma parte controladora e outra impulsiva produz uma tensão interna e é dela que
surge a vergonha, que se reporta menos à opinião social concreta do que à sua
internalização. É a possibilidade de uma crítica ou repreensão, e não seu
acontecimento de fato, que aciona a vergonha. Assim, é em função desse conflito
interno que o indivíduo se reconhece como inferior e indefeso diante dos gestos dos
outros.
Todos esses processos psíquicos e afetivos contribuem para a formação de uma
estrutura psicológica particular, na qual Elias identifica alguns problemas. A educação
das crianças no presente passou a ter que incutir desde cedo e em poucos anos um
controle sobre o corpo e sobre os afetos que os indivíduos desenvolveram em vários
séculos. O grau de tolerância aos "maus comportamentos", principalmente em relação
à etiqueta em torno do corpo, diminui muito, de forma que eles tendem a desaparecer
muito cedo. A criança que não atinge o nível de controle emocional esperado é vista
como "doente", "anormal", "impossível", marcando o tipo de vida que poderá ter.
Além disso, como o impulso de sentir prazer com certas funções corporais deve
desaparecer da consciência do adulto, o prazer torna-se mais secreto e privado. A
própria fruição de certas emoções é deslocada para o plano da fantasia e para o
consumo de livros e filmes (aspecto que será discutido mais adiante com o trabalho de
Colin Campbell). Esses conflitos internos em torno do controle dos impulsos e
sentimentos produzem, na opinião de Elias, uma dificuldade de vivência afetiva, que
por sua vez gera distúrbios de comportamento, compulsões e excentricidades. Se a
vida torna-se menos perigosa, torna-se também menos prazerosa e essa é uma das
55

cicatrizes deixadas pelo processo civilizatório na visão de Elias.


A vida em uma metrópole revelaria de forma ainda mais aguda algumas dessas
Página

tensões na subjetividade do indivíduo. Em sua análise seminal, Simmel (1987) examina


os tra- ços mentais que compõem um morador de uma metrópole no início do século
xx, com aspectos que se aproximam da leitura de Elias sobre as sociedades ocidentais
modernas. Ele destaca que a base psicológica da individualidade metropolitana
assenta-se na intensificação da demanda colocada sobre a vida emotiva em função da
mudança contínua de estímulos externos. Como consequência, os indivíduos
desenvolvem mais as reações racionais, como uma forma de proteção interna à
diversidade e descontinuidade externas. Já nas cidades pequenas, o ritmo de vida é
mais lento e uniforme, permitindo relações mais pautadas na afetividade.
A predominância do racional na metrópole é também alimentada por duas
características sociais que Simmel considera marcantes da metrópole moderna: ser
sede da economia monetária e possuir uma alta divisão de trabalho. O primeiro fator
estimula um comportamento mais calculista, dominado pelo intelecto. Há também
necessidade de precisão e pontualidade nas interações, de maneira a permitir a boa
integração da diversidade de atividades decorrente da divisão do trabalho. Tal
precisão, por sua vez, exige a contenção dos impulsos irracionais. Além disso, o poder
nivelador do dinheiro valoriza o que é comum a todos, sendo, portanto, indiferente às
individualidades. Decorre então uma forma de interagir altamente impessoal que lida
com os outros de modo uniforme e distanciado.
Outro aspecto relacionado a essas características e particularmente típico da
metrópole é a atitude blasé. Esta se desenvolve como uma dificuldade de reagir
emocionalmente à rapidez nas mudanças dos estímulos externos. Sua essência é uma
indiferença às distinções entre as coisas, que têm para o indivíduo uma aparência
homogênea e superficial, sem densidade. Nesse sentido, Simmel associa a atitude
blasé também ao poder nivelador do dinheiro, que reduziria tudo a um denominador
comum.
De forma semelhante à atitude blasé, encontra-se nos habitantes da metrópole
uma atitude de reserva diante dos contatos com as pessoas. É também uma reação de
autopreservação diante da quantidade de estímulos externos, evitando um estado de
"atomização interna". A experiência subjetiva da reserva seria não apenas indiferença
aos outros, mas até mesmo certo estranhamento e aversão a eles, que em alguns
casos pode acarretar ódio e conflito. Está também associada ao sentimento de solidão,
que contrasta com a proximidade dos corpos na metrópole.
Por outro lado, essa reserva promove um sentimento de liberdade individual.
Este traço, como argumenta Simmel, é uma forte tendência na evolução da vida social
na medida em que as sociedades crescem, perdem a coesão estreita dos pequenos
grupos e desenvolvem uma divisão especializada do trabalho. Com um controle social
mais relaxado e com o desenvolvimento das necessidades da vida pública, a vida
subjetiva é mais desenvolvida no sentido de acentuar as singularidades de cada um. Há
também esforços contínuos de se diferenciar e chamar atenção sobre a
individualidade que podem produzir excentricidades e extravagâncias, típicas das
grandes cidades.
Assim como Elias, Simmel também identifica problemas no surgimento dessas
formas mentais e das relações sociais que elas engendram. Por um lado a metrópole
56

permite obser- var os dois tipos de individualismo desenvolvidos nos séculos XVIII e
XIX, que enfatizam respectivamente, os valores da liberdade e igualdade entre os
Página

indivíduos, bem como a valorização da diferenciação e da singularidade de cada um.


Por outro lado, há nela um forte descompasso entre as realidades subjetiva e objetiva.
A vida subjetiva não consegue se desenvolver no mesmo ritmo da objetiva, levando às
características mentais da impessoalidade, da atitude blasé e da reserva diante da
profusão de estímulos externos. A cultura objetiva, com toda a sua diversidade, acaba
sendo desvalorizada por atitudes que a captam somente em função de seus
denominadores comuns.
Portanto, a tônica da formação subjetiva típica nas sociedades ocidentais
modernas é, segundo esses autores, uma contenção constante dos impulsos e das
emoções. Embora ambos considerem os sentimentos pulsões naturais, que to- dos os
seres humanos possuiriam, sua expressão é certamente regulada pela sociedade e pela
época em que vivem. Assim, em função de transformações sociais mais amplas, como
a crescente divisão social do trabalho, a economia monetária e o monopólio da força
pelo Estado, surgiu a necessidade de ações coordenadas que implicariam reações mais
racionais, pouco afetivas. A metrópole condensa e aguça esse traço de controle
emotivo, criando atitudes particulares como a reserva e a postura blasé nas interações
sociais.

A ênfase hedonista no prazer


O hedonismo é outro valor também presente nas sociedades ocidentais
modernas, existindo em tensão com a tônica da contenção emotiva. A valorização do
prazer assume for- mas diversas nas sociedades ocidentais modernas e se revela com
nitidez em práticas de consumo, como as atividades esportivas, de lazer e a relação
com a mídia. Para entender essa ênfase na vivência do prazer, apresentamos o ensaio
de Duarte (1999), que recupera alguns aspectos de sua origem romântica e introduz
algumas de suas feições contemporâneas, fazendo uma ponte com o estudo de
Campbell (2001), ao qual recorremos para analisar a articulação entre hedonismo e
consumo.
Duarte argumenta que há, nas sociedades ocidentais modernas, uma forte
valorização dos sentidos. Associado a uma concepção de sujeito particular a essas
sociedades, existe um "dispositivo da sensibilidade" que teria se desenvolvido entre os
séculos XVII e XVIII. Ele é pautado em três ideias fundamentais e articuladas em torno
do sujeito e de sua relação com o mundo: a perfectibilidade, a experiência e o
fisicalismo.
A perfectibilidade se traduz na ideia iluminista de que a espécie humana possui
a capacidade de se aperfeiçoar constante e indefinidamente. O pressuposto desse
argumento e a noção de que o ser humano é um ser de razão, portador de uma
"verdade" situada em seu "interior" e esteio de sua "vontade".
Para que se desenvolva a perfectibilidade, é preciso estar em relação com o
mundo exterior. A experiência do mundo com os "sentidos" torna-se assim o meio de
aperfeiçoar a razão humana. Nessa proposição, a ideia de "sentido" é crucial, pois ela
está tanto na raiz da razão quanto da emoção. Os "sentidos" são tomados como
"veículo de instrução das atividades da mente" e também" de articulação das relações
humanas" (1999:25). A experiência é então ao mesmo tempo um fato cognitivo e
57

emocional.
Página

O fisicalismo, terceiro tema discutido por Duarte, está também implicado nos
outros dois. Trata-se de uma concepção de sujeito que surge da separação entre corpo
e espírito e que vê na corporalidade uma lógica própria. Assim, busca-se descobrir essa
lógica para compreender suas implicações para a condição humana. Com novas formas
de pensar o funcionamento do corpo desenvolvidas no século XIX, em particular do
sistema nervoso, surge a noção de uma sensibilidade que é ao mesmo tempo
"fisiológica" e também "sentimental". Como esta última conotação é mais englobante,
supõe-se que "as afecções do espírito são ao mesmo tempo dependentes e autônomas
do 'substrato' nervoso" (p. 26).
Estruturando, portanto, esse "dispositivo de sensibilidade" estão os três temas
articulados, que produziram na visão de Duarte uma exploração sistemática do corpo
humano como foco de uma busca incessante de exacerbação da sensibilidade e de
intensificação do prazer. Desse processo de valorização de novas experiências
sensoriais desenvolveram- se estratégias de maximização da vida, como nas várias
especialidades da medicina, e de otimização do corpo, como o consumo de drogas
legais e ilegais. Com elas, revela-se uma tensão entre dois conjuntos de valores: o
investimento na duração e preservação da vida, para o qual a contenção emotiva é
elemento importante, e a aposta na vivência da intensidade em curto prazo, marca da
ênfase hedonista.
Essa ênfase vai adquirir matizes específicos no século XX, na leitura de
Campbell (2001), se em comparação com outras épocas. A forma "autoilusiva"
característica do presente, que se deve em muito ao papel da mídia na estimulação do
consumo, diferencia-se do hedonismo de outras épocas, que ele chama de tradicional.
Em ambas as formas, há em comum o elemento de desejo e antecipação de um
acontecimento que produz prazer. No modo tradicional, esse desejo vem das imagens
da memória de uma experiência já vivida como prazerosa. No hedonismo moderno e
autoilusivo, o desejo surge de uma qualidade antecipada de prazer de uma experiência
que ainda não foi vivida. Se na primeira forma a novidade pode ser vista com
desconfiança, na atual ela é motor do desejo.
No hedonismo autoilusivo, os indivíduos consomem principalmente imagens
mentais pelo prazer que elas proporcionam. Campbell distingue três formas de
imaginação. A fantasia é a imagem que se cria sem ajustes em relação ao real e que se
permite pelo prazer oferecido. Do lado oposto esta a antecipação, a imagem que se
conforma estreitamente a experiência. Como meio-termo, temos o devaneio, foco de
análise do autor, que se pauta em imagens de acontecimentos futuros ajustadas ao
real, mas que se permitem ser agradáveis. Haveria assim nesse hedonismo uma tensão
entre os prazeres da perfeição que vêm da fantasia e aqueles da realidade potencial
que o devaneio proporciona.
Campbell (2001: 126) argumenta que o devaneio se coloca como um hiato
entre o desejo e sua consumação. E um "estado de desconforto desfrutável". Por isso,
o devaneio acaba se tornando uma experiência mais prazerosa do que o consumo de
fato, que desencanta ao colocar diante do sujeito um objeto real com características
não imaginadas no sonho. O ato de devanear constantemente produz um afastamento
contínuo da realidade, uma vez que os devaneios levam sempre a no- vos objetos de
desejos, que por sua vez, ao serem consumi- dos, serão novamente decepcionantes
58

por distinguirem-se da imagem sonhada. O anseio como um desejo sem foco, que não
tem um objeto que possa realizá-lo, e a insatisfação tornam-se estados emocionais
Página

permanentes.
Por outro lado, são esses estados emotivos que motivam o consumo. Novos
produtos acenam com o prazer idealizado no devaneio, que não pode mais ser
esperado dos produtos já conhecidos e consumidos. A apresentação de um produto
como "novo" permite ao consumidor em potencial projetar nele um pouco do prazer
imaginado, oferecendo assim a possibilidade de que esse desejo se concretize. Por isso
Campbell (2001:132) afirma que o espírito do consumismo moderno não é
materialista, pois é calcado na ideia de que "a ilusão é sempre melhor do que a
realidade" .
Em função disso, o autor propõe, os produtos são menos importantes do que
sua representação. A capacidade de fantasiar se pauta mais no consumo de imagens
do que dos objetos em si. É por isso que a propaganda se torna tão imprescindível para
o consumo, já que é ela que se dirige ao devaneio associando o produto a certos
sonhos e assim despertando o desejo. Revistas, catálogos comerciais, anúncios e
cartazes são importantes, pois oferecem imagens que podem ser "desfrutadas", assim
como um romance ou um filme. Campbell argumenta inclusive que a satisfação
sensorial obtida com filmes, peças, programas de televisão e de rádio, discos e quadros
não é tão importante quanto o que eles podem oferecer em termos de imagens para a
elaboração dos devaneios.
Em resumo, Campbell (2001:115) destaca que o hedonista moderno é um
"artista do sonho" que tem capacidade de obter prazer das emoções despertadas por
estas imagens. Sua qualidade é "a aptidão de criar uma ilusão que se sabe falsa, mas se
sente verdadeira". Os indivíduos reagem subjetivamente a essas imagens e devaneios
como se fossem reais. Porém, como se afastam de fato do real, com necessidades e
desejos que não são satisfeitos, sentem-se permanentemente frustrados.
Baseados em Duarte e Campbell, podemos dizer, portanto, que a busca do
prazer é um valor que orienta o comporta- mento nas sociedades ocidentais
modernas. A exploração dos sentidos como meio de experimentar o mundo é o
alicerce de diversas práticas como apontou Duarte. É, em particular, a mola propulsora
do consumo, na visão de Campbell, que, entretanto, adverte para a insatisfação
permanente que ele produz ao desencantar o devaneio. A valorização do prazer torna-
se então um eixo que estrutura a experiência emotiva nessas sociedades, coexistindo
com a ênfase na contenção emotiva já discutida.

Controle e prazer combinados: dois exemplos


Muitas vezes o valor dado ao controle das emoções entra em choque com a
busca do prazer, que tende a estar associado à intensidade das sensações. Mas
encontramos também situações nas quais se pretende alcançar o prazer e a satisfação
através de medidas de controle de si e de planejamento. Ilustramos essa combinação
com dois exemplos de esferas distintas: o foco dado à felicidade na mídia e a vivência
do risco nos esportes radicais.
A felicidade tornou-se um sentimento a ser alcançado sempre, nas sociedades
ocidentais modernas. De acordo com Bruckner (2002:58), há mesmo um imperativo da
felicidade, que deixa de ser apenas um direito para se tornar um valor moral. Nesse
59

contexto, "prazer, saúde, salvação se tornaram sinônimos, pois o corpo passou a ser o
horizonte inexcedível, mas, sobretudo, se tornou suspeito não se sentir radiante". Para
Página

conquistar esse estado, desenvolve-se uma forte indústria que coloca ao alcance dos
indivíduos receitas de várias ordens com o objetivo de chegar à felicidade. Em todas
elas, o pressuposto é a noção de que este fim pode ser atingido por todos por meio de
um "condicionamento positivo", de disciplina pessoal.
A constituição de um imaginário sobre a felicidade nas sociedades ocidentais
modernas está estreitamente relacionada à mídia, como argumenta Condé (2007). Por
um lado, o consumo dos meios de comunicação de massa oferece não apenas
alimento para a elaboração de devaneios, nos termos de Campbell, como também
pode ser em si uma experiência prazerosa. Além disso, os próprios produtos da mídia
também colaboram para a construção da noção de felicidade. Vários o fazem, como a
tradição de filmes com final feliz, já mencionada no capítulo 2. Gostaríamos aqui de
discutir outra produção discursiva de massa: a "imprensa conselheira" analisada por
Condé (2008).
A "imprensa conselheira" é constituída por uma diversidade de materiais
jornalísticos que oferecem "conselhos", "receitas" e "dicas" para uma variedade de
questões práti- cas da vida. Condé argumenta que, nesse tipo de discurso, a felicidade
é, de um modo geral, um tema presente como a orientação dominante das prescrições
apresentadas. Mesmo que nem sempre de forma explícita, o foco na felicidade se
apresenta nas receitas para a satisfação de necessidades materiais, bem como para a
conquista de um estado subjetivo de bem-estar.
O ponto interessante dessa análise é que o meio de atingir a satisfação e o
prazer que levam à felicidade implica atitudes pautadas no valor do controle das
emoções. Recorrendo às reportagens de uma revista desse gênero de imprensa, Condé
apresenta como uma das formas de se alcançar a felicidade aí proposta o contato com
emoções consideradas "negativas" - medo, raiva, tédio -, aliado à sua compreensão
para que, uma vez conhecidas, possam ser controladas. Há também a ideia de que
para conquistar "realização pessoal" é preciso planejamento e moderação. O que
sobressai dessas matérias é uma concepção "pacificada" de felicidade, como Condé a
de- nomina, pautada no equilíbrio das emoções, na experiência comedida longe da
plenitude e do prazer intenso de momentos passageiros.
Outro caso que ilustra bem a combinação da busca do prazer e da intensidade
com alguma medida de controle é a vivência de risco presente nos esportes radicais.
Rocha (2008) discute o modo como a própria noção de risco é definida de modo
diferente por sociedades e épocas distintas. Correr risco é uma escolha individual
pautada por valores e significados culturais sobre o que é arriscado e provoca medo e
o que não é. O risco refere-se a uma norma específica que está posta em questão,
pondo em evidência valores centrais à constituição da sociedade. Assim, Bocha
argumenta que a mesma sociedade que produz a segurança como um bem coletivo
tende a conceber o risco como escolha puramente individual, quando de fato está
operando com significados culturais.
No caso dos praticantes da modalidade esportiva estudada por Rocha - o base
jump -, buscar o risco envolve uma opção por um estilo de vida pautado na "emoção".
Os base jumpers saltam de estruturas fixas construídas (edifícios e pontes) e naturais
(montanhas e penhascos) e acionam o paraquedas após certo período de queda livre.
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São várias as emoções sentidas no processo de saltar: o medo que antecede salto, a
liberdade de planar e a alegria de pousar. O risco e medo são considerados
Página

experiências positivas, pois permitem mostrar a superação de desafios, a coragem e a


capacita- ção dos praticantes. Para eles, a proximidade com a morte em cada salto
constitui uma oportunidade de exaltar e transformar a vida.
Neste sentido, o risco envolvido no esporte tem ressignificado os termos de
uma acepção negativa mais corrente no senso comum, para adquirir um sentido
positivo, como mostra Rocha. Possibilita assim um afastamento da "morte em vida",
que caracteriza, para esses praticantes, o cotidiano da vida "comum". Este é percebido
como tedioso, sem emoções, sem vida. Praticar o base jump seria, portanto, uma
forma de se afastar da morte simbólica, ainda que se aproxime da mor- te natural.
Com a preparação técnica para o salto e a presença de coragem e audácia, há a
possibilidade de vivenciar o risco de maneira mais controlada em busca da excitação e
do pra- zer associados a uma visão romântica do sujeito e da vida.

Autenticidade, prazer e controle: amor nos tempos modernos


Os valores do controle emotivo e da busca do prazer podem estar também
articulados à ênfase na autenticidade. Essa articulação é encontrada na forma como
são vividas as relações amorosas nas sociedades ocidentais modernas. Já abordamos o
tema no capítulo 2, ressaltando como a experiência amorosa coloca em questão a
relação entre indivíduo e sociedade. Destacamos, a partir de alguns textos, como a
ideologia individualista, com sua ênfase na autonomia individual perante grupos
sociais mais inclusivos, marca a noção moderna de amor, sentimento que
paradoxalmente é visto como tendo uma origem sobredeterminada, cósmica. Nesta
seção, vamos redirecionar o olhar para o modo como os valores discutidos até agora
informam a subjetividade e a vivência das relações amorosas, recorrendo
principalmente aos estudos de Bauman (2004) e Giddens (2002).
Bauman (2004) discute como as relações amorosas na modernidade são
tratadas como um investimento. Segundo ele, o relacionamento ganha ares de um
"negócio", no qual cada pessoa entra com tempo e esforço e espera o "lucro", que
seriam a gratificação e a segurança. Porém, a necessidade de estar sempre
monitorando a relação produz também uma incerteza permanente. Se o
relacionamento pode diminuir a insegurança que vem da solidão, cria também novas
incertezas. Comprometer-se, portanto, se torna uma "faca de dois gumes". Como
consequência, manter ou acabar o "investi- mento" passa a ser uma questão de cálculo
e decisão.
Bauman identifica nas relações amorosas a mesma ambivalência que encontra
de forma ampla no que ele chama de "modernidade líquida". Há o desejo de
segurança que vem com os compromissos com os laços sociais , ao mesmo tempo em
que há a vontade de ser livre e independente para fazer escolhas. Nas relações
amorosas, o compromisso atrai por oferecer confiança e segurança, mas assusta e
inquieta por com- prometer a liberdade individual. Diante das ambivalências em torno
destes vínculos, Bauman chama também o amor de "líquido".
Por isso, os relacionamentos amorosos tendem a ser reduzidos ao modo"
consumista", que exige satisfação imediata e no qual "o valor exclusivo, a única
'utilidade', dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação" (2005:70). Uma
61

vez interrompida a satisfação, não há por que manter a relação. Nesse contexto,
muitos preferem as "relações de bolso", discutidas por Bauman. Por serem relações de
Página

curta duração, instantâneas e disponíveis, permitem que a pessoa esteja no controle


da situação. Para que elas funcionem, deve-se entrar na relação de forma consciente e
"sóbria", evitando deixar-se arrebatar por fortes emoções. Nelas, a emoção do amor
não deve estar presente, pois, como diz Bauman, esse sentimento implica abertura ao
destino e a liberdade que se incorpora no outro. Em sociedades consumistas. que
favorecem produtos prontos, satisfação instantânea e garantida e poucos esforços, as
"relações de bolso" destacam-se por sua conveniência.
Com tom mais positivo, Giddens (2002) apresenta uma análise detalhada da
relação amorosa a partir de sua discussão da "relação pura", um tipo ideal que marca
as relações pautadas na intimidade sexual e as amizades. O principal traço distintivo da
"relação pura" é o fato de ser escolhida a partir de uma diversidade de possibilidades.
Embora as condições de vida limitem o grau de liberdade de escolha, a pluralidade de
possibilidades existente permite que o indivíduo se afaste de modelos tradicionais de
relação e constitua laços nos moldes da "relação pura".
Na modernidade tardia, como Giddens denomina, esse tipo de relação torna-se
extremamente significativo para o projeto reflexivo do eu. Ou seja, o eu é visto como
um projeto pelo qual o indivíduo é responsável e em função do qual age
reflexivamente. No processo de construção dessa autoidentidade, busca-se manter
uma trajetória coerente em termos de passado, presente e futuro, auxiliada pela
elaboração de uma narrativa explícita sobre o eu. O corpo é um elemento importante
desse projeto identitário, que integra um sistema de ação e de monitoramento
consciente das sensações e dis- posições corporais. O fio condutor do projeto de
autoidentidade passa a ser o valor moral da autenticidade, que exige a distinção entre
o falso e o verdadeiro eu. Nesse quadro, portanto, as relações puras tornam-se
escolhas realizadas por um indivíduo que age reflexivamente, buscando ser coerente e
verdadeiro consigo mesmo.
Giddens discute alguns traços que caracterizam a "relação pura". Em contraste
com os laços pessoais em contextos tradicionais, a "relação pura" não é ancorada nas
condições externas da vida social e econômica. Ao contrário, é iniciada e mantida pela
satisfação emocional que oferece. É justamente a motivação pautada no que a relação
pode prover que a torna "pura", uma vez que nenhum critério externo a ela a sustenta.
Como substituto das âncoras externas, ele argumenta que o compromisso de
ambas as partes com a relação passa a ter um papel fundamental na sua sustentação.
Embora o sentimento do amor possa alimentar o compromisso, é a decisão de cada
um de se comprometer que conta fundamentalmente. A pessoa comprometida está
preparada para aceitar os riscos envolvi- dos na escolha por aquela relação específica,
em detrimento de outras. Nesse sentido, a reciprocidade e a sintonia mútua em
termos do compromisso são imprescindíveis à "relação pura".
A intimidade e a confiança são também elementos centrais desse tipo de
relação. O foco dado à intimidade contrasta com a predominância das formas
impessoais de interação na esfera pública. Desse modo, a intimidade, como um
equilíbrio entre a autonomia individual e o compartilhamento de emoções e
experiências, torna-se valorizada e medida de estabilidade da relação em longo prazo.
Para criar intimidade, é preciso ter confiança para se expor ao outro, de forma que
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cada um passe a conhecer o outro verdadeiramente. A autenticidade retorna aqui


como valor moral, no qual se baseia a conquista da confiança e o desenvolvimento de
Página

intimidade entre as partes de uma "relação pura".


Além dos elementos citados, a dinâmica de manutenção da "relação pura" é
calcada em um questionamento reflexivo e contínuo, tendo como eixo a indagação
"está tudo bem?". Tal questionamento constitui parte central da própria relação,
podendo também gerar tensões ao buscar o equilíbrio e a reciprocidade entre ambas
as partes. No processo de escrutinizar em cada um os sentimentos diante da relação,
são examinadas e negociadas também as autoidentidades de ambas as partes. O
movimento de monitoração constante de si e da relação tem como objetivo buscar
sempre o que é autêntico para cada um, o que no caso da "relação pura" está
associado à satisfação emocional.
Tanto Bauman quanto Giddens ressaltam a força dos ele- mentos da escolha e
da busca da satisfação pessoal nas relações amorosas. Ambos estão baseados na ideia
de que o indivíduo constrói relações que são "verdadeiras", pois permitem expressar
sua interioridade de modo autêntico. Para que sejam verdadeiras, prazerosas e
satisfatórias, é necessário um controle e monitoramento sistemático de cada um na
relação. A vivência das relações amorosas nesses moldes ilustra a articulação dos
valores da autenticidade da expressão de si, do controle emotivo e da ênfase no prazer
e na satisfação característicos das experiências emotivas nas sociedades ocidentais
modernas.

Conclusão
A paciência é difícil, pois meu coração ainda está tão ferido ...
Imaginei, oh querida, que a distância
Seria a cura mas só fez piorar. ..
Esses poemas de amor foram recitados por um jovem beduíno, Fathalla, que
havia se apaixonado por sua prima e desejava se casar com ela. Os pais dos jovens
concordaram a princípio com o casamento, mas depois entraram em discussão, de
forma que o pai da moça se recusou a dar a mão da filha ao .rapaz. Como forma de
esquecê-Ia, Fathalla partiu para a Líbia, enquanto a jovem teve seu casamento
arranjado com outro rapaz. Quando Fathalla soube da notícia, compôs e gravou os
poemas e enviou a fita cassete para sua amada. Já casada, ela ouviu a fita e, quando
terminou, desmaiou e morreu.
À primeira vista, essa história contada por Abu-Lughod (1990) parece sugerir
que e amor é um sentimento universal, algo que todos podem sentir como seres
humanos. Ao mesmo tempo, parece ser também uma experiência absolutamente
individual e singular, distinta daquilo que outros sentem e com tamanha intensidade
que pode mesmo matar, como nesse caso do amor frustrado entre jovens beduínos e
também na tragédia de Romeu e Julieta que discutimos no capítulo 2.
Contudo, Abu-Lughod nos conduz a outras conclusões.
Sim, a poesia de Fathalla expressa o sentimento de amor, que curiosamente,
porém, não está presente nas conversas cotidianas sobre relações amorosas. Ao
contrário, a distância marca as relações entre homens e mulheres nessa sociedade e
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casais demonstram pouco o cuidado ou a atenção um com o outro. No cotidiano,


predominam os sentimentos de modéstia e vergonha - visíveis na forma de vestir e na
Página

postura corporal que implicam uma negação da sexualidade - que uma pessoa correta
e boa deve sempre apresentar. A deferência aos outros que a modéstia expressa é um
valor moral funda- mental, alicerce das relações de poder entre homem e mulher e
entre os mais velhos e os jovens.
O amor como base da união entre um homem e uma mulher é claramente
preterido em função dos casamentos preferenciais entre primos, que reforçam os elos
de parentesco do grupo patrilinear que estrutura a sociedade beduína. É em função
dessa estratégia de reprodução que o sentimento de modéstia é tão valorizado, pois
nega o interesse sexual e afirma a deferência à autoridade dos patriarcas. Neste
sentido, o sentimento de amor é considerado sem modéstia e desafiador, pois pode ir
contra os interesses e a ordem estabelecidos.
Como então entender a poesia de amor? Seria um senti- mento reprimido e
subversivo? Abu-Lughod diz que não. As poesias amorosas fazem parte de um gênero -
as ghinnawa - muito apreciado e recitado em ocasiões festivas e também em
conversas corriqueiras com pessoas proximas. São particularmente contadas e
cantadas por mulheres e jovens, mas ocasionalmente também por homens mais
velhos. Essas poesias falam de sentimentos que expressam um conjunto de valores
igualmente importante para um grupo tribal que já foi nômade, como os beduínos: a
autonomia e a liberdade, que, entretanto, existem em contradição com a deferência
dada à autoridade masculina tradicional. Neste sentido, Abu-Lughod argumenta que as
poesias amorosas tornam-se um discurso de desafio e resistência aos ideais da vida
social beduína, e são valorizadas como tal. Por isso a história de Fathalla emocionava,
pois mostrava o que o abuso de poder pode acarretar.
Assim, o amor na sociedade beduína é expresso segundo um tipo particular de
discurso: as poesias amorosas. Nesse contexto, a expressão do sentimento é valorizada
não apenas por falar do desejo de união entre duas pessoas, mas também por declarar
a importância da autonomia dos indivíduos. Com as mudanças econômicas no Egito
que, desde a década de 1980, vêm afetando o estilo nômade dos beduínos. os jovens
rapazes têm estado cada vez mais sob autoridade dos patriarcas, fazendo com que
recorram mais às poesias amorosas, agora gravadas em fitas cassetes, como forma de
protesto. Assim, muitas vezes a poesia era recitada por mulheres casa- das que tinham
sua liberdade tolhida, bem como por jovens que queriam reclamar do poder
econômico e político de seus pais e tios. Ou até mesmo pelo anfitrião da pesquisadora,
que tocou para ela a fita do poema ao levá-Ia ao aeroporto para se queixar do fato de
que ela os deixava ao retornar aos Estados Unidos. Em outros momentos, contudo,
manifestavam-se a modéstia e o recato, negando-se qualquer sentimento de interesse
ou atenção peio outro.
No final, descobrimos que a prima amada de Fathalla não morreu de amor e
vive casada com seu marido. O que Abu-Lughod sugere é que, mais do que tomar o
poema como uma expressão de um sentimento de amor não realizado, frustrado, sua
apresentação em um contexto particular revela as tensões relativas às pessoas e
relações específicas presentes naquela situação. Ou seja, mais do que expressar
estados internos que se mantêm indiferentemente do contexto de interação, o poe-
ma de amor é um discurso emotivo que, ao ser colocado para um grupo de pessoas,
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pode dramatizar ou alterar o estado das relações em questão, demonstrando assim o


potencial micro- político das emoções que discutimos no capítulo 3.
Página
Nessa história podemos reencontrar os principais pontos abordados ao longo
do livro. A tensão entre a universalidade de sentimentos ditos "naturais" e sua
susceptibilidade aos contextos culturais pode ser reconhecida em uma espécie de
"dupla moral" desta história: mesmo que o amor seja encontrado em todos os lugares,
não se ama ou expressa esse sentimento sempre da mesma forma, e, principalmente,
não se dá a ele sempre o mesmo lugar na constituição dos vínculos sociais,
evidenciando a particularidade histórica e cultural dessa estreita associação que o
Ocidente moderno realizou entre amor e casamento.
A segunda tensão que apontamos como constitutiva do campo da antropologia
das emoções é evidente aqui também, mostrando como as experiências subjetivas
estão atreladas a gramáticas culturais. Desvendar esses códigos ilustra um problema
central de toda teoria social: como dar conta do hiato entre as percepções "nativas" e
a visão do observador. Esse dilema é expresso aqui sob a forma de um "drama" típico
engendrado pela ideologia individualista ocidental: a afirmação da singularidade das
experiências afetivas, contradita por sua evidente recorrência sob a forma de padrões
claramente identificáveis.
Em meio a esses padrões, a "codificação" das formas afetivas não se restringe
aos afetos sentidos, mas também à sua expressão. Se falar de amor parece ser hoje um
imperativo moral, com o apaixonar-se livremente sendo uma experiência idealizada
em inúmeras produções discursivas contemporâneas, dos livros de autoajuda às
narrativas cinematográficas, essa pequena fábula antropológica mostra a
particularidade histórica e cultural dessa" compulsão" em falar de amor. Entre os
beduínos, falar de amor sob outra forma que não as ghinnawa é imodéstia, falta moral
grave, e não sinal de saúde mental, de "liberação" dos afetos, como em tantos
discursos contemporâneos que equacionam o bem-estar psíquico à possibilidade de
expressão dos sentimentos.
Finalmente, a história de Fathalla serve também para mostrar a natureza
micropolítica dos sentimentos, com a atribuição de um caráter perigoso e subversivo
ao amor, por sua possibilidade de desafiar hierarquias vigentes que encontram nas
regras matrimoniais um campo fecundo de atuação. Serve ainda para mostrar o uso
que os discursos sobre as emoções podem ter em contextos específicos. Nessa
história, não interessa apenas o que Fathalla sentia por sua noiva ou o lugar dessa
história no imaginário beduíno, mas também o que aquele que a narra está dizendo
para seu interlocutor ao escolher contar-lhe a história. É também para essa dimensão
dos discursos sobre a emoção que aponta a perspectiva "contextualista" da
antropologia das emoções.
Nossa estranheza diante da história de amor de Fathalla encontra talvez
equivalente no espanto africano diante da história de ciúme de Hamlet. É que os
tributos pagos pelas experiências emocionais às teias socioculturais em que se
enredam tornam difícil, para um espectador de fora, entender essas motivações
afetivas, sua gênese, suas articulações.
Amor e ciúme formam um complexo de aparência indissociável para as
subjetividades ocidentais modernas. Essa maneira moderna de amar, ao atrelar o
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sentimento amoroso ao casamento monogâmico, autoriza a imposição ao parceiro de


uma exigência de reciprocidade e exclusividade, legitimando assim o ciúme, que,
Página

respeitados certos limites, pode mesmo ser considerado "prova de amor".


Esse "complexo" amor-ciúme, contudo, pode ser matiza- do. Nas histórias que
narra sobre a experiência da poligamia entre os beduínos, Abu-Lughod (1993) mostra
os ciúmes e rivalidades que perpassam as relações entre as três esposas de seu
anfitrião Haj. Mas o ciúme assim como o amor são sentimentos que denotam falta de
modéstia, e portanto têm um lugar e um meio específicos para ser expressos. Assim,
se à primeira vista, as esposas de Ha] sentem ciúmes dele, de um modo que não
parece tão distante assim dos ciúmes que uma mulher ocidental sentiria diante do
envolvimento de seu ma- rido com outra, essas experiências subjetivas diferenciam-se
em um ponto fundamental: o ciúme das beduínas é ilegítimo do ponto de vista
ideológico. Elas estão erradas, aos olhos de muitos, em atormentar seu esposo com as
rixas e rivalidades. Já a indiferença de uma ocidental ao envolvimento de seu marido
com outra é sinal de desinteresse amoroso - ela está "errada" em não sentir ciúmes.
Essa imbricação entre experiência afetiva, ideologia e organização social é assim mais
uma fonte de matizes para a vivência dos afetos, legitimando o ciúme ocidental,
culpabilizando o ciúme beduíno.
Para além de discussões voltadas para a análise de emoções isoladas, a
antropologia das emoções permite assim pensarmos também na configuração e
dinâmica de "complexos" emocionais, tais como os pares amor-ciúme ou humilhação-
raiva, abrindo mais um leque de objetos de reflexão. Os sentimentos, tantas vezes
definidos como o oposto da racionalidade, podem ser muito, muito bons para pensar.

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