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FACULDADE DE LETRAS
HUGO MARI
2
Hugo Mari
BELO HORIZONTE
1998
3
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................... 06
ABSTRACT............................................................................................... 07
INTRODUÇÃO.......................................................................................... 09
2.3.1 Predicação........................................................................................ 47
2.3.2 Composicionalidade......................................................................... 51
RESUMO
ABSTRACT
ÍNDICE DE FIGURAS
INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
A análise que desenvolvemos no presente trabalho visou, como proposta geral, a uma
reflexão sobre algumas das formulações conceituais, desenvolvidas por duas disciplinas −
semiótica e semântica1 −, em torno de um mesmo objeto de estudo: os processos de
significação na sua extensão mais ampla. O suporte conceitual de análise entre as duas
disciplinas fundamentou-se, do lado da semiótica, na reflexão de Peirce, da qual destacamos
quatro aspectos, a saber, primeiridade, segundidade, terceiridade e pragmatismo, que
entendemos constituírem-se num itinerário que recobre a atividade humana da sua forma mais
elementar de percepção até padrões elaborados de aplicação. Em relação à semântica,
recorremos a formulações básicas que se destacaram em diversas abordagens, a partir do
estruturalismo. Retomamos princípios de atomização conceitual − predicação e
composicionalidade − na sua forma mais genérica e princípios de classificação conceitual −
pertinência clássica, difusa e prototípica − que, em conjunto, retratam parte das alternativas
propostas aos desafios de construção de uma teoria semântica.
1
Embora em relação à lingüística não existam dificuldades localizadas em termos de um recorte próprio de certo
tipo de objeto representativo do campo da semântica, o mesmo não parece claro nos textos que serviram de base
para apurar o trabalho da semiótica. Nos textos consultados, Peirce não destaca o termo semiótica: em nenhum
desses momentos o termo ilustra qualquer título, subtítulo ou item específico de capítulos e partes dos textos. É
evidente que a ausência do termo não significa diretamente ausência do teor conceitual que ele representa. Além
do mais, PEIRCE (1977, p. 45) considera a semiótica apenas uma parte da lógica, daí a ausência do termo: “...
Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para semiótica
(σηµειωτυκη), a quase-necessária ou formal doutrina dos signos.” Por essa razão, mantivemos o termo. Na
extensão, porém, em que assumimos o texto do autor, a idéia de uma teoria do conhecimento parece muito mais
apropriada.
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A doutrina é lembrada em favor da segundidade nos seguintes termos: “Qualquer filósofo que negue a doutrina
da Percepção Imediata – incluindo idealistas de todas as faixas – corta para sempre a possibilidade de
conhecer uma relação.” (PEIRCE, 1980, p. 22)
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teor de representação, inscrito nas várias tipologias propostas para o signo, como também
assegurassem uma proximidade natural com problemas de sentido. Assim, desconsideramos
outra possibilidade de análise da categoria, que implicaria avançar sobre o teor tipológico das
classes e subclasses de signos. Ao impormos, portanto, essa restrição à amplitude da
terceiridade; optamos por selecionar uma dimensão que nos possibilitasse compreender certa
organicidade da representação, a sua forma constitutiva e os seus fundamentos. Depois de
explorar a fundamentação conceitual da função de representar, priorizamos algumas
categorias lingüísticas como relações e propriedades lexicais e relações sintagmáticas para
contrastá-las com valores conferidos aos signos no plano semiótico. No cotejo referido, as
categorias usadas não fizeram alusão a nenhuma teoria de modo particular e foram
empregadas, na condição de fenômenos recorrentes nos processos lingüísticos. Além do mais,
utilizamos proposições e fatos que se prestaram à sustentação do caráter específico de
funcionamento da representação em semiótica e em semântica, no corpo desse trabalho. A
análise formulada confirmou, então, aspectos de incompatibilidade entre uma e outra
disciplina, já que o modo pelo qual os efeitos de sentido são produzidos por funções-signo
pode diferir da forma como concebemos esses efeitos no compartilhamento de relações e
propriedades sintagmáticas e lexicais.
enunciativo. Pela amplitude das abordagens, optamos apenas por um recorte suficiente para
verificar como os enfoques recentes, no campo dos processos enunciativos, podem constituir-
se em instrumentos necessários à compreensão do pragmatismo. Pela análise realizada,
constatou-se que atos de fala e atos de linguagem, na dimensão abordada, podem representar
contribuições importantes para justificar o pragmatismo formal e funcionalmente.
Capítulo I
Assim, a partir de parte dos parâmetros que foram utilizados pelo autor para traçar
esta etapa da teoria, pretendemos uma avaliação que seja capaz de confrontá-los com outros
padrões e concepções recentes, utilizados para justificar o modo pelo qual a percepção dos
objetos se efetiva, a maneira pela qual os procedimentos de categorização da realidade são
concretizados na prática diária de construção do conhecimento.
“São três as faculdades com que devemos munir-nos para esta tarefa. A
primeira e principal é a qualidade rara de ver o que está diante dos olhos,
como se apresenta, não substituído por alguma interpretação...” (p. 17).
Diante desse caráter ainda impreciso, é importante recorrer a sua reflexão para buscar
elementos que possam precisar formas de operação desta primeira faculdade. Assim,
registramos algumas indagações iniciais, em torno das quais estaremos orientando a discussão
da primeiridade. O que retemos deste contato incipiente de nossos sentidos (a visão é apenas
a mais privilegiada) com os objetos? Para que aspectos do objeto a nossa sensação se dirige
no momento de sua apreensão ? Como convertemos os fatos aqui determinados em instâncias
operacionais para outras faculdades ?
Os fatos aqui levantados têm, certamente, um alcance muito amplo. E, com toda
certeza, não se pode supor um único padrão dentro do qual caberiam respostas apropriadas a
todas estas questões. O próprio autor (PEIRCE, 1980), todavia, encarrega-se de fixar alguns
parâmetros para os problemas aqui levantados:
Aqui temos critérios que estariam, pois, no núcleo desta primeira experiência do saber.
Segundo o texto, ainda não manipulamos, neste momento, qualquer forma conceitual mais
estruturada; uma forma de conhecimento provida de uma qualidade de sensação expõe nossa
atividade perceptiva diante de uma “descrição daquilo que é tal como é”, como ainda
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expressa no fato de que a validade das nossas sensações ainda se traduz, de forma
fragmentada, pelo registro da presentidade dos objetos, isto é, a imediatidade com que somos
por eles tocados e surpreendidos, independente de algo mais que deles possa ser extraído.
Assim, é em razão do fato de sermos tocados pelos objetos que reside, exatamente, a
existência de uma qualidade de sensação (visual, ótica, táctil...), diferentemente de qualquer
princípio de elaboração que a compreensão possa determinar. Para se compreender um objeto,
torna-se necessário o mínimo de distanciamento, de intervalos temporais entre as fases de um
processo cognitivo, como um determinante para que se possa operar na configuração de
qualquer padrão estrutural. PEIRCE (1980) ainda reitera, em outras circunstâncias, a
importância do tempo presente neste estágio da formulação:
Neste contraste com Hegel, o autor demarca uma terceira instância onde a primeiridade deva
ser inscrita: apesar de sua amplitude, ela descreve fatos da experiência concreta dos sujeitos.
O que nela acontece são as sensações que retemos ao experimentar os objetos: aqui tudo é
primitivo, pelo caráter sempre inaugural (presente) da exposição ou da surpresa, mas nada é
abstrato, em razão do fato de se tratar de uma qualidade de sensação, como um padrão
cognitivo, orientador da nossa experiência. Como podemos, então, compreender, de modo
mais específico, a idéia de qualidade de sensação ? É possível determinar-lhe algum padrão
de funcionamento ? Como pensar um padrão possível de orientação dos nossos sentidos na
primeiridade ? Por último, as operações ao nível da primeiridade supõem algum princípio de
racionalidade ?
Aqui, o autor descarta que o grau de ininteligibilidade da qualidade de sensação possa vir a
ser confundido com ausência total de qualquer princípio regulador: ela não se traduz, portanto,
na forma de uma ação destituída de padrões normativos. Se ela, portanto, se contrapõe, em
essência, a outros padrões de atuação, qualificados como estágios “agressivos e brutais de
uma ação desprovida de lei”, logo é possível discutir em que extensão ela, no seu “cariz
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Podemos supor, por exemplo, que a nossa percepção seja surpreendida por um objeto
que traduza (numa elaboração a posteriori) a sensação de ‘folha verde’. Na primeiridade, a
hipótese de acesso a um tal objeto não poderia ser reconstruída a partir da sua totalidade
conceitual, porque aqui já não está em jogo apenas uma qualidade de sensação (ao menos, um
complexo de sensações e um complexo de qualidades). Até mesmo no âmbito de uma
formulação lógica, trata-se de uma predicação, isto é, de uma estrutura logicamente complexa
que requer elaboração; aqui torna-se importante a existência de um lapso de tempo qualquer
(diferente da imediatez do presente) para associar essência e acidente. A apreensão de ‘folha
verde’ não é instantânea, porque nem mesmo poderia ser considerada como uma relação
necessária ou analítica: compreender ‘folha verde’ significa, ao menos da parte da sua
estrutura lógica, excluir, de um lado, outras possibilidades concorrentes de predicações para
‘folha’, de outro, objetos predicáveis na cor verde. Estas operações, por seu turno,
representam instâncias conceituais que não mais pertencem à ordem de um percepto
inaugural, primitivo; elas traduzem alguma orientação conceitual que implica formulação, que
já requer tempo de processamento.
Entretanto, o fato de nos tornarmos aptos para predicações com o termo ‘verde’ e,
certamente com muitos outros que o nosso aparelho perceptual comporta, só é possível,
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De modo mais tópico, podem-se considerar questões semelhantes para ‘folha’. O que
pode ser comum a qualquer objeto dessa natureza que seja capaz de constituir-se numa
qualidade de folha ? É necessário à qualidade de folha poder abstrair-se de fatos acidentais
ligados à cor, à espessura, ao tipo de tecido, ao tipo de ranhuras, ao tipo de fibramento, ao
formato geométrico, ao grau de porosidade, ao tamanho, à época de renovação, ao tempo de
decomposição, a propriedades protêicas, ao valor comercial (todas propriedades passíveis de
predicação ao objeto em análise)? Por onde começamos a qualidade de sensação com ‘folha’
? Existe uma qualidade primeira de valor universal ?
decorra uma essência de ‘folha’, uma qualidade de sensação. Hipóteses semelhantes a essa já
foram demostradas para muitas circunstâncias, dentro do relativismo. É também provável que
o conjunto desses lugares sustente alguma coisa em comum, assegurando uma dimensão
nuclear que perpassa todos eles, já que, empiricamente, se constata a existência de uma
relativa uniformidade no trato deste objeto. Do contrário, a nossa experiência com ele
resultaria absolutamente desordenada, desencontrada, pelo menos até que viéssemos a
adquirir a maturidade de ‘folha’; mas aí certamente já não estaríamos mais na primeiridade.
De outro lado, uma sensação como qualidade primeira não pode ser pensada em
termos da reunião de todos os fatores aludidos: muitos deles só viemos a entender já num
processo tardio, que não era mais o da primeiridade; a outros podemos ainda nem ter tido
acesso de uma forma total. Com certeza, muitos deles foram assimilados, gradualmente, e o
domínio parcial desta gradação não nos impediu de experimentar ‘folha’. É muito provável a
existência de pessoas que tenham experiência com ‘folha’ e que desconheçam o seu valor
protêico, as propriedades químicas da sua constituição, o teor do seu fibramento. Então, uma
proposta de composicionalidade para os acidentes associados a ‘folha’ não garante a
expressão da sua essência e, por isso mesmo, não pode constituir-se numa suposta qualidade
primeira. Em conseqüência, ela não pode ser também adequada, como orientação, para se
pensar a qualidade de sensação de folha, já que seria impossível supor, nos termos em que
conhecemos uma abordagem composicional, que a reunião de categorias pudesse ser
justificada a partir da sensação, do percepto. Aqui, portanto, o conceito clássico de
composicionalidade, como conjunto de propriedades que expressam condições necessárias e
suficientes, não pode ser cogitado como argumento que possa validar os fatos contidos na
primeiridade, porque nos faz distanciar, completamente, da forma de conceber esta última.
Haveria conveniência, então, em selecionarmos algumas dessas propriedades, dizendo que
umas são mais aderentes à natureza de ‘folha’ do que outras e que, portanto, umas estariam
mais próximas de um indicador da qualidade de sensação de ‘folha’ ?
Argumentos desta natureza, certamente, ainda têm um caráter muito intuitivo: de fato,
não consta que os integrantes de uma dada sociedade apresentem muitas divergências sobre a
forma de concepção de certos objetos usuais; mas não sabermos, com clareza, a extensão
deste fenômeno e nem temos mesmo uma forma de acesso direto aos fatos que serviriam para
justificá-lo. Qualquer tentativa de avaliação experimental seria pouco representativo, para os
propósitos de compreensão da primeiridade. É claro, todavia, que apontar tal fenômeno como
algo inerente à ordem de qualidade de sensação não chega a ser uma justificativa razoável.
Afinal, nem primeiridade, nem qualidade de sensação são conceitos auto-explicáveis.
Estas questões guardam entre si um certo equivalente, ainda que uma e outra possam
apontar para dimensões mais específicas. Todas, no entanto, traduzem parte da perplexidade
que continua desafiando o homem na tentativa de extrair, das circunstâncias mais fortuitas,
das experiências mais dispersas, algum padrão de racionalidade. Provavelmente, não
dispomos, para questões deste teor, de respostas diretas e imediatas: quase sempre precisamos
recorrer à construção de uma teoria para poder equacioná-las em alguns de seus aspectos.
Isolando a sua natureza metalingüística, fatos como estes integram a nossa existência de modo
natural. Para cada dia de vida, somos obrigados a acionar inúmeras teorias, a fim de
equacionar uma extrema diversidade de tarefas que desempenhamos: umas mais, outras
menos complexas, todas, porém, pautadas por algum princípio racional que lhes associamos.
Por exemplo, o que há de racional nos procedimentos físicos para locomover-se por diversos
planos (escada, rampa, plano não-inclinado), em contraste com os procedimentos mentais para
manipulação de axiomas, regras, processos de inferência na resolução de uma equação
matemática ?
justificadas em razão do esforço mental dispendido na realização de cada uma das tarefas: no
primeiro caso, movimentos de angulação do corpo, tensão muscular, quantidade de força
física e o padrão de equilíbrio, já contêm um certo grau de previsibilidade orgânica para cada
um dos movimentos (daí a suposição de um esforço mental menor); no segundo caso, ainda
não seria possível dizer de uma previsibilidade orgânica para a resolução de um problema
matemático, ainda que muitos movimentos intermediários ali executados possam ter esta
dimensão (daí a suposição de um esforço mental maior). Para os movimentos físicos, em
condições normais, dificilmente esquecemos de alguma pré-condição que lhe é imposta; ao
resolver um problema, podemos precisar de rever muitas fórmulas e procedimentos que
esquecemos. Costuma-se acionar também a discrepância entre processamentos mecânicos (os
movimentos físicos do ato de descer escadas, ou a manipulação de algum instrumento na
solução do problema) e processamentos elétricos (os procedimentos mentais que recobrem
este tipo de movimento, ou esta operação com símbolos). Ambos os processos de justificativa
não podem ser tomados como respostas definitivas, são antes uma forma de aprofundar a
compreensão dos fatos.
De outro lado, há uma perspectiva que vem sendo assumida, cujo objetivo é o de
buscar algo de convergente entre estas duas formas de procedimento, isto é, ambas, como
processo de conhecimento, implicam a capacidade que temos de categorizar objetos, fatos e
eventos. Em outras palavras, a aptidão que temos para locomover por superfícies diversas,
sem transtornos, depende da capacidade que temos de categorizar essas superfícies: um plano
inclinado (em declive ou aclive) exige tipos de tensão diferenciada com os pés; uma cascata
de planos regulares exige processamentos diferentes daqueles exigidos para uma superfície
uni-plana. Da mesma forma, precisamos de categorizações singulares para processar os mais
diferentes sistemas de signos. Acionamos regras específicas para categorizar quando
percorremos sistemas de signos diferentes: quando se alterna de um sistema de semáforos,
para uma linguagem binária, e desta para uma lógica polivalente ou uma língua natural,
estamos diante de operações cada vez mais complexas. Em quaisquer das circunstâncias,
entretanto, estaríamos fadados ao insucesso, se não dispuséssemos de procedimentos gerais
para categorizar os objetos e as relações constantes em cada uma das experiências acima, seja
no plano material, seja no plano simbólico.
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Os comentários aqui desenvolvidos nos fazem voltar ao texto de Peirce visando a dois
objetivos: primeiro, para avaliar a possibilidade de que princípios de categorização possam ser
adaptados e integrados a dimensões de sua Teoria; depois, para, a partir de sua reflexão em
cada momento da Teoria, extrair as condições de possibilidades do conhecimento. Interessa,
no escopo do presente trabalho, recuperar parâmetros que são fixados para o funcionamento
de cada uma das n-idades, contrastando-os com outros parâmetros que expressam formas
possíveis de racionalidade. Como avaliar, nesta etapa da reflexão, a importância da sensação,
na primeiridade, em contraste com outros padrões concorrentes como intuição, percepção,
compreensão, formulação ? Da mesma forma, numa etapa posterior, o que pode representar,
em termos atuais, o peso dado, na segundidade, ao confronto ? Como aproximá-lo da
intuição, da compreensão, da percepção ou da formulação ?
3
Não existe uma correspondência direta entre a formulação dos dois autores: Kripke desenvolveu sua
argumentação em torno das descrições definidas (KRIPKE, 1972), enquanto Putnam desenvolveu argumentos
semelhantes para espécies naturais. (PUTNAM, 1975). Para um confronto entre eles, veja: PUTNAM, 1988,
p.129-46.
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que esse critério revela sobre a nossa percepção da realidade e o que traz de relevante para
nossa reflexão ?
Suponhamos, numa vitrine, dois arbustos ornamentais, um natural, outro artefato. Se
apenas nos restasse a visão como instrumento de avaliação (o olfato, o tato, por exemplo,
estariam excluídos pela situação), ela escandiria os dois objetos e decidiria que o artefato é
aquele que apresenta o maior número de regularidades, isto é, galhos de tamanhos idênticos
dispostos simetricamente, curvatura dos galhos uniformemente proporcional ao seu tamanho,
coloração próxima do uniforme para cada tipo de componente, tamanho e disposição das
folhas próximas a uma identidade e muitas outras. Da árvore natural, estaremos aguardando
singularidades que escapem à geometria previsível de um objeto artefato: ausência de simetria
absoluta, cores diferenciadas, dimensões menos regulares. Por mais que o artífice (certamente
diferente do artista) se empenhasse em produzir uma árvore com singularidades, ele não
resistiria à tentação de deixar que muitos dos seus movimentos se repetissem e se
materializassem em escalas diversas do seu artefato.
Aqui o critério em questão continua conferindo aos objetos artefatos uma constância que
traduz as intenções do seu artífice, quando lhes inscreve uma função de uso determinada.
Embora MONOD assinale que a aplicação de ambos os critérios (regularidade e repetição)
decorra de uma avaliação estrutural dos objetos em sua dimensão macroscópica, e não
microscópica, já que nessa dimensão “estaríamos diante de estruturas atômicas e
moleculares”, contendo “geometrias simples e repetitivas”, é, precisamente, na
macroscópica, onde se materializa uma “intenção consciente e racional” dos objetos, de
acordo com um projeto que lhes é conferido. Portanto, é nesta última dimensão que se dá a
nossa experiência direta com a realidade; é nela que, em razão da homologia, reconhecemos
classes, seus membros regulares e seus membros anormais.
A repetição avança, em termos dos objetivos aqui definidos, numa direção idêntica à
da regularidade: as semelhanças que apontamos para o arbusto artificial na vitrine são
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previsíveis de recorrência em milhares de outros desta classe (mais uma vez, por uma questão
de economia). Assim, para um outro exemplo, um artífice, quando produz uma série de
‘mesas’, o faz com base na repetição (e na regularidade) daquilo que constitui uma
expectativa de seu uso funcional: a altura (este objeto está destinado a acomodar pessoas
numa certa posição, no exercício de alguma atividade), o tamanho (em razão do número de
pessoas que deve acomodar, do espaço físico que ocupa numa casa, da disponibilidade de
toalhas). Qualquer ‘mesa’ que tivesse que atender a alguma dessas funções fora das
expectativas previstas (por exemplo, acomodar 50 pessoas) não deixaria de ser mesa, apenas
representaria um exemplar ad hoc da classe. Da mesma forma, se estivesse o artífice a
construir cadeiras, a repetição seria prevista, dentro de escalas aceitáveis, no tamanho das
peças (assento, encosto), na orientação espacial destas peças (horizontal, vertical), na
angulação entre elas (próxima dos 90 graus), na altura dos pés, na espessura das peças
(prevendo um certo padrão médio de peso das pessoas) etc. A repetição funciona, assim,
como uma espécie de métrica que também regula nossa percepção dos objetos artefatos e é em
razão dela, sobretudo, que se torna possível reconhecer uma classe de objetos. É plausível
que singularidades se façam presentes também num artefato (afinal, cada cadeira só é idêntica
a ela mesma), mas essa não é a característica essencial de sua identidade, nem impede que a
nossa percepção falhe no reconhecimento de membros marginais de um domínio. Assim, a
partir da importância que se pode conferir à repetição como integrante do nosso desempenho
perceptivo, como podemos avaliá-la no âmbito das operações da primeiridade ?
Parece evidente que a repetição nos orienta em direção àquilo que é mais saliente na
percepção de um objeto. Não seria sensato supor que este critério nos levasse a perceber
‘mesa’ por um aspecto acidental do seu tampo (cor, tamanho, formato, material), porque esta
não é, certamente, uma das propriedades salientes de um tal objeto: todo tampo de mesa pode
destacar um desses aspectos, mas não há qualquer padrão de repetição previsível na sua
constância. Aqui residem, precisamente, as dificuldades de correlação desse critério com
princípios que regem uma qualidade de sensação. Para MONOD (1971), a repetição é antes
uma operação de racionalização da realidade: aquilo que se repete na existência de um objeto
faz parte da sua estrutura conceitual (os acidentes que viessem a se repetir com regularidade
teriam de ser incorporados a sua estrutura, com certeza). Assim, ela não só reflete as intenções
conscientes e planejadas do artífice que produz um objeto, como também delimita o nosso
aparelho perceptivo para uma gama de variações aceitáveis em relação a ele (certamente,
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aquelas variações que não afetam a sua estrutura). Parece tratar-se, portanto, de uma restrição
que se deve impor à forma de operar da repetição.
Para Peirce não parece clara a imposição de um limite entre fatos estruturantes e não-
estruturantes na concepção da primeiridade. Se isso é verdadeiro, então, a qualidade de
sensação, que nos leva ao (re)conhecimento de ‘mesa’, pode ser concebida por aquilo que for
menos essencial a esta classe de objetos, do ponto de vista da sua estrutura, mas que, numa
circunstância específica, tenha sido a marca de sua percepção. Aceitar uma formulação desse
teor, entretanto, significa conferir à percepção o caráter de “ação desprovida de lei” que o
autor recusou, anteriormente, como suporte epistêmico da primeiridade. Há aqui duas
dificuldades a serem superadas: ou bem concebemos a primeiridade como um instância de
racionalização, ou bem lhe conferimos uma instância de imediatez, de contato, desprovida de
qualquer preocupação racional. Ora, se o processo de conceber os fenômenos na
primeiridade se dá nesta última perspectiva, então não podemos buscar-lhe uma aproximação
com procedimentos que prevalecem na repetição. Aqui, todavia, continuam persistindo
dúvidas: se as operações na primeiridade não devem ser concebidas à revelia da lei, (isto é,
alguma norma de bloqueio do aleatório, do imprevisível, do acaso ), então, sob que padrão de
racionalidade devemos traduzir essa lei ?
Buscamos, ao longo desta discussão e até o presente momento, dois padrões que nos
pareceram mais próximos das preocupações constantes da primeiridade; outros serão objetos
de uma discussão específica no segundo capítulo. Regularidade e repetição, numa visão
macroscópica, expressam padrões fenomênicos dos objetos; daí, a opção de assumi-los no
encaminhamento desta discussão. Os comentários desenvolvidos não foram ainda decisivos
em relação à proposta de avaliação da primeiridade como um padrão de racionalidade. A
análise de Monod sobre a importância das duas categorias torna-se mais precisa, na medida
em que a completa em razão da introdução de um terceiro elemento nessa relação. Trata-se do
conceito de projeto. Vejamos, por fim, como se torna possível uma especificação maior da
relevância desta duas categorias, quando avaliadas na dimensão funcional de projeto.
sentido, entre os dois domínios considerados. A análise de tal objeto, no entanto, revela-o
como portador de extrema regularidade na distribuição espacial dos favos, no formato de
construção, no seu tamanho; logo, as estruturas se repetem de forma previsível também de
uma colmeia para outra. O autor equaciona a questão, expandindo o conceito de agente (que
produz artefatos) e não sacrificando os critérios da regularidade e da repetição. Uma colmeia
é, portanto, um objeto artefato (como ‘mesa’ e ‘cadeira’), apenas produzido por seres não-
humanos. Aqui, então, entraria um outro critério decisivo na qualificação da natureza dos
objetos, isto é, a existência de um projeto para o qual um objeto qualquer é concebido. A uma
‘pedra’, como espécie natural, não está, a priori, associado qualquer projeto (a não ser
quando a processamos para atender a um tipo de finalidade: revestimento de parede,
componente de concreto ), mas existe ao menos um para colmeia, como existe ao menos um
para a ‘teia’ que a aranha tece. Em se tratando de seres humanos, podemos dizer que o
projeto é uma forma conceitual de traduzir as intenções que associamos a um objeto, quando
o construímos. Nada impede, porém, numa extensão do termo, que ao mencionarmos um
projeto possível para colmeia, ‘teia’, ‘formigueiro’, ‘ninho’, admitamos também as
intenções dos agentes que produzem estes objetos. Que importância teria este complemento da
formulação de MONOD para os problemas da primeiridade em Peirce ? Que conclusões, em
razão das objeções já feitas, podemos extrair da correlação entre as duas abordagens ?
Nos termos propostos por Monod, regularidade e repetição definem planos estruturais
dos objetos; não devem ser confundidos como componentes de uma estrutura, mas apenas
como orientação geral e primária para o seu reconhecimento. Certamente, compreender a
dimensão estrutural de um objeto, com base em tais categorias, só é possível se esses objetos
partilham de uma série qualquer, onde as duas categorias se tornam aptas a operar. Um objeto
só apresenta regularidades, se existe, pelo menos, uma possibilidade de contrastá-lo na série
(uma relação binária ao menos), em que outros objetos reproduzem o padrão, ou dele
desviam. Por esta razão, ela já se torna um princípio estruturante, porque prevê a recorrência
nos membros de uma série. De modo semelhante, e mais decisivo, a repetição, para operar,
requer a inclusão de membros num domínio, pois é no seu interior que semelhanças e
dissemelhanças serão ordenadas para produzir estruturas. Logo, só é possível admitir a
repetição, se pudermos reconhecer, na série, o que se repete, seja na totalidade de domínio,
seja no agrupamento local de membros em sub-domínios. E aquilo que se repete, em
quaisquer das dimensões acima, constitui a estrutura. Se regularidade e repetição só podem
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A proposta de Peirce, nos termos já analisados, poderia ser compreendida como uma
estratégia essencialista, onde alguma primeira essência tivesse que ser fixada. Essa operação
se traduz pela captura de uma dimensão primeira do objeto por meio de sensações, o que se
torna ainda impossível, no estágio de presentificação dos fenômenos, de uma expressão
formal. Há, todavia, dificuldades com este argumento, pois dizer, por exemplo, que a
qualidade de sensação de ‘folha’ é uma espécie de ‘folhidão’ (por hipótese, sua primeira
essência), ressoa como uma solução pouco significativa. Afinal, se não damos conta do
fenômeno, de que adianta nomeá-lo ? Em outras palavras, se não temos garantia daquilo que
pode representar uma qualidade de sensação para ‘folha’, que argumentos temos para dizer
que ele está contido na variante ‘folhidão’ ?
‘Folhidão’ apenas traduz ‘folha’, numa forma lingüística elaborada, mas nada nos diz
sobre sua qualidade de sensação5. Com toda certeza, um problema, cuja validade de sua
solução fosse alcançável apenas por um procedimento desta natureza, estaria muito próximo
de um certo nominalismo exacerbado (que escapa ao non-sense apenas em razão de
conveniências metalingüísticas) e teria de ser validado não por princípios externos de
4
Outros formatos mais específicos de racionalidade, como Teoria dos Conjuntos, Teoria dos Protótipos, Fuzzy
Set Theory, Composicionalidade e Predicação serão avaliados na segundidade.
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Toda a discussão até agora desenvolvida tem apontado para duas direções em relação
aos problemas que envolvem a primeiridade. De um lado, movidos pela idéia de sensação,
admitimos o teor fenomênico dos fatos nela implicados. A suposição parece-nos ajustar,
perfeitamente, à concepção dos fatos confinados nessa dimensão da teoria. É na perspectiva
mencionada que pode ser destacada a idéia de um percepto, ainda de natureza pré-categorial,
como parece pretender Peirce. De outro, acionados pela idéia de qualidade, supomos algum
teor de elaboração conceitual, algum princípio de abstração, ainda que conduzido por
sensações. A aproximação destas duas vertentes nos levou a testar alguns procedimentos de
racionalização, exatamente, aqueles, cujo apelo a quaisquer princípios de abstração,
colocavam em jogo uma dimensão empírica dos objetos. Que outros argumentos,
poderíamos ainda adicionar à discussão, no sentido de explorar um pouco mais o caráter
conflituoso da teoria, que foi aqui exposto?
5
A conversão de nome-objeto (folha), de nome-propriedade (vermelho) em formas lingüísticas de natureza
abstrata (folhidão/vermelhidão) é apenas ilusória, pois nada justifica em termos de qualidade de sensação.
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É difícil supor que o poder que se conferiu à estrutura, em razão do seu papel numa
abordagem científica, pudesse permitir o avanço do conceito de função. Aquela acaba por
neutralizar o apelo à última, o que não pode ser entendido como sua exclusão deliberada;
ambas conviveram lado a lado em muitas circunstâncias. O contraste entre estrutura e função
nos incentiva a indagar novamente sobre uma correspondência destas categorias com
segundidade e primeiridade, respectivamente. A estrutura, pelo grau de elaboração
conceitual, pela elegância axiomática que possibilitou produzir no interior de muitas
abordagens, só pode ser pensada numa dimensão de segundidade. Se à função conferimos
mais um teor pragmático, uma extensão do objeto, derivável, com certeza, daquilo que a sua
estrutura possibilita, seria possível, então, admitir a função no escopo da primeiridade ?
Não há dúvida sobre o descompasso formal entre as duas categorias e ele deve ser, de
fato, o responsável pela preferência assinalada por Monod. A função, isolado o seu caráter
pragmatista, aproxima-se de um valor fenomênico, na medida em que objeto e função, ao
menos para os artefatos, guardam entre si uma biunivocidade implicativa: tanto o objeto
(artefato) implica a função, quanto esta implica aquele. É provável que essa dependência
mútua possa também descartar dela compromissos formais maiores de elaboração, de
formulação. Ela não é um componente do objeto − mas os componentes de um objeto estão
dispostos de forma a atendê-la −; ela não o integra de modo orgânico − mas se inscreve nele
para poder ser dele uma decorrência. Por isso, a função constitui uma extensão que se agrega
ao objeto, sem que essa agregação possa ser pensada como algo que lhe torne irrelevante. É
claro, entretanto, que não se pode desprover de quaisquer compromissos mais integrados
estrutura e função. Afinal, a estrutura, ao menos nos artefatos, deve ser adequada a exercer a
função para a qual o objeto foi criado. A forma intuitiva − e pragmática −, através da qual
lidamos com a função − a estrutura tem outras dimensões −, permite projetá-la na região da
primeiridade; tal fato, entretanto, como já comentamos para projeto, não constitui qualquer
garantia de que ela possa representar uma condição que orienta, de modo decisivo, qualidade
de sensação. Outras objeções que poderiam ser aqui descritas, quanto ao seu papel
determinante para uma qualidade de sensação, já se fazem presentes na discussão
desenvolvida para projeto: o que foi validado para sua discussão pode ser também validado
para função.
38
A partir de todos esses confrontos que utilizamos para buscar uma compreensão do
alcance que Peirce confere à primeiridade, parece evidenciar-se o fato de que uma qualidade
de sensação não pode ser pensada como um princípio passível de uma justificação externa, a
saber, fora das condições imediatas e únicas que a percepção exige para funcionar, na forma
concebida pelo autor. Assim, não se trata de buscar argumentos que possam consolidá-la no
interior de uma teoria, porque estes estarão remetendo a um outro lugar que não é mais o da
imediatez perceptiva, portanto, o da primeiridade. Além do mais, pretendíamos, com esta
tentativa, admitir que algum recurso à metalinguagem também devesse ser aceitável para a
formulação analisada. Em todas as incursões desenhadas acima, usamos argumentos − e
metalinguagem − de outros padrões, buscando uma correspondência aproximativa com
qualidade de sensação. Acionamos, quase sempre, princípios que exigiam um registro na
linha do tempo, por ser esta talvez uma das marcas de qualquer processo de racionalização. A
projeção na linha do tempo resultaria na necessidade de se historicizar a primeiridade, pois só
assim ela se tornaria passível de uma compreensão analítica; o seu teor de presentidade,
todavia, permite que ela reconheca somente o presente (a sua instantaneidade), descartando
princípios de ordem temporal. Uma vez mais, já teríamos ultrapassado as suas fronteiras e
estaríamos avançando nos domínios da segundidade.
Não seria correto inferir, a partir da estrutura global que o autor propõe, que a
primeiridade pudesse estar situada numa faixa de exclusão do racional, conforme já
lembramos em citação do próprio autor “ação-desprovida-de-lei”. A sua racionalidade é que
precisa ser vista sob um outro ângulo. Inicialmente, ela pode não ser julgada pela validade
que confere a outras instâncias de um sistema de tricotomias, onde a sua existência, no
conjunto, deve reservar-lhe uma função específica, em contraste com a segundidade e com a
terceiridade. O objetivo aqui não foi prover um julgamento da formulação do autor nessa
dimensão, mas antes mostrar que ele lhe circunscreve uma instância singular − nem sempre
muito clara ! − no processo de cognição. Há dificuldades com a formulação do autor − umas
foram vistas ao longo desta discussão, outras serão vistas à frente −, se pretendemos assumir
sua abordagem, não apenas como uma Teoria Geral do Signos, stricto sensu, mas como uma
abordagem global sobre a forma de estruturação do conhecimento, dimensão que nos interessa
nessa reflexão. Desse modo, o que se deduz do seu sistema, no realce até agora atribuído à
primeiridade, é a importância de se fixar uma outra região da atividade cognitiva, até então
inteiramente desconsiderada, talvez até mesmo pela existência de um alto grau de incertezas e
de inconveniências para o domínio da racionalização.
Um outro aspecto adicional aponta para uma forma diferenciada de compreensão dos
fenômenos: Peirce não parece estar preocupado com uma explicitação nem funcional, nem
categorial das questões que envolvem a primeiridade. Não se trata de construir um modelo
formal ao qual possamos subordinar a manifestação dos fenômenos nesse nível. A natureza
dos procedimentos que estão aí dimensionados respondem a outros formatos epistêmicos e
eles não podem, de fato, ser vistos pelos olhos de quem quer enxergá-los de forma categorial,
sistêmica, ou funcional. A primeiridade responde, no nosso entendimento, por uma
disponibilidade primeira para o conhecimento, o que faz dela um princípio transcendental, na
medida em que traduz condições necessárias para qualquer forma de compreensão, para
qualquer processamento conceitual. É esse estatuto da primeiridade que a torna um
procedimento racional, embora não possa ser justificada por esquemas de categorias, nem por
procedimentos algorítmicos.
40
Capítulo II
confronto ser apenas uma qualificação decorrente de algo que ainda lhe é mais primitivo, isto
é, o conceito de força, segundo Peirce, no sentido da actio em NEWTON6. Em que o conceito
de força se torna aqui relevante ? Por que devemos assumi-la como uma condição de alcance
do existente ?
Reunimos, ao conectar estas duas afirmações, alguns aspectos básicos que podem especificar
a importância do conceito de força na formulação de Peirce. É no exercitar a relação causa-
efeito, executada de forma múltipla em direção à experiência sensível, que nos tornamos aptos
à transformação dos objetos. Só podemos fazê-lo pelo ato de imprimir força aos objetos que
são captados pelas nossas sensações, pela percepção e daí fazermos originar efeitos com base
no confronto e “através de esforço inteligente”. A segundidade é, então, o lugar de
emergência de uma instância intelectiva onde os objetos podem “ser(em) modificados de
algum modo”.
6
Newton define actio da seguinte maneira: “A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar
seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta.” (NEWTON, 1979. p.6)
43
qualidade dos objetos. A forma mais primitiva que podemos supor, como condição para uma
tal transformação, é o fato de se poder classificar um objeto, isto é, reconhecer-lhe um
domínio de pertinência, associar-lhe propriedades de classe, enfim, mostrar um primeiro
estágio genérico de confronto deste objeto com outros. Quando assim procedemos, estamos,
de fato, modificando os objetos externos de algum modo, porque já nos tornamos aptos a
predicar sobre algo que, até este momento, tinha sido mera sensação de qualidade.
Por sua vez, o conceito de força aqui lembrado impõe à reflexão uma orientação de
natureza material, mas não como Newton codificou o valor de ação, pensada na extensão dos
fenômenos físicos (“A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar seu
estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta “). Se não evitamos que ambos os
conceitos possam convergir na sua natureza (eles representam uma certa atividade exercida
sobre objetos), eles, certamente, divergirão nos seus efeitos. Se o resultado de uma ação sobre
um corpo é a mudança do seu “estado de repouso ou de movimento uniforme”, o resultado de
uma força sobre um objeto é a mudança do estado de seu conhecimento, do seu estatuto na
relação com outros objetos. Em outras palavras, conhecer um objeto tal significa aplicar-lhe
uma força, cujo resultado será ou a consciência sobre propriedades que lhe tornam
predicáveis, ou a explicitação de correlações que ele estabelece com outros objetos. Em uma
ou outra possibilidade, produzimos uma mudança no estado de seu conhecimento (aquele
estado dado, inicialmente, pela primeiridade). A dimensão material desta força não chega a
representar qualquer ameaça às exigências mais elaboradas sobre as condições para conhecer
um objeto. Afinal, qualquer forma de conhecimento apresenta a sua condição orgânica,
corporificada em diversos estratos do organismo. Aqui as qualidades sensíveis dos objetos
impressas nos nossos sentidos visão, tato, olfato ... , podem representar este efeito da
força sobre corpos em inércia, mas um efeito sobretudo intelectivo. E PEIRCE (1980, p. 24)
também ressaltou esta dimensão do conhecimento, ao concluir que “existe uma maneira de
agir sobre os fatos externos que não é apenas ação mecânica.”
Outro aspecto que poderíamos destacar, na exposição do autor, é a importância que ele
atribui ao papel da surpresa. Indagando sobre o modo de ocorrência da experiência, ele
responde que ela se dá “Através de uma série de surpresas.” (p. 21). E mais à frente completa
este raciocínio de relevar, no interior da segundidade, o papel da surpresa:
44
A importância que essa categoria pode representar reside no fato de nos mostrar que o
processo de conhecimento não pode ser completamente determinado apenas pelo exercício de
uma consciência do ego. Ao reservar-nos incômodos do não-ego, a percepção cognitiva, na
dimensão da consciência de um ego, não pode ser pensada como a instância ulterior e única da
determinação das formas do saber: exige-se “a consciência dupla de um ego e de um não-ego
agindo diretamente um no outro”. O alcance do ego estará sempre sujeito a surpresas que o
seu duplo possa vir a produzir. Aqui reside, pois, o dinamismo de todo o processo de
conhecimento numa instância orientada pelo e para o confronto.
Que direção, portanto, pretendemos dar a esta reflexão de Peirce em torno da categoria
de segundidade, de tal modo a compatibilizar sua formulação, como já o esboçamos na
primeiridade, aos fundamentos de uma abordagem geral sobre processos de conhecimento,
em termos das exigências, estabelecidas em reflexões contemporâneas sobre a construção do
conhecimento ?
7
O contraste entre ego e não-ego parece representar o formato mais amplo para PEIRCE (1980, p.91), conforme
podemos verificar no capítulo As categorias em Detalhe, parágrafo 332, do qual extraímos o seguinte trecho:
“Existe a dualidade do agente e do paciente, do esforço e da resistência, do esforço ativo e da inibição, do agir
sobre objetos externos e sobre o próprio eu. Ainda mais, há volição ativa e passiva, ou inércia (...).”
8
Seria ingênuo admitir, percorrendo toda a extensão de sua obra, que Peirce tivesse pretensões menores com
uma categoria como esta. Afinal, entre primeiridade e terceiridade não pode existir um vácuo que uma
interpretação quase literal da segundidade poderia produzir. É lógico que corremos o risco de enviesar em
demasia o autor, mas é um risco necessário para fazer valer as suas idéias num ambiente que não seja única e
exclusivamente o da sua obra e nem de uma apologia à sua escrita.
45
é também o fato de o autor ter registrado aqui tentativas de responder a condições sobre o
existente. A reflexão, a ser desenvolvida, implica assumir o existente numa dimensão não-
fenomênica e compreendido a partir de padrões formais e intuitivos que têm sido formulados
e repensados como possibilidades de um modelo de formação conceitual. As condições de
formulação de um tal modelo ainda têm se revelado de extrema complexidade, diante do que a
proposta de Peirce não pode ser assumida, a não ser como um embrião global. Assim, nas
seções seguintes, tentaremos avançar com as questões sugeridas pela segundidade, a partir de
um número variado de fatos, formulações e abordagens que a ela podem ser associadas em
complementação.
O que é formação de conceitos ? Quais as exigências que são impostas aos sujeitos
sociais no domínio dos objetos ? Em que condições podemos assegurar que conhecemos um
dado recorte da realidade ? Em que extensão a segundidade pode ser relevante para
equacionar tais problemas?
Responder ao conjunto destas questões, certamente, não é uma tarefa possível apenas
tomando como base propostas de Peirce, mesmo porque parte daquilo que levantamos aqui
como problema não emerge como uma preocupação direta na sua reflexão. O autor, no nosso
entendimento, garante, através de um estágio de processamento da informação (dada num
momento inicial na primeiridade), os patamares iniciais que asseguram uma reflexão neste
campo. Não encontramos, em sua formulação, um modus operandi para falar de formação de
conceitos, ao menos na extensão em que a questão vem sendo discutida nos dias atuais.
Entretanto, não nos parece, pelo conjunto das questões afetas ao conhecimento e muitas já
apontadas pelo autor, que se possa incompatibilizar sua reflexão com problemas que têm sido
enfrentados no âmbito da formação de conceitos.
como uma instância da construção do próprio conhecimento: na medida em que os objetos são
confrontados, é deste confronto que extraímos as suas propriedades funcionais e descritivas. A
formação de conceitos torna-se, portanto, a estratégia essencial para conhecer: só podemos
conhecer um objeto, ou só podemos transitar entre classes de objetos, ou entre membros de
uma classe, se dominamos, minimamente, o conceito de classe e o conceito de membro de
classe. Somente este conhecimento pode-nos garantir uniformidade, racionalização e
organização de uma ordem diversa e múltipla que os registros da percepção, na primeiridade,
asseguraram, mas que não foram ainda capazes de ordenar. Assim, as exigências primeiras
para a formação de um conceito são estabelecidas a partir deste confronto, que nos obriga a
reconhecer propriedades essenciais, diferenciais, acidentais, dimensões funcionais, descritivas
e tantas outras. Formar um conceito pode ainda significar, por exemplo, a formulação de
procedimentos que nos permitem destinar objetos a classes, reconhecer o lugar específico de
um membro na classe, determinar configurações fronteiriças para membros de classe. Pode
representar, além do mais, a construção de modelos, de algoritmos para a compreensão desses
fatos.9
9
Alguns dos procedimentos aqui lembrados, sobretudo na ordem destes últimos, representam dimensões que já
devam ser incluídas não apenas como formação de conceitos, mas também como representação de conceitos,
objeto de avaliação da Terceiridade.
47
seqüência, mostraremos diversas tentativas que têm sido empreendidas em torno deste
problema, todas elas, na extensão aqui avaliada, compatíveis com a pretensão de se apontar
um formato operacional para a segundidade. Procuraremos, pois, mostrar possíveis
correlações desse nível da sua teoria, com formulações mais localizadas e disseminadas em
outras abordagens.
2.3.1. Predicação
O padrão de predicação mais conhecido é dado pela forma lógica do tipo “S ε P”,
onde S indica o fenômeno/objeto em questão e P um tipo ou um conjunto das propriedades
que definem ou descrevem a natureza de S. De modo menos formal, mas também preciso,
podemos adaptar a forma canônica acima a outros padrões lógicos para aceitar formatos
como “x serve para...” “x compõe-se de...” “x é um tipo de...”10. Tal padrão, com suas
10
Doravante, sempre que usarmos as variáveis x, y, z, estaremos considerando-as como variáveis presas. Para
simplificar tecnicidades, evitando registros locais a não ser quando imprescindíveis, podemos considerá-las
presas ao quantificador existencial, já que elas devem aceitar a saturação de pelo menos um objeto. Do ponto de
vista lingüístico, porém, a vinculação de variáveis a quantificadores é apenas uma condição genérica: a
48
variações possíveis, apresenta uma difusão bastante variada, pois recobre tanto especificações
rigorosas em sistemas formais, como ainda especificações técnico-culturais em dicionários,
em enciclopédias, enfim, em quaisquer formatos de expressão cultural que operam com
definições e caracterizações de objetos. O que pode significar este padrão de representação em
termos da idéia de formação de conceitos no âmbito dessa reflexão ?
Podemos, a princípio, postular que toda forma de conhecimento racional, que tenha
uma expressão de linguagem qualquer, deve ser, ao menos, assegurada pela predicação. Só
podemos afirmar o conhecimento (material ou metalingüístico) de x, se sobre x pudermos
predicar, ou seja, atribuir alguma propriedade que lhe seja inerente ou acidental11. Se a
vinculação entre o fato de conhecer x e o fato de podermos predicar sobre x é verdadeira,
estamos assegurando, de algum modo, que a predicação é um procedimento racional e
primário que podemos acionar para compreender a formação de conceitos. A predicação
pode representar, pois, um processo de cognição intuitiva que admite duas orientações
diferentes. Na primeira, a predicação é o efeito da nossa sensação de conhecer algo, pois é
através dos predicados atribuídos a um objeto que podemos falar do seu domínio conceitual.
Na segunda, a predicação é a possibilidade de virmos a conhecer um objeto, em razão de
predicados que podemos a ele aplicar. Tanto na primeira como na segunda situação, a
predicação é um procedimento de implementação da nossa atividade congnitiva, como
também um processo de construção teórica, na medida em que, através de procedimentos
lógico-lingüísticos, associamos a eles propriedades descritivas e funcionais, atribuímos-lhes
valores, conferimos-lhes funções a desempenhar. Esse duplo desempenho funcional da
predicação, assegura-lhe um valor necessário ao processo de formação de conceitos, pois é a
partir dela, predicação, que estruturamos condições para o (re)conhecimento de um dado
objeto.
interpretação e a legibilidade de uma expressão dependem, stricto sensu, de condições semânticas próprias, isto
é, de restrições seletivas, que determinam a compatibilização de unidades lexicais e construções sintagmáticas.
11
Podemos predicar sobre todo objeto que conhecemos, mas nem sempre o que predicamos sobre um objeto é o
que dele conhecemos. É preciso considerar predicações que reportam características e propriedades descritivas,
funcionais de um objeto, de predicações que representam apenas atitutudes proposicionais de quem predica. Por
exemplo, dizer de um objeto que ele é 'azul', 'retangular', 'áspero' etc. significa manifestar parte do que dele
conhecemos. Entretanto, dizer de um objeto que ele é 'chato', 'complicado', 'difícil' etc. representa apenas
manifestar atitudes proposicionais sobre ele, já que tais predicações não representam propriedades descritivas e
funcionais de um objeto, mas estados mentais do observador.
49
12
Esta é uma das razões através da qual alguns autores costumam vincular predicados monádicos à primeiridade
(PINTO, 1995. p. 41.). Os predicados monádicos, resultantes de uma operação simples entre um argumento e
uma propriedade a ele associada, representariam uma operação básica de primeiridade, onde apenas a qualidade
de um objeto (argumento) é reconhecida e não, por exemplo, relações outras que são derivadas de predicados
não-monádicos.
50
2.3.2 Composicionalidade
Havia ainda uma quarta categoria, o virtuema, com peso formal menos definido, mas
com uma função importante neste esquema, ou seja, a de ser portadora de toda transformação
possível para estruturas compreendidas no âmbito do classema e do semema. Ainda que
pesem críticas severas sobre a forma de operar esse esquema na descrição do significado das
13
No fundo, cada um dos elementos deste aglomerado nada mais é do que um predicado monádico possível, onde
a forma lógica já dispensa o papel da cópula, por valer-se de uma forma matricial de composição.
52
línguas naturais, há méritos que devem ser aqui reconhecidos, na medida em que nos
dispomos a assumir tal esquema na dimensão de um modelo explicativo para a formação de
conceitos (e não como padrão componencial para o significado, forma que lhe foi quase
sempre associada). Que aspectos, em razão do tema em análise, podemos extrair da dimensão
sugerida ?
14
Operadores lingüísticos como estes e tantos outros foram denominados por LAKOFF(1972. p. 183-228) como
hedges , por traduzirem uma forma genérica de categorização, apontando apenas para o domínio da classe dos
objetos. Assim, asserções como Num certo sentido, baleia é um peixe ou Morcego é um tipo de pássaro não
asseguram que baleia e morcego sejam membros da classe de peixes e pássaros, respectivamente, mas apenas
mostram que eles partilham de propriedades comuns aos membros destas classes.
53
O segundo aspecto da composicionalidade, que nos importa de modo mais direto, diz
respeito à Semântica Interpretativa que será vista aqui como princípio genérico de
representação conceitual. Que aspectos desta abordagem têm relevância para a discussão de
problemas, relacionados à segundidade ? Passemos a uma caracterização do problema.
15
O outro padrão de análise do significado, dentro do Estruturalismo, está associado à análise componencial. Na
extensão do nosso trabalho não vemos, em essência, uma razão maior de sua exploração aqui, pois corremos o
risco de repetição, em razão dos aspectos em que se aproxima da análise sêmica, ou de tecnicidades excessivas
na análise lingüística, se voltamos para sua intervenção específica.
54
padrões do cálculo dos predicados, desenvolvido pela lógica moderna. A resposta alcançada
por essa tentativa apontou para a necessidade de uma outra perspectiva de cálculo, isto é, um
cálculo de segunda ordem, de tal modo a permitir predicado atuar sobre predicado. Dessa
preocupação resulta, portanto, uma nova concepção de forma lógica: não apenas propriedades
lógicas tradicionais (quantificadores, negação, relação sujeito/predicado) devem ser acionadas
para o cálculo do significado, como ainda as propriedades que compõem a matriz semântica
de qualquer item lexical. Assim, o conceito de cálculo do significado, na dimensão aqui
concebida, resulta de operações formais das regras de projeção, destinadas ao amalgamento de
propriedades lexicais, com base em leituras lexicais, em unidades cada vez maiores, leituras
derivadas, respeitadas as relações gramaticais, determinantes da estrutura sintagmática da
proposição. Como podemos entender a presença dessa abordagem nos aspectos concernentes à
construção e à representação do conhecimento ? De que modo ela opera, tornando possível
uma aproximação com esse problema ?
Apesar das dificuldades que foram apontadas para essa abordagem, sobressai, da sua
formulação teórica, o fato de ela poder constituir-se num modelo de representação conceitual
que possibilita ´calcular´ unidades mais complexas, a partir de uma matriz de predicados
atômicos, como abaixo exemplificado:
16
A escolha possível do caminho [não-humano] deveria contar com um filtro que limitasse derivações seguintes,
em razão do campo de aplicação do conceito. Do ponto de vista biológico, nada impede que avancemos até a
linha 4, inclusive, mas a linha cinco só é aplicável à vida social de seres humanos. Certamente, poderíamos tornar
a linha 5 aplicável a animais, substituindo [casado] por [cruzado]. Do ponto de vista da existência de termos
disponíveis numa língua, as linhas 3 e 4 já apresentam dificuldades.
55
Com base em certas regras de derivação, podemos obter, como exemplo de aplicação da
matriz acima, os seguintes conceitos:
Dada a matriz conceitual anterior (certamente incompleta ainda para determinar todos os
membros admissíveis numa classe possível de objetos), dadas as derivações apresentadas de
00 a 08 (o mesmo poderia ser feito para conceitos derivados de mulher, com a alteração da
matriz conceitual a partir de 02), podemos, então, entender a natureza do cálculo proposto
pelos teóricos dessa abordagem.
17
Ainda que pelas restrições gerais ([macho] ∨ [fêmea]) devam ser mutuamente exclusivos na formação de um
conceito, há categorias na língua em que esta oposição aparece neutralizada, como no caso seguinte: {
criança, [animado] ∧ [humano] ∧ ([macho] ∨ [fêmea]) ∧ [não-adulto] }. Assim, a presença de elementos
isolados por parênteses na formação de um conceito particular e, por conseguinte, a presença de um conectivo
disjuntor, implica a neutralização do traço conceitual em questão.
18
Este arranjo de categorias pode também ser usado para expressar outros exemplares: assim, desquitado ou
divorciado têm uma representação semelhante, mas devem ser distingüidos com base em informações que
convencionam o uso de cada um.
56
(i) adição de propriedades: Dada a matriz conceitual abaixo, onde cada etapa da
derivação compõe-se de três traços disjuntivos e dada a regra de formação, onde
um conceito (C i) é formado pela seleção de, ao menos, um traço numa das linhas
de derivação19, o procedimento para a composição de um conceito singular se faz,
mediante a somatória de componentes disjuntivos, selecionados no interior dos
parênteses, isto é:
Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... }
Todas as derivações de (a) a (d) são formas possíveis que podem assumir a regra de formação,
depois de uma operação reiterada da adição, que seleciona componentes variados na matriz
19
No fundo, esta seleção de um único elemento, numa linha de derivação, é possível, formalmente, já que
podemos falar do conceito de “adulto”, ou do conceito de “macho” de modo independente. Entretanto, o uso que
fazemos destes conceitos se dá de forma integrada a outros conceitos, quando falamos de pessoas ou de animais.
57
Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... }
Permuta de Propriedades: (f) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (e) acima)
20
Existem restrições complementares a serem feitas nesse processo de adição de propriedades: por exemplo,
embora situados em parênteses distintos, não possível é associar [não-adulto] a [nunca-casado], já que
proposições como Conheço um solteirão de quatro anos de idade não seriam aceitas, normalmente, pelos
falantes, a não ser com vistas a algum contexto específico.
58
No segundo caso, embora a leitura de [+genérico] seja parte do conceito homem, não
está em julgamento aqui um contraste possível com a permuta do traço [humano] para [não-
humano], dado o fato de que a natureza da predicação presente (lutar por direitos
trabalhistas) recorta apenas o universo dos seres humanos. Para este universo, no entanto,
pode-se, em razão de circunstâncias históricas específicas, apontar duas leituras possíveis para
homem: uma que aproveita a dimensão do [+genérico], mostrando que a luta é partilhada
tanto por homens, como por mulheres (numa circunstância histórica em que ambos os tipos de
força de trabalho fossem institucionalizados); outra que aproveita apenas a dimensão do [±
genérico], realçando a luta de seres do sexo masculino (por suposição, uma circunstância
histórica em que um contraste entre força de trabalho de homem e mulher estivesse em
contraposição). Daí decorre, então, a seguinte interpretação possível, em razão de
propriedades semânticas derivadas do predicado:
O exemplo (09) pode comportar leituras derivadas correspondentes aos três níveis do
conceito homem, em razão da natureza semântica do predicado ter habilidade, como
propriedade que aplicamos não só a seres humanos, para falar de um adestramento intelectual
ou físico na execução voluntária de tarefas, mas ainda a animais, em termos de adestramento
físico. A dimensão do [+genérico] permite comparar a habilidade de seres humanos com a
de animais: por exemplo, a perda de certas maleabilidades físicas, ocasionadas pelo processo
de socialização, de industrialização etc. Por outro lado, (09) pode partilhar a dimensão do [±
genérico], porque podemos contrapor esta habilidade (intelectual ou fisicamente),
comparando atividades para as quais os homens não estão mais aptos, em contraste com as
mulheres. Pode (09) comportar, também, a dimensão do [- genérico], onde o contraste
apontado, a partir da natureza da predicação, será entre homens e crianças. À medida que
avançamos de uma derivação para outra, a interpretação torna-se cada vez mais restrita,
porque leva em conta um percurso derivacional mais longo ou um número maior de traços
para que o conceito seja formado. O resultado dessas observações é, portanto:
21
Muitas objeções foram apontadas em torno deste formato de análise. No fundo, elas traduzem duas dificuldades
genéricas: (a) a dificuldade da fixação de um quadro universal de traços atômicos primitivos e (b) a
impossibilidade, para muitas circunstâncias, de construção de definições analíticas. Polêmicas entre KATZ
(1975) e PUTNAM (1975) mostram grande parte dessas dificuldades.
62
22
2. 4 Segundidade e modelos de categorização conceitual
22
Estamos usando o termo categorização como designação genérica para alguns aspectos das formulações
elaboradas no interior da Teoria dos Conjuntos, da Teoria dos Protótipos e da Fuzzy Set Logic, certamente
aquelas que se aproximam mais da reflexão aqui desenvolvida.
63
alcance mais específico para a segundidade. O princípio básico que norteará toda discussão
continua sustentando esta última como um patamar, na tópica peirceana, de formação
conceitual.
Comumente atribui-se a CANTOR (citado por KNEALE & KNEALE, 1980, p. 445) a
proposição inicial de uma Teoria dos Conjuntos e é nela que buscamos a definição de
conjunto que assumiremos como ponto de partida desta reflexão. Para Cantor, um conjunto é
“a reunião num todo de objetos da nossa percepção ou do nosso pensamento que são
definidos e distintos e que se chamam elementos do conjunto”. Aqui estamos interessados
num aproveitamento de aspectos desta teoria, não no que ela representa de específico para
abordar, por exemplo, relações e propriedades lógicas de números, mas no que ela pode
prover em termos da formação e da representação de conceitos. E, neste particular, achamos
que a teoria tem muito a oferecer, como tentaremos mostrar, em decorrência da definição de
conjunto apresentada. O modo pelo qual o autor define conjunto sugere um problema que
está no cerne da nossa discussão, isto é, o de apontar para o alcance da percepção e do
pensamento como expedientes necessários para reunir objetos num todo, ou em partes
constitutivas desse todo, − os sub-conjuntos. Ainda que esses dois parâmetros sejam amplos
demais para delimitar as operações de membramento, é possível determinar-lhes uma forma
instrumental de operar, a partir dos dois formatos de atomização conceitual, por exemplo,
vistos na seção anterior. Afinal, procuramos demonstrar que predicação e composicionalidade
são instrumentos formais, através dos quais podemos definir parte da nossa atividade de
perceber e de pensar. Além disso, é importante, em razão do nosso interesse teórico, o fato de
Cantor destacar as razões da experiência sensível, como possibilidade do reconhecimento de
elementos de um conjunto.
64
23
O traço característico dessa versão, que estaremos explorando no texto, relaciona-se à aplicação do esquema
binário {0, 1} na avaliação da pertinência ou não-pertinência de um dado elemento num conjunto. Outros
aspectos dessa abordagem serão mostrados mais à frente, num comentário sobre a Fuzzy Set Theory, como
extensão da versão clássica.
65
As condições impostas por (CG) e por (CP) acima determinam que, para todo x, pertencente
ao domínio genérico D (CG), se x satisfaz o conceito característico C, então x pertence a A,
sub-conjunto de D, podendo assumir o valor {0} ou {1} (CP). Essa regra pretende-se geral,
pois é através dela que decidimos sobre a pertinência ou não de um objeto num dado domínio.
Assim, por exemplo, se propriedades de um objeto especificado em x partilham do conceito
característico C, então o objeto em análise é um membro de A e a ele podemos atribuir o valor
{1}. Caso contrário, determinamo-lhe o valor {0}. Há, todavia, dificuldades conceituais de
expansão dessas condições, para justificar a compreensão de objetos naturais e artefatos. A
maior delas traduz-se pela necessidade de compatibilizar a rigidez do conceito característico
com a fluidez das propriedades de alguns dos objetos em questão.
A partir das condições acima, existem objetos para os quais uma decisão sobre sua
pertinência em um dado domínio pode, de fato, ser confirmada com base no sistema binário
em questão, {0, 1}, onde os dígitos representam um valor-verdade atribuível a quaisquer
indivíduos candidatos ao membramento em um domínio especificado. Esse procedimento de
avaliação da pertinência ou não-pertinência processa-se, de modo geral, numa relação entre
indivíduo-classe: há indivíduos aspirantes a membros e há propriedades, associadas a uma
dimensão da classe, que operam como critérios de pertinência. Assim, a classe <pessoas>
define, como critério geral de pertinência, uma combinação de propriedades como ([animado]
∧ [humano]), que representam o conceito característico C, para um sub-domínio P. Logo,
seres nomeados pelos signos ‘pai’, ‘mãe’, ‘carteiro’, ‘motorista’, ‘jogador’ satisfazem a
essa condição e, por esta razão, pertencem ao domínio em análise, podendo lhes ser atribuído
o dígito {1}, por exemplo. Objetos como ‘cadeira’, ‘livro’, ‘árvore’, ‘cão’, ‘macaco’ não
satisfazem essa condição e a eles devemos atribuir, por oposição, o dígito {0}, marca de sua
exclusão do conjunto. Para tantos outros campos da atividade humana, o procedimento de
conhecer um objeto opera de modo semelhante: para incluirmos um número qualquer no
conjunto <números primos> é necessário que ele satisfaça os critérios de inclusão nessa
classe, isto é, que admita, como conceito característico, apenas os divisores 1 e x, sendo x o
número em questão. Desse modo, {2, 7, 13 e 19} são primos, enquanto {8, 15, 21 e 45} não o
66
são. No segundo caso, qualquer membro admite como divisor, além de 1 e x, outros números
como − 2 e 4; 3, 5, 9 e 15 −, considerando-se o primeiro e o último membro listados.
A capacidade que temos para incluir ou para excluir objetos de uma classe talvez
represente a primeira forma elaborada de conhecimento que temos destes objetos: conhecer
um objeto é, ao menos, reconhecer-lhe o domínio de pertinência (ou de não-pertinência), e
apontar esse domínio é o primeiro estágio da construção de um conceito do objeto, ou seja,
associamos a ele, minimamente, as propriedades que regulam sua inclusão (ou sua exclusão)
no (do) conjunto. Quando estamos diante de um objeto desconhecido e indagamos ‘para que
serve isso’, operamos, pragmaticamente, com a necessidade de determinação de um domínio
funcional para esse objeto. Se a resposta for ‘serve para cortar papel’, incluímo-lo, de
imediato, no conjunto de ‘tesoura’, ‘espátula’, ‘estilete’, ‘guilhotina’ ... Então, como vimos
anteriormente, conhecer um objeto artefato, nos termos de MONOD (1972), significa
associar-lhe um projeto24 para o qual ele foi construído. Aqui vinculamos a esses objetos o
projeto instrumento para cortar papel, que também é o seu conceito característico.
A natureza, entretanto, nem sempre nos assegura uma linha divisória nítida entre os
elementos aos quais podemos atribuir {0} e aqueles a que atribuímos {1}: na diversidade dos
fatos da realidade, é mais comum encontrarem-se domínios onde membros centrais convivem
com a possibilidade de membros mais ou menos periféricos. Nos dois exemplos analisados, a
questão não parece relevante. O fato de ‘8’ admitir quatro divisores e ‘45’, seis divisores, não
faz daquele um candidato a membro menos periférico do que este ao conjunto <números
primos>. Tal constatação deve-se apenas a uma circunstância associada à posição desses
números na escala dos números naturais: quanto mais avançamos na série, se não se trata de
um número primo, tanto maior pode ser o número de divisores admitidos. Em outros termos, a
matemática controla os membros desse conjunto através de um designador rígido (KRIPKE,
197...), conforme já foi mostrado, fazendo dele um conjunto não-fuzzy. No outro exemplo, a
estratificação cultural que temos para o conjunto <pessoas>, de fato exclui, com clareza, os
24
Seguindo Monod, é possível afirmar que todo objeto artefato expressa um projeto, isto ém uma função para o
qual ele foi construído. No outro extremo do contraste, estão os objetos naturais, para os quais não podemos
universalizar a inexistência de um projeto a eles associados: não saberíamos dizer que projeto deve ser associado
a ‘vento’, a ‘água’, a ‘pedra’... Entretanto, quando recortamos uma pedra para servir de revestimento parta pisos
ou paredes, acrescentamo-lhe um projeto e, portanto, a transformamos em artefato. Há casos, porém, em que a
função de uma espécie natural já está garantida, à revelia de qualquer manipulação: por exemplo, órgãos do
corpo – ‘coração’, fígado’, ‘rins’... – são espécies naturais que contêm neles integrado um projeto.
67
elementos citados como não-membros, mas é claro que, ao menos a título de especulação,
existem gradações na exclusão, isto é, existe uma distância diferente da não-pertinência entre
OS elementos em análise. A possibilidade de ‘macaco’ ser incluído como um exemplar
periférico do conjunto é muito maior do que a de ‘cadeira’ e ‘livro’; entretanto, aqui também,
ao menos em termos das culturas a que temos acesso, existe um designador rígido para
membramento no domínio <pessoas>.
Em relação aos dados até agora comentados, o esquema binário {0, 1}, que atribui
valor de pertinência ou não-pertinência a elementos pretendentes a membros de uma classe, é
suficiente na tarefa de membramento. Como já mencionamos, no entanto, a diversidade da
natureza nos impõe, em grande escala, decisões para as quais esse esquema já não é mais
suficiente, a saber, casos em que a avaliação do domínio de pertinência de um objeto não
pode ser arbitrada por meio de designadores rígidos, no formato binário em questão. Neste
momento, já não temos mais clareza sobre a inclusão de um objeto, numa classe ou em outra
qualquer. Há elementos que podem, em determinada circunstância, ser membros periféricos
de um primeiro conjunto, em outra, ser membros centrais de um segundo, considerando-se
maior ou menor aderência de certos traços ao conceito característico. Há elementos que se
tornam membros de uma classe, em razão de um tipo de traço e deixam de sê-lo em razão de
outro. Na realidade, deparamos com situações onde um objeto pode não satisfazer, em
plenitude, os critérios de pertinência a um domínio, como também não contradiz esses
critérios a ponto de dever ser dele excluído. A tentativa de se elucidarem questões dessa
natureza possibilitou o desenvolvimento da Fuzzy Set Theory, desenvolvida por ZADEH
(1966), cujos critérios de membramento são decididos por uma escala de gradiência entre os
seus membros, conforme veremos na formulação seguinte.
Do ponto de vista formal, o mesmo padrão de regras construído para TC foi usado
para FST, com os ajustes devidos aplicados à ultima. Por exemplo, as condições gerais que
permitem atribuir valores a membros de um domínio, comparando-se as duas teorias, já
mostram as diferenças pretendidas pela FST:
Considerando-se as mesmas convenções vistas para a TC, as duas condições acima, em II,
mostram: para todo x pertencente ao domínio genérico D (CG), C representa uma função que
atribui propriedades do subconjunto A (de D) a uma especificação qualquer de x, resultando,
para x, um valor situado na escala entre [0, 1], (inclusive). Em termos das condições gerais, o
fato que distingue FST de TC é o modo de avaliação dos elementos do conjunto: enquanto a
forma {0, 1} admite apenas dois valores absolutos, a forma [0, 1] reconhece uma escala
infinita de valores, inclusive 0 e 1. Assim, pertinência e não- pertinência são substituídos por
gradiência e um elemento qualquer não é mais avaliado em razão de ser ou não ser membro de
70
um conjunto, mas apenas de integrá-lo com maior ou menor aderência semântica, com base no
conceito característico.
Além da diferença incorporada por essas condições iniciais, seria importante ressaltar
o que resulta da sua aplicação, comparando-se ainda outros conceitos básicos entre as duas
versões. Inicialmente, mostraremos o funcionamento de cinco conceitos básicos da TC, a
saber, interseção, união, conjunto universal, conjunto vazio e conjunto complemento. Na
seqüência, faremos uso ampliado deles para a FST. Para a exemplificação desses conceitos,
estamos assumindo D, como o domínio <pessoas> e os dois subdomínios de D, A e B,
respectivamente, como <jogador> e <filósofo>. Vejamos, então, uma apresentação formal
para esses fatos:
Domínios: { D = <pessoas> };
{ A = <jogador> };
{ B = <filósofo> }.
União de conjuntos:
(∀x ∈ D) max(C filósofo (Platão) ∪ Cjogador (Platão)) = 1;
Conjunto complemento:
(∀x ∈ D) (C não-filósofo (Platão)) = 0 (pois: 1 - (C filósofo(Platão)) = 0);
(∀x ∈ D) (Cnão-jogador (Platão)) = 1 (pois: 1 - (C jogador (Platão)) = 1);
71
Conjunto vazio:
(∀x ∈ D) (c∅ (x)) = (Cjogador (Platão)) = 0;
Conjunto Universal:
(∀x ∈ D) (cD (x)) = (Cfilósofo (Platão)) = 1.
25
Outro formato para definir interseção pode ser: “ST que é chamado o produto interior (ou interseção) de S e
T, contém aqueles objectos que são elementos de S e de T e nada mais.”, (KNEALE & KNEALE. 1980, p. 446).
72
“The larger cA (x), the more x belongs to A; the smaller cA (x), the less x
belongs to A; 1 and 0 are limiting cases (for all x ∈ D).”
Assim, quanto maior for o valor assegurado pelo conceito característico, C, avaliadas as
propriedades de um determinado elemento, x, em relação a um domínio em questão, A, tanto
maior será o grau de sua inclusão na classe (e tanto mais ele refletirá a natureza do protótipo
da classe, com veremos mais à frente). E quanto menor for o valor a ele atribuído, tanto menor
será o grau de sua pertinência à classe (e mais distante ele estará do protótipo).
26
A união, também, pode ser definida do seguinte modo: “S + T que se chama a soma lógica (ou união) de S e T,
contém aqueles objectos que são elementos de S ou de T e nada mais. “, (KNEALE & KNEALE, 1980, p. 446).
73
dois valores27, onde os membros não são, nem deixam de ser integrantes de uma classe, mas
aderem a ela em escalas variáveis. Podemos, então, para ilustrar efeitos das mudanças
resultantes nos princípios acima, reajustar os domínios anteriores com outras extensões:
27
Ao introduzir o conceito de escala gadiente de pertinência, a FST compromete-se também com um outro
padrão de valor-verdade. Se os membros se distribuem numa escala entre [0] - falso – e [1] - venladeiro -, torna-
se inevitável que tenhamos também gradações para o verdadriro ou para o falso. Muito verdadeiro, um tanto
verdadeiro, bastante verdadeiro. quasi-verdadeiro, apenas verdadeiro, pouco verdadeiro, ligeiramente
verdadeiro. nada verdadeiro..., para usar apenas um dos valores, seriam, com certeza, componentes dessa escala
metalingüística. As dificuldades decorrem dessa tentativa de graduar, através de artifcios sintagmáticos, uma
escala lingüística para verdadeiro, dadas as dificuldades de sua percepção intuitiva. Nada nos assegura, ao menos
para regiões vizinhas, a ordem de certas gadações: se consideramos verdadeiro um dos pontos máximo da escala,
o que estaria mais próximo dele: muito verdadeiro, bastante verdadeiro ou quasi-verdadeiro ? Em algumas
circunstâncias experimentais, com valores numéricos apurados através do confronto da intuição de sujeitos-da-
experiência, costuma ser sugerido o padrão: '.8 verdadeiro’, '.5 verdadeiro', '.1 verdadeiro' ...
74
28
Estes valores estão sendo arbitrados aleatoriamente; na prática experimental, os valores são obtidos através de
testes de avaliação de membramento de elementos num conjunto e representam o grau de pertinência que os
entrevistados atribuem a eles.
75
Podemos agora avaliar os efeitos das modificações em alguns dos conceitos básicos,
com base na ilustração que foi desenvolvida. Selecionamos para isso o conceito de conjunto
complemento.
29
Numa experimentação realista, os testes propostos deverão, de fato, contornar esta dificuldade em alguma
extensão, por ser ela determinante da percepção de quaisquer conjuntos de objetos.
76
estruturação entre objetos. Esse aspecto da formulação é que nos leva, portanto, a pensar,
como analisaremos a seguir, a sua relevância para a reflexão que estamos desenvolvendo, no
sentido de explicitar a segundidade como um padrão de racionalidade e, em conseqüência,
como instância de formação conceitual.
Na percepção dos autores, devem-se destacar duas tarefas dentre aquelas a serem
desesenvolvidas a partir da TP. A primeira lembra, de algum modo, o padrão de raciocínio
desenvolvido na composicionalidade, isto é, a construção de conceitos mais complexos, a
30
Além desse autor, utilizamos também o texto de ARMSTRONG, GLEITMAN, & GLEITMAN (1983. p. 263-
308) para uma discussão específica da TP. Ambos os textos foram escritos a partir das formulações inciais de
ZADEH (1966).
78
partir de conceitos mais simples. A segunda assegura a importância das condições de verdade,
ou seja, a compatibilidade entre pensamento e conteúdo proposicional, na sua função de
descrever algum recorte da realidade. Certamente, o padrão de verdade, que se torna adequado
aos princípios da TP, precisa ser ajustado, em razão das características em que se fundamenta
o processo de membramento, isto é, “... entities fall neiher sharply in nor sharply out of a
concept’s extension.”(OSHERSON/SMITH, 1981)
A TP nem sempre se apresenta como um sistema único de conceitos que traduz uma
única forma de representação cognitiva dos objetos. Há abordagens diversas em função da
especificação de detalhes formais e até mesmo em razão de padrões diferenciados no modo de
configurar modelos conceituais. É possível, porém, localizar alguns aspectos centrais dessa
abordagem, desconsiderando divergências localizadas, os quais constituem um certo núcleo
que perpassa grande parte das suas aplicações. Muitos trabalhos sobre estruturas das línguas
naturais apropriaram-se desse expediente conceitual e, a partir dele, compuseram um formato
específico de análise. Vamos, então, retomar, de modo resumido, alguns pontos da
caracterização da teoria.
Numa comparação mais localizada, podemos afirmar que aquilo que vale, em termos
das relações entre objetos, para a formulação da FST, também é válido para a TP. Os
conceitos básicos − interseção, união, complemento... − (p. 33-4 deste trabalho) , bem como a
condição geral e a condição particular (p. 32 deste trabalho) determinam também relações
possíveis dentro da TP. Há um detalhe, entretanto, que torna a TP uma teoria diferenciada da
FST, a saber, a seleção de um protótipo dentre os membros que compõem uma classe de
objetos. Enquanto na FST nenhum membro deve ser destacado do outro, já que todos devem
ser dispostos numa escala numérica gradativa, na TP, os membros são confrontados, um a um,
com um protótipo, selecionado dentre a totalidade dos membros da classe. Ao assumir a idéia
de que, no conjunto dos membros concorrentes numa classe, ao menos um deva ser alçado à
condição de protótipo, a teoria abandona a idéia de gradiência universal para membros de uma
classe, sustentada pela FST. Isso requer a introdução de um novo conceito, distância métrica,
destinado a avaliar a posição relativa de cada membro na classe em relação ao seu protótipo.
79
Segundo a formulação acima, a TP é constituída com base numa quádrupla, onde ‘A’
representa um domínio conceitual de objetos possíveis; ‘d’ constitui a distância métrica entre
os membros de ‘A’, aos quais identificamos através de números positivos; ‘p’ representa um
membro de ‘A’, selecionado como seu protótipo; ‘c’ constitui uma função conceitual (ou um
conceito característico) que opera em ‘A’, no do intervalo gradiente [0,1], com base em
propriedades que são associadas aos membros da classe. De modo mais específico, podemos
ilustrar os fatos acima, considerando, por exemplo, domínio < S = calçados >. Podemos
conceber, então, a aplicação do esquema geral num domínio particular, resultando:
Esse esquema contém indicações fundamentais, o que nos possibilita, com base nos elementos
nele contidos, conceber um formato diferente de percepção para as relações entre os objetos
do conjunto em foco. Na seqüência, vamos determinar, passo a passo, cada um dos
componentes do DP, em quatro operações distintas, destacando como elas se comportam, isto
é, que fatos expressam, em relação aos membros do domínio selecionado. Avaliemos, então,
os quatro componentes a partir de exemplos ilustrativos:
31
A formulação dos autores nesse texto serviu de base para a exposição aqui apresentada sobre a Teoria dos
Protótipos.
80
‘botina’, ‘bota’, ‘galocha’ ... Substituindo ‘S’, no DP, pelos objetos que ele
representa, obtemos:
32
Estamos apenas supondo, pela intuição, a possibilidade de que ‘sapato’ viesse a ser escolhido como protótipo
da classe. Existem muitos problemas quanto à decisão sobre a escolha de um protótipo, por exemplo, em relação
aos fatos que podem ser mais representativos nessa escolha. À frente, comentaremos algumas das dificuldades
relativas à questão.
81
Nos quatro itens acima, procuramos mostrar o modo pelo qual cada um dos
parâmetros da TP aplica-se a fatos de um domínio de objetos particulares. Em cada uma das
etapas, operamos apenas com a conversão de um parâmetro, mas projetado sobre o resultado
de operações anteriores. O produto final que extraímos de toda a série de operações descritas
nos mostra diversos componentes que integram o conceito que formamos de cada um dos
membros do conjunto. Assim, a compreensão de cada um dos objetos da classe supõe, na
dimensão da TP, que: (i) ‘sandália’, por exemplo, seja um objeto pertencente ao domínio
<calçado>; (ii) ‘sandália’ apresente uma diferença perceptual concernente ao protótipo da
classe, neste momento caracterizado por ‘sapato’; (iii) a diferença perceptual seja registrada
comparativamente em relação aos outros membros da classe, em termos de valores numéricos
33
Paulatinamente, cada um dos parâmetros que compõe o PG foi desaparecendo, em razão da sua atualização no
domínio em análise. Aqui nenhum dos parâmetros se faz mais presente na fórmula, uma vez que todos já foram
traduzidos em fatos pertinentes ao domínio em questão.
82
A fórmula acima determina que para dois membros quaisquer ‘x’, ‘y’, pertencentes a um
domínio <A>), a distância métrica <d> entre eles e o protótipo <p> é inversamente
proporcional à natureza do conceito característico <c> que define sua integração no conjunto.
Por exemplo, seja ‘x’ = ‘tênis’, ‘y’ = ‘chinelo’ e ‘p’= ‘sapato’, a condição acima mostra que:
Em outras palavras, se a distância entre ‘tênis’ e ‘sapato’ é menor do aquela entre ‘chinelo’ e
‘sapato’, então, o conceito característico <calçado ∪ aberto>, que determina a posição de
‘chinelo’ numa escala do conjunto, é menor do que o conceito característico <calçado ∪
fechado>34, que determina a posição de ‘tênis’. O valor perceptual atribuído ao operador ‘ser
menor’ corresponde ao fato de ele ‘ser menos representativo’ ou de ‘conter menos
propriedades’ numa comparação direta com o protótico35. A hipótese, em termos de uma
percepção cognitiva, para essa comparação, é que as características de ‘tênis’ facilitam o seu
34
Usamos, em complemento a [calçado], os traços [aberto] e [fechado], com a finalidade de mostrar que a
fixação de uma escala conceitual para membros de um domínio requer a implementação do conceito
característico, além dos patamares fixados para operar a inclusão no domínio. Isso não quer dizer, porém, que a
percepção do protótipo da classe se dê em razão da proliferação de traços.
35
A comparação, na verdade, poderia ser aferida em termos da quantidade e da qualidade dos traços de cada um
dos membros do conjunto com aqueles pertencentes ao protótipo da classe. O conceito característico é de ‘uso
exclusivo’ do protótipo, pois só ele reuniu um padrão quantitativo e qualitativo que possibilitou a sua seleção, a
sua ‘superioridade’ conceitual em relação aos outros concorrentes. Os demais pretendentes a membros devem se
espelhar nesse ideal de conceito; uns se aproximando mais outros menos. Nenhum, entretanto, poderá equiparar-
se ao protótipo, a não ser nas circunstâncias em que deveremos reconhecer mais de um elemento nesta posição. A
igualdade, aludida pelo princípio 1.2 acima, descreve uma correlação possível entre membros e não entre um
membro e o protótipo.
83
36
Para uma avaliação detalhada de alguns experimentos para conjuntos padrões nesta abordagem, confira:
ARMSTRONS, GLEITMAN, & GLEITMAN. (1983. p. 263-308).
84
maior ou menor) entre membros de um conjunto e o seu protótipo pode ser apurada, com
base na condição 1.2, de OSHERSON & SMITH (1981), acima aludida.
37
Por exemplo, RIPS, SHOBEN, & SMITH, (1973) e ROSCH, (1975).
38
Numa comparação superficial entre as duas vertentes, somos levados a admitir um certo antagonismo: grande
número de propriedades não parece beneficiar rapidez de reconhecimento.
39
Nas análises desenvolvidas por autores americanos, não existe uma justificativa explícita para a escolha de
robin, que traduzimos acima por ‘tordo’, como protótipo e não um outro pássaro qualquer que também reúna
estas mesmas condições. Há autores que citam também sparrow. É possível que alguma razão de natureza
cultural, pela presença destes pássaros nos experimentos, dispense qualquer justificativa.
86
são, igualmente, partilhadas por ‘galinha’, ‘avestruz’, apenas para citar, por exemplo, os
mais distantes. As propriedades referidas não possibilitam a seleção de nenhum dos objetos
mais comuns da classe, porque, no fundo, elas não são propriedades de membro, mas
condições gerais de pertinência na classe, resguardados desvios categoriais possíveis. Além
disso, conjunção de propriedades não resolve a questão cultural que pode ser determinante na
seleção do protótipo. Em relação ao domínio do signo ‘tordo’ para designar uma espécie de
pássaro40, falantes do português, certamente, teriam dificuldades com um tal protótipo, por
não se tratar de um exemplar tão próximo da sua experiência, na classe <pássaros>.
Entretanto, com base nas mesmas propriedades, poderiam selecionar ‘pardal’, ‘tico-tico’,
‘canário’ e tantos outros que fossem cognitivamente mais disseminados na sua experiência e
culturalmente mais representativos.
40
Ainda que usássemos outros signos para a designação alternativa desse pássaro, isto é, ’papo-roxo’, ou ‘peito-
roxo’, como também é conhecido, as dificuldades continuariam existindo.
87
O grifo destacado no texto parece indicar uma tentativa de superação das dificuldades
discutidas sobre o reconhecimento do protótipo de uma classe. Não há protótipo a ser
reconhecido, a ser isolado do conjunto, porque parece não existir qualquer objeto-membro que
satisfaça as suas condições. O protótipo é um construto idealizado e, por isso mesmo,
comprime, na sua forma de existir, todas as possibilidades dos membros de um conjunto. Se
isso é verdade, precisamos rever as estratégias experimentais que objetivaram avaliar, em
termos de padrões de rapidez de reconhecimento e de facilidade de memorização, escalas
gradativas de membramento.
Contudo, apesar dos problemas aqui localizados, lembrando ainda não se tratar de uma
proposta inteiramente fechada, a TP constitui um avanço para os processos de representação
conceitual. A sua virtude maior está em reconhecer a necessidade de um padrão de
membramento que contemple uma escala gradiente de integrantes, possível de ser avaliada
com algum rigor. Essa formalização resulta, por sua vez, numa conseqüência importante para
os processos de categorização: os objetos, candidatos a integrantes de um conjunto, não são
mais considerados como membros ou não-membros, mas são vistos apenas numa escala
gradual de membramento.
Ela pretende, com os parâmetros de análise que foram expostos, fazer emergir alguma ordem
entre objetos. Uma ordem que resulta da intervenção de sujeitos na realidade e não apenas do
produto de um mapeamento de categorias formais.
isto é, damos formato às nossas sensações de qualidade, então, uma decisão pela escolha de
uma das abordagens implica determinar qual delas melhor se ajusta a essa tarefa. E aqui,
precisamente, qualquer decisão pode tornar-se arbitrária, porque selecionar uma pode
significar que aspectos importantes de outras abordagens estejam sendo ignorados nessa
reflexão. Além do mais, as abordagens que comportam esses dois modelos mantêm entre si
relações diversas: há relações de antagonismo (decomposição em categorias atômicas x
comparação entre membros e protótipos), além de relações implicativas (a
composicionalidade é uma forma de predicação), de relações extensivas (a FST é uma
ampliação e uma qualificação da TC) e de relações cooperativas ( a TP reutiliza padrões da
FST). Todas elas, entretanto, convergem num ponto: representam uma tentativa de
‘disciplinar’ a intuição, de propor-lhe um modelo racional de funcionamento em relação a sua
forma de atuar sobre os fatos da realidade. Todas, a seu modo, enfrentam o desafio de
racionalizar, de disciplinar a intuição, pensada, no plano da primeiridade, sob a forma de
sensações de qualidade. Assim, se podemos associar esse desafio à racionalização às
perspectivas que o autor cria para a segundidade, podemos supor que quaisquer das
abordagens acima traduzem parte da necessidade de prover uma forma teórica capaz de
expressar fatos discutidos na teoria. Todas representam, em seu estilo, uma tentativa de
fundamentação para os problemas do conhecimento que são aventados em relação à
segundidade.
Pela abrangência que Peirce atribui a essa categoria, não seria inadequado
conjeturarmos sobre o fato de que o próprio autor não supõe uma única forma de
racionalidade. Qualquer padrão que venha a ser usado para viabilizar o confronto entre objetos
requer uma multiplicidade de enfoques, afinal esse confronto emerge de dimensões
históricas, que podem nunca se repetir na extensão do vivenciado. Sua repetição torna-se
viável − e até necessária − como uma conveniência para a teoria, permitindo a construção de
modelos de interpretação. No fundo, é a nossa atuação cognitiva sobre a natureza que não se
dá num único recorte, numa única forma de compreensão. Não existe A FORMA RACIONAL
de apropriação lógica dos objetos: existem pluralidades históricas, culturais, mentais, físicas,
através das quais expressamos nossa racionalidade em relação a eles. Nenhum dos modelos
expostos comporta um padrão de racionalidade decisiva para os problemas propostos: todos
contêm defeitos, uns mais graves, outros menos. Todos, porém, revelam estratégias colocadas
em prática, na tentativa de compreender, de exercer algum domínio sobre a realidade.
90
Se os fatos se comportam dessa maneira, estaríamos propensos a supor que cada uma
das abordagens que vimos fosse capaz de expressar uma fração da totalidade que Peirce
configura na segundidade. Se esta se apresenta como padrão de complexidade − e não foi de
outra forma que Peirce a pensou −, então, o que nos resta é admitir, até mesmo pela natureza
das exigências formais que são impostas à questão do conhecimento, nos tempos atuais, que
cada uma das abordagens, apesar das suas dificuldades, dos seus compromissos ontológicos e
teóricos, represente uma forma plausível de avançar sobre essa complexidade. Não devemos,
por exemplo, impingir a TC à segundidade, mas antes, extrair daquela aspectos que sejam
relevantes na demarcação de padrões que tornam nossos movimentos sobre a realidade
ordenáveis e racionais; nem também impor à segundidade um padrão de raciocínio
composicional, mas antes, extrair deste aqueles princípios gerais que nos permitem avançar na
compreensão dos objetos. Poderíamos, portanto, em razão dos modelos estudados, negar que
eles representassem esforços na tentativa de construir padrões de estruturação do
conhecimento ?
As mesmas razões que nos levaram a não partilhar da seleção de um modelo mais
afinado com as preocupações da segundidade, levam-nos também a rejeitar uma recusa cética
do esforço desenvolvido pelas abordagens citadas, como padrões de formação conceitual. A
segundidade, se a ela conferimos estatuto epistemológico, torna-se um território adequado
para projetar todo o conjunto de acertos e desacertos, mapeados nas diversas abordagens que
discutimos. Trata-se de um território adequado em razão do fato de nada excluir, mas de
apenas colocar uma exigência fundamental, ou seja, a nossa capacidade de expressar com
inteligência o diverso da natureza, o imediato da experiência e o vivido da história.
É, portanto, dentro desse quadro de referência que julgamos relevante pensar uma
proposta de extensão e de especificação do pensamento de Peirce em termos de processos de
formação conceitual. Se há alguma preocupação formal que possa ser estendida à
segundidade, ela, certamente, deverá compor-se de parte dos princípios que foram analisados
nas diversas circunstâncias consideradas. Não supomos que uma rejeição a essa possibilidade
de se buscarem novos padrões para a segundidade deva ser assumida, pois isso excluiria
quaisquer tentativas de reinscrevê-la com outros padrões de alcance teórico-formal, e
estaríamos condenados a um circunlóquio de analisar a segundidade apenas nos limites da
segundidade.
91
Capítulo III
Vimos, no primeiro capítulo desta tese, as propriedades usadas por Peirce para definir
o alcance da primeiridade. Mostramos ali como ela se constrói em razão do percepto que tem,
no fema41, o seu interpretante dinâmico, isto é, as condições que tornam possíveis a sua
existência. A partir dessas condições iniciais, indicamos ainda como, na primeiridade,
reconhecemos objetos e fatos apenas na forma de uma qualidade de sensação, orientada a
captar a sua dimensão de presentidade, de imediatez e de concretude. Na seqüência,
contrastamos sua proposta com outros padrões de interpelação dos objetos, orientados em
razão de algum traço funcional neles incorporado. Analisando, então, a incompatibilidade
entre as condições de funcionamento da primeiridade e os conceitos de estrutura, função e
projeto, concluímos pela impossibilidade de assumir as operações do percepto como um
padrão de racionalidade, embora sejam elas as raízes para uma fundamentação primeira. O
percepto, como qualidade de sensação, inaugura a apreensão dos fatos, mas suas operações
não se constituem ainda numa instância de compreensão racional, senão numa condição
transcendental para o conhecer.
Vimos, por sua vez, no segundo capítulo, o desenvolvimento proposto por Peirce no
estudo da segundidade e ali, igualmente, contrastamos sua concepção, de modo mais
exaustivo, com outras concepções que expressaram, de forma aproximada, os problemas que
foram delineados em torno da idéia de formulação. A hipótese básica examinada admitiu que,
em razão de alguns aspectos conceituais analisados pelo autor, a segundidade pode ser
considerada como um lugar privilegiado para se avaliar a formação de conceitos, porque ali já
pressupomos a existência dos objetos . Nessa perspectiva é que pudemos avaliar diversos
41
A idéia de que o fema é o interpretante dinâmico da primeiridade faz dele o ponto de partida para a apreensão,
mas ele seria apenas um fluxo energético captado dos objetos a partir de meras sensações visuais, auditivas,
táteis... Ele se constitui como condição de operação de percepto.
93
modelos de organização do conhecimento, avançando em parte sobre o tema que será objeto
do capítulo presente, isto é, a representação. Tais modelos foram importados das tentativas de
explicação formal de alguns aspectos do processo de significação, implementados pelas
teorias semânticas e aqui retrabalhados com vistas a uma avaliação de problemas relativos à
formação de conceitos.
ramificações conceituais que compõem esta última. Logo, ao discorrer sobre o conceito de
representação, estamos traçando algum tipo de percurso capaz de espelhar o papel a ser
desempenhado nesse estágio da teoria pela terceiridade. Comecemos por uma reflexão que
mostra, de forma mais determinante, ser a terceiridade uma instância privilegiada para a
representação. Vejamos como PEIRCE (1980) situa tal fato:
Assim, se “aquilo que tem natureza representativa” não pertence ao domínio do real, mas ao
domínio de uma fórmula, ao domínio de uma elaboração racional; o seu conhecimento não
pode estar atrelado apenas a operações constitutivas da experiência. Ser representado impõe
condições que ultrapassam o plano sensível de “compulsão bruta”, engendrando a necessidade
de uma elaboração lógica, sustentada por operações que se encarregam de extrair, da
experiência imediata, os padrões determinantes de uma construção do racional. E a
racionalidade daí decorrente, por estar inscrita no âmbito da terceiridade, credencia-se a
recobrir o domínio da forma, de uma forma apta a representar os objetos, identificando,
relacionando e classificando-os, como pretende o autor na construção de toda a gênese do
representâmen.
42
As supressões marcadas por (...) fazem-se presentes no texto-fonte; aquelas marcadas por [...] foram
introduzidas por economia nas citações.
96
primeiridade e segundidade − que têm, por assim dizer, uma proximidade sensível/conceitual
com os objetos, por deles fazer emergir sensações, traços e características que possibilitam o
seu conhecimento.
A citação precedente serve para situar um aspecto determinante de todo o trabalho de reflexão
a ser desenvolvido na terceiridade, isto é, a idéia de que os objetos não se relacionam com
seus signos de modo uniforme nem aleatório (ou que os signos não representam os objetos
desse modo), mas somente se relacionam com os signos naquela dimensão que diz respeito ao
“fundamento do representâmen”. Uma vez que a totalidade dos aspectos de um objeto nunca
98
são recobertos pelo signo43, já que nenhum signo sintetiza o conjunto total dos componentes
de um objeto, suas diferentes espécies decorrem da maneira pela qual parte desse conjunto é
selecionada na composição do representâmen. Logo, a concepção de que existem
fundamentos distintos permitirá produzir também diferentes tipologias de signos. No fundo, a
função representativa do signo não se mostra desconectada, de modo determinante, do objeto,
como o próprio PEIRCE (1977) assinala:
43
Conforme citação já formulada por PEIRCE (1980) “aquilo que tem natureza representativa não é ipso facto
real.”. (p.29)
99
de representar, isto é, a constatação de que o signo, como elemento isolado, não possa
desempenhá-la de forma plena. Neste momento, então, preocupou-nos mais enfatizar o
essencial à terceiridade, como instância de representação e selecionar apenas o que existe de
fundamental no âmbito da presente discussão, ao invés de avançarmos sobre alguns detalhes
das tipologias, o que será objeto de nossa análise mais à frente.
Embora a gradiência aqui exposta não responda, diretamente, pela segunda tricotomia −
ícone, índice e símbolo − 44, as outras duas poderiam ser igualmente discutidas, ela constitui a
forma de maior divulgação de toda a arquitetura do signo proposta pelo autor, pelo fato de
reportar, diretamente, a relação signo/objeto, com certeza, o padrão mais comum de discussão
44
As tricotomias propostas pelo autor recobrem dimensões distintas do signo. A primeira considera o signo em si
mesmo, enquanto manifestação de uma qualidade (qualissigno), de um existente (sinsigno) e de uma lei
(legissigno). A segunda considera o signo na sua relação com o objeto, enquanto se refere a um objeto por razões
intrínsecas ao próprio signo (ícone), através de uma conexão existencial (índice) ou em razão de uma relação
com o interpretante (símbolo). A terceira admite o signo enquanto determinado pelo seu interpretante como uma
possibilidade (rema), como um fato (dicente) e como uma construção racional - correlação entre fatos -
(argumento). No presente trabalho estaremos apenas apontando alguns dos aspectos dessas tricotomias, naquilo
que recobre a nossa discussão geral sobre representação. Uma menção maior será feita à segunda e terceira
tricotomias, pelo fato de serem elas formas de representação importante para a linguagem.
100
45
A caracterização dos fatos da terceiridade, como já mostramos na nota anterior, mereceu de Peirce duas
categorias que se compensam também aqui nessa formulação. Assim, o que há de mais (menos) genuíno para a
terceiridade equivale ao que há de mais (menos) degenerado.
46
É importante justificar a presença de ambos os traços, na medida em que são utilizados para descreverem um
fenômeno em comum, ou seja, o grau de retenção de traços do representado no representâmen. Logo, devemos
conceber degenerado como possibilidade de um distanciamento em relação aos traços analógicos do ser na
representação do ser. Assim, quanto maior for para o signo o grau de degenerescência entre ser e ser
representado, tanto mais legítimo será como instância da terceiridade. Do mesmo modo, devemos admitir o
traço genuíno como possibilidade típica de um padrão de representação do ser. Logo, quanto maior for para o
signo o grau de genuinidade entre ser e ser representado, tanto mais autêntico será ele como membro da
terceiridade.
101
O que comentamos acima traduz uma orientação para o texto de Peirce que expressa
princípios gerais que fundamentam a terceiridade na sua dimensão conceitual. Não estivemos,
no momento presente, preocupados em recorrer a certos meandros da formulação do autor que
conduziriam a detalhes sobre as três tricotomias e sobre cada uma das suas classes
conseqüentes. Abordagens sobre os fundamentos da terceiridade costumam expressar apenas
uma genealogia dos signos em termos de classes, de subclasses e de desdobramentos
ulteriores. Essa taxinomia de valores, propriedades e operações constitutivos das espécies de
signos é, com certeza, importante na reflexão do autor e costuma ser o fator de maior saliência
que se aponta em sua reflexão. Entretanto, toda a preocupação com classificações e
47
A reestruturação aqui adotada para o símbolo, a partir dos componentes propostos por Peirce, poderia ser
estendida também a outras instâncias da terceiridade: legissigno e argumento. Existem dificuldades adicionais
nessa extensão, ao menos quando consideramos o argumento. Não é claro supor que todas as correlações
proposicionais possíveis sejam frutos de uma convenção. A noção de causalidade forte, por exemplo, (ter
massa/cair, ser menos denso que a água/flutuar) não depende, necessariamente, de uma convenção.
48
Igualmente, poderíamos estender a conceituação de ícone para outros primeiros da terceiridade: qualissigno e
rema. O fato de podermos expressar o rema através de uma função, cujas variáveis se apresentam apenas como
uma possibilidade, comprar (x, y), mostra que quaisquer objetos que vierem a substituir as variáveis assumirão
um aspecto qualitativo de comprar, como uma forma de predicação possível para tais objetos.
49
Ao índice também torna-se possível a mesma correspondência já mostrada: segundos como sinsigno e dicente
se adequam à presente reestruturação.
102
50
A definição de função, objeto de menção neste capítulo, está sendo retomada de DELATTRE, P. (1992) “A
função dum objecto ou dum elemento qualquer está estreitamente ligada ao comportamento deste elemento e ao
papel que ele desempenha num contexto dado, contexto este constituído ele próprio por elementos diversos. A
noção de função é portanto inseparável da de interacção e, em conseqüência, também da de sistema; a sua
explicitação não pode fazer-se sem que intervenham, simultaneamente, o elemento considerado e os outros
elementos situados no contexto.” (p. 290).
103
Podemos fazer uma aproximação das relações triádicas com as tricotomias, que já
foram mencionadas, mostrando que aquelas, diferentemente destas, não especificam uma
tipologia de signos, senão apontam o domínio de certas categorias em torno das quais se
estruturam os componentes de cada uma das tricotomias. É importante introduzir ainda, nas
diversas instâncias de compreensão do signo, o papel atribuído aos correlatos51. Poderíamos,
51
Ao isolarmos diversos aspectos que são usados na construção do signo, seria importante registrar o valor que
Peirce atribui ao correlato, (PEIRCE, 1977, p. 51): “... Um representâmen é o Primeiro Correlato de uma
relação triádica sendo o Segundo Correlato denominado seu Objeto e o possível Terceiro Correlato sendo
denominado o seu Interpretante...”.
105
para melhor ilustrar a correlação, supor que as relações triádicas, em toda sua extensão
conceitual, fossem linhas que atravessassem as três tricotomias, com seus membros listados
em colunas e associados a cada um dos correlatos determinantes, conforme esquema abaixo:
⇓ ⇓ ⇓ ⇓ ⇓
Relações triádicas qualissigno ícone rema ⇐ domínio das
de comparação ⇒ possibilidades
Relações triádicas sinsigno índice dicente ⇐ domínio da
de desempenho ⇒ existência
Relações triádicas legissigno símbolo argumento ⇐ domínio das
de pensamento ⇒ leis
⇑ ⇑ ⇑
Primeira Segunda Terceira
Tricotomia Tricotomia Tricotomia
mesmo podemos asseverar sobre o rema. Como função proposicional, ele traduz-se como
mera possibilidade lógica de poder ser atualizado em função do terceiro correlato −
interpretante − que determina as condições de seu uso e os resultados decorrentes. Então, um
rema é uma possibilidade lógica, porque estrutura uma condição de uso de uma categoria −
‘emprestar’ −, em função da atualização de variáveis − ‘emprestar(x, y, z)’. O fato de se
colocar, portanto, a comparação como um domínio de possibilidades lógicas submete signos à
condição de vir a representar em razão de circunstâncias determinadas.
a ‘preposição’ uma extensão objetiva na realidade, como vimos em casos anteriores, mas
apenas uma condição conceitual de estruturação dessa extensão: o seu valor decorre da força
de leis que regem o seu estatuto no sistema. Podemos assegurar uma formulação semelhante
em se tratando do argumento: ele não traduz, diretamente, uma parte da realidade − pois este
seria o papel do dicente −, mas ele é mais do que isso, pois recolhe partes dessa realidade e dá
a elas uma expressão racional, isto é, de correlações expressas na forma de silogismos
dedutivos, indutivos e abdutivos. O argumento é assumido como a forma mais elaborada do
pensamento por se tratar de uma representação que inclui o domínio das leis, de normas que
regem a estruturação do pensamento. Ele sintetiza, portanto, padrões diversos de raciocínio,
como a expressão máxima da racionalidade.
52
Qualissigno e argumento constituem as formas de signo que dispensam quaisquer outros complementos
através dos radicais básicos: o primeiro associa-se à forma mais primária de representação, por situar-se ainda
num plano muito próximo ao da percepção; contrariamente, o segundo constitui o padrão mais elaborado de
representação.
53
A admissão da estrutura como ponto inicial da derivação de formas de signo é, relativamente, arbitrária, já que
poderíamos atribuir à natureza o mesmo papel, em razão da coincidência que existe entre as duas formas de
concepção do signo. Assim, (04) poderia ser reescrita como (04a) Regra básica: natureza do signo →
{[comparação] ∨ [desempenho] ∨ [pensamento]}. O que concluímos dessa alternativa é que natureza e estrutura
são, de fato, duas dimensões redundantes, porque qualquer signo de possibilidade é um signo de comparação, ou
qualquer signo de existência e um signo de desempenho e assim por diante.
109
54
É claro que a genuinidade do qualissigno não se deve à sua mera designação singular, mas como conseqüência
do fato de ser um signo genuíno, que comporta essa denominação por se fazer constituir por elementos primeiros.
110
As duas classes acima apresentam, em comum, o fato de estarem orientadas para os mesmos
correlatos, isto é, o primeiro e o segundo. Face ao primeiro correlato − representâmen −, o
sinsigno icônico orienta-se, em sua dimensão estrutural, em termos da [existência], enquanto
o legissigno icônico o faz em termos da [lei]. Ambos, por seu turno, recobrem,
conceitualmente, o território que diz respeito à relação entre representâmen e objeto,
assinalando, para este último, a condição de mera [possibilidade], daí a razão de serem ambos
espécies icônicas. Se as duas classes acima refletem a representação do primeiro correlato em
termos da segunda e terceira relações triádicas − [desempenho] e [pensamento],
respectivamente −, a primeira será recoberta pelo qualissigno, como veremos à frente.
As três dimensões do processo semiótico aparecem aqui representadas nas três classes de
signos deste grupo. O traço constante dos signos que compõem o grupo se faz representar pela
presença da categoria [existência], isto é, todos são signos indiciais, assegurando uma relação
direta com domínio dos fatos. No entanto, a forma de assegurar a existência genuína de um
segundo acontece em razão do modo pelo qual primeiros e terceiros são combinados. Assim,
constatamos: (a) o primeiro correlato contrasta sinsigno indicial remático − em razão da
[existência] − com legissigno indicial remático e com legissigno indicial dicente; − em razão
da [lei] −; (b) o terceiro correlato contrasta sinsigno indicial remático e legissigno indicial
remático − em razão da [possibilidade] − com legissigno indicial dicente.
O grupo acima determina aquilo que é o fundamento do signo, para cada uma das dimensões
conceituais anteriormente previstas, ou seja, [possibilidade], [existência] e [lei]. Assim, o
qualissigno é o máximo de [possibilidade] que uma forma de representação pode assumir,
113
Procuramos, nesse relato sobre a tipologia dos signos, localizar alguns aspectos que
julgamos essenciais a sua compreensão. Isolamos, dentre muitas outras, algumas categorias
que nos permitiram uma compreensão do processo de representação conceitual, de forma mais
analítica. Considerando-se o alcance conceitual de sua formulação, o texto de Peirce pode
constituir-se numa fundamentação importante para a apreensão de fatos relativos ao
conhecimento da atividade humana. Nos seus termos genéricos, a proposta em análise parece
procedente em se tratando da construção de uma gênese das representações, embora o seu
alcance aplicativo nem sempre esteja traduzido de modo imediato. As dificuldades, nesse
setor, não devem ser atribuídas ao autor, nem à metalinguagem que propõe para compreendê-
las; as dificuldades são mesmo decorrentes da natureza complexa dos fatos e da forma pela
qual, para evitar reducionismos, se busca captar esta complexidade. Assim, por tentar
55
Esse teor que estamos atribuindo ao qualissigno, de representar o máximo de possibilidade, encontra-se
plenamente justificado por Peirce, quando, ao listar os ‘radicais’ supérfluos na constituição de cada classe de
signos, apresenta para o qualissigno apenas componentes da ordem da possibilidade, isto é, icônico e remático.
56
Aqui também constatamos argumentos semelhantes aos desenvolvidos para o qualissigno para justificar o
máximo de lei no argumento: a sua composição plena nos daria elementos que apenas lembram a ordem da lei,
isto é, simbólico e legissigno.
114
Apesar das diferenças assinaladas, a linguagem pode ainda ter acolhida no interior da
terceiridade, no seu plano mais genérico; este acolhimento, todavia, requer que façamos
ajustes profundos no conceito de representação, em razão da natureza daquilo que constitui o
ser a ser representado. Se esse ser para a semiótica origina-se de uma qualidade de sensação,
validada pela percepção fenomênica de concretude e materialidade exposta diante dos olhos,
por exemplo, para a semântica o ser contém um estatuto diferenciador, pois, além de incluir
essa dimensão, contempla também um outro tipo de fenômeno, constitutivo da significação
(ou da percepção do sentido). Trata-se, como já mencionamos, de relações (e também de
propriedades) que decorrem de um mundo conceitual, que se forja a partir da estruturação
lexical e da criação de sintagmas. Se os ‘objetos semióticos’ já se mostram complexos na
concepção de Peirce, esta complexidade tende a crescer em se tratando de ‘objetos
117
semânticos’. Vejamos, por exemplo, o que seria a nossa percepção de um objeto complexo
como ‘abajur de Maria’. Como objeto semiótico, podemos ter as seguintes hipóteses57:
(12) ‘abajur’: símbolo remático, porque aponta, ao mesmo tempo, para um existente
(o objeto material) e para uma qualidade que ele representa (a função a que se destina);
(13) ‘de’: legissigno icônico, porque se fundamenta numa lei (a de ser, por convenção,
uma partícula de conexão entre unidades lingüísticas), e porque cada um de seus usos
atualiza uma qualidade específica (posse, determinação, origem espacial...)58
(14) ‘Maria’: legissigno indicial remático, porque se funda numa lei − logo,
legissigno −, aponta um existente (a pessoa em questão) − daí o fato de ser indicial − e
porque representa algum tipo propriedade que o associa à pessoa que permite designar,
em circunstâncias apropriadas − por isso, remático59;
Por mais que pudéssemos conceber outros desdobramentos para os signos precedentes, o
procedimento ainda continuaria mostrando deficiências quanto à explicitação do que, de fato,
a expressão representa conceitualmente, pela razão exata de não traduzir efeitos de sentido
decorrentes de correlações entre suas unidades. Por outro lado, como objeto semântico e sem
entrar em detalhes exaustivos, no momento, sobre a leitura lexical (Ll) de cada um dos itens
isolados, podemos supor, ao menos, cinco leituras derivadas (Ld), decorrentes de propriedades
57
A classificação apresentada tem um caráter provisório, porque cada circunstância de uso específico de cada um
dos termos pode afetar diretamente sua classificação, pois o fator decisivo para a tipologia em análise é, de fato,
a função específica que o signo está destinado a exercer num dado contexto.
58
Potencialmente, podemos reescrever uma preposição como uma função proposicional, isto é, como um rema.
Por exemplo: de[posse] (x, y), de[atributo] (x, y), de[origem espacial](x, y). A ilustração ainda é muito geral e requer que
restrições adicionais sejam acrescidas às variáveis em razão de cada uso.
59
A tradição filosófica sobre a questão dos nomes próprios não é unânime em relação ao fato de eles poderem
expressar ou não uma qualidade, isto é, de terem ou não um sentido. O argumento principal daqueles que lhes
reivindicam um sentido assegura que só usamos um nome próprio porque conhecemos alguma propriedade do
objeto a que ele se aplica (SEARLE, 1984. p. 214-31).
118
(16) ‘abajur de Maria’: Ld1: [um abajur que serve para um tipo de pessoa,
metonimicamente, representado por Maria];
Ld2: [um abajur que se presta ao recolhimento
espiritual, metaforicamente, lembrando a santa];
Ld3: [um abajur com desenhos de Maria (a santa ou
alguma representação popular de mulher];
Ld4: [um abajur que pertence a alguma Maria];60
Ld5: [um papel envolvendo uma lâmpada, produzindo
sombras, nos moldes de um abajur popular].
O conjunto das leituras acima decorre, certamente, não apenas daquilo que podemos
configurar para objetos particulares, representados pelos nomes − ‘abajur’ e ‘Maria’ −, mas
também por relações lexicais e sintagmáticas que são estabelecidas entre eles. No primeiro
aspecto, podemos afirmar que todas as leituras respeitaram o conceito característico de
‘abajur’: preservou-se o projeto do objeto em análise, isto é, [FINALIDADE: redução da
claridade produzida por lâmpada] que está nele incorporado. E mesmo no caso de L5, continua
existindo o projeto, pois a expressão ‘nos moldes de um ...’ funciona como uma espécie de
hedge preservando o valor funcional do objeto em tela. Nada, entretanto, nos impede de uma
extensão de leituras, que pudesse mesmo obliterar, em alguma medida, o valor funcional do
objeto, preservando dele apenas um traço analógico, como, por exemplo (entre tantas outras
possíveis):
(17) ‘abajur de Maria’: Ld6: [um tipo de chapéu popular que guarde alguma
analogia com a forma de um abajur] ou
Ld7: [um tipo de flor comum que mantenha um certo traço
análogo à forma de um abajur] ou
60
A idéia de posse, em relações como esta e independentemente de um contexto mais específico, é mais clara
quando o segundo nome se faz acompanhar do artigo definido, por exemplo: livro de menino [L1: livro que
menino possui] ou [L2: livro para menino usar], em contraste com livro do menino [L1:livro que pertence a um
dado menino].
119
(18) ‘Maria’: Ll1: [NATUREZA: uma pessoa particular que passou a ser
assim denominada a partir de uma cerimônia batismo];
Ll2: [NATUREZA: a santa designada em razão de uma
circunstância histórica qualquer];
Desse modo, a expressão ‘de Maria’ produz dois efeitos de sentido, como resultado
da sintagmatização das leituras lexicais, Ll1 e Ll2, do nome ‘Maria’, associado a um dos
valores da função proposicional ‘de[atributo] (x, y)’, conforme descrito anteriormente. A
escolha desse valor funcional, e não de outro concorrente, justifica-se pelo contraste entre ‘de
Maria’ e ‘da Maria’. Para a segunda expressão, seria mais natural supor o valor funcional
‘de[posse] (x, y)’ que nos permite derivar leituras, com outros efeitos de sentido, no caso
presente, restritas às propriedades contidas apenas em Ll1, ao menos, sem uma especificação
mais precisa de contextos. Assim, grande parte dos efeitos de sentido, conforme demonstrado
120
nas leituras derivadas que foram acima lembradas, decorre da conjunção dos fatores que
acabamos de mencionar.
polissemia designativa de termos como ‘(de) Maria’ numa expressão como a que estamos
analisando ?
semânticos antes factíveis com a presença de ‘de’. É provável que apenas Ld1 e Ld5, com
algum esforço suplementar, sejam aceitas com naturalidade.
Em resumo, não se trata de fixar aqui uma precedência temporal sobre um e outro
procedimento (relações léxico-sintagmáticas versus relações sígnicas), até mesmo pelas
dificuldades de separá-los em termos dos efeitos terminais alcançados: afinal, das leituras
determinadas por relações léxico-sintagmáticas, podemos isolar relações sígnicas específicas;
partindo destas, porém, nada indica que possamos chegar àquelas. As observações
apresentadas levam, portanto, a inferir que, embora as relações sígnicas pareçam ser mais
primitivas, elas, necessariamente, não determinam as relações léxico-sintagmáticas. O termo
‘abajur’ poderia ter sido introduzido na expressão em análise com um valor intencional de
índice, para um existente determinado (uma ‘alcova’, por exemplo), mas isso não teria
servido para impor qualquer limite que viesse a bloquear interpretações à revelia desse valor,
como mostramos acima.
que se compatibilizam com a descrição de mesa, em Ll1. O bloqueio para uma leitura com Ll2
acontece devido à inexistência dessa compatibilidade. Entretanto, é possível supor, ao menos
por hipótese, uma outra possibilidade de leitura para Ll2 , por força da utilização de um dos
desdobramentos possíveis para ‘de’, a saber, ‘de[posse] (x, y)’ que, ainda assim, requer uma
especificação do objeto ‘mesa’, exigindo a conversão de ‘de mesa’ em ‘da mesa’. Por
hipótese, poderíamos supor as leituras seguintes:
Ainda que viéssemos a considerar Ld2 como uma leitura natural, com o ajuste proposto, é
provável que a sua justificativa não fosse estabelecida apenas supondo a existência de um
atendimento a pessoas reunidas para tomar decisões, o que, na verdade, parece obliterar, em
parte, o conceito característico do objeto ‘abajur’. Ld2 seria, portanto, uma extensão de Ld1,
pois ainda continuaria a significar a adequação do objeto para ser sobreposto a mesas,
provavelmente, mesas onde se reúnem pessoas. Aqui, portanto, as relações léxico-
sintagmáticas filtram a possibilidade de um aproveitamento natural de ‘mesa’ em sua função
indicial. As relações que determinamos resultam como essenciais à compreensão dos fatos
discursivos, já que não parece ser possível avançar numa compreensão analítica desses fatos
desconhecendo as relações semânticas aí presentes. A recorrência de elementos lingüísticos
tem um caráter determinante na configuração de leituras, de forma mais natural, do que uma
suposta classificação de um mesmo elemento em tipologias sígnicas diferentes.
61
Estamos admitindo Lului como um nome próprio de cachorro, determinado por circunstâncias específicas que
possam lhe assegurar a designação de um único objeto da classe.
124
análise comparativa apenas uma única leitura lexical para ‘prato’ − Ll1:{[NATUREZA: objeto
artefato; FINALIDADE: recipiente para pôr comida...]} − e uma única relação sígnica − símbolo
remático −. Da mesma forma e com os devidos ajustes, admitamos as mesmas condições para
‘cachorro (Lulu)’. Existe, portanto, uma escala gradativa entre as expressões acima, que
pode ir do [-específico], ou seja, a indicação de que ‘prato de cachorro’ traduz apenas um
tipo de objeto genérico, adequado a uma certa função - servir a cachorro -, ao [+específico],
isto é, a indicação de que ‘prato do Lulu’ reporta um objeto particular, pertencente a um
indivíduo, assegurado pela presença do artigo, do nome próprio e da relação de posse
estabelecida pela função proposicional ‘de[posse] (prato, Lulu)’. Uma e outra asseguram o
valor de uma referência absoluta: a primeira aponta a classe de todos os objetos-do-tipo e a
segunda, um objeto individual, nas condições que fixamos para o funcionamento do nome
próprio ‘Lulu’. O estágio intermediário da escala precisa ter uma outra ordem: ‘prato de
Lulu’, apesar de conter um nome próprio indicializado, pode ser, metaforicamente, indicativo
de objetos de uma subclasse, por exemplo, pratos para cachorro que tem a cara do ‘Lulu’ e
deve ser analisado como [-específico]; ‘prato do cachorro’, ainda que uma referência
absoluta só possa ser validada para algum tipo de contexto determinado, onde um único e
mesmo cachorro seja do conhecimento do falante e do ouvinte, aproxima-se do [+específico].
Assim, a viabilidade de uma tipologia para as expressões acima não nos parece
impossível, já que, em termos da gradação do [+específico] para o [-específico], poderíamos
sugerir: legissigno indicial dicente, símbolo dicente, agrupando as expressões duas a duas.
Esse arranjo dos fatos nos leva a constatar também o comportamento diverso que existe na
escala, em termos de uma tipologia de signos. Todavia, o resultado da escala não depende,
como vimos, apenas do contraste entre valor indicial (nome próprio) e simbólico (nome
comum), mas ainda da presença do artigo na expressão. Se o campo da semiótica deve
apurar, gradativamente, uma diferença entre o símbolo e o índice, desdobrando-os em
instâncias diferenciadas, não fica evidente que uma migração automática do resultado desse
procedimento venha a se constituir em parâmetros determinantes para a análise semântica.
Classificações ulteriores e cada vez mais complexas dos signos devem ser relevantes na
determinação de objetos no campo da semiótica, mas daí não podemos deduzir a sua
relevância para a semântica. O processo de classificação proposto por Peirce é uma forma
analítica de conhecimento dos objetos, mas o que ela pode revelar ainda é insuficiente, em se
tratando de exigências para uma avaliação dos processos de significação lingüística. Dado o
125
fato acima de que ‘mesa’ possa ser índice ou símbolo e dado o conhecimento da estrutura
conceitual dessas formas de representação, podemos assegurar uma diferença nocional entre
os dois usos do termo ‘mesa’. No entanto, as categorias que nos possibilitam o conhecimento
dessa estrutura conceitual, como vimos na seção anterior, não são suficientes para atender a
exigências no campo da linguagem. É claro que essa conclusão precoce contém uma validade
nos limites dos dados que foram até aqui analisados. Outros aspectos da correlação entre os
dois campos serão avaliados na seção seguinte, tendo em vista um confronto entre certas
classes de signos e o comportamento semântico de algumas espécies de palavras.
Nesta análise vamos considerar como seria possível, então, examinar alguns aspectos
da classificação dos signos e sua repercussão no entendimento de alguns problemas de ordem
semântica. A discussão de Peirce sobre as formas de classificação de signos não reporta, de
modo direto, a questões relativas ao signo lingüístico. Existem, entretanto, referências e
exemplificações esparsas que podemos utilizar como ponto de partida para a avaliação
pretendida. Vejamos duas citações iniciais:
Os textos acima mostram o traço mais importante, dentro da sua taxinomia, que Peirce
atribui às palavras de uma língua, isto é, o fato de serem elas comandadas por “hábito” ,”lei
adquirida”, “regras gerais”. É evidente que cada um dos parâmetros aplica-se a justificar a
existência e o uso de palavras, mas essa observação apenas ratifica um princípio geral, como o
da convencionalidade, e diz muito pouco sobre o funcionamento das palavras como membros
solidários de um sistema que requer uma gama de especificações, ampla e diversa. O critério
de classificação precedente contém ainda um caráter geral, pois a afirmação tem validade para
“Todas as palavras...” ou, de maneira um pouco restrita, “Qualquer palavra comum ... é um
exemplo de símbolo.”, excluindo-se, pois, os nomes próprios.62 Como valor lingüístico, a
classificação dos exemplos − “dar, casamento, pássaro “ − apresenta uma operacionalidade
ainda limitada, porque, nos termos aqui propostos, não opera com um padrão que permita o
seu reagrupamento em conjuntos relevantes para a análise semântica. Assim, do ponto de vista
lingüístico, podemos agrupá-los: (a) numa orientação sintática {[dar]verbo,
[pássaro/casamento]nome}; (b) numa orientação de natureza lexical {[dar/casamento]ato,
[pássaro/casamento]objeto}; ou ainda (c) numa dimensão lógica com funções proposicionais
próprias {[dar (x, y, z)], [casamento (x, y)], [pássaro (x)], [casamento (x)]}. No fundo, tais
agrupamentos não parecem ser, absolutamente, indiferentes ao trabalho da semiótica na
dimensão de Peirce, pois a idéia de um símbolo remático, a propósito, supõe o aproveitamento
conjugado da dimensão lexical - por operar uma correlação entre signo/objeto − e da
dimensão lógica − por operar uma relação signo/interpretante, a partir de funções
proposicionais. Em compensação, a interpretação semântica ainda requer outras informações
para poder efetivar-se. A função proposicional [casamento (x, y)] impõe restrições ao alcance
das variáveis: tanto ‘x’, como ‘y’ são restritas ao domínio de objetos marcados com os traços
{[+animado], [+humano]}, por exemplo. Logo, a função proposicional deve ser formulada de
modo mais específico [casamento (x{[+animado], [+humano]} ,y{[+animado], [+humano]}), pois a omissão
apenas do segundo traço da restrição nos levaria a uma outra função proposicional, isto é,
[acasalamento (x[+animado] , y[+animado])], ou [cruzamento (x[+animado] , y[+animado])].
62
Sobre a natureza dos nomes próprios, PEIRCE, C. (1977, p.85) comenta: “No entanto, o substantivo próprio se
aproxima tanto da natureza de um Índice que isto deveria bastar para dar idéia de um Índice informativo.”.
127
É verdade que, quando atribuímos ao conjunto das palavras de uma língua o fato de
serem signos lingüísticos, também estamos operando com uma generalização de pouca
relevância operacional. Há, no entanto, uma diferença: o signo, nesse caso, apenas especifica
uma relação funcional entre significante e significado e não tem o alcance ontológico de
constituir-se numa taxinomia de percepção e de representação dos objetos, como parece
apontar a categoria símbolo, por exemplo, no âmbito da abordagem de Peirce. Por outro lado,
o mesmo argumento que podemos acionar para explicitar desdobramentos do signo em classes
de palavras, num padrão qualquer lingüisticamente reconhecido, poderia ser acionado para
justificar a possibilidade de desdobramentos ulteriores do símbolo, ou seja, símbolo remático
e símbolo dicente. Classes mais específicas como essas seriam, pois, de valor para uma
fundamentação no campo da linguagem, isto é, existiria uma ontologia das representações
lingüísticas associadas a particularidades dos objetos representados na língua?
63
Podemos, na análise dos substantivos comuns e concretos de uma língua, considerá-los como funções
proposicionais, na medida em que, como nome de um conjunto de objetos (e não como nome de um indivíduo),
eles nada mais expressam do que uma condição geral de pertinência num dado domínio. Assim, [pássaro (x)]
mostra que, para qualquer ‘x’ candidato a pertinência à classe de ‘pássaros,’ é necessário atender a descrição
daquilo que representa a idéia de ‘ser pássaro’. No caso dos substantivos comuns e abstratos, o fato de
representarem funções proposicionais é mais comum, porque, no geral, eles apenas reportam propriedades de um
objeto, isto é, são meras qualidades dos objetos: [beleza (x)], ou [naturalidade (x)]. Aqui nem’ beleza’, nem
‘naturalidade’ determinam um domínio de objetos, mas apenas qualidades que podemos associar a indivíduos
de domínios diversos.
128
quando atualizamos uma variável indicializada, estamos produzindo aquilo que Peirce
chamou, lato sensu, de uma réplica, a qual, nas circunstâncias atuais, traduz-se por um
legissigno indicial remático, pelo fato de indicar um existente (xi e yi, quando atualizadas),
através de um terceiro que é determinado por lei.
Em (22), podemos afirmar que ‘construir ninhos’ é uma propriedade da classe de pássaros,
porque todos os seus membros (ou o macho, ou a fêmea ou ambos) executam tarefas, ainda
que diferenciadas, que se incluem no rol geral de uma predicação como [construir ninhos]65.
Por outro lado, apesar da conversão ativa/passiva entre (22) e (23), ‘serem construídos por
pássaros’ não é uma propriedade da classe:ninho, já que existem ‘ninhos’ que, efetivamente,
não são construídos por pássaros, mas por outros animais (ratos, cobras...). Logo, [ser
construído por pássaros] não representa uma propriedade de classe, mas de uma parte dos
membros da classe:ninho: apenas alguns tipos são, de fato, construídos por pássaros, outros
não. Assim, deveremos interpretar estes dois símbolos remáticos, nas frases em discussão, do
seguinte modo:
64
A tradição lingüística usou, amplamente, exemplos nesse formato para tratar da não-correspondência semântica
entre estruturas ativas e passivas. Aqui não vamos entrar em detalhes sobre a orientação sintática que a questão
assumiu.
65
Existe uma longa discussão se podemos considerar propriedades de classe como propriedades analíticas. Há
dúvidas, mesmo no caso de pássaros, se construir ninhos é, de fato, analítica, porque existem tipos de pássaros
que reaproveitam ninhos já construídos por outros, ou até mesmo põem ovos em ninhos alheios (godero, chopin,
por exemplo). Se analítico é irrestritamente universal, então a predicação mencionada não poderia ser,
analiticamente, atribuída a pássaros, já que existem espécies anormais na classe que comportam de modo
diferente. De toda forma, pode ser que certos pássaros não venham construir seus próprios ninhos, mas é verdade
também que a existência deles continue a depender de ninhos.
129
No caso de (22a), o fato de ‘pássaros’ representar uma classe de objetos permite que
interpretemos ‘ninhos’ também numa dimensão de classe, pois, no fundo, o que estamos
asseverando é o fato de existir uma propriedade [ser construído] que se aplica aos membros de
uma classe. Na concepção de Peirce, estaríamos diante de dois símbolos remáticos, uma vez
que representam funções não saturadas, isto é, ‘pássaros (x)’ e ‘ninhos (x)’ e toda a
proposição já representaria um símbolo dicente, ou seja, um função saturada − ‘construir
(pássaros, ninhos)’ −. Em (23a), como [ser construído por pássaro] não é uma propriedade de
‘ninho’, na extensão vista para (22a), devemos assumir ‘ninhos’ como tipos de objetos da
classe. Assim, já não estamos mais no âmbito de um símbolo remático, mas ainda não
alcançamos sua réplica, por não se tratar de objetos efetivos, mas de um tipo de objeto ao qual
associamos uma propriedade.
66
Não estamos utilizando aqui a oposição tradicional entre type / token, em razão do fato de estarmos
trabalhando com outras categorias mais específicos de token. Assim, estamos construindo uma gradiência entre
‘classe’, ‘tipo’, ‘indivíduo’.
130
Embora o contraste entre símbolo remático e sua réplica, isto é, o sinsigno indicial
remático possa expressar parte dos fenômenos que apontamos na análise do termo ‘pássaro’,
parece-nos que a forma de proceder na apuração de certos efeitos de sentido ainda mantém um
distanciamento considerável entre uma abordagem semiótica, na forma em estudo, e uma
abordagem semântica, nos formatos desenvolvidos no interior da lingüística moderna. Assim,
na segunda abordagem, a ênfase, na avaliação dos efeitos de sentido, associados a um termo
‘pássaros’, recai não só sobre uma rede de correlações que se estabelece entre o conjunto das
unidades da estrutura proposicional, como também sobre a natureza dos elementos que
partilham dessas correlações − a diferença conceitual entre os predicados que foram atribuídos
a ‘pássaros’, por exemplo. Na primeira abordagem a ênfase, da qual deduzimos classes
diferentes de signo, aponta para uma correlação do símbolo ‘pássaro’ com o objeto
designado − uma classe ou um exemplar −, em se tratando da segunda tricotomia. O seu valor,
seja como símbolo remático, seja como sinsigno indicial remático, decorre da natureza da
relação que mantém com o seu objeto: logo, a classificação semiótica pode tornar-se
independente, em alguma instância, da correlação com outros signos. Para a semântica é
relevante não só o que se mostra como conceito ‘autônomo’ de um termo67, como também
toda a contaminação que sobre ele se projeta a partir da correlação com outros signos.
67
De um modo geral, o conceito básico de pássaro permaneceu inalterado, ao longo dos exemplos analisados.
Para cada um dos usos, todavia, este conceito era acrescido de outras informações, através da contaminação
produzida pela presença de outras unidades da proposição.
131
68
A complexidade da formulação de Peirce não está apenas no teor das categorias de análise que referendam sua
teoria, está também na forma como as apresenta ou como relaciona umas às outras. Vejamos, como exemplo, o
papel que PEIRCE (1977) atribui ao ícone: “Um ícone, entretanto, é, estritamente, uma possibilidade
envolvendo uma possibilidade, e assim, a possibilidade de ele ser representado como uma possibilidade é a
possibilidade da possibilidade envolvida.” (p.79).
69
Na organização geral da teoria, o dicente constitui o segundo elemento da terceira tricotomia a qual se compõe
ainda pelo rema e pelo argumento. Os três componentes convergem, na instância de representação funcional, isto
é, do [correlato 3], mas divergem entre si pelo padrão que a função assume em cada uma das circunstâncias.
Para o rema, trata-se de uma função não-saturada − f (x, y), com a atualização apenas da constante predicativa −;
para o dicente, uma função saturada − f (x, y), onde variáveis e a constante predicativa são preenchidas −; para o
argumento, uma função de uma outra ordem − f (x, y), onde os lugares são saturáveis por proposições simples
(ou dicentes). Um paralelo possível com estruturas lingüísticas pode ser formulado: para o rema, [venda (x ,y)],
[necessidade (x, y)], ou [livro (x)], onde existe apenas a especificação de um item lexical sem levar em conta
132
desdobramentos do seu valor funcional; para o dicente, [venda (Paulo, carro)], [necessidade (Paulo,
dinheiro)], ou [livro (matemática)], onde as variáveis são saturadas; para o argumento, { CAUSA [venda
(Paulo, carro)], [necessidade (Paulo, dinheiro)]}.
133
mesmo, constitui a condição de sua iconização, a saber, de vir a ser uma possibilidade
qualitativa para um objeto. A segunda condição requer que essas duas partes − sujeito e
predicado − sejam conjugadas uma à outra, de forma tal, que a existência de um objeto para o
dicente faz dele, dicente, um equivalente do índice, por ser capaz de apontar um existente,
numa outra instância de segundo. Essa passagem do dicente para o índice torna-se possível,
em razão da aplicação de uma qualidade − uma instância de primeiro − a um sujeito, que
serve para representá-lo em alguma de suas extensões.
A saturação das variáveis nos três exemplos acima faz deles dicentes, de acordo com as
condições que são impostas a sua existência. A possibilidade de expressão qualitativa dos
sujeitos se faz com base no predicado ‘perder’ (considerado, para evitar maiores detalhes,
como uma forma complexa, incluindo os complementos específicos). A conexão entre
sujeito/predicado reúne a condição final para termos um dicente que, segundo o autor, torna-
se, numa outra instância tricotômica, um índice por assinalar uma relação existencial entre
signo − a expressão − e o objeto − fatos acontecidos na vida de seres específicos −71. Como
70
Para efeito de uma apresentação formal das categorias da terceira tricotomia, além de registros do texto de
Peirce, estamos também contemplando a formulação desenvolvida por RANSDELL, J. ( 1983, p. 59-72).
71
Nada impede que também fizéssemos sua equivalência, na extensão da primeira tricotomia, com o sinsigno que
atesta também a dimensão do existencial.
134
dicente, portanto, cada uma das expressões se torna um signo de fato, já que reporta
acontecimentos historicamente testemunhados que, na realidade, são determinados por
interpretantes específicos − a condição histórica de cada personagem, os fatos em que se
acham envolvidos −, através dos quais podemos saturar as expressões na forma em que o
fizemos. Se quiséssemos outros dicentes com o mesmo predicado e os mesmos sujeitos,
teríamos de romper com os interpretantes consensuais (e culturalmente admissíveis) que nos
levaram a essas configurações. Os interpretantes usados além de apontar, para cada um dos
dicentes, mera hipótese de interpretação, apontam também situações referenciais autônomas.
(29) Clinton pode perder a batalha de Whitewater, porque Napoleão perdeu a batalha
de Waterloo e Nixon, a batalha de Watergate.
É claro que (29) e (30) são argumentos por força de uma correlação racional atribuída aos
dicentes integrantes e que decorrem, certamente, da presença de dois interpretantes distintos.
Existe um com valor de uma ‘convenção histórica fraca’, onde se pode postular alguma
similitude entre os sujeitos envolvidos, como: (a) são três representantes do poder de estado,
135
daí uma dedução correlata e inclusiva no plano das ações; (b) trata-se de dois governantes que,
de fato, perderam batalhas, logo, um terceiro também pode vir a fazê-lo. Existe um outro
interpretante, com valor de uma percepção lingüística, devido à semelhança episódica no
plano do significante dos atributos de batalha (Waterloo, Watergate, Whitewater) (e também
histórica, valendo as observações já apontadas), e daí uma dedução excludente, contrastiva
(ainda que dois governantes tenham ‘naufragado’ em duas batalhas, não se segue daí de que o
mesmo se sucederá a um terceiro). As circunstâncias interpretativas que acima apresentamos,
a partir da correlação entre os componentes da terceira tricotomia, apontam fatos de
importância direta para uma teoria semântica: nada do que foi discutido pode ser
desconsiderado no âmbito da semântica. Entretanto, os dados contemplados ainda refletem
uma certa generalização (ou mera classificação) que não é ainda suficiente como um padrão
de análise semântica para as línguas naturais. Vamos avaliar aspectos dessa diferença,
comparando-se a análise desenvolvida acima a uma necessidade ulterior de desdobramento da
análise do verbo ‘perder’. Na discussão presente, contrastaremos o verbo ‘perder’ com o
verbo ‘ganhar’ (e ainda ‘vencer’) em contextos lingüísticos determinados, fundamentando a
correlação entre eles a partir da idéia de [posse]. Formalmente, tentaremos demonstrar que a
semântica de tais verbos se estrutura a partir de variáveis funcionais, [x], [y], [z], dos meta
predicados [ter] e [disputar], do sinal de negação [∼] e de uma variável temporal [t], a ser
indicializada. Consideremos, então, um primeiro conjunto de proposições:
Podemos supor a compreensão do contraste verbal acima, com base nas seguintes definições:
[ t1 anterior a t2 ]};
As duas defições acima recobrem, sem qualquer outro artifício enunciativo, o contraste
entre as duas formas predicadas, em se tratando de (31) e (32), conforme ilustramos abaixo
para o exemplo (31):72
72
Estamos considerando, na atual reflexão, apenas o contraste entre perder/ganhar, de modo genérico e sem
levar em conta outros detalhes importantes para a compreensão da frase. Por exemplo, a definição de tais itens
lexicais é tão ampla que outras formas verbais poderiam ser definidas pelas mesmas matrizes: as definições são
válidas também, numa certa extensão, para contrastes como vender/comprar, por exemplo. Para uma distinção
entre os dois grupos é importante acrescentar um operador de MODO, que indicará, necessariamente, a presença
de dinheiro para o segundo grupo.
137
Os exemplos (36) e (37) mantêm apenas uma aparência de identidade semântica com
os anteriores, considerando-se, principalmente, o contraste entre os verbos em análise. No
caso de ‘perder’, a condição inicial [x tem y em t1], na dimensão em que a usamos para
analisar (31) e (32), não pode representar uma condição necessária, porque nem ‘Napoleão’,
nem ‘Brasil’ [tem y] antes de ‘perder mais uma a batalha’ e ‘perder o jogo de ontem’73,
respectivamente. Logo, essa condição precisa ser revista, sem que seja, entretanto, apenas
refutada, porque, se comparamos os dois casos, podemos intercambiar diferentes condições
para a sua interpretação: em (36) pode ser que, ao ‘perder a batalha’, ‘Napoleão’ tenha (ou
não tenha) perdido algum território74 que antes conquistara ou que pertencera à França, por
exemplo; em (37), ao ‘perder o jogo’, o ‘Brasil’ pode estar (ou não estar) deixando de ter
alguma vantagem que antes conquistou ou que tinha numa tabela de classificação. Raciocínio
semelhante pode ser usado para justificar ‘ganhar’ nos dois exemplos: a condição inicial [x
~tem y em t1] não pode ser também considerada essencial, porque tanto ‘Napoleão’ pode ter
ganhado uma batalha, para manter a posse de um território - ele já detinha a sua posse -, como
73
É possível argumentar contra essa afirmação, dizendo que y, por pressuposição, equivale a ‘honra’,
‘dignidade’, ‘prestígio’. Logo, uma derrota, em qualquer circunstância, representa minimamente a perda da
‘honra’, por exemplo, que, no caso presente, pode ser associado, independentemente da extensão conceitual,
tanto a ‘batalhas’ - em campos de exercício, ou em tribunais - quanto a ‘jogos’ - uma partida oficial ou amistosa.
No entanto, ‘honra’, em ambos os casos, parece corresponder mais a um pressuposto e menos a um objeto da
extensão de y.
74
Nos exemplos em análise, os termos batalha e jogo são apenas rótulos metonímicos para aquilo que, de fato,
se perde ou se ganha numa batalha ou num jogo, ou seja, territórios, poder, pontos, campeonato, troféus...
138
o ‘Brasil’ pode ter ganhado um jogo para se manter à frente na tabela - ela já estava à frente
na tabela. Assim, deveríamos reconstruir a primeira parte das definições (34) e (35) acima,
indicando a possibilidade de uma escolha, como condição primeira para um e outro verbo,
entre [x tem y em t1] e [x ~tem y em t1]. Reformulando as regras anteriores, obtemos:
O registro de [x (~)tem...], em ambas as fórmulas acima, mostra que podemos derivar, para
uma e outra, tanto [x tem...], quanto [x ~tem...]. Essa duplicidade de derivações, todavia, gera
um paradoxo, pois, dependendo da escolha feita por um desses caminhos que a definição
permite, no primeiro passo da derivação, podemos correr um duplo risco: (a) em (34a),
escolher duas formas negativas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se
perca algo [x ~tem y em t2] sem antes possuí-lo [ x ~tem y em t1] e (b) em (35a), escolher
duas formas positivas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se ganhe
algo [x tem y em t2] que antes já se possuía [x tem y em t1]. Do ponto de vista formal, o
paradoxo não pode ser resolvido no âmbito dessas definições; é preciso acrescentar outros
fatos, como veremos abaixo, para contornar o impasse descrito. Entretanto, tal impasse formal
não invalida o esforço interpretativo que podemos produzir para justificar sua aplicação
natural a certas frases. Por exemplo, Napoleão pode ter pretendido conquistar um território [ x
~tem y em t1], sem ter alcançado êxito [ x ~tem y em t2]; logo, ele perdeu a batalha. Da
mesma forma, Napoleão pode ter pretendido manter a conquista de um território [ x tem y em
t1] e, de fato, conseguiu êxito [ x tem y em t2]; logo, ele venceu a batalha. É importante,
então, recorrer a um outro acerto nas definições, introduzindo-se uma outra variável
concorrente com [x], isto é, [z], e uma outra informação que permeie a disputa entre [x] e [z],
num intervalo de tempo intermediário. As definições teriam, pois, a seguinte forma:
[ x e z disputam y em t1’]
[ x ou z ~tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]
[ t1’ posterior a t1 e anterior a t2 ]};
As definições acima agora se aplicam também ao exemplo (37) que estamos reproduzindo
com um adendo − ‘contra a Itália’ − para tornar mais clara a função da variável [z] e o traço
[disputa]:
Recompondo aspectos do sentido das duas proposições contidas em (37a) e com base nas
definições (34b) e (35b), podemos agora obter uma descrição semântica mais clara, superando
parte das dificuldades que haviam sido levantadas na constatação do paradoxo acima
mencionado. Analisemos, então, as duas proposições:
75
O funcionamento desta regra ainda requer uma precisão de modo a permitir que se [x tem y...], então [z ~tem
y...] e vice-versa. Um filtro aqui é necessário para impedir que uma das predicações seja aplicável às duas
variáveis ao mesmo tempo.
140
Os esquemas de interpretação para (37b) e (37c) apenas traduzem uma das possibilidades que
podemos associar ao seu sentido, aquela que havia permanecido como problema na discussão
anterior, isto é, o fato de o ‘Brasil’ perder sem antes possuir e ganhar já antes possuindo. A
dificuldade se estabelece em função do fato de ‘jogo’ ser quase sempre uma roupagem
metonímica para o que, de fato, se perde ou se ganha. Podemos supor em (37b), por exemplo,
que, ao afirmar que ‘Brasil’ e ‘Itália’ [ ~tem y em t1], [y] possa significar um número de
pontos que se traduziria pelo objeto da disputa. A interpretação seria, portanto, absolutamente
natural em toda a seqüência da derivação, ainda que o ‘Brasil’ tivesse perdido pontos que não
possuísse.76 Em (37c) a situação é um pouco diferente: vamos supor que o objeto da disputa
fosse o primeiro lugar de uma classificação e o ‘Brasil’ já estivesse na ponta. Assim, teríamos
‘Brasil’ [tem y em t1] e ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e o restante da interpretação seria adequado às
circunstâncias, pois, ao ganhar, o ‘Brasil’ estaria mantendo o que já tinha e a ‘Itália’, ao
perder, estaria ‘mantendo’ o que não tinha. O propósito desse arranjo formal é tentar justificar,
mais do que um mero sentido imediato, parte das inferências interpretativas que são feitas a
partir de proposições como essas.
76
Por seu turno, a interpretação é também coerente do ponto de vista da ‘Itália’ que pressupostamente ganhou o
jogo (já que o ‘Brasil’ perdeu): ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e [tem y em t2].
141
Finalmente, há ainda uma outra oposição que compensa ser destacada em se tratando
das relações entre ‘perder’ e ‘ganhar’. Trata-se de um conjunto de frases em que o verbo
‘perder’ se faz apresentar com objetos que lembram meio de transporte, espetáculo entre
outros, conforme os exemplos seguintes:
Uma tentativa de avaliação para (38) e (39) implica resistências, quando nos deparamos com
uma das formas da condição inicial apresentada nas definições anteriores, como por exemplo,
[x (~)tem y em t1]. Enquanto nos casos anteriores, discutiu-se em detalhes o aspecto formal
que a categoria [posse] deveria assumir, estamos certos de que, no caso presente, ela precisa
ser removida da definição, considerando-se o verbo ‘perder’. A exigência fundamental,
requerida para a interpretação das proposições de (38) e (39), implica a substituição de [posse]
por [presença], resultando na seguinte definição:
77
A proposição pode ser interpretável, mas alguns ajustes devem ser assinalados, como o de introduzir um valor
de [superação] para ‘vencer’.
142
A discussão que apresentamos acima desvela uma parte das dificuldades que
enfrentamos ao confrontarmos alguns critérios que definem padrões conceituais para a
semiótica e para a semântica. O cotejo aqui almejou colocar uns frente aos outros para se
analisarem as condições de uma interação múltipla que, até o momento, se não se mostrou
integrada de modo decisivo, também não se apresentou na forma de um divórcio absoluto. A
classificação de Peirce pode servir de parâmetro para uma compreensão geral de alguns
problemas inseridos na discussão semântica, no caso específico a passagem entre rema,
dicente e argumento, mas ainda fica a requerer um trabalho mais específico e muito
minucioso, como acabamos de discutir, sobre relações e propriedades lexicais e sintagmáticas.
É claro que as relações sintagmáticas, em alguma extensão, aparecem contempladas na
143
estruturação lógica, o que permite transpor cada um dos estágios da terceira tricotomia. Ainda
assim, o processo continua sendo muito generalizado, pois não chega a inscrever nos
predicados, por exemplo, restrições que governam a escolha de certas constantes em
contraposição a outras.
78
Na presente seção, estamos considerando a análise do argumento do ponto de vista das dez classes de signo e
não, como anteriormente o fizemos, no interior apenas da terceira tricotomia. Os resultados não são diferentes; a
diferença faz-se pela presença de categorias que serão contrastadas.
144
percepção imediata e instantânea de dados pelo organismo, exposto a algum fenômeno, até a
organização lógica desses dados em formas socialmente aceitas, avançamos também no
campo da complexidade. Classes e subclasses de signos que se ramificam conceitualmente,
tricotomias e categorias que se combinam mutuamente, toda essa arquitetura laboriosa do
autor está montada com um propósito singular: o de compensar um prejuízo inevitável que
emerge nos momentos em que colocamos a representação em jogo. E o argumento, por assim
dizer, deve ser a expressão máxima de todo o trabalho cognitivo, contemplando, a um só
tempo, as sensações vividas e a convenções estabelecidas.
O desafio a que o argumento está exposto, e de resto toda taxinomia dos signos, é o de
ser capaz de conter e de sintetizar todas as formas de juízo possíveis para a experiência. São
duas ordens de questões que se completam: de um lado os fenômenos primários vivenciados,
de outro a sua elaboração conceitual e social. Ao buscar formas de conciliação para esse
contraste, Peirce evita o lugar comum de que a representação oblitera a realidade, mas assume
a hipótese de que a realidade escapa à representação; daí, num esforço compensatório, todo o
seu investimento nas etapas sucessivas de construção da terceiridade. Se pudéssemos, como
instrumento de representação, dispor apenas do signo79, lato sensu, os prejuízos em termos de
captação de fenômenos experimentados seriam evidentes. No limite, a questão em análise
colocaria a nossa capacidade de categorização e de organização da realidade numa relação de
assimetria absoluta com os meios disponíveis para representar: produziríamos grandes
estoques de dados sem dispor de mecanismos adequados para expressá-los. Entretanto, os
fatos inscrevem-se numa ordem diversa e a necessidade de ordená-los conduz Peirce a essa
formulação. Na verdade, dispomos de meios intuitivos e incontáveis de representação
conceitual, mas não dispomos, teoricamente, de uma forma racional de fundamentá-los e nem
de estruturá-los de modo orgânico. É nessa dimensão, portanto, que entendemos o esforço do
autor na fundamentação da terceiridade. Embora a formulação de um padrão de racionalidade
nem sempre se mostre ostensiva, como seria desejável, consideramos ser esse o grande tributo
que lhe devemos render em termos de sua reflexão.
79
Esse fato seria equivalente a existência, numa língua, apenas de palavras como coisa, trem, treco para
especificar todo o conjunto dos objetos materiais. Embora os termos não contenham em si nenhuma descrição a
priori dos objetos, o simples fato de nomeá-los, de forma diferente, já é uma garantia da sua diferenciação.
145
(40) Fogo !
(41) Cuidado! Fogo !
(42) Socorro! Fogo !
(43) Preparar! Apontar! Fogo!
Numa classificação imediata, a partir das classes de signos, atribuiríamos a (41), (42) e
(43) o valor de um argumento e a (40) o de um símbolo dicente, ou, em circunstâncias
específicas, de um legissigno indicial dicente. As questões que decidem uma tal classificação
decorrem, de um lado, da possibilidade de correlações lógicas entre as proposições, nos três
últimos exemplos, e da existência de uma proposição que expressa, isoladamente, um certo
estado de coisas, em (40). Os fatos assim concebidos circunscrevem-se, sem qualquer
discrepância, na formulação de Peirce. Assim, uma análise desse teor, ainda que de valia na
concepção genérica de estruturação de certos objetos conceituais, pouco representa em termos
do que, de fato, pode significar, para os falantes do português, a interpretação de cada uma
delas. Nesse caso em particular e, provavelmente, em muitos outros, poderíamos reverter o
raciocínio, até então desenvolvido, afirmando que o conhecimento de fatos lingüísticos levaria
a uma compreensão efetiva de tais objetos, ainda que concebidos semioticamente. Como os
exemplos não apresentam uma estrutura proposicional canônica, vamos precisar reconstruir
cada um deles, de forma a poder melhor localizar as questões. Vejamos, então, uma primeira
estrutura proposicional:
80
Na descrição desse exemplo e de outros seguintes, o termo PONTO refere-se à forma pelo qual o seu uso foi
consagrado pela Teoria dos Atos de Fala, conforme veremos no capítulo seguinte.
146
A descrição proposta em (44), isto é, a função proposicional [queimar (x, y)], realizada
no tempo presente [t, presente] e numa modalidade assertiva [PONTO[assertivo]], pode ser usada
para caracterizar, diretamente, o significado da proposição ‘Fogo !’ em todos os casos acima,
excetuando (43), onde a idéia geral de [queimar] já aparece como um resultado de outras
ações realizadas. Embora sendo uma função de dois lugares, já que é possível considerar [x,
agente] ou [x, instrumento] e [y, objeto afetado], é comum reduzi-la a uma função de um
único lugar, evitando, assim, uma redundância descritiva em que [x, instrumento] fosse
atualizado por ‘fogo’. Ao invés, portanto, de termos proposições como (45), teríamos, mais
comumente, (46):
81
Na descrição formal desses exemplos, estamos considerando funções enunciativas, todos os parâmetros
relativos ao modo, ao tempo e a particularidades sobre o papel dos interlocutores. Aspectos da estrutura
proposicional, contendo o predicado e seus argumentos representam funções gramaticais.
147
que apontamos relações estreitas que se estabelecem entre unidades concorrentes. Logo,
enquanto a dimensão semiótica reconhece uma estruturação global dos exemplos analisados
(símbolo dicente e argumentos), a abordagem semântica fundamenta-se numa análise da
estruturação interna, pois somente através dela podemos chegar à diferenciação apontada.
Vamos avaliar os casos remanescentes:
pois é ele, locutor, que está clamando por ajuda, ainda que os beneficiários imediatos possam
ser outros. Embora sabendo que a questão em análise contenha uma amplitude maior do que
os fatos que se traduzem em termos de uma estrutura da proposição82, podemos, no momento,
acrescentar-lhe uma solução ad hoc, propondo uma restrição no alcance da variável [x],
conforme descrição abaixo:
(48a) Cuidado ! = {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}, sendo x[não-beneficiário];
(49a) Socorro ! = {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}, sendo x[beneficiário].
A solução apresentada poderia assumir outro formato, para representar, de modo mais direto,
um contraste entre ‘Cuidado!’ e ‘Socorro!’. As duas expressões poderiam ser descritas com o
mesmo valor lexical, mostrando que a diferença entre elas se deve ao fato de haver uma
orientação sobre o beneficiário da ação. Intuitivamente, parece ser essa a diferença que
relacionamos uma à outra: ‘Cuidado!’ alerta para o perigo de modo a indicar o alocutário
como principal beneficiário da ação; ‘Socorro!’, alerta também para perigo, mas inclui o
locutor como o seu principal beneficiário. Analisemos agora os dois outros componentes do
exemplo (43):
(50) Apontar ! = {[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)}
(51) Preparar ! = {[PONTO[diretivo]] estar atento[t, presente] (x)}
82
Fatos dessa natureza, como outros que já foram incluídos neste trabalho, extrapolam parte das informações
que, de um modo geral, são abordados no plano do enunciado. Ao trabalharmos os exemplos de (40) a (43), já
estamos operando no plano da enunciação, pois representam atos de fala e não apenas proposições, no sentido
tradicional.
149
Desse modo, a natureza da predicação usada para representar cada uma das proposições, isto
é, [estar atento], [orientar a visão para], [disparar], já se torna um indicativo de ordem
temporal. Ainda que certas ações precisem ser realizadas antes que outras, isso não impede
que possamos produzir correlações alternativas, mantendo-se, basicamente, o mesmo sentido.
Deve-se essa flexibilidade ao fato de a condição temporal não apresentar o mesmo vigor,
comparando-se os componentes de todo o argumento. Sabemos, pois, que entre ‘Apontar!’ e
‘Fogo!’ existe uma condição temporal forte, porque não seria razoável supor que uma ordem
para atirar pudesse ser dada antes mesmo da de mirar − ou, ainda pior, que a ordem de mirar
fosse dada depois da de atirar −, supondo que ambas devessem ser proferidas. Entretanto,
sobre ‘Preparar!’ projetam-se condições relativamente fracas, porque ela tanto pode figurar
como antecedente de ‘Apontar!’, como de ‘Fogo!’. Ambas as proposições aceitam o fato de
que as ações contidas em ‘Preparar!’ possam figurar como seu antecedente. Tal observação
parece ser válida para quaisquer das duas descrições conceituais que lhe for atribuída,
conforme apontamos acima − [estar atento] ou [posicionar]. Se, todavia, traduzíssemos
[posicionar] por uma ação específica, ou seja, o início do manejo de armas, então ela seria
mais adequada como antecedente de ‘Fogo!’. Se as observações sobre o comportamento de
‘Preparar!’ são verdadeiras, podemos admitir um outro arranjo para (43):
83
Além da flexibilidade de ordenação entre esses componentes, a sua escolha não exclui a possibilidade de
outros, ou por troca - ‘Atenção! Apontar! Fogo!’ -, ou por acréscimo - ‘Atenção! Apontar! Preparar! Fogo!’.
150
Outras inversões, porém, não seriam aceitas em relação aos componentes desse
argumento. Logo, não seria possível deslocar ‘Preparar!’ para o final da seqüência, −
‘*Apontar! Fogo! Preparar!’ −, nem ‘Fogo! para o seu início − ‘*Fogo! Preparar!
Apontar!’ − e nem antepor os dois últimos elementos da seqüência original − ‘*Preparar!
Fogo! Apontar!’. O resultado final dessa avaliação mostra que quaisquer arranjos que não
considerem ‘Fogo!’ como ação derradeira da seqüência, e até mesmo como conseqüência das
ações precedentes, não podem ser aceitos como estruturas de significação adequadas, para o
caso em análise. Por outro lado, a ordenação temporal que estamos apontando para as
proposições não pode ser vista sem alguma contaminação que leve à exclusão de quaisquer
outros vestígios além da seqüência no tempo. A restrição geral que foi feita acima, admitindo-
se apenas Fogo! como a última das proposições, decorre também da natureza do conteúdo
implicado nas outras proposições: as relações que [disparar] mantém com [orientar a visão
para] e [estar atento] não são necessárias, portanto, não têm o valor de uma causalidade forte,
mas também não são fortuitas, porque são contingentes na sua dimensão semântica, conforme
já apontamos pela estreita dependência entre o conteúdo de atos contidos em cada uma das
proposições.
84
É comum registrar o exemplo histórico “Vim, vi, venci” como ilustrativo da seqüência temporal, onde a ação
subseqüente está sempre a exigir a presença daquela que lhe antecede como condição espaço-temporal: só é
possível ver o lugar a que se veio e só é possível vencer o lugar (inimigo) a que se veio e que se viu. É claro,
porém, que nada impede a possibilidade de gerar outras estruturas de significação com esse conjunto de
proposições.
151
As alternativas possíveis para as relações causais típicas, como (41) e (42) revelam, em
contraste, a existência de um outro tipo de relação que não se sujeita, com evidência, às
circunstâncias de uma ordenação única. Assim, relações causais mais ou menos implícitas
podem ser contagiadas por estruturas temporais e mesmo considerando casos onde uma
relação de causalidade parece evidente, o teor de uma relação temporal também não pode ser
excluído. Podemos argumentar aqui que uma justificativa possível para um locutor [alertar] o
seu alocutário, ou para a sua manifestação de [estar em perigo] depende da existência prévia
de ‘fogo’, no âmbito dos exemplos em análise. Se alguém clama por meio de apelos em seu
benefício ou em benefício de outrem, ele o faz em razão da precedência temporal de algo que
lhe pode ser nocivo, em alguma extensão.
Por último, as razões pelas quais a reflexão de Peirce destaca o argumento como uma
classe de representâmen que manifesta um padrão elaborado de expressão do pensamento
justificam-se, em relação às práticas de linguagem, quando confrontadas com os exemplos
analisados. Embora na forma de padrões sintagmáticos não-canônicos, mostramos como as
proposições se estruturam e como se relacionam entre si por razões lógicas. Os procedimentos
da análise lingüística, ainda que parciais, descreveram como, de forma restrita, é possível
conceber um estatuto lógico no percurso que se estende do rema ao argumento. Eles podem
ainda constituir uma justificativa suplementar, em outras bases, da racionalidade reivindicada
pelo autor em relação aos desdobramentos no formato de raciocínio que o argumento
representa. Há uma compreensão mais decisiva da sua importância para a organização do
pensamento, se avançamos nas possibilidades de estruturação lógica que Peirce admite: trata-
se da tricotomia para os argumentos simples, concebidos na forma de − deduções, induções e
152
abduções. Não discutimos esses formatos de raciocínio, porque tal discussão estaria além do
que foi desenhado para esta pesquisa.
Nesta seção procuramos enfatizar apenas alguns aspectos que seriam objeto de uma
compreensão semiótica do argumento e outros que seriam objeto de sua compreensão numa
abordagem semântica. Ao longo da nossa discussão, demonstramos diferenças e aproximações
entre os dois campos, que resguardam padrões próprios no trato da relação entre ser e ser
representado. A classificação dos signos na semiótica fundamenta-se em bases fenomenistas,
a partir de categorias como a qualidade, o existente, a lei, enquanto na lingüistica, o
fundamento é de base estrutural, sustentado por propriedades e relações léxico-sintagmáticas.
É possível, porém, que a semiótica extraia de sua base fenomenista conseqüências estruturais,
ao implementar alguns aspectos da organização das tricotomias, bem como conseqüências
funcionais, considerando-se o papel desempenhado pelos correlatos de quaisquer relações
triádicas. A lingüística, por seu turno, deve conviver, em sua base estrutural, com padrões
fenomenistas, seja pela absorção cognitiva dos dados de uma realidade, seja pelos efeitos de
interpretação de um certo estado de coisas de um mundo possível. Assim, ainda que a
incompatibilidade operacional, as divergências instrumentais entre os dois campos de estudo
no processamento da representação, conforme procuramos avaliar no transcorrer desse
capítulo, anulem as tentativas metodológicas de uma sobreposição entre semiótica e
semântica, pressupostos filosóficos e padrões conceituais continuam sustentando o
partilhamento pelo dois campos, senão das soluções, ao menos dos desafios impostos pela
representação.
propósito não foi meramente de enfocar unidades lingüisticas para tentar ilustrar tipos de
signo. Um procedimento assim configurado correria o risco de reduzir a proposta de Peirce a
uma classificação estática. No entanto, na condição de reduto da representação, tivemos a
oportunidade de selecionar, na terceiridade, alguns indicadores construídos pelo autor e
compará-los a certas condições de análise, necessárias a uma compreensão de fatos
lingüísticos. Destacamos, na nossa perspectiva, indicadores − tipos de signos − que se
mostravam mais próximos a uma discussão de fatos específicos de linguagem. Desse modo, a
proposta de análise procurou avaliar certas condições impostas à construção de uma gênese da
representação e a sua extensão para os processos de representação do processo de
significação lingüística.
momentos de aproximação que propusemos, sempre restou a sensação de que algo de mais
específico devia ser imposto ao funcionamento dos objetos semióticos para que deles
pudéssemos extrair uma contribuição mais determinante para a análise dos processos de
significação lingüística.
85
A exceção mais notada sobre esse fato pode ser registrada na formulação de JACKENDOFF (1983) sobre a
existência de quatro domínios conceituais que expressam a relação entre linguagem e realidade: “Thus we adopt
within the theory a metaphysics that embraces four domains: the real world, the projected world, mental
information and linguistics expressions. Among the goals of the theory is to explicate the relatioships of these
domains to each other.” (p.31).
155
86
Podemos destacar, em particular, diversos trabalhos que tiveram como objetivo o desenvolvimento de papéis
temáticos (JAKENDOFF, 1983), por exemplo, ou de relações de caso (FILLMORE, 1982), como um
instrumento de análise fundamental para uma aproximação decisiva entre sintaxe e semântica.
156
CAPÍTULO IV
87
PEIRCE (1980) descartou o uso do termo pragmatismo em favor de pragmaticismo pelas duas razões
seguintes que encontramos registradas no seu texto (a) “... a palavra começa a aparecer nas revistas literárias,
violentada daquela forma impiedosa a que estão sujeitas as palavras quando caem em garras literárias”; (b)
“Os costumes britânicos censuraram a palavra por ser mal escolhida, quer dizer, por designar um significado
que devia antes servir para excluir.”(p. 116). Adotamos o termo original − pragmatismo − por continuar sendo o
de uso mais corrente.
158
instâncias anteriores. Entretanto, o quadro comparativo precisa ser ajustado, pois os objetos
conceituais que se configuram no pragmatismo ultrapassam o que se concebe como
semântica, ao menos no interior das abordagens que serviram de suporte, até então, nesse
processo de análise. Em se tratando do campo da linguagem, até mesmo uma denominação
padronizada parece estar ainda por se definir nesse território: historicamente pragmática
parece ter sido a denominação de mais amplo aceite. De modo mais restrito, o termo recobre
uma preocupação original com a análise dos atos de fala e das expressões indiciais
(STALNAKER, 1982)89, mas contém uma extensão mais abrangente, incluindo leis
conversacionais, processos interativos.
O avanço que a lingüística alcançou nas últimas décadas, nesse panorama traçado além
do domínio da sintaxe e da semântica, propiciou, às vezes, o aparecimento de outras
denominações para avaliação dos mesmos fatos. Assim, análise do discurso, análise
conversacional, processos enunciativos, processos discursivos, análise da enunciação, mesmo
quando portadoras de objetivos próprios, de uma metodologia singular, costumam recortar
objetos que se sobrepõem ao campo da pragmática. Para evitar uma ressonância muito
próxima entre cognatos e também por representar uma extensão mais ampla dos fenômenos
em análise − por exemplo, fenômenos de interação verbal − estaremos usando análise dos
processos enunciativos, como uma intervenção sintático-semântico-pragmática, para
correlacionar discutir as bases do pragmatismo. Além do mais, em razão da proliferação dos
procedimentos de análise implementados por abordagens distintas nesse campo, estamos
centralizando dois aspectos que consideramos fundamentais e complementares e que
representam uma seqüência natural para o pragmatismo, na análise a ser desenvolvida. Trata-
88
A formulação do presente trabalho organizou o pragmatismo como o aspecto ‘derradeiro’ da teoria de
PEIRCE. A organização do trabalho, porém, não corresponde à proposta original do autor; nesta o pragmatismo
é uma doutrina mais abrangente (ou talvez o método) dentro da qual se acham estruturadas primeiridade,
segundidade e terceiridade, conforme se pode observar em PEIRCE (1980, p. 5-60). Na presente estruturação
estivemos preocupados em fazer emergir uma certa gênese da nossa atividade sobre os objetos, o que nos levou a
conceber o pragmatismo como instância final de um processo que inclui, gradativamente, sensação >
formulação > representação > ação. Tal escala, porém, não contradiz a formulação de Peirce, pois ela ainda nos
mostra sensação, formulação e representação, ou as tópicas correspondentes, como integrantes da ação, ou seja,
do pragmatismo.
89
O autor assim expressa sobre o problema: “A pragmática é o estudo dos atos lingüísticos e dos contextos nos
quais eles são executados. Há dois tipos principais de problemas a serem resolvidos dentro da pragmática:
primeiro, definir tipos relevantes de atos de fala e produtos de fala; segundo, caracterizar os traços do contexto
de fala que ajudam a determinar qual a proposição que é expressa por uma dada sentença. A análise dos atos
ilocucionários é um exemplo de problema do primeiro tipo; o estudo das expressões indiciais é um exemplo do
segundo tipo. (p.64).
159
se, portanto, de buscar, no pragmatismo, uma justificativa para o funcionamento dos atos de
fala e da análise quadro enunciativo proposto pela semiolingüística, como um complemento
para os atos de fala. É claro que a razão da busca desse fundamento deve-se à suposição de
que os dois fatos, em análise, se mostrem ancorados, com certeza, a uma concepção
lingüística.
90
Na concepção de MORRIS (1976), “O termo pragmática foi obviamente cunhado em referência a
‘pragmatismo’. É ponto de vista plausível que a importância permanente do pragmatismo repousa no fato de
que ele dirigiu uma atenção mais cerrada para a relação dos signos com os seus usuários do que já se tinha
feito e afirmou a importância dessa relação para se entender as atividades intelectuais.” (p. 50)
160
A segunda dimensão assinalada − que não exclui a anterior − evidencia-se na citação acima: o
interesse traduz-se pela possibilidade de que o “teor racional de uma palavra”, o uso de um
“conceito” devam ser avaliados sob o prisma de sua “influência direta sobre a conduta”.
Além do mais, tudo que pudermos avaliar sobre um conceito refere-se a “... fenômenos
91
Posteriormente, na seqüência da análise a ser desenvolvida, estaremos nos ocupando, de modo mais enfático,
da questão do pragmatismo associado à prática ordinária de ações, através do uso de formas lingüísticas
apropriadas. Daí a extensão a ser feita do pragmatismo como um fundamento das estruturas enunciativas e da
161
desafio para que esses dois fatos se façam necessários à construção do pragmatismo requer,
por sua vez, que os coloquemos numa relação de causalidade, de tal forma que o segundo seja
produzido pelo primeiro. Inversamente, segundo o autor, o que concebemos na esfera dos
efeitos corresponde ao conhecimento que temos do objeto. Tentaremos aqui, senão interpretá-
la, ao menos buscar uma justificativa capaz de ilustrar circunstâncias a que ela se aplica.
Suponhamos, então, a formulação de um conjunto de instruções a serem seguidas, visando a
que o seu destinatário execute certa tarefa:
O objeto da nossa concepção em (1) pode ser entendido como recomendação, ou ordem,
resultante do conteúdo proposicional obtido pela composição de significados de itens lexicais,
associados à realização de tarefas no futuro e a convenções de uso que regulam interações
entre um locutor − o manual − e um alocutário − o usuário. No caso presente, o valor
hierárquico de tal interação faz-se representar pelo caráter de autoridade técnica, conferida
àqueles que elaboraram o manual. Assim, uma vez concebido como mera recomendação, o
objeto projeta a realização de uma tarefa, orientada a partir da descrição do conteúdo ‘P’, de
(1) acima e que pode vir a ser negligenciada pelo seu usuário. Supondo, entretanto, que (1)
possa ser realizado como ordem, devemos, então, revigorar a dependência hierárquica entre
as instâncias interlocutivas, tornando-se inevitável a realização de ‘P. Por fim, admitindo-se
que exista uma clareza sobre o significado dos signos componentes do conjunto das
proposições, a recomendação/ordem registrada estipula para o usuário em pauta a execução
de afazeres que implicam a necessidade de que certos cuidados − [remoção de parafudos] e
[desconexão de cabos]... − sejam realizados como pré-requisitos a tarefas subseqüentes para
remoção e instalação de componentes.
Aqui poderíamos dizer que o efeito prático decorrente do objeto-ordem, por exemplo,
é, minimamente, a execução da tarefa nos termos descritos. Poderíamos ainda, nos termos da
Teoria dos Atos de Fala, denominar tal efeito de ilocucional, entendendo-se o fato de o
93
Instrução constante da seção Instalação e remoção de disco rígido, do Manual do Hardware-IBM/Aptiva.
Campinas: IBM, 1995, p.102.
163
“Pois a máxima do pragmatismo é que uma concepção não pode ter efeito
lógico algum, ou importância a diferir do efeito de uma segunda
concepção salvo na medida em que, tomada em conexão com outras
concepções e intenções poderia concebivelmente modificar nossa conduta
prática de um mundo diverso do da segunda concepção.” (p. 232).
Voltando ao exemplo em discussão, é evidente que uma ordem pode ter outros efeitos, quando
nela mesclamos outras intenções, ou quando violamos alguma convenção, além daquelas que
regulam o seu uso. Se o alocutário percebe que a relação com o locutor não se estrutura na
base de uma hierarquia que confere a este superioridade, o objeto resultante, quando existir −
pois até mesmo a possibilidade de sua recusa está em jogo −, já não mais se configura como
ordem executada, senão como um outro efeito atenuado, segundo o novo diagnóstico da
relação. Assim, se o efeito lógico do objeto-ordem é o fato de que alguém deve cumpri-la de
modo irrestrito, nenhuma outra concepção pode estar, logicamente, a ela vinculada, nem dela
diferir, a não ser que outras intenções possíveis de alterar o seu padrão funcional sejam a ela
acrescidas. O resultado de uma intervenção sobre o fluxo lógico entre objeto e efeito, no caso
de uma ordem, implica “...modificar nossa conduta prática de um mundo diverso do da
segunda concepção” . Em resumo, uma primeira concepção de ordem pode não representar
nenhum efeito lógico resultante, a não ser − e em comparação com uma segunda concepção
que produziria esse efeito −, que sobre ela façamos atuar outras intenções, suficientes para
alterar o nosso comportamento sobre ordens. Em outras palavras, a concepção sobre os fatos
difere em razão de alterações impostas por nossa conduta prática diante desses mesmos fatos.
164
ameaçar o locutor; (c’) sua execução com a intenção de mostrar displicência. Esses apêndices
intencionais que acrescentamos aos atos é que podem produzir o efeito de totalidade do
objeto; uma totalidade circunscrita a uma instância enunciativa própria.
Ao traçarmos essa totalidade do objeto − ainda que limitada −, devemos admitir que
uma estratégia de acréscimo de intenções não pode ser confinada em termos quantitativos:
tratamos, nos exemplos acima, sempre da admissão de uma única intenção, mas esse número é
arbitrário. Uma intenção que lembra ‘humilhar’ pode também apontar para acréscimos ou
qualificações como ‘embaraçar’, ‘atropelar’, ‘aborrecer’, ‘tripudiar’, ‘ridicularizar’, mas
certamente é incompatível com ‘elogiar’, ‘promover’, ‘homenagear’94. Formas diretivas como
‘perguntas’ comumente preenchem a sua totalidade com seqüências compatíveis de intenções.
Em resumo, a “concepção total do objeto”, o resultado final da execução de um ato, no nossa
exemplificação a partir da Teoria dos Atos de Fala, requer uma associação necessária entre o
ilocucional e o perlocucional.95
94
Se a concepção de um ato pode ser admitida como o conjunto dos efeitos práticos a ele vinculados, então, as
condições que usamos para definir possibilidades de sua aplicação − como nos casos em análise − não devem ser
entendidas como limite superior para as condutas práticas. A descrição que apresentamos é sempre parcial e só
pode ser invalidada na ausência de um efeito prático qualquer. A esse respeito PEIRCE (1980, p. 57) afirma que:
“... se o pragmatismo é a doutrina de que toda concepção é uma concepção de efeitos práticos concebíveis, isto
faz com que a concepção tenha um alcance muito além da prática. Permite qualquer vôo da imaginação,
contanto que esta imaginação se depare, em última instância, com um efeito prático possível, assim, à primeira
vista pode parecer que muitas hipóteses são excluídas pela máxima pragmática, quando não o são.”
95
O problema de determinação do lugar da intenção num ato de fala não é uma questão fechada para a teoria. Há
autores que preferem situar intenções como fonte original de todo ato; para outros a intenção é apenas uma
conseqüência do uso de atos.
166
circunscrito na esfera de cada uma delas pode ser indiferente aos propósitos do pragmatismo;
todos os fatos exibem o valor de etapas fundamentais na sua construção. O desenho
conceitual desse quadro mantém, por sua vez, correlações válidas com o processo lingüístico-
discursivo. Não existe ainda, na lingüística (STOP – NOTA SOBRE O ROULET), esse
desenvolvimento integrado que Peirce elabora, mas sabemos, perfeitamente, que todas as
preocupações sobre o processo de significação, desenvolvido no interior de diversas
abordagens semânticas, podem ser aglutinadas em favor de um espaço destinado às extensões
pragmáticas. Entretanto, faremos um corte específico e começaremos a avaliar a extensão dos
problemas de sentido, considerando-se, inicialmente, a possibilidade de uma aglutinação entre
o pragmatismo e a Teoria dos Atos de Fala e, na seqüência com o quadro enunciativo
proposto pela Semiolingüística. Em que dimensão, portanto, podemos extrair da formulação
de Peirce elementos que nos permitam uma aproximação com os atos de fala e com outros
aspectos do processo enunciativo ?
96
A escolha da expressão, para abranger os fatos que estaremos analisando neste capítulo, não é definitiva.
Outras poderiam alcançar o mesmo efeito, isto é, o de indicar um certo número de fenômenos da linguagem
situados no campo da enunciação. A escolha deve-se ao fato de ‘processos enunciativos’ (mais do que ‘análise do
discurso’, por exemplo, que apresenta diversos padrões teóricos e tendências internas desses padrões...) dispensar
quaisquer justificativas adicionais ou restritivas, por não ser uma expressão nomeativa de nenhuma teoria e nem
estar comprometida com nenhum padrão metodológico de análise, a ponto de nela poder habitar os fatos que
vamos analisar.
167
três aspectos, contidos nos itens acima, representa uma condição mínima para análise da
enunciação, conforme destacaremos na seqüência.
97
Podemos localizar essa distribuição dos lugares enunciativos, por exemplo, na formulação de BENVENISTE
(1987) “Mas imediatamente, desde que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de
si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação é, explícita ou
implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário.”(p. 84). Embora seja um indicador importante para a
fundamentação do processo enunciativo, exatamente por introduzir o confronto entre as duas instâncias
interlocutivas, interessa-nos também um modelo que apresente outras alternativas − ainda que para os atos fala
tenha sido esse o padrão assumido −, como veremos na seqüência.
98
A fundamentação desse modelo aparece de modo explícito na formulação de PÊCHEUX (1969, p. 18-9):
“Notre hypothèse est que ces places sont représentées dans les processus discursifs où elles sont mises en jeu.
Toutefois, il serait naîf de supposer que la place comme faisceau de traits objectifs fonctionnne comme telle à
l’interieur du processus discursif; elle y est représentée, c’est-à-dire présente, mais transformée; en d’autres
termes, ce que foncitionne dans le processus discursif, c’est une série de formations imaginaires désignant la
place que A e B s’attribuent chaun à soi et à l’autre.”. Uma outra versão desse modelo, foi descrita por
DUCROT (1984, p.368-93) que aponta um desdobramento para os lugares do locutor e do destinatário, ao menos
em se tratando dos verbos performativos. O modelo, que será utilizado mais à frente, como parâmetro para
discussão, foi proposto por CHARAUDEAU (1983, p. 37-57).
168
99
O esquema presente lembra, em parte, a formulação de JAKOBSON (1969) e suas extensões na análise das
funções da linguagem. Para o autor, o locutor escolhe o código, orienta a forma que dá a esse código, centraliza a
mensagem sobre si mesmo ou sobre o seu interlocutor etc. O arranjo proposto, ainda que eficaz na avaliação de
certas estruturas da mensagem, mostra dificuldades no trato do processo enunciativo, pois se torna insuficiente
para explicar grande parte dos efeitospráticos que emergem do plano enunciativo, quando locutor e alocutário se
vêem face a face.
169
Nenhuma fala pode ser concebida como projeto de um locutor individual e isolado do seu
meio social, nenhuma fala é o resultado do seu estado mental exclusivo: o locutor é um ser
social múltiplo, ou, ao menos, um duplo do qual é mero porta-voz. Ele encena ter a
propriedade da voz que tece o seu discurso, mas no fundo apenas aluga a sua voz ao seu
duplo. O mesmo, mutatis mutandis, podemos conceber para o alocutário. O seu lugar é
também descentrado e socializado: nenhuma leitura é propriedade de um indivíduo, senão
uma mesclagem de outros indivíduos, de outras vozes ressonantes na sociedade, de outros
acontecimentos que ele importa para aquela circunstância. Esse modelo reafirma o teor social
da enunciação − “A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social.” (BAKHTIN
(1981, p. 127) −. Ninguém fala apenas em razão do próprio nome, senão em razão do lugar
social que ocupa; ninguém interpreta apenas em razão de uma consciência individual, senão
de uma consciência social. A proliferação de instâncias nos lugares enunciativos tornou-se
uma espécie de antídoto contra o solipsismo − “O ato de fala individual (no sentido estrito do
termo ‘individual’) é uma contradictio in adjecto” (BAKHTIN (1981, p. 127) −. Assim, EU e
TU agora se vêem obrigados a dividir um território onde reinaram soberanos.
quaisquer dos formatos que apontamos, implica uma conjunção de fatores que reúne, em
essência, os dois processos. Na análise subseqüente que desenvolveremos para alguns desses
efeitos, mostraremos detalhes dessa integração.
As raízes da TAF emergem onde quer que situemos correlações entre linguagem e
ação. Alguns momentos nessas correlações, entretanto, costumam ser identificados de modo
mais efetivo, como uma contribuição direta para a teoria, porque, além de identificarem a
questão central, ainda apontam para algum aspecto qualitativo que acabou sendo incorporado
no seu desenvolvimento conceitual. Assim, é comum, na história da TAF, a identificação de
suas raízes aos jogos de linguagem, a partir da formulação de WITTGENSTEIN (1979).101
Mais recentemente, certos autores têm derivado de Moore outros aspectos que lembram
alguns fundamentos da teoria, sobretudo aqueles que apontam para condições de sinceridade e
100
Não vamos, no presente capítulo, fazer uma apresentação sistemática da TAF. Grande parte dos seus
preceitos, do seu alcance e de suas críticas é amplamente conhecida. À medida que avançarmos na exposição,
deveremos, todavia, descrever alguns aspectos do seu funcionamento que se fizerem necessários.
101
O autor, nos parágrafos 2 e 7, mostra a importância de uma linguagem primitiva (uma linguagem onde uma
enunciação produz uma ação (cf. parágrafo 2) na sua correlação imediata com jogos de linguagem. Sobre este
segundo conceito ele escreve:
“(7)... Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por
meio dos quais as crianças aprendem uma língua materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem, e
falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem.
E poder-se-iam chamar também de jogos de linguagem os processos da denominação das pedras e da repetição
da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao brincar de roda.
Chamarei também de jogos de linguagem o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está
interligada.”(p. 10 e 12).
A correlação linguagem primitiva/jogos de linguagem reflete parte das preocupações que estão incorporadas na
TAF, ainda que de forma rudimentar. Em ambas as formulações o que está em questão, de modo primordial, é a
relação entre linguagem e ação. A nossa preocupação com as raízes da TAF será considerada a partir de Peirce;
por essa razão, apesar da importância, o registro sobre Wittgenstein assume esse formato documental.
171
Não vamos aqui, no entanto, reconstruir detalhes desse itinerário, porque nossa
preocupação com o traçado histórico sobre a teoria é a de buscar, na formulação peirceana do
pragmatismo, alguns elementos que sirvam para uma correlação com a TAF. Se alcançamos
uma proximidade conceitual entre as duas abordagens, asseguramos, em alguma extensão, que
a TAF possa vir a constituir-se como uma orientação operacional no campo do pragmatismo.
Em outros termos, o desafio de converter a concepção de um objeto em efeitos práticos
poderia ser efetivado por meio de mecanismos disponíveis no corpo da TAF. Nada, em
princípio, nos impede de ensaiar essa aproximação, mesmo porque, em função do que já
comentamos sobre o pragmatismo, ele parece figurar como uma região propícia ao
desenvolvimento dos atos de fala. Vejamos, pois, uma citação inicial de PEIRCE (1980), feita
a propósito de uma das afirmações − “o significado de efeitos práticos” − sobre a máxima
pragmática:
“31. Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta
? Em ambos os atos o agente se submete a conseqüências prejudiciais se
uma certa proposição não for verdadeira. Só que ao apostar espera que o
adversário se torne responsável pela verdade da proposição contrária; ao
que, ao fazer uma asserção, sempre (ou quase sempre) deseja que a
pessoa a quem se dirige aceite o que ele diz. Assim no vernáculo
“Apostarei” isto ou aquilo, é uma frase que expressa uma opinião
privada que não esperamos que os outros compartilhem , enquanto que
“você aposta” é uma forma de asserção que busca fazer com que o outro
acompanha o exemplo.” (p. 12)
O trecho acima nos introduz, diretamente, em diversas dimensões dos atos de fala, a começar
pela pergunta sobre a diferença entre fazer uma asserção e fazer uma aposta. Vamos tentar
esclarecer aspectos dessa questão, considerando algumas observações que Peirce apontou no
102
O autor assinala o seguinte fato sobre a importância do paradoxo de Moore: “Other examples of analytically
unsuccessful sentences which are not illocutionarily inconsistent are instances of Moore’s paradox, such as
“John, please come, I do not want you to come”. Utterances of such sentences are analytically unsuccessful
because a speaker who performs an illocutionary act expresses eo ipso the mental states corresponding to the
sincerity conditions. He cannot deny in the context of his utterance that he has the mental states that he
expresses in that very context without contradicting himself.” (p. 107). A importância de Moore, porém, não se
resume unicamente a esse fato, isto é, o da violação das condições de sinceridade, mas no geral à questão do
vínculo entre linguagem e ação.
172
trecho anterior e princípios da TAF. Não devemos tratar a pergunta formulada pela autor
apenas como uma especulação sobre o significado lexical de signos. A questão refere-se às
condições de realização dos dois atos mencionados − o próprio autor usa o termo atos na
seqüência − o que pode implicar enunciações, marcadas por algum tipo de conteúdo
proposicional de asserção ou de aposta. Essa primeira afirmativa propicia um discurso sobre
os diversos registros que aparecem no texto em análise. Vejamos cada um deles, em
particular.
a) “Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta ?” Essa
pergunta aponta para a necessidade do reconhecimento de dois atos, cada um com
um ponto de realização103 particular. Assim, fazer asserção, independentemente
do uso de um verbo específico − ‘asseverar’, ‘asserir’... −, implica um ato do
locutor que reporta um certo estado de coisas e que o supõe verdadeiro. Por outro
lado, fazer aposta indica o ato de um locutor que se compromete com um
alocutário ao desempenho futuro de uma ação − a de pagar ou de receber uma
certa quantia, se o padrão contratual da aposta for moeda −, relativa aos efeitos
práticos decorrentes da concepção do objeto da aposta (por exemplo
vitória/derrota de um time). Comparando-se os dois atos em termos do seu ponto
de realização, podemos afirmar que o primeiro realiza-se no ponto assertivo e o
segundo no ponto comissivo.
103
Os termos técnicos pertencentes à TAF estarão sendo usados na exploração do texto de Peirce. Todos eles
foram descritos, de forma sistemática, nas seções ‘4.3.1.1 - Pragmatismo e direção de ajustamento’ e ‘4.3.1.2
173
Ao comentar os três primeiros itens acima, mostramos que o texto de Peirce aponta
algumas preocupações importantes para a compreensão de um ato de fala. Isolamos, em
particular, o ponto de realização de um ato, suas condições preparatórias e suas condições de
sinceridade. Cada um desses parâmetros contém na TAF um perfil conceitual que o faz
componente de uma totalidade que é a compreensão conceitual de um ato. No texto de Peirce,
se não encontramos uma especificidade teórica desses parâmetros, deparamos, ao menos, com
o registro intuitivo da sua presença como condição para práticas de linguagem. O valor que
atribuímos à aproximação entre as duas abordagens não consiste, por conseguinte, na
expectativa de um mapeamento conceitual de categorias; mas consiste em arregimentar, em
Peirce, as condições básicas que o autor coloca como condição para se construírem ações com
a linguagem. Nesse particular, seria importante arrolar dois outros momentos (entre muitos
outros), registrados pelo autor e ilustrativos dessa interação entre entre linguagem e ação. No
primeiro momento, ao discutir o alcance do pragmatismo como um instrumento para dirimir
certas controvérsias filosóficas, o autor completa (PEIRCE, 1980):
O único método capaz de superar dúvidas, quando estas se fundam num uso inadequado de
signos, repousa nas virtudes do pragmatismo, isto é, na possibilidade de converter a
concepção de um objeto na totalidade dos efeitos que ele produz. Para justificar essa
correlação, Peirce sugere o desdobramento do signo em objeto − “...a coisa ou ocasião (...) à
qual o signo se há de aplicar...” − e em sentido − “...a idéia que ele liga ao objeto...” Essa
diferença entre o objeto de aplicação de um signo e seu sentido aproxima-se do aspecto geral
da estrutura de um ato de fala. Ajustando parte das informações de uma e outra abordagem,
poderíamos compará-las, a partir do seguinte esquema:
107
A correlação desse conteúdo proposicional com outras forças ilocucionais requer uma análise mais específica
em torno das condições preparatórias e das condições de sinceridade. Por exemplo, a enunciação ‘Prometo que
o time x vai vencer’ representa, certamente, uma promessa defeituosa (ou não chega a ser uma promessa),
porque os atos que supõem uma ação bem sucedida não estão, na sua totalidade, ao alcance do locutor (violação
das condições preparatórias), o que demonstraria sua disposição de prometer sem poder cumprir o que foi
enunciado (violação das condições de sinceridade), a menos que tudo estivesse ‘combinado’ com o adversário e
com o juiz. Para conteúdos proposicionais muito restritivos apenas a força ilocucional expressiva, que mostra
uma atitude proposicional do locutor frente a um estado de coisas, apresenta uma flexibilidade maior: ‘Acho que
o time x vai vencer’, ‘Espero que o time x vença’ etc.
176
No segundo momento, o texto de Peirce revela uma outra interface com a TAF no que
se refere à suposição de que um ato de fala seja a menor unidade significativa do processo
enunciativo e que, apesar de menor, concentre um número complexo de pressuposições, de
ações e de conseqüências incorporadas numa prática discursiva. O ato de fala é assim uma
unidade complexa, onde se concentram todas as condições lingüísticas (as condições de
conteúdo proposicional) e todos os detalhes contratuais da interlocução (convencionais ou
intencionais), que regulam as práticas discursivas. Refletindo sobre uma parte desse processo,
PEIRCE (1980) comenta:
“Qual é a prova de que os efeitos práticos de um conceito constituem a
soma total do conceito ? O argumento sobre que se apoiava a máxima que
‘crença’ consistia em estar deliberadamente preparado para adotar a
fórmula crida como guia da ação. Se esta for a natureza da crença, a
proposição em que se crê é uma máxima de conduta. Creio que é bastante
evidente.” (p. 11).
Na pergunta inicial do trecho acima, poderíamos supor uma equivalência do conceito (de um
signo) com a dimensão conceitual de um ato de fala. Assim, em se tratando de uma ordem, a
sua dimensão conceitual contém os efeitos práticos decorrentes de uma tarefa, executada sob
ordem. Se a mesma tarefa for executada sob um modo de realização que não o da ordem, as
implicações dos efeitos decorrentes dessa execução determinam um outro quadro conceitual.
A propósito, a comparação entre uma ordem e uma súplica pode ilustrar a questão: elas
convergem quanto ao ponto de realização − ambas realizam-se no ponto diretivo −, mas
divergem quanto ao seu modo de realização, pois a ordem pressupõe uma relação hierárquica
superior do locutor frente ao alocutário, enquanto uma súplica inverte essa relação e ainda
requer uma condição adicional – a humildade do locutor na formulação do ato –, mesmo que
se trate do desempenho de uma mesma tarefa. Os efeitos práticos podem indicar uma série de
fatores que fazem uma diferente da outra: a morosidade/rapidez na execução, a realização
completa/incompleta das tarefas ...
Por outro lado, a idéia de um estado mental determinante para aspectos das condições
preparatórias, das condições essenciais e das condições de sinceridade na execução de um
ato pode ser aproximada à função que Peirce atribui à crença. Assim, se a “fórmula crida” é o
“guia da ação” e “se a proposição em que se crê é uma máxima de conduta”, então, o
desempenho de uma ação requer esse estado mental que determina atitudes do locutor e do
177
Os fatos que foram acima reconstruídos com relação à promessa podem ser estendidos
a outros pontos de realização de uma força ilocucional, com características próprias. Na
configuração precisa dos componentes de uma força, entendidos por Peirce na dimensão de
uma crença, por exemplo, situam-se as maiores dificuldades de formulação conceitual de um
ato de fala, tal como da avaliação dos seus efeitos. A razão disso é que um ato de fala não se
compõe apenas de elementos lingüísticos, mas de elementos outros, muitos situados no
território da crença, como um conhecimento tácito e intuitivo dos locutores, nem sempre
captáveis, com a precisão teórica desejável, nos modelos formais disponíveis. O
empreendimento da TAF em procurar sistematizar esses outros elementos como, por exemplo,
desdobrando uma idéia geral de crença em componentes integrantes das condições de
sinceridade e das condições preparatórias, faz dela, TAF, um modelo relevante para assegurar
algum avanço sistemático, isto é, conceitual, formal, operacional, da concepção de
pragmatismo de Peirce. Se o grande desafio que a TAF enfrentou (e enfrenta) é o de construir
um modelo que expresse, com algum grau de racionalidade, as condições relativas ao ‘fazer
coisas com palavras’, isto é, ao conhecimento que temos da língua e a sua transformação em
ações ordinárias, podemos admitir que não existe qualquer descompasso entre a abordagem
dos atos e os propósitos reivindicados por Peirce para o pragmatismo, conforme evidencia a
observação seguinte (PEIRCE, 1977):
Peirce confirma, pois, a idéia de que o pragmatismo é o locus que acolhe as conexões que
abrangem desde a cognição racional até o propósito racional. Resta apenas saber, no
178
Na seqüência, vamos selecionar alguns momentos da TAF para dicutir parte dessa
racionalidade que foi construída como tentativa de explicar a relação entre linguagem e ação.
Para alguns adeptos da teoria, o fato primordial na compreensão entre linguagem-ação resulta
na possibilidade de se poderem especificar formas de orientação que regulam a intervenção de
uma sobre a outra. De início, descarta-se uma possibilidade unidirecional, situando ou
linguagem ou ação como origem de um processo de causalidade. Logo, é preciso isolar certas
circunstâncias em que a linguagem molda a existência de padrões de ação e outras em que a
ação determina formas de construção lingüística. Para avaliar essa relação de causalidade,
SEARLE & VANDERVEKEN (1983.) ressaltam a importância do conceito de “direção de
ajustamento”, como capaz de justificar quatro padrões distintos de direcionalidade. Segundo
os autores:
Para os autores, a relação entre linguagem e ação pode ser ajustada em apenas quatro direções,
cada uma das quais qualificando a orientação que devemos atribuir aos componentes da
relação. É claro que as relações determinadas, antes de mais nada, traduzem-se (e saturam-se)
por possibilidades lógicas do arranjo causal entre os componentes: ou a linguagem, ou a ação
assumem precedência causal − itens 1 e 2 acima − , ou ambas assumem, reciprocamente, um
valor causal − item 3 −, ou inexiste uma relação causal entre elas − item 4 −108.Essas quatro
possibilidades lógicas acabam incorporando valores ontológicos que se fazem expressar pelos
pontos de realização de uma força ilocucional. Vejamos, portanto, cada um dos itens acima,
transcritos na forma de uma direção de ajustamento e nela incorporando forças ilocucionais
correspondentes:
108
A noção de realidade aqui preconizada pelos autores não parece ser discordante daquela assumida por Peirce.
Ao discutir a doutrina do pragmatismo em relação ao idealismo hegeliano, PEIRCE (1977) escreve: “Ora, o
motivo de aludir àquela teoria aqui é que deste modo podemos iluminar acentuadamente a posição que o
pragmaticista mantém e que deve manter (...), a saber, a posição de que a terceira categoria − a categoria do
pensamento, representação, relação triádica, mediação, terceiridade genuína, terceiridade enquanto tal − é um
ingrediente essencial da realidade, e todavia por si mesma não constitui a realidade, uma vez que esta
categoria (...) não pode ter um ser concreto sem a ação, como um objeto separado sobre o qual operar seu
controle, assim como a ação não pode existir sem o ser imediato do sentimento sobre o qual atuar. A verdade é
que o pragmaticismo está intimamente ligado ao idealismo absoluto hegeliano do qual, no entanto, se separa
por sua vigorosa negação de que a terceira categoria (...) baste para constituir o mundo ou, mesmo, que seja
auto-suficiente.” (p.298).
180
Embora o ato não registre um verbo performativo, podemos admitir que se trata de um ato
assertivo, por retratar um estado de coisas − o fato de o locutor ter sido considerado imbatível
e ao mesmo tempo ter perdido (uma eleição para presidente) − que independe da sua
enunciação. Em outros termos, o valor que era atribuído ao locutor e o fato de ter sido
derrotado transcorreram num período anterior ao proferimento do ato, logo uma direção de
ajustamento PALAVRA-A-MUNDO, já que são palavras que se ajustam a um estado de coisas do
mundo. No quadro da análise do pragmatismo, podemos admitir que a concepção do objeto é
a asserção feita pelo locutor acerca de uma situação por ele vivenciada, enquanto efeitos
práticos dele correntes, além da indicação da revista, podem ser aferidos: (i) como mera
109
A relação proposta pelos autores para os termos PALAVRA e MUNDO, ao menos na versão que demos para
o português, pode ser entendida, sem prejuízo conceitual, de duas formas: (a) ou são as PALAVRAS,
emergência representativa, que se orientam na direção do MUNDO, pré-existência ontológica, ou é o MUNDO
que provoca uma estruturação de PALAVRAS; (b) ou é o MUNDO, emergência existencial, que se orienta na
direção de PALAVRAS, pré-existência representativa, ou são as PALAVRAS que provocam uma estruturação
do MUNDO.
110
Como afirmamos, anteriormente, não vamos fazer uma análise exaustiva dos atos que serão exemplificados ao
longo dessa exposição. Estamos apenas fazendo um traçado que seja mais representativo das questões em
análise, no caso, para mostrar os atos como um instrumento de operacionalização do pragmatismo.
111
Excepcionalmente e para não sobrecarregar o corpo do texto com documentações e descrições datadas,
estamos fazendo indicações, quando necessárias, sobre os exemplos em notas de rodapé. Aqui se trata de uma
afirmativa de Luís Inácio Lula da Silva sobre as perspectivas eleitorais de FHC (VEJA: 24-12-97, p. 39).
181
constatação do autor da frase que, embora estando na frente em duas eleições, tenha perdido
as duas; (ii) como uma autocrítica do autor por ter confiado em pesquisas; (iii) como uma
verdade reportada pelo locutor, por se tratar de um fato de conhecimento público; (iv) como
uma observação do autor sobre o fato de que eleição não se ganha na véspera; (v) como uma
crítica do autor ao favoritismo conferido a algum candidato, que não ele próprio...
(02) “Num prazo de 120 dias, não haverá mais buracos.” 112
O proferimento acima constitui um ato realizado com uma força ilocucional comissiva e no
modo de realização de uma promessa.113 Como ato de fala, pela direção de ajustamento que
implica, o seu sucesso pressupõe a necessidade de uma alteração no mundo, isto é, que ‘os
112
Proferimento feito por Fernando Henrique Cardoso, por ocasião do lançamento de projeto de recuperação de
rodovias federais (VEJA, 24-12-97, p. 38).
113
A condição de sinceridade de uma promessa implica que o locutor ao proferir o ato se responsabilize pelas
ações conseqüentes de sua realização. Em se tratando, porém, de ações inseridas no rol de atividades públicas, o
locutor é apenas o porta-voz dessa responsabilidade assumida.
182
buracos da realidade para a qual ele aponta sejam consertados’. A importância da direção
de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, no proferimento de tal ato, é o fato de ele primeiro
instituir a realidade discursiva para possibilitar que venha ser um fato a alterar o mundo.
Quanto a uma correlação com o pragmatismo, o objeto concebido faz-se representar pelo
conteúdo proposicional − ‘tapar os buracos em 120 dias’ −, associado a um sentido que
damos a ele, o de promessa. Os efeitos práticos decorrentes desse ato, além da possibilidade
de uma crença/descrença nos fatos prometidos, só podem ser aferidos em termos da alteração
ou não do estado de coisas, a partir do proferimento do ato.
A força diretiva em (03) contém o modo de realização de uma pergunta, que prevê uma ação
futura a ser desempenhada pelo alocutário. A existência de tal atitude, isto é, a disponibilidade
de se desligar a moça, só passou a existir depois que o ato foi proferido; em outras palavras, o
proferimento de (03) cria condições para que um estado de coisas seja alterado no mundo
possível da esfera dos interlocutores. O ato ainda institui uma realidade discursiva para que,
na seqüência, a alteração de uma estado de coisas seja factível. A inserção desses fatos numa
dimensão do pragmatismo acontece de modo semelhante ao comentário referente à promessa,
fazendo-se os devidos ajustes.
114
O exemplo reporta um comentário de Antônio Skarmeta, escritor chileno, depois de assistir a um show de
Elba Ramalho (VEJA, 24-12-97, p. 53).
183
Os atos acima, quando anunciados por uma autoridade, investida de direitos para deles fazer
uso, tanto altera um estado de coisas − até antes do seu proferimento não havia sessão aberta
115
Ato proferido pelo ministro do meio ambiente, Gustavo Krause (VEJA: 24-12-97, p. 46).
116
Ato proferido pelo presidente do Congresso Nacional, Antônio Carlos Magalhães, em sessão realizada no dia
08-01-98 (TV-Senado, 1998).
184
−, como também o faz pelo fato de o universo já poder ser assim alterado na perspectiva do
locutor − que supõe a existência do fato sessão aberta para dar início aos trabalhos.
Raciocínio semelhante pode ser desenvolvido para o ato seguinte, quando a possibilidade de
outros discursarem depende do ato geral (sessão aberta) e de atos singulares que continuarão
instituindo o lugar da fala do outro. Os objetos conceituais que os dois atos criam − sessão
aberta e cessão da palavra −, permitem derivar todo um conjunto de efeitos decorrentes de
proferimentos individuais, de apartes, de discussões que só se tornaram possíveis em razão de
uma realidade objetivamente criada pelos atos inaugurais.
(06) “É mais fácil o Corcovado voar do que o câmbio ser mudado.” 117
117
O ato acima foi anunciado por Francisco Dornelles, ministro da Indústria e Comércio, a propósito de o
governo mudar o câmbio em razão da crise asiática (VEJA: 24-12-97, p. 36).
185
locutor sobre o fato em pauta. No exemplo seguinte, podemos notar uma situação um tanto
diferente:
118
Ato proferido por Pelé, agradecendo a rainha Elizabeth II pelo título de cavaleiro do império britânico
recebido (VEJA: 24-12-97, p. 44).
119
O conceito central da TAF pode ser representado pela força ilocucional, simbolizada por F(P), onde F é uma
força ilocucional e P um conjunto de proposições sobre as quais a força atua. Além do mais, uma força contém
seis componentes básicos, a saber: ponto de realização, modo de realização, condições de conteúdo
proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e grau de intensidade das condições de
sinceridade.
186
PEIRCE (1890, p. 5), “a maneira como o conhecimento (saber racional) está relacionado
com a ação humana ou conduta (finalidade racional)”. É por essa razão que buscamos, até o
momento, justificar a construção dessa “finalidade racional”, através da TAF, porque
supomos ser ela um modelo que tem demonstrado preocupação em estruturar um quadro de
categorias conceituais, capazes de estreitar a correlação entre a linguagem e a experiência
humana, conforme aponta VANDERVEKEN (1990, p. 5) “The conclusions of the book are
transcendental. They state universal laws of language use and comprehension that reflect the
a priori forms of thought and of experience of human speakers.
objetiva do nosso comportamento discursivo. Este parece ser um dos méritos fundamentais
da TAF, ou seja, propor critérios para uma estruturação possível de toda a atividade
fundamental de uso da linguagem por um falante, diante de um conjunto de procedimentos, à
primeira vista, desordenado e caótico e classificando essa atividade em cinco pontos de
realização. Alguns detalhes desses pontos já foram focalizados, quando desenvolvemos as
quatro direções de ajustamento, não havendo necessidade de reproduzi-los na seqüência. 120
Numa perspectiva mais geral, todavia, podemos dizer que a estruturação que os pontos
de realização de uma força ilocucional permitem organizar fundamenta-se na seleção
alternativa de dois enfoques: a saber, o enfoque do estado de coisas e o enfoque dos
interlocutores. No primeiro caso, quando a organização enunciativa centraliza-se num estado
de coisas, podemos ter duas orientações: uma que pretende ser uma intervenção objetiva,
reportando para a linguagem um estado de coisas, representado como supostamente
verdadeiro; outra que possibilita marcar a posição do locutor frente ao estado de coisas, no
qual pretensões à verdade devem ceder lugar a pretensões à expressividade. O primeiro caso
expressa o ponto assertivo e o segundo alude-se ao ponto expressivo. Por outro lado, quando a
ênfase recai sobre os interlocutores, podemos também estabelecer duas orientações: uma em
que o locutor se responsabiliza pela execução de tarefas futuras que o seu ato postula; outra
em que o alocutário é que se responsabiliza pelo cumprimento de ações futuras. No primeiro
caso, temos um ato de fala realizando-se no ponto comissivo e no segundo, no ponto diretivo.
Finalmente, ressaltamos uma circunstância discursiva em que o ato é utilizado, por um
locutor, instituído às vezes de um poder de legitimação, para construir certo estado de coisas,
a partir do qual outras ações subseqüentes tornam-se possíveis. Trata-se de um ato de fala com
realização no ponto declarativo. 121
Pensamos que essa organização, ainda que possa apresentar dificuldades operacionais
pelo teor de desdobramento que devemos conceber para alguns atos, constitui um padrão
importante para justificarmos o que se pode, na formulação de Peirce, entender por uma
120
Embora tenhamos utilizado, em alguns momentos, os conceitos básicos da TAF, não pudemos tratá-los de
modo particular. Na seqüência, estaremos desenvolvendo, numa forma analítica mais apurada, o seu valor
específico na teoria.
121
Análise de exemplos e situações representativos de cada de um desses pontos de realização, já foi mostrada na
seção 4.3.1.1.
188
“finalidade racional” associada às ações humanas. Grande parte das interações que
produzimos, visando a objetivos associados à realização de um ponto, possui um padrão de
aceitação relativamente estável e, onde quer que haja dificuldade, estamos sempre aptos a
sugerir ajustes necessários. Uma ordem implica compromissos éticos na sua realização, o que
não impede que muitas ordens sejam antes avaliadas nos seus aspectos constitutivos pelas
partes integrantes do processo, muitas podem vir a ser até mesmo repelidas. É também nessa
possibilidade de ajustamento prático de sua execução, se ela não for consensual, que reside a
importância da TAF que, ao propor critérios básicos, faculta também algum tipo de
acomodação, acordada pelos interlocutores. Na extensão, portanto, das conseqüências
estruturais que o ponto de realização pode representar para nossas ações, é que pensamos ser a
TAF um instrumento adequado a justificar o “propósito racional” ou a “finalidade racional”
que Peirce circunscreve ao pragmatismo.
O quadro acima delineado para o ponto de realização projeta uma visão muito genérica
do comportamento lingüístico: o nosso universo de práticas de linguagem distribui-se por
cinco pontos, englobando uma pluralidade inominável de formas que usamos para intervir em
diversas circunstâncias. Se o ponto de realização responde apenas por esses cinco
agrupamentos de atos, o modo de realização de um ponto se responsabilizará por uma
abertura que possibilita contemplar e classificar essa pluralidade de usos refletidos na fala. De
fato, quando nos aventamos a desempenhar alguma tarefa, não o fazemos de uma forma
única, ou seja, podemos nos comprometer com o alocutário de modo efetivo, ou podemos
apenas acenar-lhe com a expectativa de execução de um ato, ou ainda podemos fundamentar
esse compromisso numa perspectiva do próprio locutor. Da mesma forma, podemos mostrar a
nossa convicção com a verdade de um estado de coisas de modo mais ou menos seguro; como
podemos esperar uma credibilidade maior ou menor da parte do alocutário... Essa
variabilidade de nuanças e detalhes que podemos agregar a um conteúdo proposicional
qualquer, no momento da execução de um ato num ponto de realização específico,
denominamos de modo de realização de uma força ilocucional (naquele ponto). O modo de
realização nada mais é, portanto, do que uma especificação, uma especialização, em razão de
189
circunstâncias próprias, da maneira pela qual o ponto de realização de uma força ilocucional
deva ser desempenhado, para assegurar o sucesso de um ato de fala.
O modo de realização, pela pluralidade de formas com que pode ser executado,
decorre de particularidades que se relacionam aos integrantes do processo enunciativo, ao
conteúdo proposicional e à utilização de formas lingüísticas próprias. Considerando-se, por
exemplo, o primeiro aspecto − integrantes do processo enunciativo −, podemos conceber que
a especificação de um modo para o ponto diretivo requer uma avaliação direta do grau de
hierarquia entre locutor e alocutário: a superioridade hierárquica do locutor sobre o alocutário
determina o modo-ordem; a superioridade hierárquica do alocutário sobre o locutor possibilita
o modo-súplica122; uma relação equiparada entre ambos produz o modo-pedido.123 Em relação
ao segundo aspecto − conteúdo proposicional −, a determinação do modo para o ponto
comissivo, em muitos casos, pode exigir uma avaliação sobre os fatos descritos pela
proposição. A diferença entre um modo-promessa e um modo-desejo implica uma restrição
maior para o que se pode prometer; no entanto, não é importante determinar qualquer limite
no conteúdo proposicional para o modo-desejo do falante, embora nem todo desejo possa ser
convertido no modo-promessa. Uma promessa, para ser bem sucedida, requer que o conteúdo
proposicional seja passível de desempenho pelo locutor, requer também que esse mesmo
conteúdo seja favorável a quem o ato se destina. Em contraposição, nenhum dos dois fatos é
relevante para julgar adequação de um desejo. Quanto à questão da forma lingüística,
podemos afirmar que ela se torna importante para o modo, por ser ela o seu instrumento
material de representação. Assim, todos os exemplos acima podem ser traduzidos por formas
verbais como: ‘ordeno P’, ‘suplico P’, ‘peço P’, ‘prometo P’, ‘desejo P’, que são
tradicionamente conhecidas como verbos performativos.124 Além disso, existe ainda uma
multiplicidade de outros padrões lingüísticos (advérbios, expressões adverbiais) que
122
O modo-súplica implica também uma condição preparatória adicional, isto é, a forma humilde com que o
locutor dirige-se ao alocutário, como complemento dessa inversão hierárquica de papéis.
123
Mencionamos apenas os dois extremos determinados pela relação hierárquica e um caso intermediário.
Entretanto, cada um dos intervalos comporta inúmeras outras possibilidades de especificação do modo.
Igualmente, os termos que usamos para apontar essa escala de realização dos modos não tem um caráter
normativo; outros como ‘comando’, ‘solicitação’, ‘imploração’ poderiam ser usados.
124
Na história dos atos de fala, houve um momento em que os verbos performativos foram considerados
essenciais à sua análise. Eles continuam sendo importantes, mas um ato de fala não pode ser estruturado a partir
da sua presença, porque existem atos sem a presença do performativo (provavelmente a maioria é assim
construída) e quaisquer desses verbos podem apresentar usos não-performativos.
190
A enunciação acima ilustra um ato de fala que, em razão da presença do verbo ‘prometer’, na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo, credencia-se como representativo de
uma força ilocucional que se realiza no ponto comissivo e no modo-promessa, com a restrição
imposta pela condicional “Se a emenda passar..” . Vejamos, então, de forma sumária,
condições adicionais que podem fazer de (08) um ato de promessa bem sucedido ou não:126
125
O ato acima foi proferido por Paulo Maluf, a respeito da perspectiva de aprovação da emenda eleitoral sobre
reeleição, em janeiro de 1997. (VEJA: 24-12-97, p. 38).
126
O fato histórico de a promessa não haver se efetivado não é relevante para uma análise das suas condições de
possibilidade. Afinal, o papel da teoria não é o de prover atestados documentais da realização histórica de um ato
qualquer, mas apenas fixar condições para que ele seja bem sucedido (ou apontar defeitos que levariam ao seu
insucesso).
191
Os fatos que apontamos acima, como integrantes de uma força ilocucional, expressam
as tentativas da TAF de demonstrar como o conjunto das nossas ações ordinárias pode ser
justificado de uma forma racional. É claro que nem todos os componentes de uma força
apresentam ainda o mesmo estatuto formal na teoria: alguns comportam-se de forma mais
estável, outros são mais vulneráveis a certas interferências de contexto, ou a artifícios dos
locutores. Apesar do descompasso no grau de precisão das categorias, pensamos que elas
representam uma contribuição importante para abordar uma racionalidade das atitudes
humanas. Nesse caso, mais do nunca, ao avaliar a compatibilidade entre ação, conteúdo
proposicional e estado mental, estamos, em alguma extensão, mostrando o que pode
representar a seguinte formulação de PEIRCE (1890, p. 5), já citada anteriormente “a maneira
como o conhecimento (saber racional) está relacionado com a ação humana ou conduta
(finalidade racional)”. Certamente, muito ainda há para ser determinado em termos de uma
“finalidade racional”, mesmo porque ainda resta um vasto arsenal de fatores a ser explorado
em termos do papel de convenções e de intenções em todo esse processo.
127
Para maiores detalhes sobre as condições de sinceridade, confira a seção 4.3.1.2.4, à frente.
192
128
A expressão de futuro em relação à enunciação permite que a forma verbal seja morficamente representada,
para o ponto comissivo, por exemplo, no presente do indicativo (Prometo que vou a sua casa), no futuro do
presente (Prometo que irei a sua casa) ou no infinitivo (Prometo ir a sua casa). Por outro lado, formas como
(Prometo que fui a sua casa), ou (Prometo que iria a sua casa) são inaceitáveis no português corrente. Além
do mais, o ajustamento de prometer em uma forma de passado, nos dois últimos casos, nada acrescentaria à
dificuldade em questão; teríamos apenas atos realizados no ponto assertivo.
129
A expressão de passado em relação ao momento da enunciação possibilita que o verbo esteja morficamente
representado no presente do indicativo (Aviso que está chovendo), no presente do subjuntivo (Nego que esteja
chovendo) − em condições especiais − ou no pretérito perfeito/imperfeito (Afirmo que esteve/estava
chovendo).
193
condições têm um caráter genérico e somente podem ser especificadas pelo modo, que
adiciona detalhes quase sempre relativos a restrições
temporais e à origem de sua realização. Vejamos uma avaliação do exemplo seguinte:
(09) “Eu lamento que tenha sido aprovada a reeleição. Uma renovação seria muito boa
para o Brasil.”130
O exemplo acima mostra também dois atos sucessivos: um realiza-se no ponto assertivo,
porque representa um estado de coisas, presumivelmente verdadeiro para o locutor; outro
realiza-se no ponto comissivo, porque retrata um compromisso do locutor com ações a
serem desempenhadas no futuro. No primeiro caso, como
130
Ato proferido por Dom Luciano Mendes de Almeida, ex-presidente da CNBB sobre a aprovação da emenda
da reeleição. (VEJA: 24-04-97, p. 18).
194
conteúdo proposicional fazer-se representar pela forma ‘contratei’; no segundo ato, como
comissivo, as ações acontecem num período posterior ao de sua enunciação; daí o conteúdo
proposicional apresentar a forma ‘contratarei’. Em ambos os casos, o modo de realização
não se faz representar por nenhuma forma performativa própria. Podemos, entretanto, afirmar
sobre o modo as seguintes observações: (i) no caso do ponto assertivo, não se trata do modo
primitivo da força, porque a presença da expressão ‘sim’, não só enfatiza a verdade do fato,
como projeta o modo numa escala superior de realização; (ii) no caso do ponto comissivo,
também sem forma performativa explícita, sabemos que não se trata de uma promessa, mas de
uma ameaça, em razão não das condições de conteúdo proposicional − para ambas vale a
especificação de futuro − que compõem uma e outra, mas das condições preparatórias, como
veremos à frente. O conteúdo central − ‘contratarei (novos jogadores)’ − não é (eticamente)
favorável ao(s) alocutário(s), logo não pode representar senão uma forma de ameaça. 132
131
Pronunciamento de José Gomes da Rocha, deputado do PSD goiano, confirmando o fato de haver contratado
jogadores para o Itumbiara Esporte Clube, com verba de gabinete. (VEJA: 24-09-97, p.18).
132
É claro que o enunciado contém outros vestígios que o colocam na esfera do desafio, da ameaça. Por
exemplo, a reiteração de aspectos da situação passada, considerados incorretos, no futuro (ser presidente, ter
cargo de confiança), além da presença repetida da expressão ‘do novo’.
195
regulam o uso de performativos, por exemplo, represente um avanço considerado nesse campo
(VANDERVEKEN, 1990). Assim, se as nossas ações podem assumir uma feição de
indecomponibilidade, pois um ato só pode ser concebido nessa totalidade em que ele se faz, o
esforço da TAF, no nosso entendimento, tem sido o de mostrar os processos de sua
composição.
133
Fala do pesquisador da Nasa, Henry Moore, comparando o robô Sojourner, em missão em Marte, ao primeiro
homem a pisar na lua. (VEJA, 16-06-97, p. 13).
197
condições em análise, temos um ato bem sucedido. Condições complementares como garantia
para o sucesso de um ato podem ser avaliadas no exemplo seguinte:
134
Fala do ministro Íris Resende, um dia antes de assumir o cargo, sobre operação policial que resultou em morte
de três pessoas num conjunto habitacional em São Paulo. (VEJA: 28-05-97, p. 14).
198
mais ou menos difícil” servem para ilustrar parte das dificuldades que continuam
prevalecendo até para a TAF, como já ficou registrado para alguns dos parâmetros acima e
como veremos ainda mais à frente.
135
Existe ainda um sexto componente que integra uma força ilocucional − graus de sinceridade − que não
iremos, por economia, discutir de forma destacada; mas, quando necessário, faremos algum comentário nessa
seção, já que ele se integra diretamente às condições de sinceridade.
136
Não são comuns, embora possam existir, assumindo sobretudo o valor de ênfase, marcas lingüísticas relativas
às condições de sinceridade, como, por exemplo: Prometo sinceramente ir visitá-lo. Peço honestamente que
faça isso para mim.
199
A força ilocucional de (13) realiza-se no ponto expressivo por representar um estado de coisas
sobre o qual o falante manifesta uma atitude proposicional, −'acho'−. Já (14) reporta uma
força com realização no ponto assertivo, porque reporta um estado de coisas que o locutor
representa como verdadeiro. No primeiro caso, o locutor manifesta sinceridade em relação ao
estado mental de suposição − a atitude proposicional materializada por 'acho' − sobre o
conteúdo proposicional manifestado, mesmo tratando-se de um ato expressivo. A justificativa
137
O sexto componente − representando graus de sinceridade para uma força ilocucional − pode conter uma
interferência direta em questões dessa natureza. Assim, um acúmulo de modos de realização muito próximos não
resultaria em condições de sinceridade distintas, senão em graus distintos dessas condições. Por exemplo, para
realizações do ponto assertivo, quando realizado através de formas performativas como 'afirmar', 'assevera',
'assegurar', 'confirmar'..., seria mais apropriado determinar graus diferenciados da crença do locutor no
conteúdo proposicional.
138
Ato enunciado por Maria Tereza Goulart, ex-primeira dama. (VEJA, 10-12-97, p. 14).
139
Justificativa dada pelo porta-voz da Presidência da República, sobre o fato de Jacques Chirac, Presidente da
França, haver chamado Fernando Henrique Cardoso de presidente do México, alegando que ambos estavam,
pouco antes, conversando sobre o México.
200
é não haver o registro de nenhuma forma que venha contradizer essa condição, isto é, um
segundo estado mental (que não seja o rancor, ou a crítica, até mesmo pela sua situação
história do locutor) que revele uma disposição contrária para o conteúdo em pauta. No
segundo exemplo, o estado mental manifestado pelo locutor poderia comportar duas
perspectivas: (i) uma de confirmação de um estado mental sincero em relação ao conteúdo
proposicional (afinal nada impede o locutor de acreditar na verdade dos fatos que ele reporta
através desse ato); (ii) outra, contrária à anterior, comporta, em razão do julgamento que os
alocutários fazem do seu locutor e das funções que este exerce, a manifestação de um estado
mental insincero por não se acreditar na maneira pela qual o locutor descreve um estado de
coisas. Nessa última interpretação, o ato de fala poderia ser mais adequadamente analisado
como realização de uma força ilocucional no ponto expressivo, por se tratar de uma atitude
proposicional do locutor que lembra mascaramento, atenuação.
compõem uma totalidade, cuja fragmentação tem validade apenas como um esforço
explicativo. Assim, vejamos um outro conjunto de atos:
Podemos considerar os três atos acima como realização específica de uma força ilocucional no
ponto assertivo143 e no modo-injúria. Em cada um dos casos, o modo considerado determina a
condição preparatória de que o conteúdo proposicional asseverado tenha uma natureza
depreciativa: de fato, 'perfeito idiota', 'canalha' e 'bandido ignóbil' traduzem-se como algo
injurioso para os destinatários. Por outro lado, a condição de sinceridade geral estabelece
apenas a necessidade de que o estado mental do locutor corresponda ao conteúdo de cada uma
das proposições: por exemplo, para o locutor de (16) o seu estado mental reflete a verdade do
fato, representado pelo conteúdo 'canalha' e direcionado ao destinatário imediato. Se
nenhuma condição de sinceridade especial puder ser acrescentada a um dos exemplos,
podemos concluir que, em termos da análise desenvolvida, os locutores atuam de modo
semelhante um ao outro, por reproduzirem, em termos da TAF, o mesmo ponto de realização,
o mesmo modo, as mesmas condições preparatórias, idênticas condições de conteúdo
proposicional e finalmente uma única condição de sinceridade. Entretanto, como existe uma
seqüência histórica para o conjunto, podemos admitir que, no caso de réplicas, se o modo de
realização é mantido (modo-injúria), torna-se importante alterar parte das condições
preparatórias acima descritas, pois os replicantes tendem a intensificar o teor do conteúdo
140
Observação do ex-presidente, Fernando Collor, sobre o seu vice, Itamar Franco. (VEJA, 10-12-97, p. 15).
141
A frase representa a réplica feita por Itamar Franco a Fernando Collor em relação a acusação que este lhe
fizera, conforme exemplo (15). (VEJA, 10-12-97, p. 15).
142
A frase representa comentário feito por Ciro Gomes sobre Fernando Collor em relação a críticas que este lhe
fizera. (VEJA, 10-12-97, p. 15).
143
Embora o formato de definição de cada um dos exemplos possa sugerir o ponto de realização declarativo,
não nos parece tratar-se do ato-definição com valor próprio, senão de uma asserção. Assim, quando uma teoria
define um termo, a definição tem o valor de uma lei, de uma regra que vale universalmente para a teoria; além
disso, aquele que define precisa estar investido de autoridade (condições preparatórias) no campo conceitual da
teoria, para proceder à execução de tal ato.
202
144
Há uma tréplica nesse episódio que, se não representa uma intensificação da calúnia, pode transferir o seu
teor para outros estados de coisa: "Peço-lhes que introduzam nos seus aconhegos as agressões que me fazem."
Fala de Fernando Collor rechaçando os comentários de Itamar Franco e de Ciro Gomes (VEJA, 10-12-97, p. 15)
203
uma força ilocucional.145 Na discussão dos dois parâmetros, procuramos enfatizar a sua
dimensão conceitual, a partir da análise de alguns casos específicos. A razão desse recorte
deveu-se à necessidade de selecionarmos o que, de fato, fosse mais representativo para a
correlação que foi desenvolvida e, nesse particular, os parâmetros escolhidos compõem os
fundamentos constitutivos da teoria. Algumas observações complementares tornam-se
necessárias ao caráter de funcionamento desses componentes.
145
Esse recorte proposto na explicação da teoria excluiu da reflexão acima outros aspectos importantes para o
seu funcionamento, como a definição de forças primitivas, o conceito de sucesso e satisfação de uma força, a
questão da identidade entre forças ilocucionais e toda a discussão dos ajustes formais da sua construção.
204
representamos esse ato futuro, como se faz no português, ou por uma forma verbal de
infinitivo, ou por uma de presente, ou por uma de futuro, estamos determinando apenas uma
dimensão imanente do ato de prometer nessa língua. O mesmo podemos dizer da
especificação do modo de realização de uma força ilocucional: o modo-injúria que analisamos
pode, mesmo com escalas diferentes, conter um caráter transcendental, pois é possível supor
que o contraste elogiar/caluniar tenha uma extensão universal nas línguas. No entanto, ao
menos em princípio, a realização lingüística do modo-injúria poderá ser diversamente
representado, considerando-se línguas particulares. A sua expressão em português, por
exemplo, se faz por formas gradualmente distintas através de verbos como 'caluniar',
'injuriar', 'denegrir', 'acusar', 'censurar', 'criticar', 'escrachar', 'esculhambar',
'esculachar', cuja correspondência pode não ser mantida de uma língua para outra, de uma
cultura para outra. 146
146
É discutível se todas essas formas verbais contêm um uso performativo, pois não é certo que possamos
submeter cada uma delas ao padrão que conhecemos sobre o funcionamento performativo para alguns. Assim,
podemos, com certeza, obter 'Acuso-o por ter se comportado indevidamente." (plenamente aceitável também
com censurar e criticar), mas pouco natural para os demais. Assim, se exemplos como 'Denigro-o pelo
comportamento apresentado.' ou 'Escracho-o por ter feito isso.' não parecem naturais na língua, pois tais
verbos teriam apenas um valor proposicional, isto é, o de reportar escalas diversas de calúnia.
205
147
Um aproximação entre a formulação de Peirce e a TAF é mais do que mera coincidência. Não nos
preocupamos em justificar o trabalho de Peirce sobre o pragmatismo na perspectiva de um fundamento para a
TAF. O objetivo do nosso trabalho não foi o de reconstruir as raízes dessa teoria. É importante salientar,
entretanto, que componentes essenciais à TAF aparecem de forma explícita no texto de PEIRCE (1977), por
exemplo: "A asserção consiste no fornecimento de evidência pelo elocutor ao ouvinte de que o elocutor acredita
em algo, isto é, acha que uma certa idéia é definitivamente compulsória numa certa ocasião." (p. 90). O fato
citado equivale ao que a teoria define por condições de sinceridade para uma asserção.
148
Confira PÊCHEUX (1969, p. 18-9), conforme citação na nota 98 anterior.
149
Em linhas gerais, VANDERVEKEN (1990) tem se referido às dificuldades que conduziram, precisamente,
ao desdobramento dos lugares enunciativos: "Of course, in our human linguistc games and other forms of life,
there are certain features which are pervasive and essencial for the use of language, such as (....) the speaker
and hearer of a context of utterance, (...) the relative status of the protagonists of the utterance, what is against
and in their interest (...)." (p. 123).
206
Os traços essenciais de um ato de linguagem incluem: (i) o fato de ser um ato inter-
enunciativo que envolve a relação entre quatro sujeitos; (ii) o encontro imaginário de dois
universos de discurso; (iii) uma totalidade que inclui processos de produção e processos de
interpretação e os componentes listados em (i) e (ii).
O primeiro traço − (i) o fato de ser um ato inter-enunciativo que envolve a relação
entre quatro sujeitos − dissolve as possibilidades hegemônicas dos lugares enunciativos, além
de introduzir o teor de assimetria entre os seus diversos integrantes. Em cada um deles
competem, ao menos, dois sujeitos que se articulam num jogo de sentidos implícitos e
explícitos, de intenções e de convenções, de relações imaginárias e empíricas. Seguindo o
150
Mantivemos aqui a tradução literal do termo l'acte de langage, até mesmo para confrontar com o conceito de
ato de fala (speech act), anteriormente analisado. Parâmetros usados para definir um e outro conceito, no interior
das duas abordagens, diferem entre si, mas o resultado final pode ser compatibilizado, isto é, podemos melhor
especificar as circunstâncias enunciativas de atos de fala, a partir do esquema proposto para análise de atos de
linguagem.
207
padrão do autor, podemos representar essa duplicidade dos lugares enunciativos no seguinte
esquema:
(a) EUc (sujeito comunicante) / EUe (sujeito enunciador): EUc é o sujeito que
produz a fala e que também projeta a existência de um EUe como suporte
imaginário de sua fala. EUe, ao representar a imagem de um enunciador criada por
EUc, transforma-se num emissor ad hoc, incumbido de dar curso ao processo
enunciativo; EUe é um ser de discurso, resultante de projeções intencionais de
EUc, e se faz sempre presente no ato de linguagem. O esquema de produção da
fala, decorrente dessa bifurcação enunciativa, convive com a possibilidade de
uma integração, se os dois sujeitos se identificam; ou com a de um fracionamento,
se os dois sujeitos não se identificam. Da possibilidade de identificação ou não
entre as duas instâncias decorrem, como veremos adiante, justificativas para
fundamentar a existência de atos de linguagem distintos.
151
Substituímos a designação original do autor pelos seus correspondentes em português. Assim, EUc e EUe
substituem suas formas originais, JEc, JEé, na sua formulação. Nos lugares do alocutário (TUd e TUi) existe
coincidência entre as fórmulas.
208
discurso, a sua existência só pode ser reconhecida no circuito da fala e, por isso
mesmo, se faz integrante de todo ato de linguagem. TUi, por sua vez, é um ser
fora do circuito de fala produzida por EU, pois é um sujeito empírico que se
responsabiliza pelo processo de interpretação. Enquanto TUd é o resultado das
intenções de EU, TUi é indiferente a elas e sua existência depende dele mesmo,
TUi, à medida que formula uma interpretação. A assimetria entre destinatário e
interpretante comporta também as duas possibilidades: integração, quando ambos
se fazem equivalentes, fracionamento, quando se fazem distintos. No processo
interpretativo, no entanto, mesmo quando houver uma identidade entre TUi e TUd,
este pode não corresponder ao conjunto das intenções de EU, quando o projetou.
A aproximação entre essas duas instâncias interpretativas também produz efeitos
distintos sobre os atos de linguagem.
EUe TUd
EUc TUi
Md 152 = circuito interno
Mo = circuito externo
O circuito interno constitui-se de dois sujeitos que representam apenas seres do discurso por
materializarem projeções do sujeito comunicante. Além do mais, esse circuito representa um
universo de discurso que pode, ao mesmo tempo, ser um simulacro de um mundo
psicossocial, ou um instrumento de acesso a ele. O circuito externo faz-se constituir por dois
sujeitos que atuam sobre um universo psicossocial, um como responsável pela processo de
152
Convertemos também os termos originais usados por Charaudeau para indicar o circuito interno e o circuito
externo dos atos de linguagem. Assim, Md (mundo do discurso) e Mo (mundo dos objetos) são equivalentes a
ILx e ILo, respectivamente, no formulação original do autor.
209
“À quoi il faut ajouter que le monde qui est parlé para ces sujets - et que nous
désignons par IL - a une double représentation selon qu’il est considéré dans le
circuit de parole (ILx), ou dans le circuit externe à celui-ci comme témoin du réel
(ILo).” (p. 47)
ato de linguagem
EUe TUd
EUc TUi
Md = circuito interno
Mo = circuito externo
EUe TUd
Md = circuito interno:
EUc cuidados ‘sanitários’ no combate a TUi
surtos de infecção
153
Pronunciamento de Rubens Feferbaum, chefe da UTI neonatal do Hospital das Clínicas de São Paulo, sobre
medidas para combater os surtos de infecção hospitalar, responsáveis pela morte de recém-nascidos. (VEJA, 10-
12-97, p. 15).
154
A correlação implicativa (Se P, então Q) entre esses dois circuitos da fala, em função do conteúdo
proposicional expresso, pode ser ajustada da seguinte forma: <Se há surtos de infecção matando recém-nascidos
(Mo = P), então é necessário cuidados sanitários para combater tais surtos (Md= Q)>.
212
identificação entre os dois integrantes aqui é desejável, porque a instância produtiva pretende
levar adiante aquilo que é o objeto da denúncia: morte de recém nascidos por condições
higiênicas precárias; (iii) TUd é o destinatário criado por EU, isto é, os próprios colegas
submetidos às condições vigentes e que, circunscritos ao circuito interno, devem dele extrair
efeitos práticos, como ‘lavar as mãos com água e sabão’ e ‘mudar a cor da cara’; (iv) TUi,
por sua vez, ao submeter-se ao circuito externo, não está sujeito aos efeitos práticos
mencionados, mas representa aquelas instâncias que extraem da denúncia um outro tipo de
efeito prático, ou seja, aquele caracterizado pelos surtos letais; TUi tem uma extensão maior e
pode representar a própria sociedade, ou especificações dela como imprensa, sindicatos etc; é
ele quem sustenta, com críticas, com explicações, a sobrevida da denúncia. Desse modo, a
hipótese de uma identidade entre TUi e TUd deve possibilitar que TUd se converta a TUi (e
não o inverso), situação em que TUd se torna um crítico da situação − sem precisar lavar as
mãos nem mudar a cor da cara. Essas considerações nos levam ao seguinte esquema:
O esquema acima requer observações adicionais, a fim de caracterizar algumas relações que
representam as condições estruturais de atos de linguagem e aquelas que reportam diretamente
ao funcionamento de um ato particular. No primeiro caso em análise, detalharemos os
aspectos que se relacionam à estrutura de um ato, isto é, o papel desempenhado pelos
interlocutores, bem como os traços contingenciais − as intenções acionadas em cada uma de
suas etapas de desenvolvimento. Os dois aspectos justificam a existência do ato-denúncia, em
contraste com outros atos específicos. Cada um dos itens do esquema comporta as seguintes
explicações:
característica que serve para assegurar o valor contingencial que assume nas práticas
discursivas. Trata-se da intenção que é acrescentada ao funcionamento do ato e que lhe
determina uma orientação argumentativa possível. No ato presente, a orientação supõe
a validade de `Q` − ‘cuidados ‘sanitários’ no combate a surtos de infecção’ − como
um argumento válido para a superação do ato-denúncia. Entretanto, como denúncias
se fazem representar por outros formatos discursivos, já que poderíamos supor que elas
viessem apenas reportar um certo estado de coisas indesejável − por exemplo, o uso do
conteúdo de `P`, ‘existência de surtos de infecção (que têm matado recém-nascidos
em hospitais)’ −, então seria importante assinalar que elas comportam outras
intenções, capazes de especificar outras orientações argumentativas. Assim, ao assumir
`P` como expressão manifesta de uma denúncia, estamos assumindo-o também como
argumento válido para constatar tal denúncia e não para superá-la.
c) O item (iii) apresenta um outro padrão estrutural, determinado pela dupla atitude
que o sujeito-interpretante pode manifestar diante de qualquer ato de linguagem, isto é,
‘TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’’. Supomos relevante, no plano da estrutura de
um ato, sustentar essa dupla prerrogativa para TUi, já que qualquer tipo de ato, pelo
214
(19) “Partido que não tem candidatura própria é igual a time de futebol que não disputa
campeonato. Perde a torcida.” 156
EUe TUd
Md = circuito interno:
EUc partidos sem candidatos próprios TUi
perdem eleitores
Mo = circuito externo:
O PDT pode fazer alianças para as
futuras eleições 157
155
Julgamos que uma formulação mais apurada da estrutura do processo enunciativo, com vistas à avaliação de
um quadro mais geral de atos de linguagem, está ainda a requerer um recenseamento mais preciso de tipos de
atos existentes e dos limites e critérios que devemos sutentar na construção de uma tipologia.
156
Justificativa de Alceu Colares, recusando alianças do PDT com o PT nas próximas eleições. (VEJA, 17-12-
97, p. 15).
157
No presente exemplo, a correlação entre os dois circuitos pode ser formulada do seguinte modo: < Se o PDT
fizer alianças para as futuras eleições (Mo = P), então o PDT não terá candidatos próprios e perderá eleitores (Md
= Q)>.
216
a) No item (i), EUc pretende que ‘Q’ seja um efeito ilustrativo para ‘P’ que é uma
suposição admissível no âmbito de partidos políticos, ou seja, a possibilidade de se
fazerem alianças. A intenção presente, portanto, refere-se à necessidade de se validar o
conteúdo expresso por ‘Q’ como uma conseqüência plausível para o ato em questão. A
plausibilidade de um argumento para justificativas deve ser entendida como um fator
favorável ou desfavorável a realização de um ato. Para o ato em análise, assumindo-se
‘P’ − ‘o PDT pode fazer alianças para as futuras eleições’ −, ‘Q’ deve ser ressaltado
como um argumento desfavorável, ao menos em relação à parte do conteúdo
proposicional − ‘perderá eleitores’ −, que revela a verdadeira intenção do ato. Por
conseguinte, justificativas podem ser formuladas de modo adverso, já que argumentos
podem vir a tornar-se plausíveis, embora sendo contrários e desfavoráveis à realização
de um ato.
217
Os comentários descritos nos três itens acima, em termos das intenções que qualificam
parte das relações entre os interlocutores, procuram apontar alguns aspectos que possibilitam
distinguir o ato-justificativa de outros atos. Admitimos a existência de aspectos que permitem
confrontar justificativa com mentira ou com equívoco, exatamente pelo fato de estes últimos
sustentarem sua argumentação em premissas falsas, intencionalmente construídas ou não. É
evidente, porém, que mentira e equívoco somente se revelam como tal, à medida que
detectamos a falsidade de uma das premissas. Qualquer interpretação que possamos propor
para um ato não deve, portanto, ser considerada como a única forma de seu funcionamento
218
(20) “Existe uma crise horrível, que abala os alicerces do governo, e ele fica por aí
conversando com o Maluf.” 158
EUe TUd
Md = circuito interno:
EUc conversas do presidente com o Maluf TUi
não resolvem a crise
Mo = circuito externo:
o país está passando por uma séria
crise 159
158
Comentário da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), criticando FHC por se encontro com Paulo Maluf. (VEJA,
25-06-97, p. 14).
159
Podemos determinar a relação implicativa presente no quadro, do seguinte modo: < Se o país está passando
por uma séria crise <(Mo = P), então conversas com o Maluf não ajudam resolver a crise (Md = Q)>.
219
160
A classificação do exemplo (20) como ato-reclamação não deve ser considerada a única forma possível de
qualificá-lo. Poderíamos, por exemplo, aproximá-lo do ato-crítica, desconsiderando que entre os dois possa
existir uma demarcação clara. Os aspectos mais visíveis que apontamos para a reclamação − o fato de ‘Q’
representar um conteúdo negativo, a pretensão que o teor de ‘Q’ seja superado − são também extensivos à
crítica.
220
a) Em (i) especifica-se que o conteúdo ‘Q’, que é transmitido a TUd, deva caracterizar
um estado de coisas cujos efeitos práticos derivados se mostram desfavoráveis, ou
inconvenientes a supostos destinatários da ação. Desse modo, devemos entender a
intenção de validar ‘Q’, assumindo-o como algo que retrata um comportamento, um
valor indesejável, ao menos para a relação estabelecida com ‘P’. Reclamações, de um
modo geral, reproduzem fatos que incomodam pela sua presença incompatível com
estados de coisas previamente admitidos, como ‘P”, no exemplo. Nesse particular, o
ato-reclamação opõe-se ao ato-elogio, por apresentar este um conteúdo favorável ao
estado de coisas ao qual se acha vinculado.
b) O item (ii), ao representar a interpelação de TUd por EUe, mostra ‘Q’, em razão do
seu valor indesejável já descrito, como conteúdo que EUc espera, seja corrigido no
curso do tempo. A influência que EUc pode exercer sobre TUd foi traduzida em
termos de uma intenção que expressamos através de alertar − e não mais convencer −,
já que uma reclamação não implica que o seu destinatário seja, necessariamente, o
canal adequado para sua superação. Logo, não devemos supor que a interpelação sobre
TUd seja da ordem do convencimento, já que nem sempre é ele a instância apropriada
à correção de ‘Q’. Entretanto, reclamações podem conter uma orientação específica
para a solução de problemas, quando recorrem à postulação de um TUd que, nesse
caso, deve assumir o papel de interpretante, ao qual conferimos, publicamente,
autoridade na execução de certas tarefas.
EUe TUd
Md = circuito interno:
EUc presidente francês troca Brasil com TUi
México
Mo = circuito externo:
desprezo pelo conhecimento de fatos
de países do terceiro mundo 162
A análise de (21) pode nos mostrar alguns aspectos distintos de funcionamento desse quadro,
se o comparamos aos anteriores. Gostaríamos antes, porém, de fazer nesse caso −o que
também poderia ter sido feito para os demais − uma pequena incursão sobre sua dimensão
como ato de fala. Como tal, o presente ato realiza-se no ponto declarativo e modo-
designativo, o que lhe confere o poder de o objeto em questão, Fernando Henrique Cardoso,
161
Proferimento de Jacques Chirac, presidente da França, em encontro na Guiana com Fernando Henrique
Cardoso. (VEJA, 10-12-97, p. 14).
162
A correlação entre os dois estados de coisa do quadro representa: <Se há desprezo pelo conhecimento de
fatos de países de terceiro mundo (Mo = P), então presidente francês troca Brasil por México (Md = Q)>.
222
ser assim designado − ‘presidente do México’ − a partir de sua enunciação. Como se trata de
um desprezo − ou de um equívoco, como veremos com outra perspectiva de análise −,
voltemos aos atos de linguagem para aferir os efeitos práticos que decorrem de um
descompasso entre os sujeitos componentes do evento discursivo.163 Assim, EUc identifica-se
com o seu enunciador, EUe, ainda que os pressupostos de EUc possam conter outras intenções
capazes de modalizar o proferimento de EUe e fazê-lo depreciativo ou transformá-lo em erro,
por exemplo. Por outro lado, o esforço de EUc em fazer com que TUd − o presidente que está
sendo saudado naquele momento − identifique-se a EUe não prevalece por romper com a
pressuposição existencial, a de que, no momento da enunciação, as designações Fernando
Henrique Cardoso e presidente do Brasil pressupõem o mesmo referente. Assim, um ato que
rompe com uma pressuposição dessa ordem desfaz o vínculo ideal de manutenção da
submissão de TUd às intenções de EU. O resultado dessa ruptura é que TUd se iguala a TUi e
este, como um interpretante de todo o processo e vendo-o do seu exterior, já que não integra o
circuito interno da fala, além de detectar o equívoco também pela falha da pressuposição,
ainda pode acrescentar-lhe intenções e admiti-lo como desprezo. Esse procedimento de
análise, considerando-se o jogo de relações interlocutivas, pode apontar diferenças entre um
ato de linguagem e um ato de fala. Ainda que o resultado final possa ser parcialmente o
mesmo, o processo enunciativo que nos leva a detectar os efeitos práticos do ato − equívoco,
desprezo − se enriquece, quando acionamos intenções e comportamentos dos personagens que
desdobram cada um dos lugares da enunciação. Por essa razão, estamos convencidos de que a
conjunção desses dois objetos conceituais − as duas vertentes de atos lingüísticos
consideradas na presente abordagem − parece, mais do que nunca, um instrumento para
alcançar o que Peirce denomina como “totalidade dos efeitos práticos”. Em resumo, as
relações enunciativas, acima descritas, podem ser organizadas no seguinte esquema:
163
Quanto à TAF, uma possibilidade de análise seria considerar o equívoco como o fato de um ato ser mal-
sucedido. Se tem essa característica, então é preciso nele identificar o defeito que o levou a ser assim constituído.
Repassando de memória os componentes da teoria, retemo-nos nas condições de sinceridade ou nas condições
preparatórias. Se o defeito está nas condições de sinceridade, o proferimento em questão não revela o estado
mental do falante: ele registra o estado mental de que Fernando Henrique Cardoso é presidente do Brasil, e o
saúda como presidente do México. Entretanto, é difícil supor que uma questão protocolar de saudação, seja
propícia à manifestação de descortesias desse porte. Passemos, pois, às condições preparatórias: ato falha ao
romper com uma pressuposição existencial que identifica Fernando Henrique Cardoso a presidente do Brasil.
Aqui parece localizar, de modo mais sensato, a origem do equívoco.
223
b) Em (ii), EUe interpela TUd através de ‘Q’, que representa, como visto no item
anterior, um estado de coisas depreciativo para o destinatário. Outros atos também
implicam conteúdo negativo em ‘Q’, mas o desprezo requer a condição complementar
de que tal conteúdo seja dirigido a um possível destinatário, ou a um estado de coisas
que ele integra. Essa condição adicional conduz a orientação argumentativa,
representada pela intenção de humilhar. O ato-elogio que destaca a intenção de
enaltecer também exige a mesma condição complementar, apenas orientada com
valores opostos.
224
c) O item (iii) reproduz as mesmas prerrogativas gerais de outros atos para TUi: trata-
se da instância enunciativa apropriada ao rompimento das ações que garantiram certa
fluição do ato-desprezo. Se TUi refuta a orientação argumentativa apresentada, ele o
faz, descredenciando as pretensões de EUc em humilhar o destinatário. Se assume a
argumentação, ele aceita as pretensões à validade de Q, engendradas na criação do ato.
Não há, com certeza, um padrão definido que direcione TUi à rejeição do argumento
de EUc, a não ser nas circunstâncias em que o desprezo alcança diretamente a esfera
do interpretante como um alvo selecionado. Contrariamente, a aceitação do desprezo
deve implicar neutralidade de TUi diante da orientação argumentativa em (ii).
A estruturação dos atos atende, como temos visto, a um padrão geral de relações e de
princípios, insuficientes na tarefa de caracterizar atos particulares, os quais têm sido
explicados com base na especificação de intenções e até de condições especiais sobre o
conteúdo proposicional, como mostramos para o caso presente. Há atos, todavia, que mesmo
depois de justificados por padrões específicos acabam se mantendo numa situação ambígua.
Assim, nada impede que possamos avaliar tal ato também como um equívoco, já que sua
enunciação permite derivar um efeito prático de que EUe cometeu, involuntariamente, um
erro, uma gafe. Vejamos uma reanálise do ato com base em outros padrões que devemos
introduzir para sua compreensão:
EUe TUd
Mo = circuito externo:
presidente francês sabe que o Brasil
não é o México 164
164
Além da alteração de parte do conteúdo dos dois universos, também alteramos a relação entre eles. Assim,
obtemos ‘P, mas Q’: < Presidente francês sabe que o Brasil não é o México (Mo = P), mas confundiu o
presidente do Brasil com o do México (Md = Q) >. Um levantamento mais extenso de atos de linguagem nos
levará, com certeza, à formulação de outros padrões de relações além das duas até agora discutidas.
225
165
Por outro lado, se fortalecermos a dimensão intencional do ato, introduzindo, voluntariamente, uma intenção
específica, gerando, pois, outra orientação argumentativa, correríamos o risco de convertê-lo, de novo, em
desprezo, por exemplo.
166
Uma intenção assim determinada − descrever, relatar, transmitir − constitui mais um pressuposto para
qualquer forma de ato, do que um componente adicional, capaz de imprimir ao ato uma orientação argumentativa
precisa.
226
c) Em relação a (iii), devemos alterar parte do padrão usado para analisar outros atos,
porque a TUi só podemos associar a condição de refutar o conteúdo de ‘Q’, como
válido para a descrição de um estado de coisas. As
condições de atuação do sujeito-interpretante indicam que ele dispõe do conhecimento
da relação ‘P, mas Q’ e, por essa razão, descarta qualquer pretensão à verdade para
‘Q’. Por mais recursos que sejam necessários para considerar ‘Q’ como falso, a
227
instância de TUi deve ser capaz de fazê-lo, pois, do contrário, teríamos o equívoco
assumindo o valor de uma verdade. Para equívocos transparentes − como a troca de
nomes no exemplo − sua constatação é imediata e o próprio TUd assume a função de
interpretante, denunciando-o.
representar um outro patamar de discussão, como o fizemos em relação a alguns casos, para
os problemas afeitos a uma construção do pragmatismo.
Existem, todavia, razões locais que diferiram de um momento para outro no confronto
e que significaram uma avaliação funcional mais detalhada de procedimentos de análise.
Quando retomamos o pragmatismo. através dos atos de fala, o objetivo central era analisar os
atos, como instância portadora de um quadro geral das condições que permitem converter
linguagem em ação. Quando se procedeu à retomada do pragmatismo, via atos de linguagem,
o interesse deveu-se ao fato de os atos serem fundamentados em procedimentos de análise que
consideram interações entre os componentes do processo enunciativo. O que fizemos,
portanto, foi inserir, no contexto do pragmatismo discutido por Peirce, duas ordens de
questões: uma construída em termos do resultado da atividade de locutor e alocutário − atos
de fala −, outra fundamentada em termos de divergências e convergências entre instâncias
enunciativas − atos de linguagem −.
no campo dos efeitos práticos, uma racionalidade que seja a expressão maior de todas as
condutas práticas do homem. Ao avaliarmos cada uma das abordagens, estivemos
preocupados em resgatar princípios, orientações e formulações que nos levassem a uma
especificação singular desse problema. Disparidades técnicas e conceituais na formulação de
um objeto próprio de análise, entretanto, não fizeram delas organismos incompatíveis, quando
o objetivo central era o de mostrar o esforço na construção dessa racionalidade. Na seqüência,
pretendemos reativar alguns aspectos que representaram, no decorrer de toda discussão desse
capítulo, o motivo maior da análise, ou seja, a possibilidade de uma fundamentação racional
do comportamento.
Não existem razões plausíveis que nos levem a admitir que a nossa conduta sobre o
universo não seja tributária da compreensão que dele construímos. Ao contrário, o que
elaboramos em diversos estágios, fizemo-lo em razão de uma economia do agir, de uma
economia que permite ajustar a qualidade e a quantidade daquilo que compõe o nosso
comportamento. Das formas mais elementares de atuação, às mais elaboradas, estamos
sempre em busca de caminhos menos espinhosos, de um dispêndio menor de energia, de uma
execução mais rápida das tarefas. Ainda que venhamos, por algum tipo de motivação
esporádica, a contrapor-se à “lei do menor esforço”, ao “princípio da alavanca”, procedemos
230
desse modo por anomalia, o que irá requerer de nós cuidados extremos, maior gasto de
energia, mais desperdício de tempo. Ao caminharmos numa direção da experiência imediata,
defrontamos com uma questão proposta por Peirce, a de que o pragmatismo não deve ser visto
como uma espécie emanação do propósito concreto; ele estipula condições para o agir
racional, mas ele não é uma legislação sobre esse agir, já que não tem nem poder regulador,
nem poder censório. Em resumo, não é a conduta concreta que regulamenta a existência do
pragmatismo, mas é este que dispõe sobre os princípios de racionalização daquela. As
observações que associamos ao texto de Peirce abordaram a questão das condutas, sem
especificar as condições de sua realização. Como fica, então, o agir assim descrito quando o
meio de sua realização é a linguagem ?
Se assumimos uma promessa como exemplo, podemos dizer que a sua condição de
conteúdo proposicional − ação futura a ser desempenhada pelo locutor − expressa um teor de
necessidade, pois não conhecemos tal ato cujo valor proposicional descrito não seja o
desempenho futuro em relação ao momento de seu proferimento. Por outro lado, mas ainda
em relação à promessa, existe um aspecto das condições preparatórias que assegura que a ação
a ser realizada deva ser benéfica ao alocutário. É evidente que temos algum padrão de
julgamento entre o que pode ser bom ou ruim para alguém, mas esse padrão não tem o mesmo
231
Falar dessa racionalidade, todavia, não é assegurar a realização de um ato de fala, nem
afirmar que todo ato não realizado é, por definição, irracional. Nem promessas, nem ordens
deixarão de ser realizadas pelo simples fato de a sua racionalidade conter o princípio ético de
que uma promessa, formulada em condições apropriadas, deve ser realizada e que uma ordem,
respeitando condições adequadas, deve ser cumprida. As possibilidades de rompimento de tais
contratos de fala não colocam em dificuldade a TAF, pois ela não é um manual de condutas
práticas que prescreve e normatiza atos, mas um construto que justifica as condições ideais de
sua realização. Como teoria, ela se obriga também à descrição das condições adversas que
167
Em português, temos o uso do verbo ‘prometer’ em formas usuais como ‘Prometo quebrar-lhe a cara’.
Não se trata, com certeza, de uma promessa, precisamente, por violar a condição preparatória em análise, mas
232
a) enquanto na mentira existe uma oposição entre aquilo que EUc pensa e aquilo
que EUe diz, no equívoco o que EUe diz é idêntico ao que EUc pensa como
verdadeiro. Assim, compreender a mentira significa, nesse momento, identificar,
no lugar do locutor, uma contradição entre as duas instâncias. A compreensão de
um equívoco, por outro lado, não pode ser determinada a partir de qualquer
discrepância no lugar do locutor;
b) enquanto na mentira o que EUe diz é assumido por TUd como verdadeiro, no
equívoco ou TUd assume, ou refuta o que lhe foi dito por EUe. A mentira não será
revelada, portanto, no circuito interno da enunciação, mas o equívoco pode ser aí
solucionado se o desajuste proposicional referir-se diretamente ao sujeito
destinatário. Logo, romper com a mentira é muito mais complexo do que com o
equívoco: aquela foi elaborada na instância de EUc para funcionar como verdade,
o equívoco pode ter sido um mero descuido de EUc;
c) enquanto na mentira TUi refuta o que é assumido por TUd, logo ele assume o
que EUc pensa e não o que EUe diz, no equívoco TUi refuta o que é assumido por
TUd (ou assume o que é refutado por ele). Nesse plano, a mentira é desvelada
pelas condições que o sujeito interpretante reúne para alcançar aquilo que o sujeito
comunicante pensa. O equívoco, se não foi ainda desvelado pelo sujeito
destinatário, será superado pela ação do sujeito interpretante no circuito externo
do discurso.168
As observações acima mostram, de modo funcional, a diferença entre dois atos de linguagem,
comumente presentes na nossa atividade discursiva. Os parâmetros implementados nessa
análise não devem ser considerados como forma de instrumentalização extravagante para o
168
De modo sintético, podemos reproduzir, para as quatro instâncias enunciativas, as comparações acima em
dois esquemas:
a) mentira: EUc pensa ~P b) equívoco: EUc pensa P como verdadeiro
EUé diz P EUé diz P
TUd assume P TUd assume P (ou refuta P)
TUi refuta P (ou assume ~P) TUi refuta P.
No caso presente, o equívoco está sendo considerado apenas em relação ao lugar do locutor. Existem equívocos
que podem ser gerados pelo lugar do alocutário, isto é, resultantes de uma interpretação inadequada.
234
pragmatismo: é possível que práticas interativas comandadas pela mentira ou pelo equívoco já
tenham sido definidas de tantas outras formas. Entretanto, o esquema que a Semiolingüística
propõe ressaltar uma vantagem: ele constrói padrões de estruturas que permitem localizar, no
jogo enunciativo, os efeitos decorrentes de certos atos discursivos: por exemplo, a fonte da
mentira, o seu percurso no processo, o lugar de seu desvelamento.
Por fim, esse quadro de análise, embora aqui apenas esboçado em suas linhas gerais,
representa um avanço na formulação de uma proposta capaz de fundamentar a necessidade de
exigências racionais para práticas ordinárias. Além do mais, a possibilidade de justificar
racionalmente o vínculo entre princípios ordenativos e práticas discursivas, requer que
avancemos na compreensão do processo enunciativo subjacente a essas práticas. Nas
circunstâncias atuais, é inconcebível supor que condutas práticas mediadas pela linguagem
possam ser dissociadas do seu processo de enunciação e nesse sentido as propostas analisadas
representam ambas uma contribuição importante na explicitação de um viés funcional para o
pragmatismo.
235
5 CONCLUSÃO
236
5. CONCLUSÃO
Diante do conjunto complexo de dados que compõem a natureza dos objetos, sobre o
qual o percepto investe, é possível admitir que alguma orientação deva direcionar a sua
atuação. Entretanto, é necessário acrescentar um detalhe a essa suposição: a atuação do
239
percepto precisa ser diferenciada, pelo menos, em duas circunstâncias a que ele se aplica.
Quando o faz na direção de um objeto inaugural da nossa experiência sensível e que ainda não
se inclui na esfera de nosso conhecimento, sua aplicação deveria orientar-se pela captura de
traços capazes de construir um esquema geral, um arcabouço de estrutura desse objeto. Tal
procedimento nos resguardaria de equívocos futuros sobre a compreensão de um objeto, bem
como de desgastes contínuos de sempre reaprendê-lo. Por outro lado, quando se aplica ao
reconhecimento de um objeto, que já pertence ao nosso domínio conceitual, ele deve
reconhecê-lo pela configuração prévia que dele possuímos, assim como captar dados
idiossincráticos nesta circunstância de percepção. Tal procedimento tornaria inesgotável a
possibilidade de enriquecimento contínuo de um objeto, aumentando sempre a compreensão
sobre ele. Por exemplo, a percepção de um ‘poste’ pode revelar fatos diversos: no primeiro
caso acima, a percepção deveria orientar-se pela posição espacial − [verticalidade] −, pela
forma − [haste (cilíndrica)] −, pelo tamanho − [extremidade superior muito acima do alcance
das mãos e da cabeça de pessoas] − e, finalmente, por um valor mais complexo, a função, que
requer a reunião dos traços precedentes em associação com um outro fator − [cabos de
energia] −, resultando, pois, o seu conceito funcional, isto é, [fixar cabos de energia em
posição vertical e fora do alcance das mãos e da cabeça de pessoas].169 Se o percepto opera
com algum padrão de seleção, podemos afirmar que, no caso do presente artefato, categorias
como cor, natureza do material, localização devem ser excluídas dessa primeira
experiência com ‘poste’, já que nada acrescentariam à necessidade que temos de estabilizar o
seu padrão conceitual . Experiências subseqüentes com esse objeto nos conduziriam a apurar,
de forma crescente, a possibilidade de compreensão de indivíduos da classe-poste − ‘postei’,
‘postej’ −, ou de subclasses da classe − ‘postes de cimento/postes de ferro’, ‘postes
cilíndricos/postes sextavados’, ‘postes brancos/postes pretos’... −, através da captação de
outras categorias como natureza do material, forma, cor, ou de uma especificação daquelas já
presentes no domínio do conceito, que atuariam como complemento da estrutura básica.
169
A complexidade do conceito de função, quando a associamos a um projeto inscrito num objeto artefato,
deve-se ao fato de ela representar a projeção de um objeto sobre outro, mediada por uma predicação específica.
No caso em análise, obtemos ‘fixar (poste, cabos elétricos)’. Se tivéssemos um ‘saca-rolhas’, ‘lápis’,
deveríamos formular ‘extrair (saca-rolhas, rolhas)’, traçar (lápis, papel)’.
240
170
A discussão proposta contra abordagens semânticas orientadas pela composicionalidade de categorias aponta,
diretamente, para esta questão. O argumento decisivo costuma questionar o fato de definições necessárias e
suficientes serem defeituosas por excluírem de uma classe os seus membros anormais que são regularmente nela
incluídos. Assim, o fato de se considerar um pássaro como portador de categorias como [bípede], [bi-alado], [ter
bico] [ter penas], não significa que a obliteração de uma dessas propriedades o exclua do domínio-pássaro.
241
Todos os dados que alcançamos por meio de operações do percepto devem ser retidos
e transformados em informações que estruturam nossa atividade cognitiva. Assim, o domínio
da cognição deve representar a inclusão de procedimentos de formulação, como tentativa de
racionalizar as informações, de dotá-las de princípios organizacionais, de construir-lhes
algum padrão lógico. Esse formato que o conhecimento assume no plano da cognição implica
transcender o patamar de mera sensação e de percepção, porque já se compromete com a
estruturação e com a organização das informações. Nessa perspectiva, analisamos, no
Capítulo 2, alguns formatos para a estruturação de conceitos, destacando modelos de
atomização conceitual, sobretudo predicação e composicionalidade, bem como modelos de
‘membramento’ conceitual, com base no critério de pertinência em diversas dimensões
(clássica, difusa e prototípica). Tais critérios, embora pensados em circunstâncias diversas
como formação de conceitos, não devem ser admitidos como excludentes e contraditórios
171
Uma categoria como cor, por exemplo, excita o percepto de forma imediata, na condição de uma qualidade
de sensação para um leque muito grande de objetos. Tal fato não pode ser usado como uma justificativa direta
para afirmar que cor deva ser um traço da essência de um objeto, se bem que existem casos, onde cor tem um
papel fundamental. Por exemplo, a percepção da cor em ‘roupas’, ‘paredes’, ‘balões’ não é fundamental para o
conhecimento desses objetos, mas, provavelmente, a percepção da cor [vermelho], numa substância como
‘sangue’, é essencial para o seu domínio. Para ‘folhas’, a cor [verde], embora predominante, não tem a mesma
extensão que [vermelho] no caso anterior.
242
entre si, ainda que nem sempre seja possível a construção de uma passagem de um para o
outro. Quando comparamos uma ampla gama de critérios, seria importante questionar sobre a
prevalência que alguns devem assumir em relação aos outros; ou ainda, se devemos considerar
circunstâncias em que um se torne complemento do outro. Com esse objetivo pretendemos
discutir fatos que foram analisados na segundidade.
172
Embora a ilustração presente tenha o mesmo teor da anterior, em termos de dados que possam ser arrolados
para um objeto, existe uma diferença fundamental entre a percepção, isto é, a forma pela qual ‘começamos’ a
compreender um objeto, e a cognição, o modo pelo qual conhecemos esse objeto (ou o modo pelo qual
243
predicações que conhecemos sobre um objeto deve ser finito, já que o nosso conhecimento
sobre tal objeto comporta limites.
Por outro lado, a predicação ainda revela potencial de reconciliação em relação aos
procedimentos difusos de pertinência, a saber, características criteriais na definição da
pertinência num domínio podem se mostrar gradativas através do processo de predicação. Por
exemplo, o conhecimento que temos da classe de objetos ‘cadeira’ deve selecionar, como
exemplar de referência − o protótipo da classe −, aquele que atenda, entre outros aspectos, a
uma angulação de noventa graus na relação encosto/assento e assento/pés, considerando-se
sua função básica, ou seja, [acomodar pessoas na posição....]. Nada impediria, no entanto, que
o critério de angulação fosse alterado em certos limites e numa orientação determinada e que
ainda mantivéssemos objetos com tais ‘deformações’ na classe. Desse modo, os dois padrões
de angulação poderiam ser distendidos (simultaneamente ou não), alcançando valores
variados e acima de noventa graus, mas nunca poderiam alcançar cento e oitenta graus, ou
outros valores que lhe fossem muito próximos.174 A objetos assim alterados poderíamos
aplicar predicações gradativas de pertinência na classe-cadeira: ‘cadeira reclinada’ (
‘...pouco reclinada’, ‘...um tanto reclinada’, ‘...bem reclinada’, ‘...bastante reclinada’,
‘...muitíssimo reclinada’...), embora não tenhamos mais certeza da imediatez e da
unanimidade da sua identificação à classe, em decorrência do grau de deformação que lhe
fosse aplicado.
A distinção que fizemos entre duas orientações para formação de conceitos, de tal
modo a nos permitir aproximar do teor definido por Peirce para a segundidade, no fundo,
apenas recorta uma prática de análise comum às teorias semânticas. Atomização conceitual e
classificação conceitual, em razão dos desdobramentos que mostramos, mantêm entre si
relações de complementaridade. A percepção que alcançamos de um objeto e o conhecimento
que construímos a partir dessa percepção são duas fases integradas à nossa atividade de
cognição. Em muitas circunstâncias não se torna nem mesmo possível, a não ser por razões
174
A possibilidade de que angulação de ‘cadeira’, nas partes apontadas, pudesse alcançar tais valores significaria
obliterar sua função primordial, tornando-a equivalente à funcionalidade de ‘cama’, ‘estrado’.... A angulação é,
no geral, deformada apenas na direção do aumento do grau, seja por conveniências anatômicas de acomodação −
relação encosto/assento −, seja por razões de equilíbrio − relação assento/pés. Dificilmente, encontraríamos
cadeiras que resultassem numa redução drástica da angulação das relações mencionadas, a não ser como um
objeto estético.
245
analíticas e conceituais, decidir sobre uma demarcação precisa entre percepção e cognição. O
certo, por exemplo, é que ao olharmos para objetos percebemos, mas ainda assim estamos
longe de assegurar que essa percepção se traduza por uma atividade pura do percepto, isenta
de compromissos com a organização da informação. O percepto é, sem dúvida, o motor para a
cognição e, em conseqüência, para qualquer processo de formação conceitual, ainda que a sua
intervenção sobre a realidade se faça de modo aleatório, desconhecendo o que, em essência,
podemos fixar como conhecimento do seu conceito. O conjunto dos procedimentos que
reunimos na cognição, no entanto, representa modelos que se orientam pela necessidade da
estratificação de padrões de conhecimento − essência versus acidente −, da seleção de seus
componentes − tamanho ao invés da cor − e do arranjo entre seus componentes − do global
para o local. Nessa extensão da construção de uma teoria, apontamos, no plano da
segundidade, as duas orientações que se mostraram de modo mais decisivo no âmbito da
construção de teorias semânticas. Nenhum dos padrões é, por si mesmo, autônomo e
suficiente: nem atomização conceitual deve validar a suficiência da composicionalidade e da
predicação, em detrimento do valor operacional da pertinência, nem a classificação conceitual
deve proclamar a autonomia das operações de pertinência, numa recusa das concepções
atomizadas. Ambas refletem atribuições e tentativas diferenciadas para um desafio de
racionalização do diverso e da desordem que se erguem diante de nós sob a forma de
realidade. Nesse ponto, iniciamos uma outra jornada: se conhecemos, como devemos
representar o que conhecemos ?
complexas de realização, transforma-se num pólo de catalisação onde se fazem registrar o ser
representado e não apenas a representação do ser.
Por outro lado, a semântica, além de notações específicas para fatos locais −
temporalidade, quantificação, modalização... −, muitas derivadas de sistemas lógicos
independentes, fundamenta-se em toda tradição milenar de representação lingüística. Para a
semântica não está em questão apenas uma (onto)lógica do ser representado − leituras lexicais
−, o que parece constituir o fundamento da arquitetura do signo, mas ainda um lógica de
relações entre unidades − sintáticas e/ou lexicais −, ou de relações entre propriedades lexicais
− necessárias e contingenciais. Além das dificuldades inerentes à definição formal de leituras
lexicais, padrão considerado indispensável ao cálculo do significado de estruturas derivadas e
mais complexas, o teor das relações lógicas tornou-se um fator determinante para o
entendimento do processo de significação. Logo, representação semântica, descontadas as
divergências metodológicas, implica, em sua base essencial, erigir algoritmos capazes de
conceber certas classes de objetos lingüísticos, como também construir sistemas de relações
entre tais objetos, sendo ambos, algoritmos e sistemas, responsáveis pela produção de efeitos
de sentido.
175
Para cada um dos exemplos, devemos considerar a especificidade de interpretantes apropriados.
247
Por último, o plano da representação parece assumir caminhos próprios, pelo menos
considerando-se os modelos em análise. Tal fato, no entanto, não deve ser exclusivamente
assumido como uma restrição imposta à natureza de funcionamento dos objetos conceituais de
um e outro campo de estudo, mas também não deve ser concebido como mera diversificação
notacional. Enquanto sistemas, ambos os campos devem especificar formas de organização
dos seus elementos componentes. Objetos semânticos fundamentam-se numa sintaxe natural,
construída a partir de procedimentos de substituição no plano paradigmático e de associação
no plano sintagmático, resultando em formatos diversos de estruturação de unidades cada vez
mais complexas. Objetos semióticos, se comportam uma sintaxe − que não vemos
necessariamente expressa na formulação de Peirce −, recorrerão a sintaxes locais ou
analogamente construídas, em razão de especificidades inerentes a um dado sistema.
Equiparando-se ou não, sob o nome de sintaxe, o modo pelo qual os dois campos organizam
primitivamente os seus componentes, as relações entre os seus objetos, considerando-se ou
não diferenças na forma como calculam unidades complexas, sabemos que semiótica e
semântica, no fundo, são instrumentos capazes de fornecer justificativas formais para a
compreensão de muitos fatos de sentido.
248
Além do mais, é indesejável supor que locutores devam confrontar alocutários ou que
alocutários devam sentir-se interpelados por locutores apenas em razão da presença enfadonha
de convenções partilháveis. Sem apelo direto às intenções, as emoções, os sentimentos, as
tensões esvaem-se e estaremos condenados a procedimentos enunciativos que se repetem, que
apenas efetivam práticas rituais de convenções. As intenções constroem uma dimensão
ambígua para a enunciação: elas se materializam não só no ‘berro de liberdade’ do locutor −
ainda que discretamente proferidas − como também no do alocutário − ainda que nunca
proferidas. Retendo esse valor ambíguo, elas podem tanto propiciar o amálgama tênue de um
consenso interlocutivo, construído no percurso da enunciação, como engendrar os estilhaços
do seu dissenso. Unindo e separando as instâncias interlocutivas, as intenções cultuam a
polêmica, o diversionismo discursivo − daí a nossa dificuldade (e até mesmo a
inconveniência) em submetê-las a padrões de análise. Elas representam a quebra de uma
ingenuidade discursiva, comumente respaldada na simetria eu/tu, como de resto, a quebra de
uma hegemonia de sentido, alimentada pelas determinações históricas. Intenções não foram,
portanto, introduzidas no processo enunciativo por decreto, ou por algum artifício formal; elas
estão lá, porque lá estão aqueles que as fazem mover − os interlocutores −; elas estão lá,
porque lá está o que as faz mover − as emoções, as tensões, os interesses.
Outro aspecto que destacamos numa orientação empírica para o pragmatismo fez-se
representar, na discussão do Capítulo 4, pela presença dos atos de fala. Ao selecioná-los para
essa tarefa, fizemo-lo em função do fato de as convenções assumirem um papel fundamental
251
O convívio com tal dificuldade restou acentuado em nossa análise, quando avaliamos,
em seções distintas, atos de fala e atos de linguagem. O objetivo que pretendíamos, com a
análise dessas duas abordagens, era o de demarcar uma fronteira entre elas, já que uns − atos
de fala − se orientam a partir de convenções, enquanto os outros − atos de linguagem −, a
partir de intenções, conforme relato anterior. Entretanto, o que se percebe em ambos os
enfoques é o fato de que o predomínio da convenção não exclui a intenção, nem o inverso. No
caso dos atos de linguagem, a adaptação que explicitamos para o esquema de funcionamento
das relações enunciativas visava isolar a sua dimensão intencional, ressaltando o modo pelo
qual instâncias interlocutivas atuam umas sobre as outras e como orientam intencionalmente
os argumentos que constroem. Todo esse esforço, porém, prefigura apenas um diagnóstico
daquelas intenções majoritárias na construção de certos tipos de ato, o que não impede o
afloramento de intenções adicionais.
(a) Uma ordem, para que seja bem sucedida, requer a convenção determinante que o
seu conteúdo proposicional não possa ser prejudicial àquele que desempenha as tarefas
previstas. Logo, conteúdos que tendem a ser lesivos ao alocutário podem bloquear o
curso normal de sua execução plena. No entanto, incertezas quanto à eficácia de
convenções, que postulam valores para conteúdos proposicionais, surgem, em razão da
inexistência de um padrão preciso que nos possibilite ajustar o valor de prejudicial
entre locutor e alocutário. Por outro lado, sabemos que, em relações hierárquicas mais
fortes, exigências sobre o conteúdo proposicional tendem a ser enfraquecidas, já que
os alocutários estão na obrigação incontinente de cumprir o que foi ordenado.
Diferentemente, relações hierárquicas mais flexíveis permitem questionamentos e
contrapontos sobre a natureza do conteúdo proposicional, e os alocutários tornam-se
mais exigentes em relação às tarefas que lhes são imputadas. Além do mais, em se
tratando de ordens, cujas conseqüências práticas e derradeiras estão orientadas para
terceiros, e não para o alocutário, a convenção sobre a natureza do conteúdo
proposicional continua prevalecendo para aquele que a executa. Por esse motivo, em
nome de convenções, ordens para ‘prender’, ‘bater’, ‘torturar’ e ‘matar’, apesar do
valor lesivo do conteúdo, continuam sendo executadas com sucesso, porque não
violam a convenção em análise.
253
(b) O ato-batismo, de valor mais cartorial do que o precedente, não se constrói a partir
das pretensões de um locutor para realizá-lo, mas somente pode ser praticado por
aqueles que estão investidos de certas prerrogativas institucionais e sociais: logo, há
convenções que asseguram condições específicas a locutores para batizar pessoas,
navios, estradas... Assim, por mais nebulosos que sejam os limites entre intenções e
convenções, batizar não pode ser submetido ao mero desejo de quem pretenda fazê-lo
a qualquer momento; batizar requer circunstâncias próprias, e pessoas ajustadas a
essas circunstâncias para que se efetive como um ato de fala legítimo.
(c) O ato-súplica estrutura-se a partir de convenções que devem ser observadas nas
correlações entre locutor e alocutário. De início, ele se mostra em contraposição a uma
ordem e deve atender a condições diferentes para sua realização. Se o conteúdo
proposicional do ato constitui algo de importância para o locutor, então ele poderia,
através do alocutário, alcançá-lo mais de imediato, via comandos e ordenações. O
locutor não o realiza, portanto, na forma de uma súplica por mera deliberação pessoal,
senão em razão de uma convenção que o coloca em relação de inferioridade frente ao
alocutário, pelo menos na consecução de tal ato. Súplicas contrastam, de forma menos
categórica, com atos como pedido e solicitação, cuja diferença deve ser também
justificada em função da existência de convenções. Há situações em que poderíamos
enfraquecer o teor da relação hierárquica entre locutor e alocutário, assegurando o
valor de uma convenção que exclui qualquer grau de favorecimento hierárquico a um
dos interlocutores, no caso de pedido e de solicitação.176 Os fatos, todavia, não
mostram evidências em favor de convenções consagradas e unívocas. Por exemplo, um
locutor investido de autoridade, em muitas circunstâncias, pode renunciar ao ato-
ordem em favor do ato-pedido, flexibilizando as relações. O inverso, entretanto, não
pode ser extensivo a nenhum falante, já que o ato não institui a convenção − uma
ordem não pode ser proferida com o intuito de criar uma convenção hierárquica entre
os seus interlocutores −; esta é uma condição para a existência daquela. Outra
orientação deve ser fixada para a correlação pedido/súplica: o direito a pedido pode
176
Do ponto de vista do conteúdo proposicional, podemos assegurar certas convenções que regem a formulação
de um pedido, por exemplo. Um pedido, destinado a um alocutário, não pode conter termos ásperos na sua
formulação. Aquele que o executará não pode sentir-se acuado, porque uma característica do ato-pedido é que o
alocutário se disponha, espontaneamente, a realizá-lo em favor do alocutário (embora possa negar-se a fazê-lo).
254
−, mas essa disponibilidade não se estende, de modo eqüitativo, às condições de seu uso
efetivo. As práticas enunciativas que materializam quaisquer atos submetem-se a normas
determinadas pelo lugar social dos usuários, pelas funções institucionais que exercem, por
padrões rituais a que se submetem, ou ainda por circunstâncias interlocutivas que constroem
no decorrer de um processo dialogal. Em todas essas circunstâncias prevalecem convenções
específicas de uso; sua validade está circunscrita a padrões próprios a que se submetem os
usuários: todos os locutores podem expressar, asseverar, prometer; muitos podem ordenar,
jurar, suplicar; poucos podem batizar, declarar, nomear.. Além do mais, os objetos sobre os
quais podem incidir tais ações ainda se submetem a outras restrições: todo locutor pode
expressar sobre tudo, mas só pode asseverar o que julga verdadeiro, e deve prometer o que
pode realizar. Poucos podem declarar a existência de certos fatos a partir de seu ato; os
objetos que se conformam ao batismo são escassos; nomeações recobrem apenas pessoas no
desempenho de certas funções públicas.
Por motivos dessa ordem, a enunciação, enquanto sistema fechado, permite fazer-se portadora
do discurso feito razão e consenso, mas, enquanto sistema aberto, torna-se emissária do
discurso feito desejo e dissenso. Este movimento dúbio que a enunciação nos reserva não
deve ser considerado um defeito na sua formulação conceitual: a enunciação funciona desse
modo, por ser o modo como a linguagem funciona.
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