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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

ENTRE O CONHECER E O REPRESENTAR:

PARA UMA FUNDAMENTAÇÃO

DAS PRÁTICAS SEMIÓTICAS E DAS PRÁTICAS LINGÜÍSTICAS

HUGO MARI
2

Hugo Mari

Entre o conhecer e o representar: para uma

fundamentação das práticas semióticas e

das práticas lingüísticas

Tese apresentada ao Curso de Pós-graduação em


Estudos Lingüísticos, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de doutor
em lingüística.

Área de concentração: Lingüística


Linha de pesquisa: Lingüística Textual e Análise do
Discurso

Orientador: Prof. Dr. Júlio César Machado Pinto

BELO HORIZONTE
1998
3

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................... 06

ABSTRACT............................................................................................... 07

ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................. 08

INTRODUÇÃO.......................................................................................... 09

1 A PRIMEIRIDADE COMO EXPERIÊNCIA COGNITIVA ..................... 15

1.1 Considerações iniciais ................................................................................. 16

1.2 O que é primeiridade em Peirce .................................................................. 16

1.3 O que é uma qualidade de sensação ............................................................. 19

1.4 Primeiridade versus Racionalidade .............................................................. 25

1.4.1 Padrões de racionalidade .................................................................. 24

1.4.2 Primeiridade como modelo de racionalidade .................................... 28

1.5 Considerações finais .................................................................................... 34

2 A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL ....................... 40

2.1 Alguns aspectos da segundidade em Peirce.................................................. 41

2.2 Segundidade e formação de conceitos.......................................................... 45

2.3 Segundidade e modelos de atomização conceitual ....................................... 47

2.3.1 Predicação........................................................................................ 47

2.3.2 Composicionalidade......................................................................... 51

2.4 Segundidade e modelos de categorização conceitual .................................... 62

2.4.1 Teoria dos Conjuntos ....................................................................... 63

2.4.2 Fuzzy Set Theory (FST) ................................................................... 68

2.4.3 Teoria dos Protótipos (TP) ............................................................... 77


4

2.5 Considerações finais .................................................................................... 88

3 A TERCEIRIDADE COMO REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL............. 91

3.1 Considerações preliminares ......................................................................... 92

3.2 O conceito de terceiridade .......................................................................... 93

3.3 Estruturação da tipologia dos signos ........................................................... 102

3.3.1 Representação Lingüística x representação semiótica ....................... 103

3.3.2 Determinantes da representação: tipologias x relações


lexicais/sintagmáticas. ........................................................................ 114

3.3.3 Determinantes da representação: tipologias x classes, tipos,


indivíduos......................................................................................... 125

3.3.4 Determinantes da representação: tipologias x funções


proposicionais / discursivas. ........................................................... 131

3.3.4.1 Funções proposicionais........................................................ 131

3.3.4.2 Funções discursivas ............................................................. 143

3.4 Considerações finais ................................................................................... 152

4 PRAGMATISMO E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS... 156

4.1 Considerações iniciais................................................................................. 157

4.2 Conceito de pragmatismo........................................................................... 159

4.3 Pragmatismo e processos enunciativos........................................................ 166

4.3.1 Pragmatismo e Teoria dos Atos de Fala .......................................... 170

4.3.1.1 Pragmatismo e direção de ajustamento.................................. 178

4.3.1.1.1 Direção de ajustamento: PALAVRA-A-MUNDO.................. 180

4.3.1.1.2 Direção de ajustamento: MUNDO-A-PALAVRA................... 181


5

4.3.1.1.3 Direção de ajustamento: DUPLA DIREÇÃO.......................... 182

4.3.1.1.4 Direção de ajustamento: DIREÇÃO NULA........................... 184

4.3.1.2 Pragmatismo e características de uma força ilocucional........ 185

4.3.1.2.1 Pragmatismo e pontos de realização de uma força


ilocucional .................................................................... 186

4.3.1.2.2 Pragmatismo e modos de realização de uma força


ilocucional..................................................................... 188

4.3.1.2.3 Pragmatismo e condições de conteúdo proposicional ..... 192

4.3.1.2.4 Pragmatismo e condições preparatórias........................... 195

4.3.1.2.5 Pragmatismo e condições de sinceridade......................... 198

4.3.1.3 Observações complementares................................................ 202

4.3.2 Pragmatismo e lugares enunciativos.................................................. 205

4.3.2.1 A proposta da semiolingüística ............................................. 206

4.3.2.2 Funcionamento do processo enunciativo: análise de casos...... 210

4.3.2.3 Observações complementares ............................................... 227

4.4 Considerações finais ................................................................................... 228

5 CONCLUSÃO ............................................................................................ 235

5.1 Percepção e estruturação conceitual.............................................................. 237

5.2 Razão e ação ................................................................................................ 248

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 257


6

RESUMO

O presente trabalho investiga alguns parâmetros conceituais, desenvolvidos pelas disciplinas


semiótica e semântica, sobre estágios de formulação, de representação e de aplicação do
conhecimento. Na primeira etapa, o estágio inicial da análise avaliou o papel atribuído ao
percepto e à qualidade de sensação, conforme orientação proposta por Peirce na
primeiridade, considerando-se a possibilidade de a estrutura e a função constituírem-se em
critérios operacionais da percepção. Assim, percepto e qualidade de sensação constituem
dois padrões básicos que orientam os sujeitos no domínio perceptual da realidade, os quais,
associadas a critérios estruturais e funcionais, podem projetar manifestações conceituais
básicas. O estágio seguinte, estimou, na extensão da segundidade, aspectos da construção
cognitiva, operados pelo confronto entre objetos. Tais aspectos foram especificados, através
de princípios de atomização conceitual − predicação e composicionalidade − e de
princípios de classificação conceitual − pertinência clássica, difusa e prototípica. O
confronto, em associação com os parâmetros usados para especificá-lo, constituiu-se,
então, no fundamento para elaboração dos primeiros contornos de uma experiência, que
transita da mera sensação para princípios de formulação e de categorização conceitual. O
último estágio contrastou o processo de representação semiótica, erigido na terceiridade,
com alguns padrões representativos para produzir a significação lingüística, destacando-se,
dentre os padrões, propriedades lexicais e relações sintagmáticas. Os resultados da
investigação confirmaram aspectos diferenciais entre representação semântica e
representação semiótica , já que o modo pelo qual se concebem efeitos de sentido na
semântica, através de relações e propriedades sintagmáticas e lexicais, difere da sua
concepção na semiótica, que concebe tais efeitos através de funções-signo. Na última
etapa, investigou-se a possibilidade de um avanço na compreensão do pragmatismo,
como instância de racionalização de condutas práticas, através do apelo a uma feição
instrumental do seu funcionamento. Dois modelos, voltados para análise da construção de
atos lingüísticos no processo enunciativo, foram utilizados como caracterização funcional e
conceitual do pragmatismo.
7

ABSTRACT

We have investigated some conceptual parameters, developed in studies of semiotics and


semantics, concerning the construction of knowledge, its representation and its application.
First and as in initial step, we have searched for the role of the percept and that of the quality
of sensation, according to Peirce’s concept of firstness. We have also added to the discussion
the possibility for the concept of structure and the concept of function to set up operational
criteria of perception. The percept and the quality of sensation concern themselves with two
basic patterns that lead us to a perceptual mastering of reality. Therefore, these two patterns,
in association with structural and functional criteria, can produce basic conceptual
manifestations. In the next step which deals with secondness, we have considered aspects of
the cognitive construction springing out of the object. Such aspects were determined by the
principles of conceptual atomization - predication and compositionality -, and by the
principles of conceptual classification - classical, fuzzy and prototypical implications. The
contrast between objects, associated with parameters to specify them, is at the core of the
question of how the perceptual experience works. Moreover, this constrast is responsible for
the moving over from sensation to the principles of conceptual formulation and
categorization. In the last step, we have contrasted the representational process of semiotics,
as it appears in thirdness, with some aspects of the representational process of linguistic,
stressing lexical properties and syntactic relations. As the investigation was carried out,
semantic representation and semiotic representation were shown to be different. The former
builds meaning effects up from lexical and syntactic properties and relations, while the latter
builds them up through sign-functions. Finally, we have tested the posssibility of a more
accurate understanding of pragmatism, by showing that it has, as a presupposition, a
rational set of behaviours and also the way they work. Two models sharing principles of
speech acts construction were evaluated to describe pragmatism from a functional and a
conceptual point of view.
8

ÍNDICE DE FIGURAS

Fig. 1: Quadro de relações sígnicas ......................... p. 105

Fig. 2: Relações interlocutivas básicas ..................... p. 207

Fig. 3: Relações interlocutivas contextuais .............. p. 208

Fig. 4: Componentes do ato de linguagem ............... p. 209

Fig. 5: Ato de linguagem: denúncia ......................... p. 211

Fig. 6: Ato de linguagem: justificativa ..................... p. 215

Fig. 7: Ato de linguagem: reclamação ..................... p. 218

Fig. 8: Ato de linguagem: desprezo ......................... p. 221

Fig. 9: Ato de linguagem: equívoco ......................... p. 224


9

INTRODUÇÃO
10

INTRODUÇÃO

A análise que desenvolvemos no presente trabalho visou, como proposta geral, a uma
reflexão sobre algumas das formulações conceituais, desenvolvidas por duas disciplinas −
semiótica e semântica1 −, em torno de um mesmo objeto de estudo: os processos de
significação na sua extensão mais ampla. O suporte conceitual de análise entre as duas
disciplinas fundamentou-se, do lado da semiótica, na reflexão de Peirce, da qual destacamos
quatro aspectos, a saber, primeiridade, segundidade, terceiridade e pragmatismo, que
entendemos constituírem-se num itinerário que recobre a atividade humana da sua forma mais
elementar de percepção até padrões elaborados de aplicação. Em relação à semântica,
recorremos a formulações básicas que se destacaram em diversas abordagens, a partir do
estruturalismo. Retomamos princípios de atomização conceitual − predicação e
composicionalidade − na sua forma mais genérica e princípios de classificação conceitual −
pertinência clássica, difusa e prototípica − que, em conjunto, retratam parte das alternativas
propostas aos desafios de construção de uma teoria semântica.

À primeira vista, embora ambas as disciplinas estivessem centradas num formato


único de objeto de estudo, nem sempre traçaram o mesmo caminho de análise, ora se
distanciando pelas preocupações com fundamentos teóricos, ora se aproximando pela
recorrência comum ao aparatus formal de base. Se o objetivo final desse esforço ressalta a
necessidade de se explicarem efeitos das práticas simbólicas, erigiram-se padrões formais
diferenciados para realizá-lo. Nem sempre, todavia, o cotejo entre um e outro enfoque
revelou para nós uma correspondência teórica de simetria. Assim, para viabilizar tal cotejo,
caminhos diversos foram traçados na avaliação de exemplos, vestígios alternativos foram

1
Embora em relação à lingüística não existam dificuldades localizadas em termos de um recorte próprio de certo
tipo de objeto representativo do campo da semântica, o mesmo não parece claro nos textos que serviram de base
para apurar o trabalho da semiótica. Nos textos consultados, Peirce não destaca o termo semiótica: em nenhum
desses momentos o termo ilustra qualquer título, subtítulo ou item específico de capítulos e partes dos textos. É
evidente que a ausência do termo não significa diretamente ausência do teor conceitual que ele representa. Além
do mais, PEIRCE (1977, p. 45) considera a semiótica apenas uma parte da lógica, daí a ausência do termo: “...
Em seu sentido geral, a lógica é, como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para semiótica
(σηµειωτυκη), a quase-necessária ou formal doutrina dos signos.” Por essa razão, mantivemos o termo. Na
extensão, porém, em que assumimos o texto do autor, a idéia de uma teoria do conhecimento parece muito mais
apropriada.
2
A doutrina é lembrada em favor da segundidade nos seguintes termos: “Qualquer filósofo que negue a doutrina
da Percepção Imediata – incluindo idealistas de todas as faixas – corta para sempre a possibilidade de
conhecer uma relação.” (PEIRCE, 1980, p. 22)
11

selecionados na tarefa de caracterizar procedimentos capazes de justificar o nosso


comportamento diante de um universo de objetos a significar. Se de um lado a semântica
buscou uma reflexão específica sobre o problema do sentido, captando aspectos de sua
constituição, de sua organização e de sua formalização em sistemas naturais, a semiótica
rastreou lugares diferentes para refletir, de forma mais abrangente, instâncias diversas da
atividade de compreensão dos objetos. Se as duas abordagens se distanciam, portanto, no
alcance do seu método, elas certamente se aproximam pela forma complementar que assumem
diante dos objetos-signos que compõem o universo de intervenção de cada uma, isto é, o
desafio de justificativa para a percepção e a representação do conhecimento. Pensadas nessa
extensão, a atividade semiótica e a atividade semântica convergem para uma relação mais
ampla, que pode ser expressa na forma de condições que definem princípios e procedimentos
constitutivos de nossa atividade cognitiva. Desse modo, ambas utilizam-se de procedimentos
de análise que não são exteriores à nossa atividade cognitiva, mas antes são formas e
estratégias que espelham aspectos da construção do nosso entendimento sobre os fatos.

As questões que envolvem, portanto, a correlação entre semântica e semiótica, na


dimensão acima referida, foram desenvolvidas em quatro capítulos específicos, adotando-se
como ponto de partida as categorias propostas por Peirce, selecionadas como um roteiro-
padrão para os problemas a serem analisados. Em cada um dos capítulos, procuramos, de
início, recompor, a partir da formulação desse autor, certos aspectos conceituais da categoria
em análise, relevantes para a avaliação a ser desenvolvida. Na seqüência, procuramos
introduzir outras dimensões teóricas, outros roteiros conceituais a partir da semântica, ou
mesmo outros padrões formais, oriundos de disciplinas diversas, os quais servissem de
respaldo, não só para contrastar com as posições de Peirce, como também para completá-las.
Na medida do necessário e quando apropriado, apresentamos casos e exemplos como
justificativa da análise em questão. Vejamos, então, os parâmetros de avaliação que
orientaram cada capítulo.
No primeiro capítulo, intitulado A primeiridade como experiência cognitiva,
tentamos resgatar a categoria primeiridade, enfatizando os critérios apontados por Peirce
como necessários à atividade de percepção. Na sua retomada, destacamos o conceito de
percepto e o de qualidade de sensação, como dois procedimentos que comandam a nossa
atividade perceptual. O primeiro especifica a forma que define o nosso acesso aos objetos e o
segundo caracteriza o que retemos da atividade primeira de agir sobre os objetos. Ao longo da
12

nossa discussão, procuramos investigar o funcionamento desses dois conceitos, indagando


sobre a possibilidade de eles, ainda que como princípios de percepção sensorial, virem a se
constituir, nas condições primeiras dos processos de formação conceitual. A confluência entre
os dois estágios de funcionamento da percepção − a atuação do percepto e a retenção de
qualidades de sensação − conduziu-nos a especular sobre primeiridade como um padrão de
racionalização, implementada a partir da discussão que Monod propõe para as categorias
função, estrutura, repetição e regularidade. Pela análise desenvolvida, avaliou-se a
possibilidade de a função e a estrutura representarem dois padrões básicos que orientam os
sujeitos no domínio conceitual da realidade, integrando-se ambas, portanto, ao plano da
primeiridade, como manifestação conceitual primitiva.

No segundo capítulo, ‘A segundidade como formação conceitual’, resgatamos os


textos de Peirce, com o objetivo de reconstruir alguns aspectos da segundidade,
principalmente aqueles voltados para o problema da formação de conceitos. Ao definir tal
categoria, Peirce recorre, sobretudo, ao conceito de confronto (struggle), através do qual
procura determinar um modo, relativamente uniforme, de os sujeitos operarem na realidade. O
confronto constitui-se, então, o fundamento para elaboração dos primeiros contornos de uma
experiência, que deixa de ser mera sensação, para figurar como princípio de formulação e de
categorização conceitual. O contraste a que submetemos a segundidade decorreu do uso de
diversos formatos de análise conceitual que foram propostos ou implementados no campo da
semântica ou em áreas afins, todos orientados como princípios de organização e de
estruturação do conhecimento. Os principais modelos de estruturação foram discutidos com
base na perspectiva da atomização conceitual, seja na forma da predicação, seja na forma da
composicionalidade, e na perspectiva da classificação conceitual, incluindo uma avaliação
que transitou da teoria dos conjuntos, passando pela fuzzy set logic, até a teoria dos
protótipos, objeto central nessa perspectiva de análise. Verificou-se, portanto, que a
abordagem semântica pode contribuir, apesar dos impasses observados, para explicitar
critérios de operacionalização formal para a segundidade.

O terceiro capítulo, ‘A terceiridade: como representação conceitual’, investigou a


construção geral da arquitetura do signo proposta por Peirce, mormente nos aspectos de maior
relevância para a análise desenvolvida. Dada a importância e a extensão que o autor atribui à
categoria, decidimos, então, pela seleção de alguns aspectos que não apenas preservassem o
13

teor de representação, inscrito nas várias tipologias propostas para o signo, como também
assegurassem uma proximidade natural com problemas de sentido. Assim, desconsideramos
outra possibilidade de análise da categoria, que implicaria avançar sobre o teor tipológico das
classes e subclasses de signos. Ao impormos, portanto, essa restrição à amplitude da
terceiridade; optamos por selecionar uma dimensão que nos possibilitasse compreender certa
organicidade da representação, a sua forma constitutiva e os seus fundamentos. Depois de
explorar a fundamentação conceitual da função de representar, priorizamos algumas
categorias lingüísticas como relações e propriedades lexicais e relações sintagmáticas para
contrastá-las com valores conferidos aos signos no plano semiótico. No cotejo referido, as
categorias usadas não fizeram alusão a nenhuma teoria de modo particular e foram
empregadas, na condição de fenômenos recorrentes nos processos lingüísticos. Além do mais,
utilizamos proposições e fatos que se prestaram à sustentação do caráter específico de
funcionamento da representação em semiótica e em semântica, no corpo desse trabalho. A
análise formulada confirmou, então, aspectos de incompatibilidade entre uma e outra
disciplina, já que o modo pelo qual os efeitos de sentido são produzidos por funções-signo
pode diferir da forma como concebemos esses efeitos no compartilhamento de relações e
propriedades sintagmáticas e lexicais.

No capítulo quarto, ‘Pragmatismo e análise dos processos enunciativos’, recorremos


aos textos de Peirce, objetivando com sua análise determinar especificações teóricas e a
extensão operacional da categoria. Numa concepção mais ampla, Peirce pretende que o
pragmatismo seja um instrumento capaz de mostrar que a concepção final dos nossos objetos
conceituais confunde-se com os efeitos práticos que deles derivamos. Assim, o fundamento
essencial do pragmatismo recobre, não só uma dimensão representada pelo conjunto dos
efeitos que resultam das nossas condutas, bem como uma dimensão que contém as
possibilidades da fixação de critérios capazes de prover justificativas racionais para essas
condutas. Esse cenário desenhado como suporte do pragmatismo obriga-nos a introduzir
outros padrões conceituais, já que as dimensões de análise lingüística, concernentes ao campo
da pragmática, extrapolam, ao menos em parte, o alcance que vínhamos atribuindo a
categorias semânticas. Dois modelos, voltados para questões no plano da enunciação, foram
utilizados como tentativa para abranger, de modo adequado, as duas exigências que Peirce
impôs ao pragmatismo. Por essa razão, acionamos, como suporte para sua explicitação, a
teoria dos atos de fala e as propostas da Semiolingüística sobre a estrutura do quadro
14

enunciativo. Pela amplitude das abordagens, optamos apenas por um recorte suficiente para
verificar como os enfoques recentes, no campo dos processos enunciativos, podem constituir-
se em instrumentos necessários à compreensão do pragmatismo. Pela análise realizada,
constatou-se que atos de fala e atos de linguagem, na dimensão abordada, podem representar
contribuições importantes para justificar o pragmatismo formal e funcionalmente.

Registramos, no capítulo final, ‘Conclusão’, uma reflexão geral sobre toda


investigação desenvolvida, retomando aspectos complementares, que se ajustaram, em
conjunto, a uma visão global da análise realizada. Concebemos, num primeiro momento dessa
síntese, ‘Percepção e estruturação conceitual’, a necessidade de aglutinar os procedimentos
e as categorias incluídas nos três primeiros capítulos, ressaltando dificuldades na concepção
independente dos padrões analisados. Considerações adicionais aos parâmetros desenvolvidos
na análise dos capítulos foram desenvolvidas, buscando efetivar a integração sugerida. O
segundo momento, ‘Razão e ação’, evidenciou a importância das convenções e das intenções,
duas categorias destacadas nos processos enunciativos considerados, como diretrizes efetivas
da ação racional. Comentários complementares ressaltaram o valor que ambas devem assumir
nas circunstâncias sociais em que mediamos nossas ações através da linguagem.
15

Capítulo I

A Primeiridade como Experiência Cognitiva


16

1 A PRIMEIRIDADE COMO EXPERIÊNCIA COGNITIVA

1.1 Considerações iniciais

O nosso objetivo neste estudo é retomar alguns aspectos básicos da formulação de


PEIRCE (1980) sobre a primeiridade, tentanto avaliá-los como um conjunto de critérios,
adequados para a composição de um quadro geral de justificativa do conhecimento,
destacando as razões primeiras que levam à percepção e à apreensão de um determinado fato
ou objeto.

Assim, a partir de parte dos parâmetros que foram utilizados pelo autor para traçar
esta etapa da teoria, pretendemos uma avaliação que seja capaz de confrontá-los com outros
padrões e concepções recentes, utilizados para justificar o modo pelo qual a percepção dos
objetos se efetiva, a maneira pela qual os procedimentos de categorização da realidade são
concretizados na prática diária de construção do conhecimento.

Neste contraste, estaremos recorrendo a formulações de MONOD (1971), a partir das


categorias regularidade, repetição, projeto e função, na tentativa de determinar algum padrão
de racionalidade implicado na formulação de Peirce.

1. 2 O que é primeiridade em Peirce

Ao caracterizar a primeiridade como suporte original para qualquer processo de


conhecimento da realidade, Peirce aponta-lhe, como condição fundamental, o fato de ela
operar sem qualquer auxílio de procedimentos de mediação. Infere-se, desta colocação inicial,
que a nossa postura diante dos acontecimentos depende mais do modo pelo qual, através dos
sentidos, nos expomos a eles, do que de qualquer procedimento de elaboração intelectiva.
PEIRCE (1980) comenta:
17

“São três as faculdades com que devemos munir-nos para esta tarefa. A
primeira e principal é a qualidade rara de ver o que está diante dos olhos,
como se apresenta, não substituído por alguma interpretação...” (p. 17).

Esta formulação já localiza a categoria central, a partir da qual a concepção da primeiridade


estará sujeita: trata-se de demonstrar que todas as operações afeitas a esta instância da Teoria
vinculam-se diretamente à noção de qualidade e excluem, por princípio, qualquer dimensão
representativa. Entretanto, o que decorre da prevalência desta qualidade ainda nos parece
genérico em demasia, seja pelo teor fenomenista irrestrito “ver o que está diante dos olhos”,
seja por um suposto objetivismo”como se apresenta”, seja pela ausência de padrões
específicos dentro dos quais nossos sentidos deveriam ser orientados a operar.

Diante desse caráter ainda impreciso, é importante recorrer a sua reflexão para buscar
elementos que possam precisar formas de operação desta primeira faculdade. Assim,
registramos algumas indagações iniciais, em torno das quais estaremos orientando a discussão
da primeiridade. O que retemos deste contato incipiente de nossos sentidos (a visão é apenas
a mais privilegiada) com os objetos? Para que aspectos do objeto a nossa sensação se dirige
no momento de sua apreensão ? Como convertemos os fatos aqui determinados em instâncias
operacionais para outras faculdades ?

Os fatos aqui levantados têm, certamente, um alcance muito amplo. E, com toda
certeza, não se pode supor um único padrão dentro do qual caberiam respostas apropriadas a
todas estas questões. O próprio autor (PEIRCE, 1980), todavia, encarrega-se de fixar alguns
parâmetros para os problemas aqui levantados:

“Em suma, qualquer qualidade de sensação, simples e positiva, preenche a


nossa descrição daquilo que é tal como é, absolutamente sem relação com
nenhuma outra coisa. ‘Qualidade de sensação’ é a verdadeira
representante psíquica da primeira categoria do imediato em sua
imediatidade, do presente em sua presentidade. (...)”(p. 18).

Aqui temos critérios que estariam, pois, no núcleo desta primeira experiência do saber.
Segundo o texto, ainda não manipulamos, neste momento, qualquer forma conceitual mais
estruturada; uma forma de conhecimento provida de uma qualidade de sensação expõe nossa
atividade perceptiva diante de uma “descrição daquilo que é tal como é”, como ainda
18

expressa no fato de que a validade das nossas sensações ainda se traduz, de forma
fragmentada, pelo registro da presentidade dos objetos, isto é, a imediatidade com que somos
por eles tocados e surpreendidos, independente de algo mais que deles possa ser extraído.
Assim, é em razão do fato de sermos tocados pelos objetos que reside, exatamente, a
existência de uma qualidade de sensação (visual, ótica, táctil...), diferentemente de qualquer
princípio de elaboração que a compreensão possa determinar. Para se compreender um objeto,
torna-se necessário o mínimo de distanciamento, de intervalos temporais entre as fases de um
processo cognitivo, como um determinante para que se possa operar na configuração de
qualquer padrão estrutural. PEIRCE (1980) ainda reitera, em outras circunstâncias, a
importância do tempo presente neste estágio da formulação:

“Quando algo se apresenta ao espírito, qual é a primeira característica


que se nota (...)? A sua presentidade, certamente. (...) O presente
(imediato) é o que é, não determinado pelo ausente, passado e futuro.”
(p.18).

A presentidade descarta, portanto, uma distância cronológica mínima entre o usuário e


o objeto da experiência e, em conseqüência, a sua retenção na linha do tempo, suportes
necessários a qualquer forma de elaboração conceitual. Isso não implica supor, porém, que
toda experiência sensorial se dilui com a presentidade (a não ser enquanto sensação única do
presente); ela acaba por escoar para a segundidade, onde é retida na linha do tempo e onde se
torna apta a uma elaboração conceitual. Por seu lado, a imediatidade recusa formas de
mediação, simuladas por algo que fazemos intervir entre a atividade de apreender e o seu
resultado, isto é, a compreensão. Peirce não usou o termo, mas os fenômenos da primeiridade,
assim descritos, pertencem à ordem do acontecimento: eles acontecem e deixam de acontecer
numa presentidade que não pode ser retida, a não ser quando registrados ou historicizados
numa perspectiva estruturante. Aí, todavia, já não estamos mais na primeiridade, pois a
estrutura já nos permite abordar o ausente: com ela reativamos a memória, no recuo ao
passado ou na projeção para o futuro. O recurso à memória é estranho à primeiridade, ela não
pode ter memória, pois é só imediatidade e só presentidade, dimensões excessivamente
efêmeras ao primado do conceito e da estrutura. É neste momento, e em razão do peso que lhe
atribui, que o autor se opõe a Hegel, descartando qualquer inclusão dos fenômenos da
presentidade na esfera do abstrato, padrão, certamente, relevante para a formação de
conceitos. PEIRCE (1980) e parece optar por um certo realismo sensorial, quando afirma:
19

“A palavra dele [Hegel] é imediatidade. Afirmar, contudo, que a


presentidade, a presentidade como está presente, a presentidade presente,
é abstrata, Ser Puro, é falsidade tão aberrante que apenas se pode dizer
que a teoria de Hegel segundo a qual o abstrato é mais primitivo que o
concreto tornou-o cego para aquilo que tinha diante dos olhos. Olhemos o
céu lá fora como se apresenta à visão do artista. Será o modo poético
assim tão abstrato e incolor ?” (p. 18).

Neste contraste com Hegel, o autor demarca uma terceira instância onde a primeiridade deva
ser inscrita: apesar de sua amplitude, ela descreve fatos da experiência concreta dos sujeitos.
O que nela acontece são as sensações que retemos ao experimentar os objetos: aqui tudo é
primitivo, pelo caráter sempre inaugural (presente) da exposição ou da surpresa, mas nada é
abstrato, em razão do fato de se tratar de uma qualidade de sensação, como um padrão
cognitivo, orientador da nossa experiência. Como podemos, então, compreender, de modo
mais específico, a idéia de qualidade de sensação ? É possível determinar-lhe algum padrão
de funcionamento ? Como pensar um padrão possível de orientação dos nossos sentidos na
primeiridade ? Por último, as operações ao nível da primeiridade supõem algum princípio de
racionalidade ?

1.3 O que é uma qualidade de sensação

O alcance que Peirce dá à qualidade de sensação, de fato, faz dela um princípio de


fundamentação da primeiridade, pois é aquela a condição necessária para o funcionamento
desta. Além do mais, a qualidade de sensação torna-se um princípio de eficiência perceptiva,
em razão das determinações que lhe são importas pela imediatidade, pela presentidade e, até
mesmo, pela concretude. Se esta compreensão é válida, precisamos, então, reunir argumentos
para justificá-la de modo mais racional, aparando algumas arestas de natureza intuitiva ainda
prevalentes. A posição do autor, todavia, é um tanto embaraçosa, mas não absolutamente
fechada, a ponto de vir a bloquear qualquer tentativa de racionalização. Assim, ao refutar a
crítica de um dos seus interlocutores sobre o teor de ininteligibilidade de suas categorias
(primeiridade e segundidade é que estavam em questão), PEIRCE (1980) comenta:
20

“Contudo V. admitiu agora mesmo que a minha chamada sensação de


esforço envolve uma peculiar qualidade-sensação. Mas esta também não é
inteligível. Ninguém menos que ela. Podemos senti-la, mas compreendê-la
ou expressá-la numa fórmula geral está fora de questão. Assim, parece
que ininteligibilidade não é suficiente para destruir ou refutar uma
Categoria. (...) Pode ainda argumentar-se que a ininteligibilidade da
Qualidade-Sensação é de cariz privado muito diferente da não-
inteligibilidade agressiva e brutal da ação-desprovida-de-lei - e a réplica
será - e que se a inteligibilidade for uma categoria, não é surpreendente
mas antes inevitável que outras categorias se achem em diferentes
relações com esta.” (p. 20).

De início, é importante ressaltar, no trecho acima, o caráter de recusa a qualquer tentativa de


formalizar o domínio da qualidade de sensação em termos da estruturação de regras
(“Podemos senti-la, mas compreendê-la ou expressá-la numa fórmula geral está fora de
questão.”). Esta recusa do seu enquadramento sistêmico marcou, em linhas gerais, o teor
assegurado para a ela, como integrante da primeiridade. Pela natureza das operações
conceituais impostas a esta instância da Teoria, da qualidade de sensação não se poderia ter
uma expectativa muito diversa: afinal, aqui ainda não dispomos de tempo suficiente nem para
elaborar racionalmente, nem para reter qualquer forma de elaboração na memória. Todavia, o
senti-la aqui lembrado, em contraposição, abriria espaço para o predomínio de uma intuição
absoluta, avassaladora sobre uma razão impossibilitada de agir ? Na primeiridade
assistiríamos ao domínio das sensações em franco confronto com a razão ?

O próprio autor redimensiona os termos do problema, ao lembrar que o domínio da


sensação neste campo não pode ser confundido com a ausência total de qualquer princípio
regulador. No registro da citação anterior, encontramos:

“Pode ainda argumentar-se que a ininteligibilidade da Qualidade-


Sensação é de cariz privado muito diferente da não-inteligibilidade
agressiva e brutal da ação-desprovida-de-lei.”

Aqui, o autor descarta que o grau de ininteligibilidade da qualidade de sensação possa vir a
ser confundido com ausência total de qualquer princípio regulador: ela não se traduz, portanto,
na forma de uma ação destituída de padrões normativos. Se ela, portanto, se contrapõe, em
essência, a outros padrões de atuação, qualificados como estágios “agressivos e brutais de
uma ação desprovida de lei”, logo é possível discutir em que extensão ela, no seu “cariz
21

privado”, se distancia em qualificação dos padrões mencionados. Esta ressalva de Peirce


acaba por recolocar os termos em seu devido lugar: afinal, pela importância conferida à
qualidade de sensação, no corpo da Teoria, não poderíamos confiná-la aos caprichos de uma
intuição desordenada apenas. Impõe-se-lhe algum procedimento ordenador, capaz de estirpá-
la deste território sem lei e de domínio de uma intuição brutal. Que fatos podem, pois, ser
aproximados deste aspecto privado de funcionamento que a primeiridade lhe atribui ?

Embora Peirce tenha situado a ”doutrina da percepção imediata” no domínio da


segundidade2, estende sua importância também à primeiridade. Quando somos surpreendidos
por um objeto (ou por objetos), somos levados a extrair dele(s) uma qualidade de sensação
que ainda não é do domínio do eu (de uma consciência individual), mas do não-eu:

“... é fato notório que nunca atribuímos uma qualidade-sensação a nós


próprios em primeiro lugar. Atribuímo-la primeiro a um Não-Eu e só
depois a nós, quando motivos irretorquíveis nos compelem a fazê-lo.”

Podemos supor, por exemplo, que a nossa percepção seja surpreendida por um objeto
que traduza (numa elaboração a posteriori) a sensação de ‘folha verde’. Na primeiridade, a
hipótese de acesso a um tal objeto não poderia ser reconstruída a partir da sua totalidade
conceitual, porque aqui já não está em jogo apenas uma qualidade de sensação (ao menos, um
complexo de sensações e um complexo de qualidades). Até mesmo no âmbito de uma
formulação lógica, trata-se de uma predicação, isto é, de uma estrutura logicamente complexa
que requer elaboração; aqui torna-se importante a existência de um lapso de tempo qualquer
(diferente da imediatez do presente) para associar essência e acidente. A apreensão de ‘folha
verde’ não é instantânea, porque nem mesmo poderia ser considerada como uma relação
necessária ou analítica: compreender ‘folha verde’ significa, ao menos da parte da sua
estrutura lógica, excluir, de um lado, outras possibilidades concorrentes de predicações para
‘folha’, de outro, objetos predicáveis na cor verde. Estas operações, por seu turno,
representam instâncias conceituais que não mais pertencem à ordem de um percepto
inaugural, primitivo; elas traduzem alguma orientação conceitual que implica formulação, que
já requer tempo de processamento.

Entretanto, o fato de nos tornarmos aptos para predicações com o termo ‘verde’ e,
certamente com muitos outros que o nosso aparelho perceptual comporta, só é possível,
22

porque, em alguma circunstância, a experiência com a qualidade de sensação de verde -


‘verdidão’ - tornou-se factível (em razão, por exemplo, de um funcionamento orgânico
compatível do órgão da visão com um certo tipo de pigmentação). A nossa argumentação
aqui, ainda que orientada para problemas da primeiridade, inevitavelmente tem se deslocado
para a segundidade: a razão desta flutuação é a própria natureza dos fatos em questão. A
‘verdidão’ só se configura como uma sensação, enquanto se situa no campo da experiência
sensorial, isto é, enquanto ainda intangível e inefável por quaisquer meios. Assim, ela perdura,
enquanto sensação, apenas no lapso de tempo de presentidade. Ao dissipar esta propriedade
temporal, dissipa-se também o seu caráter de sensação. Logo, já alcançamos a segundidade e
estamos no território da formulação, por isso ela se torna tangível e dizível, isto é, predicável
sob a forma de ‘ser verde’. A princípio, então, o valor de ‘verdidão’ compreende tudo o que
é comum aos objetos que comportam um certo grau de pigmentação, mensurável por reflexos
produzidos na retina ou por comprimento de ondas. Da parte de ‘folha’, como podemos ter
acesso a uma qualidade de sensação ?

De modo mais tópico, podem-se considerar questões semelhantes para ‘folha’. O que
pode ser comum a qualquer objeto dessa natureza que seja capaz de constituir-se numa
qualidade de folha ? É necessário à qualidade de folha poder abstrair-se de fatos acidentais
ligados à cor, à espessura, ao tipo de tecido, ao tipo de ranhuras, ao tipo de fibramento, ao
formato geométrico, ao grau de porosidade, ao tamanho, à época de renovação, ao tempo de
decomposição, a propriedades protêicas, ao valor comercial (todas propriedades passíveis de
predicação ao objeto em análise)? Por onde começamos a qualidade de sensação com ‘folha’
? Existe uma qualidade primeira de valor universal ?

Se um procedimento de captura das propriedades globais de um objeto se mostra


vulnerável de um ponto de vista empírico, já que não é racional o controle de uma suposta
totalidade do fenômeno, qualquer processo de seleção tornar-se-ia arbitrário, porque seria
impossível determinar um padrão criterial de consenso para definir que aspectos perceptivos
de ‘folha’ deveriam ser escolhidos e que outros deveriam ser descartados. Além disso, saltar
do domínio do global para conveniências do local significaria correr o risco de um relativismo
incontrolável: cada sociedade, cada cultura, cada grupo, cada indivíduo poderia fazer emergir
uma qualidade de sensação para esse objeto. Todavia, este argumento, grosso modo, não
apresenta nada de destoante. É provável que, de cada um desses lugares da estrutura social,
23

decorra uma essência de ‘folha’, uma qualidade de sensação. Hipóteses semelhantes a essa já
foram demostradas para muitas circunstâncias, dentro do relativismo. É também provável que
o conjunto desses lugares sustente alguma coisa em comum, assegurando uma dimensão
nuclear que perpassa todos eles, já que, empiricamente, se constata a existência de uma
relativa uniformidade no trato deste objeto. Do contrário, a nossa experiência com ele
resultaria absolutamente desordenada, desencontrada, pelo menos até que viéssemos a
adquirir a maturidade de ‘folha’; mas aí certamente já não estaríamos mais na primeiridade.

De outro lado, uma sensação como qualidade primeira não pode ser pensada em
termos da reunião de todos os fatores aludidos: muitos deles só viemos a entender já num
processo tardio, que não era mais o da primeiridade; a outros podemos ainda nem ter tido
acesso de uma forma total. Com certeza, muitos deles foram assimilados, gradualmente, e o
domínio parcial desta gradação não nos impediu de experimentar ‘folha’. É muito provável a
existência de pessoas que tenham experiência com ‘folha’ e que desconheçam o seu valor
protêico, as propriedades químicas da sua constituição, o teor do seu fibramento. Então, uma
proposta de composicionalidade para os acidentes associados a ‘folha’ não garante a
expressão da sua essência e, por isso mesmo, não pode constituir-se numa suposta qualidade
primeira. Em conseqüência, ela não pode ser também adequada, como orientação, para se
pensar a qualidade de sensação de folha, já que seria impossível supor, nos termos em que
conhecemos uma abordagem composicional, que a reunião de categorias pudesse ser
justificada a partir da sensação, do percepto. Aqui, portanto, o conceito clássico de
composicionalidade, como conjunto de propriedades que expressam condições necessárias e
suficientes, não pode ser cogitado como argumento que possa validar os fatos contidos na
primeiridade, porque nos faz distanciar, completamente, da forma de conceber esta última.
Haveria conveniência, então, em selecionarmos algumas dessas propriedades, dizendo que
umas são mais aderentes à natureza de ‘folha’ do que outras e que, portanto, umas estariam
mais próximas de um indicador da qualidade de sensação de ‘folha’ ?

A questão levantada aponta para a possibilidade e a conveniência de uma decisão


sobre a precedência de umas propriedades sobre as outras. Uma questão anteriormente
formulada também destacava um problema desta natureza. Qualquer critério de precedência,
neste caso, coloca em jogo duas dimensões. Podemos supor formas de precedência temática
onde, de fato, algumas propriedades dizem mais sobre a natureza de folha do que outras.
24

Estamos supondo uma precedência de algumas sobre outras, admitindo a existência de um


leque preferencial sobre o qual atua o nosso aparelho conceitual, responsável por assegurar
um grau de uniformidade elevado no reconhecimento deste objeto. O fato de ser ‘parte de
uma árvore deve ter um teor genérico maior do que o fato de ser da cor verde (já que tal
atributo pode lembrar apenas um estágio da existência de ‘folha’); de outro lado, esta última
propriedade é muito mais estável do que o valor protêico específico, associado a um tipo de
folha. É possível supor ainda uma precedência temporal: há algumas propriedades que
podem ser assimiladas antes que outras, porque são mais emergentes nos contatos com
‘folha’. Aqui a justificativa tem a mesma natureza da anterior: o fato de ‘folha’ apresentar um
teor de percepção relativamente uniforme, mesmo considerando faixas etárias distintas,
confirmaria a precedência temporal de algumas propriedades sobre outras.

Argumentos desta natureza, certamente, ainda têm um caráter muito intuitivo: de fato,
não consta que os integrantes de uma dada sociedade apresentem muitas divergências sobre a
forma de concepção de certos objetos usuais; mas não sabermos, com clareza, a extensão
deste fenômeno e nem temos mesmo uma forma de acesso direto aos fatos que serviriam para
justificá-lo. Qualquer tentativa de avaliação experimental seria pouco representativo, para os
propósitos de compreensão da primeiridade. É claro, todavia, que apontar tal fenômeno como
algo inerente à ordem de qualidade de sensação não chega a ser uma justificativa razoável.
Afinal, nem primeiridade, nem qualidade de sensação são conceitos auto-explicáveis.

1.4 Primeiridade versus racionalidade

1.4.1. Padrões de racionalidade

Os padrões de racionalidade com que deparamos ao longo daquilo a que poderíamos


denominar uma “arqueologia do saber”, usando uma expressão de Foucault, recortam
fenômenos de modo distinto. Assim, de formas meramente especulativas, como a
preocupação dos pré-socráticos em determinar um elemento básico da constituição do
universo (fogo, água), até formas pragmáticas da utilização de minerais, como todo
25

conhecimento físico-químico, posto em função da construção de artefatos; ou ainda de


construtos formais como as Máquinas de Turing e os Autômatos Finitos, até sua aplicação na
construção de circuitos de processamento; tudo isso mostra, para recortes possíveis da
realidade, um esforço racional para compreendê-los. Se o alcance terminal, para qualquer um
dos elos que compõe essa diversidade do saber atual, nos é mais sensível, seja pelo seu valor
teleológico, seja pelos padrões de certeza conceitual, de controle empírico que oferecem, nem
por isso estamos seguros dos aspectos que envolvem a sua fundamentação, isto é, as
condições necessárias à sua própria existência e, até mesmo, ao seu devir. Desse modo, apesar
de todo o sucesso industrial do conhecimento que nos é provido a partir da Modernidade, de
repente estamos voltando a velhas preocupações ao deparar com indagações como O que é
conhecer ? Como representamos aquilo que conhecemos ?, Como o nosso organismo
incorpora o conhecimento que temos de um objeto ?

Estas questões guardam entre si um certo equivalente, ainda que uma e outra possam
apontar para dimensões mais específicas. Todas, no entanto, traduzem parte da perplexidade
que continua desafiando o homem na tentativa de extrair, das circunstâncias mais fortuitas,
das experiências mais dispersas, algum padrão de racionalidade. Provavelmente, não
dispomos, para questões deste teor, de respostas diretas e imediatas: quase sempre precisamos
recorrer à construção de uma teoria para poder equacioná-las em alguns de seus aspectos.
Isolando a sua natureza metalingüística, fatos como estes integram a nossa existência de modo
natural. Para cada dia de vida, somos obrigados a acionar inúmeras teorias, a fim de
equacionar uma extrema diversidade de tarefas que desempenhamos: umas mais, outras
menos complexas, todas, porém, pautadas por algum princípio racional que lhes associamos.
Por exemplo, o que há de racional nos procedimentos físicos para locomover-se por diversos
planos (escada, rampa, plano não-inclinado), em contraste com os procedimentos mentais para
manipulação de axiomas, regras, processos de inferência na resolução de uma equação
matemática ?

Ninguém negaria o fato de que ambos os procedimentos compõem-se de atos


racionais, porque o contrário nos levaria a supor que qualquer experiência vivida num destes
campos não pudesse ser determinante para experiências futuras; além do mais, teríamos que
reaprender, todas as vezes em que fôssemos executá-los, os atos correspondentes a cada uma
das circunstâncias. Diferenças, entretanto, não podem ser desprezadas e elas costumam ser
26

justificadas em razão do esforço mental dispendido na realização de cada uma das tarefas: no
primeiro caso, movimentos de angulação do corpo, tensão muscular, quantidade de força
física e o padrão de equilíbrio, já contêm um certo grau de previsibilidade orgânica para cada
um dos movimentos (daí a suposição de um esforço mental menor); no segundo caso, ainda
não seria possível dizer de uma previsibilidade orgânica para a resolução de um problema
matemático, ainda que muitos movimentos intermediários ali executados possam ter esta
dimensão (daí a suposição de um esforço mental maior). Para os movimentos físicos, em
condições normais, dificilmente esquecemos de alguma pré-condição que lhe é imposta; ao
resolver um problema, podemos precisar de rever muitas fórmulas e procedimentos que
esquecemos. Costuma-se acionar também a discrepância entre processamentos mecânicos (os
movimentos físicos do ato de descer escadas, ou a manipulação de algum instrumento na
solução do problema) e processamentos elétricos (os procedimentos mentais que recobrem
este tipo de movimento, ou esta operação com símbolos). Ambos os processos de justificativa
não podem ser tomados como respostas definitivas, são antes uma forma de aprofundar a
compreensão dos fatos.

De outro lado, há uma perspectiva que vem sendo assumida, cujo objetivo é o de
buscar algo de convergente entre estas duas formas de procedimento, isto é, ambas, como
processo de conhecimento, implicam a capacidade que temos de categorizar objetos, fatos e
eventos. Em outras palavras, a aptidão que temos para locomover por superfícies diversas,
sem transtornos, depende da capacidade que temos de categorizar essas superfícies: um plano
inclinado (em declive ou aclive) exige tipos de tensão diferenciada com os pés; uma cascata
de planos regulares exige processamentos diferentes daqueles exigidos para uma superfície
uni-plana. Da mesma forma, precisamos de categorizações singulares para processar os mais
diferentes sistemas de signos. Acionamos regras específicas para categorizar quando
percorremos sistemas de signos diferentes: quando se alterna de um sistema de semáforos,
para uma linguagem binária, e desta para uma lógica polivalente ou uma língua natural,
estamos diante de operações cada vez mais complexas. Em quaisquer das circunstâncias,
entretanto, estaríamos fadados ao insucesso, se não dispuséssemos de procedimentos gerais
para categorizar os objetos e as relações constantes em cada uma das experiências acima, seja
no plano material, seja no plano simbólico.
27

O problema fundamental a que questões dessa natureza nos conduzem, em termos da


análise aqui proposta, consiste na busca de uma justificativa para o conhecimento que
pressuposto, quando acionamos, por exemplo, um sistema de signos qualquer. Se é possível,
por força dos princípios de categorização, que conhecer um objeto significa ser capaz de
definir-lhe, ao menos, um (ou essencialmente um) domínio do qual esse objeto é membro,
podemos, por extensão, inferir que, para qualquer signo, conhecê-lo é ser capaz de determinar,
ao menos, um domínio do qual ele é membro. Essa formulação guarda um teor lógico que, no
caso de signos, poderia ser convertida, de modo conveniente, para uma formulação
pragmática, onde substituiríamos a condição de remembramento num domínio (...determinar
ao menos um domínio do qual ele [signo] é membro), por condições de sua aplicação (...
determinar ao menos um domínio ao qual ele [signo] se aplica.).

Os comentários aqui desenvolvidos nos fazem voltar ao texto de Peirce visando a dois
objetivos: primeiro, para avaliar a possibilidade de que princípios de categorização possam ser
adaptados e integrados a dimensões de sua Teoria; depois, para, a partir de sua reflexão em
cada momento da Teoria, extrair as condições de possibilidades do conhecimento. Interessa,
no escopo do presente trabalho, recuperar parâmetros que são fixados para o funcionamento
de cada uma das n-idades, contrastando-os com outros parâmetros que expressam formas
possíveis de racionalidade. Como avaliar, nesta etapa da reflexão, a importância da sensação,
na primeiridade, em contraste com outros padrões concorrentes como intuição, percepção,
compreensão, formulação ? Da mesma forma, numa etapa posterior, o que pode representar,
em termos atuais, o peso dado, na segundidade, ao confronto ? Como aproximá-lo da
intuição, da compreensão, da percepção ou da formulação ?

Em alguma extensão, os comentários até agora desenvolvidos cotrastaram com a


necessidade de uma justificativa racional para quaisquer parâmetros que venham a determinar
formas de conhecimento, e o estatuto cognitivo mapeado por Peirce no território da
primeiridade. Se pretendemos que esse mapeamento de categorias seja adequado, como
justificativa de um padrão cognitivo inicial, torna-se importante mostrar como princípios de
categorização - de formação de conceitos, por exemplo - podem ser absorvidos no âmbito da
Primeiridade. Com o objetivo de discutir, de modo mais efetivo, a viabilidade de um
reaproveitamento da primeiridade na dimensão mencionada, é que nos propomos a avaliá-la
28

como um padrão de racionalidade, em comparação com alguns padrões iniciais da atividade


cognitiva, apontados em outras formulações.

1.4.2 Primeiridade: como modelo de racionalidade

No caminho das dificuldades aqui lembradas em termos da concepção de uma


racionalidade dos objetos, gostaríamos de ressaltar a análise, conforme argumentação
desenvolvida, mais recentemente, por KRIPKE E PUTNAM3 e que será objeto da nossa
análise no capítulo sobre a segundidade, que levou à conclusão de uma impossibilidade de
formalização de definições analíticas para espécies naturais. O núcleo central desta
argumentação aparece em parte refletida, numa outra perspectiva, por MONOD (1971), que
procura, através de critérios como o da regularidade e o da repetição, num primeiro
momento, reconhecer a diferença entre objetos naturais e objetos artefatos. Como o autor
dimensiona o primeiro desses critérios ?

“Pelo critério de regularidade procuraríamos utilizar o fato de que os


objetos naturais, modelados pelo jogo das forças físicas, quase nunca
apresentam estruturas geometricamente simples: superfícies planas,
arestas retilíneas, ângulos retos, simetrias exatas, por exemplo; enquanto
que, em geral, os artefatos apresentariam tais características, mesmo que
fosse de modo aproximado e rudimentar.” (p. 16).

O texto de MONOD contrapõe a natureza de modelagem, numa dimensão macro-estrutural,


entre dois objetos: um natural, geometricamente mais complexo, porque suas estruturas não se
reproduzem dentro de padrões de simetria e de previsibilidade angular; um outro artefato,
geometricamente menos complexo, porque sua estrutura tende a ser reprodutora de simetria,
de padronização angular e de superfícies não-acidentadas, ao menos numa forma primária. O

3
Não existe uma correspondência direta entre a formulação dos dois autores: Kripke desenvolveu sua
argumentação em torno das descrições definidas (KRIPKE, 1972), enquanto Putnam desenvolveu argumentos
semelhantes para espécies naturais. (PUTNAM, 1975). Para um confronto entre eles, veja: PUTNAM, 1988,
p.129-46.
29

que esse critério revela sobre a nossa percepção da realidade e o que traz de relevante para
nossa reflexão ?
Suponhamos, numa vitrine, dois arbustos ornamentais, um natural, outro artefato. Se
apenas nos restasse a visão como instrumento de avaliação (o olfato, o tato, por exemplo,
estariam excluídos pela situação), ela escandiria os dois objetos e decidiria que o artefato é
aquele que apresenta o maior número de regularidades, isto é, galhos de tamanhos idênticos
dispostos simetricamente, curvatura dos galhos uniformemente proporcional ao seu tamanho,
coloração próxima do uniforme para cada tipo de componente, tamanho e disposição das
folhas próximas a uma identidade e muitas outras. Da árvore natural, estaremos aguardando
singularidades que escapem à geometria previsível de um objeto artefato: ausência de simetria
absoluta, cores diferenciadas, dimensões menos regulares. Por mais que o artífice (certamente
diferente do artista) se empenhasse em produzir uma árvore com singularidades, ele não
resistiria à tentação de deixar que muitos dos seus movimentos se repetissem e se
materializassem em escalas diversas do seu artefato.

A regularidade, associada aos artefatos, não é um fato meramente contingente, mas


uma necessidade, até mesmo por economia na sua produção industrial e por conveniências na
sua socialização funcional. É possível ainda que, ao dispormos de apenas um canal de
avaliação - a vista -, sejamos traídos no reconhecimento entre um objeto artefato e um natural,
seja pelo esmero do artífice em não se deixar reproduzir, seja pela nossa pressa em percorrer
os objetos, seja por uma deficiência de luz ambiente para captar detalhes, seja por algum tipo
de deficiência do órgão da visão do observador para perceber escalas cromáticas. Entretanto, a
presença de uma destas deficiências pode ser sempre compensada, na medida em que nos
dispomos a acionar outros canais: o olfato, na medida em que possuímos algum padrão de
julgamento para reconhecer também objetos naturais por essa via; ou mesmo o tato, outro
critério que poderíamos acionar para esse reconhecimento.

Essa discrepância para o reconhecimento de objetos, aqui assinalada em razão da


regularidade de suas propriedades constitutivas, pode ser admitida como critério necessário
para um primeiro recorte no reino dos objetos. Em outras palavras, a forma mais primitiva de
apreensão de um objeto implicaria admiti-lo, então, como uma espécie natural ou como um
artefato. Se isso é verdadeiro, podemos supor, portanto, neste processo de reconhecimento,
uma intervenção direta da qualidade de sensação, que operaria em função de um esquema de
30

recorrência de regularidades. No fundo, imputar à qualidade de sensação esta atribuição


discriminativa significa dotá-la de um padrão mínimo de racionalidade: o de ser capaz de
funcionar como um critério de reconhecimento, no domínio em questão, entre dois tipos de
objetos. Esta aproximação entre sensação e regularidade decorre, portanto, da natureza
funcional que atribuímos a ambas, por se constituírem ainda como formas exploratórias
incipientes, se bem que esta última já esteja comprometida com alguma orientação conceitual
estruturante. É lógico que essa aproximação não pode ser pensada em termos de uma precisão
formal atribuída pelos autores às categorias em questão. Resta, porém, uma dúvida: se não são
lícitas aproximações dessa natureza, então só nos resta legitimar uma forma de apreensão,
derivada da primeiridade, como um percepto puro, se pensada à revelia de qualquer fator
estruturante.

Que estatuto confere MONOD (1971) à repetição como um critério de avaliação de


formas de conhecimento ? Retomemos uma formulação do autor:

“O critério de repetição seria, sem dúvida, o mais decisivo.


Materializando um projeto renovado, artefatos homólogos, destinados ao
mesmo uso, reproduzem com certas aproximações as intenções constantes
de seu criador. A este respeito, a descoberta de numerosos exemplares de
objetos com formas bastante definidas seria, portanto, muito
significativa.” (p.17).

Aqui o critério em questão continua conferindo aos objetos artefatos uma constância que
traduz as intenções do seu artífice, quando lhes inscreve uma função de uso determinada.
Embora MONOD assinale que a aplicação de ambos os critérios (regularidade e repetição)
decorra de uma avaliação estrutural dos objetos em sua dimensão macroscópica, e não
microscópica, já que nessa dimensão “estaríamos diante de estruturas atômicas e
moleculares”, contendo “geometrias simples e repetitivas”, é, precisamente, na
macroscópica, onde se materializa uma “intenção consciente e racional” dos objetos, de
acordo com um projeto que lhes é conferido. Portanto, é nesta última dimensão que se dá a
nossa experiência direta com a realidade; é nela que, em razão da homologia, reconhecemos
classes, seus membros regulares e seus membros anormais.

A repetição avança, em termos dos objetivos aqui definidos, numa direção idêntica à
da regularidade: as semelhanças que apontamos para o arbusto artificial na vitrine são
31

previsíveis de recorrência em milhares de outros desta classe (mais uma vez, por uma questão
de economia). Assim, para um outro exemplo, um artífice, quando produz uma série de
‘mesas’, o faz com base na repetição (e na regularidade) daquilo que constitui uma
expectativa de seu uso funcional: a altura (este objeto está destinado a acomodar pessoas
numa certa posição, no exercício de alguma atividade), o tamanho (em razão do número de
pessoas que deve acomodar, do espaço físico que ocupa numa casa, da disponibilidade de
toalhas). Qualquer ‘mesa’ que tivesse que atender a alguma dessas funções fora das
expectativas previstas (por exemplo, acomodar 50 pessoas) não deixaria de ser mesa, apenas
representaria um exemplar ad hoc da classe. Da mesma forma, se estivesse o artífice a
construir cadeiras, a repetição seria prevista, dentro de escalas aceitáveis, no tamanho das
peças (assento, encosto), na orientação espacial destas peças (horizontal, vertical), na
angulação entre elas (próxima dos 90 graus), na altura dos pés, na espessura das peças
(prevendo um certo padrão médio de peso das pessoas) etc. A repetição funciona, assim,
como uma espécie de métrica que também regula nossa percepção dos objetos artefatos e é em
razão dela, sobretudo, que se torna possível reconhecer uma classe de objetos. É plausível
que singularidades se façam presentes também num artefato (afinal, cada cadeira só é idêntica
a ela mesma), mas essa não é a característica essencial de sua identidade, nem impede que a
nossa percepção falhe no reconhecimento de membros marginais de um domínio. Assim, a
partir da importância que se pode conferir à repetição como integrante do nosso desempenho
perceptivo, como podemos avaliá-la no âmbito das operações da primeiridade ?

Parece evidente que a repetição nos orienta em direção àquilo que é mais saliente na
percepção de um objeto. Não seria sensato supor que este critério nos levasse a perceber
‘mesa’ por um aspecto acidental do seu tampo (cor, tamanho, formato, material), porque esta
não é, certamente, uma das propriedades salientes de um tal objeto: todo tampo de mesa pode
destacar um desses aspectos, mas não há qualquer padrão de repetição previsível na sua
constância. Aqui residem, precisamente, as dificuldades de correlação desse critério com
princípios que regem uma qualidade de sensação. Para MONOD (1971), a repetição é antes
uma operação de racionalização da realidade: aquilo que se repete na existência de um objeto
faz parte da sua estrutura conceitual (os acidentes que viessem a se repetir com regularidade
teriam de ser incorporados a sua estrutura, com certeza). Assim, ela não só reflete as intenções
conscientes e planejadas do artífice que produz um objeto, como também delimita o nosso
aparelho perceptivo para uma gama de variações aceitáveis em relação a ele (certamente,
32

aquelas variações que não afetam a sua estrutura). Parece tratar-se, portanto, de uma restrição
que se deve impor à forma de operar da repetição.

Para Peirce não parece clara a imposição de um limite entre fatos estruturantes e não-
estruturantes na concepção da primeiridade. Se isso é verdadeiro, então, a qualidade de
sensação, que nos leva ao (re)conhecimento de ‘mesa’, pode ser concebida por aquilo que for
menos essencial a esta classe de objetos, do ponto de vista da sua estrutura, mas que, numa
circunstância específica, tenha sido a marca de sua percepção. Aceitar uma formulação desse
teor, entretanto, significa conferir à percepção o caráter de “ação desprovida de lei” que o
autor recusou, anteriormente, como suporte epistêmico da primeiridade. Há aqui duas
dificuldades a serem superadas: ou bem concebemos a primeiridade como um instância de
racionalização, ou bem lhe conferimos uma instância de imediatez, de contato, desprovida de
qualquer preocupação racional. Ora, se o processo de conceber os fenômenos na
primeiridade se dá nesta última perspectiva, então não podemos buscar-lhe uma aproximação
com procedimentos que prevalecem na repetição. Aqui, todavia, continuam persistindo
dúvidas: se as operações na primeiridade não devem ser concebidas à revelia da lei, (isto é,
alguma norma de bloqueio do aleatório, do imprevisível, do acaso ), então, sob que padrão de
racionalidade devemos traduzir essa lei ?

Buscamos, ao longo desta discussão e até o presente momento, dois padrões que nos
pareceram mais próximos das preocupações constantes da primeiridade; outros serão objetos
de uma discussão específica no segundo capítulo. Regularidade e repetição, numa visão
macroscópica, expressam padrões fenomênicos dos objetos; daí, a opção de assumi-los no
encaminhamento desta discussão. Os comentários desenvolvidos não foram ainda decisivos
em relação à proposta de avaliação da primeiridade como um padrão de racionalidade. A
análise de Monod sobre a importância das duas categorias torna-se mais precisa, na medida
em que a completa em razão da introdução de um terceiro elemento nessa relação. Trata-se do
conceito de projeto. Vejamos, por fim, como se torna possível uma especificação maior da
relevância desta duas categorias, quando avaliadas na dimensão funcional de projeto.

Na medida em que Monod avança na análise da oposição entre espécies artefatas e


espécies naturais, mostra uma certa difusão entre a natureza específica de membros dos dois
domínios. O autor cita, por exemplo, uma colmeia como um exemplar difuso, em algum
33

sentido, entre os dois domínios considerados. A análise de tal objeto, no entanto, revela-o
como portador de extrema regularidade na distribuição espacial dos favos, no formato de
construção, no seu tamanho; logo, as estruturas se repetem de forma previsível também de
uma colmeia para outra. O autor equaciona a questão, expandindo o conceito de agente (que
produz artefatos) e não sacrificando os critérios da regularidade e da repetição. Uma colmeia
é, portanto, um objeto artefato (como ‘mesa’ e ‘cadeira’), apenas produzido por seres não-
humanos. Aqui, então, entraria um outro critério decisivo na qualificação da natureza dos
objetos, isto é, a existência de um projeto para o qual um objeto qualquer é concebido. A uma
‘pedra’, como espécie natural, não está, a priori, associado qualquer projeto (a não ser
quando a processamos para atender a um tipo de finalidade: revestimento de parede,
componente de concreto ), mas existe ao menos um para colmeia, como existe ao menos um
para a ‘teia’ que a aranha tece. Em se tratando de seres humanos, podemos dizer que o
projeto é uma forma conceitual de traduzir as intenções que associamos a um objeto, quando
o construímos. Nada impede, porém, numa extensão do termo, que ao mencionarmos um
projeto possível para colmeia, ‘teia’, ‘formigueiro’, ‘ninho’, admitamos também as
intenções dos agentes que produzem estes objetos. Que importância teria este complemento da
formulação de MONOD para os problemas da primeiridade em Peirce ? Que conclusões, em
razão das objeções já feitas, podemos extrair da correlação entre as duas abordagens ?

Nos termos propostos por Monod, regularidade e repetição definem planos estruturais
dos objetos; não devem ser confundidos como componentes de uma estrutura, mas apenas
como orientação geral e primária para o seu reconhecimento. Certamente, compreender a
dimensão estrutural de um objeto, com base em tais categorias, só é possível se esses objetos
partilham de uma série qualquer, onde as duas categorias se tornam aptas a operar. Um objeto
só apresenta regularidades, se existe, pelo menos, uma possibilidade de contrastá-lo na série
(uma relação binária ao menos), em que outros objetos reproduzem o padrão, ou dele
desviam. Por esta razão, ela já se torna um princípio estruturante, porque prevê a recorrência
nos membros de uma série. De modo semelhante, e mais decisivo, a repetição, para operar,
requer a inclusão de membros num domínio, pois é no seu interior que semelhanças e
dissemelhanças serão ordenadas para produzir estruturas. Logo, só é possível admitir a
repetição, se pudermos reconhecer, na série, o que se repete, seja na totalidade de domínio,
seja no agrupamento local de membros em sub-domínios. E aquilo que se repete, em
quaisquer das dimensões acima, constitui a estrutura. Se regularidade e repetição só podem
34

ser consideradas em função de domínios a serem determinados para os objetos e se o caráter


de pertinência se fundamenta em princípios de estruturação conceitual, então elas não se
prestam à compreensão de fatos da primeiridade. Ambos os conceitos exigem elaboração,
espaçamento temporal, o que contraria os princípios gerais em que se assenta a primeiridade.

Retomando o conceito de projeto, poderíamos, então, supor que a primeiridade


pudesse captar apenas aquilo que representasse uma dimensão mais global para membros de
um conjunto, ou seja, o seu projeto e não componentes da sua estrutura. Logo, qualidade de
sensação manteria uma relação estreita com projeto e o primeiro impulso na direção de um
objeto responderia pela tentativa de assumir-lhe a função a que se destina. Ainda que uma tal
operação possa parecer viável numa visão utilitária para certos artefatos, a sua adequação à
primeiridade exige argumentos mais decisivos. Com certeza, um artefato, do ponto de vista da
sua constituição, deve ter um projeto como a dimensão mais determinante, pois é em função
desse projeto que será avaliado. Nada valeriam objetos que não estivessem aptos a
desenvolver a função específica para a qual tivessem sido construídos, nem um qualquer que
fosse incapaz de explicitar esta função. Nada assegura, entretanto, que a sua apreensão se dê
em razão de aspectos salientes que lembrem uma função a desempenhar. Para muitos deles
costumamos perguntar para que serve ?. Ora, a própria pergunta já requer uma elaboração de
segundidade, pois o fato mesmo de ela se tornar possível já implica termos ultrapassado o
nível da primeiridade. Só podemos perguntar sobre a finalidade de algum objeto, se dele já
tivermos retido algum tipo de propriedade (provavelmente, algo que possa lembrar a
qualidade de sensação que desencadeia, ao menos) . Desse modo, as categorias utilizadas por
Monod não nos parecem adequadas para justificar as operações sensíveis que são realizadas
na primeiridade.

1.5 Considerações finais

Procuramos, nas seções anteriores, avaliar algumas formas de racionalidade que


poderiam ser pensadas como mais próximas da formulação da primeiridade. Esta avaliação
mostrou, entretanto, que os padrões que foram aqui lembrados ainda se distanciam, neste nível
de abordagem e por alguma razão, das pretensões que Peirce tinha para sua teoria. Procuramos
35

contrastar, no primeiro momento, apenas formatos mais genéricos4, cientes da configuração


que o autor propôs para a categoria. Apesar dos cuidados de ajuste, constatamos, ao longo da
toda a argumentação, uma série de incompatibilidades que não puderam ser superadas. Aqui
talvez tenhamos nos defrontado com a maior dificuldade, no nosso entendimento, de uma
compreensão global da tricotomia de Peirce, como construção de uma metateoria para
quaisquer padrões de conhecimento. Se sua formulação tem, de fato, o contorno que lhe foi
delineado nesse capítulo, sobressai uma questão crucial: por que razão o ponto de partida
para a construção de uma teoria precisa resistir tanto a princípios de racionalidade ? Por que
os padrões de racionalidade estruturados a partir da Segundidade precisam originar-se de um
apelo a sensações, reunidas sob a forma de um percepto soberano, indiferente aos apelos da
razão ? Se não é assim que a teoria, de fato, funciona, que expectativa devemos esperar da
primeiridade ? Voltemos a Peirce.

A proposta de Peirce, nos termos já analisados, poderia ser compreendida como uma
estratégia essencialista, onde alguma primeira essência tivesse que ser fixada. Essa operação
se traduz pela captura de uma dimensão primeira do objeto por meio de sensações, o que se
torna ainda impossível, no estágio de presentificação dos fenômenos, de uma expressão
formal. Há, todavia, dificuldades com este argumento, pois dizer, por exemplo, que a
qualidade de sensação de ‘folha’ é uma espécie de ‘folhidão’ (por hipótese, sua primeira
essência), ressoa como uma solução pouco significativa. Afinal, se não damos conta do
fenômeno, de que adianta nomeá-lo ? Em outras palavras, se não temos garantia daquilo que
pode representar uma qualidade de sensação para ‘folha’, que argumentos temos para dizer
que ele está contido na variante ‘folhidão’ ?

‘Folhidão’ apenas traduz ‘folha’, numa forma lingüística elaborada, mas nada nos diz
sobre sua qualidade de sensação5. Com toda certeza, um problema, cuja validade de sua
solução fosse alcançável apenas por um procedimento desta natureza, estaria muito próximo
de um certo nominalismo exacerbado (que escapa ao non-sense apenas em razão de
conveniências metalingüísticas) e teria de ser validado não por princípios externos de

4
Outros formatos mais específicos de racionalidade, como Teoria dos Conjuntos, Teoria dos Protótipos, Fuzzy
Set Theory, Composicionalidade e Predicação serão avaliados na segundidade.
36

argumentação e de demonstração, mas por uma condição interna de transcendentalidade. Em


outras palavras, restaria indagar se a qualidade de sensação, aventada por Peirce, não é um
princípio transcendental que define condições de possibilidade do saber.

Toda a discussão até agora desenvolvida tem apontado para duas direções em relação
aos problemas que envolvem a primeiridade. De um lado, movidos pela idéia de sensação,
admitimos o teor fenomênico dos fatos nela implicados. A suposição parece-nos ajustar,
perfeitamente, à concepção dos fatos confinados nessa dimensão da teoria. É na perspectiva
mencionada que pode ser destacada a idéia de um percepto, ainda de natureza pré-categorial,
como parece pretender Peirce. De outro, acionados pela idéia de qualidade, supomos algum
teor de elaboração conceitual, algum princípio de abstração, ainda que conduzido por
sensações. A aproximação destas duas vertentes nos levou a testar alguns procedimentos de
racionalização, exatamente, aqueles, cujo apelo a quaisquer princípios de abstração,
colocavam em jogo uma dimensão empírica dos objetos. Que outros argumentos,
poderíamos ainda adicionar à discussão, no sentido de explorar um pouco mais o caráter
conflituoso da teoria, que foi aqui exposto?

A controvérsia destacada acima pode ser traduzida pelas dificuldades apontadas na


concorrência entre o conceito de função e o de estrutura. Na menção que faz a essa disputa,
Monod chega a destacar, para algumas áreas do conhecimento, a preferência pelo conceito de
estrutura em detrimento do de função. O primado da estrutura reforça a necessidade de uma
afirmação do caráter de racionalidade dos processos cognitivos: a estrutura emerge de
relações sistêmicas, avaliadas através de componentes isoláveis e comutáveis numa série de
elementos; ela se corporifica pelas relações de disjunção, conjunção e implicação e a partir
de processos inferenciais, construídos sem qualquer apelo a uma essencialidade dos objetos.
Como se contrapor a essa arquitetura do comutável, do demarcável, cujo teor de
racionalidade tornava dispensável recorrer a quaisquer outros recursos, cujos elementos não
estivessem integrados às relações entre os próprios objetos ?

5
A conversão de nome-objeto (folha), de nome-propriedade (vermelho) em formas lingüísticas de natureza
abstrata (folhidão/vermelhidão) é apenas ilusória, pois nada justifica em termos de qualidade de sensação.
37

É difícil supor que o poder que se conferiu à estrutura, em razão do seu papel numa
abordagem científica, pudesse permitir o avanço do conceito de função. Aquela acaba por
neutralizar o apelo à última, o que não pode ser entendido como sua exclusão deliberada;
ambas conviveram lado a lado em muitas circunstâncias. O contraste entre estrutura e função
nos incentiva a indagar novamente sobre uma correspondência destas categorias com
segundidade e primeiridade, respectivamente. A estrutura, pelo grau de elaboração
conceitual, pela elegância axiomática que possibilitou produzir no interior de muitas
abordagens, só pode ser pensada numa dimensão de segundidade. Se à função conferimos
mais um teor pragmático, uma extensão do objeto, derivável, com certeza, daquilo que a sua
estrutura possibilita, seria possível, então, admitir a função no escopo da primeiridade ?

Não há dúvida sobre o descompasso formal entre as duas categorias e ele deve ser, de
fato, o responsável pela preferência assinalada por Monod. A função, isolado o seu caráter
pragmatista, aproxima-se de um valor fenomênico, na medida em que objeto e função, ao
menos para os artefatos, guardam entre si uma biunivocidade implicativa: tanto o objeto
(artefato) implica a função, quanto esta implica aquele. É provável que essa dependência
mútua possa também descartar dela compromissos formais maiores de elaboração, de
formulação. Ela não é um componente do objeto − mas os componentes de um objeto estão
dispostos de forma a atendê-la −; ela não o integra de modo orgânico − mas se inscreve nele
para poder ser dele uma decorrência. Por isso, a função constitui uma extensão que se agrega
ao objeto, sem que essa agregação possa ser pensada como algo que lhe torne irrelevante. É
claro, entretanto, que não se pode desprover de quaisquer compromissos mais integrados
estrutura e função. Afinal, a estrutura, ao menos nos artefatos, deve ser adequada a exercer a
função para a qual o objeto foi criado. A forma intuitiva − e pragmática −, através da qual
lidamos com a função − a estrutura tem outras dimensões −, permite projetá-la na região da
primeiridade; tal fato, entretanto, como já comentamos para projeto, não constitui qualquer
garantia de que ela possa representar uma condição que orienta, de modo decisivo, qualidade
de sensação. Outras objeções que poderiam ser aqui descritas, quanto ao seu papel
determinante para uma qualidade de sensação, já se fazem presentes na discussão
desenvolvida para projeto: o que foi validado para sua discussão pode ser também validado
para função.
38

A partir de todos esses confrontos que utilizamos para buscar uma compreensão do
alcance que Peirce confere à primeiridade, parece evidenciar-se o fato de que uma qualidade
de sensação não pode ser pensada como um princípio passível de uma justificação externa, a
saber, fora das condições imediatas e únicas que a percepção exige para funcionar, na forma
concebida pelo autor. Assim, não se trata de buscar argumentos que possam consolidá-la no
interior de uma teoria, porque estes estarão remetendo a um outro lugar que não é mais o da
imediatez perceptiva, portanto, o da primeiridade. Além do mais, pretendíamos, com esta
tentativa, admitir que algum recurso à metalinguagem também devesse ser aceitável para a
formulação analisada. Em todas as incursões desenhadas acima, usamos argumentos − e
metalinguagem − de outros padrões, buscando uma correspondência aproximativa com
qualidade de sensação. Acionamos, quase sempre, princípios que exigiam um registro na
linha do tempo, por ser esta talvez uma das marcas de qualquer processo de racionalização. A
projeção na linha do tempo resultaria na necessidade de se historicizar a primeiridade, pois só
assim ela se tornaria passível de uma compreensão analítica; o seu teor de presentidade,
todavia, permite que ela reconheca somente o presente (a sua instantaneidade), descartando
princípios de ordem temporal. Uma vez mais, já teríamos ultrapassado as suas fronteiras e
estaríamos avançando nos domínios da segundidade.

Diante das condições que são impostas ao funcionamento da primeiridade resta


indagar, então, sobre alguma relevância que ela possa apresentar, em termos da nossa
atividade cognitiva para recortar a realidade. Se a questão central aqui colocada apontava para
a necessidade de uma justificativa que fosse capaz de fundamentar, com argumentos válidos,
a forma pela qual o organismo incorpora o conhecimento, então, os parâmetros que são usados
pelo autor para dimensionar a primeiridade − presentidade, imediatez, qualidade de
sensação − neutralizam qualquer perspectiva de abordá-la, no quadro de uma racionalidade
que inclua o seu funcionamento, num padrão de categorias analíticas. A primeiridade,
digamos, não partilha desse formato de racionalidade que, embora criticável e ainda
provisório em muitos dos seus aspectos, tem servido de base para uma discussão em torno de
duas questões importantes: a formação de conceitos e a categorização. Sua exclusão da
esfera da racionalidade dos esquemas aqui lembrados seria suficiente para projetá-la num
vasto território de intuições e de eventualidades ?
39

Não seria correto inferir, a partir da estrutura global que o autor propõe, que a
primeiridade pudesse estar situada numa faixa de exclusão do racional, conforme já
lembramos em citação do próprio autor “ação-desprovida-de-lei”. A sua racionalidade é que
precisa ser vista sob um outro ângulo. Inicialmente, ela pode não ser julgada pela validade
que confere a outras instâncias de um sistema de tricotomias, onde a sua existência, no
conjunto, deve reservar-lhe uma função específica, em contraste com a segundidade e com a
terceiridade. O objetivo aqui não foi prover um julgamento da formulação do autor nessa
dimensão, mas antes mostrar que ele lhe circunscreve uma instância singular − nem sempre
muito clara ! − no processo de cognição. Há dificuldades com a formulação do autor − umas
foram vistas ao longo desta discussão, outras serão vistas à frente −, se pretendemos assumir
sua abordagem, não apenas como uma Teoria Geral do Signos, stricto sensu, mas como uma
abordagem global sobre a forma de estruturação do conhecimento, dimensão que nos interessa
nessa reflexão. Desse modo, o que se deduz do seu sistema, no realce até agora atribuído à
primeiridade, é a importância de se fixar uma outra região da atividade cognitiva, até então
inteiramente desconsiderada, talvez até mesmo pela existência de um alto grau de incertezas e
de inconveniências para o domínio da racionalização.

Um outro aspecto adicional aponta para uma forma diferenciada de compreensão dos
fenômenos: Peirce não parece estar preocupado com uma explicitação nem funcional, nem
categorial das questões que envolvem a primeiridade. Não se trata de construir um modelo
formal ao qual possamos subordinar a manifestação dos fenômenos nesse nível. A natureza
dos procedimentos que estão aí dimensionados respondem a outros formatos epistêmicos e
eles não podem, de fato, ser vistos pelos olhos de quem quer enxergá-los de forma categorial,
sistêmica, ou funcional. A primeiridade responde, no nosso entendimento, por uma
disponibilidade primeira para o conhecimento, o que faz dela um princípio transcendental, na
medida em que traduz condições necessárias para qualquer forma de compreensão, para
qualquer processamento conceitual. É esse estatuto da primeiridade que a torna um
procedimento racional, embora não possa ser justificada por esquemas de categorias, nem por
procedimentos algorítmicos.
40

Capítulo II

A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL


41

2. A SEGUNDIDADE COMO FORMAÇÃO CONCEITUAL

2.1. Alguns aspectos da segundidade em Peirce

Na proposta de Peirce, se a primeiridade constitui apenas um momento de pura


sensação, se nela concebemos apenas percepções primárias que conduzem, de forma
incipiente e instantânea, a nossa experiência, já que ela está associada a uma presentidade dos
acontecimentos, então é no plano da segundidade que as condições de existência (dos objetos)
começam a ser delineadas. Há aqui, na configuração do autor, duas etapas do processo de
conhecer: de uma sensação de qualidade saltamos para as condições do existente. O que,
então, ele demarca como um padrão de alcance para a segundidade, na medida em que é nela
que as condições para o existente estão determinadas ?

Na Conferência II, do parágrafo 45 ao 64, PEIRCE (1980, p. 18-24) sugere alguns


aspectos genéricos que dimensionam o papel da segundidade como etapa do processo de
atividade consciente do homem sobre a natureza/realidade. Os parágrafos não permitem uma
compreensão decisiva do alcance da categoria, até mesmo porque o autor está preocupado em
refutar críticas de opositores, de marcar posições contrárias a sua formulação diante do
nominalismo. De todo modo, entretanto, é possível recolher, ao longo desses parágrafos,
algumas exigências e propriedades que são impostas ao seu funcionamento.

Como categoria universal, a segundidade circunscreve-se no terreno vasto das


condições que julgamos necessárias para o acesso a qualquer forma de conhecimento.
Justificá-la, portanto, como universal, requer que a ela associemos outros princípios que
tornam a prática cognitiva dos sujeitos de algum modo uniforme. Peirce recorre, inicialmente,
ao conceito de confronto (struggle), com que pretende especificar a forma pela qual operamos
na realidade. Assim, se a primeiridade nos conduz para um impacto inicial frente à realidade,
somente na dimensão da segundidade podemos fazer uso consciente desse conceito, ao
elaborar os primeiros contornos de uma experiência, que já não é mais pura sensação, mas um
princípio de formulação, de classificação. Aqui, todavia, temos que ressaltar o fato de
42

confronto ser apenas uma qualificação decorrente de algo que ainda lhe é mais primitivo, isto
é, o conceito de força, segundo Peirce, no sentido da actio em NEWTON6. Em que o conceito
de força se torna aqui relevante ? Por que devemos assumi-la como uma condição de alcance
do existente ?

A relevância do conceito de força resulta em se fazer dela mesma um determinante da


percepção; ela funciona como um agente capaz de afetar toda nossa capacidade sensível. O
autor formula a questão do seguinte modo:

“Assim acontece quando alguma coisa atinge os sentidos. A excitação


produz seu efeito, e nós causamos-lhe de volta um efeito indiscernível; e
passamos a chamar à excitação agente, e vemo-nos como o paciente.”
(PEIRCE, 1980. p. 19)

E mais à frente acrescenta:

“Os objetos interiores oferecem de fato uma certa resistência e os


exteriores são suscetíveis de serem modificados de algum modo através de
esforço inteligente.”(PEIRCE, 1980, p.19)

Reunimos, ao conectar estas duas afirmações, alguns aspectos básicos que podem especificar
a importância do conceito de força na formulação de Peirce. É no exercitar a relação causa-
efeito, executada de forma múltipla em direção à experiência sensível, que nos tornamos aptos
à transformação dos objetos. Só podemos fazê-lo pelo ato de imprimir força aos objetos que
são captados pelas nossas sensações, pela percepção e daí fazermos originar efeitos com base
no confronto e “através de esforço inteligente”. A segundidade é, então, o lugar de
emergência de uma instância intelectiva onde os objetos podem “ser(em) modificados de
algum modo”.

Essa possibilidade de se poderem afetar os objetos, na dimensão ainda de um processo


cognitivo secundário (já que ele só deverá ser completado sob a forma de representação na
terceiridade ), decorre de uma situação em que os sujeitos retêm apenas uma sensação de

6
Newton define actio da seguinte maneira: “A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar
seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta.” (NEWTON, 1979. p.6)
43

qualidade dos objetos. A forma mais primitiva que podemos supor, como condição para uma
tal transformação, é o fato de se poder classificar um objeto, isto é, reconhecer-lhe um
domínio de pertinência, associar-lhe propriedades de classe, enfim, mostrar um primeiro
estágio genérico de confronto deste objeto com outros. Quando assim procedemos, estamos,
de fato, modificando os objetos externos de algum modo, porque já nos tornamos aptos a
predicar sobre algo que, até este momento, tinha sido mera sensação de qualidade.

Por sua vez, o conceito de força aqui lembrado impõe à reflexão uma orientação de
natureza material, mas não como Newton codificou o valor de ação, pensada na extensão dos
fenômenos físicos (“A ação impressa é uma ação exercida sobre um corpo para mudar seu
estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta “). Se não evitamos que ambos os
conceitos possam convergir na sua natureza (eles representam uma certa atividade exercida
sobre objetos), eles, certamente, divergirão nos seus efeitos. Se o resultado de uma ação sobre
um corpo é a mudança do seu “estado de repouso ou de movimento uniforme”, o resultado de
uma força sobre um objeto é a mudança do estado de seu conhecimento, do seu estatuto na
relação com outros objetos. Em outras palavras, conhecer um objeto tal significa aplicar-lhe
uma força, cujo resultado será ou a consciência sobre propriedades que lhe tornam
predicáveis, ou a explicitação de correlações que ele estabelece com outros objetos. Em uma
ou outra possibilidade, produzimos uma mudança no estado de seu conhecimento (aquele
estado dado, inicialmente, pela primeiridade). A dimensão material desta força não chega a
representar qualquer ameaça às exigências mais elaboradas sobre as condições para conhecer
um objeto. Afinal, qualquer forma de conhecimento apresenta a sua condição orgânica,
corporificada em diversos estratos do organismo. Aqui as qualidades sensíveis dos objetos
impressas nos nossos sentidos  visão, tato, olfato ... , podem representar este efeito da
força sobre corpos em inércia, mas um efeito sobretudo intelectivo. E PEIRCE (1980, p. 24)
também ressaltou esta dimensão do conhecimento, ao concluir que “existe uma maneira de
agir sobre os fatos externos que não é apenas ação mecânica.”

Outro aspecto que poderíamos destacar, na exposição do autor, é a importância que ele
atribui ao papel da surpresa. Indagando sobre o modo de ocorrência da experiência, ele
responde que ela se dá “Através de uma série de surpresas.” (p. 21). E mais à frente completa
este raciocínio de relevar, no interior da segundidade, o papel da surpresa:
44

“O fenômeno da surpresa é altamente instrutivo em relação a esta


categoria por causa da ênfase que empresta a um modo de consciência
detectável na percepção - a consciência dupla de um ego e de um não-ego
agindo diretamente um no outro.” (p.21)7

A importância que essa categoria pode representar reside no fato de nos mostrar que o
processo de conhecimento não pode ser completamente determinado apenas pelo exercício de
uma consciência do ego. Ao reservar-nos incômodos do não-ego, a percepção cognitiva, na
dimensão da consciência de um ego, não pode ser pensada como a instância ulterior e única da
determinação das formas do saber: exige-se “a consciência dupla de um ego e de um não-ego
agindo diretamente um no outro”. O alcance do ego estará sempre sujeito a surpresas que o
seu duplo possa vir a produzir. Aqui reside, pois, o dinamismo de todo o processo de
conhecimento numa instância orientada pelo e para o confronto.

Que direção, portanto, pretendemos dar a esta reflexão de Peirce em torno da categoria
de segundidade, de tal modo a compatibilizar sua formulação, como já o esboçamos na
primeiridade, aos fundamentos de uma abordagem geral sobre processos de conhecimento,
em termos das exigências, estabelecidas em reflexões contemporâneas sobre a construção do
conhecimento ?

A exposição precedente já se mostra contaminada pela orientação que pretendemos dar


à segundidade, com o objetivo de avaliar a questão acima formulada. A posição desta
categoria, diante das outras duas que compõem sua tricotomia, requer, no nosso entendimento,
que tracemos alguns paralelos com outras iniciativas que foram desenvolvidas depois de
Peirce, se o alcance desejado é o dar a ela um estatuto de formação conceitual, o que não nos
parece atentar frontalmente com a reflexão do autor8. Então, o que nos convida a este desafio

7
O contraste entre ego e não-ego parece representar o formato mais amplo para PEIRCE (1980, p.91), conforme
podemos verificar no capítulo As categorias em Detalhe, parágrafo 332, do qual extraímos o seguinte trecho:
“Existe a dualidade do agente e do paciente, do esforço e da resistência, do esforço ativo e da inibição, do agir
sobre objetos externos e sobre o próprio eu. Ainda mais, há volição ativa e passiva, ou inércia (...).”
8
Seria ingênuo admitir, percorrendo toda a extensão de sua obra, que Peirce tivesse pretensões menores com
uma categoria como esta. Afinal, entre primeiridade e terceiridade não pode existir um vácuo que uma
interpretação quase literal da segundidade poderia produzir. É lógico que corremos o risco de enviesar em
demasia o autor, mas é um risco necessário para fazer valer as suas idéias num ambiente que não seja única e
exclusivamente o da sua obra e nem de uma apologia à sua escrita.
45

é também o fato de o autor ter registrado aqui tentativas de responder a condições sobre o
existente. A reflexão, a ser desenvolvida, implica assumir o existente numa dimensão não-
fenomênica e compreendido a partir de padrões formais e intuitivos que têm sido formulados
e repensados como possibilidades de um modelo de formação conceitual. As condições de
formulação de um tal modelo ainda têm se revelado de extrema complexidade, diante do que a
proposta de Peirce não pode ser assumida, a não ser como um embrião global. Assim, nas
seções seguintes, tentaremos avançar com as questões sugeridas pela segundidade, a partir de
um número variado de fatos, formulações e abordagens que a ela podem ser associadas em
complementação.

2.2. Segundidade e formação de conceitos

O que é formação de conceitos ? Quais as exigências que são impostas aos sujeitos
sociais no domínio dos objetos ? Em que condições podemos assegurar que conhecemos um
dado recorte da realidade ? Em que extensão a segundidade pode ser relevante para
equacionar tais problemas?

Responder ao conjunto destas questões, certamente, não é uma tarefa possível apenas
tomando como base propostas de Peirce, mesmo porque parte daquilo que levantamos aqui
como problema não emerge como uma preocupação direta na sua reflexão. O autor, no nosso
entendimento, garante, através de um estágio de processamento da informação (dada num
momento inicial na primeiridade), os patamares iniciais que asseguram uma reflexão neste
campo. Não encontramos, em sua formulação, um modus operandi para falar de formação de
conceitos, ao menos na extensão em que a questão vem sendo discutida nos dias atuais.
Entretanto, não nos parece, pelo conjunto das questões afetas ao conhecimento e muitas já
apontadas pelo autor, que se possa incompatibilizar sua reflexão com problemas que têm sido
enfrentados no âmbito da formação de conceitos.

Nesta primeira exploração, gostaríamos de associar a segundidade a princípios gerais


que lembram a formação de conceitos, dimensão que supomos ser aquela que possibilita um
diagnóstico de todo o projeto epistêmico construído pelo autor. A segundidade figura, então,
46

como uma instância da construção do próprio conhecimento: na medida em que os objetos são
confrontados, é deste confronto que extraímos as suas propriedades funcionais e descritivas. A
formação de conceitos torna-se, portanto, a estratégia essencial para conhecer: só podemos
conhecer um objeto, ou só podemos transitar entre classes de objetos, ou entre membros de
uma classe, se dominamos, minimamente, o conceito de classe e o conceito de membro de
classe. Somente este conhecimento pode-nos garantir uniformidade, racionalização e
organização de uma ordem diversa e múltipla que os registros da percepção, na primeiridade,
asseguraram, mas que não foram ainda capazes de ordenar. Assim, as exigências primeiras
para a formação de um conceito são estabelecidas a partir deste confronto, que nos obriga a
reconhecer propriedades essenciais, diferenciais, acidentais, dimensões funcionais, descritivas
e tantas outras. Formar um conceito pode ainda significar, por exemplo, a formulação de
procedimentos que nos permitem destinar objetos a classes, reconhecer o lugar específico de
um membro na classe, determinar configurações fronteiriças para membros de classe. Pode
representar, além do mais, a construção de modelos, de algoritmos para a compreensão desses
fatos.9

Num segundo estágio de compreensão, destacamos, nesse processo, o papel da


mediação que é assegurada à segundidade. Se através da primeiridade, alcançamos o domínio
da realidade, do experimentável por uma sensação de qualidade e se, na terceiridade,
defrontamos com processos de representação do conhecimento, então só podemos supor que a
segundidade seja, de fato, uma instância de mediação, na qual podemos pensar a construção
deste conhecimento por meio do exercício de uma racionalidade natural e formal ao mesmo
tempo. Essa intuição sobre o texto de Peirce nos parece válida, mas ali a encontramos ainda
numa versão genérica e pouco explícita. Não há, de sua parte, uma preocupação localizada
sobre a forma pela qual devemos fazer prevalecer uma estrutura do racional para a
segundidade.

Em resumo, julgamos que as idéias apresentadas por Peirce na segundidade e a


dimensão que lhe atribui, na sua formulação, representam patamares fundamentais para uma
discussão de questões localizadas sobre a produção e a representação do conhecimento. Na

9
Alguns dos procedimentos aqui lembrados, sobretudo na ordem destes últimos, representam dimensões que já
devam ser incluídas não apenas como formação de conceitos, mas também como representação de conceitos,
objeto de avaliação da Terceiridade.
47

seqüência, mostraremos diversas tentativas que têm sido empreendidas em torno deste
problema, todas elas, na extensão aqui avaliada, compatíveis com a pretensão de se apontar
um formato operacional para a segundidade. Procuraremos, pois, mostrar possíveis
correlações desse nível da sua teoria, com formulações mais localizadas e disseminadas em
outras abordagens.

2. 3. Segundidade e modelos de atomização conceitual

O formato mais genérico que conhecemos para construir o conceito de um dado


fenômeno/objeto é a possibilidade que temos de defini-lo, isto é, de atribuir propriedades, dos
mais diversos teores, a aspectos da sua constituição, do seu funcionamento e do seu valor.
Este procedimento de atribuir propriedades a fenômenos/objetos não apresenta, no entanto,
uma padronização única, nem definitiva. Identificamos, nas nossas manifestações culturais,
padrões diferenciados deste procedimento: as teorias, os dicionários, a prática ordinária da
linguagem traduzem, ao mesmo tempo, semelhanças (a forma dos procedimentos lingüísticos)
e dessemelhanças (o rigor na formulação destes procedimentos). Tradicionalmente, o critério
definicional tem sido expresso, de forma mais estruturada, com base em dois padrões
distintos, a predicação e a composicionalidade. Ambos os padrões reportam, em alguma
extensão, à idéia de uma categorização vertical, porque se realiza numa relação entre
membros e componentes de membros. Vejamos alguns aspectos destes dois padrões.

2.3.1. Predicação

O padrão de predicação mais conhecido é dado pela forma lógica do tipo “S ε P”,
onde S indica o fenômeno/objeto em questão e P um tipo ou um conjunto das propriedades
que definem ou descrevem a natureza de S. De modo menos formal, mas também preciso,
podemos adaptar a forma canônica acima a outros padrões lógicos para aceitar formatos
como “x serve para...” “x compõe-se de...” “x é um tipo de...”10. Tal padrão, com suas

10
Doravante, sempre que usarmos as variáveis x, y, z, estaremos considerando-as como variáveis presas. Para
simplificar tecnicidades, evitando registros locais a não ser quando imprescindíveis, podemos considerá-las
presas ao quantificador existencial, já que elas devem aceitar a saturação de pelo menos um objeto. Do ponto de
vista lingüístico, porém, a vinculação de variáveis a quantificadores é apenas uma condição genérica: a
48

variações possíveis, apresenta uma difusão bastante variada, pois recobre tanto especificações
rigorosas em sistemas formais, como ainda especificações técnico-culturais em dicionários,
em enciclopédias, enfim, em quaisquer formatos de expressão cultural que operam com
definições e caracterizações de objetos. O que pode significar este padrão de representação em
termos da idéia de formação de conceitos no âmbito dessa reflexão ?

Podemos, a princípio, postular que toda forma de conhecimento racional, que tenha
uma expressão de linguagem qualquer, deve ser, ao menos, assegurada pela predicação. Só
podemos afirmar o conhecimento (material ou metalingüístico) de x, se sobre x pudermos
predicar, ou seja, atribuir alguma propriedade que lhe seja inerente ou acidental11. Se a
vinculação entre o fato de conhecer x e o fato de podermos predicar sobre x é verdadeira,
estamos assegurando, de algum modo, que a predicação é um procedimento racional e
primário que podemos acionar para compreender a formação de conceitos. A predicação
pode representar, pois, um processo de cognição intuitiva que admite duas orientações
diferentes. Na primeira, a predicação é o efeito da nossa sensação de conhecer algo, pois é
através dos predicados atribuídos a um objeto que podemos falar do seu domínio conceitual.
Na segunda, a predicação é a possibilidade de virmos a conhecer um objeto, em razão de
predicados que podemos a ele aplicar. Tanto na primeira como na segunda situação, a
predicação é um procedimento de implementação da nossa atividade congnitiva, como
também um processo de construção teórica, na medida em que, através de procedimentos
lógico-lingüísticos, associamos a eles propriedades descritivas e funcionais, atribuímos-lhes
valores, conferimos-lhes funções a desempenhar. Esse duplo desempenho funcional da
predicação, assegura-lhe um valor necessário ao processo de formação de conceitos, pois é a
partir dela, predicação, que estruturamos condições para o (re)conhecimento de um dado
objeto.

interpretação e a legibilidade de uma expressão dependem, stricto sensu, de condições semânticas próprias, isto
é, de restrições seletivas, que determinam a compatibilização de unidades lexicais e construções sintagmáticas.

11
Podemos predicar sobre todo objeto que conhecemos, mas nem sempre o que predicamos sobre um objeto é o
que dele conhecemos. É preciso considerar predicações que reportam características e propriedades descritivas,
funcionais de um objeto, de predicações que representam apenas atitutudes proposicionais de quem predica. Por
exemplo, dizer de um objeto que ele é 'azul', 'retangular', 'áspero' etc. significa manifestar parte do que dele
conhecemos. Entretanto, dizer de um objeto que ele é 'chato', 'complicado', 'difícil' etc. representa apenas
manifestar atitudes proposicionais sobre ele, já que tais predicações não representam propriedades descritivas e
funcionais de um objeto, mas estados mentais do observador.
49

À predicação costumam ser associadas vantagens e desvantagens. Inclui-se, entre as


vantagens, o fato de se constituir, ao menos na forma de predicados monádicos, num processo
simples de aplicação atributiva12. A princípio, não há padrões lingüísticos específicos que
precisem ser determinados para o preenchimento de P  na fórmula S ε P , desde que
preencha uma certa função descritiva. É, por esta razão, que o critério da predicação tem uma
extensão de uso bastante abrangente, já que sua reprodução não requer maior rigor técnico. A
essa facilidade de uso associam-se desvantagens de ordem diversa. Se a forma canônica não é
suficiente para garantir um padrão de definições, já que nem sempre um elenco de
propriedades é o modo mais eficaz para definir um objeto, ela acaba por transformar cada
tentativa de definição num caso particular, já que não existem critérios seletivos para decidir,
por exemplo, sobre a ordem de um conjunto de propriedades. Esta dificuldade tem sido
lembrada por aqueles que defendem a necessidade de princípios ordenadores para as
categorias, ao menos quando pensadas em termos de composicionalidade. Desta dificuldade
acaba decorrendo uma outra desvantagem: o formato ad hoc das definições não nos permite
operações de cálculo posteriores, já que a ausência de uma estruturação evidente barra
qualquer tentativa de construção de processos formais de cálculo. Assim, não temos, por este
processo, nenhum critério que nos permita formar definições mais complexas de outras mais
simples; não temos nenhum procedimento algorítmico que nos permita transitar entre as
definições em questão; não há nenhum princípio recursivo de reaproveitamento das categorias
em definições ulteriores. Estas são algumas das dificuldades que, num grau de exigência
formal maior, poderiam ser lembradas a partir do formato de predicação global. De que modo
e em que extensão os fatos aqui relatados guardam alguma correlação com a segundidade ?
Afinal, a predicação pode ser vista como um padrão no interior desta etapa de categorização,
nos termos delineados por Peirce ?

Inicialmente, é importante destacar o fato de muitos estudiosos de Peirce atribuírem a


predicação monádica à primeiridade, já que ela representa apenas uma forma primitiva de
atribuição de qualidade. É provável que o resultado oriundo desse tipo de predicação, de fato,
enquadre-se dentro dos requisitos gerais de construção do conhecimento na primeiridade, isto

12
Esta é uma das razões através da qual alguns autores costumam vincular predicados monádicos à primeiridade
(PINTO, 1995. p. 41.). Os predicados monádicos, resultantes de uma operação simples entre um argumento e
uma propriedade a ele associada, representariam uma operação básica de primeiridade, onde apenas a qualidade
de um objeto (argumento) é reconhecida e não, por exemplo, relações outras que são derivadas de predicados
não-monádicos.
50

é, o de mera sensação de qualidade e que, portanto, represente uma etapa pré-reflexiva.


Todavia, a questão não pode, no nosso entendimento, ser vista apenas por este ângulo, pois, a
princípio, a suposição de que predicados monádicos possam integrar-se à primeiridade
implica extrair-lhes todo poder de estruturação lógica e racional que lhes tem sido conferido
na história da lógica. Assim, quando dizemos, por exemplo, que x é macio, a primeiridade
nos assegura apenas as condições de maciez de x, mas não o procedimento lógico,
metalingüístico, que nos permite, dentre muitas predicações concorrentes, formular esta para
x. Além do mais, os predicados monádicos não asseguram apenas supostas propriedades
primárias: quaisquer propriedades, como já supunha a forma canônica S ε P, comportam este
tipo de formulação e nem todas elas podem, certamente, integrar-se à primeiridade.

Assim, qualquer modelo de predicação representa uma forma genérica de


conhecimento e não mais mera sensação, obtida aquela por operações lógicas que envolvem
algum padrão de elaboração metalingüística, por exemplo, a construção do conceito de um
determinado objeto, mediante a reunião de um conjunto de propriedades que lhe são
associadas. Logo, se na formulação de Peirce caminhamos de uma sensação de qualidade para
um confronto, sendo este o primeiro nível de elaboração conceitual, resultante do contraste, ao
menos, entre dois objetos, parece adequado admitir que a predicação não possa mais ser
atribuída à primeiridade, pois ela já implica um grau de compreensão dos objetos que não
pode mais ser resultante apenas de uma sensação de qualidade. Somente podemos conjecturar
sobre esta elaboração conceitual, na medida em que ela se define, como parece determinar
Peirce, por exigências que são impostas para um processo de predicação, que, cada vez mais,
se incumbe de apontar para o existente, de isolá-lo, de reconhecer-lhe um estatuto que a
primeiridade não foi capaz de determinar. Independente da sua forma lógica, à predicação
caberá sempre a função de reconhecer, num universo ainda disforme, denominado pela
sensação de qualidade, aquilo que Peirce denominou de uma modificação pelo esforço
inteligente. Provavelmente, a humanidade não conhece nenhum outro mecanismo formal mais
natural e socialmente disseminado do que a predicação, para representar este esforço
inteligente.
51

2.3.2 Composicionalidade

O segundo aspecto do critério definicional, como mencionado, diz respeito ao


princípio da composicionalidade. Segundo esse princípio, o significado que atribuímos a
objetos, em geral, não representa uma totalidade a priori. mas decorre de um processo de
aglutinação de unidades, resultando em matrizes conceituais, com graus diferentes de
especificidade, mas capazes de selecionar aspectos da realidade. A base da construção de uma
matriz conceitual é um conjunto de categorias atômicas13, de base semântica distinta, que
podem ser submetidas a uma forma de organização particular. Composicionalidade não
representa também uma compreensão uniforme dos fatos em questão: ainda que princípios
gerais venham nortear parte da sua concepção, existem modos diversos de abordagem, que
operam a partir de condições diferenciadas e que, em conseqüência, produzem formatos
matriciais próprios.

Assim, dentro da Semântica Estrutural, a abordagem sêmica apresentou um formato


de análise que implicava colocar, lado a lado, os objetos de um dado conjunto e, deste cotejo,
formular relações estabelecidas entre os seus membros. Estas relações entre membros eram
asseguradas em razão de três conceitos gerais: o classema, que funciona como uma espécie
de condição geral para membramento, isto é, uma forma de filtro que decide sobre a
pertinência ou não de um dado elemento num conjunto; o semema, princípio regulativo do
lugar específico de um membro no conjunto; e o sema, como padrão estrutural genérico, capaz
de assegurar um teor de objetividade às operações de conjunção e disjunção, necessárias à
construção do classema e do semema. Por sua vez, as relações de disjunção e de conjunção, ao
condicionar agrupamentos possíveis de semas, tornavam-se instrumentos adequados à criação
de estruturas.

Havia ainda uma quarta categoria, o virtuema, com peso formal menos definido, mas
com uma função importante neste esquema, ou seja, a de ser portadora de toda transformação
possível para estruturas compreendidas no âmbito do classema e do semema. Ainda que
pesem críticas severas sobre a forma de operar esse esquema na descrição do significado das

13
No fundo, cada um dos elementos deste aglomerado nada mais é do que um predicado monádico possível, onde
a forma lógica já dispensa o papel da cópula, por valer-se de uma forma matricial de composição.
52

línguas naturais, há méritos que devem ser aqui reconhecidos, na medida em que nos
dispomos a assumir tal esquema na dimensão de um modelo explicativo para a formação de
conceitos (e não como padrão componencial para o significado, forma que lhe foi quase
sempre associada). Que aspectos, em razão do tema em análise, podemos extrair da dimensão
sugerida ?

O esquema de análise acima esboçado pode ser compreendido como um padrão de


determinação das condições gerais sobre um formato possível que nos permite conhecer, em
etapas diversas, um objeto. Ao definir as condições de pertinência de x num dado domínio, o
classema se coloca como condição primeira que é dada para conhecer x, já que quaisquer
operações subseqüentes implicam uma dependência desse primeiro passo. Assim, sobre
qualquer objeto de alcance do nosso conhecimento, podemos determinar o classema, isto é, o
conjunto dos semas que decidem sobre a sua inclusão numa dada classe e não em outra.
Quando o nosso conhecimento específico sobre algo é incompleto, costumamos dizer que se
trata de “um tipo de...”, “uma espécie de... “14. Tais expressões tipificam, de um modo geral,
a função exercida pelo classema. No outro extremo da necessidade de inserção na classe,
condição imposta pelo classema, está a possibilidade da sua extensão para outros domínios,
função que é desempenhada pelo virtuema, que determina, para um membro qualquer de um
conjunto, outras realidades virtuais a que se aplica. Por último, entre estes dois pólos,
situamos as condições específicas para reconhecer membros de uma classe. Estas condições
permitem a determinação de sub-classes de uma classe, de membros de uma sub-classe, como
ainda de idiossincrasias de membros. Esse processo de etapas sucessivas no reconhecimento
de recortes de uma realidade é assegurado pelo semema, um conceito com um grau de
complexidade operacional muito grande, porque implica a construção de matrizes conceituais
para a justificação de cada uma dessas etapas. O semema pode ainda ser aplicado na
compreensão de uma certa gradiência entre os membros de um conjunto. Assim, além do
critério clássico de remembramento − pertinência ou não-pertinência −, a análise sêmica
acentua a importância de uma análise ulterior dos membros de um conjunto, numa tentativa de
fixação das correlações existentes entre membros específicos. O funcionamento de cada uma

14
Operadores lingüísticos como estes e tantos outros foram denominados por LAKOFF(1972. p. 183-228) como
hedges , por traduzirem uma forma genérica de categorização, apontando apenas para o domínio da classe dos
objetos. Assim, asserções como Num certo sentido, baleia é um peixe ou Morcego é um tipo de pássaro não
asseguram que baleia e morcego sejam membros da classe de peixes e pássaros, respectivamente, mas apenas
mostram que eles partilham de propriedades comuns aos membros destas classes.
53

dessas categorias, em particular e no seu conjunto, está vinculado à objetivação de um cálculo,


de uma métrica que devia ser assegurada por operações não só de disjunção de semas, como
também de conjunção de semas.15

O segundo aspecto da composicionalidade, que nos importa de modo mais direto, diz
respeito à Semântica Interpretativa que será vista aqui como princípio genérico de
representação conceitual. Que aspectos desta abordagem têm relevância para a discussão de
problemas, relacionados à segundidade ? Passemos a uma caracterização do problema.

A Semântica Interpretativa parte do mesmo pressuposto básico da abordagem anterior,


assumindo que o significado não é uma entidade atômica, mas um compósito de predicações
atomizáveis. Além do mais, e aqui as duas abordagens se distanciam, sua composição seria
assegurada por regras de cálculo (um cálculo de segunda ordem, como era a pretensão),
capazes de justificar, em cada instância, objetos cada vez mais complexos, como polissemia,
sinonímia, implicação, analiticidade, sinteticidade, anomalia. No fundo, esta abordagem
apostou na construção de um sistema de regras que traduzisse uma dimensão rigorosa de
cálculo do significado, cujo modus operandi deveria implicar uma passagem do simples
(leitura primitiva) para o complexo (leitura derivada) e do global (possibilidades virtuais) para
o local (realizações particulares).

O alcance pretendido por essa abordagem implicou um rastreamento distinto do


significado: já não se trata apenas de um cotejo extensional entre signos-objetos, como se
procedia na análise sêmica, mas da necessidade de se incorporarem a essa dimensão de
análise semântica propriedades lexicais e relações lógico-gramaticais como determinantes do
cálculo. Considerando-se a importância da sintaxe nessa nova incursão da análise do
significado, outra compreensão dos objetos semânticos tornou-se possível, já que estes
passaram a ser concebidos em decorrência de filtros impostos pelas relações gramaticais sobre
o amalgamento de unidades lexicais. Quanto à questão restrita ao formalismo lógico, essa
incursão resultou na tentativa de se buscar um formato de cálculo que pudesse superar os

15
O outro padrão de análise do significado, dentro do Estruturalismo, está associado à análise componencial. Na
extensão do nosso trabalho não vemos, em essência, uma razão maior de sua exploração aqui, pois corremos o
risco de repetição, em razão dos aspectos em que se aproxima da análise sêmica, ou de tecnicidades excessivas
na análise lingüística, se voltamos para sua intervenção específica.
54

padrões do cálculo dos predicados, desenvolvido pela lógica moderna. A resposta alcançada
por essa tentativa apontou para a necessidade de uma outra perspectiva de cálculo, isto é, um
cálculo de segunda ordem, de tal modo a permitir predicado atuar sobre predicado. Dessa
preocupação resulta, portanto, uma nova concepção de forma lógica: não apenas propriedades
lógicas tradicionais (quantificadores, negação, relação sujeito/predicado) devem ser acionadas
para o cálculo do significado, como ainda as propriedades que compõem a matriz semântica
de qualquer item lexical. Assim, o conceito de cálculo do significado, na dimensão aqui
concebida, resulta de operações formais das regras de projeção, destinadas ao amalgamento de
propriedades lexicais, com base em leituras lexicais, em unidades cada vez maiores, leituras
derivadas, respeitadas as relações gramaticais, determinantes da estrutura sintagmática da
proposição. Como podemos entender a presença dessa abordagem nos aspectos concernentes à
construção e à representação do conhecimento ? De que modo ela opera, tornando possível
uma aproximação com esse problema ?

Apesar das dificuldades que foram apontadas para essa abordagem, sobressai, da sua
formulação teórica, o fato de ela poder constituir-se num modelo de representação conceitual
que possibilita ´calcular´ unidades mais complexas, a partir de uma matriz de predicados
atômicos, como abaixo exemplificado:

MATRIZ CONCEITUAL: {x, 1. ( [animado] ) ∧

2. ( [humano] ∨ [não-humano] 16) ∧


3. ( [macho] ∨ [fêmea] ) ∧
4. ( [adulto] ∨ [não-adulto] ) ∧

5. ( [casado] ∨ [não-casado] ∨ [nunca-casado] ∨ [ex-casado] )}.

16
A escolha possível do caminho [não-humano] deveria contar com um filtro que limitasse derivações seguintes,
em razão do campo de aplicação do conceito. Do ponto de vista biológico, nada impede que avancemos até a
linha 4, inclusive, mas a linha cinco só é aplicável à vida social de seres humanos. Certamente, poderíamos tornar
a linha 5 aplicável a animais, substituindo [casado] por [cruzado]. Do ponto de vista da existência de termos
disponíveis numa língua, as linhas 3 e 4 já apresentam dificuldades.
55

Com base em certas regras de derivação, podemos obter, como exemplo de aplicação da
matriz acima, os seguintes conceitos:

00. { ser vivo, ( [animado] ) }


01. { homem[+genérico], ( [animado] ∧ [humano] ) }
02. { homem[±±genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ) }
03. { homem[-genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ) }
04. { menino, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [não-adulto] ) }17
05. { marido, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [casado] ) }
06. { solteiro, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [não-casado] ) }
07. { solteirão, ([animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [nunca-casado] ) }
08. { separado, ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ∧ [ex-casado] ) }18

Dada a matriz conceitual anterior (certamente incompleta ainda para determinar todos os
membros admissíveis numa classe possível de objetos), dadas as derivações apresentadas de
00 a 08 (o mesmo poderia ser feito para conceitos derivados de mulher, com a alteração da
matriz conceitual a partir de 02), podemos, então, entender a natureza do cálculo proposto
pelos teóricos dessa abordagem.

Avaliando realizações da matriz conceitual em derivações específicas, constatamos


que a formação de um conceito singular está sujeita a uma restrição geral: um conceito
particular é constituído, mediante a aplicação da regra de formação que seleciona, a partir da
matriz conceitual, ao menos um traço atômico de cada uma das linhas de derivação,
numeradas de 1 a 5, na matriz em análise. Essa regra deve definir as condições de existência

17
Ainda que pelas restrições gerais ([macho] ∨ [fêmea]) devam ser mutuamente exclusivos na formação de um
conceito, há categorias na língua em que esta oposição aparece neutralizada, como no caso seguinte: {
criança, [animado] ∧ [humano] ∧ ([macho] ∨ [fêmea]) ∧ [não-adulto] }. Assim, a presença de elementos
isolados por parênteses na formação de um conceito particular e, por conseguinte, a presença de um conectivo
disjuntor, implica a neutralização do traço conceitual em questão.
18
Este arranjo de categorias pode também ser usado para expressar outros exemplares: assim, desquitado ou
divorciado têm uma representação semelhante, mas devem ser distingüidos com base em informações que
convencionam o uso de cada um.
56

de quaisquer membros de um dado conjunto pela aplicação sucessiva de uma operação de


adição de traços, como veremos abaixo. Entretanto, sua função primordial é garantir, acima de
tudo, o membramento em classe e sub-classe.

Desse modo, comparando, progressivamente, a passagem de uma derivação precedente


para a sua subseqüente, notamos a existência, na formação de um conceito, de duas operações
básicas de cálculo:

(i) adição de propriedades: Dada a matriz conceitual abaixo, onde cada etapa da
derivação compõe-se de três traços disjuntivos e dada a regra de formação, onde
um conceito (C i) é formado pela seleção de, ao menos, um traço numa das linhas
de derivação19, o procedimento para a composição de um conceito singular se faz,
mediante a somatória de componentes disjuntivos, selecionados no interior dos
parênteses, isto é:

Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... }

Regra de Formação: { C i : ( [x] ) i ...}

Adição de propriedades: (a) - { C j : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j }

(b) - { C k : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k }

(c) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [y] ) l }

(d) - { C m: ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [y] ) l ∧ ( [y] ) m };

Todas as derivações de (a) a (d) são formas possíveis que podem assumir a regra de formação,
depois de uma operação reiterada da adição, que seleciona componentes variados na matriz

19
No fundo, esta seleção de um único elemento, numa linha de derivação, é possível, formalmente, já que
podemos falar do conceito de “adulto”, ou do conceito de “macho” de modo independente. Entretanto, o uso que
fazemos destes conceitos se dá de forma integrada a outros conceitos, quando falamos de pessoas ou de animais.
57

conceitual para a composição de um conceito. Os limites de sua aplicação dependem, de


modo direto, da natureza da matriz conceitual concebida, ou seja, do número de linhas
derivacionais nela contidas e dos traços disjuntos incluídos em cada linha. Quanto mais
extensas e complexas forem essas duas dimensões de uma matriz, tanto mais a adição terá
liberdade de operar.20 Aqui, todavia, reside uma dificuldade para a qual a teoria não apresenta
uma solução apropriada: a necessidade de um limite a ser imposto ao número de linhas que
deve conter uma matriz conceitual. Vejamos, então, a segunda operação que podemos realizar,
com base numa matriz, para formar conceitos:

(ii) permuta de propriedades: dadas as possibilidades combinatórias de uma


matriz conceitual, dada uma regra de formação (ambas contendo as mesmas
especificações anteriores), obtém-se a composição de um conceito singular,
mediante a somatória de componentes disjuntos, selecionados no interior de um
parênteses (adição) e, subseqüentemente, na troca possível de quaisquer dos
componentes do conceito formado, onde quer que haja disjunção nas linhas
derivacionais utilizadas. Assim, podemos ter:

Matriz Conceitual: {... ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) i ∧ ( [x] ∨ [y] ∨ [z] ) j ... }

Regra de Formação: { C i : ( [x] ) i ... }

Adição de Propriedades: (e) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [y] ) l }


(em (a) anterior)

Permuta de Propriedades: (f) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [y] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (e) acima)

(g) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [y] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [z] ) l } (em (f) acima)

(h) - { C l : ( [x] ) i ∧ ( [x] ) j ∧ ( [x] ) k ∧ ( [z] ) l }


(em (g) acima)

20
Existem restrições complementares a serem feitas nesse processo de adição de propriedades: por exemplo,
embora situados em parênteses distintos, não possível é associar [não-adulto] a [nunca-casado], já que
proposições como Conheço um solteirão de quatro anos de idade não seriam aceitas, normalmente, pelos
falantes, a não ser com vistas a algum contexto específico.
58

A formação de um conceito particular é, portanto, resultado apenas da relação conjuntiva,


aplicada a elementos disjuntos (cf. 01-08 acima, p. 56), já que um conceito, na extensão dessa
abordagem, é um somatório de propriedades atômicas. Assim, a base de uma especificação
conceitual, cada vez mais singular, decorre de uma operação de adição de propriedades
atômicas, a partir de alguma seleção inicial feita através da regra de formação. A idéia de uma
operação de permuta, como aqui apresentada, é importante apenas na formulação de um
contraste conceitual, porque nos permite derivar de formações conceituais complexas, outros
conceitos em razão da troca de propriedades incongruentes e mutuamente exclusivas. A
permuta, porém, só se justifica em razão deste contraste, uma vez que ela é, no fundo, uma
operação de adição também. Assim, se admitimos a existência de ambas as operações para
formar conceitos, devemos ordená-las de modo a permitir que a permuta só possa ser aplicada
depois de, ao menos, uma aplicação da adição e para os casos de presença da disjunção numa
matriz.

Todo este conjunto de conceitos acima representa, na concepção da Semântica


Interpretativa, leituras primitivas, embora tenhamos mostrado derivações de formas mais
complexas a partir de formas mais simples. O alcance das leituras derivadas está circunscrito
a um outro padrão de cálculo, que obriga a incorporação de relações/propriedades
gramaticais, porque o fundamento destas leituras é determinado por estruturas proposicionais
(e não apenas no cálculo de estruturas conceituais para itens lexicais, como destacamos no
exemplo). Vejamos um aspecto dessa questão, a partir das frases abaixo, numa interpretação
preferencial, orientada para os elementos em questão:

(07) O homem está destruindo a natureza.


(em contraste com outros animais)
(08)Todo homem deve lutar por seus direitos trabalhistas.
(em contraste com mulher)
(09) Um homem já não tem mais habilidade para isso.
(em contraste com criança).

Como vimos nas derivações de 01 a 03 (p.56), o conceito homem apresenta-se de três


formas distintas, o que resulta em três conceitos diferentes de homem. No primeiro caso, a
natureza da predicação que atribuímos a homem (destruir a natureza), como um fato
59

genérico associado à intervenção de toda a humanidade na natureza e em contraste com outras


formas animais que não são humanas, nos obriga interpretá-lo como:

(07) O homem está destruindo a natureza.



([animado] ∧ [humano])[+genérico]

(Cf. 01. { homem[+genérico], ( [animado] ∧ [humano] ) })

No segundo caso, embora a leitura de [+genérico] seja parte do conceito homem, não
está em julgamento aqui um contraste possível com a permuta do traço [humano] para [não-
humano], dado o fato de que a natureza da predicação presente (lutar por direitos
trabalhistas) recorta apenas o universo dos seres humanos. Para este universo, no entanto,
pode-se, em razão de circunstâncias históricas específicas, apontar duas leituras possíveis para
homem: uma que aproveita a dimensão do [+genérico], mostrando que a luta é partilhada
tanto por homens, como por mulheres (numa circunstância histórica em que ambos os tipos de
força de trabalho fossem institucionalizados); outra que aproveita apenas a dimensão do [±
genérico], realçando a luta de seres do sexo masculino (por suposição, uma circunstância
histórica em que um contraste entre força de trabalho de homem e mulher estivesse em
contraposição). Daí decorre, então, a seguinte interpretação possível, em razão de
propriedades semânticas derivadas do predicado:

(08) Todo homem deve lutar por seus direitos trabalhistas.



([animado] ∧ [humano])[+genérico] (primeira leitura)
(([animado] ∧ [humano])[+genérico] ∧ [macho])[±genérico] (segunda leitura)

(Cf. 02. { homem[±±genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ) })


60

O exemplo (09) pode comportar leituras derivadas correspondentes aos três níveis do
conceito homem, em razão da natureza semântica do predicado ter habilidade, como
propriedade que aplicamos não só a seres humanos, para falar de um adestramento intelectual
ou físico na execução voluntária de tarefas, mas ainda a animais, em termos de adestramento
físico. A dimensão do [+genérico] permite comparar a habilidade de seres humanos com a
de animais: por exemplo, a perda de certas maleabilidades físicas, ocasionadas pelo processo
de socialização, de industrialização etc. Por outro lado, (09) pode partilhar a dimensão do [±
genérico], porque podemos contrapor esta habilidade (intelectual ou fisicamente),
comparando atividades para as quais os homens não estão mais aptos, em contraste com as
mulheres. Pode (09) comportar, também, a dimensão do [- genérico], onde o contraste
apontado, a partir da natureza da predicação, será entre homens e crianças. À medida que
avançamos de uma derivação para outra, a interpretação torna-se cada vez mais restrita,
porque leva em conta um percurso derivacional mais longo ou um número maior de traços
para que o conceito seja formado. O resultado dessas observações é, portanto:

(09) Um homem já não tem mais habilidade para isso.



(animado] ∧ [humano])[+genérico] (primeira leitura);
((animado] ∧ [humano])[+genérico ∧ [macho])[±genérico] (segunda leitura);
(((animado] ∧ [humano])[+genérico ∧ [macho])[±genérico] ∧
[não-adulto])[-genérico] (terceira leitura);

(Cf. 03. { homem[-genérico], ( [animado] ∧ [humano] ∧ [macho] ∧ [adulto] ) })

As explicações que foram apresentadas como justificativas de leituras possíveis para


as três proposições levaram em conta, não o conjunto dos fatos que deveriam ser assumidos
como suporte formal para cada uma das leituras (outras relações gramaticais, propriedades
semânticas de outros itens lexicais, valor argumentativo de certos operadores ...), mas apenas
aqueles fatos que estavam mais próximos de uma fundamentação do conceito homem.
Podemos, logo, considerar que a composicionalidade, pode ser justificada como um padrão de
61

predicação descritiva e assumida como um suporte para a formação e a representação


conceitual, a partir de modelos de raciocínio como este que acabamos de descrever.21

Em que extensão, portanto, podemos aproximar, em razão da tentativa de mostrar


possibilidades para a formação de conceitos, as duas dimensões da composicionalidade, que
foram acima descritas, com aspectos da segundidade, na extensão considerada ?

Se a segundidade se apresenta como o lugar onde se instaura o confronto, primeiro


estágio que Peirce parece conferir à racionalidade, é preciso determinar que tipo de
procedimentos somos levados a construir para poder operar com os ‘resultados’ deste
confronto. Em outras palavras, se à segundidade conferimos a etapa de uma construção
racional (ainda que incipiente), devemos, então, determinar que padrões regem essa
construção. A composicionalidade, nos dois formatos aqui discutidos, contém uma dimensão
que se aproxima da predicação, na medida em que ela é também uma forma de reconhecer o
domínio de um dado objeto. Entretanto, os detalhes nesse reconhecimento seguem um
caminho um tanto mais sinuoso: se num enunciado como Isto é um homem, a forma
predicativa ser homem determina o domínio imediato do objeto para o qual isto aponta,
sabemos, pela análise anterior, que o reconhecimento desse domínio se faz de forma
paulatina, já que, dependendo da extensão de homem, muitas etapas sucessivas teriam de ser
rompidas (conforme as derivações acima mostraram: [animado] → ... → [adulto]). O grau de
pertinência em sub-domínios distintos decorre da aplicação de cada uma das derivações em
tela. Tal fato nos mostra que nem todo conceito é obtido, na sua totalidade, de forma imediata:
se existe uma escala gradativa de membramento, é possível que exista também, nas mesmas
proporções, escalas gradativas de categorização. Fatos dessa natureza parecem adequados à
compreensão dos preceitos que regem a segundidade. Se ela se fundamenta pela idéia de
confronto e se é a partir dele que começamos a construir um padrão de racionalidade para
nossa experiência sensível, é adequado supor, então, que esse confronto não se dê de modo
total e único. Certamente, a cada momento a nossa experiência sensível poderá estar
recolocando, em novos confrontos, objetos anteriormente experimentados.

21
Muitas objeções foram apontadas em torno deste formato de análise. No fundo, elas traduzem duas dificuldades
genéricas: (a) a dificuldade da fixação de um quadro universal de traços atômicos primitivos e (b) a
impossibilidade, para muitas circunstâncias, de construção de definições analíticas. Polêmicas entre KATZ
(1975) e PUTNAM (1975) mostram grande parte dessas dificuldades.
62

Se é ainda do confronto que surgem as nossas experiências intelectivas, podemos


supor ser impossível definir um limite superior dessas experiências, já que, em cada
circunstância, um mesmo objeto poderá estar sendo submetido a novas etapas de confronto,
pois não existe nenhum limite que possamos imputar às relações de um objeto com outros. A
composicionalidade, apesar das dificuldades formais e ontológicas que enfrenta, parece ser,
pois, a princípio, um procedimento viável para a compreensão dos problemas discutidos por
Peirce no plano da segundidade. A capacidade infinita que temos para confrontar objetos ativa
não apenas o nosso dinamismo perceptual frente àquilo que experimentamos, como ainda a
nossa capacidade infinita de formar conceitos. Se o nosso organismo não se orientasse por
essas duas perspectivas para o conhecimento, estaríamos circunscrevendo um limite superior
para o conhecimento e estaríamos impendindo que segundidade e terceiridade se
remodelassem continuamente: uma formando conceitos, a outra os representando.

Uma compreensão menos genérica dos fatos que compõem a segundidade, na


extensão de uma formação de conceitos, possibilita, portanto, uma aproximação ao princípio
da composicionalidade, na forma como foi pensada a partir de algumas teorias semânticas.
Não se trata de uma explicação derradeira do problema, mas apenas uma forma de tornar mais
operacional o que pode, a partir da formulação de Peirce, representar um modo específico de
determinar, em termos das exigências de uma epistemologia atual, um padrão de explanação
para a segundidade.

22
2. 4 Segundidade e modelos de categorização conceitual

Nesta seção, discutiremos alguns aspectos de três abordagens teóricas importantes −


Teoria dos Conjuntos, Fuzzy Set Theory e Teoria dos Protótipos − em termos daquilo que
possam representar para uma avaliação mais detalhada da segundidade. Em outros termos,
tentaremos mostrar como é possível reinterpretá-las como uma explicação plausível de um

22
Estamos usando o termo categorização como designação genérica para alguns aspectos das formulações
elaboradas no interior da Teoria dos Conjuntos, da Teoria dos Protótipos e da Fuzzy Set Logic, certamente
aquelas que se aproximam mais da reflexão aqui desenvolvida.
63

alcance mais específico para a segundidade. O princípio básico que norteará toda discussão
continua sustentando esta última como um patamar, na tópica peirceana, de formação
conceitual.

2.4.1 Teoria dos Conjuntos (TC)

Comumente atribui-se a CANTOR (citado por KNEALE & KNEALE, 1980, p. 445) a
proposição inicial de uma Teoria dos Conjuntos e é nela que buscamos a definição de
conjunto que assumiremos como ponto de partida desta reflexão. Para Cantor, um conjunto é
“a reunião num todo de objetos da nossa percepção ou do nosso pensamento que são
definidos e distintos e que se chamam elementos do conjunto”. Aqui estamos interessados
num aproveitamento de aspectos desta teoria, não no que ela representa de específico para
abordar, por exemplo, relações e propriedades lógicas de números, mas no que ela pode
prover em termos da formação e da representação de conceitos. E, neste particular, achamos
que a teoria tem muito a oferecer, como tentaremos mostrar, em decorrência da definição de
conjunto apresentada. O modo pelo qual o autor define conjunto sugere um problema que
está no cerne da nossa discussão, isto é, o de apontar para o alcance da percepção e do
pensamento como expedientes necessários para reunir objetos num todo, ou em partes
constitutivas desse todo, − os sub-conjuntos. Ainda que esses dois parâmetros sejam amplos
demais para delimitar as operações de membramento, é possível determinar-lhes uma forma
instrumental de operar, a partir dos dois formatos de atomização conceitual, por exemplo,
vistos na seção anterior. Afinal, procuramos demonstrar que predicação e composicionalidade
são instrumentos formais, através dos quais podemos definir parte da nossa atividade de
perceber e de pensar. Além disso, é importante, em razão do nosso interesse teórico, o fato de
Cantor destacar as razões da experiência sensível, como possibilidade do reconhecimento de
elementos de um conjunto.
64

Na Teoria dos Conjuntos, na sua versão clássica23, o reconhecimento de certo objeto,


como membro de um conjunto, pode ser avaliado em função dos critérios que usamos para
decidir sobre a sua pertinência ou não em um domínio específico. Por exemplo, dado objeto
pode ser considerado membro da classe <vassoura> se pudermos decidir, por alguma forma
de avaliação − suas propriedades descritivas, seus traços característicos, ou sua função −, a
percepção que temos dele, ou a forma pela qual o concebemos em pensamento. Nesse caso,
ele reúne as condições suficientes para integrar-se ao domínio, no qual estão agrupados todos
os outros objetos-do-tipo-vassoura, ou objetos que guardem alguma semelhança com
‘vassoura’. Pelo contrário, diremos que tal objeto não pertence ao domínio em análise, se não
guarda uma identidade, pelas razões apresentadas, com os outros membros do conjunto. Em
linhas gerais, podemos assumir essa abordagem sobre conjuntos, para falar de critérios de
decisão sobre o reconhecimento de um objeto qualquer e, nesse sentido, formar-lhe um
conceito é definir critérios para decidir o seu domínio de pertinência. E é nessa dimensão que
nos interessa resgatar aqui, para uma avaliação que ultrapassa o escopo de objetos e de
relações formais em razão dos quais a Teoria dos Conjuntos foi concebida, alguns aspectos
da sua organização.

Mesmo desconsiderando, neste momento, alguns aspectos formais que serão


mostrados à frente, seria importante destacar, de modo genérico, características e dificuldades
que estão associadas aos critérios de decisão sobre a pertinência . Assim, ao tentar avaliá-la,
em função de circunstâncias específicas, enfretamos o fato de nem sempre ser possível
dispor, com clareza, dos critérios que definem sua aplicação. Analisemos alguns aspectos
dessa questão, a partir das especificações seguintes:

I - Teoria dos Conjuntos

Condição geral (CG): (∀x ∈ D);

Condição particular (CP): CA : D → {0, 1}.

23
O traço característico dessa versão, que estaremos explorando no texto, relaciona-se à aplicação do esquema
binário {0, 1} na avaliação da pertinência ou não-pertinência de um dado elemento num conjunto. Outros
aspectos dessa abordagem serão mostrados mais à frente, num comentário sobre a Fuzzy Set Theory, como
extensão da versão clássica.
65

Convenções: D = conjunto genérico


C = conceito característico
A = sub-conjunto de D

As condições impostas por (CG) e por (CP) acima determinam que, para todo x, pertencente
ao domínio genérico D (CG), se x satisfaz o conceito característico C, então x pertence a A,
sub-conjunto de D, podendo assumir o valor {0} ou {1} (CP). Essa regra pretende-se geral,
pois é através dela que decidimos sobre a pertinência ou não de um objeto num dado domínio.
Assim, por exemplo, se propriedades de um objeto especificado em x partilham do conceito
característico C, então o objeto em análise é um membro de A e a ele podemos atribuir o valor
{1}. Caso contrário, determinamo-lhe o valor {0}. Há, todavia, dificuldades conceituais de
expansão dessas condições, para justificar a compreensão de objetos naturais e artefatos. A
maior delas traduz-se pela necessidade de compatibilizar a rigidez do conceito característico
com a fluidez das propriedades de alguns dos objetos em questão.

A partir das condições acima, existem objetos para os quais uma decisão sobre sua
pertinência em um dado domínio pode, de fato, ser confirmada com base no sistema binário
em questão, {0, 1}, onde os dígitos representam um valor-verdade atribuível a quaisquer
indivíduos candidatos ao membramento em um domínio especificado. Esse procedimento de
avaliação da pertinência ou não-pertinência processa-se, de modo geral, numa relação entre
indivíduo-classe: há indivíduos aspirantes a membros e há propriedades, associadas a uma
dimensão da classe, que operam como critérios de pertinência. Assim, a classe <pessoas>
define, como critério geral de pertinência, uma combinação de propriedades como ([animado]
∧ [humano]), que representam o conceito característico C, para um sub-domínio P. Logo,
seres nomeados pelos signos ‘pai’, ‘mãe’, ‘carteiro’, ‘motorista’, ‘jogador’ satisfazem a
essa condição e, por esta razão, pertencem ao domínio em análise, podendo lhes ser atribuído
o dígito {1}, por exemplo. Objetos como ‘cadeira’, ‘livro’, ‘árvore’, ‘cão’, ‘macaco’ não
satisfazem essa condição e a eles devemos atribuir, por oposição, o dígito {0}, marca de sua
exclusão do conjunto. Para tantos outros campos da atividade humana, o procedimento de
conhecer um objeto opera de modo semelhante: para incluirmos um número qualquer no
conjunto <números primos> é necessário que ele satisfaça os critérios de inclusão nessa
classe, isto é, que admita, como conceito característico, apenas os divisores 1 e x, sendo x o
número em questão. Desse modo, {2, 7, 13 e 19} são primos, enquanto {8, 15, 21 e 45} não o
66

são. No segundo caso, qualquer membro admite como divisor, além de 1 e x, outros números
como − 2 e 4; 3, 5, 9 e 15 −, considerando-se o primeiro e o último membro listados.

A capacidade que temos para incluir ou para excluir objetos de uma classe talvez
represente a primeira forma elaborada de conhecimento que temos destes objetos: conhecer
um objeto é, ao menos, reconhecer-lhe o domínio de pertinência (ou de não-pertinência), e
apontar esse domínio é o primeiro estágio da construção de um conceito do objeto, ou seja,
associamos a ele, minimamente, as propriedades que regulam sua inclusão (ou sua exclusão)
no (do) conjunto. Quando estamos diante de um objeto desconhecido e indagamos ‘para que
serve isso’, operamos, pragmaticamente, com a necessidade de determinação de um domínio
funcional para esse objeto. Se a resposta for ‘serve para cortar papel’, incluímo-lo, de
imediato, no conjunto de ‘tesoura’, ‘espátula’, ‘estilete’, ‘guilhotina’ ... Então, como vimos
anteriormente, conhecer um objeto artefato, nos termos de MONOD (1972), significa
associar-lhe um projeto24 para o qual ele foi construído. Aqui vinculamos a esses objetos o
projeto instrumento para cortar papel, que também é o seu conceito característico.

A natureza, entretanto, nem sempre nos assegura uma linha divisória nítida entre os
elementos aos quais podemos atribuir {0} e aqueles a que atribuímos {1}: na diversidade dos
fatos da realidade, é mais comum encontrarem-se domínios onde membros centrais convivem
com a possibilidade de membros mais ou menos periféricos. Nos dois exemplos analisados, a
questão não parece relevante. O fato de ‘8’ admitir quatro divisores e ‘45’, seis divisores, não
faz daquele um candidato a membro menos periférico do que este ao conjunto <números
primos>. Tal constatação deve-se apenas a uma circunstância associada à posição desses
números na escala dos números naturais: quanto mais avançamos na série, se não se trata de
um número primo, tanto maior pode ser o número de divisores admitidos. Em outros termos, a
matemática controla os membros desse conjunto através de um designador rígido (KRIPKE,
197...), conforme já foi mostrado, fazendo dele um conjunto não-fuzzy. No outro exemplo, a
estratificação cultural que temos para o conjunto <pessoas>, de fato exclui, com clareza, os

24
Seguindo Monod, é possível afirmar que todo objeto artefato expressa um projeto, isto ém uma função para o
qual ele foi construído. No outro extremo do contraste, estão os objetos naturais, para os quais não podemos
universalizar a inexistência de um projeto a eles associados: não saberíamos dizer que projeto deve ser associado
a ‘vento’, a ‘água’, a ‘pedra’... Entretanto, quando recortamos uma pedra para servir de revestimento parta pisos
ou paredes, acrescentamo-lhe um projeto e, portanto, a transformamos em artefato. Há casos, porém, em que a
função de uma espécie natural já está garantida, à revelia de qualquer manipulação: por exemplo, órgãos do
corpo – ‘coração’, fígado’, ‘rins’... – são espécies naturais que contêm neles integrado um projeto.
67

elementos citados como não-membros, mas é claro que, ao menos a título de especulação,
existem gradações na exclusão, isto é, existe uma distância diferente da não-pertinência entre
OS elementos em análise. A possibilidade de ‘macaco’ ser incluído como um exemplar
periférico do conjunto é muito maior do que a de ‘cadeira’ e ‘livro’; entretanto, aqui também,
ao menos em termos das culturas a que temos acesso, existe um designador rígido para
membramento no domínio <pessoas>.

Em relação aos dados até agora comentados, o esquema binário {0, 1}, que atribui
valor de pertinência ou não-pertinência a elementos pretendentes a membros de uma classe, é
suficiente na tarefa de membramento. Como já mencionamos, no entanto, a diversidade da
natureza nos impõe, em grande escala, decisões para as quais esse esquema já não é mais
suficiente, a saber, casos em que a avaliação do domínio de pertinência de um objeto não
pode ser arbitrada por meio de designadores rígidos, no formato binário em questão. Neste
momento, já não temos mais clareza sobre a inclusão de um objeto, numa classe ou em outra
qualquer. Há elementos que podem, em determinada circunstância, ser membros periféricos
de um primeiro conjunto, em outra, ser membros centrais de um segundo, considerando-se
maior ou menor aderência de certos traços ao conceito característico. Há elementos que se
tornam membros de uma classe, em razão de um tipo de traço e deixam de sê-lo em razão de
outro. Na realidade, deparamos com situações onde um objeto pode não satisfazer, em
plenitude, os critérios de pertinência a um domínio, como também não contradiz esses
critérios a ponto de dever ser dele excluído. A tentativa de se elucidarem questões dessa
natureza possibilitou o desenvolvimento da Fuzzy Set Theory, desenvolvida por ZADEH
(1966), cujos critérios de membramento são decididos por uma escala de gradiência entre os
seus membros, conforme veremos na formulação seguinte.

Concluindo, parcialmente, a importância da Teoria dos Conjuntos na discussão que


está sendo realizada, seria importante reafirmar que as condições gerais de pertinência são
procedimentos válidos na fixação de critérios mínimos que levem a uma compreensão mais
precisa sobre a formação de conceitos. É claro que os padrões aqui determinados ainda são
vagos numa empreitada mais localizada, mas é claro, também, que a idéia de pertinência,
certamente, representa um passo decisivo sobre uma forma de racionalidade possível, aquela
que, com certeza, nos possibilita alguma estruturação da realidade. De algum modo, para
68

quaisquer objetos do nosso conhecimento, seremos capazes de determinar, ao menos, o


domínio a que eles pertencem. E esse procedimento já é uma condição primeira para a
formação do seu conceito.

2.4.2 Fuzzy Set Theory (FST)

As motivações principais da FST decorrem, precisamente, da dificuldade maior que se


constatou acima, em 2.4.1, isto é, a existência de classes de objetos naturais ou artefatos,
importantes como princípios de classificação e de informação humana, cujo critério de
membramento não pode ser determinado com precisão, através de uma escala binária.
ZADEH (1966, p. 338-9), na tentativa de superar essa dificuldade e ao introduzir os
parâmetros gerais de um conjunto fuzzy, contrasta o alcance de sua proposta em sua relação à
Teoria dos Conjuntos:

“The purpose of this note is to explore in a preliminary way some of the


basic properties and implications of a concept which may be of use in
dealing with “classes” of the type cited above. The concept in question is
that of a fuzzy set, that is, a “class” with a continuum of grades of
membership. As will be seen in the sequel, the notion of a fuzzy set
provides a convenient point of departure for the construction of a
conceptual framework which parallels in many respects the framework
used in the case of ordinary sets, but is more general than the latter and,
potentially, may prove to have a much wider scope of applicability,
particularly in the fields of pattern classification and information
processing. Essentially, such a framework provides a natural way of
dealing with problems in which the source of imprecision is the absence of
sharply defined criteria of class membership rather than the presence of
random variables.” (p. 338-9)

Desse comentário do autor, podemos destacar dois aspectos importantes a serem


considerados numa comparação entre as duas abordagens. Quanto ao alcance de sua
aplicação, a FST é considerada uma versão ampliada da TC e, em razão disso, ela altera a
concepção de conjunto sobre a qual atua: enquanto a última os concebe numa dimensão
descontínua, a primeira reafirma o seu teor de continuidade. Assim, a versão clássica
(ordinary sets), na extensão do uso que dela estamos fazendo, define, como objetivo, a
69

determinação de critérios binários para a pertinência ou não-pertinência em domínios


descontínuos. A versão ampliada (fuzzy sets) pretende determinar critérios que permitam
avaliar “class with a continuum of grades of membership”, descartando, por esse motivo,
critérios binários.

Do ponto de vista formal, o mesmo padrão de regras construído para TC foi usado
para FST, com os ajustes devidos aplicados à ultima. Por exemplo, as condições gerais que
permitem atribuir valores a membros de um domínio, comparando-se as duas teorias, já
mostram as diferenças pretendidas pela FST:

I - Teoria dos Conjuntos (TC)

Condição Geral (CG): (∀x ∈ D);

Condição Particular (CP): CA : D → {0, 1}.

II - Fuzzy Set Theory (FST)

Condição geral (CG): (∀x ∈ D);

Condição particular (CP): CA : D → [0, 1].

Considerando-se as mesmas convenções vistas para a TC, as duas condições acima, em II,
mostram: para todo x pertencente ao domínio genérico D (CG), C representa uma função que
atribui propriedades do subconjunto A (de D) a uma especificação qualquer de x, resultando,
para x, um valor situado na escala entre [0, 1], (inclusive). Em termos das condições gerais, o
fato que distingue FST de TC é o modo de avaliação dos elementos do conjunto: enquanto a
forma {0, 1} admite apenas dois valores absolutos, a forma [0, 1] reconhece uma escala
infinita de valores, inclusive 0 e 1. Assim, pertinência e não- pertinência são substituídos por
gradiência e um elemento qualquer não é mais avaliado em razão de ser ou não ser membro de
70

um conjunto, mas apenas de integrá-lo com maior ou menor aderência semântica, com base no
conceito característico.

Além da diferença incorporada por essas condições iniciais, seria importante ressaltar
o que resulta da sua aplicação, comparando-se ainda outros conceitos básicos entre as duas
versões. Inicialmente, mostraremos o funcionamento de cinco conceitos básicos da TC, a
saber, interseção, união, conjunto universal, conjunto vazio e conjunto complemento. Na
seqüência, faremos uso ampliado deles para a FST. Para a exemplificação desses conceitos,
estamos assumindo D, como o domínio <pessoas> e os dois subdomínios de D, A e B,
respectivamente, como <jogador> e <filósofo>. Vejamos, então, uma apresentação formal
para esses fatos:

I - Teoria dos Conjuntos:

Domínios: { D = <pessoas> };
{ A = <jogador> };
{ B = <filósofo> }.

Extensões: {A = <jogador>: Cjogador (Platão) = 0};


{B = <filósofo>: Cfilósofo (Platão) = 1}

Conceitos básicos (estamos pressupondo as condições iniciais já vistas):

Interseção entre conjuntos:


(∀x ∈ D) min(C filósofo (Platão) ∩ Cjogador (Platão)) = 0;

União de conjuntos:
(∀x ∈ D) max(C filósofo (Platão) ∪ Cjogador (Platão)) = 1;

Conjunto complemento:
(∀x ∈ D) (C não-filósofo (Platão)) = 0 (pois: 1 - (C filósofo(Platão)) = 0);
(∀x ∈ D) (Cnão-jogador (Platão)) = 1 (pois: 1 - (C jogador (Platão)) = 1);
71

Conjunto vazio:
(∀x ∈ D) (c∅ (x)) = (Cjogador (Platão)) = 0;

Conjunto Universal:
(∀x ∈ D) (cD (x)) = (Cfilósofo (Platão)) = 1.

Numa formulação discursiva para algumas dessas ilustrações de conceitos, podemos


demarcar, a partir dos dois subconjuntos de D, isto é, A e B com as características
especificadas, <jogador> e <filósofo>, respectivamente, as seguintes explicações:

a) Interseção entre conjuntos: considerando as extensões dos dois subconjuntos e


considerando ainda que a interseção é determinada pelo operador min, o qual
requer a existência de, pelo menos, um membro que partilhe do conceito
característico dos dois subconjuntos, pode-se dizer que o valor da interseção é
zero, ou que ela não existe na relação de A com B. Em outras palavras, o valor da
operação A ∩ B = 0 deve-se ao fato de nenhum membro de A poder partilhar o
conceito característico de B, por ser A um conjunto vazio, conforme a extensão
que lhe foi atribuída. Inversamente, ainda que B não seja nulo, de acordo com sua
extensão, a interseção também não é possível, já que nenhum membro de B pode
estar também em A, por ser A um conjunto vazio;25

b) União de conjuntos: com base nas extensões dos dois subconjuntos e


considerando as restrições impostas pelo operador max indicando que a união
resulta do somatório dos membros contidos nos domínios em questão, pode-se
dizer que existe união, uma vez que um dos domínios não é nulo. Assim, no
exemplo acima, o valor da operação A ∪ B = 1 decorre do somatório dos
membros contidos em A e em B, confirmando a união. Se o valor da operação é
{1}, porque se atribui {1} a B e {0} a A, a união torna-se possível, uma vez que a

25
Outro formato para definir interseção pode ser: “ST que é chamado o produto interior (ou interseção) de S e
T, contém aqueles objectos que são elementos de S e de T e nada mais.”, (KNEALE & KNEALE. 1980, p. 446).
72

totalidade dos membros de B, ao menos, pode compô-la na relação entre estes


dois domínios.26

As fórmulas e as aplicações acima foram descritas para ressaltar, sobretudo, alguns


detalhes de compreensão de aspectos da TC, importantes para uma discussão da FST.
Selecionamos, apenas, dois domínios contendo um único membro cada um, para ilustrar,
razão pela qual ainda mantivemos os valores numéricos dentro do padrão binário {0, 1}. À
medida que viermos a ter outros domínios (ou um número maior de elementos para avaliação
em domínios), como mostraremos abaixo, as conveniências de aplicação da FST tornam-se
mais claras, na descrição dos fatos. No caso dessa última, então, além da modificação inicial
já mostrada, os conceitos básicos − interseção, união, complemento... − mantêm-se os
mesmos, mas adaptados em relação ao cálculo dos valores numéricos, devido à noção de
intervalo introduzida na condição particular para a FST. Além do mais, a FST depende de um
princípio genérico de aplicação do conceito característico, que serve para mostrar uma
aderência semântica maior ou menor entre os membros de uma classe, conforme formulação
de OSHERSON, SMITH (1981, p. 42):

“The larger cA (x), the more x belongs to A; the smaller cA (x), the less x
belongs to A; 1 and 0 are limiting cases (for all x ∈ D).”

Assim, quanto maior for o valor assegurado pelo conceito característico, C, avaliadas as
propriedades de um determinado elemento, x, em relação a um domínio em questão, A, tanto
maior será o grau de sua inclusão na classe (e tanto mais ele refletirá a natureza do protótipo
da classe, com veremos mais à frente). E quanto menor for o valor a ele atribuído, tanto menor
será o grau de sua pertinência à classe (e mais distante ele estará do protótipo).

Desprezando os detalhes do cálculo funcional para valores específicos, determinados


pela grau de aderência de um elemento à classe, expressos pela escala numérica [0, 1] e
aplicados aos conceitos básicos, podemos compreender a natureza de um conjunto-fuzzy. Na
essência, trata-se de um conjunto, cujo critério de avaliação de seus membros não se faz,
necessariamente, pela pertinência e não-pertinência, mas por uma escala gradativa entre os

26
A união, também, pode ser definida do seguinte modo: “S + T que se chama a soma lógica (ou união) de S e T,
contém aqueles objectos que são elementos de S ou de T e nada mais. “, (KNEALE & KNEALE, 1980, p. 446).
73

dois valores27, onde os membros não são, nem deixam de ser integrantes de uma classe, mas
aderem a ela em escalas variáveis. Podemos, então, para ilustrar efeitos das mudanças
resultantes nos princípios acima, reajustar os domínios anteriores com outras extensões:

{I = <marciano>: Cmarciano (Platão) = 0;


Cmarciano (Sócrates) = 0;
Cmarciano (Pelé) = 0;
Cmarciano (meteorito) = 1}

{J = <jogador>: Cjogador (Platão) = .2;


Cjogador (Sócrates) = .5;
Cjogador (Pelé) = 1;
Cjogador (meteorito) = 0}

{K = <livreiro>: Clivreiro (Platão) = .5;


Clivreiro (Sócrates) = .6;
Clivreiro (Pelé) = .6;
Clivreiro (meteorito) = 0; }

{L = <professor>: Cprofessor (Platão) = .7;


Cprofessor (Sócrates) = .7;
Cprofessor (Pelé) = .7;
Cprofessor (meteorito) = 0}

27
Ao introduzir o conceito de escala gadiente de pertinência, a FST compromete-se também com um outro
padrão de valor-verdade. Se os membros se distribuem numa escala entre [0] - falso – e [1] - venladeiro -, torna-
se inevitável que tenhamos também gradações para o verdadriro ou para o falso. Muito verdadeiro, um tanto
verdadeiro, bastante verdadeiro. quasi-verdadeiro, apenas verdadeiro, pouco verdadeiro, ligeiramente
verdadeiro. nada verdadeiro..., para usar apenas um dos valores, seriam, com certeza, componentes dessa escala
metalingüística. As dificuldades decorrem dessa tentativa de graduar, através de artifcios sintagmáticos, uma
escala lingüística para verdadeiro, dadas as dificuldades de sua percepção intuitiva. Nada nos assegura, ao menos
para regiões vizinhas, a ordem de certas gadações: se consideramos verdadeiro um dos pontos máximo da escala,
o que estaria mais próximo dele: muito verdadeiro, bastante verdadeiro ou quasi-verdadeiro ? Em algumas
circunstâncias experimentais, com valores numéricos apurados através do confronto da intuição de sujeitos-da-
experiência, costuma ser sugerido o padrão: '.8 verdadeiro’, '.5 verdadeiro', '.1 verdadeiro' ...
74

{M = <filósofo>: Cfilósofo (Platão) = 1;


Cfilósofo (Sócrates) = 1;
Cfilósofo (Pelé) = .8;
Cfilósofo (meteorito) = 0}28

Estamos propondo agora cinco domínios distintos (I-M) e quatro candidatos a


membros (Platão, Sócrates, Pelé, meteorito). Vamos supor que esses dados fossem
submetidos a um grupo de observadores que deveriam proceder a uma certa classificação
desses objetos em cada um dos domínios. É assim que a FST procede na avaliação concreta na
obtenção de padrões de pertinência. O resultado suposto seria o quadro delineado, com
gradações diversas para cada um dos membros, o que já não representa mais um padrão de
membramento em que os valores binários da TC fossem suficientes. Vamos esclarecer, a
título de ilustração da teoria, algumas das organizações propostas para os domínios acima:

a) I = <marciano>: aos elementos ‘Platão’, ‘Sócrates’, ‘Pelé’ foi atribuído o


valor 0 da escala, porque os observadores não reconheceriam a possibilidade de
que a pessoas se aplique o conceito característico do domínio, que descreve ‘algo
proveniente de Marte’. Por sua vez, admitem a possibilidade de que objetos que
lembrem a idéia de “matéria inorgânica” possam ser incluídos nessa classe, em
razão de amostras colhidas, provenientes da superfície de Marte, daí o valor 1,
atribuído a ‘meteorito;’

b) M = <filósofo>: a Platão e Sócrates foi atribuído o valor máximo da escala,


1, porque admitiriam que o conceito característico, que descreve ‘pessoas que
desenvolvem um certo tipo de atividade intelectual’, pode ser partilhado por eles.
A Pelé atribuiu-se um valor menor, .8, porque considerariam que ele pode
satisfazer a umas exigências do conceito característico, mas não a outras. Aqui,
poderíamos supor uma interferência de certos fatores culturais na discrepância

28
Estes valores estão sendo arbitrados aleatoriamente; na prática experimental, os valores são obtidos através de
testes de avaliação de membramento de elementos num conjunto e representam o grau de pertinência que os
entrevistados atribuem a eles.
75

desses valores atribuídos. Existe uma avaliação geral das condições de


possibilidade, pois todos compõem a exigência primária do conceito <pessoas>.
Além do mais, existe um reconhecimento partilhado da parte dos observadores
sobre o fato de os dois primeiros serem filósofos e o terceiro, jogador.
c) Os demais domínios (J, K, L) refletem, de modo mais decisivo, uma
interferência entre condições de possibilidade e fatos culturais29. O valor 0 foi,
unanimemente, atribuído a meteorito, pelo fato de cada um dos conjuntos
introduzir um conceito característico que representa especificações do domínio
<pessoas>. Por outro lado, os demais elementos apresentam um comportamento
diferenciado, pois, ora se distanciam entre si, como em J, ora estão muito
próximos, como em K, ora se tornam equivalentes, como em L. Esse fato, como
já assinalamos, deve-se a um certo confronto entre as condições de possibilidade e
a quantidade de informações de que dispomos sobre os objetos. Não há, assim,
nenhum padrão específico a ser previsto e as condições reais só podem ser
determinadas através da experimentação ou da contextualização.

Os comentários sobre a exemplificação da teoria realçam a relação de cada um dos


domínios com os membros em questão. Podemos, também, reorientar o raciocínio, mostrando
que a FST pode ser aplicada, considerando a relação de um dos elementos em contraste com
todos os domínios. A comparação mostraria, para um elemento único, uma escala gradativa de
pertinência e é dela que melhor derivamos a idéia de que, para essa teoria, a relação entre os
domínios é de continuidade.

Podemos agora avaliar os efeitos das modificações em alguns dos conceitos básicos,
com base na ilustração que foi desenvolvida. Selecionamos para isso o conceito de conjunto
complemento.

Conjunto Complemento: (aplicação em J)

{J = <jogador>: Cjogador (Platão) = .2;

29
Numa experimentação realista, os testes propostos deverão, de fato, contornar esta dificuldade em alguma
extensão, por ser ela determinante da percepção de quaisquer conjuntos de objetos.
76

Cjogador (Sócrates) = .5;


Cjogador (Pelé) = 1;
Cjogador (meteorito) = 0}

Valor dos complementos:

(∀x ∈ D) (C não-jogador (Platão)) = .8 (pois: 1 - (C jogador (Platão)) = .8);

(∀x ∈ D) (C não-jogador (Sócrates)) = .5 (pois:1 - (Cjogador (Sócrates)) = .5);

(∀x ∈ D) (C não-jogador (Pelé)) = 0 (pois: 1 - (C jogador (Pelé)) = 0);

(∀x ∈ D) (C não-jogador (meteorito)) = 1 (pois: 1 - (C jogador (meteorito)) = 1);

No primeiro caso da exemplificação acima, podemos compreender que o complemento de (C


jogador (Platão)), em J, isto é, o subconjunto de todos os objetos que estão fora do domínio J,
logo todos pertencentes ao domínio (C não-jogador (Platão)), tem o valor numérico .8, na escala
[0, 1], já que qualquer conjunto complemento é calculado subtraindo-se o conjunto em
análise do conjunto universal, de valor 1. Temos, portanto, (D - Ji) = ¬ Ji, onde D é o
conjunto universal, J o conjunto em análise e ¬J o conjunto complemento. Substituindo, no
primeiro exemplo, por valores numéricos correspondentes, obtemos o valor do comjunto
complemento: (1 - .2) = .8. Procedendo da mesma forma, podemos calcular o valor do
conjunto complemento nos demais casos.

A FST constitui-se como uma extensão da TC, estruturando-se, porém, a partir de um


outro parâmetro para reconhecimento de elementos numa classe. Ao introduzir escalas
variáveis de pertinência, acaba por determinar uma variância conceitual, decorrente do
confronto entre diversos objetos numa escala contínua. Se a TC já despontava como um
instrumento de racionalização importante, na medida em que se apresenta como um
procedimento de organização de objetos naturais e artefatos, a FST se mostra como um
instrumento ainda mais eficaz de racionalização, já que possibilita um refinamento maior da
77

estruturação entre objetos. Esse aspecto da formulação é que nos leva, portanto, a pensar,
como analisaremos a seguir, a sua relevância para a reflexão que estamos desenvolvendo, no
sentido de explicitar a segundidade como um padrão de racionalidade e, em conseqüência,
como instância de formação conceitual.

2.4.3 Teoria dos Protótipos (TP)

As preocupações formais da TP migraram, diretamente, das propostas teóricas


desenvolvidas a partir da FST. Por seu turno, uma vez que a FST deriva, diretamente, da TC,
podemos antever que problemas e objetivos afeitos a esta última, os quais estiveram em
discussão na primeira, se façam presentes, também, na abordagem prototípica. De fato,
questões fundamentais relativas ao membramento, numa qualificação diferente, continuarão
sendo objeto de preocupação na TP. Assim, apesar da proximidade conceitual entre as duas
abordagens, a TP procurou destacar objetivos próprios, em termos do alcance pretendido com
a análise. OSHERSON e SMITH (1981) comentam:

“The distinguishing doctrine of the new theory is that entities


fall neiher sharply in nor sharply out of a concept’s extension. Rather, an
object instances a concept only to the extent that it is similar to the
prototype of the concept; the boundary between memberships and
nonmemberships in a concept’s extension is thus fuzzy. We’ll call the new
theory (really, class of theories) prototype theory. In this paper we
consider two aspects of concepts relevant to choosing between prototype
theory and its more tradictional rivals. One concerns conceptual
combination, that is, the process whereby relatively complex concepts are
forged out of relatively simple ones. The other deals with truth conditions
for thoughts, that is, the circunstances under which a thought
corresponding to a declarative proposition is true. For both aspects, we
argue that the new theory of concepts fares worse than the old.”30. (p.38)

Na percepção dos autores, devem-se destacar duas tarefas dentre aquelas a serem
desesenvolvidas a partir da TP. A primeira lembra, de algum modo, o padrão de raciocínio
desenvolvido na composicionalidade, isto é, a construção de conceitos mais complexos, a

30
Além desse autor, utilizamos também o texto de ARMSTRONG, GLEITMAN, & GLEITMAN (1983. p. 263-
308) para uma discussão específica da TP. Ambos os textos foram escritos a partir das formulações inciais de
ZADEH (1966).
78

partir de conceitos mais simples. A segunda assegura a importância das condições de verdade,
ou seja, a compatibilidade entre pensamento e conteúdo proposicional, na sua função de
descrever algum recorte da realidade. Certamente, o padrão de verdade, que se torna adequado
aos princípios da TP, precisa ser ajustado, em razão das características em que se fundamenta
o processo de membramento, isto é, “... entities fall neiher sharply in nor sharply out of a
concept’s extension.”(OSHERSON/SMITH, 1981)

A TP nem sempre se apresenta como um sistema único de conceitos que traduz uma
única forma de representação cognitiva dos objetos. Há abordagens diversas em função da
especificação de detalhes formais e até mesmo em razão de padrões diferenciados no modo de
configurar modelos conceituais. É possível, porém, localizar alguns aspectos centrais dessa
abordagem, desconsiderando divergências localizadas, os quais constituem um certo núcleo
que perpassa grande parte das suas aplicações. Muitos trabalhos sobre estruturas das línguas
naturais apropriaram-se desse expediente conceitual e, a partir dele, compuseram um formato
específico de análise. Vamos, então, retomar, de modo resumido, alguns pontos da
caracterização da teoria.

Numa comparação mais localizada, podemos afirmar que aquilo que vale, em termos
das relações entre objetos, para a formulação da FST, também é válido para a TP. Os
conceitos básicos − interseção, união, complemento... − (p. 33-4 deste trabalho) , bem como a
condição geral e a condição particular (p. 32 deste trabalho) determinam também relações
possíveis dentro da TP. Há um detalhe, entretanto, que torna a TP uma teoria diferenciada da
FST, a saber, a seleção de um protótipo dentre os membros que compõem uma classe de
objetos. Enquanto na FST nenhum membro deve ser destacado do outro, já que todos devem
ser dispostos numa escala numérica gradativa, na TP, os membros são confrontados, um a um,
com um protótipo, selecionado dentre a totalidade dos membros da classe. Ao assumir a idéia
de que, no conjunto dos membros concorrentes numa classe, ao menos um deva ser alçado à
condição de protótipo, a teoria abandona a idéia de gradiência universal para membros de uma
classe, sustentada pela FST. Isso requer a introdução de um novo conceito, distância métrica,
destinado a avaliar a posição relativa de cada membro na classe em relação ao seu protótipo.
79

Formulações correntes da TP, conforme versão de OSHERSON & SMITH (1981)31,


na sua aplicação à análise de fatos das línguas naturais, compreendem um esquema geral
para representação mental de conceitos que implica relações caracterizadas com base em
quatro parâmetros, conforme descrição apresentada na seqüência.

Teoria dos Protótipos:

Princípio Geral : TP: < A, d, p, c >.

Segundo a formulação acima, a TP é constituída com base numa quádrupla, onde ‘A’
representa um domínio conceitual de objetos possíveis; ‘d’ constitui a distância métrica entre
os membros de ‘A’, aos quais identificamos através de números positivos; ‘p’ representa um
membro de ‘A’, selecionado como seu protótipo; ‘c’ constitui uma função conceitual (ou um
conceito característico) que opera em ‘A’, no do intervalo gradiente [0,1], com base em
propriedades que são associadas aos membros da classe. De modo mais específico, podemos
ilustrar os fatos acima, considerando, por exemplo, domínio < S = calçados >. Podemos
conceber, então, a aplicação do esquema geral num domínio particular, resultando:

Domínio Particular: <S, dcalçado, pcalçado, ccalçado >.

Esse esquema contém indicações fundamentais, o que nos possibilita, com base nos elementos
nele contidos, conceber um formato diferente de percepção para as relações entre os objetos
do conjunto em foco. Na seqüência, vamos determinar, passo a passo, cada um dos
componentes do DP, em quatro operações distintas, destacando como elas se comportam, isto
é, que fatos expressam, em relação aos membros do domínio selecionado. Avaliemos, então,
os quatro componentes a partir de exemplos ilustrativos:

a) <S>: o domínio <S> é o conjunto de todos os objetos imagináveis que


partilham de uma descrição que deve ser provida pelo conceito característico
<calçado>, incluindo ‘sapato’, ‘chinelo’, ‘sandália’, ‘tênis’, ‘tamanco’,

31
A formulação dos autores nesse texto serviu de base para a exposição aqui apresentada sobre a Teoria dos
Protótipos.
80

‘botina’, ‘bota’, ‘galocha’ ... Substituindo ‘S’, no DP, pelos objetos que ele
representa, obtemos:

Domínio particular: < sapato, chinelo, sandália, tênis, ..., d calçado,


p calçado, c calçado >;

b) <ccalçado> : a função <ccalçado> projeta o conceito característico <calçado> em


um grupo de objetos, de tal modo a torná-los, descritivamente, aptos a se
constituírem em membros de uma dada classe. Assim, podemos esquematizar a
projeção do conceito característo sobre os membros do domínio em análise,
conforme ilustramos abaixo:

Domínio particular: < sapato, chinelo, sandália, tênis, ..., p calçado ,


d calçado , c calçado >;
Resultado da projeção: < sapato calçado, chinelo calçado, sandália calçado,
tênis calçado ..., p calçado , d calçado >.

c) <pcalçado> : por sua vez, o operador <pcalçado> permite que selecionemos,


dentre os membros a que for atribuído o conceito característico, aquele que, mais
adequadamente e por razões diversas, se constitui como o protótipo da classe.32
Esta operação pode ser assim esquematizada, considerando-se as operações já
realizadas no estágio anterior:

Resultado da projeção: < sapato calçado, chinelo calçado, sandália calçado,


tênis calçado ..., p calçado , d calçado >;
Seleção do protótipo: < p (sapato calçado), chinelo calçado,
sandália calçado, tênis calçado ..., d calçado >.

32
Estamos apenas supondo, pela intuição, a possibilidade de que ‘sapato’ viesse a ser escolhido como protótipo
da classe. Existem muitos problemas quanto à decisão sobre a escolha de um protótipo, por exemplo, em relação
aos fatos que podem ser mais representativos nessa escolha. À frente, comentaremos algumas das dificuldades
relativas à questão.
81

d) <dcalçado> : por último, <dcalçado> relaciona o protótipo a cada um dos objetos


do domínio, atribuindo, a cada par, um valor numérico. Quanto maior a
semelhança entre pares de objetos, isto é, quanto mais próximo um membro
estiver do protótipo, tanto menor será o valor da relação e vice-versa. Valores
maiores, obtidos no confronto entre pares, tendem a mostrar uma distância métrica
maior, ou seja, um grau de dissemelhança maior entre membro e protótipo.
Comparando-se os pares <sapato/chinelo>, <sapato/sandália> e <sapato/tênis>,
devemos atribuir um valor maior à primeira relação, um menor à última e um
valor intermediário à segunda. Assim, o fato de a relação com ‘tênis’ satisfazer os
critérios de <calçado>, de modo mais adequado do que ‘chinelo’ ou ‘sandália’,
mostra que ‘tênis’ está mais próximo do protótipo do que os outros elementos, na
organização sugerida. Esquematicamente, podemos indicar:

Seleção do protótipo: < p (sapato calçado), chinelo calçado,


sandália calçado, tênis calçado ..., d calçado >;

Distância métrica: < (chinelo calçado / sapato calçado) = 3,


(sandália calçado / sapato calçado) = 2,
(tênis calçado / sapato calçado) = 1 >.33

Nos quatro itens acima, procuramos mostrar o modo pelo qual cada um dos
parâmetros da TP aplica-se a fatos de um domínio de objetos particulares. Em cada uma das
etapas, operamos apenas com a conversão de um parâmetro, mas projetado sobre o resultado
de operações anteriores. O produto final que extraímos de toda a série de operações descritas
nos mostra diversos componentes que integram o conceito que formamos de cada um dos
membros do conjunto. Assim, a compreensão de cada um dos objetos da classe supõe, na
dimensão da TP, que: (i) ‘sandália’, por exemplo, seja um objeto pertencente ao domínio
<calçado>; (ii) ‘sandália’ apresente uma diferença perceptual concernente ao protótipo da
classe, neste momento caracterizado por ‘sapato’; (iii) a diferença perceptual seja registrada
comparativamente em relação aos outros membros da classe, em termos de valores numéricos

33
Paulatinamente, cada um dos parâmetros que compõe o PG foi desaparecendo, em razão da sua atualização no
domínio em análise. Aqui nenhum dos parâmetros se faz mais presente na fórmula, uma vez que todos já foram
traduzidos em fatos pertinentes ao domínio em questão.
82

(perceptuais). Além do mais, em complemento aos exemplos acima analisados, outros


aspectos importantes derivam da exposição de OSHERSON & SMITH, em particular da
condição (1.2), como uma proposta para elucidar a correlação entre as duas funções acima
mencionadas <dcalçado> e <ccalçado>. Temos, então:

“(1.2) (∀x ∈ A) (∀y ∈ A)


d (x, p) ≤ d (y, p) → c (y) ≤ c (x)”

A fórmula acima determina que para dois membros quaisquer ‘x’, ‘y’, pertencentes a um
domínio <A>), a distância métrica <d> entre eles e o protótipo <p> é inversamente
proporcional à natureza do conceito característico <c> que define sua integração no conjunto.
Por exemplo, seja ‘x’ = ‘tênis’, ‘y’ = ‘chinelo’ e ‘p’= ‘sapato’, a condição acima mostra que:

d (tênis, sapato) ≤ d (chinelo, sapato) →


c (chinelo[calçado ∪ aberto] ) ≤ c (tênis[calçado ∪ fechado])

Em outras palavras, se a distância entre ‘tênis’ e ‘sapato’ é menor do aquela entre ‘chinelo’ e
‘sapato’, então, o conceito característico <calçado ∪ aberto>, que determina a posição de
‘chinelo’ numa escala do conjunto, é menor do que o conceito característico <calçado ∪
fechado>34, que determina a posição de ‘tênis’. O valor perceptual atribuído ao operador ‘ser
menor’ corresponde ao fato de ele ‘ser menos representativo’ ou de ‘conter menos
propriedades’ numa comparação direta com o protótico35. A hipótese, em termos de uma
percepção cognitiva, para essa comparação, é que as características de ‘tênis’ facilitam o seu

34
Usamos, em complemento a [calçado], os traços [aberto] e [fechado], com a finalidade de mostrar que a
fixação de uma escala conceitual para membros de um domínio requer a implementação do conceito
característico, além dos patamares fixados para operar a inclusão no domínio. Isso não quer dizer, porém, que a
percepção do protótipo da classe se dê em razão da proliferação de traços.
35
A comparação, na verdade, poderia ser aferida em termos da quantidade e da qualidade dos traços de cada um
dos membros do conjunto com aqueles pertencentes ao protótipo da classe. O conceito característico é de ‘uso
exclusivo’ do protótipo, pois só ele reuniu um padrão quantitativo e qualitativo que possibilitou a sua seleção, a
sua ‘superioridade’ conceitual em relação aos outros concorrentes. Os demais pretendentes a membros devem se
espelhar nesse ideal de conceito; uns se aproximando mais outros menos. Nenhum, entretanto, poderá equiparar-
se ao protótipo, a não ser nas circunstâncias em que deveremos reconhecer mais de um elemento nesta posição. A
igualdade, aludida pelo princípio 1.2 acima, descreve uma correlação possível entre membros e não entre um
membro e o protótipo.
83

reconhecimento como membro da classe de objetos, onde o protótipo seja ‘sapato’,


contrariamente a ‘chinelo’. Por outro lado, quando a relação for de igualdade, seja para o
contraste entre os pares e conseqüentemente para o conceito característico, haveria,
simplesmente, uma proximidade conceitual entre os membros em questão e o seu protótipo.
Na prática experimental dessa análise, supõe-se que fatos expressos na condição 1.2 sejam
capazes de especificar aspectos do processo cognitivo, na medida em que ‘tênis’, pelo fato de
estar mais próximo do protótipo, represente um membro de percepção mais imediata, mais
uniforme.

O formato acima de categorização dos objetos tem sustentado, em larga escala,


pesquisas na área dos processos de cognição, incluindo aqui Lingüística e Psicologia.
Inúmeros experimentos foram montados, numa tentativa de avaliar questões que envolvem a
forma de se operar com os quatro parâmetros36. Embora a TP tenha alcançado um certo
avanço nos processos de representação conceitual, em virtude de consagrar a necessidade de
uma escala gradiente na avaliação da pertinência, bem como de introduzir parâmetros de
aferição da distância conceitual entre protótipo e membros em um dado domínio, não se
podem também desconhecer as dificuldades enfrentadas. O fato mais importante a ser
destacado dentre as dificuldades da TP diz respeito à natureza dos critérios que devem ser
postos em prática para a determinação perceptual do protótipo de uma classe. O que é, afinal,
um protótipo ? Como chegamos à sua apreensão? São eles transitórios dentro da classe ?
Existe apenas um único protótipo em cada classe ou protótipos também estariam sujeitos à
gradiência ?

Não existem, no estágio atual da discussão, respostas capazes de exaurir os problemas


que são propostos pelas indagações acima. Existe um problema detectado de forma clara, isto
é, a ausência de um padrão efetivo que assegure a escolha do protótipo da classe, como
existem tentativas, sugestões e alternativas, orientadas para o problema. Retomemos,
inicialmente, as dificuldades enfrentadas com a sua definição, com os procedimentos
empíricos para distingui-lo do conjunto dos outros membros. ROSCH (1978) especifica:

36
Para uma avaliação detalhada de alguns experimentos para conjuntos padrões nesta abordagem, confira:
ARMSTRONS, GLEITMAN, & GLEITMAN. (1983. p. 263-308).
84

“... by prototypes of categories we have generally meant the clearest cases


of category membership defined operationally by people’s jugements of
goodness of membership in the category.” (p. 36).

e acrescenta mais à frente:


“... to speak of a prototype at all is simply a convenient grammatical
fiction; what is really referred to are judgments of degree of
prototypicality. (...) For natural-language categories, to speak of a single
entity that is the prototype is either a gross misunderstanding of the
empirical data or a convert theory of mental representation.” (p. 37).

A caracterização acima apresenta duas questões importantes na concepção do protótipo: Uma


refere-se ao fato de eles representarem “clearest cases”, em função de “jugements of
goodness of membership in the category” . Outra refere-se ao fato de o protótipo não ser algo
materializado numa “single entity” , mas antes implicar “judgments of degree of
prototypicality” .

A primeira observação parte do princípio de que o processamento de casos típicos não


apresenta dificuldades para o seu reconhecimento categorial. A nossa atividade cognitiva,
quando orientada para a categorização da realidade, não encontra qualquer dificuldade com
aqueles casos que são exemplares dentro dos domínios, pois só assim torna-se possível
assegurar alguma unidade conceitual, mesmo considerando-se discrepâncias culturais. O
argumento suposto na citação reforça o fato de que uma experiência que não seja assim
orientada, isto é, que parta da escolha de exemplos idiossincráticos, corre o risco de tornar-
se, absolutamente, caótica, impossível de ser partilhada numa comunidade. Além do mais, a
escolha de tal membro como protótipo reforçaria ainda mais o teor de facilidade e de rapidez
na sua aquisição.

A segunda observação refuta as pretensões de admiti-lo como uma entidade mental


privilegiada e autônoma. Um protótipo não reina absoluto num domínio onde é membro, mas
comporta graus de prototipicidade. Ao contrastá-lo, par a par, com os membros do conjunto,
verificamos que ele é mais prototípico para uns do que para outros. Se, em um dos pólos da
escala contrastiva, a diferença entre eles for se apagando, podemos ter mais de uma seleção
aceitável para o protótipo. Esta avaliação da intensidade de gradiência (diferença/identidade
85

maior ou menor) entre membros de um conjunto e o seu protótipo pode ser apurada, com
base na condição 1.2, de OSHERSON & SMITH (1981), acima aludida.

Apesar da compreensão geral que esses critérios impõem ao reconhecimento do


protótipo, certamente eles ainda não são suficientes para, empiricamente, operar com o
conceito. Dois fatos costumam ser associados na tentativa de escolha de um dado membro
para essa função. Um, de natureza experimental e de uso mais extenso, aponta-o como o
exemplar que mais rapidamente é reconhecido como membro da classe, ou que é o primeiro a
ser lembrado dentre os membros, numa avaliação feita através de tempo decorrido na decisão
seletiva. Assim, o protótipo seria representado pelo elemento cujo custo temporal na seleção
fosse menor, seja num experimento a que sujeitos fossem expostos a diversos exemplares,
seja num outro, em que tivessem que lembrar um membro da classe (aqui ainda é o tempo
gasto para rememorar o protótipo que serve de indicador). Paralelamente, os exemplares que
fossem se distanciando do protótipo iriam requerer um custo de processamento maior, já que
suas propriedades e sua adaptação à classe requerem operações mais complexas. Muitos
analistas desenvolveram experimentos nessa direção37 com resultados positivos; outros,
entretanto, recusam o fato de que testes de rapidez em categorização possam ser assumidos
como pertinentes para uma decisão sobre a escolha do protótipo.

O segundo fato pretende levar em conta o número de propriedades e o formato


assumido pelo conceito característico, para a definição de um elemento como protótipo38.
Assim, em experiências desenvolvidas com a classe <pássaros>, por exemplo, o fato de [ser
alado], [ter bico], [ter penas], [ser ovíparo] foi usado como justificativa para sugerir ‘tordo’
como protótipo dessa classe39. Na extensão do exemplo, o argumento tem vida curta, porque,
ainda que venhamos a confirmar ‘tordo’, de fato, como protótipo, a razão aludida não pode
ser a conjunção destas propriedades. Se ‘tordo’ desempenha esse papel no conjunto, deve
haver outros parâmetros adequados para justificar a presente escolha, porque tais propriedades

37
Por exemplo, RIPS, SHOBEN, & SMITH, (1973) e ROSCH, (1975).
38
Numa comparação superficial entre as duas vertentes, somos levados a admitir um certo antagonismo: grande
número de propriedades não parece beneficiar rapidez de reconhecimento.
39
Nas análises desenvolvidas por autores americanos, não existe uma justificativa explícita para a escolha de
robin, que traduzimos acima por ‘tordo’, como protótipo e não um outro pássaro qualquer que também reúna
estas mesmas condições. Há autores que citam também sparrow. É possível que alguma razão de natureza
cultural, pela presença destes pássaros nos experimentos, dispense qualquer justificativa.
86

são, igualmente, partilhadas por ‘galinha’, ‘avestruz’, apenas para citar, por exemplo, os
mais distantes. As propriedades referidas não possibilitam a seleção de nenhum dos objetos
mais comuns da classe, porque, no fundo, elas não são propriedades de membro, mas
condições gerais de pertinência na classe, resguardados desvios categoriais possíveis. Além
disso, conjunção de propriedades não resolve a questão cultural que pode ser determinante na
seleção do protótipo. Em relação ao domínio do signo ‘tordo’ para designar uma espécie de
pássaro40, falantes do português, certamente, teriam dificuldades com um tal protótipo, por
não se tratar de um exemplar tão próximo da sua experiência, na classe <pássaros>.
Entretanto, com base nas mesmas propriedades, poderiam selecionar ‘pardal’, ‘tico-tico’,
‘canário’ e tantos outros que fossem cognitivamente mais disseminados na sua experiência e
culturalmente mais representativos.

Aqui residem, pois, duas dificuldades complementares. De um lado, não possuímos


um conhecimento global e sistemático das propriedades usadas para se definirem membros de
uma classe (e nem sabemos se tal sistema é possível), tornando complicadas as pretensões
universais para o protótipo. Para ARMSTRONG et al. (1983, p. ) as dificuldades para a
determinação dos traços prototípicos de uma classe são extensivas à determinação de traços
que venham a representar condições necessárias e suficientes, para critérios definicionais: “...
it is not notably easier to find the prototypic features of a concept than to find the necessary
and sufficient ones.”. De outro, não podemos fixar um padrão máximo (ou mínimo) de
propriedades que um protótipo deva conter, já que qualquer limite seria arbitrário, pois tanto
poderia ser expandido, como reduzido, por força de usos específicos. Além dessas
dificuldades, há ainda fatores associados à natureza da compreensão das relações do protótipo
com seus membros: essas relações podem alterar-se, se o procedimento é a percepção intuitiva
que se tem dos membros de uma classe, ou se o procedimento enfatiza a avaliação
experimental. É de se esperar que os instrumentos de avaliação experimental tenham o mérito
de constituir-se numa espécie de métrica para registros da intuição. Não temos, entretanto,
nenhuma certeza quanto à validação dos procedimentos experimentais, mesmo porque
dúvidas na escolha do protótipo continuam ocorrendo. COHEN & MURPHY (1984)
comentam sobre alguns aspectos dessas questões:

40
Ainda que usássemos outros signos para a designação alternativa desse pássaro, isto é, ’papo-roxo’, ou ‘peito-
roxo’, como também é conhecido, as dificuldades continuariam existindo.
87

“The prototype is usually conceived of as an ‘average member’ of the


category. That is, it contains the most frequent attributes of the category
members. There may be no real object in the world that corresponds to the
prototype, as it is an idealized abstraction of the individuals in the
category. People are assumed to use the prototype rather than a category
definition in indentifying members and in reasoning about the category.”
(, p. 30)

O grifo destacado no texto parece indicar uma tentativa de superação das dificuldades
discutidas sobre o reconhecimento do protótipo de uma classe. Não há protótipo a ser
reconhecido, a ser isolado do conjunto, porque parece não existir qualquer objeto-membro que
satisfaça as suas condições. O protótipo é um construto idealizado e, por isso mesmo,
comprime, na sua forma de existir, todas as possibilidades dos membros de um conjunto. Se
isso é verdade, precisamos rever as estratégias experimentais que objetivaram avaliar, em
termos de padrões de rapidez de reconhecimento e de facilidade de memorização, escalas
gradativas de membramento.

Contudo, apesar dos problemas aqui localizados, lembrando ainda não se tratar de uma
proposta inteiramente fechada, a TP constitui um avanço para os processos de representação
conceitual. A sua virtude maior está em reconhecer a necessidade de um padrão de
membramento que contemple uma escala gradiente de integrantes, possível de ser avaliada
com algum rigor. Essa formalização resulta, por sua vez, numa conseqüência importante para
os processos de categorização: os objetos, candidatos a integrantes de um conjunto, não são
mais considerados como membros ou não-membros, mas são vistos apenas numa escala
gradual de membramento.

Esse teor de multiplicidade na classificação de objetos, e de diversidade das formas de


conhecimento nos remetem a problemas que decorrem da segundidade. Se é o confronto entre
objetos que nos leva à apreensão das diferenças, das singularidades, mediante um esforço
inteligente, só podemos situar aqui as primeiras manifestações da nossa racionalidade, cujo
desafio maior é o de propiciar algum padrão de ordem frente a uma experiência que emerge
como absolutamente desordenada. O projeto de estruturação do conhecimento da TP,
fundamentado na idéia de um contínuo gradiente entre os objetos, determina uma forma de
atividade cognitiva, compatível com os fatos que foram estudados até agora na segundidade.
88

Ela pretende, com os parâmetros de análise que foram expostos, fazer emergir alguma ordem
entre objetos. Uma ordem que resulta da intervenção de sujeitos na realidade e não apenas do
produto de um mapeamento de categorias formais.

2.5 Considerações finais

Ao longo desta reflexão, ressaltamos a importância de situar, dentro da instância da


segundidade de Peirce, questões relativas à formação e à representação de conceitos, modo
pelo qual associamos sua formulação a diversas abordagens desenvolvidas nas três últimas
décadas; com certeza, de outras abordagens poderíamos fazer o mesmo uso. Para tornar
relevante essa aproximação, procedemos a uma exposição de modelos, princípios,
abordagens, que colocaram, nos seus pressupostos fundamentais, a tarefa de mostrar como
processamos objetos e fatos da realidade, como justificamos o conhecimento que deles temos
e como os representamos.

Analisamos dois modelos genéricos de concepção do conhecimento: um dominado por


princípios de atomização conceitual, onde o conceito é pensado em função da predicação a
que objetos se submetem , ou em função da composição de traços que a eles se associam;
outro dominado por princípios de categorização conceitual, sendo o conceito resultante de
operações envolvendo conjuntos e critérios de membramento. Aqui foram destacadas três
formas distintas de operar a relação membro-conjunto, cada uma responsável por diagnosticar
o conhecimento através de padrões específicos.

Nenhum dos dois modelos − e nem as dimensões particulares de cada um − projeta


uma resposta satisfatória para a questão do conhecimento, no enfoque em discussão.
Entretanto, não se pode negar que, a seu modo e apesar dos limites, cada uma das dimensões
aponta para um aspecto particular do problema. Qual delas, porém, reflete melhor as
características da segundidade aqui lembradas ? Que forma de expressão de um conceito é
mais adequada ao teor de mediação que a segundidade exerce na formulação de Peirce ?

Se a formulação de Peirce coloca a segundidade como o primeiro alcance da nossa


racionalidade, na medida em que nela pré-configuramos dados da nossa experiência sensível,
89

isto é, damos formato às nossas sensações de qualidade, então, uma decisão pela escolha de
uma das abordagens implica determinar qual delas melhor se ajusta a essa tarefa. E aqui,
precisamente, qualquer decisão pode tornar-se arbitrária, porque selecionar uma pode
significar que aspectos importantes de outras abordagens estejam sendo ignorados nessa
reflexão. Além do mais, as abordagens que comportam esses dois modelos mantêm entre si
relações diversas: há relações de antagonismo (decomposição em categorias atômicas x
comparação entre membros e protótipos), além de relações implicativas (a
composicionalidade é uma forma de predicação), de relações extensivas (a FST é uma
ampliação e uma qualificação da TC) e de relações cooperativas ( a TP reutiliza padrões da
FST). Todas elas, entretanto, convergem num ponto: representam uma tentativa de
‘disciplinar’ a intuição, de propor-lhe um modelo racional de funcionamento em relação a sua
forma de atuar sobre os fatos da realidade. Todas, a seu modo, enfrentam o desafio de
racionalizar, de disciplinar a intuição, pensada, no plano da primeiridade, sob a forma de
sensações de qualidade. Assim, se podemos associar esse desafio à racionalização às
perspectivas que o autor cria para a segundidade, podemos supor que quaisquer das
abordagens acima traduzem parte da necessidade de prover uma forma teórica capaz de
expressar fatos discutidos na teoria. Todas representam, em seu estilo, uma tentativa de
fundamentação para os problemas do conhecimento que são aventados em relação à
segundidade.

Pela abrangência que Peirce atribui a essa categoria, não seria inadequado
conjeturarmos sobre o fato de que o próprio autor não supõe uma única forma de
racionalidade. Qualquer padrão que venha a ser usado para viabilizar o confronto entre objetos
requer uma multiplicidade de enfoques, afinal esse confronto emerge de dimensões
históricas, que podem nunca se repetir na extensão do vivenciado. Sua repetição torna-se
viável − e até necessária − como uma conveniência para a teoria, permitindo a construção de
modelos de interpretação. No fundo, é a nossa atuação cognitiva sobre a natureza que não se
dá num único recorte, numa única forma de compreensão. Não existe A FORMA RACIONAL
de apropriação lógica dos objetos: existem pluralidades históricas, culturais, mentais, físicas,
através das quais expressamos nossa racionalidade em relação a eles. Nenhum dos modelos
expostos comporta um padrão de racionalidade decisiva para os problemas propostos: todos
contêm defeitos, uns mais graves, outros menos. Todos, porém, revelam estratégias colocadas
em prática, na tentativa de compreender, de exercer algum domínio sobre a realidade.
90

Se os fatos se comportam dessa maneira, estaríamos propensos a supor que cada uma
das abordagens que vimos fosse capaz de expressar uma fração da totalidade que Peirce
configura na segundidade. Se esta se apresenta como padrão de complexidade − e não foi de
outra forma que Peirce a pensou −, então, o que nos resta é admitir, até mesmo pela natureza
das exigências formais que são impostas à questão do conhecimento, nos tempos atuais, que
cada uma das abordagens, apesar das suas dificuldades, dos seus compromissos ontológicos e
teóricos, represente uma forma plausível de avançar sobre essa complexidade. Não devemos,
por exemplo, impingir a TC à segundidade, mas antes, extrair daquela aspectos que sejam
relevantes na demarcação de padrões que tornam nossos movimentos sobre a realidade
ordenáveis e racionais; nem também impor à segundidade um padrão de raciocínio
composicional, mas antes, extrair deste aqueles princípios gerais que nos permitem avançar na
compreensão dos objetos. Poderíamos, portanto, em razão dos modelos estudados, negar que
eles representassem esforços na tentativa de construir padrões de estruturação do
conhecimento ?

As mesmas razões que nos levaram a não partilhar da seleção de um modelo mais
afinado com as preocupações da segundidade, levam-nos também a rejeitar uma recusa cética
do esforço desenvolvido pelas abordagens citadas, como padrões de formação conceitual. A
segundidade, se a ela conferimos estatuto epistemológico, torna-se um território adequado
para projetar todo o conjunto de acertos e desacertos, mapeados nas diversas abordagens que
discutimos. Trata-se de um território adequado em razão do fato de nada excluir, mas de
apenas colocar uma exigência fundamental, ou seja, a nossa capacidade de expressar com
inteligência o diverso da natureza, o imediato da experiência e o vivido da história.

É, portanto, dentro desse quadro de referência que julgamos relevante pensar uma
proposta de extensão e de especificação do pensamento de Peirce em termos de processos de
formação conceitual. Se há alguma preocupação formal que possa ser estendida à
segundidade, ela, certamente, deverá compor-se de parte dos princípios que foram analisados
nas diversas circunstâncias consideradas. Não supomos que uma rejeição a essa possibilidade
de se buscarem novos padrões para a segundidade deva ser assumida, pois isso excluiria
quaisquer tentativas de reinscrevê-la com outros padrões de alcance teórico-formal, e
estaríamos condenados a um circunlóquio de analisar a segundidade apenas nos limites da
segundidade.
91

Capítulo III

A TERCEIRIDADE COMO REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL


92

3 A TERCEIRIDADE COMO DE REPRESENTAÇÃO CONCEITUAL

3.1 Considerações preliminares

Vimos, no primeiro capítulo desta tese, as propriedades usadas por Peirce para definir
o alcance da primeiridade. Mostramos ali como ela se constrói em razão do percepto que tem,
no fema41, o seu interpretante dinâmico, isto é, as condições que tornam possíveis a sua
existência. A partir dessas condições iniciais, indicamos ainda como, na primeiridade,
reconhecemos objetos e fatos apenas na forma de uma qualidade de sensação, orientada a
captar a sua dimensão de presentidade, de imediatez e de concretude. Na seqüência,
contrastamos sua proposta com outros padrões de interpelação dos objetos, orientados em
razão de algum traço funcional neles incorporado. Analisando, então, a incompatibilidade
entre as condições de funcionamento da primeiridade e os conceitos de estrutura, função e
projeto, concluímos pela impossibilidade de assumir as operações do percepto como um
padrão de racionalidade, embora sejam elas as raízes para uma fundamentação primeira. O
percepto, como qualidade de sensação, inaugura a apreensão dos fatos, mas suas operações
não se constituem ainda numa instância de compreensão racional, senão numa condição
transcendental para o conhecer.

Vimos, por sua vez, no segundo capítulo, o desenvolvimento proposto por Peirce no
estudo da segundidade e ali, igualmente, contrastamos sua concepção, de modo mais
exaustivo, com outras concepções que expressaram, de forma aproximada, os problemas que
foram delineados em torno da idéia de formulação. A hipótese básica examinada admitiu que,
em razão de alguns aspectos conceituais analisados pelo autor, a segundidade pode ser
considerada como um lugar privilegiado para se avaliar a formação de conceitos, porque ali já
pressupomos a existência dos objetos . Nessa perspectiva é que pudemos avaliar diversos

41
A idéia de que o fema é o interpretante dinâmico da primeiridade faz dele o ponto de partida para a apreensão,
mas ele seria apenas um fluxo energético captado dos objetos a partir de meras sensações visuais, auditivas,
táteis... Ele se constitui como condição de operação de percepto.
93

modelos de organização do conhecimento, avançando em parte sobre o tema que será objeto
do capítulo presente, isto é, a representação. Tais modelos foram importados das tentativas de
explicação formal de alguns aspectos do processo de significação, implementados pelas
teorias semânticas e aqui retrabalhados com vistas a uma avaliação de problemas relativos à
formação de conceitos.

No presente capítulo, vamos avançar numa outra dimensão de análise, focalizando


questões relativas à representação, com base na proposta de Peirce, procurando destacar, de
início, os aspectos de que o autor se utiliza para mostrar mais um estágio de elaboração do seu
trabalho. Trata-se, pois, do plano da terceiridade que se apresenta, no nosso entendimento,
como o mais vasto, dotado de ramificações múltiplas, em razão do espaço conferido a uma
certa ‘arquitetura do signo’, mas também como aquele sobre o qual, certamente, mais se têm
pesquisado detalhes de funcionamento. Aqui, entretanto, seremos restritivos em relação à
amplitude da terceiridade; interessa-nos selecionar uma dimensão dessa abordagem que nos
faça compreender melhor certa organicidade da representação, a sua forma constitutiva, os
seus fundamentos, por se tratar da orientação que melhor se aproxima do conteúdo dos
capítulos precedentes. Não estamos aqui preocupados com a dimensão taxinômica do signo,
que tem sido o alvo freqüente de uma exploração da terceiridade, mas com aspectos de uma
estruturação representativa do signo. Assim, privamo-nos de reportar aos pormenores
abundantes de toda uma extensa rede de definições, de classificações e de correlações do
signo, para, exclusivamente, contemplar aspectos gerais de sua estrutura conceitual, os quais
são elaborados por Peirce na fundamentação desse estágio da teoria. Nesse capítulo, vamos
tentar avançar no intrincado território, onde foi construída a terceiridade como uma instância
privilegiada da representação, com certeza, um dos estágios mais importantes e mais
desenvolvidos na reflexão do autor.

3.2 O conceito de terceiridade

A terceiridade, além de contrastar em natureza conceitual e em alcance teórico com


dois outros estágios da abordagem peirceana, está, necessariamente, vinculada à
representação: aquela emerge apenas como uma instância da teoria destinada a aglutinar
94

ramificações conceituais que compõem esta última. Logo, ao discorrer sobre o conceito de
representação, estamos traçando algum tipo de percurso capaz de espelhar o papel a ser
desempenhado nesse estágio da teoria pela terceiridade. Comecemos por uma reflexão que
mostra, de forma mais determinante, ser a terceiridade uma instância privilegiada para a
representação. Vejamos como PEIRCE (1980) situa tal fato:

“Mas a proposição geral que estabelece que todos os corpos sólidos


caem na ausência de força ascendente ou pressão é uma fórmula de
natureza representativa. Os nossos amigos nominalistas seriam os
últimos a colocá-la em dúvida. Chegarão até a afirmar que é uma mera
representação - a palavra mera significando que ser e ser representado
são duas coisas muito diferentes; a fórmula pertence ao domínio do ser
representado. Tal é certamente a natureza da representação. Inegável,
concedo. E é igualmente inegável que aquilo que tem natureza
representativa não é ipso facto real.” (p. 29)

A orientação inicial da formulação precedente foi determinada em termos da necessidade de


se esvaziarem, na terceiridade, determinantes da experiência sensível, necessários à
formulação dos dois planos anteriores da teoria, seja como percepção de uma qualidade, seja
como admissão de um existente. Se essa experiência sensível precisa ser esvaziada de um
valor determinante, nem por isso os seus vestígios, na forma de possibilidade ou de existência,
serão descartados. A demarcação entre aquilo que é determinante e aquilo que é mero vestígio
começa a se delinear por força do reconhecimento de uma diferença entre ser e ser
representado. Quanto ao ser, assumimos a experiência sensível como determinante; quanto ao
ser representado, assumimo-lo apenas como um vestígio. Assim, em decorrência de uma
diferença inicial, a saber, a da exclusão de um vínculo necessário entre o ato de representar e
aquilo que, de fato, se faz representado, Peirce, no nosso entendimento, não descarta, mas
atenua quaisquer compromissos com a dimensão de ser, o essencialismo do objeto, na
terceiridade. A instância da representação não se funda, como nos planos anteriores, na
realidade do ser - como qualidade ou como existente -, mas numa lógica que lhe confere o
estatuto de ser representado, que possui, com certeza, uma extensão maior do que um suposto
realismo. Mais à frente, na mesma conferência, PEIRCE (1980) reafirma os termos dessa
diferença:
95

“Quando afirmo que ser é diferente de ser representado significo que o


ser real consiste naquilo que nos é imposto pela experiência, elemento
de compulsão bruta, não é mera questão de razão.” (p. 30)

Assim, se “aquilo que tem natureza representativa” não pertence ao domínio do real, mas ao
domínio de uma fórmula, ao domínio de uma elaboração racional; o seu conhecimento não
pode estar atrelado apenas a operações constitutivas da experiência. Ser representado impõe
condições que ultrapassam o plano sensível de “compulsão bruta”, engendrando a necessidade
de uma elaboração lógica, sustentada por operações que se encarregam de extrair, da
experiência imediata, os padrões determinantes de uma construção do racional. E a
racionalidade daí decorrente, por estar inscrita no âmbito da terceiridade, credencia-se a
recobrir o domínio da forma, de uma forma apta a representar os objetos, identificando,
relacionando e classificando-os, como pretende o autor na construção de toda a gênese do
representâmen.

Ao enfatizar a disjunção entre dois padrões de apropriação da realidade, um


fenomenológico, na forma de ser, afeito sobretudo às instâncias de primeiridade e de
segundidade, outro simbólico, na forma de ser representado, Peirce obriga-se à necessidade
de examinar o conceito de terceiro, a partir de graus possíveis de distanciamento entre os
padrões mencionados. Se o domínio da representação se faz constituir por réplicas do
domínio da realidade sensível, réplicas enquanto objetos lógica e racionalmente construídos,
é importante considerar que o maior ou menor compromisso entre estes domínios possa ser
justificado em razão do grau de deformação na passagem de um para o outro. Com o objetivo
de avaliar parte do problema, o autor introduz a categoria degeneração, que desempenha um
papel duplo no seu trabalho, pois tanto é utilizada para reportar estágios da
percepção/compreensão dos objetos (correlação entre primeiridade, segundidade e
terceiridade), como para apontar fatos diferentes na terceiridade. Quanto à primeira
concepção de degeneração PEIRCE (1980) formula:

“ [O] Primeiro, devido a seu caráter extremamente rudimentar, não é


sucesptível de alguma modificação degenerada ou enfraquecedora.
O Segundo tem uma Forma Degenerada, na qual existe com efeito
Segundidade, mas uma Segundidade Secundária, enfraquecida (...)42.

42
As supressões marcadas por (...) fazem-se presentes no texto-fonte; aquelas marcadas por [...] foram
introduzidas por economia nas citações.
96

A categoria do Terceiro exibe duas formas diferentes de degeneração. O


Primeiro grau de Degeneração é encontrado numa Pluralidade
Irracional, que, na forma como existe, em contradistinção com a forma de
sua representação, é uma mera complicação de dualidade [...].
A Terceiridade mais degenerada é quando concebemos uma mera
Qualidade de Sensação, ou Primeiridade para representar-se a si própria
como Representação.[...].” (p.25)

O teor de degeneração, portanto, não é concebido no plano da primeiridade. Como reduto da


qualidade de sensação, esta não comporta qualquer dimensão degenerativa e por ser uma
experiência singular − ou rudimentar, como afirma o autor − não enfraquece os laços de
experimentação com os objetos. Ela vale o que é como sensação presente e imediata e apenas
registra a autenticidade de nossos movimentos sensíveis diante da realidade. Em resumo, o
percepto atua pela imediatez com os objetos e, ao fazê-lo, dispensa a mediação de algo que se
possa fazer de representâmen entre eles. A segundidade, por sua vez, já exibe algum grau
degenerativo; como processo de formulação, ela requer algum distanciamento da realidade
sobre a qual opera. Se a reação e o conflito são marcas de sua forma de operar, já nos
mostramos distantes daquilo que é, por força de uma impressão sensível, para alcançar aquilo
que pode ser, por força de uma elaboração conceitual. A terceiridade emerge, então, como
um território de presença determinante da degeneração, onde os objetos devem ser
modificados em favor de uma expressão de racionalidade. Nela, em relação aos dois planos
anteriores, acolhemos, por razões intrínsecas, o ser representado (e não o ser experimentado,
nem o ser pensado, embora eles sejam determinantes na compreensão daquele).

Numa outra vertente, a da representação do ser − em contraste com a do ser


representado −, a degeneração se faz presente por ser um instrumento de avaliação entre
objeto e signo, à medida que prescreve formas como ícones, índices e símbolos, como
instâncias de relações e de propriedades diversas que determinam a representação do ser. Se
na terceiridade, portanto, fazemos convergir o ser representado e a representação do ser, é
porque ela se torna o lugar de degeneração por excelência, de distanciamento necessário para
uma expressão racional dos fenômenos. Nessa perspectiva, a terceiridade assume, de fato, a
função indicativa de uma exterioridade dos objetos − o ser representado −, por neles intervir
através de procedimentos de natureza diferente − o signo, isto é, a representação do ser − e
por se fazer apresentar, ela mesma, como determinada por dois planos anteriores −
97

primeiridade e segundidade − que têm, por assim dizer, uma proximidade sensível/conceitual
com os objetos, por deles fazer emergir sensações, traços e características que possibilitam o
seu conhecimento.

Outro aspecto, portanto, que devemos destacar na reflexão em torno da terceiridade,


leva-nos à compreensão daquilo que é central na categoria, ou seja, a concepção de
representâmen ou signo. A orientação com que temos delineado nossa reflexão aponta para a
necessidade inicial de consideração dos termos genéricos do problema. Comecemos, então,
por sua definição no formato proposto por PEIRCE (1972):

“Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo,


representa algo para alguém.” (p. 46)

Embora o autor recorra, em princípio, a uma formulação genérica de signo, duas


indicações já são aqui apontadas na sua definição, a saber, o fato de que o signo “representa
algo” e que o faz “para alguém”. Na seqüência da reflexão do autor, outras condições
importantes serão objetos de discussão e serão detalhadas em razão da necessidade de se
configurar parte do seu funcionamento. As condições mais importantes destacam, em função
das tricotomias, as relações do signo consigo mesmo, os vínculos entre signo e objeto e as
correlações entre signo e interpretante. Todos os casos reportam, em alguma extensão, os
meios pelos quais o signo ou o representâmen interpela os objetos, estabelece com eles algum
tipo de vínculo analógico, de compromisso conceitual, conforme podemos observar em outra
passagem (PEIRCE, 1972):

“O signo representa alguma coisa, o seu objeto. Representa seu objeto


não em todo os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéias
que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen.”(p. 46)

A citação precedente serve para situar um aspecto determinante de todo o trabalho de reflexão
a ser desenvolvido na terceiridade, isto é, a idéia de que os objetos não se relacionam com
seus signos de modo uniforme nem aleatório (ou que os signos não representam os objetos
desse modo), mas somente se relacionam com os signos naquela dimensão que diz respeito ao
“fundamento do representâmen”. Uma vez que a totalidade dos aspectos de um objeto nunca
98

são recobertos pelo signo43, já que nenhum signo sintetiza o conjunto total dos componentes
de um objeto, suas diferentes espécies decorrem da maneira pela qual parte desse conjunto é
selecionada na composição do representâmen. Logo, a concepção de que existem
fundamentos distintos permitirá produzir também diferentes tipologias de signos. No fundo, a
função representativa do signo não se mostra desconectada, de modo determinante, do objeto,
como o próprio PEIRCE (1977) assinala:

“... todo signo tem, real ou virtualmente, um Preceito de explicação


segundo o qual ele deve ser entendido como uma espécie de emanação,
por assim dizer, do seu Objeto.” (p.47)

Provavelmente, a condição de o signo ser um processo de emanação do objeto, isto é,


de a sua natureza ser conseqüência de um aspecto determinante do objeto ao qual se vincula,
vai possibilitar a Peirce toda a criação de uma arquitetura intrincada e laboriosa da gênese e da
classificação dos signos. Essa empreitada analítica de justificar o signo como emanação do
objeto, de apontar aspectos que possibilitam este vínculo causal favorece o surgimento das
tricotomias, cada uma pretendendo possuir um alcance conceitual diferenciado, em razão das
formas pelas quais o signo se institui como signo, faz-se de objeto, relaciona-se às condições
do interpretante.

Se a vinculação entre signo/objeto, por exemplo, se justifica mediante um


compromisso de emanação, onde o primeiro é uma conseqüência do segundo, já que do objeto
“emana” o fundamento do signo, o autor propõe, então, uma das suas concepções, a segunda
tricotomia, na qual reconhece três instâncias possíveis para o representâmen. O processo de
representação, assim concebido, mostra um desdobramento do representâmen em ícone,
índice, símbolo que são, como diz Peirce (PEIRCE (1977), p.47): “ naturalmente meras
figuras de retórica, o que, no entanto, não os torna inúteis.”, não chegando, todavia, a se
constituírem na única forma de configurar o essencial, em termos de representação do
conhecimento. Em outra dimensão tricotômica, por exemplo, o trabalho desenvolvido em
termos de lógica das proposições, principalmente a reflexão em torno do dicente e do
argumento (PEIRCE, 1977. p.77 e ss), pode ser considerado complemento necessário à função

43
Conforme citação já formulada por PEIRCE (1980) “aquilo que tem natureza representativa não é ipso facto
real.”. (p.29)
99

de representar, isto é, a constatação de que o signo, como elemento isolado, não possa
desempenhá-la de forma plena. Neste momento, então, preocupou-nos mais enfatizar o
essencial à terceiridade, como instância de representação e selecionar apenas o que existe de
fundamental no âmbito da presente discussão, ao invés de avançarmos sobre alguns detalhes
das tipologias, o que será objeto de nossa análise mais à frente.

Assim, o grau de dificuldade que se faz presente na construção conceitual da


terceiridade leva-nos a considerar que fatores a ela associados, ainda quando orientados para a
representação, não devem ser vistos de modo uniforme: classificações e subclassificações
propostas pelo autor são indicativas de uma complexidade crescente no plano da
representação. O liame, portanto, entre representâmen e aquilo que é representado,
fundamenta-se em razões diversas: cada circunstância específica pode selecionar um aspecto
diferencial do objeto, cada relação interpretante pode ser responsável por concebê-lo de modo
distinto. PEIRCE, (1980), ao apontar outro uso da degeneração, introduz uma gradiência na
tentativa de mostrar diferenças conceituais entre instâncias da terceiridade:

“As formas relativamente degeneradas da Terceira categoria não


entram numa série como as da Segunda categoria. O que temos é o
seguinte. Quando se toma qualquer classe cuja idéia essencial seja
Terceiridade, ou Representação, o autodesenvolvimento dessa idéia [...]
resulta numa tricotomia que dá origem a três subclasses, ou gêneros,
envolvendo respectivamente uma terceiridade relativamente genuína,
idem mas reativa, e, mais degenerada de todas, uma terceiridade
relativamente qualitativa.” (p. 26)

Embora a gradiência aqui exposta não responda, diretamente, pela segunda tricotomia −
ícone, índice e símbolo − 44, as outras duas poderiam ser igualmente discutidas, ela constitui a
forma de maior divulgação de toda a arquitetura do signo proposta pelo autor, pelo fato de
reportar, diretamente, a relação signo/objeto, com certeza, o padrão mais comum de discussão

44
As tricotomias propostas pelo autor recobrem dimensões distintas do signo. A primeira considera o signo em si
mesmo, enquanto manifestação de uma qualidade (qualissigno), de um existente (sinsigno) e de uma lei
(legissigno). A segunda considera o signo na sua relação com o objeto, enquanto se refere a um objeto por razões
intrínsecas ao próprio signo (ícone), através de uma conexão existencial (índice) ou em razão de uma relação
com o interpretante (símbolo). A terceira admite o signo enquanto determinado pelo seu interpretante como uma
possibilidade (rema), como um fato (dicente) e como uma construção racional - correlação entre fatos -
(argumento). No presente trabalho estaremos apenas apontando alguns dos aspectos dessas tricotomias, naquilo
que recobre a nossa discussão geral sobre representação. Uma menção maior será feita à segunda e terceira
tricotomias, pelo fato de serem elas formas de representação importante para a linguagem.
100

das funções do signo. Entretanto, os outros padrões de desdobramento do signo revestem-se


de igual importância do ponto de vista teórico e são eles, no fundo, que constituem os
aspectos mais originais na sua proposta. Assim, a gradiência tipológica proposta acima para a
terceiridade, poderia ser projetada na segunda tricotomia do seguinte modo. Ao símbolo,
como um terceiro, atribuiríamos o fato de ser a categoria “mais degenerada de todas”, e, por
conseguinte, apenas “relativamente qualitativa”, pelo fato de ser ele o formato mais genuíno
de representação, isto é, o de guardar maior distanciamento com o objeto que representa45. Ao
ícone, apontaríamos o fato de ser uma categoria “relativamente genuína” e, por ser um
terceiro, conflui para o seu objeto devido a um formato análogo, ou ao fato de estar próximo
de sua qualidade de sensação. Finalmente, temos o índice, um outro terceiro, que marca a
orientação “[relativamente genuína = idem] mas reativa” , por lembrar alguma característica
do objeto e com ele se relacionar de forma efetiva. Em outros termos, sendo signo, ele
mantém um certo grau de orientação genuína da terceiridade, mas, ao mesmo tempo, torna-se
degenerado num grau que o faz distinto de uma degeneração que constitui a classe genuína de
representamens.

A partir dos comentários e da citação acima, podemos reestruturar as três instâncias da


segunda tricotomia em torno de quatro categorias (degenerado, genuíno, qualitativo e reativo)
mais freqüentemente mencionadas pelo autor, enquanto dimensões conceituais da
representação:

(01) símbolo = [+degenerado, +genuíno, - qualitativo]46: trata-se de uma classe


de representâmen que guarda o mínimo de correlação analógica com o objeto,
daí a classificação [+degenerado] e, por isso mesmo, torna-se o membro mais

45
A caracterização dos fatos da terceiridade, como já mostramos na nota anterior, mereceu de Peirce duas
categorias que se compensam também aqui nessa formulação. Assim, o que há de mais (menos) genuíno para a
terceiridade equivale ao que há de mais (menos) degenerado.
46
É importante justificar a presença de ambos os traços, na medida em que são utilizados para descreverem um
fenômeno em comum, ou seja, o grau de retenção de traços do representado no representâmen. Logo, devemos
conceber degenerado como possibilidade de um distanciamento em relação aos traços analógicos do ser na
representação do ser. Assim, quanto maior for para o signo o grau de degenerescência entre ser e ser
representado, tanto mais legítimo será como instância da terceiridade. Do mesmo modo, devemos admitir o
traço genuíno como possibilidade típica de um padrão de representação do ser. Logo, quanto maior for para o
signo o grau de genuinidade entre ser e ser representado, tanto mais autêntico será ele como membro da
terceiridade.
101

autêntico da terceiridade [+genuíno], já que não se fundamenta em qualquer


característica do objeto, senão numa convenção, logo [-qualitativo] 47;

(02) ícone = [-degenerado, -genuíno, +qualitativo]: uma classe de


representâmen que retém o máximo de correlação de similitude com o objeto,
por isso [-degenerado], espelha alguma qualidade do objeto, [+qualitativo] e,
em razão disso, torna-se um membro menos legítimo da terceiridade, por isso
[-genuíno]48;

(03) índice = [-degenerado, -genuíno, +reativo]: uma classe de representâmen


que se identifica ao objeto representado, daí [-degenerado], apaga uma divisão
nítida entre representâmen e representado (ele pode, geralmente, constituir-se
numa parte do objeto), mas também não funciona como um análogo do objeto,
isto é, [+reativo] e, por isso mesmo, torna-se uma classe pouco autêntica de
representação.49

O que comentamos acima traduz uma orientação para o texto de Peirce que expressa
princípios gerais que fundamentam a terceiridade na sua dimensão conceitual. Não estivemos,
no momento presente, preocupados em recorrer a certos meandros da formulação do autor que
conduziriam a detalhes sobre as três tricotomias e sobre cada uma das suas classes
conseqüentes. Abordagens sobre os fundamentos da terceiridade costumam expressar apenas
uma genealogia dos signos em termos de classes, de subclasses e de desdobramentos
ulteriores. Essa taxinomia de valores, propriedades e operações constitutivos das espécies de
signos é, com certeza, importante na reflexão do autor e costuma ser o fator de maior saliência
que se aponta em sua reflexão. Entretanto, toda a preocupação com classificações e

47
A reestruturação aqui adotada para o símbolo, a partir dos componentes propostos por Peirce, poderia ser
estendida também a outras instâncias da terceiridade: legissigno e argumento. Existem dificuldades adicionais
nessa extensão, ao menos quando consideramos o argumento. Não é claro supor que todas as correlações
proposicionais possíveis sejam frutos de uma convenção. A noção de causalidade forte, por exemplo, (ter
massa/cair, ser menos denso que a água/flutuar) não depende, necessariamente, de uma convenção.
48
Igualmente, poderíamos estender a conceituação de ícone para outros primeiros da terceiridade: qualissigno e
rema. O fato de podermos expressar o rema através de uma função, cujas variáveis se apresentam apenas como
uma possibilidade, comprar (x, y), mostra que quaisquer objetos que vierem a substituir as variáveis assumirão
um aspecto qualitativo de comprar, como uma forma de predicação possível para tais objetos.
49
Ao índice também torna-se possível a mesma correspondência já mostrada: segundos como sinsigno e dicente
se adequam à presente reestruturação.
102

subclassificações seqüenciais do representâmen, no nosso entendimento, apenas traduz um


indicador daquilo que, de fato, compõe a função que devemos atribuir à terceiridade, como
um instrumento de apuração final de todo um processo de percepção, de formulação e
construção do conhecimento, a ser materializado em diversas instâncias do signo. Nas seções
seguintes, propomo-nos, inicialmente, a avaliar, de modo mais restrito, o funcionamento das
tricotomias, e, em seguida, comparar a avaliação com instrumentos que são usados para
formalização de aspectos do processo de significação nas línguas naturais. Como no segundo
capítulo, a avaliação em pauta será desenvolvida em contraste com algum tipo de exigência
conceitual formulado para análise semântica de fatos lingüísticos.

3.3 Estruturação da tipologia dos signos

Na discussão que desenvolvemos sobre a terceiridade, procuramos selecionar alguns


problemas e propostas que foram trabalhados por Peirce para, a partir deles, tentar mostrar
algum contraponto com a questão da análise semântica, a ser desenvolvida mais à frente. O
resultado desse confronto quase sempre tem sido pautado pelo parâmetro da tipologia dos
signos, do lado da semiótica, e pelo parâmetro das relações lexicais e sintagmáticas, do lado
da semântica. Entretanto, a exclusividade conceitual de tais parâmetros não pode ser atribuída
a nenhum dos dois campos, uma vez que nem uma tipologia de signos para a semiótica é
desprovida de quaisquer compromissos com relações entre signos, de signos com objetos, de
signos com interpretantes, nem a linguagem é indiferente às tipologias, por exemplo, o
reconhecimento de classes gramaticais ou lexicais distintas no universo lingüístico.

No caso da linguagem em particular, noções como estrutura e função50, por exemplo,


que serão usadas como parâmetros da nossa discussão, são definidas a partir de unidades
lingüísticas, classificadas através de critérios recorrentes em dimensões distintas do sistema.

50
A definição de função, objeto de menção neste capítulo, está sendo retomada de DELATTRE, P. (1992) “A
função dum objecto ou dum elemento qualquer está estreitamente ligada ao comportamento deste elemento e ao
papel que ele desempenha num contexto dado, contexto este constituído ele próprio por elementos diversos. A
noção de função é portanto inseparável da de interacção e, em conseqüência, também da de sistema; a sua
explicitação não pode fazer-se sem que intervenham, simultaneamente, o elemento considerado e os outros
elementos situados no contexto.” (p. 290).
103

Independentemente da natureza do critério usado para justificar tipologias, elas mantêm um


relacionamento estreito com a determinação de estruturas ou com o preenchimento de lugares
funcionais nessas estruturas. O reconhecimento da tradição gramatical das nove classes de
palavras, embora numericamente próxima às classes de signos, não apresenta, à primeira vista,
nem paridade conceitual, nem funcional entre os componentes de um e outro campo. No
entanto, ainda que qualquer proximidade possa ser fixada, as condições que determinam uma
ordem sistêmica tanto para semiótica, como para semântica estão longe de constituir-se em
qualquer referência de aproximação. Se alguma ordem sistêmica puder ser atribuída à
semiótica a partir da fundamentação das dez classes de signos, ela o será em razão de critérios
como possibilidade, existência e lei que são formulados por Peirce como garantia de uma
diferenciação na manifestação dos signos. Ainda que à diferença entre as classes possa ser
atribuído um valor estrutural, ele continuará sendo diferente do valor estrutural das unidades
de uma língua: nesta as estruturas se constroem pela interação entre elementos, a partir de
princípios de identidade e de diferença, operados com base na comutação em diversos níveis.
Na semiótica, as estruturas, em termos de classes de signos, compõem-se por padrões
distintos: isto pelo contraste na recorrência de certas de categorias conceituais. Na semiótica
não há uma sintaxe de seqüenciamento hierárquico de unidades recursivamente produzido; há,
quando muito, uma sintaxe de agregação, de substituição e de potencialização de unidades
sígnicas ad hoc e não sistêmica. Na semiótica, se existe uma ordem sistêmica, ela é criada
pelo uso dos signos, por constraste/semelhança entre os pares da tipologia: não havendo,
portanto, uma sintaxe que seja anterior a esse uso. Na linguagem, ao contrário, as unidades já
pressupõem uma ordem que prevalece sobre tipologias possíveis. Com base em fatos que a
tipologia dos signos pode nos prover e em fenômenos de significação em estruturas
lingüísticas, vamos tentar sistematizar, conceitualmente, aquilo que pode expressar um
contraste entre padrões de representação, considerado nos dois campos teóricos.

3.3.1 Representação lingüística versus representação semiótica

A preocupação central que o texto de Peirce nos revela, ao se propor à construção de


uma tipologia das representações, expressa-se através da determinação de um conjunto de
critérios, de categorias, de relações, e de divisões que sejam capazes, em conjunto, de
104

conceber os recortes de um universo de fenômenos que emerge, de imediato, em total


desordem, ou numa diferenciação nada visível. Os estágios anteriores de sua teoria, acrescidos
das questões que estamos discutindo em relação à terceiridade, permitem ilustrar esse esforço
continuado do autor, nem sempre suficientemente transparente, de enfrentar os caprichos de
uma percepção aleatória com investidas de racionalização, procurando construir uma ordem
conceitual para aquilo que se mostra caótico, ao menos, num primeiro exame. As suas
hipóteses gerais podem ser evidentes, mas os procedimentos para torná-las operacionais nem
sempre são muito transparentes, não apenas pela ausência constante de uma exploração de
fatos ilustrativos, mas também por uma construção conceitual nem sempre ‘concluída’, em
determinados momentos da reflexão. Nos comentários a seguir, vamos tentar reorganizar,
num outro formato, parte dos dados propostos por Peirce para chegar a uma justificativa da
existência de dez classes de signos. A compreensão inicial dos fatos em análise, embora
certamente não seja o único, pressupõe a formulação de Peirce sobre as relações triádicas,
seus componentes e suas características, conforme o registro seguinte (PEIRCE, 1977):

“... A título provisório, podemos efetuar uma divisão grosseira das


relações triádicas, divisão que, não duvidamos, contém importante
verdade, ainda que imperfeitamente apreendida:
Relações triádicas de comparação
Relações triádicas de desempenho e
Relações triádicas de pensamento.
Relações triádicas de Comparação são as que fazem parte da natureza
das possibilidades lógicas.
Relações triádicas de Desempenho são as que fazem parte da natureza
dos fatos reais.
Relações triádicas de Pensamento são as que fazem parte da natureza
das leis.” (p. 49)

Podemos fazer uma aproximação das relações triádicas com as tricotomias, que já
foram mencionadas, mostrando que aquelas, diferentemente destas, não especificam uma
tipologia de signos, senão apontam o domínio de certas categorias em torno das quais se
estruturam os componentes de cada uma das tricotomias. É importante introduzir ainda, nas
diversas instâncias de compreensão do signo, o papel atribuído aos correlatos51. Poderíamos,

51
Ao isolarmos diversos aspectos que são usados na construção do signo, seria importante registrar o valor que
Peirce atribui ao correlato, (PEIRCE, 1977, p. 51): “... Um representâmen é o Primeiro Correlato de uma
relação triádica sendo o Segundo Correlato denominado seu Objeto e o possível Terceiro Correlato sendo
denominado o seu Interpretante...”.
105

para melhor ilustrar a correlação, supor que as relações triádicas, em toda sua extensão
conceitual, fossem linhas que atravessassem as três tricotomias, com seus membros listados
em colunas e associados a cada um dos correlatos determinantes, conforme esquema abaixo:

função dos correlatos


natureza conceitual Correlato 1: Correlato 1: Correlato 3: estrutura conceitual
das relações representâmen objeto interpretante das relações

⇓ ⇓ ⇓ ⇓ ⇓
Relações triádicas qualissigno ícone rema ⇐ domínio das
de comparação ⇒ possibilidades
Relações triádicas sinsigno índice dicente ⇐ domínio da
de desempenho ⇒ existência
Relações triádicas legissigno símbolo argumento ⇐ domínio das
de pensamento ⇒ leis
⇑ ⇑ ⇑
Primeira Segunda Terceira
Tricotomia Tricotomia Tricotomia

Fig. 1: Quadro de correlações sígnicas

Por sua natureza conceitual, os signos colocados no domínio da relação triádica de


comparação estruturam-se em função de possibilidades lógicas, especificadas em razão de
relações funcionais de cada uma das tricotomias. Em outras palavras, as possibilidades lógicas
são definidas, de modo particular, em razão de cada um dos correlatos que interfere na
constituição do formato de representação. Assim, por exemplo, o que torna um ícone
logicamente possível é o fato de ele conter um alcance de representação, determinado pelo
segundo correlato − objeto − que possibilita comparar a natureza do signo com a do objeto
que designa, em razão de algum traço analógico. Logo, um ícone é uma possibilidade lógica
de um objeto qualquer, na medida em que ele o representa em razão de algum traço analógico
que incorpora do objeto. A condição para que um dado traçado seja um ícone para o
objeto:casa, é que ele seja capaz de, logicamente, conter algum traço analógico que lembre o
objeto em questão: formato físico, contendo porta, janela, telhado... Mutatis mutandis, o
106

mesmo podemos asseverar sobre o rema. Como função proposicional, ele traduz-se como
mera possibilidade lógica de poder ser atualizado em função do terceiro correlato −
interpretante − que determina as condições de seu uso e os resultados decorrentes. Então, um
rema é uma possibilidade lógica, porque estrutura uma condição de uso de uma categoria −
‘emprestar’ −, em função da atualização de variáveis − ‘emprestar(x, y, z)’. O fato de se
colocar, portanto, a comparação como um domínio de possibilidades lógicas submete signos à
condição de vir a representar em razão de circunstâncias determinadas.

Por outro lado, as relações triádicas de desempenho fundamentam-se em razão de


serem uma instância representativa da existência fatual dos objetos. O que traduz a existência
é o fato de podermos reconhecer, no signo, parte daquilo que é por ele próprio representado.
De mera expressão de possibilidades lógicas, chegamos, então, a uma dimensão de signos
comprometida com a existência dos objetos. Assim, um sinsigno é a representação de um
existente que, em razão da determinação da primeira tricotomia, traduz-se por ser, ele mesmo,
um signo. Qualquer palavra de uma língua, enquanto assumida como um objeto existente
(para estudo na fonologia ou na morfologia, por exemplo), constitui um sinsigno. Com os
devidos ajustes, podemos afirmar o mesmo para o índice, que tem como desempenho o fato de
ser um signo que incorpora uma extensão do objeto que representa, isto é, que mantém com o
objeto representado uma relação existencial estreita, metonímica. Assim, o objeto:chave pode
ser um índice para o objeto:casa, uma vez que o primeiro se estrutura através da função que
mantém uma relação de existência com o outro, por constituir uma de suas partes integrantes.
O estreitamento da correlação entre o ser e a representação do ser contido nas relações
triádicas de desempenho mostra um viés conceitual diferente do precedente. Não se trata de
uma representação em potencial, mas de uma representação que supõe um mínimo de um
comprometimento material entre o que representa e aquilo que é representado, segundo os
padrões determinantes de cada uma das tricotomias.

Por último, as relações triádicas de pensamento expressam a concepção mais


racionalmente elaborada, porque requerem a intervenção de leis que tornam possíveis os
formatos de representação ali presentes. Assim, quando afirmamos o valor estrutural de uma
‘preposição’ como um legissigno, estamos considerando-a em si mesma e a partir de leis
gramaticais que fazem dela um instrumento hábil ao desempenho de funções. Somente em
razão das leis de um sistema é que podemos determinar o seu valor estrutural. Não existe para
107

a ‘preposição’ uma extensão objetiva na realidade, como vimos em casos anteriores, mas
apenas uma condição conceitual de estruturação dessa extensão: o seu valor decorre da força
de leis que regem o seu estatuto no sistema. Podemos assegurar uma formulação semelhante
em se tratando do argumento: ele não traduz, diretamente, uma parte da realidade − pois este
seria o papel do dicente −, mas ele é mais do que isso, pois recolhe partes dessa realidade e dá
a elas uma expressão racional, isto é, de correlações expressas na forma de silogismos
dedutivos, indutivos e abdutivos. O argumento é assumido como a forma mais elaborada do
pensamento por se tratar de uma representação que inclui o domínio das leis, de normas que
regem a estruturação do pensamento. Ele sintetiza, portanto, padrões diversos de raciocínio,
como a expressão máxima da racionalidade.

O quadro de correlações que elaboramos acima ainda não é suficiente, na sua


totalidade, para caracterizar, de forma específica, as modalidades de signo. Registramos, nesse
momento, apenas aquilo a que poderíamos denominar os ‘radicais básicos’ para a sua
construção, exceção feita ao qualissigno e ao argumento. O quadro mostra, então, três
dimensões determinantes a que Peirce submeteu o domínio do signo. Nesse domínio,
podemos reconhecer uma natureza, uma função e uma estrutura que representam os atributos
essenciais do signo. Num dos alcances das relações triádicas, situa-se a natureza do signo,
expressa através das categorias comparação, desempenho e pensamento que são
determinantes para a sua concepção e que apontam para um primeiro critério de distinção
entre formas de representação. Dessa formulação, podemos derivar modalidades que são
expressão das categorias mencionadas: signos de comparação, de desempenho ou de
pensamento. No âmbito dos correlatos, localizamos a sua função que mostra a interface
imediata do signo com o representâmen − isto é, com ele mesmo −, com o objeto e com o
interpretante, como instâncias determinantes para uma avaliação de seu comportamento.
Nessa dimensão, o valor representacional do signo é inferido face ao elemento que é
relacionado no contraste. No outro alcance das relações triádicas, situamos a sua estrutura,
que se efetiva em razão de possibilidades lógicas, ou da expressão existencial, ou do ajuste a
leis gerais; todos assumidos como parâmetros que determinam estágios diferentes da
construção de uma racionalidade no plano da representação. Finalmente, o domínio das
tricotomias não constitui, no nosso entendimento, um valor conceitual determinante na
concepção do signo, senão num critério exterior de agrupamento das três dimensões
conceituais que acabamos de mencionar.
108

Se as três dimensões conceituais que acima apontamos (natureza, função, estrutura),


quando combinadas, se tornam responsáveis pela especificação de cada um dos ‘radicais
básicos’, indicados no quadro de correlações pelos campos hachurados, e também de duas
classes de signos - qualissigno e argumento52 -, podemos supor uma forma de gerar as demais
classes remanescentes, a partir das categorias constantes em cada uma das dimensões.
Associando, num primeiro momento, as categorias que especificam a estrutura, podemos
obter três ‘radicais básicos’: um que se institui no plano da [possibilidade], outro, no plano da
[existência] e um terceiro, no plano da [lei], conforme o esquema abaixo:

(04) Regra básica: estrutura do signo → {[possibilidade] ∨ [existência] ∨ [lei]}53

Consideremos uma aplicação de (04), a partir de [possibilidade], incluindo, mesmo que de


modo redundante, a categoria [comparação], já que uma e outra definem apenas padrões
diferenciados − natureza e estrutura, na nossa concepção − para o signo. O resultado é o
seguinte:

(05) Associações para [possibilidade]:

(05a) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato1]}, isto é, qualissigno;


(05b) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]}, isto é, ícone;
(05c) {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]}, isto é, rema.

52
Qualissigno e argumento constituem as formas de signo que dispensam quaisquer outros complementos
através dos radicais básicos: o primeiro associa-se à forma mais primária de representação, por situar-se ainda
num plano muito próximo ao da percepção; contrariamente, o segundo constitui o padrão mais elaborado de
representação.
53
A admissão da estrutura como ponto inicial da derivação de formas de signo é, relativamente, arbitrária, já que
poderíamos atribuir à natureza o mesmo papel, em razão da coincidência que existe entre as duas formas de
concepção do signo. Assim, (04) poderia ser reescrita como (04a) Regra básica: natureza do signo →
{[comparação] ∨ [desempenho] ∨ [pensamento]}. O que concluímos dessa alternativa é que natureza e estrutura
são, de fato, duas dimensões redundantes, porque qualquer signo de possibilidade é um signo de comparação, ou
qualquer signo de existência e um signo de desempenho e assim por diante.
109

Enquanto estrutura-possibilidade e natureza-comparação se mantêm constantes, o


responsável pela produção diversa de instâncias de signos/radicais é o correlato. Dentre as
três instâncias acima, apenas o qualissigno assumirá, na tipologia do autor, um valor de signo
genuíno54; as demais serão reaproveitadas como elementos combinatórios na construção de
classes mais complexas de signos, como veremos mais tarde. Pelo fato, portanto, de ser um
signo que se constitui apenas a partir de condições de um primeiro, o qualissigno torna-se a
forma mais degenerada de representação; ele é um estágio de representação menos elaborado,
por estar próximo de uma mera sensação do objeto; logo, traduz deste apenas uma qualidade
de sensação. Os demais elementos − ícone e rema −, portanto, incorporam-se como parte
constitutiva de classes mais complexas de signos, daí a razão de apontá-los como ‘radicais
básicos’. Avaliemos agora o comportamento do segundo componente da expansão da regra
em (04):

(06) Associações para [existência]:

(06a) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]}, ou seja, sinsigno;


(06b) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]}, ou seja, índice;
(06c) {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]}, ou seja, dicente.

Para o conjunto de derivações acima, enquanto estrutura-existência e natureza-desempenho


mantêm-se inalteradas, a diferenciação para o signo é produzida pela presença dos correlatos.
São eles, portanto, os responsáveis por garantir graus diferenciados de representação no
âmbito das relações triádicas de desempenho. No caso do índice, por exemplo, entendemos
que a convergência de dois padrões − existência e o [correlato 2], que supõe o objeto −,
indicaria o máximo sobre condições de existência fatual. O índice é, portanto, por essa dupla
contaminação existencial, o formato de representâmen que mais se aproxima da essência
existencial do objeto, podendo até mesmo integrar uma parte de suas partes componentes.
Aqui, todavia, Peirce não isola nenhum signo genuíno, mantendo cada um dos elementos
como possibilidade de recomposição de classes mais complexas de signo. Vejamos, então,
associações possíveis para o terceiro componente de (04):

54
É claro que a genuinidade do qualissigno não se deve à sua mera designação singular, mas como conseqüência
do fato de ser um signo genuíno, que comporta essa denominação por se fazer constituir por elementos primeiros.
110

(07) Associações para [lei]:

(07a) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]}, a saber, legissigno;


(07b) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]}, a saber, símbolo;
(07c) {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 3]}, a saber, argumento.

As derivações compostas com base em estrutura-lei, natureza-pensamento também apontam


que diferentes formas de representação são obtidas mediante uma variação do correlato. Os
três formatos de representação supõem uma organização intelectual, quer os assumamos em
relação ao pensamento, quer em relação a normas gerais. Legissigno e símbolo são também
considerados como componentes de outras classes mais complexas de signos. O argumento,
de outro lado, constitui uma classe genuína de signos, porque constitui o padrão último de
representação, a sua forma mais elaborada − um silogismo, por exemplo. Esse fato assegura-
lhe o motivo de ser, em contraste com o qualissigno, a forma menos degenerada de
representação, já que ele interpela os objetos sem uma referência imediata à sua existência, ou
a qualidades que lhe são próprias, mas apenas em virtude de leis e de normas gerais que regem
seu comportamento e sua existência.

A partir da fundamentação dos elementos componentes das três tricotomias, podemos


formular o modo pelo qual Peirce elabora as demais classes de signo e que aspectos, no
âmbito de uma semiose, elas pretendem recobrir. De início, podemos afirmar que qualquer
forma de representação proposta pelo autor pressupõe a intervenção dos três correlatos −
representâmen, objeto e interpretante. Entretanto, como já vimos, tanto para o qualissigno
como para o argumento, há formas de representação que se orientam de modo mais específico
referentemente aos correlatos. Nos comentários abaixo e a partir do agrupamento de certas
classes de signos, vamos tentar mostrar como elas podem ser mapeadas no campo da semiose,
procurando destacar que a tipologia proposta por Peirce não se sobrepõe, mas recorta,
diferentemente, frações distintas do processo semiótico, conforme estipulamos nos
agrupamentos abaixo:

(08) Grupo 1: orientação para a relação representâmen/objeto:


111

Sinsigno icônico: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno)


{[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]} (ícone)

Legissigno icônico: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno)


{[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato2]} (ícone)

As duas classes acima apresentam, em comum, o fato de estarem orientadas para os mesmos
correlatos, isto é, o primeiro e o segundo. Face ao primeiro correlato − representâmen −, o
sinsigno icônico orienta-se, em sua dimensão estrutural, em termos da [existência], enquanto
o legissigno icônico o faz em termos da [lei]. Ambos, por seu turno, recobrem,
conceitualmente, o território que diz respeito à relação entre representâmen e objeto,
assinalando, para este último, a condição de mera [possibilidade], daí a razão de serem ambos
espécies icônicas. Se as duas classes acima refletem a representação do primeiro correlato em
termos da segunda e terceira relações triádicas − [desempenho] e [pensamento],
respectivamente −, a primeira será recoberta pelo qualissigno, como veremos à frente.

(09) Grupo 2: orientação para objeto/interpretante:

Símbolo remático: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]} (símbolo)


{[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato 3]} (rema)

Símbolo dicente: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 2]} (símbolo)


{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente)
A presença do segundo e terceiro correlatos na compreensão das duas classes do grupo acima
mostra uma orientação para a relação entre objeto/interpretante. A semelhança está assegurada
em função de serem ambos signos de lei, mas que divergem no detalhe complementar de ser
um signo de possibilidade e um signo de existência para o terceiro correlato. A terceira
tricotomia aparece recoberta em termos da primeira e da segunda relação triádica, enquanto a
terceira relação triádica será desempenhada pelo argumento, como veremos a seguir.

(10) Grupo 3: orientação para a relação representâmen/objeto/interpretante:


112

Sinsigno indicial remático: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno)


{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice)
{[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]} (rema)

Legissigno indicial remático: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno)


{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice)
{[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato3]}(rema)

Legissigno indicial dicente: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 1]} (legissigno)


{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 2]} (índice)
{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente)

As três dimensões do processo semiótico aparecem aqui representadas nas três classes de
signos deste grupo. O traço constante dos signos que compõem o grupo se faz representar pela
presença da categoria [existência], isto é, todos são signos indiciais, assegurando uma relação
direta com domínio dos fatos. No entanto, a forma de assegurar a existência genuína de um
segundo acontece em razão do modo pelo qual primeiros e terceiros são combinados. Assim,
constatamos: (a) o primeiro correlato contrasta sinsigno indicial remático − em razão da
[existência] − com legissigno indicial remático e com legissigno indicial dicente; − em razão
da [lei] −; (b) o terceiro correlato contrasta sinsigno indicial remático e legissigno indicial
remático − em razão da [possibilidade] − com legissigno indicial dicente.

(11) Grupo 4: orientação para o fundamento estrutural do signo

Qualissigno: {[possibilidade] ∧ [comparação] ∧ [correlato1]} (qualissigno)

Sinsigno dicente: {[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 1]} (sinsigno)


{[existência] ∧ [desempenho] ∧ [correlato 3]} (dicente)

Argumento: {[lei] ∧ [pensamento] ∧ [correlato 3]} (argumento)

O grupo acima determina aquilo que é o fundamento do signo, para cada uma das dimensões
conceituais anteriormente previstas, ou seja, [possibilidade], [existência] e [lei]. Assim, o
qualissigno é o máximo de [possibilidade] que uma forma de representação pode assumir,
113

porque é ainda um reduto da sensação. Em contrapartida, ele incorpora o mínimo de [lei],


porque pouco contém de elaboração55. O argumento, por sua vez, incorpora o máximo de
[lei], porque é a forma mais elaborada de expressão do pensamento. Por essa razão, nele se faz
presente o mínimo de [possibilidade], por já se tratar de um padrão onde grande parte da
sensação foi abandonada em favor de uma elaboração56. Resta, pois, avaliar o fundamento da
[existência]: deveríamos, por razões óbvias, supor que o índice pudesse exercer essa função,
por incorporar apenas constituintes que lembram a idéia de segundo, a saber, [existência],
[desempenho] e [correlato 2/objeto]. Entretanto, Peirce fundamenta a representação nesse
estágio a partir de uma classe complexa − sinsigno dicente − que reúne, simultaneamente, a
condição de existência do [correlato 1] e do [correlato 3]. A representação da [existência] é
construída, então, com base na estrutura existencial partilhada pelo representâmen bem como
pelo interpretante, e com a exclusão de qualquer referência ao objeto. O máximo de
existência contida nos formatos de representação decorre não do objeto, mas da instância
existencial presente no representâmen ou no interpretante. É provável que esta questão seja
uma conseqüência da necessidade de se distinguir, mais uma vez, o ser do ser representado
ou da representação do ser.

Procuramos, nesse relato sobre a tipologia dos signos, localizar alguns aspectos que
julgamos essenciais a sua compreensão. Isolamos, dentre muitas outras, algumas categorias
que nos permitiram uma compreensão do processo de representação conceitual, de forma mais
analítica. Considerando-se o alcance conceitual de sua formulação, o texto de Peirce pode
constituir-se numa fundamentação importante para a apreensão de fatos relativos ao
conhecimento da atividade humana. Nos seus termos genéricos, a proposta em análise parece
procedente em se tratando da construção de uma gênese das representações, embora o seu
alcance aplicativo nem sempre esteja traduzido de modo imediato. As dificuldades, nesse
setor, não devem ser atribuídas ao autor, nem à metalinguagem que propõe para compreendê-
las; as dificuldades são mesmo decorrentes da natureza complexa dos fatos e da forma pela
qual, para evitar reducionismos, se busca captar esta complexidade. Assim, por tentar

55
Esse teor que estamos atribuindo ao qualissigno, de representar o máximo de possibilidade, encontra-se
plenamente justificado por Peirce, quando, ao listar os ‘radicais’ supérfluos na constituição de cada classe de
signos, apresenta para o qualissigno apenas componentes da ordem da possibilidade, isto é, icônico e remático.
56
Aqui também constatamos argumentos semelhantes aos desenvolvidos para o qualissigno para justificar o
máximo de lei no argumento: a sua composição plena nos daria elementos que apenas lembram a ordem da lei,
isto é, simbólico e legissigno.
114

assegurar o comportamento dinâmico de objetos sob a forma de representações, Peirce


propõe-se a construir um sistema que, embora se orientando, em muitas circunstâncias, em
direção à lógica, contém ramificações e desdobramentos cujo ajuste sistêmico nem sempre se
torna muito transparente. Poderíamos minorar o alcance dessa observação em nome de uma
lógica do vago, que o autor comenta em diversos momentos. Mesmo assim, a admissão do
vago como padrão de comportamento dos objetos de uma semiose social não nos autoriza a
incorporá-lo como padrão de metalinguagem. O que resulta, então, de tal situação ?

A princípio, não é possível listar objetos específicos, fazendo-os corresponder a classes


de signos, como pode ser factível para outras taxinomias. Essa lista seria sempre parcial, não
apenas pelo fato de ser logicamente impossível a nomeação de todos os objetos semióticos,
mas também pelo fato de a classificação listar apenas algumas das possibilidades de cada
objeto. Em outras palavras, uma listagem capta um elemento no tempo e no espaço e esse
procedimento, se é válido para muitas práticas sociais, não o é para objetos semióticos; o
tempo e espaço escolhidos traduzem apenas uma variação possível, e não uma constante para
objetos semióticos. A variabilidade resultante da aplicação contínua dos vetores,
tempo/espaço, mostra que a classificação dos signos não pode ser vista como algo estático,
porque os objetos da nomeação se encontram em mutações constantes pelo teor flutuante e
instável do seu uso. Qualquer objeto semiótico pode ser assumido em dimensões distintas,
uma vez que a possibilidade lógica de sua representação traduz-se pela necessidade material
de representá-lo como um acontecimento singular. Nas seções seguintes, vamos formular
contrastes, a partir da análise de alguns fatos, entre o formato de representação proposto pela
autor e algum outro desenvolvido para análise lingüística.

3.3.2 Determinantes da representação: tipologias versus relações lexicais/sintagmáticas

O trabalho desenvolvido por Peirce, conforme já demonstrado nos dois capítulos


anteriores, pode apresentar-se, com os devidos ajustamentos, como uma reflexão importante
para a compreensão de fatos de linguagem, principalmente, aqueles associados à construção
de uma teoria semântica, na perspectiva aqui discutida. O alcance definido para a terceiridade
ressoa também, com certeza, como algo absolutamente familiar ao desenvolvimento da
115

semântica, em particular, e dos estudos da linguagem, em geral. A idéia de representação


nunca escapou à reflexão lingüística em quaisquer de seus níveis: fonema, morfema,
sintagma, sema, por exemplo, foram categorias postuladas com o objetivo de representar, num
plano metalingüístico, algum tipo de fenômeno que faz parte do objeto de alguma de suas
áreas. Independentemente de formas de representação como essas, a de signo, no entanto,
parece ter sido aquela, pela sua natureza, que melhor encarna a questão da representação,
devido a sua estreita relação com objetos de um ‘mundo real’. Assim, a necessidade de
convivência entre linguagem e realidade acabou por tornar a representação uma categoria não
só necessária como recurso de mediação, como também emblemática, em razão do fato de
todas as dificuldades de compreensão desse relacionamento recaírem sobre deficiências de
alcance do seu conceito. Como registro, é suficiente que nos reportemos a três orientações que
marcaram uma convivência (turbulenta) e que resultaram em concepções diferentes de
representação. No primeiro caso, definiu-se a representação como um reflexo, onde a
linguagem se torna um locus apropriado ao mapeamento de fatos da realidade; no segundo,
ela se define como uma refração, registrando-se na linguagem aquilo que se mostra como um
desvio da realidade; no terceiro caso, a representação se reveste de um teor projetivo,
tornando-se a linguagem uma condição para representar mundos possíveis.

A identidade terminológica entre semiótica e semântica, em torno da representação,


entretanto, não parece garantir uma migração ou uma simbiose natural de aplicações: a própria
dimensão apontada para a categoria nos estudos lingüísticos funciona como entrave a uma
transcodificação imediata. Assim, ainda que o valor genérico da reflexão de Peirce seja
compreensível na avaliação de fenômenos lingüísticos, a instrumentalização que respalda sua
reflexão não nos parece adequada aos objetivos pretendidos. Enquanto uma certa gênese de
tipologias fundamenta, na formulação do autor, todo exercício racional da terceiridade, a
linguagem está a requerer outros padrões que justifiquem, minimamente, qualquer pretensão
racional para a produção do sentido. Em que extensão, portanto, podemos situar algumas das
dificuldades de um intercâmbio entre semiótica e semântica em termos de representação ?
Existe uma incompatibilidade, de fato, entre os modelos de funcionamento de uma e outra ?
Há requisitos que devem compor uma representação semântica e que a fazem distinta de uma
representação semiótica ?
116

As três questões acima já pressupõem uma certa diferença de comportamento para a


representação nos dois campos. É claro que esse pressuposto não exclui a possibilidade de
uma aproximação, ainda que ela seja concretizada apenas em razão de princípios genéricos,
como parece revelar esta análise. Não há nada de destoante em considerar um patamar de
questões envolvendo uma teoria semântica, o qual esteja circunscrito no plano da
terceiridade, na forma como foi concebida anteriormente. A natureza da significação
lingüística, no entanto, impõe a necessidade de reescrever a terceiridade para que possa
abrigar outro tipo de fenômeno. Assim, por mais provisória que ainda seja a compreensão
teórica dos processos de significação lingüística, não conseguimos escapar da determinação
de propriedades e de relações lexicais e sintagmáticas. Qualquer pretensão conceitual sobre
objetos semânticos que a história da lingüística ou da lógica registra foi construída com base,
ao menos, em um dos dois níveis de determinação acima mencionados. Qualquer
possibilidade de demonstração de formas possíveis para a representação do sentido exige que
passemos por estes dois planos dos fatos lingüísticos e que sejamos capazes de fazê-los
convergir de modo decisivo. Com certeza, situa-se, no núcleo dessa discussão, um dos
grandes problemas para a construção de uma teoria semântica, isto é, a possibilidade de
amalgamar fatores destas duas ordens, pois propriedades e relações lexicais sozinhas
resultariam em mera lexicologia, da mesma forma que propriedades e relações sintagmáticas
isoladas redundariam em mera sintaxe.

Apesar das diferenças assinaladas, a linguagem pode ainda ter acolhida no interior da
terceiridade, no seu plano mais genérico; este acolhimento, todavia, requer que façamos
ajustes profundos no conceito de representação, em razão da natureza daquilo que constitui o
ser a ser representado. Se esse ser para a semiótica origina-se de uma qualidade de sensação,
validada pela percepção fenomênica de concretude e materialidade exposta diante dos olhos,
por exemplo, para a semântica o ser contém um estatuto diferenciador, pois, além de incluir
essa dimensão, contempla também um outro tipo de fenômeno, constitutivo da significação
(ou da percepção do sentido). Trata-se, como já mencionamos, de relações (e também de
propriedades) que decorrem de um mundo conceitual, que se forja a partir da estruturação
lexical e da criação de sintagmas. Se os ‘objetos semióticos’ já se mostram complexos na
concepção de Peirce, esta complexidade tende a crescer em se tratando de ‘objetos
117

semânticos’. Vejamos, por exemplo, o que seria a nossa percepção de um objeto complexo
como ‘abajur de Maria’. Como objeto semiótico, podemos ter as seguintes hipóteses57:

(12) ‘abajur’: símbolo remático, porque aponta, ao mesmo tempo, para um existente
(o objeto material) e para uma qualidade que ele representa (a função a que se destina);

(13) ‘de’: legissigno icônico, porque se fundamenta numa lei (a de ser, por convenção,
uma partícula de conexão entre unidades lingüísticas), e porque cada um de seus usos
atualiza uma qualidade específica (posse, determinação, origem espacial...)58

(14) ‘Maria’: legissigno indicial remático, porque se funda numa lei − logo,
legissigno −, aponta um existente (a pessoa em questão) − daí o fato de ser indicial − e
porque representa algum tipo propriedade que o associa à pessoa que permite designar,
em circunstâncias apropriadas − por isso, remático59;

(15) ‘abajur de Maria’: sinsigno indicial remático, como réplica assumida de um


símbolo remático.

Por mais que pudéssemos conceber outros desdobramentos para os signos precedentes, o
procedimento ainda continuaria mostrando deficiências quanto à explicitação do que, de fato,
a expressão representa conceitualmente, pela razão exata de não traduzir efeitos de sentido
decorrentes de correlações entre suas unidades. Por outro lado, como objeto semântico e sem
entrar em detalhes exaustivos, no momento, sobre a leitura lexical (Ll) de cada um dos itens
isolados, podemos supor, ao menos, cinco leituras derivadas (Ld), decorrentes de propriedades

57
A classificação apresentada tem um caráter provisório, porque cada circunstância de uso específico de cada um
dos termos pode afetar diretamente sua classificação, pois o fator decisivo para a tipologia em análise é, de fato,
a função específica que o signo está destinado a exercer num dado contexto.
58
Potencialmente, podemos reescrever uma preposição como uma função proposicional, isto é, como um rema.
Por exemplo: de[posse] (x, y), de[atributo] (x, y), de[origem espacial](x, y). A ilustração ainda é muito geral e requer que
restrições adicionais sejam acrescidas às variáveis em razão de cada uso.
59
A tradição filosófica sobre a questão dos nomes próprios não é unânime em relação ao fato de eles poderem
expressar ou não uma qualidade, isto é, de terem ou não um sentido. O argumento principal daqueles que lhes
reivindicam um sentido assegura que só usamos um nome próprio porque conhecemos alguma propriedade do
objeto a que ele se aplica (SEARLE, 1984. p. 214-31).
118

lexicais e de relações sintagmáticas presentes na expressão e dependendo de uma


especificação maior ou menor de contextos apropriados:

(16) ‘abajur de Maria’: Ld1: [um abajur que serve para um tipo de pessoa,
metonimicamente, representado por Maria];
Ld2: [um abajur que se presta ao recolhimento
espiritual, metaforicamente, lembrando a santa];
Ld3: [um abajur com desenhos de Maria (a santa ou
alguma representação popular de mulher];
Ld4: [um abajur que pertence a alguma Maria];60
Ld5: [um papel envolvendo uma lâmpada, produzindo
sombras, nos moldes de um abajur popular].

O conjunto das leituras acima decorre, certamente, não apenas daquilo que podemos
configurar para objetos particulares, representados pelos nomes − ‘abajur’ e ‘Maria’ −, mas
também por relações lexicais e sintagmáticas que são estabelecidas entre eles. No primeiro
aspecto, podemos afirmar que todas as leituras respeitaram o conceito característico de
‘abajur’: preservou-se o projeto do objeto em análise, isto é, [FINALIDADE: redução da
claridade produzida por lâmpada] que está nele incorporado. E mesmo no caso de L5, continua
existindo o projeto, pois a expressão ‘nos moldes de um ...’ funciona como uma espécie de
hedge preservando o valor funcional do objeto em tela. Nada, entretanto, nos impede de uma
extensão de leituras, que pudesse mesmo obliterar, em alguma medida, o valor funcional do
objeto, preservando dele apenas um traço analógico, como, por exemplo (entre tantas outras
possíveis):

(17) ‘abajur de Maria’: Ld6: [um tipo de chapéu popular que guarde alguma
analogia com a forma de um abajur] ou
Ld7: [um tipo de flor comum que mantenha um certo traço
análogo à forma de um abajur] ou

60
A idéia de posse, em relações como esta e independentemente de um contexto mais específico, é mais clara
quando o segundo nome se faz acompanhar do artigo definido, por exemplo: livro de menino [L1: livro que
menino possui] ou [L2: livro para menino usar], em contraste com livro do menino [L1:livro que pertence a um
dado menino].
119

Ld8: [qualquer tipo de objeto que mantenha um traço


análogo à forma de um abajur].

É importante ressaltar como as leituras derivadas acima tornaram-se aceitáveis,


porque também se fundamentam em leituras lexicais possíveis para, por exemplo, o segundo
nome da expressão - ‘Maria’, justificável de duas maneiras distintas:

(18) ‘Maria’: Ll1: [NATUREZA: uma pessoa particular que passou a ser
assim denominada a partir de uma cerimônia batismo];
Ll2: [NATUREZA: a santa designada em razão de uma
circunstância histórica qualquer];

A tais características lexicais associam-se muitas outras de natureza sintagmática, tornando


possível compatibilizar as leituras derivadas com as primitivas. Podemos admitir um primeiro
nível de sintagmatização, considerando-se efeitos de sentido resultantes da expressão ‘de
Maria’, conforme esquema seguinte:

(19) ‘de Maria’: Ld9: [ATRIBUTO: algum tipo de qualidade genérica,


metonimicamente indicado pelo teor popular do
nome].
Ld10: [ATRIBUTO: algum tipo de virtude associado,
metaforicamente, à santa];

Desse modo, a expressão ‘de Maria’ produz dois efeitos de sentido, como resultado
da sintagmatização das leituras lexicais, Ll1 e Ll2, do nome ‘Maria’, associado a um dos
valores da função proposicional ‘de[atributo] (x, y)’, conforme descrito anteriormente. A
escolha desse valor funcional, e não de outro concorrente, justifica-se pelo contraste entre ‘de
Maria’ e ‘da Maria’. Para a segunda expressão, seria mais natural supor o valor funcional
‘de[posse] (x, y)’ que nos permite derivar leituras, com outros efeitos de sentido, no caso
presente, restritas às propriedades contidas apenas em Ll1, ao menos, sem uma especificação
mais precisa de contextos. Assim, grande parte dos efeitos de sentido, conforme demonstrado
120

nas leituras derivadas que foram acima lembradas, decorre da conjunção dos fatores que
acabamos de mencionar.

Comparando-se, com base na análise que foi desenvolvida, algumas exigências


impostas a objetos semióticos e a objetos semânticos, podemos verificar que a oposição entre
ser e ser representado comporta-se de modo diferente nos dois campos em discussão. No
plano semiótico, a possibilidade de um ‘cálculo’ que nos permita passar, por meio de alguns
princípios gerais, de unidades simples a unidades complexas, não se mostra tão evidente,
embora tenha sido o nosso propósito reescrever alguns aspectos da tipologia dos signos num
formato que expusesse padrões de cálculo. Não fica claro, também, em que extensão uma
estruturação de relações sígnicas impõe restrições ao leque de contextos possíveis de
atualização. No plano lingüístico, percebe-se um certo padrão de cálculo, em razão da
recorrência dos traços e das propriedades em níveis diferentes de organização. Além do mais,
a relação de proposições lingüísticas com contextos específicos não é vista apenas na
perspectiva da determinação destes sobre aquelas, uma vez que a estruturação lingüística pode
impor restrições ao contexto de uso. Em resumo, há muitas expressões lingüísticas para as
quais nos vemos na contingência de implementar contextos para poder justificar-lhes
interpretações específicas.

Dessa forma, o paralelo entre relações e propriedades lexicais/sintagmáticas, de um


lado, e relações sígnicas, do outro, se não contém o caráter de uma necessidade orgânica, ao
menos pode vir a ser fixado em termos de uma analogia. É possível, pois, que as propriedades
que foram vinculadas ao nome ‘Maria’ venham a representar relações sígnicas distintas como
um fato contingente. A representação de uma propriedade em Ld9 − pela extensão metonímica
da expressão ‘de Maria’ − seria equivalente a um rema, como uma função a ser saturada ‘de
Maria[atributo] (x)’. A representação de um objeto em Ll2 − a santa que o nome ‘Maria’
designa − tornaria o nome equivalente a um símbolo, se o assumíssemos na dimensão
convencional de sua codificação, ou a um índice, se o fizéssemos em termos do objeto
singular que nomeia. É evidente que relações como estas, dentre muitas outras, não podem
ser desconsideradas, quando justificamos nossas intuições interpretativas. Resta saber,
todavia, o que devemos situar como razão primeira neste processo interpretativo: as relações
léxico-sintagmáticas ou as tipologias sígnicas ? Em outras palavras, o que fundamenta a
121

polissemia designativa de termos como ‘(de) Maria’ numa expressão como a que estamos
analisando ?

Poderíamos renunciar a um certo conflito entre semiótica e semântica, nos termos em


análise, admitindo alguma forma de coexistência entre o conjunto das relações léxico-
sintagmáticas e o das tipologias sígnicas. O desafio que se impõe aqui é buscar uma
justificativa que dê conta da precedência de um conjunto sobre o outro, ou de localizar fatos
onde um ou outro deixam de prevalecer. Assim, enquanto para a semiótica, a atividade
sensível (sobre objetos, natureza...) se apresenta como condição inicial para a representação, a
partir da experiência dos dois planos distintos que precedem a terceiridade, para a semântica,
de forma equivalente, a atividade cognitiva sobre a realidade funciona como a base para o
cálculo dos seus objetos (as leituras mencionadas), embora na história da semântica nem
sempre esse fato tenha sido ressaltado. Se o fundamento básico dos dois campos implica uma
captura de dados primários numa mesma fonte, ainda que com feições distintas, o modo de
processar tais dados deve ser aferido em função das especificidades de cada um dos campos.
Em outros termos, enquanto para a semiótica a natureza ou o comportamento dos objetos é
uma condição para a existência de relações e de tipologias sígnicas, para a semântica, além
dessa dimensão, acrescentamos o fato de que relações e propriedades lexicais/sintagmáticas
são uma condição para o reconhecimento de alguma forma de existência de objetos.

Assim, as relações léxico-sintagmáticas determinam algumas possibilidades do


reconhecimento de ‘Maria’, em uma das dimensões acima apontadas, como um objeto
semântico factível, ao mesmo tempo que detêm o poder de neutralizar outras. A interpretação
de ‘Maria’ depende das relações que são estabelecidas com outros termos do contexto
lingüístico de sua ocorrência e não pode ser assumida, aprioristicamente, em razão das
relações sígnicas que podem ou não ser consagradas por contextos específicos. Enquanto as
relações tipológicas asseguram uma relativa autonomia aos signos, as relações léxico-
sintagmáticas os tornam interdependentes. O que nos permitiu admitir as leituras derivadas
acima, por exemplo, decorreu da existência de propriedades lexicais de itens isolados
combinadas entre si em razão de vínculos estruturais: se tivéssemos ‘para’, formando a
expressão ‘abajur para Maria’, ao invés de ‘de’, o número de leituras seria reduzido ou, ao
menos, seriam outras as leituras, pois as propriedades lexicais de ‘para’ e os vínculos
estruturais com as outras unidades da expressão inibem a existência de alguns objetos
122

semânticos antes factíveis com a presença de ‘de’. É provável que apenas Ld1 e Ld5, com
algum esforço suplementar, sejam aceitas com naturalidade.

Em resumo, não se trata de fixar aqui uma precedência temporal sobre um e outro
procedimento (relações léxico-sintagmáticas versus relações sígnicas), até mesmo pelas
dificuldades de separá-los em termos dos efeitos terminais alcançados: afinal, das leituras
determinadas por relações léxico-sintagmáticas, podemos isolar relações sígnicas específicas;
partindo destas, porém, nada indica que possamos chegar àquelas. As observações
apresentadas levam, portanto, a inferir que, embora as relações sígnicas pareçam ser mais
primitivas, elas, necessariamente, não determinam as relações léxico-sintagmáticas. O termo
‘abajur’ poderia ter sido introduzido na expressão em análise com um valor intencional de
índice, para um existente determinado (uma ‘alcova’, por exemplo), mas isso não teria
servido para impor qualquer limite que viesse a bloquear interpretações à revelia desse valor,
como mostramos acima.

O teor de interdependência das relações léxico-sintagmáticas pode ainda ser aferido,


quando substituímos um dos termos componentes de uma expressão. No caso presente,
podemos demonstrar como o exemplo pode tornar-se restritivo, em relação às possibilidade
polissêmicas geradas pelo termo ‘Maria’, quando o substituímos por ‘mesa’. Consideremos,
inicialmente, o valor polissêmico de ‘mesa’:

(20) ‘mesa’: Ll1: [NATUREZA: objeto artefato...; FUNÇÃO: utensílio


doméstico... ] (símbolo remático);
Ll2: [NATUREZA: conjunto de pessoas; FUNÇÃO:
reunidas para tomar decisões] (legissigno indicial
remático).

Dadas as possibilidades contidas em Ll1 e Ll2, a expressão em análise vale-se da função


proposicional ‘de[atributo] (x, y)’ para relacionar as duas unidades nominais componentes,
apenas considerando a primeira leitura lexical de ‘mesa’. A compatibilidade conceitual entre
os membros que preenchem as variáveis da função proposicional ‘de[atributo] (abajur’, ‘mesa’)
torna-se possível em função de ‘abajur’ conter traços, na sua descrição {‘abajur’:
[NATUREZA: objeto artefato...; FINALIDADE: redução da claridade produzida por lâmpada]...},
123

que se compatibilizam com a descrição de mesa, em Ll1. O bloqueio para uma leitura com Ll2
acontece devido à inexistência dessa compatibilidade. Entretanto, é possível supor, ao menos
por hipótese, uma outra possibilidade de leitura para Ll2 , por força da utilização de um dos
desdobramentos possíveis para ‘de’, a saber, ‘de[posse] (x, y)’ que, ainda assim, requer uma
especificação do objeto ‘mesa’, exigindo a conversão de ‘de mesa’ em ‘da mesa’. Por
hipótese, poderíamos supor as leituras seguintes:

(21) ‘abajur de mesa’ Ld1: [NATUREZA: objeto artefato; FINALIDADE: redução


da claridade produzida por lâmpada; TIPO/ATRIBUTO:
Ll1 de mesa];

Ld2: [NATUREZA: objeto artefato; FINALIDADE: redução


da claridade produzida por lâmpada; TIPO/POSSE: Ll2 de
mesa].

Ainda que viéssemos a considerar Ld2 como uma leitura natural, com o ajuste proposto, é
provável que a sua justificativa não fosse estabelecida apenas supondo a existência de um
atendimento a pessoas reunidas para tomar decisões, o que, na verdade, parece obliterar, em
parte, o conceito característico do objeto ‘abajur’. Ld2 seria, portanto, uma extensão de Ld1,
pois ainda continuaria a significar a adequação do objeto para ser sobreposto a mesas,
provavelmente, mesas onde se reúnem pessoas. Aqui, portanto, as relações léxico-
sintagmáticas filtram a possibilidade de um aproveitamento natural de ‘mesa’ em sua função
indicial. As relações que determinamos resultam como essenciais à compreensão dos fatos
discursivos, já que não parece ser possível avançar numa compreensão analítica desses fatos
desconhecendo as relações semânticas aí presentes. A recorrência de elementos lingüísticos
tem um caráter determinante na configuração de leituras, de forma mais natural, do que uma
suposta classificação de um mesmo elemento em tipologias sígnicas diferentes.

Vejamos ainda o contraste entre fórmulas como, ‘prato de cachorro’, ‘prato do


cachorro’, ‘prato de Lulu’61 e ‘prato do Lulu’. Vamos considerar para efeito de uma

61
Estamos admitindo Lului como um nome próprio de cachorro, determinado por circunstâncias específicas que
possam lhe assegurar a designação de um único objeto da classe.
124

análise comparativa apenas uma única leitura lexical para ‘prato’ − Ll1:{[NATUREZA: objeto
artefato; FINALIDADE: recipiente para pôr comida...]} − e uma única relação sígnica − símbolo
remático −. Da mesma forma e com os devidos ajustes, admitamos as mesmas condições para
‘cachorro (Lulu)’. Existe, portanto, uma escala gradativa entre as expressões acima, que
pode ir do [-específico], ou seja, a indicação de que ‘prato de cachorro’ traduz apenas um
tipo de objeto genérico, adequado a uma certa função - servir a cachorro -, ao [+específico],
isto é, a indicação de que ‘prato do Lulu’ reporta um objeto particular, pertencente a um
indivíduo, assegurado pela presença do artigo, do nome próprio e da relação de posse
estabelecida pela função proposicional ‘de[posse] (prato, Lulu)’. Uma e outra asseguram o
valor de uma referência absoluta: a primeira aponta a classe de todos os objetos-do-tipo e a
segunda, um objeto individual, nas condições que fixamos para o funcionamento do nome
próprio ‘Lulu’. O estágio intermediário da escala precisa ter uma outra ordem: ‘prato de
Lulu’, apesar de conter um nome próprio indicializado, pode ser, metaforicamente, indicativo
de objetos de uma subclasse, por exemplo, pratos para cachorro que tem a cara do ‘Lulu’ e
deve ser analisado como [-específico]; ‘prato do cachorro’, ainda que uma referência
absoluta só possa ser validada para algum tipo de contexto determinado, onde um único e
mesmo cachorro seja do conhecimento do falante e do ouvinte, aproxima-se do [+específico].

Assim, a viabilidade de uma tipologia para as expressões acima não nos parece
impossível, já que, em termos da gradação do [+específico] para o [-específico], poderíamos
sugerir: legissigno indicial dicente, símbolo dicente, agrupando as expressões duas a duas.
Esse arranjo dos fatos nos leva a constatar também o comportamento diverso que existe na
escala, em termos de uma tipologia de signos. Todavia, o resultado da escala não depende,
como vimos, apenas do contraste entre valor indicial (nome próprio) e simbólico (nome
comum), mas ainda da presença do artigo na expressão. Se o campo da semiótica deve
apurar, gradativamente, uma diferença entre o símbolo e o índice, desdobrando-os em
instâncias diferenciadas, não fica evidente que uma migração automática do resultado desse
procedimento venha a se constituir em parâmetros determinantes para a análise semântica.
Classificações ulteriores e cada vez mais complexas dos signos devem ser relevantes na
determinação de objetos no campo da semiótica, mas daí não podemos deduzir a sua
relevância para a semântica. O processo de classificação proposto por Peirce é uma forma
analítica de conhecimento dos objetos, mas o que ela pode revelar ainda é insuficiente, em se
tratando de exigências para uma avaliação dos processos de significação lingüística. Dado o
125

fato acima de que ‘mesa’ possa ser índice ou símbolo e dado o conhecimento da estrutura
conceitual dessas formas de representação, podemos assegurar uma diferença nocional entre
os dois usos do termo ‘mesa’. No entanto, as categorias que nos possibilitam o conhecimento
dessa estrutura conceitual, como vimos na seção anterior, não são suficientes para atender a
exigências no campo da linguagem. É claro que essa conclusão precoce contém uma validade
nos limites dos dados que foram até aqui analisados. Outros aspectos da correlação entre os
dois campos serão avaliados na seção seguinte, tendo em vista um confronto entre certas
classes de signos e o comportamento semântico de algumas espécies de palavras.

3.3.3 Determinantes da representação: classes, tipos, indivíduos

Nesta análise vamos considerar como seria possível, então, examinar alguns aspectos
da classificação dos signos e sua repercussão no entendimento de alguns problemas de ordem
semântica. A discussão de Peirce sobre as formas de classificação de signos não reporta, de
modo direto, a questões relativas ao signo lingüístico. Existem, entretanto, referências e
exemplificações esparsas que podemos utilizar como ponto de partida para a avaliação
pretendida. Vejamos duas citações iniciais:

“...Todas as palavras, frases, livros e outros signos convencionais são


Símbolos. Falamos em escrever ou pronunciar a palavra “man”, (homem)
mas isso é apenas uma réplica ou corporificação da palavra, que é
pronunciada ou escrita. A palavra, em si mesma, não tem existência embora
tenha um ser real que consiste no fato que os existentes se deverão conformar
a ela. É, uma forma geral de sucessão de três sons ou representamens de
sons, que só se torna um signo pelo fato de que um hábito, ou lei adquirida,
fará com que suas réplicas sejam interpretadas como significando “man”. A
palavra e seu significado são, ambos, regras gerais;: porém, dos dois, apenas
a palavra prescreve a qualidade de suas réplicas em si mesmas. A “palavra”
e seu “significado” não diferem em nenhum outro aspecto, a menos que
algum sentido especial seja atribuído ao “significado””. (p. 71)

“... Qualquer palavra comum, como “dar”, “pássaro”, “casamento”, é


exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa concretizar a
idéia ligada à palavra: em si mesmo não identifica essas coisas. Não nos
mostra um pássaro, nem realiza diante de nossos olhos, uma doação ou
casamento, mas supõe que somos capazes de imaginar essas coisas, e a elas
associar a palavra.” (p.73)
126

Os textos acima mostram o traço mais importante, dentro da sua taxinomia, que Peirce
atribui às palavras de uma língua, isto é, o fato de serem elas comandadas por “hábito” ,”lei
adquirida”, “regras gerais”. É evidente que cada um dos parâmetros aplica-se a justificar a
existência e o uso de palavras, mas essa observação apenas ratifica um princípio geral, como o
da convencionalidade, e diz muito pouco sobre o funcionamento das palavras como membros
solidários de um sistema que requer uma gama de especificações, ampla e diversa. O critério
de classificação precedente contém ainda um caráter geral, pois a afirmação tem validade para
“Todas as palavras...” ou, de maneira um pouco restrita, “Qualquer palavra comum ... é um
exemplo de símbolo.”, excluindo-se, pois, os nomes próprios.62 Como valor lingüístico, a
classificação dos exemplos − “dar, casamento, pássaro “ − apresenta uma operacionalidade
ainda limitada, porque, nos termos aqui propostos, não opera com um padrão que permita o
seu reagrupamento em conjuntos relevantes para a análise semântica. Assim, do ponto de vista
lingüístico, podemos agrupá-los: (a) numa orientação sintática {[dar]verbo,
[pássaro/casamento]nome}; (b) numa orientação de natureza lexical {[dar/casamento]ato,
[pássaro/casamento]objeto}; ou ainda (c) numa dimensão lógica com funções proposicionais
próprias {[dar (x, y, z)], [casamento (x, y)], [pássaro (x)], [casamento (x)]}. No fundo, tais
agrupamentos não parecem ser, absolutamente, indiferentes ao trabalho da semiótica na
dimensão de Peirce, pois a idéia de um símbolo remático, a propósito, supõe o aproveitamento
conjugado da dimensão lexical - por operar uma correlação entre signo/objeto − e da
dimensão lógica − por operar uma relação signo/interpretante, a partir de funções
proposicionais. Em compensação, a interpretação semântica ainda requer outras informações
para poder efetivar-se. A função proposicional [casamento (x, y)] impõe restrições ao alcance
das variáveis: tanto ‘x’, como ‘y’ são restritas ao domínio de objetos marcados com os traços
{[+animado], [+humano]}, por exemplo. Logo, a função proposicional deve ser formulada de
modo mais específico [casamento (x{[+animado], [+humano]} ,y{[+animado], [+humano]}), pois a omissão
apenas do segundo traço da restrição nos levaria a uma outra função proposicional, isto é,
[acasalamento (x[+animado] , y[+animado])], ou [cruzamento (x[+animado] , y[+animado])].

62
Sobre a natureza dos nomes próprios, PEIRCE, C. (1977, p.85) comenta: “No entanto, o substantivo próprio se
aproxima tanto da natureza de um Índice que isto deveria bastar para dar idéia de um Índice informativo.”.
127

É verdade que, quando atribuímos ao conjunto das palavras de uma língua o fato de
serem signos lingüísticos, também estamos operando com uma generalização de pouca
relevância operacional. Há, no entanto, uma diferença: o signo, nesse caso, apenas especifica
uma relação funcional entre significante e significado e não tem o alcance ontológico de
constituir-se numa taxinomia de percepção e de representação dos objetos, como parece
apontar a categoria símbolo, por exemplo, no âmbito da abordagem de Peirce. Por outro lado,
o mesmo argumento que podemos acionar para explicitar desdobramentos do signo em classes
de palavras, num padrão qualquer lingüisticamente reconhecido, poderia ser acionado para
justificar a possibilidade de desdobramentos ulteriores do símbolo, ou seja, símbolo remático
e símbolo dicente. Classes mais específicas como essas seriam, pois, de valor para uma
fundamentação no campo da linguagem, isto é, existiria uma ontologia das representações
lingüísticas associadas a particularidades dos objetos representados na língua?

Retomando algumas características para delimitar o alcance de um símbolo remático


(PEIRCE, C. 1977, p. 56), o autor o define como um “ signo ligado a seu Objeto através de
uma associação de idéias gerais”. Peirce arrola o substantivo comum ou termos gerais como
exemplares dessa classe de signos, o que nos permite assumir, portanto, “casamento” e
“pássaro” como símbolos remáticos, pelo fato de apontarem classes de objetos que partilham
da idéia geral de [ser da natureza do pássaro], de [ser da natureza do casamento] − se o termo
é assumido na sua dimensão de designador de objeto − ou ainda de [ser qualidade partilhada
por dois objetos], em se tratando de uma função proposicional de dois lugares. O fato de
formularmos uma predicação do tipo [ser da natureza de +OBJETO] leva-nos a creditar aos
exemplos em análise mais do que meras funções proposicionais, situação que caracteriza a
existência de um rema, que apenas traduz uma possibilidade qualitativamente genérica, senão
também a possibilidade de uma referência objetiva. Um símbolo remático refere-se, portanto,
não apenas à possibilidade de atualização de objetos ideais − [casamento de x com y] −, como
também a indivíduos de um mundo possível, [casamento de xi com yi]63. Nesse último caso,

63
Podemos, na análise dos substantivos comuns e concretos de uma língua, considerá-los como funções
proposicionais, na medida em que, como nome de um conjunto de objetos (e não como nome de um indivíduo),
eles nada mais expressam do que uma condição geral de pertinência num dado domínio. Assim, [pássaro (x)]
mostra que, para qualquer ‘x’ candidato a pertinência à classe de ‘pássaros,’ é necessário atender a descrição
daquilo que representa a idéia de ‘ser pássaro’. No caso dos substantivos comuns e abstratos, o fato de
representarem funções proposicionais é mais comum, porque, no geral, eles apenas reportam propriedades de um
objeto, isto é, são meras qualidades dos objetos: [beleza (x)], ou [naturalidade (x)]. Aqui nem’ beleza’, nem
‘naturalidade’ determinam um domínio de objetos, mas apenas qualidades que podemos associar a indivíduos
de domínios diversos.
128

quando atualizamos uma variável indicializada, estamos produzindo aquilo que Peirce
chamou, lato sensu, de uma réplica, a qual, nas circunstâncias atuais, traduz-se por um
legissigno indicial remático, pelo fato de indicar um existente (xi e yi, quando atualizadas),
através de um terceiro que é determinado por lei.

A distinção acima apresentada constitui-se num parâmetro de relevância para a


compreensão de fatos semânticos, isto é, a alusão a fatos relativos a propriedades de classe em
contraste com fatos relativos a tipos de membros da classe ou a indivíduos em particular.
Consideremos a distinção semântica entre as frases seguintes:

(22) Pássaros constroem ninhos.


(23) Ninhos são construídos por pássaros64.
(24) (Há) Pássaros (que) constroem ninhos com gravetos.
(25) (Estes) Pássaros constroem ninhos com linhas, folhas e capim.

Em (22), podemos afirmar que ‘construir ninhos’ é uma propriedade da classe de pássaros,
porque todos os seus membros (ou o macho, ou a fêmea ou ambos) executam tarefas, ainda
que diferenciadas, que se incluem no rol geral de uma predicação como [construir ninhos]65.
Por outro lado, apesar da conversão ativa/passiva entre (22) e (23), ‘serem construídos por
pássaros’ não é uma propriedade da classe:ninho, já que existem ‘ninhos’ que, efetivamente,
não são construídos por pássaros, mas por outros animais (ratos, cobras...). Logo, [ser
construído por pássaros] não representa uma propriedade de classe, mas de uma parte dos
membros da classe:ninho: apenas alguns tipos são, de fato, construídos por pássaros, outros
não. Assim, deveremos interpretar estes dois símbolos remáticos, nas frases em discussão, do
seguinte modo:

64
A tradição lingüística usou, amplamente, exemplos nesse formato para tratar da não-correspondência semântica
entre estruturas ativas e passivas. Aqui não vamos entrar em detalhes sobre a orientação sintática que a questão
assumiu.
65
Existe uma longa discussão se podemos considerar propriedades de classe como propriedades analíticas. Há
dúvidas, mesmo no caso de pássaros, se construir ninhos é, de fato, analítica, porque existem tipos de pássaros
que reaproveitam ninhos já construídos por outros, ou até mesmo põem ovos em ninhos alheios (godero, chopin,
por exemplo). Se analítico é irrestritamente universal, então a predicação mencionada não poderia ser,
analiticamente, atribuída a pássaros, já que existem espécies anormais na classe que comportam de modo
diferente. De toda forma, pode ser que certos pássaros não venham construir seus próprios ninhos, mas é verdade
também que a existência deles continue a depender de ninhos.
129

(22a) Pássaros [classe] constroem ninhos[classe].


(23a) Ninhos[tipo] são construídos por pássaros[classe] 66.

No caso de (22a), o fato de ‘pássaros’ representar uma classe de objetos permite que
interpretemos ‘ninhos’ também numa dimensão de classe, pois, no fundo, o que estamos
asseverando é o fato de existir uma propriedade [ser construído] que se aplica aos membros de
uma classe. Na concepção de Peirce, estaríamos diante de dois símbolos remáticos, uma vez
que representam funções não saturadas, isto é, ‘pássaros (x)’ e ‘ninhos (x)’ e toda a
proposição já representaria um símbolo dicente, ou seja, um função saturada − ‘construir
(pássaros, ninhos)’ −. Em (23a), como [ser construído por pássaro] não é uma propriedade de
‘ninho’, na extensão vista para (22a), devemos assumir ‘ninhos’ como tipos de objetos da
classe. Assim, já não estamos mais no âmbito de um símbolo remático, mas ainda não
alcançamos sua réplica, por não se tratar de objetos efetivos, mas de um tipo de objeto ao qual
associamos uma propriedade.

Os exemplos (24) e (25) contrastam com os anteriores pela razão específica de


mostrarem não mais uma referência à classe de objetos, mas a objetos-do-tipo ou a indivíduos
em particular. O fato de termos, então, formas cada vez mais determinadas de ‘ninho’ − ‘com
gravetos’ e ‘com linhas, folhas e capim’ − nos impede de considerar ‘pássaro’ na dimensão
de classe. Em (24), independente do registro existencial da frase, anotado entre parênteses,
‘pássaros’ aponta objetos-do-tipo, a saber, somente aqueles a que podemos atribuir a
propriedade [construir ninhos com gravetos] − ‘joão-graveto’, por exemplo − o que,
certamente, não constitui a totalidade da classe. Assim também (25), em decorrência do uso
da propriedade [construir ninhos com linhas, folhas e capim], não se refere mais à classe geral
de ‘pássaros’, mas apenas a objetos-do-tipo − ‘bem-te-vi’, ‘sanhaço’, ‘pingo-de-mel’ ... −. É
importante, todavia, registrar um outro fato: a presença do demonstrativo ‘estes’ seleciona
indivíduos, ou seja, exemplares que são deiticamente atualizados numa dada circunstância
enunciativa. A partir das considerações apresentadas, podemos apontar dois traços
importantes na interpretação de ‘pássaros’ nesses casos:

66
Não estamos utilizando aqui a oposição tradicional entre type / token, em razão do fato de estarmos
trabalhando com outras categorias mais específicos de token. Assim, estamos construindo uma gradiência entre
‘classe’, ‘tipo’, ‘indivíduo’.
130

(24a) Há pássaros[tipo] que constroem ninhos com gravetos.


(25a) Estes pássaros[indivíduos] constroem ninhos com linhas, folhas e capim.

Embora o contraste entre símbolo remático e sua réplica, isto é, o sinsigno indicial
remático possa expressar parte dos fenômenos que apontamos na análise do termo ‘pássaro’,
parece-nos que a forma de proceder na apuração de certos efeitos de sentido ainda mantém um
distanciamento considerável entre uma abordagem semiótica, na forma em estudo, e uma
abordagem semântica, nos formatos desenvolvidos no interior da lingüística moderna. Assim,
na segunda abordagem, a ênfase, na avaliação dos efeitos de sentido, associados a um termo
‘pássaros’, recai não só sobre uma rede de correlações que se estabelece entre o conjunto das
unidades da estrutura proposicional, como também sobre a natureza dos elementos que
partilham dessas correlações − a diferença conceitual entre os predicados que foram atribuídos
a ‘pássaros’, por exemplo. Na primeira abordagem a ênfase, da qual deduzimos classes
diferentes de signo, aponta para uma correlação do símbolo ‘pássaro’ com o objeto
designado − uma classe ou um exemplar −, em se tratando da segunda tricotomia. O seu valor,
seja como símbolo remático, seja como sinsigno indicial remático, decorre da natureza da
relação que mantém com o seu objeto: logo, a classificação semiótica pode tornar-se
independente, em alguma instância, da correlação com outros signos. Para a semântica é
relevante não só o que se mostra como conceito ‘autônomo’ de um termo67, como também
toda a contaminação que sobre ele se projeta a partir da correlação com outros signos.

A interpretação semântica, mesmo quando orientada para aspectos localizados, não se


pode circunscrever a uma dimensão tipológica dos signos a que se atribui alguma autonomia.
Sabemos, até mesmo por economia, que semântica e semiótica, como processos de
significação, estão submetidas à ordem da sintaxe, mas, certamente, de sintaxes diferentes.
Por mais integração entre os signos que essa tipologia produza, por mais que ela se constitua
nas bases de uma sintaxe, será sempre uma sintaxe diferente, será sempre uma integração
diferente daquela que descrevemos em termos de alguns princípios lingüísticos. Embora uma

67
De um modo geral, o conceito básico de pássaro permaneceu inalterado, ao longo dos exemplos analisados.
Para cada um dos usos, todavia, este conceito era acrescido de outras informações, através da contaminação
produzida pela presença de outras unidades da proposição.
131

análise semântica possa prover-se de alguns parâmetros que já foram lembrados na


terceiridade, não julgamos que a transposição de um campo para o outro seja natural. Uma
teoria semântica decorre da especificação de relações e de solidariedades sintáticas e lexicais,
que não se fazem presentes na abordagem semiótica, ao menos na extensão em que delas
fazemos uso nas língua naturais, o que, porém, não equivale a afirmar a existência de uma
irreconciliação decisiva entre semântica e semiótica, no plano da representação.

3.3.4 - Determinantes da representação: tipologias versus funções proposicionais e


funções discursivas

3.3.4.1 - Funções proposicionais

Ao compararmos semiótica e semântica, na dimensão acima proposta, fizemo-lo


considerando, em termos da formulação de Peirce, objetos e conceitos ainda relativamente
simples. Nesse momento, exploramos apenas uma das divisões do representâmen, sem
acolher, na discussão, desdobramentos ulteriores que compõem o percurso de todo processo
de representação no interior da teoria. Se o nível da análise apresentada já mostra, por si
mesma, dificuldades na consideração de uma passagem de objetos semióticos para objetos
semânticos, elas tendem a avolumar-se, à medida que avançamos num grau de
complexidade68 maior, como propõe o autor. Para ilustrar outras divergências que se
estabelecem nos dois campos em análise, selecionamos, então, alguns aspectos da terceira
tricotomia e, em particular, o dicente, provavelmente, uma das classes de signos mais
complexas69 e com a qual supomos uma vinculação natural com a semântica, em razão de

68
A complexidade da formulação de Peirce não está apenas no teor das categorias de análise que referendam sua
teoria, está também na forma como as apresenta ou como relaciona umas às outras. Vejamos, como exemplo, o
papel que PEIRCE (1977) atribui ao ícone: “Um ícone, entretanto, é, estritamente, uma possibilidade
envolvendo uma possibilidade, e assim, a possibilidade de ele ser representado como uma possibilidade é a
possibilidade da possibilidade envolvida.” (p.79).
69
Na organização geral da teoria, o dicente constitui o segundo elemento da terceira tricotomia a qual se compõe
ainda pelo rema e pelo argumento. Os três componentes convergem, na instância de representação funcional, isto
é, do [correlato 3], mas divergem entre si pelo padrão que a função assume em cada uma das circunstâncias.
Para o rema, trata-se de uma função não-saturada − f (x, y), com a atualização apenas da constante predicativa −;
para o dicente, uma função saturada − f (x, y), onde variáveis e a constante predicativa são preenchidas −; para o
argumento, uma função de uma outra ordem − f (x, y), onde os lugares são saturáveis por proposições simples
(ou dicentes). Um paralelo possível com estruturas lingüísticas pode ser formulado: para o rema, [venda (x ,y)],
[necessidade (x, y)], ou [livro (x)], onde existe apenas a especificação de um item lexical sem levar em conta
132

apresentar uma estrutura funcional ‘paralela’ às estruturas proposicionais. Embora enfatizando


o dicente, estaremos, ao longo da nossa discussão, resgatando fatos relativos ao rema e ao
argumento, categorias que completam a extensão conceitual da tricotomia em análise.
Iniciemos com uma citação (PEIRCE, 1977), onde o conceito de dicente aparece associado ao
de proposição:

“... Foi assim suficientemente demonstrado que todas as proposições se


conformam à definição do Dicente e aos corolários extraídos dessa
definição. Uma proposição é, em suma, um Dicente que é um Símbolo.” (p.
85)

Assumindo-se a correlação acima, ou seja, a correspondência entre proposição e dicente,


poderíamos supor um estreitamento entre os dois campos de conhecimento, ao menos em
termos deste elemento que integra a terceira tricotomia. Entretanto, esse estreitamento não é
assim tão imediato, na proporção em que avaliamos certas exigências específicas que são
atribuídas ao funcionamento do dicente, conforme aponta o autor (PEIRCE 1977):

“... Concluímos, então, que, se conseguíssemos, abrir nosso caminho através


do labirinto dessas abstrações, um Dicente, definido como um Representâmen
cujo Interpretante o representa como um Índice de seu Objeto, deve ter as
seguintes características:
Primeira: A fim de ser compreendido, deve ser considerado como tendo duas
partes. Destas, uma que pode ser chamada de sujeito, é ou representa um
Índice de um Segundo existente independentemente de ser representado,
enquanto que a outra, que pode ser chamada de Predicado, é ou representa
um Ícone de uma Primeiridade (ou qualidade, ou essência); Segunda: Estas
duas partes devem ser representadas como conectadas; e de uma tal forma
que, se o Dicente tiver algum Objeto, ele (o Dicente) deve ser um Índice de
uma Secundidade que subsiste entre o Objeto indicado e uma Primeiridade
representada na outra parte representada do Dicente a ser Iconizado.” (p.79)

Seguindo o seu raciocínio, a existência de um dicente submete-se ao atendimento de duas


condições gerais. A primeira requer a necessidade de se considerá-lo como integrado de duas
partes: uma é o sujeito que tem a função de ser índice da existência de um objeto; logo todo
nome pode ser o índice do seu objeto, embora a existência desse objeto independa da função
indicial do seu nome; outra é o predicado que indica uma qualidade do sujeito, e, por isso

desdobramentos do seu valor funcional; para o dicente, [venda (Paulo, carro)], [necessidade (Paulo,
dinheiro)], ou [livro (matemática)], onde as variáveis são saturadas; para o argumento, { CAUSA [venda
(Paulo, carro)], [necessidade (Paulo, dinheiro)]}.
133

mesmo, constitui a condição de sua iconização, a saber, de vir a ser uma possibilidade
qualitativa para um objeto. A segunda condição requer que essas duas partes − sujeito e
predicado − sejam conjugadas uma à outra, de forma tal, que a existência de um objeto para o
dicente faz dele, dicente, um equivalente do índice, por ser capaz de apontar um existente,
numa outra instância de segundo. Essa passagem do dicente para o índice torna-se possível,
em razão da aplicação de uma qualidade − uma instância de primeiro − a um sujeito, que
serve para representá-lo em alguma de suas extensões.

A correlação entre as duas condições para a existência de um dicente mostra a


necessidade primeira de um signo de possibilidade − um rema − aplicável a um certo conjunto
de objetos. Vamos, então, supor um rema no formato ‘perder (x, y)’70, onde ‘perder’ possa
ser uma qualidade predicável aos objetos ‘x’ e/ou ‘y’. É evidente que, por se tratar de
formações da terceira tricotomia, já estamos supondo a presença de algum interpretante que
sirva para nos indicar, por exemplo, tipos de objeto ‘x’ que possam realizar a ação de perder e
de ‘y’ que comportam a ação de serem perdidos. Analisemos, então, três possibilidades de
saturação das variáveis acima:

(26) perder (Napoleão, batalha de Waterloo);


(27) perder (Nixon, batalha de Watergate);
(28) [poder] perder (Clinton, batalha de Whitewater);

A saturação das variáveis nos três exemplos acima faz deles dicentes, de acordo com as
condições que são impostas a sua existência. A possibilidade de expressão qualitativa dos
sujeitos se faz com base no predicado ‘perder’ (considerado, para evitar maiores detalhes,
como uma forma complexa, incluindo os complementos específicos). A conexão entre
sujeito/predicado reúne a condição final para termos um dicente que, segundo o autor, torna-
se, numa outra instância tricotômica, um índice por assinalar uma relação existencial entre
signo − a expressão − e o objeto − fatos acontecidos na vida de seres específicos −71. Como

70
Para efeito de uma apresentação formal das categorias da terceira tricotomia, além de registros do texto de
Peirce, estamos também contemplando a formulação desenvolvida por RANSDELL, J. ( 1983, p. 59-72).
71
Nada impede que também fizéssemos sua equivalência, na extensão da primeira tricotomia, com o sinsigno que
atesta também a dimensão do existencial.
134

dicente, portanto, cada uma das expressões se torna um signo de fato, já que reporta
acontecimentos historicamente testemunhados que, na realidade, são determinados por
interpretantes específicos − a condição histórica de cada personagem, os fatos em que se
acham envolvidos −, através dos quais podemos saturar as expressões na forma em que o
fizemos. Se quiséssemos outros dicentes com o mesmo predicado e os mesmos sujeitos,
teríamos de romper com os interpretantes consensuais (e culturalmente admissíveis) que nos
levaram a essas configurações. Os interpretantes usados além de apontar, para cada um dos
dicentes, mera hipótese de interpretação, apontam também situações referenciais autônomas.

Se, no conjunto acima, a possibilidade de dicentes, isto é, funções saturadas, dependia


da existência de remas − funções não saturadas − como uma condição primeira de sua
admissão, podemos agora mostrar que a existência dos dicentes torna-se uma condição de
possibilidade para a existência de argumentos, ou seja, um signo decorrente de uma
elaboração racional, ou um signo de razão, como sugere o autor. Se ‘ascendemos’ na escala
de um signo de possibilidade − rema −, passando por um signo de fato − dicente − até um
signo de razão − argumento − é porque a este último, como um terceiro, atribuímos um papel
decisivo para representar a essência da terceira tricotomia, a saber, a presença do
interpretante. Logo, quaisquer referências à racionalidade na existência de um argumento
depende do papel decisivo de interpretantes que serão utilizados na ‘costura racional’ dos
fatos decorrentes de dicentes. Assim, uma correlação entre os exemplos (26), (27) e (28)
acima, fundada a partir de interpretantes do tipo causa-efeito, ou do tipo concessão, por
exemplo, poderia nos levar aos seguintes argumentos:

(29) Clinton pode perder a batalha de Whitewater, porque Napoleão perdeu a batalha
de Waterloo e Nixon, a batalha de Watergate.

(30) Embora Napoleão tenha perdido a batalha de Waterloo e Nixon, a batalha de


Watergate, Clinton não perderá a batalha de Whitewater.

É claro que (29) e (30) são argumentos por força de uma correlação racional atribuída aos
dicentes integrantes e que decorrem, certamente, da presença de dois interpretantes distintos.
Existe um com valor de uma ‘convenção histórica fraca’, onde se pode postular alguma
similitude entre os sujeitos envolvidos, como: (a) são três representantes do poder de estado,
135

daí uma dedução correlata e inclusiva no plano das ações; (b) trata-se de dois governantes que,
de fato, perderam batalhas, logo, um terceiro também pode vir a fazê-lo. Existe um outro
interpretante, com valor de uma percepção lingüística, devido à semelhança episódica no
plano do significante dos atributos de batalha (Waterloo, Watergate, Whitewater) (e também
histórica, valendo as observações já apontadas), e daí uma dedução excludente, contrastiva
(ainda que dois governantes tenham ‘naufragado’ em duas batalhas, não se segue daí de que o
mesmo se sucederá a um terceiro). As circunstâncias interpretativas que acima apresentamos,
a partir da correlação entre os componentes da terceira tricotomia, apontam fatos de
importância direta para uma teoria semântica: nada do que foi discutido pode ser
desconsiderado no âmbito da semântica. Entretanto, os dados contemplados ainda refletem
uma certa generalização (ou mera classificação) que não é ainda suficiente como um padrão
de análise semântica para as línguas naturais. Vamos avaliar aspectos dessa diferença,
comparando-se a análise desenvolvida acima a uma necessidade ulterior de desdobramento da
análise do verbo ‘perder’. Na discussão presente, contrastaremos o verbo ‘perder’ com o
verbo ‘ganhar’ (e ainda ‘vencer’) em contextos lingüísticos determinados, fundamentando a
correlação entre eles a partir da idéia de [posse]. Formalmente, tentaremos demonstrar que a
semântica de tais verbos se estrutura a partir de variáveis funcionais, [x], [y], [z], dos meta
predicados [ter] e [disputar], do sinal de negação [∼] e de uma variável temporal [t], a ser
indicializada. Consideremos, então, um primeiro conjunto de proposições:

(31) Ele perdeu/ganhou a casa no jogo.


(32) Muitos perderam/ganharam dinheiro na Bolsa.
(33) Um dos passageiros perdeu/(?)ganhou a mãe no acidente.

Podemos supor a compreensão do contraste verbal acima, com base nas seguintes definições:

(34) PERDER: {[ x tem y em t1 ]


[ x ~tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]};

(35) GANHAR:{[ x ~tem y em t1 ]


[ x tem y em t2 ]
136

[ t1 anterior a t2 ]};

As duas defições acima recobrem, sem qualquer outro artifício enunciativo, o contraste
entre as duas formas predicadas, em se tratando de (31) e (32), conforme ilustramos abaixo
para o exemplo (31):72

(31a) Ele perdeu a casa no jogo

{[ x tem y em t1 ] = ele tem a casa em t1


[ x ~tem y em t2 ] = ele não tem a casa em t2 ......}

(31b) Ele ganhou a casa no jogo

{[ x ~tem y em t1 ] = ele não tem a casa em t1


[ x tem y em t2 ] = ele tem a casa em t2 ....}

Em (33), entretanto, a situação é diferente: ‘perder’ pode ser interpretado a partir da


definição proposta, mas isso não é possível para ‘ganhar’, que requer alguma especificação
enunciativa. A informação [x ~tem y em t1], em se tratando de [mãe natural], não pode ser
recuperada no intervalo temporal seguinte, no sentido em que operamos com o contraste nos
casos anteriores. A frase pode, todavia, tornar-se interpretável, desde que façamos os
seguintes ajustes suplementares: (a) admitir ‘ganhar‘
com um valor adicional de [descoberta] e não apenas de [posse]; (b) enfraquecer o conceito
de ‘mãe’, transformando-o num objeto-do-tipo, isto é, [alguém que dá proteção], procedendo
ainda à troca de ‘a’ para ‘uma’; (c) restringir o sentido de ‘ganhar’, substituindo-se a idéia
geral de [posse] pela de [ter adesão] ou [ter apoio]. Alternativamente, os três ajustes acima
podem ser usados para redefinir ‘ganhar’ e podem ser extensivos também ao verbo ‘perder’,
em se tratando de (b) e (c), que passará a conter oposições correlatas aos significados

72
Estamos considerando, na atual reflexão, apenas o contraste entre perder/ganhar, de modo genérico e sem
levar em conta outros detalhes importantes para a compreensão da frase. Por exemplo, a definição de tais itens
lexicais é tão ampla que outras formas verbais poderiam ser definidas pelas mesmas matrizes: as definições são
válidas também, numa certa extensão, para contrastes como vender/comprar, por exemplo. Para uma distinção
entre os dois grupos é importante acrescentar um operador de MODO, que indicará, necessariamente, a presença
de dinheiro para o segundo grupo.
137

propostos. Conforme podemos ilustrar, ‘perder’ conteria a seguinte representação conceitual,


no caso de (c): (c’) restringir o sentido de ‘perder’, substituindo-se a idéia geral de [posse]
pela de [não ter adesão] ou [não ter apoio], ajustando o contexto enunciativo. Conclui-se,
então, que a oposição predicativa em (33) não apresenta o mesmo alcance semântico daquela
mostrada para (31) e (32), porque não pode ser justificada em razão das definições propostas
em (34) e (35). De outro lado, o fato de podermos interpretar (33) nas dimensões sugeridas
acima, para o predicado ‘ganhar’, pode nos levar ao estabelecimento de outros pares de
contrastes com ‘perder’. Vejamos agora um outro conjunto de proposições:

(36) Napoleão perdeu/ganhou mais uma batalha;


(37) O Brasil perdeu/ganhou o jogo de ontem.

Os exemplos (36) e (37) mantêm apenas uma aparência de identidade semântica com
os anteriores, considerando-se, principalmente, o contraste entre os verbos em análise. No
caso de ‘perder’, a condição inicial [x tem y em t1], na dimensão em que a usamos para
analisar (31) e (32), não pode representar uma condição necessária, porque nem ‘Napoleão’,
nem ‘Brasil’ [tem y] antes de ‘perder mais uma a batalha’ e ‘perder o jogo de ontem’73,
respectivamente. Logo, essa condição precisa ser revista, sem que seja, entretanto, apenas
refutada, porque, se comparamos os dois casos, podemos intercambiar diferentes condições
para a sua interpretação: em (36) pode ser que, ao ‘perder a batalha’, ‘Napoleão’ tenha (ou
não tenha) perdido algum território74 que antes conquistara ou que pertencera à França, por
exemplo; em (37), ao ‘perder o jogo’, o ‘Brasil’ pode estar (ou não estar) deixando de ter
alguma vantagem que antes conquistou ou que tinha numa tabela de classificação. Raciocínio
semelhante pode ser usado para justificar ‘ganhar’ nos dois exemplos: a condição inicial [x
~tem y em t1] não pode ser também considerada essencial, porque tanto ‘Napoleão’ pode ter
ganhado uma batalha, para manter a posse de um território - ele já detinha a sua posse -, como

73
É possível argumentar contra essa afirmação, dizendo que y, por pressuposição, equivale a ‘honra’,
‘dignidade’, ‘prestígio’. Logo, uma derrota, em qualquer circunstância, representa minimamente a perda da
‘honra’, por exemplo, que, no caso presente, pode ser associado, independentemente da extensão conceitual,
tanto a ‘batalhas’ - em campos de exercício, ou em tribunais - quanto a ‘jogos’ - uma partida oficial ou amistosa.
No entanto, ‘honra’, em ambos os casos, parece corresponder mais a um pressuposto e menos a um objeto da
extensão de y.
74
Nos exemplos em análise, os termos batalha e jogo são apenas rótulos metonímicos para aquilo que, de fato,
se perde ou se ganha numa batalha ou num jogo, ou seja, territórios, poder, pontos, campeonato, troféus...
138

o ‘Brasil’ pode ter ganhado um jogo para se manter à frente na tabela - ela já estava à frente
na tabela. Assim, deveríamos reconstruir a primeira parte das definições (34) e (35) acima,
indicando a possibilidade de uma escolha, como condição primeira para um e outro verbo,
entre [x tem y em t1] e [x ~tem y em t1]. Reformulando as regras anteriores, obtemos:

(34a) PERDER: {[ x (~)tem y em t1 ]


[ x ~tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]};

(35a) GANHAR:{[ x (~)tem y em t1 ]


[ x tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]}.

O registro de [x (~)tem...], em ambas as fórmulas acima, mostra que podemos derivar, para
uma e outra, tanto [x tem...], quanto [x ~tem...]. Essa duplicidade de derivações, todavia, gera
um paradoxo, pois, dependendo da escolha feita por um desses caminhos que a definição
permite, no primeiro passo da derivação, podemos correr um duplo risco: (a) em (34a),
escolher duas formas negativas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se
perca algo [x ~tem y em t2] sem antes possuí-lo [ x ~tem y em t1] e (b) em (35a), escolher
duas formas positivas nos dois intervalos de tempo, indicando que é possível que se ganhe
algo [x tem y em t2] que antes já se possuía [x tem y em t1]. Do ponto de vista formal, o
paradoxo não pode ser resolvido no âmbito dessas definições; é preciso acrescentar outros
fatos, como veremos abaixo, para contornar o impasse descrito. Entretanto, tal impasse formal
não invalida o esforço interpretativo que podemos produzir para justificar sua aplicação
natural a certas frases. Por exemplo, Napoleão pode ter pretendido conquistar um território [ x
~tem y em t1], sem ter alcançado êxito [ x ~tem y em t2]; logo, ele perdeu a batalha. Da
mesma forma, Napoleão pode ter pretendido manter a conquista de um território [ x tem y em
t1] e, de fato, conseguiu êxito [ x tem y em t2]; logo, ele venceu a batalha. É importante,
então, recorrer a um outro acerto nas definições, introduzindo-se uma outra variável
concorrente com [x], isto é, [z], e uma outra informação que permeie a disputa entre [x] e [z],
num intervalo de tempo intermediário. As definições teriam, pois, a seguinte forma:

(34b) PERDER: {[ x e/ou z (~)tem y em t1 ]


139

[ x e z disputam y em t1’]
[ x ou z ~tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]
[ t1’ posterior a t1 e anterior a t2 ]};

(35b) GANHAR:{[ x e/ou z (~)tem y em t1 ]


[ x e z disputam y em t1’]
[ x ou z tem y em t2 ]
[ t1 anterior a t2 ]
[ t1’ posterior a t1 e anterior a t2 ]};

As definições acima agora se aplicam também ao exemplo (37) que estamos reproduzindo
com um adendo − ‘contra a Itália’ − para tornar mais clara a função da variável [z] e o traço
[disputa]:

(37a) O Brasil perdeu/ganhou o jogo de ontem contra a Itália.

Recompondo aspectos do sentido das duas proposições contidas em (37a) e com base nas
definições (34b) e (35b), podemos agora obter uma descrição semântica mais clara, superando
parte das dificuldades que haviam sido levantadas na constatação do paradoxo acima
mencionado. Analisemos, então, as duas proposições:

(37b) O Brasil perdeu o jogo de ontem contra a Itália.

{[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] = Brasil não tem y e Itália não tem y... ;


[ x e z disputam y em t1’] = Brasil e Itália disputam y...;
[ x ou z (~)tem y em t2 ] = Brasil não tem y e Itália tem y75....;
[...]}.

(37c) O Brasil ganhou o jogo de ontem contra a Itália.

75
O funcionamento desta regra ainda requer uma precisão de modo a permitir que se [x tem y...], então [z ~tem
y...] e vice-versa. Um filtro aqui é necessário para impedir que uma das predicações seja aplicável às duas
variáveis ao mesmo tempo.
140

{[ x e/ou z (~)tem y em t1 ] = Brasil tem y e Itália não tem y... ;


[ x e z disputam y em t1’] = Brasil e Itália disputam y...;
[ x ou z tem y em t2 ] = Brasil tem y e Itália não tem y...;
[...]}.

Os esquemas de interpretação para (37b) e (37c) apenas traduzem uma das possibilidades que
podemos associar ao seu sentido, aquela que havia permanecido como problema na discussão
anterior, isto é, o fato de o ‘Brasil’ perder sem antes possuir e ganhar já antes possuindo. A
dificuldade se estabelece em função do fato de ‘jogo’ ser quase sempre uma roupagem
metonímica para o que, de fato, se perde ou se ganha. Podemos supor em (37b), por exemplo,
que, ao afirmar que ‘Brasil’ e ‘Itália’ [ ~tem y em t1], [y] possa significar um número de
pontos que se traduziria pelo objeto da disputa. A interpretação seria, portanto, absolutamente
natural em toda a seqüência da derivação, ainda que o ‘Brasil’ tivesse perdido pontos que não
possuísse.76 Em (37c) a situação é um pouco diferente: vamos supor que o objeto da disputa
fosse o primeiro lugar de uma classificação e o ‘Brasil’ já estivesse na ponta. Assim, teríamos
‘Brasil’ [tem y em t1] e ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e o restante da interpretação seria adequado às
circunstâncias, pois, ao ganhar, o ‘Brasil’ estaria mantendo o que já tinha e a ‘Itália’, ao
perder, estaria ‘mantendo’ o que não tinha. O propósito desse arranjo formal é tentar justificar,
mais do que um mero sentido imediato, parte das inferências interpretativas que são feitas a
partir de proposições como essas.

A princípio, pode parecer ad hoc a decisão de incluir a idéia de [disputa] nesse


conjunto de dados. A sua inclusão, todavia, faz-se necessária, pois o segundo contraste entre
‘perder/ganhar’, em análise, contém particularidades semânticas que não são extensivas a
outros grupos de exemplos. O que surge como singular é o fato de, somente em oposições
semelhantes a (36) e (37), ser possível substituir-se o verbo ‘ganhar’ por ‘vencer’, mantendo
a mesma estrutura de significação, o que não é válido para outros casos já comentados, como
se pode observar numa comparação entre os exemplo (37) e (31), respectivamente:

76
Por seu turno, a interpretação é também coerente do ponto de vista da ‘Itália’ que pressupostamente ganhou o
jogo (já que o ‘Brasil’ perdeu): ‘Itália’ [ ~tem y em t1] e [tem y em t2].
141

(37d) O Brasil venceu o jogo de ontem contra a Itália.


*(31c) Ele venceu a casa no jogo.77

A legibilidade de (37d) torna-se evidente e a estrutura de significação de ‘vencer’ pode ser


explicada pelo mesmo esquema de ‘ganhar’ em (35b). Contrariamente, (31c) não parece ser
aceitável num contexto em que casa seja interpretável como um [objeto artefato], sem
qualquer extensão metonímica, pois a noção de [disputa] tornar-se-ia completamente
obliterada. Entretanto, uma extensão metonímica do termo ‘casa’ para [conjunto de pessoas]
ou para [estabelecimento sob a guarda de pessoas] parece recompor o conceito de [disputa],
com alguma especificação de contexto, resgatando possibilidades de interpretação para (31c).
Deixamos o registro do problema, mas não vamos, neste momento, nos estender a fatos dessa
natureza, pois eles já implicam ajustes semânticos que ultrapassam o campo dos verbos em
análise.

Finalmente, há ainda uma outra oposição que compensa ser destacada em se tratando
das relações entre ‘perder’ e ‘ganhar’. Trata-se de um conjunto de frases em que o verbo
‘perder’ se faz apresentar com objetos que lembram meio de transporte, espetáculo entre
outros, conforme os exemplos seguintes:

(38) Ele perdeu/(?)ganhou o ônibus (avião, trem) da noite.


(39) Perdemos/(?)ganhamos o filme (jogo, a luta) de ontem.

Uma tentativa de avaliação para (38) e (39) implica resistências, quando nos deparamos com
uma das formas da condição inicial apresentada nas definições anteriores, como por exemplo,
[x (~)tem y em t1]. Enquanto nos casos anteriores, discutiu-se em detalhes o aspecto formal
que a categoria [posse] deveria assumir, estamos certos de que, no caso presente, ela precisa
ser removida da definição, considerando-se o verbo ‘perder’. A exigência fundamental,
requerida para a interpretação das proposições de (38) e (39), implica a substituição de [posse]
por [presença], resultando na seguinte definição:

77
A proposição pode ser interpretável, mas alguns ajustes devem ser assinalados, como o de introduzir um valor
de [superação] para ‘vencer’.
142

(34c) PERDER: {[ x ~está em y em t1]


[ x ~ se faz presente em y em t2 ]
[ t1 imediatamente anterior a t2 ]
[ t2 período de transcurso do evento]}

O conceito de ‘perder’ aqui se apresenta de forma diferenciada em relação aos casos


anteriores já comentados: [y] não deve ser interpretado como um objeto que pode ser afetado
pelo verbo, mas deve ser visto numa dimensão espaço-temporal. Assim, ‘perder o trem’,
numa enunciação usual, não quer dizer, ao final da derivação, [x ~tem o trem] (embora a
proposição possa ser descrita, conforme definição (34), em se tratando de uma circunstância
onde a condição inicial é satisfeita [x tem y em t1] ), mas significa [não se fazer presente no
local e hora de embarque]. De outro lado, ‘perder a luta (o jogo, o filme)’ pode,
naturalmente, recobrir não apenas a dimensão espaço-temporal, isto é, [não se fazer presente
no local e hora de exibição], direta ou indiretamente, como ainda assumir o significado
descrito em (34b), no caso de ‘luta’ e ‘jogo’, já que alguém pode ser derrotado numa disputa,
e (34), no caso de filme, já que alguém pode perder um filme que antes havia comprado (ou
visto). Nessa interpretação de exemplos como (38) e (39), o contraste com ‘ganhar’ torna-se
inadequado, para algumas das situações mencionadas. Em resumo, ‘ganhar’ só pode ser
analisado contrastivamente a ‘perder’ em (38) e (39), quando este se traduzir pela acepção
descrita pelas definições (34) e (34b), o que possibilitará ‘ganhar’ ser descrito em função das
definições (35) e (35b).

A discussão que apresentamos acima desvela uma parte das dificuldades que
enfrentamos ao confrontarmos alguns critérios que definem padrões conceituais para a
semiótica e para a semântica. O cotejo aqui almejou colocar uns frente aos outros para se
analisarem as condições de uma interação múltipla que, até o momento, se não se mostrou
integrada de modo decisivo, também não se apresentou na forma de um divórcio absoluto. A
classificação de Peirce pode servir de parâmetro para uma compreensão geral de alguns
problemas inseridos na discussão semântica, no caso específico a passagem entre rema,
dicente e argumento, mas ainda fica a requerer um trabalho mais específico e muito
minucioso, como acabamos de discutir, sobre relações e propriedades lexicais e sintagmáticas.
É claro que as relações sintagmáticas, em alguma extensão, aparecem contempladas na
143

estruturação lógica, o que permite transpor cada um dos estágios da terceira tricotomia. Ainda
assim, o processo continua sendo muito generalizado, pois não chega a inscrever nos
predicados, por exemplo, restrições que governam a escolha de certas constantes em
contraposição a outras.

Em resumo, ao apontar a terceira tricotomia, em algumas de suas dimensões, como um


modelo complexo de interpretação, fizemo-lo em comparação com alguns requisitos
necessários à compreensão de certos fatos de sentido e com base em certas propriedades
lexicais e em alguns aspectos das relações sintagmáticas. Nem na dimensão semiótica, nem na
semântica fizemos uma demonstração exaustiva do que pode representar as exigências para
uma demonstração formal completa. Estivemos preocupados em demonstrar certas diferenças
na forma pela qual esses dois campos operam com questões relativas à representação do
conhecimento. Na seqüência, vamos continuar apontando um outro conjunto de fatos, a partir
dos quais podemos ensaiar novas correlações e novos distanciamentos.

3.3.4.2 - Funções discursivas

A importância a ser atribuída ao argumento relaciona-se ao fato de ele constituir-se no


padrão de representação que melhor expressa a idéia de uma racionalidade, pois é nele que as
formas de pensamento materializam, de modo decisivo, uma estrutura lógica completa. Todo
o percurso de discussão de formas de representação − as dez classes de signos, por exemplo −
espelha, em alguma extensão, o trabalho de Peirce com o esforço de integração de uma
experiência que é fragmentada, nos seus estágios mais diversos. Assim, tanto qualissigno,
quanto argumento78, incorporando apenas os dois extremos de sua taxinomia, testemunham,
ao mesmo tempo, o que há de diverso e o que há de complexo na sua formulação. Assim,
damos conta do diverso que constitui a nossa atividade cognitiva, quando incorporamos ao
nosso organismo os dados decorrentes da atividade exercida pelo percepto, seja ao
segurarmos um objeto, seja ao assistirmos a um acidente e quando, igualmente, concebemos a
esses dados uma estruturação lógica, uma expressão racional da nossa atividade. Dessa

78
Na presente seção, estamos considerando a análise do argumento do ponto de vista das dez classes de signo e
não, como anteriormente o fizemos, no interior apenas da terceira tricotomia. Os resultados não são diferentes; a
diferença faz-se pela presença de categorias que serão contrastadas.
144

percepção imediata e instantânea de dados pelo organismo, exposto a algum fenômeno, até a
organização lógica desses dados em formas socialmente aceitas, avançamos também no
campo da complexidade. Classes e subclasses de signos que se ramificam conceitualmente,
tricotomias e categorias que se combinam mutuamente, toda essa arquitetura laboriosa do
autor está montada com um propósito singular: o de compensar um prejuízo inevitável que
emerge nos momentos em que colocamos a representação em jogo. E o argumento, por assim
dizer, deve ser a expressão máxima de todo o trabalho cognitivo, contemplando, a um só
tempo, as sensações vividas e a convenções estabelecidas.

O desafio a que o argumento está exposto, e de resto toda taxinomia dos signos, é o de
ser capaz de conter e de sintetizar todas as formas de juízo possíveis para a experiência. São
duas ordens de questões que se completam: de um lado os fenômenos primários vivenciados,
de outro a sua elaboração conceitual e social. Ao buscar formas de conciliação para esse
contraste, Peirce evita o lugar comum de que a representação oblitera a realidade, mas assume
a hipótese de que a realidade escapa à representação; daí, num esforço compensatório, todo o
seu investimento nas etapas sucessivas de construção da terceiridade. Se pudéssemos, como
instrumento de representação, dispor apenas do signo79, lato sensu, os prejuízos em termos de
captação de fenômenos experimentados seriam evidentes. No limite, a questão em análise
colocaria a nossa capacidade de categorização e de organização da realidade numa relação de
assimetria absoluta com os meios disponíveis para representar: produziríamos grandes
estoques de dados sem dispor de mecanismos adequados para expressá-los. Entretanto, os
fatos inscrevem-se numa ordem diversa e a necessidade de ordená-los conduz Peirce a essa
formulação. Na verdade, dispomos de meios intuitivos e incontáveis de representação
conceitual, mas não dispomos, teoricamente, de uma forma racional de fundamentá-los e nem
de estruturá-los de modo orgânico. É nessa dimensão, portanto, que entendemos o esforço do
autor na fundamentação da terceiridade. Embora a formulação de um padrão de racionalidade
nem sempre se mostre ostensiva, como seria desejável, consideramos ser esse o grande tributo
que lhe devemos render em termos de sua reflexão.

79
Esse fato seria equivalente a existência, numa língua, apenas de palavras como coisa, trem, treco para
especificar todo o conjunto dos objetos materiais. Embora os termos não contenham em si nenhuma descrição a
priori dos objetos, o simples fato de nomeá-los, de forma diferente, já é uma garantia da sua diferenciação.
145

A partir das considerações acima, vamos analisar um outro conjunto de dados,


destacando o contraste entre uma concepção de análise do processo de percepção da
realidade, na dimensão da terceira tricotomia, e uma concepção de análise que leva em conta
padrões de estruturação lingüística da significação. Intencionalmente, selecionamos um
conjunto de proposições com um padrão de estrutura diferente daquele que foi visto nas frases
anteriores. O objetivo aqui é mostrar, nesta comparação, que tanto a concepção semiótica
como a semântica exigirão uma reconstrução lógica das proposições, em função das
circunstâncias enunciativas em que forem utilizadas.

(40) Fogo !
(41) Cuidado! Fogo !
(42) Socorro! Fogo !
(43) Preparar! Apontar! Fogo!

Numa classificação imediata, a partir das classes de signos, atribuiríamos a (41), (42) e
(43) o valor de um argumento e a (40) o de um símbolo dicente, ou, em circunstâncias
específicas, de um legissigno indicial dicente. As questões que decidem uma tal classificação
decorrem, de um lado, da possibilidade de correlações lógicas entre as proposições, nos três
últimos exemplos, e da existência de uma proposição que expressa, isoladamente, um certo
estado de coisas, em (40). Os fatos assim concebidos circunscrevem-se, sem qualquer
discrepância, na formulação de Peirce. Assim, uma análise desse teor, ainda que de valia na
concepção genérica de estruturação de certos objetos conceituais, pouco representa em termos
do que, de fato, pode significar, para os falantes do português, a interpretação de cada uma
delas. Nesse caso em particular e, provavelmente, em muitos outros, poderíamos reverter o
raciocínio, até então desenvolvido, afirmando que o conhecimento de fatos lingüísticos levaria
a uma compreensão efetiva de tais objetos, ainda que concebidos semioticamente. Como os
exemplos não apresentam uma estrutura proposicional canônica, vamos precisar reconstruir
cada um deles, de forma a poder melhor localizar as questões. Vejamos, então, uma primeira
estrutura proposicional:

(44) Fogo ! = {[PONTO80[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}81

80
Na descrição desse exemplo e de outros seguintes, o termo PONTO refere-se à forma pelo qual o seu uso foi
consagrado pela Teoria dos Atos de Fala, conforme veremos no capítulo seguinte.
146

A descrição proposta em (44), isto é, a função proposicional [queimar (x, y)], realizada
no tempo presente [t, presente] e numa modalidade assertiva [PONTO[assertivo]], pode ser usada
para caracterizar, diretamente, o significado da proposição ‘Fogo !’ em todos os casos acima,
excetuando (43), onde a idéia geral de [queimar] já aparece como um resultado de outras
ações realizadas. Embora sendo uma função de dois lugares, já que é possível considerar [x,
agente] ou [x, instrumento] e [y, objeto afetado], é comum reduzi-la a uma função de um
único lugar, evitando, assim, uma redundância descritiva em que [x, instrumento] fosse
atualizado por ‘fogo’. Ao invés, portanto, de termos proposições como (45), teríamos, mais
comumente, (46):

(45) O fogo[instrumento] está queimando a casa[objeto afetado].


(46) A casa[objeto afetado] está queimando.

Enfim, a função proposicional em discussão pode ser atualizada em formas


semelhantes às acima descritas, onde quer que (44) possa servir como estrutura de
significação válida. De outro lado, retomando a questão da inadequação de (44) para
descrever ‘Fogo !’, no exemplo (43), podemos, em complemento, caracterizar uma ação
possível que, combinada ou não a (44), expresse a estrutura do seu significado:

(47) Fogo ! = {[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)}

A descrição de (47) é mais apropriada a expressar o significado da proposição contida


em (43). Claro está, entretanto, que (47) não é uma descrição indiferente à proposta em (44),
já que esta pode ser assumida como o resultado daquela. Em outras palavras, o efeito de
[disparar o gatilho] pode ser, em conseqüência, o de [queimar pólvora]. A contraposição de
sentido que mostramos para a presença de ‘Fogo !’, em correlações distintas, mostra a
necessidade de uma análise da sua estrutura de significação que seja capaz de responder aos
efeitos que produz em cada um de seus usos. Esses efeitos só podem ser computados à medida

81
Na descrição formal desses exemplos, estamos considerando funções enunciativas, todos os parâmetros
relativos ao modo, ao tempo e a particularidades sobre o papel dos interlocutores. Aspectos da estrutura
proposicional, contendo o predicado e seus argumentos representam funções gramaticais.
147

que apontamos relações estreitas que se estabelecem entre unidades concorrentes. Logo,
enquanto a dimensão semiótica reconhece uma estruturação global dos exemplos analisados
(símbolo dicente e argumentos), a abordagem semântica fundamenta-se numa análise da
estruturação interna, pois somente através dela podemos chegar à diferenciação apontada.
Vamos avaliar os casos remanescentes:

(48) Cuidado ! = {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}


(49) Socorro ! = {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}

As duas descrições acima caracterizam, respectivamente, ‘Cuidado!’ e ‘Socorro!’ como


valores proposicionais nos contextos em análise. Como funções proposicionais, elas traduzem
os mesmos ingredientes dos casos anteriores, com a diferença que não havia sido comentada
ainda em (47) e que reside no fato de se introduzir uma nova modalidade na sua atualização.
Assim, o modo assertivo, antes mencionado, orienta-se para o mundo e atesta um certo estado
de coisas, assumido como verdadeiro pelo locutor; o modo diretivo orienta-se para o
alocutário, interpelando-o na consecução de certas tarefas. Quando articulamos, em (41) e (42)
acima, as duas modalidades em análise, asseguramos à asserção − o estado de coisas que está
sendo asseverado − o valor de causa que justifica uma interpelação do interlocutor a quem
confiamos algum tipo de desempenho. Podemos reagrupar os fatos em questão da seguinte
maneira:

(41a) Cuidado! Fogo !


{{[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)} COND [causal]
{[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}};

(42a) Socorro! Fogo !


{{[PONTO[diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)} COND [causal]
{[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}}.

A descrição apresentada busca estruturar uma correlação entre os dois conteúdos


proposicionais, mas ainda deixa escapar uma diferença essencial entre os dois exemplos: em
(41a) a interpelação do alocutário pelo locutor favorece aquele, pois é ele, alocutário, o objeto
da alerta do locutor; em (42a), todavia, a interpelação do alocutário visa a favorecer o locutor,
148

pois é ele, locutor, que está clamando por ajuda, ainda que os beneficiários imediatos possam
ser outros. Embora sabendo que a questão em análise contenha uma amplitude maior do que
os fatos que se traduzem em termos de uma estrutura da proposição82, podemos, no momento,
acrescentar-lhe uma solução ad hoc, propondo uma restrição no alcance da variável [x],
conforme descrição abaixo:

(48a) Cuidado ! = {[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}, sendo x[não-beneficiário];
(49a) Socorro ! = {[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}, sendo x[beneficiário].

A solução apresentada poderia assumir outro formato, para representar, de modo mais direto,
um contraste entre ‘Cuidado!’ e ‘Socorro!’. As duas expressões poderiam ser descritas com o
mesmo valor lexical, mostrando que a diferença entre elas se deve ao fato de haver uma
orientação sobre o beneficiário da ação. Intuitivamente, parece ser essa a diferença que
relacionamos uma à outra: ‘Cuidado!’ alerta para o perigo de modo a indicar o alocutário
como principal beneficiário da ação; ‘Socorro!’, alerta também para perigo, mas inclui o
locutor como o seu principal beneficiário. Analisemos agora os dois outros componentes do
exemplo (43):

(50) Apontar ! = {[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)}
(51) Preparar ! = {[PONTO[diretivo]] estar atento[t, presente] (x)}

A princípio, a descrição de (50) e (51) não registra maiores dificuldades, considerando-se as


relações de sentido contidas em (43) na sua correlação com (47). No entanto, (51) pode ser
descrita de maneira alternativa à apresentada, utilizando não uma categoria genérica como
[estar atento], mas uma categoria como [posicionar], que orienta para ações mais precisas e
localizadas em relação a instrumentos inseridos em situações convencionais de seu uso. A
escolha de uma ou outra não altera, substantivamente, o resultado final da análise, porque os
mesmos fatos teriam de ser especificados em termos de relações entre as proposições. Quanto

82
Fatos dessa natureza, como outros que já foram incluídos neste trabalho, extrapolam parte das informações
que, de um modo geral, são abordados no plano do enunciado. Ao trabalharmos os exemplos de (40) a (43), já
estamos operando no plano da enunciação, pois representam atos de fala e não apenas proposições, no sentido
tradicional.
149

às correlações semânticas entre proposições de (43), é importante ressaltar uma diferença: na


discussão anterior, a relação fundamentou-se em termos de uma condição de causalidade. Na
discussão seguinte, vamos destacar uma seqüência temporal em (43), onde uma ação
precedente é condição para a realização da subseqüente, conforme descrição abaixo:

(43a) Preparar! Apontar! Fogo!


{{[PONTO [diretivo]] estar atento[t, presente] (x)} COND [temporal]
{[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)} COND [temporal]
{[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)}}

Desse modo, a natureza da predicação usada para representar cada uma das proposições, isto
é, [estar atento], [orientar a visão para], [disparar], já se torna um indicativo de ordem
temporal. Ainda que certas ações precisem ser realizadas antes que outras, isso não impede
que possamos produzir correlações alternativas, mantendo-se, basicamente, o mesmo sentido.
Deve-se essa flexibilidade ao fato de a condição temporal não apresentar o mesmo vigor,
comparando-se os componentes de todo o argumento. Sabemos, pois, que entre ‘Apontar!’ e
‘Fogo!’ existe uma condição temporal forte, porque não seria razoável supor que uma ordem
para atirar pudesse ser dada antes mesmo da de mirar − ou, ainda pior, que a ordem de mirar
fosse dada depois da de atirar −, supondo que ambas devessem ser proferidas. Entretanto,
sobre ‘Preparar!’ projetam-se condições relativamente fracas, porque ela tanto pode figurar
como antecedente de ‘Apontar!’, como de ‘Fogo!’. Ambas as proposições aceitam o fato de
que as ações contidas em ‘Preparar!’ possam figurar como seu antecedente. Tal observação
parece ser válida para quaisquer das duas descrições conceituais que lhe for atribuída,
conforme apontamos acima − [estar atento] ou [posicionar]. Se, todavia, traduzíssemos
[posicionar] por uma ação específica, ou seja, o início do manejo de armas, então ela seria
mais adequada como antecedente de ‘Fogo!’. Se as observações sobre o comportamento de
‘Preparar!’ são verdadeiras, podemos admitir um outro arranjo para (43):

(43b) Apontar! Preparar! Fogo!83


{{[PONTO [diretivo]] orientar a visão para[t, presente] (x, y)} COND [temporal]

83
Além da flexibilidade de ordenação entre esses componentes, a sua escolha não exclui a possibilidade de
outros, ou por troca - ‘Atenção! Apontar! Fogo!’ -, ou por acréscimo - ‘Atenção! Apontar! Preparar! Fogo!’.
150

{[PONTO [diretivo]] posicionar/estar atento[t, presente] (x)} COND [temporal]


{[PONTO[diretivo]] disparar[t, presente] (x, y)}}

Outras inversões, porém, não seriam aceitas em relação aos componentes desse
argumento. Logo, não seria possível deslocar ‘Preparar!’ para o final da seqüência, −
‘*Apontar! Fogo! Preparar!’ −, nem ‘Fogo! para o seu início − ‘*Fogo! Preparar!
Apontar!’ − e nem antepor os dois últimos elementos da seqüência original − ‘*Preparar!
Fogo! Apontar!’. O resultado final dessa avaliação mostra que quaisquer arranjos que não
considerem ‘Fogo!’ como ação derradeira da seqüência, e até mesmo como conseqüência das
ações precedentes, não podem ser aceitos como estruturas de significação adequadas, para o
caso em análise. Por outro lado, a ordenação temporal que estamos apontando para as
proposições não pode ser vista sem alguma contaminação que leve à exclusão de quaisquer
outros vestígios além da seqüência no tempo. A restrição geral que foi feita acima, admitindo-
se apenas Fogo! como a última das proposições, decorre também da natureza do conteúdo
implicado nas outras proposições: as relações que [disparar] mantém com [orientar a visão
para] e [estar atento] não são necessárias, portanto, não têm o valor de uma causalidade forte,
mas também não são fortuitas, porque são contingentes na sua dimensão semântica, conforme
já apontamos pela estreita dependência entre o conteúdo de atos contidos em cada uma das
proposições.

Além do mais, é preciso relativizar tais aproximações, preservando uma certa


interdependência entre causalidade e temporalidade, ao menos para circunstâncias em que
artifícios da troca de conectivos, da ordem entre as proposições se encarregam de gerar
sentidos diferenciados84. Os efeitos da inversão que constatamos, com alguns exemplos, para
formulações das condições temporais apresentam um outro caráter complementar, em
contraste com as condições causais. Para estas não existem restrições na sua ordem de
ocorrência, pois podemos inverter as proposições sem que se produzam prejuízos ao seu
sentido original. Assim, podemos obter, a partir de (41) e (42) acima:

84
É comum registrar o exemplo histórico “Vim, vi, venci” como ilustrativo da seqüência temporal, onde a ação
subseqüente está sempre a exigir a presença daquela que lhe antecede como condição espaço-temporal: só é
possível ver o lugar a que se veio e só é possível vencer o lugar (inimigo) a que se veio e que se viu. É claro,
porém, que nada impede a possibilidade de gerar outras estruturas de significação com esse conjunto de
proposições.
151

(41b) Fogo! Cuidado!


{ COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}
{[PONTO [diretivo]] alertar[t, presente] (x, y)}};

(42b) Fogo! Socorro!


{ COND [causal] {[PONTO[assertivo]] queimar[t, presente] (x, y)}
{[PONTO [diretivo]] estar em perigo[t, presente] (x)}}.

As alternativas possíveis para as relações causais típicas, como (41) e (42) revelam, em
contraste, a existência de um outro tipo de relação que não se sujeita, com evidência, às
circunstâncias de uma ordenação única. Assim, relações causais mais ou menos implícitas
podem ser contagiadas por estruturas temporais e mesmo considerando casos onde uma
relação de causalidade parece evidente, o teor de uma relação temporal também não pode ser
excluído. Podemos argumentar aqui que uma justificativa possível para um locutor [alertar] o
seu alocutário, ou para a sua manifestação de [estar em perigo] depende da existência prévia
de ‘fogo’, no âmbito dos exemplos em análise. Se alguém clama por meio de apelos em seu
benefício ou em benefício de outrem, ele o faz em razão da precedência temporal de algo que
lhe pode ser nocivo, em alguma extensão.

Por último, as razões pelas quais a reflexão de Peirce destaca o argumento como uma
classe de representâmen que manifesta um padrão elaborado de expressão do pensamento
justificam-se, em relação às práticas de linguagem, quando confrontadas com os exemplos
analisados. Embora na forma de padrões sintagmáticos não-canônicos, mostramos como as
proposições se estruturam e como se relacionam entre si por razões lógicas. Os procedimentos
da análise lingüística, ainda que parciais, descreveram como, de forma restrita, é possível
conceber um estatuto lógico no percurso que se estende do rema ao argumento. Eles podem
ainda constituir uma justificativa suplementar, em outras bases, da racionalidade reivindicada
pelo autor em relação aos desdobramentos no formato de raciocínio que o argumento
representa. Há uma compreensão mais decisiva da sua importância para a organização do
pensamento, se avançamos nas possibilidades de estruturação lógica que Peirce admite: trata-
se da tricotomia para os argumentos simples, concebidos na forma de − deduções, induções e
152

abduções. Não discutimos esses formatos de raciocínio, porque tal discussão estaria além do
que foi desenhado para esta pesquisa.

Nesta seção procuramos enfatizar apenas alguns aspectos que seriam objeto de uma
compreensão semiótica do argumento e outros que seriam objeto de sua compreensão numa
abordagem semântica. Ao longo da nossa discussão, demonstramos diferenças e aproximações
entre os dois campos, que resguardam padrões próprios no trato da relação entre ser e ser
representado. A classificação dos signos na semiótica fundamenta-se em bases fenomenistas,
a partir de categorias como a qualidade, o existente, a lei, enquanto na lingüistica, o
fundamento é de base estrutural, sustentado por propriedades e relações léxico-sintagmáticas.
É possível, porém, que a semiótica extraia de sua base fenomenista conseqüências estruturais,
ao implementar alguns aspectos da organização das tricotomias, bem como conseqüências
funcionais, considerando-se o papel desempenhado pelos correlatos de quaisquer relações
triádicas. A lingüística, por seu turno, deve conviver, em sua base estrutural, com padrões
fenomenistas, seja pela absorção cognitiva dos dados de uma realidade, seja pelos efeitos de
interpretação de um certo estado de coisas de um mundo possível. Assim, ainda que a
incompatibilidade operacional, as divergências instrumentais entre os dois campos de estudo
no processamento da representação, conforme procuramos avaliar no transcorrer desse
capítulo, anulem as tentativas metodológicas de uma sobreposição entre semiótica e
semântica, pressupostos filosóficos e padrões conceituais continuam sustentando o
partilhamento pelo dois campos, senão das soluções, ao menos dos desafios impostos pela
representação.

3.4 Considerações finais

Na discussão acima fizemos uma reflexão sobre um outro estágio da proposta de


Peirce − a terceiridade. Analisamos alguns aspectos da questão, procurando delinear um
quadro geral e indicativo do seu alcance conceitual. Abordar a terceiridade significou não
apenas retomar parte dos problemas conceituais que foram discutidos na segundidade, como
ainda avançar na direção à questão que lhe é central, isto é, o conceito de representação.
Nesse particular, discutimos algumas dimensões da tipologia dos signos, tentando atribuir a
ela um tratamento específico para casos em que mantém, de forma mais localizada, um
relacionamento estreito com fenômenos de representação afeitos às línguas naturais. O
153

propósito não foi meramente de enfocar unidades lingüisticas para tentar ilustrar tipos de
signo. Um procedimento assim configurado correria o risco de reduzir a proposta de Peirce a
uma classificação estática. No entanto, na condição de reduto da representação, tivemos a
oportunidade de selecionar, na terceiridade, alguns indicadores construídos pelo autor e
compará-los a certas condições de análise, necessárias a uma compreensão de fatos
lingüísticos. Destacamos, na nossa perspectiva, indicadores − tipos de signos − que se
mostravam mais próximos a uma discussão de fatos específicos de linguagem. Desse modo, a
proposta de análise procurou avaliar certas condições impostas à construção de uma gênese da
representação e a sua extensão para os processos de representação do processo de
significação lingüística.

Assim, ao analisar o que havia de mais específico na terceiridade, procuramos fazê-lo


com base em duas orientações básicas. De um lado, analisamos propriedades que
aproximavam os dois campos de estudo: nesse particular, semântica e semiótica operam
ambas com a perspectiva de desenvolver sistemas que sejam cada vez mais eficazes na tarefa
de representar. Ainda que de importância para os dois campos, a preocupação em torno da
construção de uma metalinguagem das representações foi discutida, de modo mais efetivo,
para a semiótica: o papel atribuído à terceiridade no corpo da teoria e a proposição de uma
tipologia dos signos constituem dois fatores decisivos na sua construção. Apesar de evidências
gerais em favor de uma aproximação entre as duas abordagens, ou seja, o teor genérico das
operações relacionadas à representação e os objetivos pretendidos em torno dela, procuramos,
de outro lado, destacar parte daquilo que serve como indicador de uma diferença entre um e
outro campo. Depois de explorar a fundamentação conceitual da representação, selecionamos
uma amostragem de fatos lingüísticos específicos, para os quais propusemos alguns
contrapontos com uma análise semântica específica. No contraste referido, relações e
propriedades lexicais e relações sintagmáticas, como fenômenos gerais e não contendo alusão
a nenhuma teoria de modo particular, serviram de sustentação para uma análise ilustrativa do
caráter específico de funcionamento dos objetos semânticos. Alternamos, em nossa reflexão
acima, entre a necessidade de se declararem incompatíveis os procedimentos de análise das
duas abordagens, e a possibilidade de fazê-los semelhantes em razão de objetivos a serem
alcançados. A vacilação, no nosso entendimento, é natural, pois semiótica e semântica
discrepam por recobrirem domínios de extensão diferente, mas convergem ao selecionar a
representação como um padrão de intervenção nos domínios. Entretanto, em todos os
154

momentos de aproximação que propusemos, sempre restou a sensação de que algo de mais
específico devia ser imposto ao funcionamento dos objetos semióticos para que deles
pudéssemos extrair uma contribuição mais determinante para a análise dos processos de
significação lingüística.

Por último, se as duas etapas iniciais propostas por Peirce − primeiridade e


segundidade − constituem fatores importantes para a compreensão de todo o processo de
significação, podendo serem assumidas como duas instâncias de fundamentação dos objetos
semânticos, isto é, percepção sensível e formulação conceitual , alcance diferente estamos
reconhecendo para a terceiridade. Por isso, se os planos iniciais se evidenciaram
determinantes para a concepção dos objetos semióticos e, em tese, para os objetos
semânticos85, o mesmo não podemos afirmar para o plano da terceiridade: a representação
semântica contempla outros detalhes que não se fazem nele presentes. Nessa dimensão, os
objetos semânticos não só exigem um padrão diferente de representação − as condições
sintáticas a que se submetem, por exemplo − como ainda requerem uma flexibilização do
nível de detalhamento das relações lexicais em razão de ocorrências circunstanciais. Classes
gramaticais e classes lexicais − uma dimensão de análise paralela à tipologia dos signos −,
embora relevantes para o processamento dos objetos semânticos, estão sempre sujeitas a
desdobramentos e a especificações ulteriores, a fim de atender a exigências no campo da
interpretação. Ainda que não exista um consenso sobre a estrutura de uma metalinguagem
apropriada à expressão dos fatos de sentido, conhecemos, ao menos, certos parâmetros de que
qualquer modelo necessita ser constituído. Não obstante o descompasso que possa existir
entre os modelos de análise semântica, duas constatações parecem-nos consensuais, por
ocasião da avaliação proposta: (a) a insuficiência de uma grade generalizada de denominações
para ‘disciplinar’ os fenômenos da representação lingüística e (b) a inadequação de padrões de
relativa autonomia das unidades, em detrimento de exigências sobre correlações solidárias e
mutuamente determinantes. Reavaliemos cada uma dessas constatações.

85
A exceção mais notada sobre esse fato pode ser registrada na formulação de JACKENDOFF (1983) sobre a
existência de quatro domínios conceituais que expressam a relação entre linguagem e realidade: “Thus we adopt
within the theory a metaphysics that embraces four domains: the real world, the projected world, mental
information and linguistics expressions. Among the goals of the theory is to explicate the relatioships of these
domains to each other.” (p.31).
155

Concernente ao item (a) acima, preocupações com a fixação de uma terminologia,


sobretudo quando orientada em termos da organicidade de um sistema, devem ser
respeitadas, mas elas estão longe de se constituírem em soluções para grande parte dos
problemas detectados. Se pudéssemos assumir o ajustamento de uma terminologia como um
parâmetro para superação de dificuldades, a semântica estrutural, em razão da arquitetura
terminológica que construiu, deveria ser resguardada como um valor inestimável para a
análise lingüística da significação, ainda que a ela devam ser atribuídos muitos méritos nesse
empreendimento. Quanto ao aspecto da autonomia de significação das unidades lingüísticas,
conforme anunciado em (b) acima, podemos afirmar que todo avanço sobre o conhecimento
dos objetos semânticos tem se tornado mais efetivo, à proporção que somos capazes de, cada
vez mais, avaliar correlações e dependências entre as unidades de um sistema. Todo o
desenvolvimento da sintaxe86, nos últimos tempos, permitiu um conhecimento melhor dos
fenômenos de sentido, porque, ao invés de concebê-los como entidades autônomas,
vinculadas a itens lexicais, foram submetidos ao filtro das relações sintagmáticas. Tal
vinculação, antes de representar uma restrição para unidades lexicais, possibilitou, no nosso
entendimento, avançar não só na direção de uma especificação maior dos fatos de
significação, como na sua potencialização, em razão de novos significados partilhados nas
relações sintagmáticas. Em resumo, as condições de representação impostas aos processos de
significação, construídos a partir de um sistema lingüístico, não podem desconhecer as regras
de funcionamento desse sistema como um todo. Por outro lado, se grande parte dos objetos
semióticos se faz representar à revelia dessa determinação, os parâmetros de análise não
podem seguir um mesmo receituário. Semiótica e semântica, em termos de representação,
alimentam-se de preocupações distintas, porque se utilizam de padrões distintos para
responder à questão: como representamos o que conhecemos.

86
Podemos destacar, em particular, diversos trabalhos que tiveram como objetivo o desenvolvimento de papéis
temáticos (JAKENDOFF, 1983), por exemplo, ou de relações de caso (FILLMORE, 1982), como um
instrumento de análise fundamental para uma aproximação decisiva entre sintaxe e semântica.
156

CAPÍTULO IV

PRAGMATISMO E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS


157

4 PRAGMATISMO87 E ANÁLISE DOS PROCESSOS ENUNCIATIVOS

4.1 Considerações iniciais

Nos capítulos precedentes, procuramos desenvolver uma análise avaliando a


correlação entre semântica e semiótica, com base em três orientações distintas e procurando
demarcar convergências e divergências possíveis entre os dois campos. No primeiro capítulo,
avaliamos os princípios que Peirce utiliza para definir a primeiridade, destacando o papel que
atribui ao percepto e suas condições de funcionamento no processamento da experiência. Na
seqüência, discutimos as possibilidades de extensão desse modus operandi como um
fundamento para a formação de conceitos, um parâmetro essencial na discussão atual da
semântica. No segundo capítulo, retomamos alguns fundamentos da segundidade, sobretudo
aqueles determinantes na avaliação do modo pelo qual a experiência sensível, captada na
primeiridade, assume uma forma existencial. Discutimos alguns parâmetros básicos que o
autor propõe como princípios de ordenação e de racionalização da experiência perceptual. No
desenrolar dessa análise, confrontamos os resultados com diversos padrões de formação
conceitual que se fizeram presentes, muitos de forma velada, no desenvolvimento da
semântica, a partir do estruturalismo. Finalmente, no terceiro capítulo, a nossa preocupação
foi selecionar alguns parâmetros mais pertinentes, na terceiridade, para discutir problemas
relativos à representação, destacando os aspectos referentes à construção de uma arquitetura
do signo em contraste com propriedades lexicais e relações sintagmáticas, base de construção
das teorias semânticas. Pela extensão das questões envolvidas nessa tópica, procuramos
destacar apenas aquelas propriedades que se mostraram, comparativamente, mais próximas
da construção metalingüística das teorias semânticas.

Neste capítulo, vamos resgatar uma outra instância da formulação de Peirce, o


pragmatismo88, procurando desenvolver o mesmo tipo de procedimento utilizado nas

87
PEIRCE (1980) descartou o uso do termo pragmatismo em favor de pragmaticismo pelas duas razões
seguintes que encontramos registradas no seu texto (a) “... a palavra começa a aparecer nas revistas literárias,
violentada daquela forma impiedosa a que estão sujeitas as palavras quando caem em garras literárias”; (b)
“Os costumes britânicos censuraram a palavra por ser mal escolhida, quer dizer, por designar um significado
que devia antes servir para excluir.”(p. 116). Adotamos o termo original − pragmatismo − por continuar sendo o
de uso mais corrente.
158

instâncias anteriores. Entretanto, o quadro comparativo precisa ser ajustado, pois os objetos
conceituais que se configuram no pragmatismo ultrapassam o que se concebe como
semântica, ao menos no interior das abordagens que serviram de suporte, até então, nesse
processo de análise. Em se tratando do campo da linguagem, até mesmo uma denominação
padronizada parece estar ainda por se definir nesse território: historicamente pragmática
parece ter sido a denominação de mais amplo aceite. De modo mais restrito, o termo recobre
uma preocupação original com a análise dos atos de fala e das expressões indiciais
(STALNAKER, 1982)89, mas contém uma extensão mais abrangente, incluindo leis
conversacionais, processos interativos.

O avanço que a lingüística alcançou nas últimas décadas, nesse panorama traçado além
do domínio da sintaxe e da semântica, propiciou, às vezes, o aparecimento de outras
denominações para avaliação dos mesmos fatos. Assim, análise do discurso, análise
conversacional, processos enunciativos, processos discursivos, análise da enunciação, mesmo
quando portadoras de objetivos próprios, de uma metodologia singular, costumam recortar
objetos que se sobrepõem ao campo da pragmática. Para evitar uma ressonância muito
próxima entre cognatos e também por representar uma extensão mais ampla dos fenômenos
em análise − por exemplo, fenômenos de interação verbal − estaremos usando análise dos
processos enunciativos, como uma intervenção sintático-semântico-pragmática, para
correlacionar discutir as bases do pragmatismo. Além do mais, em razão da proliferação dos
procedimentos de análise implementados por abordagens distintas nesse campo, estamos
centralizando dois aspectos que consideramos fundamentais e complementares e que
representam uma seqüência natural para o pragmatismo, na análise a ser desenvolvida. Trata-

88
A formulação do presente trabalho organizou o pragmatismo como o aspecto ‘derradeiro’ da teoria de
PEIRCE. A organização do trabalho, porém, não corresponde à proposta original do autor; nesta o pragmatismo
é uma doutrina mais abrangente (ou talvez o método) dentro da qual se acham estruturadas primeiridade,
segundidade e terceiridade, conforme se pode observar em PEIRCE (1980, p. 5-60). Na presente estruturação
estivemos preocupados em fazer emergir uma certa gênese da nossa atividade sobre os objetos, o que nos levou a
conceber o pragmatismo como instância final de um processo que inclui, gradativamente, sensação >
formulação > representação > ação. Tal escala, porém, não contradiz a formulação de Peirce, pois ela ainda nos
mostra sensação, formulação e representação, ou as tópicas correspondentes, como integrantes da ação, ou seja,
do pragmatismo.
89
O autor assim expressa sobre o problema: “A pragmática é o estudo dos atos lingüísticos e dos contextos nos
quais eles são executados. Há dois tipos principais de problemas a serem resolvidos dentro da pragmática:
primeiro, definir tipos relevantes de atos de fala e produtos de fala; segundo, caracterizar os traços do contexto
de fala que ajudam a determinar qual a proposição que é expressa por uma dada sentença. A análise dos atos
ilocucionários é um exemplo de problema do primeiro tipo; o estudo das expressões indiciais é um exemplo do
segundo tipo. (p.64).
159

se, portanto, de buscar, no pragmatismo, uma justificativa para o funcionamento dos atos de
fala e da análise quadro enunciativo proposto pela semiolingüística, como um complemento
para os atos de fala. É claro que a razão da busca desse fundamento deve-se à suposição de
que os dois fatos, em análise, se mostrem ancorados, com certeza, a uma concepção
lingüística.

4.2 Conceito de pragmatismo

A construção do pragmatismo em Peirce contém uma amplitude que muito ultrapassa


a dimensão que se fez, na lingüística, do cognato pragmática90, definida, no geral, como “...
a ciência da relação dos signos com os seus intérpretes.” (MORRIS, 1976). Essa apropriação
distributiva, em relação às outras partes da linguagem − sintaxe e semântica −, mostra,
todavia, sua conexão com o objetivo que Peirce acaba por conceber para o pragmatismo, isto
é, “...a doutrina segundo a qual toda concepção é a concepção de seus efeitos práticos.”,
(PEIRCE, 1980, p. 57). A reflexão do autor, entretanto, registra um quadro amplo de
formulações, onde devemos situar as condições que devam viabilizar a doutrina. Assim, supor
uma orientação para efeitos práticos exige a recomposição de alguns parâmetros que
fundamentam, de modo racional, uma compreensão do pragmatismo, a partir de duas
dimensões complementares. A primeira coloca-o a serviço da necessidade de uma avaliação
experimental de hipóteses, voltadas, de preferência, para o entendimento de uma prática
científica restrita. A segunda dimensão indica, de modo mais genérico, um apelo a condutas
ordinárias, circunscritas às atividades do cotidiano, às práticas sociais dos sujeitos. Separar as
duas dimensões não chega a constituir-se num fato determinante para a sua formulação, razão
pela qual, no geral, elas se mostram mescladas. No fundo, o pragmatismo comporta uma e
outra orientação, seja como método de verificação de hipóteses formalmente construídas, seja
como um simulador da experiência cognitiva ordinária. Desse modo, as preocupações

90
Na concepção de MORRIS (1976), “O termo pragmática foi obviamente cunhado em referência a
‘pragmatismo’. É ponto de vista plausível que a importância permanente do pragmatismo repousa no fato de
que ele dirigiu uma atenção mais cerrada para a relação dos signos com os seus usuários do que já se tinha
feito e afirmou a importância dessa relação para se entender as atividades intelectuais.” (p. 50)
160

conceituais inseridas no pragmatismo procuram recobrir uma e outra orientação91, conforme


podemos verificar no trecho seguinte (PEIRCE, 1977):

“Portanto, qual é o objetivo de uma hipótese explanatória? Seu objetivo é,


apesar de isto estar sujeito à prova da experiência, o de evitar toda
surpresa e o de levar ao estabelecimento de um hábito de expectativa
positiva que não deve ser desapontada. Portanto, qualquer hipótese pode
ser admissível, na ausência de quaisquer razões especiais em contrário,
contanto que seja capaz de ser verificada experimentalmente e apenas na
medida em que é passível de uma tal verificação. É esta,
aproximadamente, a doutrina do pragmatismo.” (p. 233).

A aproximação conceitual que Peirce propõe, na citação acima, localiza o pragmatismo na


perspectiva de um método de verificação de hipóteses explanatórias, isto é, aquelas que estão
aptas a se submeterem à prova da experiência e que possam garantir hábitos na
experimentação dos objetos. Ora, se o pragmatismo é uma doutrina que estipula parâmetros
adequados para admissibilidade de uma hipótese, então, é necessário especificar, como o
autor o faz, o modo pelo qual devemos proceder na avaliação de uma hipótese, isto é, “...que
seja capaz de ser verificada experimentalmente...” . Por outro lado, as bases sobre as quais
Peirce estrutura o pragmatismo compreendem ainda outros fatores (PEIRCE, 1977):

“ ... [o autor] arquitetou a teoria de que uma concepção, isto é, o teor


racional de uma palavra ou outra expressão reside, exclusivamente, em
sua concebível influência sobre a conduta da vida: de modo que, como
obviamente nada que não pudesse resultar de um experimento pode
exercer influência direta sobre a conduta, se se puder definir
acuradamente todos os fenômenos experimentais concebíveis que a
afirmação ou negação de um conceito poderia implicar, ter-se-á uma
definição completa do conceito, e nele não há absolutamente nada mais.
Para esta doutrina o presente autor inventou o nome de pragmatismo.”
(p. 284).

A segunda dimensão assinalada − que não exclui a anterior − evidencia-se na citação acima: o
interesse traduz-se pela possibilidade de que o “teor racional de uma palavra”, o uso de um
“conceito” devam ser avaliados sob o prisma de sua “influência direta sobre a conduta”.
Além do mais, tudo que pudermos avaliar sobre um conceito refere-se a “... fenômenos

91
Posteriormente, na seqüência da análise a ser desenvolvida, estaremos nos ocupando, de modo mais enfático,
da questão do pragmatismo associado à prática ordinária de ações, através do uso de formas lingüísticas
apropriadas. Daí a extensão a ser feita do pragmatismo como um fundamento das estruturas enunciativas e da
161

experimentais concebíveis..”, com base em sua afirmação ou em sua negação.


Compreendemos, então, que essa formulação constitui apenas uma continuidade do que fora
antes discutido, destacando um aspecto que parece essencial para Peirce: o teor realista que a
experiência sensível pretende conferir às hipóteses não pode ser dissociado do valor utilitário
que devemos atribuir à metalinguagem92. O realismo incipiente da experiência incorpora-se,
racionalmente, na linguagem (“... o teor racional da palavra...”) que o traduz, em seu estágio
derradeiro, em fatos, em condutas, em objetos experimentados. É claro, entretanto, que ao
admitirmos essa ‘interpretação’, não estamos supondo uma imediatez de signos associados à
experiência sensível. Os padrões determinantes da primeiridade e da segundidade,
principalmente, continuam prevalecendo nessa formulação, conforme podemos comprovar na
afirmação abaixo de PEIRCE (1977):

“O pragmatismo não pretende definir os equivalentes fenomenais das


palavras e das idéias gerais, mas, pelo contrário, elimina o elemento
sensório destas e tenta definir o propósito racional, e isto ele descobre na
conduta utilitária da palavra ou proposição em questão.” (p.294)

Definidos os propósitos e o alcance conceitual do pragmatismo, podemos passar agora


a avaliar o modo pelo qual toda essa racionalidade, sustentada pelas dimensões precedentes da
teoria, pode ser consagrada em termos de efeitos práticos. Vamos considerar, para início de
discussão, aquilo a que PEIRCE (1980) denominou máxima do pragmatismo:

“Considerar os efeitos práticos que possam pensar-se como produzidos


pelo objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos é a
concepção total do objeto.” (p. 5)

A concepção da máxima, se a assumimos em um sentido restrito de dois eixos que parecem


ser os responsáveis pela construção do pragmatismo, − a explicitação do significado dos
signos e/ou das hipóteses e a sua extensão a condutas práticas − não apresenta uma clareza
imediata. A máxima destaca, porém, dois fatos: o objeto concebido e os efeitos práticos. O

teoria dos atos de fala.


92
Se podemos compreender o pragmatismo por esse esforço estratégico que objetiva traduzir, de modo racional,
intuições, experiências sensíveis em efeitos práticos, podemos também compreender que as categorias
primeiridade, segundidade e terceiridade nada mais são do que etapas de construção da racionalidade de nossa
experiência cognitiva. É claro, como já comentamos, que cada uma das categorias comporta dimensões
absolutamente distintas de racionalidade, no percurso que vai do ‘pré-racional’ ao racional.
162

desafio para que esses dois fatos se façam necessários à construção do pragmatismo requer,
por sua vez, que os coloquemos numa relação de causalidade, de tal forma que o segundo seja
produzido pelo primeiro. Inversamente, segundo o autor, o que concebemos na esfera dos
efeitos corresponde ao conhecimento que temos do objeto. Tentaremos aqui, senão interpretá-
la, ao menos buscar uma justificativa capaz de ilustrar circunstâncias a que ela se aplica.
Suponhamos, então, a formulação de um conjunto de instruções a serem seguidas, visando a
que o seu destinatário execute certa tarefa:

(1) Remova os parafusos e desconecte todos os cabos da unidade.


Empurre o suporte direito para trás para soltar a trava e depois levante e
remova o suporte93.

O objeto da nossa concepção em (1) pode ser entendido como recomendação, ou ordem,
resultante do conteúdo proposicional obtido pela composição de significados de itens lexicais,
associados à realização de tarefas no futuro e a convenções de uso que regulam interações
entre um locutor − o manual − e um alocutário − o usuário. No caso presente, o valor
hierárquico de tal interação faz-se representar pelo caráter de autoridade técnica, conferida
àqueles que elaboraram o manual. Assim, uma vez concebido como mera recomendação, o
objeto projeta a realização de uma tarefa, orientada a partir da descrição do conteúdo ‘P’, de
(1) acima e que pode vir a ser negligenciada pelo seu usuário. Supondo, entretanto, que (1)
possa ser realizado como ordem, devemos, então, revigorar a dependência hierárquica entre
as instâncias interlocutivas, tornando-se inevitável a realização de ‘P. Por fim, admitindo-se
que exista uma clareza sobre o significado dos signos componentes do conjunto das
proposições, a recomendação/ordem registrada estipula para o usuário em pauta a execução
de afazeres que implicam a necessidade de que certos cuidados − [remoção de parafudos] e
[desconexão de cabos]... − sejam realizados como pré-requisitos a tarefas subseqüentes para
remoção e instalação de componentes.

Aqui poderíamos dizer que o efeito prático decorrente do objeto-ordem, por exemplo,
é, minimamente, a execução da tarefa nos termos descritos. Poderíamos ainda, nos termos da
Teoria dos Atos de Fala, denominar tal efeito de ilocucional, entendendo-se o fato de o

93
Instrução constante da seção Instalação e remoção de disco rígido, do Manual do Hardware-IBM/Aptiva.
Campinas: IBM, 1995, p.102.
163

alocutário, em circunstâncias apropriadas, tornar-se responsável pela execução da tarefa


descrita. Poderíamos assumir, além do mais, que a “...concepção deste(s) efeito(s) é a
concepção total do objeto...”, já que um efeito, como o caracterizado acima, responde pelo
que há de mais completo no uso de uma ordem, a saber, o fato de que ela, quando enunciada
em condições apropriadas, seja cumprida pelo seu destinatário, porque quem a enuncia,
também em circunstâncias apropriadas, espera que ela seja, de fato, realizada. Essa
correspondência consensual entre a concepção do objeto e a concepção do efeito, parece ser
essencial na discussão da máxima, conforme podemos atestar numa outra citação (PEIRCE,
1977):

“Pois a máxima do pragmatismo é que uma concepção não pode ter efeito
lógico algum, ou importância a diferir do efeito de uma segunda
concepção salvo na medida em que, tomada em conexão com outras
concepções e intenções poderia concebivelmente modificar nossa conduta
prática de um mundo diverso do da segunda concepção.” (p. 232).

Voltando ao exemplo em discussão, é evidente que uma ordem pode ter outros efeitos, quando
nela mesclamos outras intenções, ou quando violamos alguma convenção, além daquelas que
regulam o seu uso. Se o alocutário percebe que a relação com o locutor não se estrutura na
base de uma hierarquia que confere a este superioridade, o objeto resultante, quando existir −
pois até mesmo a possibilidade de sua recusa está em jogo −, já não mais se configura como
ordem executada, senão como um outro efeito atenuado, segundo o novo diagnóstico da
relação. Assim, se o efeito lógico do objeto-ordem é o fato de que alguém deve cumpri-la de
modo irrestrito, nenhuma outra concepção pode estar, logicamente, a ela vinculada, nem dela
diferir, a não ser que outras intenções possíveis de alterar o seu padrão funcional sejam a ela
acrescidas. O resultado de uma intervenção sobre o fluxo lógico entre objeto e efeito, no caso
de uma ordem, implica “...modificar nossa conduta prática de um mundo diverso do da
segunda concepção” . Em resumo, uma primeira concepção de ordem pode não representar
nenhum efeito lógico resultante, a não ser − e em comparação com uma segunda concepção
que produziria esse efeito −, que sobre ela façamos atuar outras intenções, suficientes para
alterar o nosso comportamento sobre ordens. Em outras palavras, a concepção sobre os fatos
difere em razão de alterações impostas por nossa conduta prática diante desses mesmos fatos.
164

A exposição desenvolvida recobre uma ilustração possível para a máxima proposta,


nos limites de algumas correlações que foram exploradas em particular. Há, todavia, outros
aspectos a serem considerados em sua formulação, de tal maneira a nos permitir conceber
efeitos que se ajustem, de modo mais adequado, a uma referência do autor à “concepção total
do objeto”. No exemplo anterior, analisamos, em relação a uma ordem, condições lingüísticas
e condições interacionais de sua estrutura, e comentamos que o rompimento de uma condição
qualquer pode resultar num efeito atenuado, não representativo de uma ordem legítima, isto é,
uma ordem que contenha o cumprimento pronto e completo das tarefas prescritas. No caso
presente, podemos assumir uma certa ‘concepção parcial do objeto’, já que existiu um
descompasso entre locutor e alocutário. A quebra da expectativa de um consenso entre eles,
seja pela infração a convenções, seja pela incompatibilidade de intenções, introduz, assim,
uma parcialidade na concepção do objeto. Se a parcialidade pode ser concebida em razão das
distorções que estamos apontando, o que, no caso particular, pode representar a possibilidade
de uma “concepção total do objeto” ?

Duas considerações podem ser destacadas em conexão com a questão em análise. A


primeira supõe, conforme comentamos acima, que um certo ato de fala, por exemplo, seja
realizado de forma plena. Assim, para se realizar uma ordem de forma plena, o alocutário
precisa submeter-se a um conjunto de condições que a execução de tarefas decorrentes da
enunciação do locutor implica. A transgressão de normas convencionadas ou a introdução de
intenções desviantes altera a rotina de execução de um ato e redunda, como já o mostramos,
numa alteração conseqüente da conduta prática esperada. A segunda consideração, que
pretendemos desenvolver, implica que a totalidade do objeto seja aferida a partir do conjunto
dos aspectos que podem ser incorporados, ainda que convencionalmente não previstos, num
determinado ato. Esses aspectos, já que não são previstos, só podem ser admissíveis por meio
de intenções: intenções que se acrescentam às convenções não que as diminuem. O
proferimento de uma ordem submete-se a um ritual, governado por convenções que regem a
relação locutor alocutário, como analisado. Nada impede que esse ritual seja acrescido de
intenções da parte do locutor, resultando em exemplos como: (a) uma ordem com intenção de
humilhar o alocutário; (b) uma ordem com a intenção de embaraçar o alocutário; (c) uma
ordem com a intenção de promover o alocutário... Existe também a possibilidade de o
alocutário acrescentar intenções próprias na realização de uma ordem: (a’) sua execução com
a intenção de mostrar uma eficiência acima da exigida; (b’) sua execução com a intenção de
165

ameaçar o locutor; (c’) sua execução com a intenção de mostrar displicência. Esses apêndices
intencionais que acrescentamos aos atos é que podem produzir o efeito de totalidade do
objeto; uma totalidade circunscrita a uma instância enunciativa própria.

Ao traçarmos essa totalidade do objeto − ainda que limitada −, devemos admitir que
uma estratégia de acréscimo de intenções não pode ser confinada em termos quantitativos:
tratamos, nos exemplos acima, sempre da admissão de uma única intenção, mas esse número é
arbitrário. Uma intenção que lembra ‘humilhar’ pode também apontar para acréscimos ou
qualificações como ‘embaraçar’, ‘atropelar’, ‘aborrecer’, ‘tripudiar’, ‘ridicularizar’, mas
certamente é incompatível com ‘elogiar’, ‘promover’, ‘homenagear’94. Formas diretivas como
‘perguntas’ comumente preenchem a sua totalidade com seqüências compatíveis de intenções.
Em resumo, a “concepção total do objeto”, o resultado final da execução de um ato, no nossa
exemplificação a partir da Teoria dos Atos de Fala, requer uma associação necessária entre o
ilocucional e o perlocucional.95

Ao avaliarmos um contorno geral do pragmatismo que incluiu não apenas a sua


conceituação restrita, mas ainda o alcance conferido por Peirce à categoria, constatamos que
os problemas considerados superam as abordagens semânticas, nos padrões desenvolvidos no
capítulo precedente. Muitas das questões ressaltadas podem constituir-se, em relação às
teorias semânticas, numa espécie de extensões pragmáticas, pelo fato de representarem
aspectos relativos ao processo de significação, submetidos a uma clivagem das práticas de
linguagem. Desse modo, se o pragmatismo, na dimensão teórica do autor, se apresenta como
uma doutrina geral à qual submetemos categorias particulares como primeiridade,
segundidade e terceiridade, ele se torna uma espécie de instrumento catalisador e, ao mesmo
tempo, de território limite para o desenvolvimento de cada uma das categorias. Nenhum fato

94
Se a concepção de um ato pode ser admitida como o conjunto dos efeitos práticos a ele vinculados, então, as
condições que usamos para definir possibilidades de sua aplicação − como nos casos em análise − não devem ser
entendidas como limite superior para as condutas práticas. A descrição que apresentamos é sempre parcial e só
pode ser invalidada na ausência de um efeito prático qualquer. A esse respeito PEIRCE (1980, p. 57) afirma que:
“... se o pragmatismo é a doutrina de que toda concepção é uma concepção de efeitos práticos concebíveis, isto
faz com que a concepção tenha um alcance muito além da prática. Permite qualquer vôo da imaginação,
contanto que esta imaginação se depare, em última instância, com um efeito prático possível, assim, à primeira
vista pode parecer que muitas hipóteses são excluídas pela máxima pragmática, quando não o são.”
95
O problema de determinação do lugar da intenção num ato de fala não é uma questão fechada para a teoria. Há
autores que preferem situar intenções como fonte original de todo ato; para outros a intenção é apenas uma
conseqüência do uso de atos.
166

circunscrito na esfera de cada uma delas pode ser indiferente aos propósitos do pragmatismo;
todos os fatos exibem o valor de etapas fundamentais na sua construção. O desenho
conceitual desse quadro mantém, por sua vez, correlações válidas com o processo lingüístico-
discursivo. Não existe ainda, na lingüística (STOP – NOTA SOBRE O ROULET), esse
desenvolvimento integrado que Peirce elabora, mas sabemos, perfeitamente, que todas as
preocupações sobre o processo de significação, desenvolvido no interior de diversas
abordagens semânticas, podem ser aglutinadas em favor de um espaço destinado às extensões
pragmáticas. Entretanto, faremos um corte específico e começaremos a avaliar a extensão dos
problemas de sentido, considerando-se, inicialmente, a possibilidade de uma aglutinação entre
o pragmatismo e a Teoria dos Atos de Fala e, na seqüência com o quadro enunciativo
proposto pela Semiolingüística. Em que dimensão, portanto, podemos extrair da formulação
de Peirce elementos que nos permitam uma aproximação com os atos de fala e com outros
aspectos do processo enunciativo ?

4.3 Pragmatismo e processos enunciativos

Como mencionamos em 4.1, o território de estudos da linguagem, dominado pelo


termo genérico ‘processos enunciativos’96, acolhe inúmeras abordagens que especificam
métodos e padrões de análise da atividade discursiva em torno de três objetos específicos: (a)
o estatuto dos usuários na atividade discursiva; (b) as formas de inserção desses usuários na
atividade descrita e (c) os efeitos práticos decorrentes de sua inserção no processo discursivo.
Nenhum dos objetos pode ser concebido de modo autônomo, pois todos integram uma
problemática em comum, de tal forma que a avaliação do alocutário, como um componente do
processo enunciativo − (a) acima −, precisa ser determinada em função do papel que lhe cabe
desempenhar nesse processo − (b) − e dos efeitos que pode produzir − (c). A integração dos

96
A escolha da expressão, para abranger os fatos que estaremos analisando neste capítulo, não é definitiva.
Outras poderiam alcançar o mesmo efeito, isto é, o de indicar um certo número de fenômenos da linguagem
situados no campo da enunciação. A escolha deve-se ao fato de ‘processos enunciativos’ (mais do que ‘análise do
discurso’, por exemplo, que apresenta diversos padrões teóricos e tendências internas desses padrões...) dispensar
quaisquer justificativas adicionais ou restritivas, por não ser uma expressão nomeativa de nenhuma teoria e nem
estar comprometida com nenhum padrão metodológico de análise, a ponto de nela poder habitar os fatos que
vamos analisar.
167

três aspectos, contidos nos itens acima, representa uma condição mínima para análise da
enunciação, conforme destacaremos na seqüência.

O primeiro aspecto − o estatuto dos usuários na atividade discursiva − responde pela


composição de uma estrutura da enunciação, evidenciada pela necessidade de isolamento dos
componentes, do papel que conferimos a cada um e da correlação entre eles. A estrutura em
questão responsabiliza-se por determinar a construção do processo de interação verbal nas
suas formas mais diversas, seja considerando EU e TU como instâncias indecomponíveis, seja
desdobrando-os em instâncias múltiplas. Há, portanto, concepções desse processo que
estruturam o circuito da fala, na formulação preferencial de instâncias únicas de locução, seja
no lugar do locutor, seja no lugar do alocutário97. Esse modelo de enunciação não assume
como necessária a emergência da polifonia, mas também não a bloqueia; considera-a
contingencial, na forma de fragmentos de discurso de um outro locutor determinável (ou do
senso comum), que não integra a estrutura da enunciação, mas que a ela adere, como um
acontecimento importado para circuito da fala. Há outras concepções, entretanto, em que o
processo de interação se faz, considerando-se o desdobramento de cada um dos lugares
enunciativos98. Nesta abordagem, EU e TU são instâncias únicas na estrutura do processo
enunciativo: ambos comportam o seu ‘outro’ e a possibilidade de consenso ou de dissenso, no
lugar do locutor ou do alocutário, viabiliza efeitos práticos diferenciados no processo
discursivo. Nesse modelo, a polifonia emerge como necessária, porque nele está,
estruturalmente, configurada, ao menos em termos das intenções que regem o jogo

97
Podemos localizar essa distribuição dos lugares enunciativos, por exemplo, na formulação de BENVENISTE
(1987) “Mas imediatamente, desde que ele se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de
si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação é, explícita ou
implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário.”(p. 84). Embora seja um indicador importante para a
fundamentação do processo enunciativo, exatamente por introduzir o confronto entre as duas instâncias
interlocutivas, interessa-nos também um modelo que apresente outras alternativas − ainda que para os atos fala
tenha sido esse o padrão assumido −, como veremos na seqüência.
98
A fundamentação desse modelo aparece de modo explícito na formulação de PÊCHEUX (1969, p. 18-9):
“Notre hypothèse est que ces places sont représentées dans les processus discursifs où elles sont mises en jeu.
Toutefois, il serait naîf de supposer que la place comme faisceau de traits objectifs fonctionnne comme telle à
l’interieur du processus discursif; elle y est représentée, c’est-à-dire présente, mais transformée; en d’autres
termes, ce que foncitionne dans le processus discursif, c’est une série de formations imaginaires désignant la
place que A e B s’attribuent chaun à soi et à l’autre.”. Uma outra versão desse modelo, foi descrita por
DUCROT (1984, p.368-93) que aponta um desdobramento para os lugares do locutor e do destinatário, ao menos
em se tratando dos verbos performativos. O modelo, que será utilizado mais à frente, como parâmetro para
discussão, foi proposto por CHARAUDEAU (1983, p. 37-57).
168

enunciativo entre os participantes. À frente, vamos discutir, de modo detalhado e ilustrativo, o


funcionamento desse modelo.

O segundo aspecto − as formas de inserção dos usuários na atividade de fala − permite


qualificar certos padrões de intervenção do locutor/alocutário no processo discursivo. Ao
compararmos modelos diversos, não vamos encontrar consenso sobre o papel a ser atribuído
ao usuário; existem alternativas que transitam de uma autonomia relativa a uma dependência
quase absoluta. A alternância, compreendida nessa escala, constitui o ponto central em torno
do qual a divergência foi construída em relação ao papel do usuário. Uma certa tradição da
análise comunicacional, por exemplo, ora é estruturada em termos da simetria entre locutor e
alocutário, ora confere certa autonomia ao locutor no processo da fala, até mesmo para
estruturar o código em atenção ao interlocutor.99 Assim, o emissor, portador de propósitos e
de intenções comunicacionais, ajusta o código, de tal modo a torná-lo partilhável pelo
recebedor. Os ruídos decorrentes nesse processo ideal de comunicação são aferidos através de
disfunções, ou da má codificação da mensagem por parte da fonte, ou da má decodificação da
parte do recebedor. Ainda que esse processo seja capaz de propiciar respostas para questões
no âmbito do processo comunicativo, ele se mostrou inoperante para justificar grande parte de
efeitos discursivos que decorrem de uma manipulação dos lugares enunciativos. O processo
expõe suas fraturas, seja na percepção daqueles que apostaram numa determinação dos lugares
enunciativos, seja na percepção daqueles que consideraram os lugares como um fazer de
efeitos discursivos. Os entraves mencionados e o interesse pelas perspectivas de análise no
plano da enunciação contribuíram para firmar outra postura, isto é, a socialização ou, como
muitos preferem, o descentramento dos lugares enunciativos. Uma referência direta ao
problema remete a formulações de BAKHTIN (1981):

“A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer


se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo
contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de
uma determinada comunicação lingüística.” (p. 121).

99
O esquema presente lembra, em parte, a formulação de JAKOBSON (1969) e suas extensões na análise das
funções da linguagem. Para o autor, o locutor escolhe o código, orienta a forma que dá a esse código, centraliza a
mensagem sobre si mesmo ou sobre o seu interlocutor etc. O arranjo proposto, ainda que eficaz na avaliação de
certas estruturas da mensagem, mostra dificuldades no trato do processo enunciativo, pois se torna insuficiente
para explicar grande parte dos efeitospráticos que emergem do plano enunciativo, quando locutor e alocutário se
vêem face a face.
169

Nenhuma fala pode ser concebida como projeto de um locutor individual e isolado do seu
meio social, nenhuma fala é o resultado do seu estado mental exclusivo: o locutor é um ser
social múltiplo, ou, ao menos, um duplo do qual é mero porta-voz. Ele encena ter a
propriedade da voz que tece o seu discurso, mas no fundo apenas aluga a sua voz ao seu
duplo. O mesmo, mutatis mutandis, podemos conceber para o alocutário. O seu lugar é
também descentrado e socializado: nenhuma leitura é propriedade de um indivíduo, senão
uma mesclagem de outros indivíduos, de outras vozes ressonantes na sociedade, de outros
acontecimentos que ele importa para aquela circunstância. Esse modelo reafirma o teor social
da enunciação − “A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social.” (BAKHTIN
(1981, p. 127) −. Ninguém fala apenas em razão do próprio nome, senão em razão do lugar
social que ocupa; ninguém interpreta apenas em razão de uma consciência individual, senão
de uma consciência social. A proliferação de instâncias nos lugares enunciativos tornou-se
uma espécie de antídoto contra o solipsismo − “O ato de fala individual (no sentido estrito do
termo ‘individual’) é uma contradictio in adjecto” (BAKHTIN (1981, p. 127) −. Assim, EU e
TU agora se vêem obrigados a dividir um território onde reinaram soberanos.

O terceiro aspecto − os efeitos práticos decorrentes da inserção dos usuários na


atividade discursiva − abrange um conjunto bastante amplo de efeitos de sentido, incluindo:
(a) formatos de discurso − humorístico, eleitoral, ensaístico... −; (b) atos de linguagem −
mentira, ironia, provocação... −; (c) atos de fala − promessa, ordem, declaração. A
possibilidade de uma avaliação analítica desses efeitos vem se tornando viável, à medida que
o estudo sobre os processos enunciativos alcançou o estágio que dele conhecemos hoje. Em se
tratando dos diversos formatos de efeitos que apontamos, por exemplo, há outros
componentes que intervêm de modo decisivo, que não apenas o formato estrutural da
enunciação. Para todos eles, seguramente, é necessário fixar alguns padrões sintático-
semânticos que os tornem viáveis: uma promessa, como veremos mais à frente, impõe certas
restrições de conteúdo que o locutor precisa compatibilizar na relação com o seu interlocutor;
mentiras só serão bem sucedidas − ainda que por pouco tempo − se o seu conteúdo atender a
condições fatuais mínimas. Nesse caso particular, o processo enunciativo aproxima-se de
aspectos já discutidos nos capítulos anteriores, revelando a importância de uma integração
entre processo enunciativo e processo de significação. A existência de efeitos discursivos, em
170

quaisquer dos formatos que apontamos, implica uma conjunção de fatores que reúne, em
essência, os dois processos. Na análise subseqüente que desenvolveremos para alguns desses
efeitos, mostraremos detalhes dessa integração.

Avaliadas algumas características importantes do processo enunciativo, podemos,


então, implementar as duas dimensões particulares sobre as quais nos deteremos com detalhes
ilustrativos. Iniciemos pela análise da Teoria dos Atos de Fala e, na seqüência, completaremos
com a análise do quadro enunciativo proposto pela Semiolingüística.

4.3.1 Pragmatismo e Teoria dos Atos de Fala (TAF)100

As raízes da TAF emergem onde quer que situemos correlações entre linguagem e
ação. Alguns momentos nessas correlações, entretanto, costumam ser identificados de modo
mais efetivo, como uma contribuição direta para a teoria, porque, além de identificarem a
questão central, ainda apontam para algum aspecto qualitativo que acabou sendo incorporado
no seu desenvolvimento conceitual. Assim, é comum, na história da TAF, a identificação de
suas raízes aos jogos de linguagem, a partir da formulação de WITTGENSTEIN (1979).101
Mais recentemente, certos autores têm derivado de Moore outros aspectos que lembram
alguns fundamentos da teoria, sobretudo aqueles que apontam para condições de sinceridade e

100
Não vamos, no presente capítulo, fazer uma apresentação sistemática da TAF. Grande parte dos seus
preceitos, do seu alcance e de suas críticas é amplamente conhecida. À medida que avançarmos na exposição,
deveremos, todavia, descrever alguns aspectos do seu funcionamento que se fizerem necessários.
101
O autor, nos parágrafos 2 e 7, mostra a importância de uma linguagem primitiva (uma linguagem onde uma
enunciação produz uma ação (cf. parágrafo 2) na sua correlação imediata com jogos de linguagem. Sobre este
segundo conceito ele escreve:
“(7)... Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por
meio dos quais as crianças aprendem uma língua materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem, e
falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem.
E poder-se-iam chamar também de jogos de linguagem os processos da denominação das pedras e da repetição
da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao brincar de roda.
Chamarei também de jogos de linguagem o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está
interligada.”(p. 10 e 12).
A correlação linguagem primitiva/jogos de linguagem reflete parte das preocupações que estão incorporadas na
TAF, ainda que de forma rudimentar. Em ambas as formulações o que está em questão, de modo primordial, é a
relação entre linguagem e ação. A nossa preocupação com as raízes da TAF será considerada a partir de Peirce;
por essa razão, apesar da importância, o registro sobre Wittgenstein assume esse formato documental.
171

que se relacionam ao chamado “paradoxo do Moore”, conforme citação de


WANDERVEKEN (1991). 102

Não vamos aqui, no entanto, reconstruir detalhes desse itinerário, porque nossa
preocupação com o traçado histórico sobre a teoria é a de buscar, na formulação peirceana do
pragmatismo, alguns elementos que sirvam para uma correlação com a TAF. Se alcançamos
uma proximidade conceitual entre as duas abordagens, asseguramos, em alguma extensão, que
a TAF possa vir a constituir-se como uma orientação operacional no campo do pragmatismo.
Em outros termos, o desafio de converter a concepção de um objeto em efeitos práticos
poderia ser efetivado por meio de mecanismos disponíveis no corpo da TAF. Nada, em
princípio, nos impede de ensaiar essa aproximação, mesmo porque, em função do que já
comentamos sobre o pragmatismo, ele parece figurar como uma região propícia ao
desenvolvimento dos atos de fala. Vejamos, pois, uma citação inicial de PEIRCE (1980), feita
a propósito de uma das afirmações − “o significado de efeitos práticos” − sobre a máxima
pragmática:

“31. Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta
? Em ambos os atos o agente se submete a conseqüências prejudiciais se
uma certa proposição não for verdadeira. Só que ao apostar espera que o
adversário se torne responsável pela verdade da proposição contrária; ao
que, ao fazer uma asserção, sempre (ou quase sempre) deseja que a
pessoa a quem se dirige aceite o que ele diz. Assim no vernáculo
“Apostarei” isto ou aquilo, é uma frase que expressa uma opinião
privada que não esperamos que os outros compartilhem , enquanto que
“você aposta” é uma forma de asserção que busca fazer com que o outro
acompanha o exemplo.” (p. 12)

O trecho acima nos introduz, diretamente, em diversas dimensões dos atos de fala, a começar
pela pergunta sobre a diferença entre fazer uma asserção e fazer uma aposta. Vamos tentar
esclarecer aspectos dessa questão, considerando algumas observações que Peirce apontou no

102
O autor assinala o seguinte fato sobre a importância do paradoxo de Moore: “Other examples of analytically
unsuccessful sentences which are not illocutionarily inconsistent are instances of Moore’s paradox, such as
“John, please come, I do not want you to come”. Utterances of such sentences are analytically unsuccessful
because a speaker who performs an illocutionary act expresses eo ipso the mental states corresponding to the
sincerity conditions. He cannot deny in the context of his utterance that he has the mental states that he
expresses in that very context without contradicting himself.” (p. 107). A importância de Moore, porém, não se
resume unicamente a esse fato, isto é, o da violação das condições de sinceridade, mas no geral à questão do
vínculo entre linguagem e ação.
172

trecho anterior e princípios da TAF. Não devemos tratar a pergunta formulada pela autor
apenas como uma especulação sobre o significado lexical de signos. A questão refere-se às
condições de realização dos dois atos mencionados − o próprio autor usa o termo atos na
seqüência − o que pode implicar enunciações, marcadas por algum tipo de conteúdo
proposicional de asserção ou de aposta. Essa primeira afirmativa propicia um discurso sobre
os diversos registros que aparecem no texto em análise. Vejamos cada um deles, em
particular.

a) “Qual a diferença entre fazer uma asserção e estabelecer uma aposta ?” Essa
pergunta aponta para a necessidade do reconhecimento de dois atos, cada um com
um ponto de realização103 particular. Assim, fazer asserção, independentemente
do uso de um verbo específico − ‘asseverar’, ‘asserir’... −, implica um ato do
locutor que reporta um certo estado de coisas e que o supõe verdadeiro. Por outro
lado, fazer aposta indica o ato de um locutor que se compromete com um
alocutário ao desempenho futuro de uma ação − a de pagar ou de receber uma
certa quantia, se o padrão contratual da aposta for moeda −, relativa aos efeitos
práticos decorrentes da concepção do objeto da aposta (por exemplo
vitória/derrota de um time). Comparando-se os dois atos em termos do seu ponto
de realização, podemos afirmar que o primeiro realiza-se no ponto assertivo e o
segundo no ponto comissivo.

b) “... Em ambos os atos o agente se submete a conseqüências prejudiciais se uma


certa proposição não for verdadeira.”. Essa observação aplica-se de modo
semelhante, mesmo considerando-se a diferença entre os atos descritos: no
primeiro caso, o locutor é ‘penalizado’ pela sua insinceridade quando reportar um
estado de coisas passível de ser contrariamente verificável pela observação do
alocutário; no segundo caso, o locutor será também ‘penalizado’ pela sua
insinceridade se se constatar uma discrepância entre o estado mental no momento
de fazer a aposta e a sua disposição subseqüente de não resgatar a dívida, caso
venha perder (mutatis mutandis, as mesmas condições devem ser impostas ao

103
Os termos técnicos pertencentes à TAF estarão sendo usados na exploração do texto de Peirce. Todos eles
foram descritos, de forma sistemática, nas seções ‘4.3.1.1 - Pragmatismo e direção de ajustamento’ e ‘4.3.1.2
173

alocutário, já que apostar é um ato comissivo que também compromete o


alocutário). As conseqüências a que Peirce se refere podem ser expressas, no
âmbito da TAF, pelo atendimento às condições de sinceridade que regem a
interlocução dos atos.

c) “...ao apostar espera que o adversário se torne responsável pela verdade da


proposição contrária;...”. Essa observação pode representar, em linhas gerais, o
que é denominado de condição preparatória104 na TAF. Assim, quando um
locutor, ao fazer uma aposta, diz ‘Aposto que o time x vai vencer’ as condições
preparatórias asseguram que o fato afirmado seja passível de realização num grau
razoável de probabilidade105, da mesma forma que, para o locutor, seria melhor
que ele, de fato, se realizasse. Contrariamente, para um alocutário, envolvido
nesse ato, as condições preparatórias precisam ser vistas de modo um tanto
diverso: o alocutário espera que uma probabilidade de não realização do ato seja
factível e que para ele seria melhor que não se realizasse106. Assim, a
responsabilidade do alocutário pela “verdade da proposição contrária” mostra,
pela ilustração sugerida, que, se proposição ‘P’ equivale a ‘...o time x vai
vencer’, a proposição contrária, ‘contra-P’, deve corresponder a ‘...o time x vai
perder’, pois é nessa proposição que o alocutário aposta. De fato, para o
alocutário a única verdade que lhe é benéfica é justamente aquela que implica a

Pragmatismo e características de uma força ilocucional’.


104
Apesar de termos optado por considerar a observação de Peirce como relativa à condição preparatória e não
à condição essencial, julgamos que um aposta seja viável porque os desafiantes pressupõem, no caso em análise,
que o seu time possa vencer. Tal suposição seria melhor caracterizada como condição essencial da aposta. Essa
condição, todavia, tem sido abandonada em favor da condição preparatória e da condição de sinceridade. Por
outro lado, o fato de o autor mencionar “... tornar-se responsável pela verdade...” abre a possibilidade de um
ajuste em termos das condições de sinceridade, por já estar apontando também para suas conseqüências e não só
para suas pré-condições.
105
O teor probabilístico das condições preparatórias de uma aposta ainda requer uma acuidade maior: o desafio
de uma aposta deve ser encarado pelo locutor, responsável imediato pela locução, somente quando as suas
chances de sucesso superam, digamos, os 50% ? E como fica o alocutário ? Aceita o desafio com probabilidades
mínimas ? Na prática, a discrepância numérica da chance de sucesso costuma ser administrada pelo pagamento
de quantias compensatórias: quanto menor a chance de cotação, maior o valor e vice-versa.
106
Comumente, as condições preparatórias são fixadas, com uma ênfase maior, para o locutor que é o
responsável imediato pela locução, sobre a qual pesa, de modo mais direto, essas condições. Aqui mostramos
como poderiam funcionar da parte do alocutário, para justificar a observação de Peirce.
174

realização do conteúdo de ‘contra-P’ e não do conteúdo de ‘P’, que interessa


como verdade ao locutor.

d) “Assim no vernáculo....exemplo.” As afirmações contidas nesse período


precisam ser ajustadas, em relação ao que foi comentado nos itens anteriores: os
dois exemplos citados “Apostarei” e “Você aposta” são ambos atos que se
realizam no ponto assertivo (embora apenas o segundo seja classificado pelo
autor como uma asserção). Não se trata, portanto, nas duas enunciações, do uso do
verbo apostar para fazer uma aposta − construir o ato comissivo da aposta − mas
tão somente do seu uso para descrever um estado mental (de coisas) que lembra o
conceito de aposta, por isso tratar-se de um ato assertivo.

Ao comentar os três primeiros itens acima, mostramos que o texto de Peirce aponta
algumas preocupações importantes para a compreensão de um ato de fala. Isolamos, em
particular, o ponto de realização de um ato, suas condições preparatórias e suas condições de
sinceridade. Cada um desses parâmetros contém na TAF um perfil conceitual que o faz
componente de uma totalidade que é a compreensão conceitual de um ato. No texto de Peirce,
se não encontramos uma especificidade teórica desses parâmetros, deparamos, ao menos, com
o registro intuitivo da sua presença como condição para práticas de linguagem. O valor que
atribuímos à aproximação entre as duas abordagens não consiste, por conseguinte, na
expectativa de um mapeamento conceitual de categorias; mas consiste em arregimentar, em
Peirce, as condições básicas que o autor coloca como condição para se construírem ações com
a linguagem. Nesse particular, seria importante arrolar dois outros momentos (entre muitos
outros), registrados pelo autor e ilustrativos dessa interação entre entre linguagem e ação. No
primeiro momento, ao discutir o alcance do pragmatismo como um instrumento para dirimir
certas controvérsias filosóficas, o autor completa (PEIRCE, 1980):

“O pragmatismo sustenta que ambos os adversários lavram no equívoco.


Atribuem sentidos diferentes às palavras, ou usam-nas sem qualquer
sentido definido. O que se deseja, então, é um método capaz de determinar
o verdadeiro sentido de qualquer conceito, doutrina, proposição, palavra,
ou outro tipo de signo. O objeto de um signo é uma coisa; o sentido outra.
O objeto é a coisa ou ocasião, mesmo indefinida, à qual o signo se há de
aplicar; o sentido é a idéia que ele liga ao objeto, tanto por via de mera
suposição, ou ordem, ou asserção.”( , p. 6)
175

O único método capaz de superar dúvidas, quando estas se fundam num uso inadequado de
signos, repousa nas virtudes do pragmatismo, isto é, na possibilidade de converter a
concepção de um objeto na totalidade dos efeitos que ele produz. Para justificar essa
correlação, Peirce sugere o desdobramento do signo em objeto − “...a coisa ou ocasião (...) à
qual o signo se há de aplicar...” − e em sentido − “...a idéia que ele liga ao objeto...” Essa
diferença entre o objeto de aplicação de um signo e seu sentido aproxima-se do aspecto geral
da estrutura de um ato de fala. Ajustando parte das informações de uma e outra abordagem,
poderíamos compará-las, a partir do seguinte esquema:

SIGNO = objeto (conteúdo do signo)


sentido (modalização desse objeto)

ATO = proposição (conteúdo do ato)


força ilocucional (modalização dessa proposição)

Assumindo a equivalência de um signo como um ato de fala, o exemplo analisado da aposta


pode ser usado para ilustrar essa aproximação: podemos admitir que o conteúdo ‘... o time x
vai vencer’, tanto representa o objeto de um signo como o de uma proposição. Quanto ao
sentido do signo, podemos dizer que ele assume o teor de uma aposta por ser a idéia que
adicionamos ao objeto em questão; esse mesmo sentido, em relação ao ato de fala, nada mais
é do que a força ilocucional, adicionada à proposição, devido ao uso de um performativo −
‘Aposto...’ −. Muitos outros sentidos poderiam ser atribuídos ao objeto em análise, caso, por
exemplo, usássemos outros performativos, avaliadas circunstâncias específicas para o seu
funcionamento em relação às condições de conteúdo proposicional, às condições
preparatórias, dentre outras107.

107
A correlação desse conteúdo proposicional com outras forças ilocucionais requer uma análise mais específica
em torno das condições preparatórias e das condições de sinceridade. Por exemplo, a enunciação ‘Prometo que
o time x vai vencer’ representa, certamente, uma promessa defeituosa (ou não chega a ser uma promessa),
porque os atos que supõem uma ação bem sucedida não estão, na sua totalidade, ao alcance do locutor (violação
das condições preparatórias), o que demonstraria sua disposição de prometer sem poder cumprir o que foi
enunciado (violação das condições de sinceridade), a menos que tudo estivesse ‘combinado’ com o adversário e
com o juiz. Para conteúdos proposicionais muito restritivos apenas a força ilocucional expressiva, que mostra
uma atitude proposicional do locutor frente a um estado de coisas, apresenta uma flexibilidade maior: ‘Acho que
o time x vai vencer’, ‘Espero que o time x vença’ etc.
176

No segundo momento, o texto de Peirce revela uma outra interface com a TAF no que
se refere à suposição de que um ato de fala seja a menor unidade significativa do processo
enunciativo e que, apesar de menor, concentre um número complexo de pressuposições, de
ações e de conseqüências incorporadas numa prática discursiva. O ato de fala é assim uma
unidade complexa, onde se concentram todas as condições lingüísticas (as condições de
conteúdo proposicional) e todos os detalhes contratuais da interlocução (convencionais ou
intencionais), que regulam as práticas discursivas. Refletindo sobre uma parte desse processo,
PEIRCE (1980) comenta:
“Qual é a prova de que os efeitos práticos de um conceito constituem a
soma total do conceito ? O argumento sobre que se apoiava a máxima que
‘crença’ consistia em estar deliberadamente preparado para adotar a
fórmula crida como guia da ação. Se esta for a natureza da crença, a
proposição em que se crê é uma máxima de conduta. Creio que é bastante
evidente.” (p. 11).

Na pergunta inicial do trecho acima, poderíamos supor uma equivalência do conceito (de um
signo) com a dimensão conceitual de um ato de fala. Assim, em se tratando de uma ordem, a
sua dimensão conceitual contém os efeitos práticos decorrentes de uma tarefa, executada sob
ordem. Se a mesma tarefa for executada sob um modo de realização que não o da ordem, as
implicações dos efeitos decorrentes dessa execução determinam um outro quadro conceitual.
A propósito, a comparação entre uma ordem e uma súplica pode ilustrar a questão: elas
convergem quanto ao ponto de realização − ambas realizam-se no ponto diretivo −, mas
divergem quanto ao seu modo de realização, pois a ordem pressupõe uma relação hierárquica
superior do locutor frente ao alocutário, enquanto uma súplica inverte essa relação e ainda
requer uma condição adicional – a humildade do locutor na formulação do ato –, mesmo que
se trate do desempenho de uma mesma tarefa. Os efeitos práticos podem indicar uma série de
fatores que fazem uma diferente da outra: a morosidade/rapidez na execução, a realização
completa/incompleta das tarefas ...

Por outro lado, a idéia de um estado mental determinante para aspectos das condições
preparatórias, das condições essenciais e das condições de sinceridade na execução de um
ato pode ser aproximada à função que Peirce atribui à crença. Assim, se a “fórmula crida” é o
“guia da ação” e “se a proposição em que se crê é uma máxima de conduta”, então, o
desempenho de uma ação requer esse estado mental que determina atitudes do locutor e do
177

alocutário. Analisemos certos padrões de uma promessa: ao proferi-la, o locutor compromete-


se com a obrigatoriedade das tarefas nela implicadas (condição de sinceridade) e só pode fazê-
lo porque ele, locutor, julga factível realizar o conteúdo descrito na proposição (condição
preparatória). O locutor só pode cumprir essas duas condições, se ele crê na proposição
contida no ato e assumi-la como “máxima de conduta”, na execução do ato de promessa.
Numa dimensão interativa, uma promessa requer ainda do seu alocutário uma condição
preparatória: ele precisa ‘crer’ que o conteúdo proposicional lhe será benéfico.

Os fatos que foram acima reconstruídos com relação à promessa podem ser estendidos
a outros pontos de realização de uma força ilocucional, com características próprias. Na
configuração precisa dos componentes de uma força, entendidos por Peirce na dimensão de
uma crença, por exemplo, situam-se as maiores dificuldades de formulação conceitual de um
ato de fala, tal como da avaliação dos seus efeitos. A razão disso é que um ato de fala não se
compõe apenas de elementos lingüísticos, mas de elementos outros, muitos situados no
território da crença, como um conhecimento tácito e intuitivo dos locutores, nem sempre
captáveis, com a precisão teórica desejável, nos modelos formais disponíveis. O
empreendimento da TAF em procurar sistematizar esses outros elementos como, por exemplo,
desdobrando uma idéia geral de crença em componentes integrantes das condições de
sinceridade e das condições preparatórias, faz dela, TAF, um modelo relevante para assegurar
algum avanço sistemático, isto é, conceitual, formal, operacional, da concepção de
pragmatismo de Peirce. Se o grande desafio que a TAF enfrentou (e enfrenta) é o de construir
um modelo que expresse, com algum grau de racionalidade, as condições relativas ao ‘fazer
coisas com palavras’, isto é, ao conhecimento que temos da língua e a sua transformação em
ações ordinárias, podemos admitir que não existe qualquer descompasso entre a abordagem
dos atos e os propósitos reivindicados por Peirce para o pragmatismo, conforme evidencia a
observação seguinte (PEIRCE, 1977):

“Ora, o traço mais notável da nova teoria [pragmatismo] era seu


reconhecimento de uma conexão inseparável entre a cognição racional e o
propósito racional: e foi essa consideração que determinou a preferência
pelo nome pragmatismo.” (p. 285)

Peirce confirma, pois, a idéia de que o pragmatismo é o locus que acolhe as conexões que
abrangem desde a cognição racional até o propósito racional. Resta apenas saber, no
178

conjunto da formulação do autor, que categorias devemos atribuir à cognição racional:


certamente ela deve incluir parte do processo que se estende da primeiridade à terceiridade;
enquanto propósito racional, por sua vez, deve responder pelo pragmatismo. Na seção
seguinte, vamos avaliar, através de alguns aspectos da TAF, como seria possível conjeturar
sobre um entendimento racional das nossas ações e dos nossos comportamentos. Que
elementos podemos, então, extrair dessa teoria, de modo a compreender uma forma de
organização possível, quando usamos palavras para agir ?

4.3.1.1 - Pragmatismo e direção de ajustamento

Na seqüência, vamos selecionar alguns momentos da TAF para dicutir parte dessa
racionalidade que foi construída como tentativa de explicar a relação entre linguagem e ação.
Para alguns adeptos da teoria, o fato primordial na compreensão entre linguagem-ação resulta
na possibilidade de se poderem especificar formas de orientação que regulam a intervenção de
uma sobre a outra. De início, descarta-se uma possibilidade unidirecional, situando ou
linguagem ou ação como origem de um processo de causalidade. Logo, é preciso isolar certas
circunstâncias em que a linguagem molda a existência de padrões de ação e outras em que a
ação determina formas de construção lingüística. Para avaliar essa relação de causalidade,
SEARLE & VANDERVEKEN (1983.) ressaltam a importância do conceito de “direção de
ajustamento”, como capaz de justificar quatro padrões distintos de direcionalidade. Segundo
os autores:

“There are four and only four directions of fit in language:

1.The word-to-world direction of fit.


In achieving success of fit the propositional content of the illocution fits an
independently existing state of affairs in the world.

2.The world-to-word direction of fit.


In achieving success of fit the world is altered to fit the propositional
content of the illocution.
179

3.The double direction of fit.


In achieving success of fit the world is altered to fit the propositional
content by representing the world as being so altered.

4. The null or empty direction of fit.


There is no question of achieving success of fit between the propositional
content and the world, because no general success of fit is presupposed by
the utterance.

The five different illocutionary points exhaust the different possible


directions of fit between the propositional content and the world.” (p.53-4)

Para os autores, a relação entre linguagem e ação pode ser ajustada em apenas quatro direções,
cada uma das quais qualificando a orientação que devemos atribuir aos componentes da
relação. É claro que as relações determinadas, antes de mais nada, traduzem-se (e saturam-se)
por possibilidades lógicas do arranjo causal entre os componentes: ou a linguagem, ou a ação
assumem precedência causal − itens 1 e 2 acima − , ou ambas assumem, reciprocamente, um
valor causal − item 3 −, ou inexiste uma relação causal entre elas − item 4 −108.Essas quatro
possibilidades lógicas acabam incorporando valores ontológicos que se fazem expressar pelos
pontos de realização de uma força ilocucional. Vejamos, portanto, cada um dos itens acima,
transcritos na forma de uma direção de ajustamento e nela incorporando forças ilocucionais
correspondentes:

108
A noção de realidade aqui preconizada pelos autores não parece ser discordante daquela assumida por Peirce.
Ao discutir a doutrina do pragmatismo em relação ao idealismo hegeliano, PEIRCE (1977) escreve: “Ora, o
motivo de aludir àquela teoria aqui é que deste modo podemos iluminar acentuadamente a posição que o
pragmaticista mantém e que deve manter (...), a saber, a posição de que a terceira categoria − a categoria do
pensamento, representação, relação triádica, mediação, terceiridade genuína, terceiridade enquanto tal − é um
ingrediente essencial da realidade, e todavia por si mesma não constitui a realidade, uma vez que esta
categoria (...) não pode ter um ser concreto sem a ação, como um objeto separado sobre o qual operar seu
controle, assim como a ação não pode existir sem o ser imediato do sentimento sobre o qual atuar. A verdade é
que o pragmaticismo está intimamente ligado ao idealismo absoluto hegeliano do qual, no entanto, se separa
por sua vigorosa negação de que a terceira categoria (...) baste para constituir o mundo ou, mesmo, que seja
auto-suficiente.” (p.298).
180

4.3.1.1.1 - Direção de ajustamento: PALAVRA-A-MUNDO

Na direção de ajustamento PALAVRA-A-MUNDO109, o conteúdo proposicional de uma


enunciação ajusta-se a um estado de coisas existente de forma independente da enunciação
utilizada para representá-la. Em outras palavras, por essa direção, um estado de coisas pré-
existe ao ato de enunciá-lo e este funciona apenas como um instrumento para reportar aquele.
A realidade é, pois, relativamente autônoma, já que se mostra com uma feição acabada, e
apenas usamos palavras para representá-la. Assim, na direção PALAVRA-A-MUNDO é a
linguagem que se orienta para ações, já que estas existem como um estado de coisas
independente. Inserem-se nesta discussão os atos de fala produzidos com a força ilocucional
assertiva, fazendo com que uma asserção seja dependente de um estado de coisas, que ela em
geral representa. Apliquemos parte das observações acima no seguinte exemplo:110

(01) “Eu já fui imbatível e perdi” 111

Embora o ato não registre um verbo performativo, podemos admitir que se trata de um ato
assertivo, por retratar um estado de coisas − o fato de o locutor ter sido considerado imbatível
e ao mesmo tempo ter perdido (uma eleição para presidente) − que independe da sua
enunciação. Em outros termos, o valor que era atribuído ao locutor e o fato de ter sido
derrotado transcorreram num período anterior ao proferimento do ato, logo uma direção de
ajustamento PALAVRA-A-MUNDO, já que são palavras que se ajustam a um estado de coisas do
mundo. No quadro da análise do pragmatismo, podemos admitir que a concepção do objeto é
a asserção feita pelo locutor acerca de uma situação por ele vivenciada, enquanto efeitos
práticos dele correntes, além da indicação da revista, podem ser aferidos: (i) como mera

109
A relação proposta pelos autores para os termos PALAVRA e MUNDO, ao menos na versão que demos para
o português, pode ser entendida, sem prejuízo conceitual, de duas formas: (a) ou são as PALAVRAS,
emergência representativa, que se orientam na direção do MUNDO, pré-existência ontológica, ou é o MUNDO
que provoca uma estruturação de PALAVRAS; (b) ou é o MUNDO, emergência existencial, que se orienta na
direção de PALAVRAS, pré-existência representativa, ou são as PALAVRAS que provocam uma estruturação
do MUNDO.
110
Como afirmamos, anteriormente, não vamos fazer uma análise exaustiva dos atos que serão exemplificados ao
longo dessa exposição. Estamos apenas fazendo um traçado que seja mais representativo das questões em
análise, no caso, para mostrar os atos como um instrumento de operacionalização do pragmatismo.
111
Excepcionalmente e para não sobrecarregar o corpo do texto com documentações e descrições datadas,
estamos fazendo indicações, quando necessárias, sobre os exemplos em notas de rodapé. Aqui se trata de uma
afirmativa de Luís Inácio Lula da Silva sobre as perspectivas eleitorais de FHC (VEJA: 24-12-97, p. 39).
181

constatação do autor da frase que, embora estando na frente em duas eleições, tenha perdido
as duas; (ii) como uma autocrítica do autor por ter confiado em pesquisas; (iii) como uma
verdade reportada pelo locutor, por se tratar de um fato de conhecimento público; (iv) como
uma observação do autor sobre o fato de que eleição não se ganha na véspera; (v) como uma
crítica do autor ao favoritismo conferido a algum candidato, que não ele próprio...

4.3.1.1.2 Direção de ajustamento: MUNDO-A-PALAVRA

Na direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, um estado de coisas é criado ou


modificado pela ação do conteúdo proposicional de uma enunciação. Em outros termos, o
mundo é alterado de modo a adequar-se ao conteúdo proposicional que é proferido. A
enunciação independe do estado de coisas e até mesmo pode ser usada para fomentar uma
expectativa sobre sua existência. Uma força ilocucional qualquer que se realize no ponto
comissivo ou no ponto diretivo possui uma direção de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA,
porque, respectivamente, nem uma promessa, nem uma ordem, por exemplo, existem, sem
que antes exista uma enunciação que tenha tornado uma e outra possíveis. De modo mais
efetivo, podemos dizer que uma ordem e uma promessa são bem sucedidas se o mundo é
alterado, de tal modo a se ajustar ao conteúdo proposicional que os atos respectivos anunciam.
Vejamos, na seqüência, um primeiro exemplo que servirá para ilustrar os fatos acima,
relativos a uma promessa:

(02) “Num prazo de 120 dias, não haverá mais buracos.” 112

O proferimento acima constitui um ato realizado com uma força ilocucional comissiva e no
modo de realização de uma promessa.113 Como ato de fala, pela direção de ajustamento que
implica, o seu sucesso pressupõe a necessidade de uma alteração no mundo, isto é, que ‘os

112
Proferimento feito por Fernando Henrique Cardoso, por ocasião do lançamento de projeto de recuperação de
rodovias federais (VEJA, 24-12-97, p. 38).
113
A condição de sinceridade de uma promessa implica que o locutor ao proferir o ato se responsabilize pelas
ações conseqüentes de sua realização. Em se tratando, porém, de ações inseridas no rol de atividades públicas, o
locutor é apenas o porta-voz dessa responsabilidade assumida.
182

buracos da realidade para a qual ele aponta sejam consertados’. A importância da direção
de ajustamento MUNDO-A-PALAVRA, no proferimento de tal ato, é o fato de ele primeiro
instituir a realidade discursiva para possibilitar que venha ser um fato a alterar o mundo.
Quanto a uma correlação com o pragmatismo, o objeto concebido faz-se representar pelo
conteúdo proposicional − ‘tapar os buracos em 120 dias’ −, associado a um sentido que
damos a ele, o de promessa. Os efeitos práticos decorrentes desse ato, além da possibilidade
de uma crença/descrença nos fatos prometidos, só podem ser aferidos em termos da alteração
ou não do estado de coisas, a partir do proferimento do ato.

Um outro ato a ser comentado, refere-se à aplicação das propriedades da direção de


ajustamento MUNDO-A-PALAVRA a uma força com realização no ponto diretivo, conforme
exemplo abaixo:

(03) “Ninguém desliga essa moça da tomada ?”114

A força diretiva em (03) contém o modo de realização de uma pergunta, que prevê uma ação
futura a ser desempenhada pelo alocutário. A existência de tal atitude, isto é, a disponibilidade
de se desligar a moça, só passou a existir depois que o ato foi proferido; em outras palavras, o
proferimento de (03) cria condições para que um estado de coisas seja alterado no mundo
possível da esfera dos interlocutores. O ato ainda institui uma realidade discursiva para que,
na seqüência, a alteração de uma estado de coisas seja factível. A inserção desses fatos numa
dimensão do pragmatismo acontece de modo semelhante ao comentário referente à promessa,
fazendo-se os devidos ajustes.

4.3.1.1.3 Direção de ajustamento: DUPLA DIREÇÃO

Na DUPLA DIREÇÃO de ajustamento, um estado de coisas de um mundo possível é


alterado para se ajustar ao conteúdo proposicional de um proferimento que o anunciou −
MUNDO-A-PALAVRA −, da mesma forma que o conteúdo proposicional desse proferimento
representa o mundo como já estando assim alterado na perspectiva do seu locutor − PALAVRA-

114
O exemplo reporta um comentário de Antônio Skarmeta, escritor chileno, depois de assistir a um show de
Elba Ramalho (VEJA, 24-12-97, p. 53).
183

A-MUNDO −. Assim, anula-se a precedência de linguagem sobre ação e vice-versa, antes


considerada como fundamento para direções de ajustamento precedentes. Uma força
ilocucional que se realiza no ponto declarativo representa instâncias de aplicação da DUPLA
DIREÇÃO. No geral, as marcas mais visíveis de seu funcionamento fazem-se presentes em
situações de linguagem sob as quais pesam convenções institucionalizadas de usos da língua.
Tomadas de depoimentos, de juramentos, fórmulas rituais para abertura de sessões de
trabalho, proferimentos de consagração de cerimônias, no geral, materializam a existência de
um ato de fala com DUPLA DIREÇÃO de ajustamento. Consideremos o ato de fala abaixo,
onde o locutor define , sem utilizar a forma performativa, um ecocidadão:

(04) “Ecocidadão é o cidadão internetizado, celularizado e globalizado” 115

Toda definição, como um ato declarativo, destina-se a legislar ou sobre o universo da


linguagem, ou em particular sobre um universo de coisas. A partir da definição de um termo,
uma realidade conceitual torna-se a ele associada e pode ser considerada, do ponto de vista do
locutor, como se já existisse. Assim, ecocidadão, na seqüência do proferimento do ato,
assume para os alocutários, como definição, o valor proposicional expresso. Os efeitos
produzidos representam a possibilidade de uma regulamentação do termo em análise, por se
tratar de uma autoridade pública, com algum poder de intervenção e de normatização de
conceitos afeitos à sua área de atuação.

Um outro exemplo que reproduz, de modo mais cerimonial, a importância do ato


declarativo pode ser ilustrado da seguinte forma:

(05) “Havendo quorum regimental, declaro aberta a sessão. Passo a palavra


ao senador...”116

Os atos acima, quando anunciados por uma autoridade, investida de direitos para deles fazer
uso, tanto altera um estado de coisas − até antes do seu proferimento não havia sessão aberta

115
Ato proferido pelo ministro do meio ambiente, Gustavo Krause (VEJA: 24-12-97, p. 46).
116
Ato proferido pelo presidente do Congresso Nacional, Antônio Carlos Magalhães, em sessão realizada no dia
08-01-98 (TV-Senado, 1998).
184

−, como também o faz pelo fato de o universo já poder ser assim alterado na perspectiva do
locutor − que supõe a existência do fato sessão aberta para dar início aos trabalhos.
Raciocínio semelhante pode ser desenvolvido para o ato seguinte, quando a possibilidade de
outros discursarem depende do ato geral (sessão aberta) e de atos singulares que continuarão
instituindo o lugar da fala do outro. Os objetos conceituais que os dois atos criam − sessão
aberta e cessão da palavra −, permitem derivar todo um conjunto de efeitos decorrentes de
proferimentos individuais, de apartes, de discussões que só se tornaram possíveis em razão de
uma realidade objetivamente criada pelos atos inaugurais.

4.3.1.1.4 Direção de ajustamento: DIREÇÃO NULA

Na DIREÇÃO NULA de ajustamento não se coloca em questão qualquer dúvida sobre o


sucesso ou o fracasso entre o conteúdo proposicional e o estado de coisas representado: a
verdade deste é pressuposta pelos interlocutores integrantes do ato. Forças ilocucionais que se
realizam no ponto expressivo não se submetem ao fato de o conteúdo proposicional dever
adequar-se à realidade, nem ao fato de que a realidade deva ser modificada para ajustar-se a
ele, conteúdo proposicional, mas expressam, geralmente, atitudes proposicionais do
locutor diante de um estado de
coisas. Atos representativos para desculpas, agradecimentos, congratulações, bem como
atitudes proposicionais, para qualquer forma de conteúdo, materializam a DIREÇÃO NULA de
ajustamento. Consideremos os fatos expostos na análise do exemplo abaixo:

(06) “É mais fácil o Corcovado voar do que o câmbio ser mudado.” 117

A atitude proposicional, contida no ato acima, − “É mais fácil (o Corcovado voar)...” −,


descarta qualquer possibilidade de avaliação da verdade do fato que ele reporta, isto é, a
mudança do câmbio. É lógico que o inusitado da atitude proposicional − comparando a
mudança de câmbio com a possibilidade de o Corcovado voar − recusa a mudança de câmbio,
mas isso não está em julgamento para os alocutários, por se tratar de uma impressão do

117
O ato acima foi anunciado por Francisco Dornelles, ministro da Indústria e Comércio, a propósito de o
governo mudar o câmbio em razão da crise asiática (VEJA: 24-12-97, p. 36).
185

locutor sobre o fato em pauta. No exemplo seguinte, podemos notar uma situação um tanto
diferente:

(07) “E a rainha que receba o meu beijo.” 118

O ato de agradecer explicitado em (07) representa a DIREÇÃO NULA de ajustamento, porque o


conteúdo proposicional nele contido − um beijo como agradecimento − não vale como
parâmetro de julgamento para o seu sucesso ou insucesso. Nem ele reporta, nem engendra um
estado de coisas passível de avaliação, isto é, qualquer um pode agradecer sem que esteja em
julgamento a autenticidade ou não do ato. Ele apenas traduz o estado mental do locutor; daí a
realização da força expressiva, de fazer uso de uma forma convencional de agradecimento. É
claro que, embora sendo corriqueira, a conveniência do ato pode ser questionada em razão de
alguma quebra de protocolo, em se tratando do destinatário em questão, se bem que o locutor
o tenha feito de forma indireta “receba...”. Todos os efeitos que podemos admitir para a força
expressiva decorrem do caráter de suspensão de qualquer orientação entre linguagem e ação: o
ato ressalta o efeito maior de se assegurar a expressividade do locutor; o que vale é a forma
como ele encara uma realidade qualquer.

4.3.1.2 Pragmatismo e características de uma força ilocucional 119

As observações que acabamos de desenvolver permitiram mostrar como podemos, no


vasto campo do pragmatismo, definir alguns instrumentos capazes de justificar os objetos e os
efeitos tal como concebidos por Peirce. A princípio, não podemos supor o pragmatismo como
uma instância indiferente ao teor conceitual desenvolvido nas três tópicas, descritas nos
capítulos I, II e III . Ao contrário, o pragmatismo absorve os princípios conceituais supostos e
pretende que as ações sejam compartilhadas pelo mesmo teor de racionalidade admitido.
Resulta desse compromisso, a necessidade de o pragmatismo mostrar, conforme sugere

118
Ato proferido por Pelé, agradecendo a rainha Elizabeth II pelo título de cavaleiro do império britânico
recebido (VEJA: 24-12-97, p. 44).
119
O conceito central da TAF pode ser representado pela força ilocucional, simbolizada por F(P), onde F é uma
força ilocucional e P um conjunto de proposições sobre as quais a força atua. Além do mais, uma força contém
seis componentes básicos, a saber: ponto de realização, modo de realização, condições de conteúdo
proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e grau de intensidade das condições de
sinceridade.
186

PEIRCE (1890, p. 5), “a maneira como o conhecimento (saber racional) está relacionado
com a ação humana ou conduta (finalidade racional)”. É por essa razão que buscamos, até o
momento, justificar a construção dessa “finalidade racional”, através da TAF, porque
supomos ser ela um modelo que tem demonstrado preocupação em estruturar um quadro de
categorias conceituais, capazes de estreitar a correlação entre a linguagem e a experiência
humana, conforme aponta VANDERVEKEN (1990, p. 5) “The conclusions of the book are
transcendental. They state universal laws of language use and comprehension that reflect the
a priori forms of thought and of experience of human speakers.

Desconsiderando, no momento, as dificuldades com que a própria TAF se confronta,


podemos apontar, além dos já mencionados, alguns outros aspectos dessa teoria que fazem
dela um modelo a ser contemplado na discussão do pragmatismo. O desafio pressuposto,
nesse cotejo entre as duas abordagens, decorre da afirmação de Peirce, considerando o
território do pragmatismo como o lugar de emergência de condutas, de comportamentos que
expressam uma finalidade racional, resultante de todo um processo de construção do
conhecimento. Perceber, formular e representar constroem uma racionalidade capaz de
moldar todo o nosso processo de condutas e os efeitos dele derivados. Se a nossa preocupação
nos capítulos precedentes foi justamente estreitar uma conexão entre os fatos considerados por
Peirce e algumas questões formuladas pela lingüística, especificamente no campo da
semântica, julgamos que essa aproximação com a TAF, ainda que não seja ela uma
abordagem lingüística restrita, torna-se natural, pois nela vamos encontrar componentes
discursivos desejáveis para nossa discussão complementar. Vamos selecionar apenas cinco
aspectos fundamentais da teoria:

4.3.1.2.1 Pragmatismo e pontos de realização de uma força ilocucional

A nossa experiência com a linguagem, numa dimensão interativa, compõe-se de um


conjunto muito extenso de formas discursivas que ora reportam fatos, ora comprometem o
locutor com o desenvolvimento de tarefas, ora compelem o alocutário à realização ações. Se
o conjunto dessas atividades, apesar de sua diversidade, se faz constitutivo do campo do
pragmatismo, então, admiti-lo numa dimensão racional significa determinar uma organização
187

objetiva do nosso comportamento discursivo. Este parece ser um dos méritos fundamentais
da TAF, ou seja, propor critérios para uma estruturação possível de toda a atividade
fundamental de uso da linguagem por um falante, diante de um conjunto de procedimentos, à
primeira vista, desordenado e caótico e classificando essa atividade em cinco pontos de
realização. Alguns detalhes desses pontos já foram focalizados, quando desenvolvemos as
quatro direções de ajustamento, não havendo necessidade de reproduzi-los na seqüência. 120

Numa perspectiva mais geral, todavia, podemos dizer que a estruturação que os pontos
de realização de uma força ilocucional permitem organizar fundamenta-se na seleção
alternativa de dois enfoques: a saber, o enfoque do estado de coisas e o enfoque dos
interlocutores. No primeiro caso, quando a organização enunciativa centraliza-se num estado
de coisas, podemos ter duas orientações: uma que pretende ser uma intervenção objetiva,
reportando para a linguagem um estado de coisas, representado como supostamente
verdadeiro; outra que possibilita marcar a posição do locutor frente ao estado de coisas, no
qual pretensões à verdade devem ceder lugar a pretensões à expressividade. O primeiro caso
expressa o ponto assertivo e o segundo alude-se ao ponto expressivo. Por outro lado, quando a
ênfase recai sobre os interlocutores, podemos também estabelecer duas orientações: uma em
que o locutor se responsabiliza pela execução de tarefas futuras que o seu ato postula; outra
em que o alocutário é que se responsabiliza pelo cumprimento de ações futuras. No primeiro
caso, temos um ato de fala realizando-se no ponto comissivo e no segundo, no ponto diretivo.
Finalmente, ressaltamos uma circunstância discursiva em que o ato é utilizado, por um
locutor, instituído às vezes de um poder de legitimação, para construir certo estado de coisas,
a partir do qual outras ações subseqüentes tornam-se possíveis. Trata-se de um ato de fala com
realização no ponto declarativo. 121

Pensamos que essa organização, ainda que possa apresentar dificuldades operacionais
pelo teor de desdobramento que devemos conceber para alguns atos, constitui um padrão
importante para justificarmos o que se pode, na formulação de Peirce, entender por uma

120
Embora tenhamos utilizado, em alguns momentos, os conceitos básicos da TAF, não pudemos tratá-los de
modo particular. Na seqüência, estaremos desenvolvendo, numa forma analítica mais apurada, o seu valor
específico na teoria.
121
Análise de exemplos e situações representativos de cada de um desses pontos de realização, já foi mostrada na
seção 4.3.1.1.
188

“finalidade racional” associada às ações humanas. Grande parte das interações que
produzimos, visando a objetivos associados à realização de um ponto, possui um padrão de
aceitação relativamente estável e, onde quer que haja dificuldade, estamos sempre aptos a
sugerir ajustes necessários. Uma ordem implica compromissos éticos na sua realização, o que
não impede que muitas ordens sejam antes avaliadas nos seus aspectos constitutivos pelas
partes integrantes do processo, muitas podem vir a ser até mesmo repelidas. É também nessa
possibilidade de ajustamento prático de sua execução, se ela não for consensual, que reside a
importância da TAF que, ao propor critérios básicos, faculta também algum tipo de
acomodação, acordada pelos interlocutores. Na extensão, portanto, das conseqüências
estruturais que o ponto de realização pode representar para nossas ações, é que pensamos ser a
TAF um instrumento adequado a justificar o “propósito racional” ou a “finalidade racional”
que Peirce circunscreve ao pragmatismo.

4.3.1.2.2 Pragmatismo e modos de realização de uma força ilocucional

O quadro acima delineado para o ponto de realização projeta uma visão muito genérica
do comportamento lingüístico: o nosso universo de práticas de linguagem distribui-se por
cinco pontos, englobando uma pluralidade inominável de formas que usamos para intervir em
diversas circunstâncias. Se o ponto de realização responde apenas por esses cinco
agrupamentos de atos, o modo de realização de um ponto se responsabilizará por uma
abertura que possibilita contemplar e classificar essa pluralidade de usos refletidos na fala. De
fato, quando nos aventamos a desempenhar alguma tarefa, não o fazemos de uma forma
única, ou seja, podemos nos comprometer com o alocutário de modo efetivo, ou podemos
apenas acenar-lhe com a expectativa de execução de um ato, ou ainda podemos fundamentar
esse compromisso numa perspectiva do próprio locutor. Da mesma forma, podemos mostrar a
nossa convicção com a verdade de um estado de coisas de modo mais ou menos seguro; como
podemos esperar uma credibilidade maior ou menor da parte do alocutário... Essa
variabilidade de nuanças e detalhes que podemos agregar a um conteúdo proposicional
qualquer, no momento da execução de um ato num ponto de realização específico,
denominamos de modo de realização de uma força ilocucional (naquele ponto). O modo de
realização nada mais é, portanto, do que uma especificação, uma especialização, em razão de
189

circunstâncias próprias, da maneira pela qual o ponto de realização de uma força ilocucional
deva ser desempenhado, para assegurar o sucesso de um ato de fala.

O modo de realização, pela pluralidade de formas com que pode ser executado,
decorre de particularidades que se relacionam aos integrantes do processo enunciativo, ao
conteúdo proposicional e à utilização de formas lingüísticas próprias. Considerando-se, por
exemplo, o primeiro aspecto − integrantes do processo enunciativo −, podemos conceber que
a especificação de um modo para o ponto diretivo requer uma avaliação direta do grau de
hierarquia entre locutor e alocutário: a superioridade hierárquica do locutor sobre o alocutário
determina o modo-ordem; a superioridade hierárquica do alocutário sobre o locutor possibilita
o modo-súplica122; uma relação equiparada entre ambos produz o modo-pedido.123 Em relação
ao segundo aspecto − conteúdo proposicional −, a determinação do modo para o ponto
comissivo, em muitos casos, pode exigir uma avaliação sobre os fatos descritos pela
proposição. A diferença entre um modo-promessa e um modo-desejo implica uma restrição
maior para o que se pode prometer; no entanto, não é importante determinar qualquer limite
no conteúdo proposicional para o modo-desejo do falante, embora nem todo desejo possa ser
convertido no modo-promessa. Uma promessa, para ser bem sucedida, requer que o conteúdo
proposicional seja passível de desempenho pelo locutor, requer também que esse mesmo
conteúdo seja favorável a quem o ato se destina. Em contraposição, nenhum dos dois fatos é
relevante para julgar adequação de um desejo. Quanto à questão da forma lingüística,
podemos afirmar que ela se torna importante para o modo, por ser ela o seu instrumento
material de representação. Assim, todos os exemplos acima podem ser traduzidos por formas
verbais como: ‘ordeno P’, ‘suplico P’, ‘peço P’, ‘prometo P’, ‘desejo P’, que são
tradicionamente conhecidas como verbos performativos.124 Além disso, existe ainda uma
multiplicidade de outros padrões lingüísticos (advérbios, expressões adverbiais) que

122
O modo-súplica implica também uma condição preparatória adicional, isto é, a forma humilde com que o
locutor dirige-se ao alocutário, como complemento dessa inversão hierárquica de papéis.
123
Mencionamos apenas os dois extremos determinados pela relação hierárquica e um caso intermediário.
Entretanto, cada um dos intervalos comporta inúmeras outras possibilidades de especificação do modo.
Igualmente, os termos que usamos para apontar essa escala de realização dos modos não tem um caráter
normativo; outros como ‘comando’, ‘solicitação’, ‘imploração’ poderiam ser usados.
124
Na história dos atos de fala, houve um momento em que os verbos performativos foram considerados
essenciais à sua análise. Eles continuam sendo importantes, mas um ato de fala não pode ser estruturado a partir
da sua presença, porque existem atos sem a presença do performativo (provavelmente a maioria é assim
construída) e quaisquer desses verbos podem apresentar usos não-performativos.
190

contribuem para a demarcação do modo. Avaliemos alguns detalhes sobre o funcionamento do


modo de realização, a partir de exemplos:

(08) “Se a emenda passar, prometo fazer roleta-russa com um revólver


carregado com seis balas.” 125

A enunciação acima ilustra um ato de fala que, em razão da presença do verbo ‘prometer’, na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo, credencia-se como representativo de
uma força ilocucional que se realiza no ponto comissivo e no modo-promessa, com a restrição
imposta pela condicional “Se a emenda passar..” . Vejamos, então, de forma sumária,
condições adicionais que podem fazer de (08) um ato de promessa bem sucedido ou não:126

a) condição de conteúdo proposicional: uma promessa requer, como condição de


conteúdo proposicional, que o fato relatado expresse tarefas a serem
desenvolvidas num tempo futuro em relação ao da enunciação. De fato, ‘fazer
roleta-russa...’ descreve uma ação futura a ser desempenhada pelo locutor, o que
satisfaz a promessa na condição em análise;

b) condição preparatória: toda promessa exige, como condição preparatória, o


atendimento a dois preceitos: (i) que a ação a ser desempenhada esteja ao alcance
do locutor e não faça parte do curso normal das atividades que desempenha; (ii)
que os fatos conseqüentes da sua execução sejam favoráveis aos destinatários em
questão. No caso em análise, podemos assumir que (i) aparece como plenamente
atendido, porque “fazer roleta-russa...” é passível de execução por um locutor e
não se inclui entre os seus hábitos comuns; igualmente, (ii) podemos supor
também alcançado, por se tratar, digamos, de uma autocrítica do locutor, de tal
forma que as tarefas prescritas sejam mesmo favoráveis a algum alocutário;

125
O ato acima foi proferido por Paulo Maluf, a respeito da perspectiva de aprovação da emenda eleitoral sobre
reeleição, em janeiro de 1997. (VEJA: 24-12-97, p. 38).
126
O fato histórico de a promessa não haver se efetivado não é relevante para uma análise das suas condições de
possibilidade. Afinal, o papel da teoria não é o de prover atestados documentais da realização histórica de um ato
qualquer, mas apenas fixar condições para que ele seja bem sucedido (ou apontar defeitos que levariam ao seu
insucesso).
191

c) condição de sinceridade: todo ato de fala associa-se a uma condição de


sinceridade, representada pela correspondência entre estado mental, manifestado
pelo locutor, e o estado de coisas expresso na proposição. Em se tratando de uma
promessa, o estado mental do locutor deve expressar o fato de que ele realmente
pretende cumprir aquilo que prometeu. O exemplo em análise, mostra que o
locutor é insincero, não necessariamente por se arriscar a por fim a sua vida, mas
em razão das contradições do conteúdo proposicional apresentado. Assim, a idéia
de praticar ‘roleta-russa’, que pressupõe a possibilidade de algo acontecer ou não
em razão do acaso, é contraditória com a de ‘revólver carregado com seis balas’,
considerando-se um padrão de tambor comum a esse tipo de arma, porque elimina
o acaso, isto é, a incerteza de que ação venha a se concretizar. 127

Os fatos que apontamos acima, como integrantes de uma força ilocucional, expressam
as tentativas da TAF de demonstrar como o conjunto das nossas ações ordinárias pode ser
justificado de uma forma racional. É claro que nem todos os componentes de uma força
apresentam ainda o mesmo estatuto formal na teoria: alguns comportam-se de forma mais
estável, outros são mais vulneráveis a certas interferências de contexto, ou a artifícios dos
locutores. Apesar do descompasso no grau de precisão das categorias, pensamos que elas
representam uma contribuição importante para abordar uma racionalidade das atitudes
humanas. Nesse caso, mais do nunca, ao avaliar a compatibilidade entre ação, conteúdo
proposicional e estado mental, estamos, em alguma extensão, mostrando o que pode
representar a seguinte formulação de PEIRCE (1890, p. 5), já citada anteriormente “a maneira
como o conhecimento (saber racional) está relacionado com a ação humana ou conduta
(finalidade racional)”. Certamente, muito ainda há para ser determinado em termos de uma
“finalidade racional”, mesmo porque ainda resta um vasto arsenal de fatores a ser explorado
em termos do papel de convenções e de intenções em todo esse processo.

127
Para maiores detalhes sobre as condições de sinceridade, confira a seção 4.3.1.2.4, à frente.
192

4.3.1.2.3 Pragmatismo e condições de conteúdo proposicional

O quadro de categorias que apontamos, até o presente momento, na compreensão de


um ato de fala, recobriu duas dimensões diferentes: (i) uma dimensão funcional − a
estruturação de certo conteúdo, possibilitando o desempenho de uma função destinada a
recortar a enunciação/realidade −; (ii) uma dimensão enunciativa − a determinação de padrões
diferentes para compromissos entre locutor e alocutário, a partir da seleção de formas
lingüísticas apropriadas à expressão do modo. As condições de conteúdo proposicional
permitem destacar uma dimensão lingüística, ao imporem à forma proposicional contida num
ato restrições de ordem sintática, determinantes para o seu desempenho. Assim, como o ponto
ilocucional é determinante para as condições de conteúdo proposicional, uma proposição
torna-se imprescindível para o desdobramento das tarefas nele implicadas, se ela atender a
certos padrões sintáticos, como a especificação do tempo verbal e do agente da ação. Por
exemplo, o ponto comissivo e o ponto diretivo impõem que o conteúdo proposicional tenha
uma expressão de futuro128 em relação ao momento da enunciação; para o ponto assertivo,
verificamos uma condição inversa: a forma verbal precisa conter uma expressão de passado
em contraste com o instante da enunciação.129 Outros detalhes sobre o conteúdo proposicional
precisam ser avaliados em função da escolha de um modo de realização: um testemunho
(ponto assertivo), por exemplo, requer que o conteúdo tenha uma expressão de passado na
dimensão do locutor, enquanto uma repreensão (ponto assertivo) exige que o conteúdo tenha
uma expressão de passado na dimensão do alocutário; um pedido (ponto diretivo) implica
uma ação futura do alocutário, enquanto um desejo (ponto comissivo) impõe uma ação futura
ao locutor.

As condições de conteúdo proposicional, como vimos, são um reflexo direto do ponto


de realização e, em conseqüência, do modo de realização de um ato. No caso do ponto, as

128
A expressão de futuro em relação à enunciação permite que a forma verbal seja morficamente representada,
para o ponto comissivo, por exemplo, no presente do indicativo (Prometo que vou a sua casa), no futuro do
presente (Prometo que irei a sua casa) ou no infinitivo (Prometo ir a sua casa). Por outro lado, formas como
(Prometo que fui a sua casa), ou (Prometo que iria a sua casa) são inaceitáveis no português corrente. Além
do mais, o ajustamento de prometer em uma forma de passado, nos dois últimos casos, nada acrescentaria à
dificuldade em questão; teríamos apenas atos realizados no ponto assertivo.
129
A expressão de passado em relação ao momento da enunciação possibilita que o verbo esteja morficamente
representado no presente do indicativo (Aviso que está chovendo), no presente do subjuntivo (Nego que esteja
chovendo) − em condições especiais − ou no pretérito perfeito/imperfeito (Afirmo que esteve/estava
chovendo).
193

condições têm um caráter genérico e somente podem ser especificadas pelo modo, que
adiciona detalhes quase sempre relativos a restrições
temporais e à origem de sua realização. Vejamos uma avaliação do exemplo seguinte:

(09) “Eu lamento que tenha sido aprovada a reeleição. Uma renovação seria muito boa
para o Brasil.”130

Podemos avaliar condições de conteúdo proposicional, considerando alguns aspectos internos


de sua construção. Em (09), os dois atos consecutivos realizam-se no ponto expressivo,
porque ambos mostram atitudes proposicionais do locutor - ‘lamento’ e ‘muito bom’ - frente
a um certo estado de coisas − ‘aprovação da reeleição’ −. Entretanto, cada um dos atos
realiza-se num modo particular, o que implica também condições específicas de conteúdo: (i)
o performativo ‘lamento’ determina o modo de realização, qualificando de reprovação o
estado mental do locutor diante de fatos que aconteceram (condição preparatória), bem como
a expressão de passado do conteúdo, anterior ao de sua enunciação; (ii) o modo de realização
do segundo ato, mesmo sem presença de um performativo, pode ser qualificado de suposição,
ou de hipótese , o que se justifica pela forma verbal ‘seria’ que apresenta uma expressão de
futuro, relativamente ao passado do conteúdo proposicional do ato anterior. Analisemos um
segundo exemplo:

(10) “Eu contratei jogadores, sim. E, se for presidente do clube de novo e


tiver cargos de confiança, eu contratarei de novo.” 131

O exemplo acima mostra também dois atos sucessivos: um realiza-se no ponto assertivo,
porque representa um estado de coisas, presumivelmente verdadeiro para o locutor; outro
realiza-se no ponto comissivo, porque retrata um compromisso do locutor com ações a
serem desempenhadas no futuro. No primeiro caso, como

130
Ato proferido por Dom Luciano Mendes de Almeida, ex-presidente da CNBB sobre a aprovação da emenda
da reeleição. (VEJA: 24-04-97, p. 18).
194

assertivo, o estado de coisas ocorre num momento anterior ao da enunciação, daí o

conteúdo proposicional fazer-se representar pela forma ‘contratei’; no segundo ato, como
comissivo, as ações acontecem num período posterior ao de sua enunciação; daí o conteúdo
proposicional apresentar a forma ‘contratarei’. Em ambos os casos, o modo de realização
não se faz representar por nenhuma forma performativa própria. Podemos, entretanto, afirmar
sobre o modo as seguintes observações: (i) no caso do ponto assertivo, não se trata do modo
primitivo da força, porque a presença da expressão ‘sim’, não só enfatiza a verdade do fato,
como projeta o modo numa escala superior de realização; (ii) no caso do ponto comissivo,
também sem forma performativa explícita, sabemos que não se trata de uma promessa, mas de
uma ameaça, em razão não das condições de conteúdo proposicional − para ambas vale a
especificação de futuro − que compõem uma e outra, mas das condições preparatórias, como
veremos à frente. O conteúdo central − ‘contratarei (novos jogadores)’ − não é (eticamente)
favorável ao(s) alocutário(s), logo não pode representar senão uma forma de ameaça. 132

As condições de conteúdo proposicional não demonstram uma relação direta com


questões próprias do pragmatismo, pois existe um distanciamento substantivo entre a
especificidade lingüística das primeiras em contraste com hipóteses genéricas do segundo. No
entanto, não podemos desconhecer o fato de que a especificação lingüística é uma instância
necessária para qualquer empreitada que considere a transformação da linguagem em ação. E
mais ainda, se, como afirma PEIRCE (1980, p. 6), “ ... ao construir a doutrina do
pragmatismo, são analisadas as propriedades de todos os conceitos indecomponíveis e seus
processos de composição possíveis . (...)”, então nada parece mais indicativo do fato de que o
processo de transformação de enunciados em ações seja avaliado também em razão de
componentes lingüísticos. Se nesse particular continua sendo desejável admitir a racionalidade
dos nossos propósitos como um objetivo a ser alcançado pelo pragmatismo, julgamos que
todo o esforço realizado pela TAF, em relação a condições de conteúdo proposicional que

131
Pronunciamento de José Gomes da Rocha, deputado do PSD goiano, confirmando o fato de haver contratado
jogadores para o Itumbiara Esporte Clube, com verba de gabinete. (VEJA: 24-09-97, p.18).
132
É claro que o enunciado contém outros vestígios que o colocam na esfera do desafio, da ameaça. Por
exemplo, a reiteração de aspectos da situação passada, considerados incorretos, no futuro (ser presidente, ter
cargo de confiança), além da presença repetida da expressão ‘do novo’.
195

regulam o uso de performativos, por exemplo, represente um avanço considerado nesse campo
(VANDERVEKEN, 1990). Assim, se as nossas ações podem assumir uma feição de
indecomponibilidade, pois um ato só pode ser concebido nessa totalidade em que ele se faz, o
esforço da TAF, no nosso entendimento, tem sido o de mostrar os processos de sua
composição.

4.3.1.2.4 Pragmatismo e condições preparatórias

A efetivação de uma força ilocucional decorre da realização de um complexo de fatos,


reunidos todos no processo enunciativo. Dentre esses fatos, uns contêm presença material
nesse processo, outros, porém, representam apenas uma espécie de base de sustentação que
possibilita a funcionalidade daqueles. As condições preparatórias de uma força ilocucional
implicam, precisamente, o caráter de sustentação, porque não contêm uma emergência
material, mas se valem de pressupostos que asseguram legitimidade a forças desempenhadas
com adequação. Assim, todo ato de fala requer um conjunto de proposições de base que são
pressupostas na sua execução. A natureza conceitual dessas proposições ainda precisa ser
demarcada com mais evidência. De todo modo, ela aponta para duas direções: a primeira
fundamenta-se em propriedades conceituais dos itens lexicais que figuram numa proposição,
pois só assim podemos considerar que algo seja nocivo, favorável, inadequado, benéfico...; a
segunda destaca a capacidade de o locutor ou de o alocutário desempenhar as ações prescritas
− haveria uma terceira, provavelmente, aglutinando as duas anteriores.

Se uma pressuposição compõe a base de execução de um ato, ela se faz


necessariamente verdadeira para a sua consecução, embora seja sempre possível assumir
pressuposições falsas e produzir, na seqüência, atos que serão, com certeza, defeituosos. Por
exemplo, a especificação de uma força ilocucional no modo-lamentação requer a
pressuposição de que o locutor desabone o conteúdo proposicional ou dele reclame. Assim,
embora vitória e derrota tenham valores lexicais contrários, todo ato de ‘lamentar sobre a
vitória/derrota de x’ implica uma única atitude proposicional, isto é, a de desabono de uma e
outra categoria, por ser essa a condição preparatória determinante da força ilocucional em
questão. Por outro lado, seria paradoxal um falante lamentar um fato e, ao mesmo tempo,
assumi-lo como gratificante, pois isso contradiz a condição preparatória.
196

Como no caso anterior, o ponto e, conseqüentemente, o modo de realização continuam


sendo determinantes na concepção do conjunto de proposições que constituem as condições
preparatórias de uma força ilocucional. No caso presente, o modo parece desempenhar um
papel decisivo na especificação das condições preparatórias, quando avaliamos o seu efeito
na realização de um ato. Por exemplo, podemos admitir que a condição preparatória geral
para o ponto diretivo resida no fato de o alocutário ser capaz de executar a ação e para o ponto
assertivo seja o fato de locutor admitir, como verdadeiro, o estado de coisas reportado. Essas
condições, todavia, requerem condições especiais que são determinadas pelos diversos modos
de sua realização tais como: uma ordem (ponto diretivo) adiciona a condição especial de que a
tarefa a ser desempenhada seja favorável ao alocutário, enquanto uma súplica (ponto diretivo)
implica acrescentar à condição geral o fato de que a tarefa a ser desempenhada não seja nociva
ao alocutário (em alguma extensão poderia ser até desfavorável, mas não nociva), ou que
locutor se dirija ao alocutário de forma humilde; um testemunho (ponto assertivo) adiciona à
condição geral o fato de o locutor ter presenciado o acontecimento sobre o qual depõe,
enquanto um relato (ponto assertivo) não adiciona qualquer condição especial. Vejamos a
análise do seguinte caso:

(11) “Ele é o equivalente robótico de Neil Armstrong.”133

Em (11) temos exemplo de uma força ilocucional representativa do ponto declarativo e, no


caso específico, no modo-definição, embora aqui também não tenhamos a presença de um
verbo performativo explícito. A condição preparatória geral do ponto declarativo pressupõe
que o locutor esteja investido de autoridade, lato sensu, para a execução do ato, de maneira a
permitir que, a partir do seu proferimento, o mundo seja alterado e que o falante o assuma
com as alterações decorrentes. A autoridade em questão é o pesquisador da Nasa, Henry
Moore, que comparou, pela definição dada, o robô Sojourner com o astronauta Neil
Armstrong. O ato presente permite compreender que, a partir do seu proferimento, o robô
Sojourner assumiu a função que lhe é atribuída pela definição. Pelo atendimento das

133
Fala do pesquisador da Nasa, Henry Moore, comparando o robô Sojourner, em missão em Marte, ao primeiro
homem a pisar na lua. (VEJA, 16-06-97, p. 13).
197

condições em análise, temos um ato bem sucedido. Condições complementares como garantia
para o sucesso de um ato podem ser avaliadas no exemplo seguinte:

(12) “O crime, muitas vezes, é inevitável.” 134

A força ilocucional de (12) realiza-se igualmente no ponto declarativo e no modo-definição e,


por isso mesmo, implica a mesma condição preparatória do caso anterior, isto é, que o
locutor esteja investido de autoridade para o seu desempenho apropriado. Como a autoridade
investida refere-se a um ministro da justiça indicado, de quem se espera o mínimo no combate
ao crime, o seu ato acaba por instituir uma realidade onde o crime deve ser considerado no
curso normal dos acontecimentos, já que é ‘inevitável’ pela definição atribuída. As
dificuldades, então, que o ato mostra decorrem de uma incompatibilidade entre o atendimento
à condição preparatória e uma discrepância no conteúdo proposicional. Supõe-se que uma
autoridade valha-se dessa condição, no uso da força ilocucional declarativa, até mesmo por ser
a mais ritualística das forças, para produzir uma “totalidade dos seus efeitos práticos” que
espelhe, adequadamente, o poder e a função que lhe são conferidos. Quanta insensatez não
haveria, portanto, em extrair os efeitos práticos de uma realidade instaurada por tal definição ?

À medida que avançamos na avaliação dos componentes de uma força ilocucional,


vista aqui numa visão ainda panorâmica, avançamos também na compreensão de certas
aspectos incluídos por Peirce na doutrina do pragmatismo. Não se trata de um território
absolutamente marcado por um espontaneismo solipsista, por eventualidades circunstanciais,
enfim, por um acaso desprovido de qualquer padrão racional. O esforço do autor, ainda que
sem uma correspondência categorial direta, foi precisamente o de mostrar que havia
dificuldades na elaboração formal de hipóteses que devessem dotar de critérios racionais a
compreensão da atividade prática. Assim, é o próprio autor que afirma (PEIRCE, 1980, p. 58)
“O pragmatismo cumpre duas funções.... Em primeiro lugar, desembaraçar-nos ativamente
de todas as idéias pouco claras. Em segundo lugar, deve apoiar, e tornar distintas, idéias em
si claras, mas de apreensão mais ou menos difícil;...” . Havia clareza em relação às
dificuldades presentes no vasto terreno do pragmatismo: “idéias pouco claras” e “apreensão

134
Fala do ministro Íris Resende, um dia antes de assumir o cargo, sobre operação policial que resultou em morte
de três pessoas num conjunto habitacional em São Paulo. (VEJA: 28-05-97, p. 14).
198

mais ou menos difícil” servem para ilustrar parte das dificuldades que continuam
prevalecendo até para a TAF, como já ficou registrado para alguns dos parâmetros acima e
como veremos ainda mais à frente.

4.3.1.2.5 Pragmatismo e condições de sinceridade

O último parâmetro básico que discutiremos, como componente de uma força


ilocucional, refere-se às condições de sinceridade,135 com certeza, um dos aspectos mais
controvertidos da teoria em razão das bases em que está fundamentado. Suas dificuldades se
fazem representar, na maioria dos casos, pela impossibilidade estrutural de se isolarem, nos
enunciados que representam os atos, vestígios de sua presença. Assim, elas raramente
podem ser identificadas pela presença de um marcador lingüístico,136 o que, no entanto, não
reduz a sua importância na composição de uma força ilocucional. As condições de
sinceridade podem ser descritas como atitudes proposicionais que expressam estados mentais,
no momento de execução de um ato. Cada estado mental caracteriza-se por modalidades que
incorporam intenções de que o alocutário realize algo ou desejos do próprio locutor em fazê-
lo. Assim, por exemplo, o locutor que desempenha uma força ilocucional, no ponto
declarativo e no modo-autorização, manifesta a intenção (sincera) de investir o alocutário de
poderes apropriados ao desempenho de certas tarefas. Da mesma forma, o ato de depor,
realizado no ponto de realização assertivo e modo-depoimento, requer da parte daquele que o
executa o registro de um estado mental em que o depoente assevera conhecimento dos fatos
em questão.

Como já vimos para outros componentes, o ponto de realização e, por conseguinte, o


modo são determinantes para o estado mental que representa as condições de sinceridade.
Logo, o estado mental necessário à consecução de uma força, no ponto assertivo, requer que o
locutor acredite naquilo que está a proferir; do contrário ele estaria sendo insincero ao afirmar

135
Existe ainda um sexto componente que integra uma força ilocucional − graus de sinceridade − que não
iremos, por economia, discutir de forma destacada; mas, quando necessário, faremos algum comentário nessa
seção, já que ele se integra diretamente às condições de sinceridade.

136
Não são comuns, embora possam existir, assumindo sobretudo o valor de ênfase, marcas lingüísticas relativas
às condições de sinceridade, como, por exemplo: Prometo sinceramente ir visitá-lo. Peço honestamente que
faça isso para mim.
199

um conteúdo proposicional e acrescentar, na seqüência, sua descrença nesse mesmo conteúdo.


Essa condição geral precisa, entretanto, ser acrescida de condições especiais, quando da
realização de modos particulares do ponto assertivo. Modos como testemunhar, confessar,
supor e sustentar, por exemplo, requerem, todos, o acréscimo de condições particulares que
reflitam outros estados mentais, além do da crença na verdade dos fatos. Para cada um desses
modos, podemos determinar condições adicionais: (i) testemunhar implica o estado mental de
crença em algum fato que foi presenciado pelo depoente; (ii) confessar, uma crença na
verdade de algum fato pelo qual se responsabiliza; (iii) supor, uma crença atenuada na
verdade dos fatos e (iv) sustentar, uma crença argumentada na verdade dos fatos. Se a
diferença entre os estados mentais pode aqui ser assegurada pela realização de modos distintos
e pela presença de performativos próprios, não temos nenhuma garantia do que seja a
especificação de novos estados mentais para alguns padrões performativos concorrentes. Um
contraste entre testemunhar/depor, supor/admitir, sustentar/assegurar pode não alcançar uma
expressão clara nas condições especiais de sinceridade.137 Vejamos a análise dos exemplos
seguintes:

(13) “Acho que o país continua uma droga.”138


(14) “Foi um pequeno lapso.”139

A força ilocucional de (13) realiza-se no ponto expressivo por representar um estado de coisas
sobre o qual o falante manifesta uma atitude proposicional, −'acho'−. Já (14) reporta uma
força com realização no ponto assertivo, porque reporta um estado de coisas que o locutor
representa como verdadeiro. No primeiro caso, o locutor manifesta sinceridade em relação ao
estado mental de suposição − a atitude proposicional materializada por 'acho' − sobre o
conteúdo proposicional manifestado, mesmo tratando-se de um ato expressivo. A justificativa

137
O sexto componente − representando graus de sinceridade para uma força ilocucional − pode conter uma
interferência direta em questões dessa natureza. Assim, um acúmulo de modos de realização muito próximos não
resultaria em condições de sinceridade distintas, senão em graus distintos dessas condições. Por exemplo, para
realizações do ponto assertivo, quando realizado através de formas performativas como 'afirmar', 'assevera',
'assegurar', 'confirmar'..., seria mais apropriado determinar graus diferenciados da crença do locutor no
conteúdo proposicional.
138
Ato enunciado por Maria Tereza Goulart, ex-primeira dama. (VEJA, 10-12-97, p. 14).
139
Justificativa dada pelo porta-voz da Presidência da República, sobre o fato de Jacques Chirac, Presidente da
França, haver chamado Fernando Henrique Cardoso de presidente do México, alegando que ambos estavam,
pouco antes, conversando sobre o México.
200

é não haver o registro de nenhuma forma que venha contradizer essa condição, isto é, um
segundo estado mental (que não seja o rancor, ou a crítica, até mesmo pela sua situação
história do locutor) que revele uma disposição contrária para o conteúdo em pauta. No
segundo exemplo, o estado mental manifestado pelo locutor poderia comportar duas
perspectivas: (i) uma de confirmação de um estado mental sincero em relação ao conteúdo
proposicional (afinal nada impede o locutor de acreditar na verdade dos fatos que ele reporta
através desse ato); (ii) outra, contrária à anterior, comporta, em razão do julgamento que os
alocutários fazem do seu locutor e das funções que este exerce, a manifestação de um estado
mental insincero por não se acreditar na maneira pela qual o locutor descreve um estado de
coisas. Nessa última interpretação, o ato de fala poderia ser mais adequadamente analisado
como realização de uma força ilocucional no ponto expressivo, por se tratar de uma atitude
proposicional do locutor que lembra mascaramento, atenuação.

A dificuldade para se determinarem as condições de sinceridade para exemplos como


(14) expõe um aspecto emblemático da TAF, agora explicitado em razão do presente
parâmetro: afinal devemos ou não considerar parte dos componentes que definem uma força
ilocucional numa dimensão interativa ? Se não existe uma clareza sobre esse ponto na teoria,
parece-nos importante destacar a impossibilidade de certos componentes serem avaliados face
à ausência dessa dimensão interativa. Se um ato, em muitas circunstâncias, constitui uma
forma de interpelar o outro, como a teoria pode desconhecer a expectativa do outro nas
condições que definem possibilidades de um ato ser bem sucedido ?

O processo histórico, muitas vezes cenário para a conversão de linguagem em ação,


exige que contemplemos o diverso da experiência de forma a permitir inferências partilháveis.
Nada adianta a um porta-voz, como no exemplo (14), crer na verdade de um fato, isto é, ser
sincero no seu estado mental de crença, se o público a que se dirige reconhece para o porta-
voz o direito e a obrigação, impostos ao cargo, de 'encenar' estados mentais de sinceridade. O
esquema enunciativo, centrado num locutor único e num alocutário único, que a TAF aciona
ainda se mostra restrito e impede que questões como essa sejam avaliadas de modo mais
preciso. Assim, condições de sinceridade tornam-se mais difíceis de serem determinadas,
quando optamos, conceitualmente, por isolá-las dos outros componentes de uma força, pelas
dificuldades operacionais de se abordarem estados mentais no âmbito da teoria. Nenhum dos
componentes, como vimos nessa exposição, apresenta autonomia em relação aos demais: eles
201

compõem uma totalidade, cuja fragmentação tem validade apenas como um esforço
explicativo. Assim, vejamos um outro conjunto de atos:

(15) “O Itamar é um perfeito idiota.” 140


(16) “Muito cedo durante a sua atuação na Presidência, percebi tratar-se de
um canalha”. 141
(17) “Ele continua sendo um bandido ignóbil.” 142

Podemos considerar os três atos acima como realização específica de uma força ilocucional no
ponto assertivo143 e no modo-injúria. Em cada um dos casos, o modo considerado determina a
condição preparatória de que o conteúdo proposicional asseverado tenha uma natureza
depreciativa: de fato, 'perfeito idiota', 'canalha' e 'bandido ignóbil' traduzem-se como algo
injurioso para os destinatários. Por outro lado, a condição de sinceridade geral estabelece
apenas a necessidade de que o estado mental do locutor corresponda ao conteúdo de cada uma
das proposições: por exemplo, para o locutor de (16) o seu estado mental reflete a verdade do
fato, representado pelo conteúdo 'canalha' e direcionado ao destinatário imediato. Se
nenhuma condição de sinceridade especial puder ser acrescentada a um dos exemplos,
podemos concluir que, em termos da análise desenvolvida, os locutores atuam de modo
semelhante um ao outro, por reproduzirem, em termos da TAF, o mesmo ponto de realização,
o mesmo modo, as mesmas condições preparatórias, idênticas condições de conteúdo
proposicional e finalmente uma única condição de sinceridade. Entretanto, como existe uma
seqüência histórica para o conjunto, podemos admitir que, no caso de réplicas, se o modo de
realização é mantido (modo-injúria), torna-se importante alterar parte das condições
preparatórias acima descritas, pois os replicantes tendem a intensificar o teor do conteúdo

140
Observação do ex-presidente, Fernando Collor, sobre o seu vice, Itamar Franco. (VEJA, 10-12-97, p. 15).
141
A frase representa a réplica feita por Itamar Franco a Fernando Collor em relação a acusação que este lhe
fizera, conforme exemplo (15). (VEJA, 10-12-97, p. 15).
142
A frase representa comentário feito por Ciro Gomes sobre Fernando Collor em relação a críticas que este lhe
fizera. (VEJA, 10-12-97, p. 15).

143
Embora o formato de definição de cada um dos exemplos possa sugerir o ponto de realização declarativo,
não nos parece tratar-se do ato-definição com valor próprio, senão de uma asserção. Assim, quando uma teoria
define um termo, a definição tem o valor de uma lei, de uma regra que vale universalmente para a teoria; além
disso, aquele que define precisa estar investido de autoridade (condições preparatórias) no campo conceitual da
teoria, para proceder à execução de tal ato.
202

proposicional; no caso presente, tendem a aumentar o grau de sua natureza depreciativa. Em


outros termos, se admitimos essa observação como correta, estamos propensos a entender
que os replicantes tendem a demonstrar que a imagem que fazem do autor da injúria é sempre
pior do que aquela imagem que antes lhes fora atribuída. Assim, 'canalha' e 'bandido
ignóbil' parecem representar uma intensificação do conteúdo proposicional de 'perfeito
idiota'.144

Os comentários que foram desenvolvidos, considerando sobretudo o teor conceitual


das condições de sinceridade, constituem um esforço adicional na tentativa de se caracterizar
um quadro conceitual, onde fatos supostamente aleatórios da conduta prática assumem um
caráter relativamente sistemático. É claro que o teor de sistematização das condições de
sinceridade, como de resto de outros aspectos da TAF, ainda exige uma elaboração mais
efetiva. Ainda assim, por pouco que a teoria tenha avançado nesse território, ela deixa um
rastro fundamental a ser explorado numa orientação interativa: as condições de sinceridade
apontam para a necessidade de uma avaliação de padrões éticos para as práticas discursivas. A
idéia de se assegurar um compromisso da fala do locutor com as suas ações, através da
sinceridade, constitui um fator importante em termos de uma fundamentação prática para o
discurso, mas devemos admitir que sinceridade é um conceito transitivo e, por isso mesmo,
não devemos cerrá-lo numa relação do-locutor-para-o-locutor, ela precisa chegar ao outro. O
trajeto desse último componente da teoria, apesar das dificuldades notadas, credencia-o a
constituir-se num instrumento importante em favor das pretensões do pragmatismo sobre a
racionalidade das nossas atividades práticas.

4.3.1.3 Observações complementares

Ao desenvolvermos uma explicação resumida da TAF, fazendo-a aproximar-se de


alguns princípios gerais propostos por Peirce, para a construção do pragmatismo,
selecionamos dois aspectos fundamentais, a saber, direções de ajustamento e componentes de

144
Há uma tréplica nesse episódio que, se não representa uma intensificação da calúnia, pode transferir o seu
teor para outros estados de coisa: "Peço-lhes que introduzam nos seus aconhegos as agressões que me fazem."
Fala de Fernando Collor rechaçando os comentários de Itamar Franco e de Ciro Gomes (VEJA, 10-12-97, p. 15)
203

uma força ilocucional.145 Na discussão dos dois parâmetros, procuramos enfatizar a sua
dimensão conceitual, a partir da análise de alguns casos específicos. A razão desse recorte
deveu-se à necessidade de selecionarmos o que, de fato, fosse mais representativo para a
correlação que foi desenvolvida e, nesse particular, os parâmetros escolhidos compõem os
fundamentos constitutivos da teoria. Algumas observações complementares tornam-se
necessárias ao caráter de funcionamento desses componentes.

Uma primeira observação, válida como um princípio básico de seu funcionamento,


reitera o fato de que os componentes não são autônomos, e por essa razão não devem ser
considerados como independentes um do outro. Assim, o modo de realização de uma força só
pode ser concebido como uma instância particular de realização no interior de um ponto.
Mutatis mutandis, o ponto só pode ser entendido numa dimensão genérica para orientar a
relação linguagem/ação, em razão da pluralidade dos modos de realização disponíveis. As
condições preparatórias têm, na sua feição geral, o funcionamento determinado pelo ponto,
mas o modo é sempre o responsável por adicionar-lhe aspectos particulares. As condições de
conteúdo proposicional submetem-se a uma determinação direta do ponto de realização, por
ser ele, em última análise, o padrão distributivo entre as formas lingüísticas e suas
possibilidades de aplicação. Um dos autores (VANDERVEKEN, 1990, p. 122) a que temos
recorrido, assim se manifesta sobre o problema: “Thus, whenever an illocutionary force has a
component of one type, it also has all the components of the other types which are determined
by that component.”

Outra observação a ser considerada alude-se à importância de determinar uma


diferenciação no estatuto dos diversos mecanismos que convergem para a realização de uma
força ilocucional. Para o autor citado acima, há uma dimensão transcendental a ser
considerada na concepção de certos mecanismos, enquanto há outros que integram a
imanência particular de realização de um ato. Por exemplo, o fato de definirmos que a
condição de conteúdo proposicional de uma promessa seja representada por uma ação futura
pertence a uma dimensão transcendental, já que uma promessa só pode ser concebida como
um ato futuro em relação ao momento de sua enunciação. Por outro lado, quando

145
Esse recorte proposto na explicação da teoria excluiu da reflexão acima outros aspectos importantes para o
seu funcionamento, como a definição de forças primitivas, o conceito de sucesso e satisfação de uma força, a
questão da identidade entre forças ilocucionais e toda a discussão dos ajustes formais da sua construção.
204

representamos esse ato futuro, como se faz no português, ou por uma forma verbal de
infinitivo, ou por uma de presente, ou por uma de futuro, estamos determinando apenas uma
dimensão imanente do ato de prometer nessa língua. O mesmo podemos dizer da
especificação do modo de realização de uma força ilocucional: o modo-injúria que analisamos
pode, mesmo com escalas diferentes, conter um caráter transcendental, pois é possível supor
que o contraste elogiar/caluniar tenha uma extensão universal nas línguas. No entanto, ao
menos em princípio, a realização lingüística do modo-injúria poderá ser diversamente
representado, considerando-se línguas particulares. A sua expressão em português, por
exemplo, se faz por formas gradualmente distintas através de verbos como 'caluniar',
'injuriar', 'denegrir', 'acusar', 'censurar', 'criticar', 'escrachar', 'esculhambar',
'esculachar', cuja correspondência pode não ser mantida de uma língua para outra, de uma
cultura para outra. 146

A análise comparativa que procuramos desenvolver entre TAF e pragmatismo ilustra,


ainda que de forma parcial, como podemos conceber a primeira como uma forma de
especificação do segundo. De fato, o cenário desenhado por Peirce contém apenas diretrizes e
propósitos gerais que apontam para a condição de que a racionalidade das palavras seja um
instrumento para a nosso comportamento, isto é, "...o teor racional de uma palavra ou outra
expressão reside, exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida..."
(PEIRCE, 1980, p. 284). A partir de um cenário traçado com propriedades dessa natureza
constrói-se a TAF, cujo grande desafio já vinha problematizado no título do texto inaugural da
teoria "How to do things with words" (AUSTIN, 1962). O fato de as duas abordagens se
mostrarem ainda distanciadas uma da outra não significa, no nosso entendimento, que os
princípios do pragmatismo sejam indiferentes aos padrões conceituais da TAF. Tentamos, na
reflexão presente, partilhar desse desafio de confrontar parte dos princípios do pragmatismo
com padrões construídos pela TAF, reavaliando conceitos e instrumentos de análise. Assim,
o desenvolvimento teórico empreendido pela TAF nas duas últimas décadas representa, no
nosso entendimento, uma forma decisiva de conceber, aos propósitos de Peirce sobre o

146
É discutível se todas essas formas verbais contêm um uso performativo, pois não é certo que possamos
submeter cada uma delas ao padrão que conhecemos sobre o funcionamento performativo para alguns. Assim,
podemos, com certeza, obter 'Acuso-o por ter se comportado indevidamente." (plenamente aceitável também
com censurar e criticar), mas pouco natural para os demais. Assim, se exemplos como 'Denigro-o pelo
comportamento apresentado.' ou 'Escracho-o por ter feito isso.' não parecem naturais na língua, pois tais
verbos teriam apenas um valor proposicional, isto é, o de reportar escalas diversas de calúnia.
205

pragmatismo, um padrão de análise das nossas condutas práticas.147 Outras preocupações


contemporâneas sobre a questão da linguagem também podem ser vistas como um
complemento ao quadro geral de formulação do pragmatismo, conforme avaliaremos na
seqüência.

4.3.2 - Pragmatismo e lugares enunciativos

Todas as propostas desenvolvidas no plano da análise do discurso,148 da produção


social do sentido colocaram em discussão a questão da estrutura do processo enunciativo ou
as condições gerais do seu funcionamento. As novas orientações, conforme mostramos no
item 4.3, mostraram a necessidade de descentramento do lugar do EU e do TU. Na análise que
desenvolvemos sobre os atos de fala, mantivemo-nos distante dessa discussão pela razão
precisa de que, historicamente, a TAF mantém uma postura alheia ao enfrentamento do
problema de forma mais direta, embora seja possível encontrar traços que o lembre de forma
indireta.149 Essa talvez seja uma das dificuldades que a teoria enfrenta e, com certeza, a
adoção de um esquema mais flexível para a relação falante-ouvinte poderia enriquecer as
possibilidades de compreensão de alguns aspectos dos atos de fala. Por exemplo, as
condições de sucesso e de satisfação de um ato poderiam também ser medidas em razão do
consenso e do dissenso entre as vozes componentes de cada um dos lugares enunciativos. O
nosso objetivo, todavia, não é avançar em direção a críticas e a soluções para a TAF, senão de
tentar mostrar, a partir de uma das alternativas propostas para funcionamento do quadro

147
Um aproximação entre a formulação de Peirce e a TAF é mais do que mera coincidência. Não nos
preocupamos em justificar o trabalho de Peirce sobre o pragmatismo na perspectiva de um fundamento para a
TAF. O objetivo do nosso trabalho não foi o de reconstruir as raízes dessa teoria. É importante salientar,
entretanto, que componentes essenciais à TAF aparecem de forma explícita no texto de PEIRCE (1977), por
exemplo: "A asserção consiste no fornecimento de evidência pelo elocutor ao ouvinte de que o elocutor acredita
em algo, isto é, acha que uma certa idéia é definitivamente compulsória numa certa ocasião." (p. 90). O fato
citado equivale ao que a teoria define por condições de sinceridade para uma asserção.
148
Confira PÊCHEUX (1969, p. 18-9), conforme citação na nota 98 anterior.

149
Em linhas gerais, VANDERVEKEN (1990) tem se referido às dificuldades que conduziram, precisamente,
ao desdobramento dos lugares enunciativos: "Of course, in our human linguistc games and other forms of life,
there are certain features which are pervasive and essencial for the use of language, such as (....) the speaker
and hearer of a context of utterance, (...) the relative status of the protagonists of the utterance, what is against
and in their interest (...)." (p. 123).
206

enunciativo, como podemos progredir na compreensão de muitos fenômenos situados no


plano da relação entre linguagem e ação, isto é, como eles se circunscrevem na problemática
do pragmatismo, formulada por Peirce. Em particular, estaremos fazendo uso específico da
proposta de CHARAUDEAU (1983), na análise de alguns exemplos.

4.3.2.1 A proposta da semiolingüística

O ponto de partida da proposta de Charaudeau resume-se na questão de se redefinir o


papel dos interlocutores no processo enunciativo, a saber, o modo pelo qual se relacionam na
combinação de um jogo de intenções, e de um cenário marcado por instâncias empíricas e
instâncias imaginárias de todo o universo discursivo. O parâmetro central da discussão é o
conceito de ato de linguagem150 que incorpora os componentes que serão objeto da sua
reflexão. Num primeiro momento, CHARAUDEAU (1982) registra:

"L'acte de langage devient alors un acte inter-énonciatif entre 4 sujets (et


non 2), lieu de rencontre imaginaire de deux univers de discours que ne
sont pas identiques. (...) l'acte de langage est une totalité qui subsume les
processus de production e d'interpretation.". (p. 38-9).

Os traços essenciais de um ato de linguagem incluem: (i) o fato de ser um ato inter-
enunciativo que envolve a relação entre quatro sujeitos; (ii) o encontro imaginário de dois
universos de discurso; (iii) uma totalidade que inclui processos de produção e processos de
interpretação e os componentes listados em (i) e (ii).

O primeiro traço − (i) o fato de ser um ato inter-enunciativo que envolve a relação
entre quatro sujeitos − dissolve as possibilidades hegemônicas dos lugares enunciativos, além
de introduzir o teor de assimetria entre os seus diversos integrantes. Em cada um deles
competem, ao menos, dois sujeitos que se articulam num jogo de sentidos implícitos e
explícitos, de intenções e de convenções, de relações imaginárias e empíricas. Seguindo o

150
Mantivemos aqui a tradução literal do termo l'acte de langage, até mesmo para confrontar com o conceito de
ato de fala (speech act), anteriormente analisado. Parâmetros usados para definir um e outro conceito, no interior
das duas abordagens, diferem entre si, mas o resultado final pode ser compatibilizado, isto é, podemos melhor
especificar as circunstâncias enunciativas de atos de fala, a partir do esquema proposto para análise de atos de
linguagem.
207

padrão do autor, podemos representar essa duplicidade dos lugares enunciativos no seguinte
esquema:

EUc 151 EUe TUd TUi

Fig. 2: Relações interlocutivas básicas

A relação de assimetria entre os componentes acima, diferentemente de relações simétricas


concebidas nos processos comunicacionais, apresenta características próprias e necessárias a
uma explicação sobre a natureza do processo enunciativo, na sua dimensão produtiva ou
interpretativa. Assim:

(a) EUc (sujeito comunicante) / EUe (sujeito enunciador): EUc é o sujeito que
produz a fala e que também projeta a existência de um EUe como suporte
imaginário de sua fala. EUe, ao representar a imagem de um enunciador criada por
EUc, transforma-se num emissor ad hoc, incumbido de dar curso ao processo
enunciativo; EUe é um ser de discurso, resultante de projeções intencionais de
EUc, e se faz sempre presente no ato de linguagem. O esquema de produção da
fala, decorrente dessa bifurcação enunciativa, convive com a possibilidade de
uma integração, se os dois sujeitos se identificam; ou com a de um fracionamento,
se os dois sujeitos não se identificam. Da possibilidade de identificação ou não
entre as duas instâncias decorrem, como veremos adiante, justificativas para
fundamentar a existência de atos de linguagem distintos.

(b) TUd (sujeito destinatário) / TUi (sujeito interpretante): TUd é um interlocutor


que um EU produz como um destinatário ideal de sua fala. Como um ser de

151
Substituímos a designação original do autor pelos seus correspondentes em português. Assim, EUc e EUe
substituem suas formas originais, JEc, JEé, na sua formulação. Nos lugares do alocutário (TUd e TUi) existe
coincidência entre as fórmulas.
208

discurso, a sua existência só pode ser reconhecida no circuito da fala e, por isso
mesmo, se faz integrante de todo ato de linguagem. TUi, por sua vez, é um ser
fora do circuito de fala produzida por EU, pois é um sujeito empírico que se
responsabiliza pelo processo de interpretação. Enquanto TUd é o resultado das
intenções de EU, TUi é indiferente a elas e sua existência depende dele mesmo,
TUi, à medida que formula uma interpretação. A assimetria entre destinatário e
interpretante comporta também as duas possibilidades: integração, quando ambos
se fazem equivalentes, fracionamento, quando se fazem distintos. No processo
interpretativo, no entanto, mesmo quando houver uma identidade entre TUi e TUd,
este pode não corresponder ao conjunto das intenções de EU, quando o projetou.
A aproximação entre essas duas instâncias interpretativas também produz efeitos
distintos sobre os atos de linguagem.

O segundo traço − (ii) o encontro imaginário de dois universos de discurso − que


compõe o quadro enunciativo proposto por Charaudeau − pode ser incluído no esquema
anterior, produzindo dois espaços distintos de articulação do discurso:

EUe TUd
EUc TUi
Md 152 = circuito interno

Mo = circuito externo

Fig. 3: Relações interlocutivas contextuais

O circuito interno constitui-se de dois sujeitos que representam apenas seres do discurso por
materializarem projeções do sujeito comunicante. Além do mais, esse circuito representa um
universo de discurso que pode, ao mesmo tempo, ser um simulacro de um mundo
psicossocial, ou um instrumento de acesso a ele. O circuito externo faz-se constituir por dois
sujeitos que atuam sobre um universo psicossocial, um como responsável pela processo de

152
Convertemos também os termos originais usados por Charaudeau para indicar o circuito interno e o circuito
externo dos atos de linguagem. Assim, Md (mundo do discurso) e Mo (mundo dos objetos) são equivalentes a
ILx e ILo, respectivamente, no formulação original do autor.
209

produção do discurso e outro pelo processo de sua interpretação. Os dois universos, na


formulação original do autor (CHARAUDEAU, 1982), foram codificados pelo signo IL e
aparecem assim correlacionados:

“À quoi il faut ajouter que le monde qui est parlé para ces sujets - et que nous
désignons par IL - a une double représentation selon qu’il est considéré dans le
circuit de parole (ILx), ou dans le circuit externe à celui-ci comme témoin du réel
(ILo).” (p. 47)

O último aspecto − uma totalidade que inclui processos de produção e processos de


interpretação − apenas introduz a categoria ato de linguagem como aglutinador de todos os
componentes presentes. A incorporação dessa categoria, no esquema anterior, resultaria numa
visão completa de funcionamento do processo enunciativo, a partir da singularidade de cada
um dos componentes descritos:

ato de linguagem

EUe TUd
EUc TUi
Md = circuito interno

Mo = circuito externo

Fig. 4: Componentes do ato de linguagem

Ressaltando a diferença desse modelo − em razão do teor assimétrico de comportamento dos


seus integrantes − com a de outros recorrentes nos modelos comunicacionais,
CHARAUDEAU (1982) enfatiza a importância do ato de linguagem, construído a partir dos
parâmetros que acabamos de descrever:

“a) L’acte de langage ne peut être considéré comme un acte de communication: il


n’est pas le fait de la seule intention de l’émetteur et il n’est pas le résultat d’un
double processus symétrique entre Émetteur et Récepteur.
Tout acte de langage résulte d’un jeu entre l’implicite et l’explicite qui naît
dans des circonstances de discours particulières , que se réalise au point de
210

rencontre des processus de production et d’interprétation, qui est ‘mis en scène’


par deux entités dont chacune est dédoublée en sujet de parole et sujet agissant
(JEc / JEé et TUd / TUi les 4 sujets de l’acte de langage), ...” (p. 47).

4.3.2.2 Funcionamento do processo enunciativo: análise de casos

A formulação acima descrita mostra alguns detalhes de funcionamento do processo


enunciativo na forma como foi proposta por Charaudeau. A descrição visou retomar aqueles
aspectos essenciais para caracterizar alguns exemplos de atos de linguagem, como
mostraremos a seguir. Os traços selecionados são também representativos para a correlação
que estamos avaliando com o pragmatismo, pois o próprio PEIRCE (1977) demonstra
preocupação com a questão, ao menos quando se refere à necessidade de reconhecimento da
asserção:

“ Em toda asserção podemos distinguir um elocutor e um ouvinte. Este


último, é verdade, necessita ter apenas uma existência problemática, como é
o caso durante um naufrágio, quando um relato do acidente é fechado numa
garrafa e jogado ao mar. O ‘ouvinte’ problemático pode estar na mesma
pessoa do ‘elocutor’, como sucede quando mentalmente registramos um juízo
a ser mais tarde lembrado. Se houver um ato qualquer de juízo independente
de qualquer registro, e se este tiver qualquer significação lógica (o que é
questionável), podemos dizer que, nesse caso, o ouvinte identifica-se com o
elocutor.” (p. 90).

A reflexão de Peirce, embora restrita à asserção, recobre, igualmente, outras formas de


estruturação enunciativa; o autor não discute os detalhes que acabamos de discutir em torno
dos componentes do processo enunciativo, mas já destaca, por exemplo, dificuldades relativas
ao alocutário. Apesar do seu teor ainda genérico, os problemas suscitados projetam, com
certeza, um quadro de orientações na busca de uma justificativa racional para efeitos práticos.
Podemos reiterar tais efeitos como provenientes da relação entre linguagem e ação, expressos,
então, pelo jogo interlocutivo entre (e)locutor e ouvinte. Retomando, portanto, os elementos
conceituais que foram trabalhados neste item, numa abordagem restrita do processo
211

enunciativo, vamos analisar alguns atos de linguagem, mostrando como o projeto de


Charaudeau opera em termos da compreensão de fatos a que nos temos referido como efeitos
práticos. Para cada exemplo, estaremos remontando o quadro enunciativo proposto,
acompanhado de algumas explicações vinculadas ao ato em análise.

(18) “Água, sabão e vergonha na cara.” 153

ato de linguagem: denúncia

EUe TUd

Md = circuito interno:
EUc cuidados ‘sanitários’ no combate a TUi
surtos de infecção

Mo= circuito externo: existência de


surtos de infecção (que têm matado
recém-nascidos em hospitais) 154

Fig. 5: Ato de linguaguem: denúncia

Os fatos expressos em (18), considerando-se sentidos pressupostos a partir da situação que o


gerou, constituem um ato de linguagem-denúncia, que apresenta a seguinte caracterização,
considerando-se o papel dos seus interlocutores e as suas condições de produção e de
interpretação: (i) o sujeito comunicante (JEc) se faz representar aqui ou pelo conjunto das
pessoas que se submetem a condições de produção derivadas de um contexto administrativo
de hospitais, ou então por um único diretor, administrador, submetido a essas mesmas
condições, que assume tal postura; sua vinculação é com um circuito externo, isto é, com as
propriedades que qualificam a produção do ato; (ii) EUe é o personagem documental de (18)
que representa uma projeção do EUc, determinado pelas condições externas vistas; a

153
Pronunciamento de Rubens Feferbaum, chefe da UTI neonatal do Hospital das Clínicas de São Paulo, sobre
medidas para combater os surtos de infecção hospitalar, responsáveis pela morte de recém-nascidos. (VEJA, 10-
12-97, p. 15).
154
A correlação implicativa (Se P, então Q) entre esses dois circuitos da fala, em função do conteúdo
proposicional expresso, pode ser ajustada da seguinte forma: <Se há surtos de infecção matando recém-nascidos
(Mo = P), então é necessário cuidados sanitários para combater tais surtos (Md= Q)>.
212

identificação entre os dois integrantes aqui é desejável, porque a instância produtiva pretende
levar adiante aquilo que é o objeto da denúncia: morte de recém nascidos por condições
higiênicas precárias; (iii) TUd é o destinatário criado por EU, isto é, os próprios colegas
submetidos às condições vigentes e que, circunscritos ao circuito interno, devem dele extrair
efeitos práticos, como ‘lavar as mãos com água e sabão’ e ‘mudar a cor da cara’; (iv) TUi,
por sua vez, ao submeter-se ao circuito externo, não está sujeito aos efeitos práticos
mencionados, mas representa aquelas instâncias que extraem da denúncia um outro tipo de
efeito prático, ou seja, aquele caracterizado pelos surtos letais; TUi tem uma extensão maior e
pode representar a própria sociedade, ou especificações dela como imprensa, sindicatos etc; é
ele quem sustenta, com críticas, com explicações, a sobrevida da denúncia. Desse modo, a
hipótese de uma identidade entre TUi e TUd deve possibilitar que TUd se converta a TUi (e
não o inverso), situação em que TUd se torna um crítico da situação − sem precisar lavar as
mãos nem mudar a cor da cara. Essas considerações nos levam ao seguinte esquema:

i. EUc constrói o ato-denúncia, através da fórmula ‘se P, então Q’


INTENÇÃO: validar ‘Q’ como argumento de superação da denúncia;

ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd


INTENÇÃO: convencer TUd sobre o valor positivo de ‘Q’;

iii. TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’


INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato-denúncia;

O esquema acima requer observações adicionais, a fim de caracterizar algumas relações que
representam as condições estruturais de atos de linguagem e aquelas que reportam diretamente
ao funcionamento de um ato particular. No primeiro caso em análise, detalharemos os
aspectos que se relacionam à estrutura de um ato, isto é, o papel desempenhado pelos
interlocutores, bem como os traços contingenciais − as intenções acionadas em cada uma de
suas etapas de desenvolvimento. Os dois aspectos justificam a existência do ato-denúncia, em
contraste com outros atos específicos. Cada um dos itens do esquema comporta as seguintes
explicações:

a) O item (i) especifica a forma genérica da construção de um ato, através da


correlação entre dois conteúdos proposicionais, integrantes dos circuitos externo e
interno, indicados no quadro enunciativo. Em relação ao instante inicial de sua
construção, um ato, além de sua estrutura genérica − `se P, então Q` −, contém uma
213

característica que serve para assegurar o valor contingencial que assume nas práticas
discursivas. Trata-se da intenção que é acrescentada ao funcionamento do ato e que lhe
determina uma orientação argumentativa possível. No ato presente, a orientação supõe
a validade de `Q` − ‘cuidados ‘sanitários’ no combate a surtos de infecção’ − como
um argumento válido para a superação do ato-denúncia. Entretanto, como denúncias
se fazem representar por outros formatos discursivos, já que poderíamos supor que elas
viessem apenas reportar um certo estado de coisas indesejável − por exemplo, o uso do
conteúdo de `P`, ‘existência de surtos de infecção (que têm matado recém-nascidos
em hospitais)’ −, então seria importante assinalar que elas comportam outras
intenções, capazes de especificar outras orientações argumentativas. Assim, ao assumir
`P` como expressão manifesta de uma denúncia, estamos assumindo-o também como
argumento válido para constatar tal denúncia e não para superá-la.

b) O item (ii) descreve a estrutura geral, determinante para o desenvolvimento do


processo de interlocução de atos de linguagem − EUe enuncia ‘Q’ a TUd. Como
dimensão estrutural, sua validade estende-se a todos os atos de um modo geral, já que
representa uma dimensão necessária à sua constitutividade, isto é, a instância de um
ato onde os interlocutores se colocam, por hipótese, face a face. De modo semelhante,
a existência de atos singulares é assegurada pela presença de uma intenção específica,
responsável pela orientação argumentativa que qualifica a relação entre os
interlocutores. No caso em análise, a intenção orienta-se para o convencimento do
alocutário em termos do valor factível de `Q`, como superação da denúncia
apresentada. Confrontando-se a estrutura em questão com outro formato de denúncia,
conforme descrito em (a) em relação a ‘P’, a intenção também deve ser alterada, pois
o seu papel, nesse novo padrão, implica constatar um certo estado de coisas que se
apresenta como deplorável − ‘existência de surtos de infecção (que têm matado
recém-nascidos em hospitais)’. Em outras palavras, devemos destacar uma intenção
de convencer TUd sobre a ameaça que o conteúdo proposicional em pauta representa.

c) O item (iii) apresenta um outro padrão estrutural, determinado pela dupla atitude
que o sujeito-interpretante pode manifestar diante de qualquer ato de linguagem, isto é,
‘TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’’. Supomos relevante, no plano da estrutura de
um ato, sustentar essa dupla prerrogativa para TUi, já que qualquer tipo de ato, pelo
214

menos em princípio, deve admitir interpretações divergentes. Assim, enquanto TUd,


como projeção de EUc, deve sustentar certo padrão de interpretação consensual, a TUi
reserva-se o direito de padrões interpretativos amplos, já que ele não pertence à esfera
de influência direta de EUc, ainda que este pretenda influenciá-lo através de TUd. No
fundo, as pretensões que EUc reivindica para um ato indicam que, independentemente
de sua natureza − denúncia, mentira, justificativa, apelo... − o referido ato deveria
alcançar um percurso consensual de interpretação, incluindo a instância de TUi. Por
outro lado, a especificidade de funcionamento de um ato particular, deve-se, como nos
outros itens, à natureza da intenção a ser implementada, o que se torna mais complexo
de ser determinado, em razão da dupla possibilidade interpretativa assegurada a TUi.
No exemplo em análise, sugerimos a intenção representada por compreender, já que
através dela TUi estaria apto a assumir, ou a refutar a validade da argumentação,
construída para o ato-denúncia. Desse modo, sua interpretação decorreria de uma
análise onde a relação ‘se P, então Q’, ou seria considerada procedente, ou seria
recusada. Divergências e polêmicas interpretativas devem ser resguardadas nesse plano
da estruturação de um ato de linguagem, pois até mesmo para a construção do ato-
mentira, ainda que venhamos a manter a expectativa do seu desvelamento, conflitos
interpretativos podem emergir. Na instância de TUi admitimos, portanto, que mentiras
sejam desveladas, à proporção que se compreende a falácia da relação causal ‘se P,
então Q’, ou que denúncias sejam ratificadas, à proporção que se compreende a
procedência de sua formulação.

Em resumo, o novo arranjo proposto para explicitar relações interlocutivas em


diversos planos de realização de um ato de linguagem, seja na sua dimensão estrutural, seja
nos seus aspectos contingenciais, visou a destacar aqueles momentos que consideramos
essenciais para sua construção. O primeiro item destaca a dimensão produtiva do ato,
incluindo componentes, o papel atribuído a cada um deles e o esforço de construção de um
consenso em razão de intenções a serem implementadas; o terceiro item destaca a dimensão
interpretativa, seus componentes, a função a eles conferida e a possibilidade de uma ruptura
do domínio hegemônico de JEc no processo enunciativo pela introdução do dissenso e da
polêmica; por fim, o item intermediário enfatiza a dimensão de ‘cont(r)ato interlocutivo’,
essencial para assegurar, no plano discursivo, convenções e intenções dialógicas. A
preocupação de se mapearem espaços mais delineados para a intervenção das instâncias
215

locutivas e alocutivas, no processo enunciativo, propiciou-nos a perspectiva do rearranjo para


a formulação proposta por Charaudeau. 155

Na análise de outros exemplos, estaremos nos dispensando da tarefa descritiva de


relatar a dimensão estrutural de um ato, a não ser em circunstâncias especiais. A nossa
preocupação consistirá, de modo mais direto, no registro das alterações processadas no plano
das intenções, assegurando uma diferenciação entre atos diversos. Analisemos, então, um
exemplo de ato-justificativa:

(19) “Partido que não tem candidatura própria é igual a time de futebol que não disputa
campeonato. Perde a torcida.” 156

ato de linguagem: justificativa

EUe TUd

Md = circuito interno:
EUc partidos sem candidatos próprios TUi
perdem eleitores

Mo = circuito externo:
O PDT pode fazer alianças para as
futuras eleições 157

Fig. 6: Ato de linguagem: justificativa

O exemplo (19), representativo do ato de linguagem-justificativa, espelha o mesmo processo


que vimos em (18), com ajustes devidos à circunstância de seu uso. Assim, o sujeito
comunicante - EUc - representa as condições impostas por um determinado partido em termos

155
Julgamos que uma formulação mais apurada da estrutura do processo enunciativo, com vistas à avaliação de
um quadro mais geral de atos de linguagem, está ainda a requerer um recenseamento mais preciso de tipos de
atos existentes e dos limites e critérios que devemos sutentar na construção de uma tipologia.
156
Justificativa de Alceu Colares, recusando alianças do PDT com o PT nas próximas eleições. (VEJA, 17-12-
97, p. 15).
157
No presente exemplo, a correlação entre os dois circuitos pode ser formulada do seguinte modo: < Se o PDT
fizer alianças para as futuras eleições (Mo = P), então o PDT não terá candidatos próprios e perderá eleitores (Md
= Q)>.
216

da conveniência de coligações eleitorais. Todos os sujeitos enunciadores, determinados nessa


circunstância produtiva, apenas se constituem como intermediários para fazer chegar a um
TUd, destinatário ideal, o conteúdo relatado no ato. TUi, como sujeito interpretante, pode
assumir a verdade do conteúdo do ato, aceitando a justificativa para ausência de coligação,
identificando-se com TUd, ou pode recusar essa identidade e, portanto, negar a justificativa.
Em outras palavras, um ato de linguagem-justificativa pode apresentar, da parte do sujeito
interpretante, ou o aceite do relato de EUe ou a sua recusa. Essas observações nos levem à
seguinte síntese:

i. EUc constrói o ato-justificativa, através da fórmula ‘se P, então Q’;


INTENÇÃO: validar ‘Q’, como um argumento adequado em relação a ‘P’;

ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd;


INTENÇÃO: convencer TUd a assumir ‘Q’, como um argumento adequado;

iii. TUi assume, ou recusa ‘Se P, então Q’ .


INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato- justificativa

O ato acima apresenta, no plano estrutural, a mesma configuração do anterior, mas


difere daquele pelas especificações que podem ser estabelecidas em termos das intenções que
coloca em jogo, em suas instâncias constitutivas. Avaliemos cada um dos itens:

a) No item (i), EUc pretende que ‘Q’ seja um efeito ilustrativo para ‘P’ que é uma
suposição admissível no âmbito de partidos políticos, ou seja, a possibilidade de se
fazerem alianças. A intenção presente, portanto, refere-se à necessidade de se validar o
conteúdo expresso por ‘Q’ como uma conseqüência plausível para o ato em questão. A
plausibilidade de um argumento para justificativas deve ser entendida como um fator
favorável ou desfavorável a realização de um ato. Para o ato em análise, assumindo-se
‘P’ − ‘o PDT pode fazer alianças para as futuras eleições’ −, ‘Q’ deve ser ressaltado
como um argumento desfavorável, ao menos em relação à parte do conteúdo
proposicional − ‘perderá eleitores’ −, que revela a verdadeira intenção do ato. Por
conseguinte, justificativas podem ser formuladas de modo adverso, já que argumentos
podem vir a tornar-se plausíveis, embora sendo contrários e desfavoráveis à realização
de um ato.
217

b) No item (ii), a intenção presente será representada pela necessidade de se convencer


TUd a aceitar ‘Q’ como argumento relevante para justificar a existência de certo estado
de coisas. Justificativas, pelo teor contingente e até mesmo instável que podem
suscitar, requerem, portanto, a necessidade de uma intenção que permita EUé
interpelar TUd, convencendo-o da importância de ‘Q’. Nesse particular, o ato-
justificativa pode contrapor-se ao ato-mentira, já que o primeiro deve pressupor a
verdade de ‘Q’ − sendo favorável ou não − como um argumento válido, enquanto o
segundo deve implicar a falsidade de ‘Q’, ainda que a intenção que prevalece, neste
último, seja também a de convencimento do sujeito-destinatário.

c) Em (iii), a instância de TUi continua produzindo uma dupla possibilidade


interpretativa do ato. Essa condição estruturante deve ser especificada, pelo fato de a
intenção a ser acionada contemplar esferas mais amplas de construção de um ato.
Assim, uma vez que sujeito-interpretante não se limita à esfera discursiva do processo
enunciativo, a ele são asseguradas plenas condições de interpretação e ‘compreender a
orientação argumentativa’, construída para o ato, significa a possibilidade de
julgamento de sua adequação em termos de conteúdos proposicionais recorrentes.
Apesar do esforço de EUc em formular um argumento válido, e da suposição que nos
leva a admitir ‘Q’ como verdadeiro, haverá sempre a possibilidade de uma
confrontação com TUi que, de posse de outros dados, poderá invalidar a correlação
causal. Afinal, a instância interpretante é o lugar apropriado para se engendrarem
polêmicas.

Os comentários descritos nos três itens acima, em termos das intenções que qualificam
parte das relações entre os interlocutores, procuram apontar alguns aspectos que possibilitam
distinguir o ato-justificativa de outros atos. Admitimos a existência de aspectos que permitem
confrontar justificativa com mentira ou com equívoco, exatamente pelo fato de estes últimos
sustentarem sua argumentação em premissas falsas, intencionalmente construídas ou não. É
evidente, porém, que mentira e equívoco somente se revelam como tal, à medida que
detectamos a falsidade de uma das premissas. Qualquer interpretação que possamos propor
para um ato não deve, portanto, ser considerada como a única forma de seu funcionamento
218

interlocutivo. Controvérsias e descompassos, nesse momento de uma compreensão ainda


incipiente dos fenômenos de enunciação, interferem diretamente nas ‘armadilhas’ que
construímos numa perseguição, sem tréguas, da pluralidade de vozes dos sujeitos.
A análise que temos empreendido, ainda que apenas demonstrativa do funcionamento
de um modelo de enunciação, é uma tentativa formal de explicitar alguns parâmetros de como
podemos chegar à compreensão de critérios que regem o pragmatismo. Retomando parte de
trecho anterior, notamos que a preocupação de Peirce está centrada nos mesmos aspectos que
temos enfatizado como resultado da análise do processo enunciativo, no modelo em questão.
PEIRCE (1977, p.294) complementa : “O pragmatismo (...) tenta definir o propósito
racional, e isto ele descobre na conduta utilitária da palavra ou proposição em questão.”
Ora, é precisamente esse “propósito racional”, ou seja, um ato de linguagem, que o modelo
em tela tenta fazer emergir, a partir do valor utilitário que as proposições assumem no
conjunto de nossas práticas discursivas. O fato de um modelo de enunciação fundamentar a
análise de efeitos práticos decorrentes da atividade discursiva, a partir do uso de proposições,
autoriza o seu estreitamento conceitual com o projeto de Peirce para o pragmatismo. Vejamos
outros casos complementares:

(20) “Existe uma crise horrível, que abala os alicerces do governo, e ele fica por aí
conversando com o Maluf.” 158

ato de linguagem: reclamação

EUe TUd

Md = circuito interno:
EUc conversas do presidente com o Maluf TUi
não resolvem a crise

Mo = circuito externo:
o país está passando por uma séria
crise 159

Fig. 7: Ato de linguagem: reclamação

158
Comentário da deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), criticando FHC por se encontro com Paulo Maluf. (VEJA,
25-06-97, p. 14).
159
Podemos determinar a relação implicativa presente no quadro, do seguinte modo: < Se o país está passando
por uma séria crise <(Mo = P), então conversas com o Maluf não ajudam resolver a crise (Md = Q)>.
219

Em (20) temos um ato de linguage-reclamação que podemos, em resumo, justificar com as


seguintes observações: (i) EUc ou representa uma voz comum, associada ao conteúdo de Mo,
ou se faz eqüivaler ao sujeito enunciador; no caso de identificação entre EUc e EUe, o valor
empírico de um dos sujeitos, mistura-se com o valor discursivo; (ii) EUe representa o
enunciador que profere a frase ou como uma verdade individual ou como algo justificado por
vozes correntes; (iii) TUd, como sujeito destinatário, deve ser representado pelo público em
geral ou por algum indivíduo ocasional; (iv) TUi representa o próprio presidente, objeto da
reclamação. A reclamação, como outros atos, realiza-se em razão dos mesmos componentes,
mas especifica parte deles em razão de particularidades de seu funcionamento. Uma
reclamação pode estar próxima a uma crítica, mas certamente distingue-se de uma
justificativa ou de uma denúncia, conforme pode ser comprovado na análise dos casos
anteriores. Em cada uma das circunstâncias existem intenções da parte dos integrantes dos
atos que tornam um diferente do outro. Essas considerações podem ser confirmadas pelo
esquema de relações abaixo:

i. EUc constrói o ato-reclamação, através da fórmula ‘se P, então Q’


INTENÇÃO: validar ‘Q’ como um fato desfavorável em sua relação a ‘P’;

ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd


INTENÇÃO: alertar TUd para necessidade de ‘Q’ ser corrigido

iii. TUi assume, ou refuta ‘se P, então Q’;


INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato- reclamação.

O ato-reclamação160 pode ser descrito em termos de uma forma particular de


funcionamento, a partir da especificação de conteúdos proposicionais, como também de
intenções que determinam sua orientação argumentativa. Para cada um dos itens em questão,
podemos estabelecer:

160
A classificação do exemplo (20) como ato-reclamação não deve ser considerada a única forma possível de
qualificá-lo. Poderíamos, por exemplo, aproximá-lo do ato-crítica, desconsiderando que entre os dois possa
existir uma demarcação clara. Os aspectos mais visíveis que apontamos para a reclamação − o fato de ‘Q’
representar um conteúdo negativo, a pretensão que o teor de ‘Q’ seja superado − são também extensivos à
crítica.
220

a) Em (i) especifica-se que o conteúdo ‘Q’, que é transmitido a TUd, deva caracterizar
um estado de coisas cujos efeitos práticos derivados se mostram desfavoráveis, ou
inconvenientes a supostos destinatários da ação. Desse modo, devemos entender a
intenção de validar ‘Q’, assumindo-o como algo que retrata um comportamento, um
valor indesejável, ao menos para a relação estabelecida com ‘P’. Reclamações, de um
modo geral, reproduzem fatos que incomodam pela sua presença incompatível com
estados de coisas previamente admitidos, como ‘P”, no exemplo. Nesse particular, o
ato-reclamação opõe-se ao ato-elogio, por apresentar este um conteúdo favorável ao
estado de coisas ao qual se acha vinculado.

b) O item (ii), ao representar a interpelação de TUd por EUe, mostra ‘Q’, em razão do
seu valor indesejável já descrito, como conteúdo que EUc espera, seja corrigido no
curso do tempo. A influência que EUc pode exercer sobre TUd foi traduzida em
termos de uma intenção que expressamos através de alertar − e não mais convencer −,
já que uma reclamação não implica que o seu destinatário seja, necessariamente, o
canal adequado para sua superação. Logo, não devemos supor que a interpelação sobre
TUd seja da ordem do convencimento, já que nem sempre é ele a instância apropriada
à correção de ‘Q’. Entretanto, reclamações podem conter uma orientação específica
para a solução de problemas, quando recorrem à postulação de um TUd que, nesse
caso, deve assumir o papel de interpretante, ao qual conferimos, publicamente,
autoridade na execução de certas tarefas.

c) Em (iii), resguardamos as mesmas características dos atos anteriores, possibilitando


que uma reclamação possa ser assumida como procedente ou possa ser refutada, dado
o fato de que TUi conhece a correlação ‘se P, então Q’. A circunstância de intervenção
de TUi no ato, como já vimos, define-se em razão de parâmetros mais amplos: a ele é
conferido o dever de avaliação mais aprofundada dos interesses, dos pressupostos que
envolvem a formulação e o uso de um ato. Em razão das especificações presentes,
devemos considerar, então, que a intenção represente a necessidade de se avaliar a
natureza argumentativa do ato, julgando-se a legitimidade dos efeitos práticos
decorrentes de seu uso. Tanto numa dimensão de registro − quando destinatários não
têm poder sobre a solução do reclame −, quanto numa dimensão de cobrança − quando
os destinatário se tornam portadores de sua solução − o desempenho de TUi pode
221

englobar posições diversas, asseguradas pelo teor estrutural do item no esquema


proposto.

Ao analisar o ato-reclamação, procuramos localizar os detalhes que compõem


a sua especificidade como um ato distinto de outros já comentados. Essa diferença, mais uma
vez, foi sustentada por intenções que se materializam nos argumentos, em diversos momentos
de sua construção. Ainda que intenções continuem gerando incertezas nas circunstâncias
diversas em que são implementadas como um instrumento de análise, não vemos razões para,
em nome de uma certeza controlada, ou de um controle da certeza, fugir ao convívio com
‘estruturas’ e padrões de análise que, embora efetivos na compreensão de muitos fenômenos
de linguagem, ainda nos deixam ruborizados por soluções ad hoc que precisam ser
contornadas. Avaliemos, na seqüência, o ato-desprezo.
(21) “Gostaria de mostrar a minha alegria de receber mais uma vez em território
francês o presidente do México.” 161

ato de linguagem: desprezo

EUe TUd

Md = circuito interno:
EUc presidente francês troca Brasil com TUi
México

Mo = circuito externo:
desprezo pelo conhecimento de fatos
de países do terceiro mundo 162

Fig. 8: Ato de linguagem: desprezo

A análise de (21) pode nos mostrar alguns aspectos distintos de funcionamento desse quadro,
se o comparamos aos anteriores. Gostaríamos antes, porém, de fazer nesse caso −o que
também poderia ter sido feito para os demais − uma pequena incursão sobre sua dimensão
como ato de fala. Como tal, o presente ato realiza-se no ponto declarativo e modo-
designativo, o que lhe confere o poder de o objeto em questão, Fernando Henrique Cardoso,

161
Proferimento de Jacques Chirac, presidente da França, em encontro na Guiana com Fernando Henrique
Cardoso. (VEJA, 10-12-97, p. 14).
162
A correlação entre os dois estados de coisa do quadro representa: <Se há desprezo pelo conhecimento de
fatos de países de terceiro mundo (Mo = P), então presidente francês troca Brasil por México (Md = Q)>.
222

ser assim designado − ‘presidente do México’ − a partir de sua enunciação. Como se trata de
um desprezo − ou de um equívoco, como veremos com outra perspectiva de análise −,
voltemos aos atos de linguagem para aferir os efeitos práticos que decorrem de um
descompasso entre os sujeitos componentes do evento discursivo.163 Assim, EUc identifica-se
com o seu enunciador, EUe, ainda que os pressupostos de EUc possam conter outras intenções
capazes de modalizar o proferimento de EUe e fazê-lo depreciativo ou transformá-lo em erro,
por exemplo. Por outro lado, o esforço de EUc em fazer com que TUd − o presidente que está
sendo saudado naquele momento − identifique-se a EUe não prevalece por romper com a
pressuposição existencial, a de que, no momento da enunciação, as designações Fernando
Henrique Cardoso e presidente do Brasil pressupõem o mesmo referente. Assim, um ato que
rompe com uma pressuposição dessa ordem desfaz o vínculo ideal de manutenção da
submissão de TUd às intenções de EU. O resultado dessa ruptura é que TUd se iguala a TUi e
este, como um interpretante de todo o processo e vendo-o do seu exterior, já que não integra o
circuito interno da fala, além de detectar o equívoco também pela falha da pressuposição,
ainda pode acrescentar-lhe intenções e admiti-lo como desprezo. Esse procedimento de
análise, considerando-se o jogo de relações interlocutivas, pode apontar diferenças entre um
ato de linguagem e um ato de fala. Ainda que o resultado final possa ser parcialmente o
mesmo, o processo enunciativo que nos leva a detectar os efeitos práticos do ato − equívoco,
desprezo − se enriquece, quando acionamos intenções e comportamentos dos personagens que
desdobram cada um dos lugares da enunciação. Por essa razão, estamos convencidos de que a
conjunção desses dois objetos conceituais − as duas vertentes de atos lingüísticos
consideradas na presente abordagem − parece, mais do que nunca, um instrumento para
alcançar o que Peirce denomina como “totalidade dos efeitos práticos”. Em resumo, as
relações enunciativas, acima descritas, podem ser organizadas no seguinte esquema:

i. EUc constrói o ato-desprezo, através da fórmula ‘se P, então Q’

163
Quanto à TAF, uma possibilidade de análise seria considerar o equívoco como o fato de um ato ser mal-
sucedido. Se tem essa característica, então é preciso nele identificar o defeito que o levou a ser assim constituído.
Repassando de memória os componentes da teoria, retemo-nos nas condições de sinceridade ou nas condições
preparatórias. Se o defeito está nas condições de sinceridade, o proferimento em questão não revela o estado
mental do falante: ele registra o estado mental de que Fernando Henrique Cardoso é presidente do Brasil, e o
saúda como presidente do México. Entretanto, é difícil supor que uma questão protocolar de saudação, seja
propícia à manifestação de descortesias desse porte. Passemos, pois, às condições preparatórias: ato falha ao
romper com uma pressuposição existencial que identifica Fernando Henrique Cardoso a presidente do Brasil.
Aqui parece localizar, de modo mais sensato, a origem do equívoco.
223

INTENÇÃO: validar ‘Q’ como um conteúdo negativo;

ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd;


INTENÇÃO: humilhar TUd através do conteúdo de ‘Q’;

iii. TUi assume ou refuta ‘se P, então Q’


INTENÇÃO: compreender a orientação argumentativa do ato-desprezo.

O ato em questão, analisado na sua dimensão de desprezo, revela-se diferente de


outros atos, a partir de especificações que devemos demarcar para algumas das intenções que
são fundamentais na determinação de sua orientação argumentativa. Para cada um dos itens
especificados acima, vamos realçar os aspectos que contribuem para sua singularidade:

a) Em (i), devemos assegurar para o conteúdo `Q` a necessidade de ser ele


representativo de um estado de coisas que se traduz pela depreciação. Assim, devemos
entender que a intenção de validar ‘Q’ visa a depreciar o seu destinatário, ainda que o
depreciação seja resultado de mera troca de nomes. Desprezo, de um modo geral,
retrata estados de coisa que incomodam pelas inconveniências, pelos desacertos
derivados. Nesse particular, o ato-deprezo contrapõe-se a atos como elogio pela
natureza do conteúdo proposicional que devemos considerar em cada um dos casos.
Nem desprezo, nem elogio são estratégias enunciativas comandadas por convenções,
mas o conteúdo proposicional de um e outro deve conter traços característicos que
sejam adequados à natureza semântica dos atos.

b) Em (ii), EUe interpela TUd através de ‘Q’, que representa, como visto no item
anterior, um estado de coisas depreciativo para o destinatário. Outros atos também
implicam conteúdo negativo em ‘Q’, mas o desprezo requer a condição complementar
de que tal conteúdo seja dirigido a um possível destinatário, ou a um estado de coisas
que ele integra. Essa condição adicional conduz a orientação argumentativa,
representada pela intenção de humilhar. O ato-elogio que destaca a intenção de
enaltecer também exige a mesma condição complementar, apenas orientada com
valores opostos.
224

c) O item (iii) reproduz as mesmas prerrogativas gerais de outros atos para TUi: trata-
se da instância enunciativa apropriada ao rompimento das ações que garantiram certa
fluição do ato-desprezo. Se TUi refuta a orientação argumentativa apresentada, ele o
faz, descredenciando as pretensões de EUc em humilhar o destinatário. Se assume a
argumentação, ele aceita as pretensões à validade de Q, engendradas na criação do ato.
Não há, com certeza, um padrão definido que direcione TUi à rejeição do argumento
de EUc, a não ser nas circunstâncias em que o desprezo alcança diretamente a esfera
do interpretante como um alvo selecionado. Contrariamente, a aceitação do desprezo
deve implicar neutralidade de TUi diante da orientação argumentativa em (ii).

A estruturação dos atos atende, como temos visto, a um padrão geral de relações e de
princípios, insuficientes na tarefa de caracterizar atos particulares, os quais têm sido
explicados com base na especificação de intenções e até de condições especiais sobre o
conteúdo proposicional, como mostramos para o caso presente. Há atos, todavia, que mesmo
depois de justificados por padrões específicos acabam se mantendo numa situação ambígua.
Assim, nada impede que possamos avaliar tal ato também como um equívoco, já que sua
enunciação permite derivar um efeito prático de que EUe cometeu, involuntariamente, um
erro, uma gafe. Vejamos uma reanálise do ato com base em outros padrões que devemos
introduzir para sua compreensão:

ato de linguagem: equívoco

EUe TUd

Md= circuito interno:


EUc presidente francês confunde presidente TUi
do Brasil com o do México

Mo = circuito externo:
presidente francês sabe que o Brasil
não é o México 164

Fig. 9: Ato de linguagem: equívoco

164
Além da alteração de parte do conteúdo dos dois universos, também alteramos a relação entre eles. Assim,
obtemos ‘P, mas Q’: < Presidente francês sabe que o Brasil não é o México (Mo = P), mas confundiu o
presidente do Brasil com o do México (Md = Q) >. Um levantamento mais extenso de atos de linguagem nos
levará, com certeza, à formulação de outros padrões de relações além das duas até agora discutidas.
225

A análise de (21), na dimensão de um ato-equívoco, comporta o seguinte esquema de relações


interlocutivas e de intenções:

i. EUc ‘constrói’ o ato-equívoco, através da fórmula ‘P, mas Q’


INTENÇÃO: descrever um estado de coisas através de ‘Q’;

ii. EUe enuncia ‘Q’ a TUd


INTENÇÃO: relatar ‘Q’ a TUd, como uma informação que julga correta;

iii. TUi refuta ‘Q’


INTENÇÃO: compreender a extensão do ato-equívoco.

A organização que atribuímos ao ato-equívoco reproduz apenas o esqueleto geral de


padrões até agora recorrentes na maioria dos atos estudados. As dificuldades de sua
organização referem-se aos componentes estruturais, bem como à natureza das intenções
presentes. Avaliemos alguns pormenores nas etapas de sua organização:

a) No item (i), em casos já analisados, admitimos o fato de EUc construir um ato a


partir de uma relação postulada entre o universo psicossocial e o universo do discurso.
A situação mostra-se distinta para o ato-equívoco: não se trata de uma construção de
EUc na extensão atribuída à expressão para os outros atos; daí havermos anotado
‘constrói’. Nos atos anteriores, EUc não só produz uma relação de causalidade entre os
dois universos, como também qualifica essa relação em termos da intenção de validar
‘Q’ como um argumento adequado. Para o equívoco, além de não podermos afirmar
essa produção, precisamos também remover quaisquer pretensões de validar um
argumento, mantendo apenas uma intenção fraca165 que implica descrever certo estado
de coisas, sem a necessidade de uma vinculação clara entre os dois universos. Logo, a
importância de uma intenção neutra e genérica166 decorre da possibilidade de
conferirmos a ‘Q’ certa autonomia semântica, o que não anula a existência de ‘P’,

165
Por outro lado, se fortalecermos a dimensão intencional do ato, introduzindo, voluntariamente, uma intenção
específica, gerando, pois, outra orientação argumentativa, correríamos o risco de convertê-lo, de novo, em
desprezo, por exemplo.
166
Uma intenção assim determinada − descrever, relatar, transmitir − constitui mais um pressuposto para
qualquer forma de ato, do que um componente adicional, capaz de imprimir ao ato uma orientação argumentativa
precisa.
226

como um pressuposto. Equívocos e descuídos, na instância produtiva, representam


ruídos involuntários que não se prestam a justificativas racionais de uma correlação
entre os universos. A estrutura correlacional formulada − ‘P, mas Q’ (ou também
‘Apesar de P, Q’) −, ainda que formalmente correta como componente do ato, na
perspectiva de EUc só pode ser verificada a posteriori, isto é, a partir do momento em
que EUc ‘se der conta da mancada’.

b) Em (ii), a estrutura geral do ato permanece idêntica à de outros já analisados, uma


vez que sua função é apenas a de tornar o processo interlocutivo viável, restando
apenas algumas observações sobre o plano das intenções. Nesse caso, sustentamos
uma intenção genérica que qualifica a relação de EUe com TUd com a finalidade de
relatar informações contidas em ‘Q’, que EUe julga procedentes. Existem razões para
que reforcemos o papel de uma intenção, ainda com teor global. Contrariamente à
suposição que nos conduziria, por uma questão de coerência com o que foi observado
para a intenção em (i), a esvaziar, de todo, o seu peso qualitativo, julgamos importante
registrar algum vestígio intencional, como estratégia argumentativa, porque seria
pouco provável admitir relações interlocutivas desprovidas de intenção. Entretanto, se
o equívoco resulta de um ruído involuntário, do qual EUc e, conseqüentemente, EUe
não têm consciência a priori, ele deve manter a feição de funcionamento de qualquer
outro ato, retendo, ainda assim, algum traço intencional. Razões dessa natureza
mostram que o equívoco não pode ser revelado na instância de EUc, pois isso o faria
equivalente à mentira, nem na de EUe, já que não dispõe de autonomia e dos
elementos suficientes para detectar o erro. Para EUe qualquer ‘Q’ comporta uma
qualificação intencional, ainda que seja uma intenção fraca que nos conduza a reportar
o conteúdo ‘Q’ a TUd. A apuração do ruído, também na extensão de EUe, só pode ser
possível a posteriori.

c) Em relação a (iii), devemos alterar parte do padrão usado para analisar outros atos,
porque a TUi só podemos associar a condição de refutar o conteúdo de ‘Q’, como
válido para a descrição de um estado de coisas. As
condições de atuação do sujeito-interpretante indicam que ele dispõe do conhecimento
da relação ‘P, mas Q’ e, por essa razão, descarta qualquer pretensão à verdade para
‘Q’. Por mais recursos que sejam necessários para considerar ‘Q’ como falso, a
227

instância de TUi deve ser capaz de fazê-lo, pois, do contrário, teríamos o equívoco
assumindo o valor de uma verdade. Para equívocos transparentes − como a troca de
nomes no exemplo − sua constatação é imediata e o próprio TUd assume a função de
interpretante, denunciando-o.

4.3.2.3 Observações complementares

No decorrer da análise dos conceitos e procedimentos que constituem um ato de


linguagem, na formulação da semiolingüística, proposta por Charaudeau, procuramos
selecionar os momentos em que a teoria foi mais explícita em relação ao processo
enunciativo. A razão fundamental dessa escolha procede da necessidade de mostrar, como
começamos a fazê-lo com o estudo da TAF, que é impossível tratar-se de práticas de
linguagem sem um avanço decisivo sobre a estrutura do processo enunciativo. Todo o
desenvolvimento recente da lingüística, em áreas como a análise do discurso, a análise da
conversação, a teoria modular do discurso, apresenta, em comum, uma incursão deliberada
sobre a enunciação, como um novo padrão de análise da compreensão dos fatos de linguagem.
De uma lingüística de enunciado estamos avançando na direção de uma lingüística da
enunciação.

Todo esforço de análise e de compreensão de objetos lingüísticos, descritos nos


capítulos II e III, responde por uma parcela significativa daquilo que representou a questão da
linguagem nas últimas quatro décadas; não há porque, de fato, desconhecer a sua relevância, o
avanço que representou para os estudos da linguagem. No entanto, essa relevância aferida, às
vezes por instrumentos potencialmente sofisticados, mostrou-se sempre incapaz de prover
respostas adequadas e, sobretudo desejáveis, para grande parte das intuições que temos do uso
da linguagem.

Desse modo, a abordagem que acabamos relatar, ainda que embrionária na


explicitação formal do estatuto de muitas de suas correlações, emerge como uma estratégia
fecunda que devemos assumir como necessidade para compreender um propósito racional nas
nossas práticas. É nessa perspectiva, portanto, que a proposta da semiolingüística pode
228

representar um outro patamar de discussão, como o fizemos em relação a alguns casos, para
os problemas afeitos a uma construção do pragmatismo.

4.4 Considerações finais

Para concluir a discussão que desenvolvemos ao longo desse capítulo, é importante


retomar certas orientações básicas que nortearam a formulação de Peirce sobre o
pragmatismo, cotejado com os dois modelos que usamos para tentar justificar alguns de seus
aspectos funcionais. A escolha para uma reflexão que possibilitasse aproximar pragmatismo
de atos de fala, de um lado, e pragmatismo de atos de linguagem, de outro, origina-se no fato
comum de que as três abordagens partilham a idéia de que condutas práticas possam ser
construídas a partir da linguagem. Essa constatação inicial, embora essencial à discussão,
agrupa as três abordagens, apenas fazendo referência a uma dimensão exterior que associamos
à natureza do seu objeto de conhecimento, isto é, de comportamentos derivados do uso da
linguagem.

Existem, todavia, razões locais que diferiram de um momento para outro no confronto
e que significaram uma avaliação funcional mais detalhada de procedimentos de análise.
Quando retomamos o pragmatismo. através dos atos de fala, o objetivo central era analisar os
atos, como instância portadora de um quadro geral das condições que permitem converter
linguagem em ação. Quando se procedeu à retomada do pragmatismo, via atos de linguagem,
o interesse deveu-se ao fato de os atos serem fundamentados em procedimentos de análise que
consideram interações entre os componentes do processo enunciativo. O que fizemos,
portanto, foi inserir, no contexto do pragmatismo discutido por Peirce, duas ordens de
questões: uma construída em termos do resultado da atividade de locutor e alocutário − atos
de fala −, outra fundamentada em termos de divergências e convergências entre instâncias
enunciativas − atos de linguagem −.

Além desse roteiro programático de incursão no pragmatismo, conforme acabamos de


delinear, a análise das três abordagens perpassa uma dimensão que representou, ao longo
dessa exposição, o ponto de convergência mais significativo, isto é, o esforço de se construir,
229

no campo dos efeitos práticos, uma racionalidade que seja a expressão maior de todas as
condutas práticas do homem. Ao avaliarmos cada uma das abordagens, estivemos
preocupados em resgatar princípios, orientações e formulações que nos levassem a uma
especificação singular desse problema. Disparidades técnicas e conceituais na formulação de
um objeto próprio de análise, entretanto, não fizeram delas organismos incompatíveis, quando
o objetivo central era o de mostrar o esforço na construção dessa racionalidade. Na seqüência,
pretendemos reativar alguns aspectos que representaram, no decorrer de toda discussão desse
capítulo, o motivo maior da análise, ou seja, a possibilidade de uma fundamentação racional
do comportamento.

A reflexão de Peirce não deixa dúvidas quanto ao estatuto que confere ao


pragmatismo: este deve constituir-se na doutrina capaz de de formular condições sobre as
nossas ações, as nossas práticas. O texto do autor não é um receituário preciso de princípios e
técnicas que possibilitam uma compreensão instrumental do pragmatismo: suas bases estão
alicerçadas precisamente nas outras categorias que representam estágios diferentes da
compreensão. Se a racionalidade tende, gradativamente, a ser construída a partir de padrões
que recobrem sensação, formulação, representação, não haveria motivo para que o seu
estágio derradeiro, o da conduta exterior, devesse ser representado por práticas resultantes do
acaso. Supor o aleatório da conduta, numa extensão relevante, significaria, em resumo, supor
que para agir devêssemos abandonar, ou até mesmo desconhecer todo o processo de
construção de conhecimento que incorporamos através de etapas sucessivas. Se avançamos na
compreensão do universo através de experiências que nos são sensíveis, da concepção que
formulamos, e da existência que representamos, não seria sensato supor que viéssemos agir
sobre esse mesmo universo de modo aleatório, que viéssemos separar uma e outra atitude.

Não existem razões plausíveis que nos levem a admitir que a nossa conduta sobre o
universo não seja tributária da compreensão que dele construímos. Ao contrário, o que
elaboramos em diversos estágios, fizemo-lo em razão de uma economia do agir, de uma
economia que permite ajustar a qualidade e a quantidade daquilo que compõe o nosso
comportamento. Das formas mais elementares de atuação, às mais elaboradas, estamos
sempre em busca de caminhos menos espinhosos, de um dispêndio menor de energia, de uma
execução mais rápida das tarefas. Ainda que venhamos, por algum tipo de motivação
esporádica, a contrapor-se à “lei do menor esforço”, ao “princípio da alavanca”, procedemos
230

desse modo por anomalia, o que irá requerer de nós cuidados extremos, maior gasto de
energia, mais desperdício de tempo. Ao caminharmos numa direção da experiência imediata,
defrontamos com uma questão proposta por Peirce, a de que o pragmatismo não deve ser visto
como uma espécie emanação do propósito concreto; ele estipula condições para o agir
racional, mas ele não é uma legislação sobre esse agir, já que não tem nem poder regulador,
nem poder censório. Em resumo, não é a conduta concreta que regulamenta a existência do
pragmatismo, mas é este que dispõe sobre os princípios de racionalização daquela. As
observações que associamos ao texto de Peirce abordaram a questão das condutas, sem
especificar as condições de sua realização. Como fica, então, o agir assim descrito quando o
meio de sua realização é a linguagem ?

A percurso que procuramos desenvolver sobre a TAF, no presente capítulo, orientou-


se, precisamente, pela questão acima aventada, a saber, o fato de ser ela um esforço teórico de
construção de uma racionalidade de ações mediadas pela linguagem. Se a proposta de Peirce
não chega a diagnosticar um formato específico de funcionalidade para estratégias racionais
da conduta, a TAF demonstra que essa funcionalidade pode, ao menos em termos do alcance a
que a teoria se propõe, ser estruturada a partir de padrões conceituais recorrentes, como
condições de aplicação de um ato de fala. Entretanto, dada a complexidade e a amplitude das
ações que o nosso habitat social comporta, a diagnose das condições que regem atos
específicos implica não apenas amplos ajustes, o ponto de realização de um ato que propicia
um recorte genérico da realidade, como também restrições circunstanciais de funcionamento,
as condições preparatórios que podem condicionar realizações singulares. Formalizar e
processar o global e o local, ao mesmo tempo, tem representado um desafio para a teoria: que
condições devemos atribuir á dimensão necessária e que outras devemos circunscrever nas
contingências de sua realização local ?

Se assumimos uma promessa como exemplo, podemos dizer que a sua condição de
conteúdo proposicional − ação futura a ser desempenhada pelo locutor − expressa um teor de
necessidade, pois não conhecemos tal ato cujo valor proposicional descrito não seja o
desempenho futuro em relação ao momento de seu proferimento. Por outro lado, mas ainda
em relação à promessa, existe um aspecto das condições preparatórias que assegura que a ação
a ser realizada deva ser benéfica ao alocutário. É evidente que temos algum padrão de
julgamento entre o que pode ser bom ou ruim para alguém, mas esse padrão não tem o mesmo
231

estatuto acima mencionado da idéia de ação futura. Em atendimento a essa condição,


comumente, não construímos promessas como ‘Prometo cortar-lhe o braço’, mas nada
impede que ela, em contextos específicos − por exemplo, um paciente com um dos braços
dominado pela gangrena − seja benéfica ao alocutário.167 De toda forma, as condições
preparatórias, sobretudo em relação ao seu caráter especial, assumem um teor contingencial na
realização de atos. Raciocínio semelhante poderia ser formulado para outros tipos de ato, para
outras circunstâncias aplicativas. A preocupação, porém, é mostrar como um ato se torna
representativo para condutas racionais. O que há de racional no funcionamento do ato acima
descrito ?

A racionalidade de uma promessa, como de outros atos, contém graus diferenciados,


pois tanto podemos concebê-la na instância do necessário como na do contigente. Saber de
uma promessa que ela será sempre uma ação a ser executada no futuro constitui um traço da
sua racionalidade, que ela partilha com a racionalidade de outros atos − como a ordem, por
exemplo −, ou que se contrapõe com a de alguns outros − como a asserção, por exemplo −. Da
mesma forma, saber que um conteúdo proposicional pode ser benéfico ao alocutário também
representa um traço de racionalidade desse ato, que pode ser partilhado, ou contraposto a
tantos outros. A aferição do conteúdo proposicional a partir de um sistema axiológico, como
vimos no exemplo acima, é sempre um complicador no processo de análise, mas isso é
inevitável em se tratando dos atos de fala, tais as circunstâncias materiais a que se submete o
nosso discurso.

Falar dessa racionalidade, todavia, não é assegurar a realização de um ato de fala, nem
afirmar que todo ato não realizado é, por definição, irracional. Nem promessas, nem ordens
deixarão de ser realizadas pelo simples fato de a sua racionalidade conter o princípio ético de
que uma promessa, formulada em condições apropriadas, deve ser realizada e que uma ordem,
respeitando condições adequadas, deve ser cumprida. As possibilidades de rompimento de tais
contratos de fala não colocam em dificuldade a TAF, pois ela não é um manual de condutas
práticas que prescreve e normatiza atos, mas um construto que justifica as condições ideais de
sua realização. Como teoria, ela se obriga também à descrição das condições adversas que

167
Em português, temos o uso do verbo ‘prometer’ em formas usuais como ‘Prometo quebrar-lhe a cara’.
Não se trata, com certeza, de uma promessa, precisamente, por violar a condição preparatória em análise, mas
232

dificultam a realização de um ato. Defeitos na construção de um ato, porém, não implicam


uma total impossibilidade de sua realização, muitos podem ser ajustados, corrigidos nas
circunstâncias em que são proferidos.

Outro modo de particularizar a presença funcional de padrões racionais no


pragmatismo foi estabelecido através de uma incursão no campo da Semiolingüística, em
especial no seu esforço teórico de integração dos componentes de um processo enunciativo. A
novidade, como vimos anteriormente, não está em apenas vincular questões de sentido ao
plano da enunciação, mas antes de demonstrar que grande parte da compreensão dos atos de
linguagem está no jogo estabelecido entre os integrantes do processo. Assim, por um processo
de assimetria entre as instâncias componentes da enunciação, procuramos mostrar a diferença
entre diversos atos de linguagem. Aqui também, a abordagem não é um esquema de controle
da conduta, mas uma construção racional de como elaboramos certos padrões ideais de
produção da fala e de sua interpretação. Vejamos, como do ponto de vista da enunciação,
podemos contrastar o padrão de racionalidade presente em dois atos diferentes.

Como vimos anteriormente, na análise de diversos atos de linguagem isolados, o


objetivo na proposição desse quadro é mostrar que os atos se constroem em relação a
divergências e convergências que podemos localizar no processo enunciativo. Para cada tipo
de ato diferente existe um padrão racional distinto que é possível determinar em função das
quatro instâncias enunciativas que foram analisadas. Nesse comentário final, não vamos
desenvolver análise de nenhum ato específico, mas apenas mostrar como o padrão racional
pode ser fixado pelo comportamento dos seus integrantes. Como então, podemos justificar a
diferença entre mentira e equívoco ? Como justificamos o fato de alguém estar mentido ?
Como justificamos o fato de esse alguém estar sendo equivocado em seu proferimento ?

Se considerarmos que os efeitos práticos sobre ações mentirosas ou equivocadas


podem comportar uma certa explicação a partir do modo pelo qual um conteúdo proposicional
possa estar associado a uma instância enunciativa, então podemos demonstrar como, no jogo
interlocutivo, se estrutura um ato de linguagem. Assim, podemos considerar o contraste entre
mentira e equívoco:

sim de uma ameaça.


233

a) enquanto na mentira existe uma oposição entre aquilo que EUc pensa e aquilo
que EUe diz, no equívoco o que EUe diz é idêntico ao que EUc pensa como
verdadeiro. Assim, compreender a mentira significa, nesse momento, identificar,
no lugar do locutor, uma contradição entre as duas instâncias. A compreensão de
um equívoco, por outro lado, não pode ser determinada a partir de qualquer
discrepância no lugar do locutor;

b) enquanto na mentira o que EUe diz é assumido por TUd como verdadeiro, no
equívoco ou TUd assume, ou refuta o que lhe foi dito por EUe. A mentira não será
revelada, portanto, no circuito interno da enunciação, mas o equívoco pode ser aí
solucionado se o desajuste proposicional referir-se diretamente ao sujeito
destinatário. Logo, romper com a mentira é muito mais complexo do que com o
equívoco: aquela foi elaborada na instância de EUc para funcionar como verdade,
o equívoco pode ter sido um mero descuido de EUc;

c) enquanto na mentira TUi refuta o que é assumido por TUd, logo ele assume o
que EUc pensa e não o que EUe diz, no equívoco TUi refuta o que é assumido por
TUd (ou assume o que é refutado por ele). Nesse plano, a mentira é desvelada
pelas condições que o sujeito interpretante reúne para alcançar aquilo que o sujeito
comunicante pensa. O equívoco, se não foi ainda desvelado pelo sujeito
destinatário, será superado pela ação do sujeito interpretante no circuito externo
do discurso.168

As observações acima mostram, de modo funcional, a diferença entre dois atos de linguagem,
comumente presentes na nossa atividade discursiva. Os parâmetros implementados nessa
análise não devem ser considerados como forma de instrumentalização extravagante para o

168
De modo sintético, podemos reproduzir, para as quatro instâncias enunciativas, as comparações acima em
dois esquemas:
a) mentira: EUc pensa ~P b) equívoco: EUc pensa P como verdadeiro
EUé diz P EUé diz P
TUd assume P TUd assume P (ou refuta P)
TUi refuta P (ou assume ~P) TUi refuta P.
No caso presente, o equívoco está sendo considerado apenas em relação ao lugar do locutor. Existem equívocos
que podem ser gerados pelo lugar do alocutário, isto é, resultantes de uma interpretação inadequada.
234

pragmatismo: é possível que práticas interativas comandadas pela mentira ou pelo equívoco já
tenham sido definidas de tantas outras formas. Entretanto, o esquema que a Semiolingüística
propõe ressaltar uma vantagem: ele constrói padrões de estruturas que permitem localizar, no
jogo enunciativo, os efeitos decorrentes de certos atos discursivos: por exemplo, a fonte da
mentira, o seu percurso no processo, o lugar de seu desvelamento.

Por fim, esse quadro de análise, embora aqui apenas esboçado em suas linhas gerais,
representa um avanço na formulação de uma proposta capaz de fundamentar a necessidade de
exigências racionais para práticas ordinárias. Além do mais, a possibilidade de justificar
racionalmente o vínculo entre princípios ordenativos e práticas discursivas, requer que
avancemos na compreensão do processo enunciativo subjacente a essas práticas. Nas
circunstâncias atuais, é inconcebível supor que condutas práticas mediadas pela linguagem
possam ser dissociadas do seu processo de enunciação e nesse sentido as propostas analisadas
representam ambas uma contribuição importante na explicitação de um viés funcional para o
pragmatismo.
235

5 CONCLUSÃO
236

5. CONCLUSÃO

No decorrer da reflexão que desenvolvemos nos quatro capítulos precedentes,


procuramos uma aproximação das formulações de Peirce com abordagens, procedimentos e
teorias que nortearam a discussão sobre a construção do sentido nas línguas naturais nos
últimos tempos. O nosso objetivo maior com essa aproximação consistiu em destacar não
apenas os aspectos em que semântica e semiótica poderiam contribuir para um
desenvolvimento mútuo, como expor diferenças de concepção responsáveis por estruturar, de
modo próprio e quando possível, o objeto de estudo em cada um dos campos em confronto.
Toda essa preocupação se mostra descrita no longo percurso que construímos e que convergiu,
na sua forma derradeira, na construção do pragmatismo. Se essa instância de formulação da
teoria de Peirce contém, de fato, a expressão final da nossa atividade, se ela se faz valer pela
necessidade de uma expressão racional da nossa conduta, se os estágios precedentes devem
ser estruturados para que alcancemos eficácia prática, não podemos, com certeza,
desconsiderar as operações, os procedimentos e os esforços que empreendemos através de um
traçado onde destacamos, paulatinamente, percepção, formulação, representação, além da
ação já incluída no território do pragmatismo. A validade desse projeto para a semiótica deve
incluir a sua extensão à semântica, embora a natureza de certos componentes e a sua
articulação devam ser vinculadas à especificação do funcionamento das línguas naturais,
conforme demonstramos em diversas circunstâncias.

Nessa tentativa de aproximação, os comentários desenvolvidos para as categorias


propostas por Peirce procuraram enfatizar aspectos fundamentais que nos consentiram discutir
sua correlação com abordagens diversas para o objeto da semântica. Nada impede, no entanto,
que segundidade comporte outros padrões conceituais que não aqueles orientados para a
formulação conceitual; nada impede também que a terceiridade possa ser analisada com base
em outros padrões que não o da representação, e assim por diante. Nesse processo de análise,
ao emparelharmos dimensões da teoria de Peirce com dimensões diversas da semântica,
procuramos selecionar o que existia de mais genuíno em cada um dos estágios de sua
discussão. Da mesma forma, quando submetemos a discussão de parâmetros semânticos e
discursivos às categorias desse autor, fizemo-lo em nome da necessidade de uma busca de
237

fundamentação e de uma generalização necessária à compreensão de fenômenos de


significação. Assim, ainda que algumas aproximações com o campo da semântica possam ter-
se manifestado menos orgânicas, procuramos, de algum modo e para um e outro campo,
sustentar uma visão de globalidade, de integração que, se não se materializa ainda de forma
decisiva, ao menos em termos projetivos deve compor as preocupações do seu
desenvolvimento. Se para semiótica, pelo menos na visão de Peirce, não há como fugir a essa
integração, também não vemos como na semântica se possa desconhecer quaisquer desses
estágios, ainda que nenhuma das teorias disponíveis o tenha realizado do modo efetivo. No
decorrer dos quatro capítulos procuramos escrutinar conceitos, categorias, que demarcaram
especificidades do quadro conceitual e operacional da semântica e da semiótica. Na seqüência,
evitando retomar, no mesmo padrão, o que já foi discutido, estamos propondo um comentário
final para falar da importância da implicação de questões de sentido num plano de efetivas
práticas sociais e cognitivas.

Assim, depois da tentativa de aproximar os dois campos conceituais, gostaríamos de


destacar dois aspectos sobre os quais incidem dificuldades e orientações que podemos fazer
derivar do trabalho aqui desenvolvido. Uma primeira dimensão refere-se à questão
concernente à maneira pela qual processamos os dados alcançados pelo percepto e como os
estruturamos na forma de conceitos, tendo em vista a análise desenvolvida nos três primeiros
capítulos. A segunda relaciona-se à possibilidade de uma justificativa para a racionalidade de
nossas ações, quando expressas de forma determinante através de atos lingüísticos, lato
sensu.

5.1 - Percepção e estruturação conceitual

Além das diferenças que destacamos ao longo de nossa discussão, semântica e


semiótica ainda convergem em razão de um interesse comum que a uma e outra podemos
associar. Trata-se das pretensões que podemos associar-lhes com referência à explicitação dos
parâmetros de funcionamento do processo de significação. Por esse motivo, ambas perseguem
um único objetivo em comum, qual seja o de construir sistemas de representação para
sentidos atribuídos aos objetos, às palavras, ou a quaisquer outros meios, que elegemos como
238

instâncias representativas. Poderíamos unificar a presente discussão, considerando-se


semântica e semiótica no plano geral de uma teoria do sentido, com especificações próprias a
serem avaliadas a partir do meio de representação selecionado. Essa associação, com certeza,
deve ser erguida e sustentada pela integração direta de preceitos e procedimentos derivados de
três padrões diferentes da atividade humana, isto é, processos perceptivos, processos
cognitivos e processos de representação. A conjunção desses três planos resulta num
comando geral que determina formatos possíveis para nossos comportamentos, para nossas
condutas práticas. Assim, compreendemos a formulação de Peirce e a traduzimos num
formato ajustado à análise de modelos e padrões derivados das abordagens semânticas. Que
papel devemos atribuir a cada um dos estágios que compõe a perspectiva de uma teoria do
sentido ?

O vasto terreno em que situamos os problemas de nosso agir e, em especial do nosso


agir comunicativo, requer instâncias constitutivas diversas, dentre as quais devemos
distinguir os processos de percepção. A atividade perceptiva, ainda que representativa desse
estágio inicial, constitui um complexo muito amplo de ações, orientadas para capturar dados
que serão necessários à composição de estruturas de informação, imprescindíveis à
configuração de objetos e às relações entre eles. O grande problema com que nos deparamos
no Capítulo 1, por exemplo, apontou entraves na compreensão do real papel do percepto face
à ‘coleta’ dos dados sensíveis. A princípio, a diversidade dos objetos na sua forma primária
deve supor uma atuação aleatória do percepto, já que há objetos que se distinguem por
dimensões próprias. Sua função primeira talvez seja a de atuar sobre os acontecimentos
diversos de uma realidade experimentada, para que dela possamos extrair, em estágios
subseqüentes, alguma ordem. Possivelmente, como reivindica Peirce, o percepto orienta-se,
organicamente, para ativar qualidades de sensação em relação a dados sensíveis como cor,
tamanho, temperatura, forma, natureza material, e tantos outros que possam ser
determinantes na concepção dos objetos. Afinal, se assim pudermos conceber o seu papel,
como ele se auto-orientará ? Essências devem ser percebidas antes de acidentes, por exemplo
? Para o percepto, existem alguns dados universalmente mais sensíveis do que outros?

Diante do conjunto complexo de dados que compõem a natureza dos objetos, sobre o
qual o percepto investe, é possível admitir que alguma orientação deva direcionar a sua
atuação. Entretanto, é necessário acrescentar um detalhe a essa suposição: a atuação do
239

percepto precisa ser diferenciada, pelo menos, em duas circunstâncias a que ele se aplica.
Quando o faz na direção de um objeto inaugural da nossa experiência sensível e que ainda não
se inclui na esfera de nosso conhecimento, sua aplicação deveria orientar-se pela captura de
traços capazes de construir um esquema geral, um arcabouço de estrutura desse objeto. Tal
procedimento nos resguardaria de equívocos futuros sobre a compreensão de um objeto, bem
como de desgastes contínuos de sempre reaprendê-lo. Por outro lado, quando se aplica ao
reconhecimento de um objeto, que já pertence ao nosso domínio conceitual, ele deve
reconhecê-lo pela configuração prévia que dele possuímos, assim como captar dados
idiossincráticos nesta circunstância de percepção. Tal procedimento tornaria inesgotável a
possibilidade de enriquecimento contínuo de um objeto, aumentando sempre a compreensão
sobre ele. Por exemplo, a percepção de um ‘poste’ pode revelar fatos diversos: no primeiro
caso acima, a percepção deveria orientar-se pela posição espacial − [verticalidade] −, pela
forma − [haste (cilíndrica)] −, pelo tamanho − [extremidade superior muito acima do alcance
das mãos e da cabeça de pessoas] − e, finalmente, por um valor mais complexo, a função, que
requer a reunião dos traços precedentes em associação com um outro fator − [cabos de
energia] −, resultando, pois, o seu conceito funcional, isto é, [fixar cabos de energia em
posição vertical e fora do alcance das mãos e da cabeça de pessoas].169 Se o percepto opera
com algum padrão de seleção, podemos afirmar que, no caso do presente artefato, categorias
como cor, natureza do material, localização devem ser excluídas dessa primeira
experiência com ‘poste’, já que nada acrescentariam à necessidade que temos de estabilizar o
seu padrão conceitual . Experiências subseqüentes com esse objeto nos conduziriam a apurar,
de forma crescente, a possibilidade de compreensão de indivíduos da classe-poste − ‘postei’,
‘postej’ −, ou de subclasses da classe − ‘postes de cimento/postes de ferro’, ‘postes
cilíndricos/postes sextavados’, ‘postes brancos/postes pretos’... −, através da captação de
outras categorias como natureza do material, forma, cor, ou de uma especificação daquelas já
presentes no domínio do conceito, que atuariam como complemento da estrutura básica.

Se a concepção de um objeto se faz pela ação do percepto, localizada numa sucessão


de tempos diferentes − os intervalos antes referidos, por exemplo −, caberia ainda discutir se

169
A complexidade do conceito de função, quando a associamos a um projeto inscrito num objeto artefato,
deve-se ao fato de ela representar a projeção de um objeto sobre outro, mediada por uma predicação específica.
No caso em análise, obtemos ‘fixar (poste, cabos elétricos)’. Se tivéssemos um ‘saca-rolhas’, ‘lápis’,
deveríamos formular ‘extrair (saca-rolhas, rolhas)’, traçar (lápis, papel)’.
240

momentos diversos da sua percepção resultam em diferenças entre os dados percebidos, ou


seja, se devemos distinguir entre essência e meros acidentes. Consideremos as categorias
tamanho e posição espacial no exemplo anterior; podemos contrastar objetos candidatos a
‘poste’ e a ‘mourão’, cuja função particular não tenha sido ainda especificada, pois nem o
‘poste’ [fixa cabos elétricos], nem o ‘mourão’ [fixa arame (farpado) e/ou tela]. A posição
espacial − [verticalidade] − coincide para um e outro candidato, não se constituindo num
valor criterial para sua categorização. No entanto, tamanho, na especificação proposta, difere
de um para outro, pois, provavelmente, não registramos, na experiência ordinária, um
‘mourão’ tão alto a ponto de confundir-se com um ‘poste’, nem um ‘poste’ tão baixo a ponto
de ser trocado por um ‘mourão’. Entretanto, no caso de objetos que se pretendam ‘poste’, o
reconhecimento do tamanho pode ser um dado categorial necessário, mas não um dado
suficiente, já que tal haste, com o tamanho especificado, na posição vertical pode vir a
transformar-se num ‘mastro’, num ‘pau-de-sebo’, num ‘pilar para andaime’... Necessidade
e suficiência parecem recobrir fatos distintos na categorização de objetos: um traço
determinado pode ser necessário para o reconhecimento de classe, o que não o torna, todavia,
suficiente para identificar classes, subclasses ou indivíduos da classe. Assim, tamanho −
[extremidade superior muito acima do alcance das mãos e da cabeça de pessoas] − é
necessário para a categorização de ‘poste’ − logo, deve compor parte de sua essência −, já que
essa condição exclui a presença de ‘mourões’ na classe. O traço em questão não é, porém,
suficiente para o reconhecimento da classe, onde estão todos os objetos do tipo, já que o
critério não inibe a pertinência de ‘mastro’ e ‘pau-de-sebo’ no domínio. A suficiência deve
ser assumida como um critério metalingüístico para avaliar a categorização, facultando o
reconhecimento de subclasses numa classe, ou de indivíduos numa subclasse; ela permite
medir a quantidade de dados que devemos considerar numericamente adequada para
caracterizar tal objeto. Em contraposição, a necessidade é um critério interior de pertinência
funciona apenas como um padrão de filtro a que objetos devam ser submetidos para
pertencerem a uma classe.170

170
A discussão proposta contra abordagens semânticas orientadas pela composicionalidade de categorias aponta,
diretamente, para esta questão. O argumento decisivo costuma questionar o fato de definições necessárias e
suficientes serem defeituosas por excluírem de uma classe os seus membros anormais que são regularmente nela
incluídos. Assim, o fato de se considerar um pássaro como portador de categorias como [bípede], [bi-alado], [ter
bico] [ter penas], não significa que a obliteração de uma dessas propriedades o exclua do domínio-pássaro.
241

Enfim, o desenho de um quadro preciso para o funcionamento do percepto, a natureza


dos dados que ele recolhe e seleciona, padrões que devam ser assumidos para a estruturação
desses dados, todos têm representado uma questão essencial para a semântica e, certamente,
devem ser cruciais para uma semiótica que pretenda o alcance que Peirce confere à
primeiridade. As dúvidas maiores, com certeza, não se referem às operações descritas do
percepto, mas à maneira pela qual devemos concebê-las, os limites que lhes devemos impor
como mera sensação, na construção de uma teoria. Não temos dúvidas da sua eficiência
operacional; duvidamos, sim, da forma pela qual devemos traduzir essa eficiência. Afinal,
nada nos garante se devemos ou não conceber as primeiras propriedades que o percepto capta
como essência e as demais como acidente, nada nos assegura que ele opere com distinções
entre o necessário e o possível e tantas outras formas categoriais que têm sido problemáticas
na discussão de arranjos conceituais.171 Comentários mais específicos aos problemas
apontados já nos remetem a um quadro de análise que ultrapassa o plano do percepto e nos
remete ao plano de uma formulação conceitual mais elaborada, como elaboramos nos
parágrafos seguintes.

Todos os dados que alcançamos por meio de operações do percepto devem ser retidos
e transformados em informações que estruturam nossa atividade cognitiva. Assim, o domínio
da cognição deve representar a inclusão de procedimentos de formulação, como tentativa de
racionalizar as informações, de dotá-las de princípios organizacionais, de construir-lhes
algum padrão lógico. Esse formato que o conhecimento assume no plano da cognição implica
transcender o patamar de mera sensação e de percepção, porque já se compromete com a
estruturação e com a organização das informações. Nessa perspectiva, analisamos, no
Capítulo 2, alguns formatos para a estruturação de conceitos, destacando modelos de
atomização conceitual, sobretudo predicação e composicionalidade, bem como modelos de
‘membramento’ conceitual, com base no critério de pertinência em diversas dimensões
(clássica, difusa e prototípica). Tais critérios, embora pensados em circunstâncias diversas
como formação de conceitos, não devem ser admitidos como excludentes e contraditórios

171
Uma categoria como cor, por exemplo, excita o percepto de forma imediata, na condição de uma qualidade
de sensação para um leque muito grande de objetos. Tal fato não pode ser usado como uma justificativa direta
para afirmar que cor deva ser um traço da essência de um objeto, se bem que existem casos, onde cor tem um
papel fundamental. Por exemplo, a percepção da cor em ‘roupas’, ‘paredes’, ‘balões’ não é fundamental para o
conhecimento desses objetos, mas, provavelmente, a percepção da cor [vermelho], numa substância como
‘sangue’, é essencial para o seu domínio. Para ‘folhas’, a cor [verde], embora predominante, não tem a mesma
extensão que [vermelho] no caso anterior.
242

entre si, ainda que nem sempre seja possível a construção de uma passagem de um para o
outro. Quando comparamos uma ampla gama de critérios, seria importante questionar sobre a
prevalência que alguns devem assumir em relação aos outros; ou ainda, se devemos considerar
circunstâncias em que um se torne complemento do outro. Com esse objetivo pretendemos
discutir fatos que foram analisados na segundidade.

O teor, tanto fluido quanto universal da predicação, torna-a um instrumento poderoso


e propício a ser cotejado tanto no plano da atomização conceitual, quanto no da classificação
conceitual, quando a assumimos na dimensão considerada no Capítulo 2. Assim, todo o
objeto que está inscrito na esfera do nosso conhecimento é um objeto passível de predicação
sob as mais diversas perspectivas. Paralelamente, todas as nossas predicações resultam na
seleção de domínios a que podemos circunscrever objetos, ao mesmo tempo em que elas se
instituem como possibilidades de se integrarem à matriz conceitual, que pode ser estabelecida
para o objeto em questão. Nem por isso, todavia, podemos assegurar que tudo o que se
predica sobre tal objeto revele um modo de construir o seu conceito, na forma de uma matriz
de traços, e nem mesmo o de apontar o seu domínio de pertinência, de forma restrita. Predicar
a cor de `x` − `x é azul` −, a sua forma − `x é octogonal` −, o seu tamanho − `x é pequeno` −,
o material de que é feito − `x é de plástico` − ... representa destacar formatos através dos
quais um objeto pode ser conhecido, ou definir domínios genéricos dos quais ele faça
parte.172 Desse modo, qualquer propriedade que pudermos predicar sobre `x` tanto revelará
um aspecto da sua dimensão conceitual, ainda que tal propriedade não seja fundamental para
a construção da matriz conceitual da classe a que pertence ‘x’, quanto propiciará condições
para sua identificação a domínios possíveis, ainda que a propriedade não seja um padrão
natural para o reconhecimento de classe de objetos. Predicação, composicionalidade e
pertinência desempenham papéis relativamente distintos nos processos de cognição: enquanto
a primeira opera aleatoriamente da classe ao indivíduo, às duas últimas devemos assegurar a
função de erigir esquemas conceituais no reconhecimento preferencial de classes e de
subclasses de objetos. Portanto, se alguma elegância formal pudermos conferir à pertinência
e à composicionalidade, devemos fazê-lo em razão de elas se constituírem em procedimentos

172
Embora a ilustração presente tenha o mesmo teor da anterior, em termos de dados que possam ser arrolados
para um objeto, existe uma diferença fundamental entre a percepção, isto é, a forma pela qual ‘começamos’ a
compreender um objeto, e a cognição, o modo pelo qual conhecemos esse objeto (ou o modo pelo qual
243

amplos de descrição conceitual, em padrões normativos que permitem avaliar o que


conhecemos de um objeto, numa extensão de classe. Qualquer matriz conceitual que se
deixasse seduzir pelas idiossincrasias de um indivíduo − um objeto indicializado − exibiria
uma validade restrita; qualquer condição de pertinência que se curvasse diante de suas
particularidades referendaria apenas domínios unitários; ambas fracassariam como
instrumentos de formação conceitual, ainda que preservassem uma função designativa.173

Outros detalhes ainda devemos considerar em relação à predicação: por exemplo, se


ela não proclama padrões descritivos ou funcionais de um objeto, corre o risco de não mais se
referir a possibilidades conceituais, mas apenas, de modo periférico, ao registro de uma
atitude proposicional de um locutor diante de determinado objeto. Assim, enunciar que `x é
chato`, que `x é interessante`, que `x é sensacional` pode não conter o mesmo estatuto das
predicações anteriores, já que não identificaríamos num objeto tais propriedades como sendo
aspectos conceituais de suas partes componentes. No primeiro caso, por exemplo, podemos
contrastar objetivamente `x é octogonal` com `x é quadrado`, como reveladoras de
perspectivas descritivas de objetos, mas dificilmente poderíamos fazer o mesmo com `x é
sensacional` em contraste com ‘x é aborrecido’, já que ser ou não sensacional (ou
aborrecido) não evidencia valor descritivo de um objeto, por não se tratar de propriedades
associadas às suas partes componentes, nem às relações entre partes, senão à manifestação de
uma atitude (proposicional) de um sujeito. Isolando predicações que se comportam como
atitudes proposicionais, podemos concluir que, de fato, a predicação representa um formato
através do qual expressamos o conceito que formamos de um objeto. Com certeza, nenhum
objeto é decisivamente conhecido por uma única predicação, mas por um conjunto de
predicações que se tornam disponíveis na construção da sua história. Da mesma forma, não
há um limite que devemos impor ao número de predicações que um objeto comporta;
qualquer projeção seria absolutamente arbitrária. Entretanto, sabemos que o número de

manifestamos nosso conhecimento sobre esse objeto).


173
Nem uma nem outra orientação são impossíveis; elas apenas não são adequadas, em se tratando de formação
de conceitos. Por exemplo, é possível definir uma condição de pertinência como ‘o atual presidente do Brasil,
de direito’, ou ‘o número par da série dos inteiros situado entre quatro e oito’, onde os conjuntos resultantes
são necessariamente unitários. O ideal é que estipulemos condições de pertinência mais genéricas − presidente
do Brasil ou número par − e possamos decidir, no interior dos conjuntos, sobre subconjuntos menos genéricos
ou particulares.
244

predicações que conhecemos sobre um objeto deve ser finito, já que o nosso conhecimento
sobre tal objeto comporta limites.

Por outro lado, a predicação ainda revela potencial de reconciliação em relação aos
procedimentos difusos de pertinência, a saber, características criteriais na definição da
pertinência num domínio podem se mostrar gradativas através do processo de predicação. Por
exemplo, o conhecimento que temos da classe de objetos ‘cadeira’ deve selecionar, como
exemplar de referência − o protótipo da classe −, aquele que atenda, entre outros aspectos, a
uma angulação de noventa graus na relação encosto/assento e assento/pés, considerando-se
sua função básica, ou seja, [acomodar pessoas na posição....]. Nada impediria, no entanto, que
o critério de angulação fosse alterado em certos limites e numa orientação determinada e que
ainda mantivéssemos objetos com tais ‘deformações’ na classe. Desse modo, os dois padrões
de angulação poderiam ser distendidos (simultaneamente ou não), alcançando valores
variados e acima de noventa graus, mas nunca poderiam alcançar cento e oitenta graus, ou
outros valores que lhe fossem muito próximos.174 A objetos assim alterados poderíamos
aplicar predicações gradativas de pertinência na classe-cadeira: ‘cadeira reclinada’ (
‘...pouco reclinada’, ‘...um tanto reclinada’, ‘...bem reclinada’, ‘...bastante reclinada’,
‘...muitíssimo reclinada’...), embora não tenhamos mais certeza da imediatez e da
unanimidade da sua identificação à classe, em decorrência do grau de deformação que lhe
fosse aplicado.

A distinção que fizemos entre duas orientações para formação de conceitos, de tal
modo a nos permitir aproximar do teor definido por Peirce para a segundidade, no fundo,
apenas recorta uma prática de análise comum às teorias semânticas. Atomização conceitual e
classificação conceitual, em razão dos desdobramentos que mostramos, mantêm entre si
relações de complementaridade. A percepção que alcançamos de um objeto e o conhecimento
que construímos a partir dessa percepção são duas fases integradas à nossa atividade de
cognição. Em muitas circunstâncias não se torna nem mesmo possível, a não ser por razões

174
A possibilidade de que angulação de ‘cadeira’, nas partes apontadas, pudesse alcançar tais valores significaria
obliterar sua função primordial, tornando-a equivalente à funcionalidade de ‘cama’, ‘estrado’.... A angulação é,
no geral, deformada apenas na direção do aumento do grau, seja por conveniências anatômicas de acomodação −
relação encosto/assento −, seja por razões de equilíbrio − relação assento/pés. Dificilmente, encontraríamos
cadeiras que resultassem numa redução drástica da angulação das relações mencionadas, a não ser como um
objeto estético.
245

analíticas e conceituais, decidir sobre uma demarcação precisa entre percepção e cognição. O
certo, por exemplo, é que ao olharmos para objetos percebemos, mas ainda assim estamos
longe de assegurar que essa percepção se traduza por uma atividade pura do percepto, isenta
de compromissos com a organização da informação. O percepto é, sem dúvida, o motor para a
cognição e, em conseqüência, para qualquer processo de formação conceitual, ainda que a sua
intervenção sobre a realidade se faça de modo aleatório, desconhecendo o que, em essência,
podemos fixar como conhecimento do seu conceito. O conjunto dos procedimentos que
reunimos na cognição, no entanto, representa modelos que se orientam pela necessidade da
estratificação de padrões de conhecimento − essência versus acidente −, da seleção de seus
componentes − tamanho ao invés da cor − e do arranjo entre seus componentes − do global
para o local. Nessa extensão da construção de uma teoria, apontamos, no plano da
segundidade, as duas orientações que se mostraram de modo mais decisivo no âmbito da
construção de teorias semânticas. Nenhum dos padrões é, por si mesmo, autônomo e
suficiente: nem atomização conceitual deve validar a suficiência da composicionalidade e da
predicação, em detrimento do valor operacional da pertinência, nem a classificação conceitual
deve proclamar a autonomia das operações de pertinência, numa recusa das concepções
atomizadas. Ambas refletem atribuições e tentativas diferenciadas para um desafio de
racionalização do diverso e da desordem que se erguem diante de nós sob a forma de
realidade. Nesse ponto, iniciamos uma outra jornada: se conhecemos, como devemos
representar o que conhecemos ?

O plano da representação, conforme desenvolvido no Capítulo 3 a partir da categoria


terceiridade, parece ressaltar-se como aquele que mais apresenta discrepâncias entre os
campos da semiótica e da semântica. A razão mais imediata para justificar a questão decorre
da diversidade dos meios que um e outro campo utilizam para representar os seus objetos. A
semiótica, com Peirce, construiu uma tipologia de signos capaz de justificar, em planos
diferentes, não só a mais elementar percepção cognitiva − o qualissigno − como a forma mais
elaborada de estruturação do pensamento − o argumento −, representando este, de modo
sintético, formas de raciocínio. As pretensões de Peirce parecem enfatizar a tipologia sugerida
como padrão de suficiência para recobrir, do ponto de vista da representação que se quer
fundamentada em padrões diversos de percepção, de relação e de estruturação, o conjunto das
operações cognitivas do homem. Assim, um signo, considerando suas formas mais distintas e
246

complexas de realização, transforma-se num pólo de catalisação onde se fazem registrar o ser
representado e não apenas a representação do ser.

O arsenal de relações e propriedades mútuas, de planos e elementos determinantes na


arquitetura do signo resulta em duas considerações essenciais para a sua compreensão: (i)
nenhum signo, ainda que na forma de ‘radical básico’, pode ser entendido em razão de um
único parâmetro de configuração: o dicente não se constitui pela relação única com o
interpretante, mas também pelo fato de partilhar a natureza do desempenho e de implicar
existência: (ii) nenhum objeto, fato ou propriedade pode ser visto por uma única forma de
representação no quadro de relações sígnicas estabelecidas por Peirce. Exemplificando,
‘vermelho’ pode ser qualissigno, enquanto qualidade de sensação para a substância ‘sangue’;
pode vir a ser ícone, enquanto possibilidade de comparar-se ao perigo; pode representar
índice, quando o ‘vermelho’ materializa-se em placas, em faixas, enfim quando assume a
forma de um existente; pode ser parte de um rema, se estruturado, enquanto possibilidade,
como função proposicional, isto é, ‘vermelho (x)’ e um dicente, ao saturarmos a função
precedente − ‘vermelho (carro).175

Por outro lado, a semântica, além de notações específicas para fatos locais −
temporalidade, quantificação, modalização... −, muitas derivadas de sistemas lógicos
independentes, fundamenta-se em toda tradição milenar de representação lingüística. Para a
semântica não está em questão apenas uma (onto)lógica do ser representado − leituras lexicais
−, o que parece constituir o fundamento da arquitetura do signo, mas ainda um lógica de
relações entre unidades − sintáticas e/ou lexicais −, ou de relações entre propriedades lexicais
− necessárias e contingenciais. Além das dificuldades inerentes à definição formal de leituras
lexicais, padrão considerado indispensável ao cálculo do significado de estruturas derivadas e
mais complexas, o teor das relações lógicas tornou-se um fator determinante para o
entendimento do processo de significação. Logo, representação semântica, descontadas as
divergências metodológicas, implica, em sua base essencial, erigir algoritmos capazes de
conceber certas classes de objetos lingüísticos, como também construir sistemas de relações
entre tais objetos, sendo ambos, algoritmos e sistemas, responsáveis pela produção de efeitos
de sentido.

175
Para cada um dos exemplos, devemos considerar a especificidade de interpretantes apropriados.
247

No caso, pois, da representação, as dificuldades de aproximação entre os dois modelos


revelam-se evidentes, pois as diferenças se tornam marcantes. O fato de certos padrões de
signos representarem relações funcionais simples e complexas − rema, dicente, argumento − é
muito diferente de usarmos signos para estabelecer relações funcionais − por exemplo:
‘com[instrumental] (x,y)’, ‘com[companhia] (x,y)’, ‘com[modal] (x,y)’ ... − A semântica, na sua
dimensão essencial, submete-se à modelagem lingüística (sintática e lexical) de certos padrões
de relações e de propriedades; o que ela acrescenta como notação específica decorre da
necessidade de explicitar relações sintáticas − papéis temáticos, configuração de casos −, ou
propriedades lexicais − configuração de traços.

Por último, o plano da representação parece assumir caminhos próprios, pelo menos
considerando-se os modelos em análise. Tal fato, no entanto, não deve ser exclusivamente
assumido como uma restrição imposta à natureza de funcionamento dos objetos conceituais de
um e outro campo de estudo, mas também não deve ser concebido como mera diversificação
notacional. Enquanto sistemas, ambos os campos devem especificar formas de organização
dos seus elementos componentes. Objetos semânticos fundamentam-se numa sintaxe natural,
construída a partir de procedimentos de substituição no plano paradigmático e de associação
no plano sintagmático, resultando em formatos diversos de estruturação de unidades cada vez
mais complexas. Objetos semióticos, se comportam uma sintaxe − que não vemos
necessariamente expressa na formulação de Peirce −, recorrerão a sintaxes locais ou
analogamente construídas, em razão de especificidades inerentes a um dado sistema.
Equiparando-se ou não, sob o nome de sintaxe, o modo pelo qual os dois campos organizam
primitivamente os seus componentes, as relações entre os seus objetos, considerando-se ou
não diferenças na forma como calculam unidades complexas, sabemos que semiótica e
semântica, no fundo, são instrumentos capazes de fornecer justificativas formais para a
compreensão de muitos fatos de sentido.
248

5.2 - Razão e ação

No decorrer do Capítulo 4, procuramos analisar aspectos determinantes de construção


da vertente do pragmatismo, orientada para condutas ordinárias e não como modelo de
justificação de hipóteses científicas, segundo a versão formulada por Peirce. No âmbito da
discussão desenvolvida, enfatizamos o núcleo de construção do pragmatismo, como a
necessidade de explicitar o modo pelo qual os signos, nas suas manifestações mais diferentes,
são instrumentos hábeis para a racionalização de todo o nosso comportamento. A transposição
dessa exigência inicial, para uma discussão no plano da linguagem, implica assumir outros
parâmetros que, tradicionalmente, não compuseram a discussão da semântica. O primeiro
efeito da exigência é a necessidade de se fazer a discussão lingüística progredir para o
território da enunciação, um campo mais fértil para abrigar princípios determinantes das
práticas ordinárias. Transpostas as barreiras do enunciado e assumindo orientações
decorrentes do processo enunciativo, decidimos por recorrer a dois modelos de práticas
enunciativas que se mostraram sensíveis à análise de questões centrais do pragmatismo, isto é,
atos de fala, como modelo de práticas discursivas no domínio primordial das convenções, e
atos de linguagem, como modelo orientado, substancialmente, para intenções. À
complexidade do processo enunciativo dominado por convenções e intenções, devemos
acrescentar ainda outros aspectos relativos à interação entre locutor e alocutário, mormente
aqueles associados a orientações argumentativas erigidas no interior das práticas discursivas.

Esse quadro − complexo − de componentes e relações que acabamos de desenhar para


a enunciação tem sido marcado ainda por um traçado conceitual de discrepâncias e
dificuldades, mas também por avanços, em razão da necessidade de se justificarem novos
padrões de análise. Parte das convicções conceituais e dos ajustes formais que asseguramos
para o enunciado, em diversos planos da análise lingüística, precisam modelar-se a outro tipo
de concepção, adequada a fundamentar a linguagem em dimensões interlocutivas. Por mais
que intencionemos tratar o processo enunciativo sob a forma de padrões estruturais, haverá
sempre adaptações ad hoc a serem implementadas. A análise proposta por CHARAUDEAU
(1983), não obstante conter avanços incontestes nesse particular, ressoa ainda como um
padrão de funcionamento restrito para extensões amplas de práticas discursivas. Se
simulações de EUc em EUe são evidentes para certos atos, elas podem conter soluções ainda
provisórias, ajustadas ao sabor de exemplos coletados, como deixamos claro em momentos da
249

análise desenvolvida. Assim, se o ato-mentira torna evidente a simulação de um EUe para


dizer ‘P’, como verdadeiro, enquanto EUc processa ‘P’, como falso, o mesmo paralelismo não
pode ser estendido ao ato-equívoco − apesar da proximidade conceitual entre ambos −, já que
neste não se pode pensar numa discrepância entre as duas instâncias locutivas. Fatos similares
podem ser isolados na instância alocutária: no caso da mentira, a possibilidade imediata de
TUd se fazer interpretante é menos previsível e, provavelmente, ‘P’ permanece verdadeiro,
embora seja falso. Para o equívoco, a natureza imediata de seu desmentido, em muitas
circunstâncias, transforma o TUd num sujeito-interpretante, no instante mesmo de sua
enunciação.

As discrepâncias que destacamos são corriqueiras, quando tentamos estender o


esquema proposto por CHARAUDEAU (1982) a análises efetivas de práticas discursivas. Os
detalhes que devemos acionar para justificar certas condições de uso costumam exigir
explicações concernentes ao funcionamento de fatos naquela circunstância específica. Nas
diversas análises de casos, por exemplo, há padrões que recortam com nitidez a interferência
EUc sobre EUe, da mesma forma que o contraste entre TUd e TUi − o ato-mentira é uma
ilustração clara desse funcionamento enunciativo. Devemos admitir, no entanto, exemplos
mais amplos de atos de linguagem, onde esse recorte implique conveniências artificiais no
atendimento a uma regra geral para funcionamento do quadro enunciativo, tal a
indiferenciação gerada entre as instâncias do locutor e do alocutário, em geral. A justificativa
para tal instabilidade no processo enunciativo parece decorrer da presença de intenções,
engendradas no uso de um ato, sem que para elas possa existir um padrão previsível de
recorrência. A emergência de intenções aleatórias na execução de atos não deve ser
considerada desconfortante; ao contrário, ela representa uma liberdade enunciativa que não
apenas amplia o leque de perspectivas para o locutor − ele disporá de um arsenal ilimitado de
formas intencionais para interpelar o alocutário −, como pode induzir o alocutário − na forma
de um TUi − a divergências interpretativas. Polêmicas e falta de consenso entre os
interlocutores, quando resultantes da aplicação de intenções, podem justificar o fato de se
confundirem, por exemplo, brincadeiras como ofensas, críticas como ofensas, pedidos como
intimações, equívocos como desprezo...

Se ainda não dotamos de rigor a compreensão analítica de muitos efeitos práticos


construídos a partir de intenções, não obstante os avanços realizados, não vemos razão para
250

que deixemos de investir na sua relevância para os processos de argumentação lingüística.


Somente assim estaremos nos credenciando a capturá-las, quando muito nos momentos em
que se revelam menos reservadas. É impossível supor racionalidade para condutas práticas
decorrentes de atos discursivos, se viermos a descredenciar o papel das intenções nesse
processo, ou a reduzi-las a uma dimensão convencional, ainda que, historicamente, elas
tenham, com freqüência, merecido uma atenção discreta na construção de padrões racionais.
Se pudéssemos explicar todos os efeitos incorporados nas práticas discursivas através de
convenções, em detrimento das intenções, estaríamos assegurando o consenso, mas estaríamos
lacrando o espaço do novo, da liberdade... Eliminando as chances do acaso discursivo,
submetemos as intenções à legislação, ao domínio do normativo, o que agride o espírito
pragmático que conclama as intenções para aventuras do improviso.

Além do mais, é indesejável supor que locutores devam confrontar alocutários ou que
alocutários devam sentir-se interpelados por locutores apenas em razão da presença enfadonha
de convenções partilháveis. Sem apelo direto às intenções, as emoções, os sentimentos, as
tensões esvaem-se e estaremos condenados a procedimentos enunciativos que se repetem, que
apenas efetivam práticas rituais de convenções. As intenções constroem uma dimensão
ambígua para a enunciação: elas se materializam não só no ‘berro de liberdade’ do locutor −
ainda que discretamente proferidas − como também no do alocutário − ainda que nunca
proferidas. Retendo esse valor ambíguo, elas podem tanto propiciar o amálgama tênue de um
consenso interlocutivo, construído no percurso da enunciação, como engendrar os estilhaços
do seu dissenso. Unindo e separando as instâncias interlocutivas, as intenções cultuam a
polêmica, o diversionismo discursivo − daí a nossa dificuldade (e até mesmo a
inconveniência) em submetê-las a padrões de análise. Elas representam a quebra de uma
ingenuidade discursiva, comumente respaldada na simetria eu/tu, como de resto, a quebra de
uma hegemonia de sentido, alimentada pelas determinações históricas. Intenções não foram,
portanto, introduzidas no processo enunciativo por decreto, ou por algum artifício formal; elas
estão lá, porque lá estão aqueles que as fazem mover − os interlocutores −; elas estão lá,
porque lá está o que as faz mover − as emoções, as tensões, os interesses.

Outro aspecto que destacamos numa orientação empírica para o pragmatismo fez-se
representar, na discussão do Capítulo 4, pela presença dos atos de fala. Ao selecioná-los para
essa tarefa, fizemo-lo em função do fato de as convenções assumirem um papel fundamental
251

na construção de um ato e, em extensão, da necessidade de se compreenderem, através delas,


fenômenos do plano enunciativo. O apelo a convenções justifica-se também pelo contraste a
ser instaurado face às intenções, dois padrões que supomos relevantes para avaliar a campo
minado do processo enunciativo. Não que tais categorias sejam confiáveis e confortáveis, à
primeira vista, para a tarefa de erigir a enunciação longe de turbulências e como
procedimento seguro na análise de fatos discursivos. São dois objetos conceituais que não se
submetem aos rigores de uma fita métrica: se defini-las, de forma independente, pode tornar-
se um exercício temeroso, quando nos credenciamos a confrontá-las, inserimos um novo fator
nesse quadro de incertezas, ou seja, a dificuldade de traçar fronteiras objetivas entre elas.

O convívio com tal dificuldade restou acentuado em nossa análise, quando avaliamos,
em seções distintas, atos de fala e atos de linguagem. O objetivo que pretendíamos, com a
análise dessas duas abordagens, era o de demarcar uma fronteira entre elas, já que uns − atos
de fala − se orientam a partir de convenções, enquanto os outros − atos de linguagem −, a
partir de intenções, conforme relato anterior. Entretanto, o que se percebe em ambos os
enfoques é o fato de que o predomínio da convenção não exclui a intenção, nem o inverso. No
caso dos atos de linguagem, a adaptação que explicitamos para o esquema de funcionamento
das relações enunciativas visava isolar a sua dimensão intencional, ressaltando o modo pelo
qual instâncias interlocutivas atuam umas sobre as outras e como orientam intencionalmente
os argumentos que constroem. Todo esse esforço, porém, prefigura apenas um diagnóstico
daquelas intenções majoritárias na construção de certos tipos de ato, o que não impede o
afloramento de intenções adicionais.

As dificuldades, na análise do processo enunciativo, não devem ser atribuídas apenas


ao manuseio de intenções. As convenções, apesar do seu estatuto menos incerto, ainda estão a
requerer um tratamento mais sistemático. Assim, os entraves à análise do processo
enunciativo não resultam somente de manifestações específicas, determinadas por intenções;
as mesmas dificuldades podem ser verificadas, numa extensão diferente, quando a análise
depende de convenções precisas. Muitas dessas dificuldades ficaram evidentes na
investigação desenvolvida em torno dos atos de fala: afinal, não dispomos de uma
sistematização sobre elas, de maneira tal a poder convertê-las em princípios metodológicos e
em instrumentos de análise. A abordagem dos atos de fala representa um esforço conceitual
que permite demonstrar sua relevância para o processo lingüístico. Em muitas circunstâncias,
252

a presença de convenções na concepção de um ato torna-se um fator decisivo para o seu


contraste com outros atos que compartilham propriedades semelhantes. Passemos, então, a
comentários mais específicos sobre a papel desempenhado pelas convenções.

A concepção formal de um ato de fala modela-se em razão de componentes básicos


que representam a existência de convenções mais ou menos fixas no plano das circunstâncias
apropriadas de seu uso. O peso das convenções, no arranjo formal de um ato, incide tanto
sobre condições impostas aos seus interlocutores, como ao seu conteúdo proposicional.
Ordens, batismos, súplicas... são atos de fala aos quais podemos vincular convenções que
regem o seu funcionamento em relação às condições acima apontadas. Destaquemos a
importância de apenas alguns aspectos de convenções que ainda não foram objeto de
comentários anteriores:

(a) Uma ordem, para que seja bem sucedida, requer a convenção determinante que o
seu conteúdo proposicional não possa ser prejudicial àquele que desempenha as tarefas
previstas. Logo, conteúdos que tendem a ser lesivos ao alocutário podem bloquear o
curso normal de sua execução plena. No entanto, incertezas quanto à eficácia de
convenções, que postulam valores para conteúdos proposicionais, surgem, em razão da
inexistência de um padrão preciso que nos possibilite ajustar o valor de prejudicial
entre locutor e alocutário. Por outro lado, sabemos que, em relações hierárquicas mais
fortes, exigências sobre o conteúdo proposicional tendem a ser enfraquecidas, já que
os alocutários estão na obrigação incontinente de cumprir o que foi ordenado.
Diferentemente, relações hierárquicas mais flexíveis permitem questionamentos e
contrapontos sobre a natureza do conteúdo proposicional, e os alocutários tornam-se
mais exigentes em relação às tarefas que lhes são imputadas. Além do mais, em se
tratando de ordens, cujas conseqüências práticas e derradeiras estão orientadas para
terceiros, e não para o alocutário, a convenção sobre a natureza do conteúdo
proposicional continua prevalecendo para aquele que a executa. Por esse motivo, em
nome de convenções, ordens para ‘prender’, ‘bater’, ‘torturar’ e ‘matar’, apesar do
valor lesivo do conteúdo, continuam sendo executadas com sucesso, porque não
violam a convenção em análise.
253

(b) O ato-batismo, de valor mais cartorial do que o precedente, não se constrói a partir
das pretensões de um locutor para realizá-lo, mas somente pode ser praticado por
aqueles que estão investidos de certas prerrogativas institucionais e sociais: logo, há
convenções que asseguram condições específicas a locutores para batizar pessoas,
navios, estradas... Assim, por mais nebulosos que sejam os limites entre intenções e
convenções, batizar não pode ser submetido ao mero desejo de quem pretenda fazê-lo
a qualquer momento; batizar requer circunstâncias próprias, e pessoas ajustadas a
essas circunstâncias para que se efetive como um ato de fala legítimo.

(c) O ato-súplica estrutura-se a partir de convenções que devem ser observadas nas
correlações entre locutor e alocutário. De início, ele se mostra em contraposição a uma
ordem e deve atender a condições diferentes para sua realização. Se o conteúdo
proposicional do ato constitui algo de importância para o locutor, então ele poderia,
através do alocutário, alcançá-lo mais de imediato, via comandos e ordenações. O
locutor não o realiza, portanto, na forma de uma súplica por mera deliberação pessoal,
senão em razão de uma convenção que o coloca em relação de inferioridade frente ao
alocutário, pelo menos na consecução de tal ato. Súplicas contrastam, de forma menos
categórica, com atos como pedido e solicitação, cuja diferença deve ser também
justificada em função da existência de convenções. Há situações em que poderíamos
enfraquecer o teor da relação hierárquica entre locutor e alocutário, assegurando o
valor de uma convenção que exclui qualquer grau de favorecimento hierárquico a um
dos interlocutores, no caso de pedido e de solicitação.176 Os fatos, todavia, não
mostram evidências em favor de convenções consagradas e unívocas. Por exemplo, um
locutor investido de autoridade, em muitas circunstâncias, pode renunciar ao ato-
ordem em favor do ato-pedido, flexibilizando as relações. O inverso, entretanto, não
pode ser extensivo a nenhum falante, já que o ato não institui a convenção − uma
ordem não pode ser proferida com o intuito de criar uma convenção hierárquica entre
os seus interlocutores −; esta é uma condição para a existência daquela. Outra
orientação deve ser fixada para a correlação pedido/súplica: o direito a pedido pode

176
Do ponto de vista do conteúdo proposicional, podemos assegurar certas convenções que regem a formulação
de um pedido, por exemplo. Um pedido, destinado a um alocutário, não pode conter termos ásperos na sua
formulação. Aquele que o executará não pode sentir-se acuado, porque uma característica do ato-pedido é que o
alocutário se disponha, espontaneamente, a realizá-lo em favor do alocutário (embora possa negar-se a fazê-lo).
254

ser transformado numa súplica, se o locutor pretende diminuir o espaço de recusa do


alocutário. A orientação contrária também seria possível, mas correria o risco de
descomprometer o alocutário com a sua realização.

Esse quadro de correlações evidencia que as convenções constituem, de fato, um


fundamento para a construção de atos de fala, o que, porém, não pode ser traduzido como
garantia de sua evidência em todas as circunstâncias em que atos específicos aconteçam. Há,
como vimos, situações para as quais o estabelecimento de convenções torna-se uma tarefa
duvidosa, mesmo porque podemos desdobrar diversas escalas do ponto de realização em
modos de realização possíveis, onde a presença de convenções, se existem, pode não se tornar
suficientemente esclarecedora para determinar o funcionamento de um ato. No caso acima,
quando passamos do modo-pedido para o modo-súplica não fica evidente se o fizemos devido
a convenções; nada impede que o locutor tenha chegado a essa transformação por uma
intenção − mas haverá sempre uma convenção que define o modo-súplica de forma
independente. Dificuldades desse teor sempre foram marcantes na teoria, desde o texto de
AUSTIN (1989), por exemplo, quando propõe a distinção entre ilocucional e perlocucional,
postulando que argumentar é ilocucional, já que existem convenções que regem a sua
existência, enquanto insinuar é perlocucional, porque não existe uma convenção que nos leve
à persuasão, por se tratar de um efeito produzido por intenções. Não se trata, pois, de uma
questão absolutamente fechada a necessidade de reconhecer padrões distintos para
argumentar e para insinuar. Poderíamos determinar regras de construção de silogismos,
destacar a adequação de argumentos em relação a posições assumidas como componentes da
convenção que rege uma argumentação, mas não nos parece que convenções possam ser
arregimentadas para justificar o funcionamento de insinuar.

As convenções, de modo geral, exercem um papel determinante na construção do


processo enunciativo, pois asseguram certos padrões para o seu funcionamento. Elas se
responsabilizam por construir uma face do discurso de domínio consensual no circuito
interlocutivo; são elas que asseguram, por exemplo, que ordens sejam cumpridas, que
declarações tenham validade pública, que os sujeitos se comprometam juridicamente com
testemunhos que proferem, ou que se engajem eticamente com promessas que enunciam. Os
atos de fala apresentam uma disponibilidade pública em relação à sua construção lingüística −
todo falante de uma língua natural torna-se apto a construir ordens, promessas, testemunhos...
255

−, mas essa disponibilidade não se estende, de modo eqüitativo, às condições de seu uso
efetivo. As práticas enunciativas que materializam quaisquer atos submetem-se a normas
determinadas pelo lugar social dos usuários, pelas funções institucionais que exercem, por
padrões rituais a que se submetem, ou ainda por circunstâncias interlocutivas que constroem
no decorrer de um processo dialogal. Em todas essas circunstâncias prevalecem convenções
específicas de uso; sua validade está circunscrita a padrões próprios a que se submetem os
usuários: todos os locutores podem expressar, asseverar, prometer; muitos podem ordenar,
jurar, suplicar; poucos podem batizar, declarar, nomear.. Além do mais, os objetos sobre os
quais podem incidir tais ações ainda se submetem a outras restrições: todo locutor pode
expressar sobre tudo, mas só pode asseverar o que julga verdadeiro, e deve prometer o que
pode realizar. Poucos podem declarar a existência de certos fatos a partir de seu ato; os
objetos que se conformam ao batismo são escassos; nomeações recobrem apenas pessoas no
desempenho de certas funções públicas.

Não se atestam valores universais às convenções: o seu poder de legislar sobre o


universo das práticas discursivas decorre de situações especiais que asseguram o
funcionamento de um determinado ato. Nenhuma convenção pode ser pensada a partir de um
valor único, de uma hegemonia que venha calar dissonâncias sobre os objetos discursivos,
embora seja sempre possível supor a existência de uma convenção universal, por exemplo, de
que toda pergunta deva, eticamente, ser respondida, de que toda promessa deva, eticamente,
ser cumprida. O fato de convenções revestirem-se de valor normativo não deve supor ausência
de conflitos nos processos interlocutivos regidos por elas. Conflitos podem se constituir em
ruídos propositais, introduzidos pela ação deliberada das intenções que também interceptam o
curso normal de locutores e alocutários na realização de um ato. Assim, ao invés de uma
suposta monotonia modelada pelas convenções, o processo enunciativo mostra-se
essencialmente dinâmico, por acolher o discurso na sua forma de acontecimento único, no
tempo e no espaço. Abrigando acontecimentos discursivos, o processo enunciativo torna-se
reflexo do processo histórico, enquanto moldado por convenções vigentes que determinam o
funcionamento dos atos de fala, ao mesmo tempo em que se evidencia como refração que
introduz seqüelas no funcionamento de tais atos, enquanto instância de emergência das
intenções. Esse teor elástico do processo enunciativo transforma-o num objeto complexo de
análise, pois ele se abre à medida que sacrifica a estrutura em favor do acontecimento, mas,
paradoxalmente, se fecha, à proporção que sacrifica o acontecimento em favor da estrutura.
256

Por motivos dessa ordem, a enunciação, enquanto sistema fechado, permite fazer-se portadora
do discurso feito razão e consenso, mas, enquanto sistema aberto, torna-se emissária do
discurso feito desejo e dissenso. Este movimento dúbio que a enunciação nos reserva não
deve ser considerado um defeito na sua formulação conceitual: a enunciação funciona desse
modo, por ser o modo como a linguagem funciona.

Finalmente, os propósitos pleiteados por Peirce em relação ao pragmatismo, isto é, o


de “definir o propósito racional”, a partir de “condutas utilitárias das palavras ou das
proposições” encontra, nos enfoques a que nos recorremos no plano da enunciação,
componentes e procedimentos válidos para sua compreensão. Nem a análise das práticas de
linguagem proposta pela Teoria dos Atos de Fala, nem a análise do quadro de correlações
enunciativas formuladas pela Semiolingüística constituem os únicos padrões relevantes para
“definir o propósito racional”. Muitas outras abordagens e orientações para as práticas de
linguagem ajustar-se-iam, com certeza, aos propósitos definidos para o pragmatismo.
Entretanto, nem o valor teórico da semântica (e suas extensões), nem o da semiótica valem
como procedimentos únicos de análise, os quais sejam suficientes para justificar tanto o grau
de compreensão conceitual, como o de eficácia prática que devemos atribuir a certos objetos e
comportamentos no quadro do pragmatismo. Perspectivas engendradas na enunciação
permitiram que avançássemos sobre questões propostas por Peirce na formulação geral do
pragmatismo. Só podemos conceber alguma racionalidade a “condutas utilitárias das
palavras”, se igualmente concebemos alguma estruturação à existência de atos lingüísticos
que materializam tais condutas. Em se tratando de práticas ordinárias de linguagem, processo
enunciativo − nos mais diversos formatos disponíveis − e pragmatismo − no modelo de
Peirce −, inscrevem-se mutuamente um no outro. Nem avançamos no processo enunciativo
sem conceber critérios para algum padrão racional de nosso agir comunicativo; nem
perseguimos os objetivos do pragmatismo, desconhecendo os embates entre locutor e
alocutário, as controvérsias entre intenção e convenção. Eis, portanto, o cenário que
almejamos compor nos limites da nossa reflexão.
257

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

01. ARMSTRONG, S.L., GLEITMAN, L. R., GLEITMAN, H. What some concepts might
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03. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.

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