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Domingos Faria 2
RESUMO:
Quine é cético acerca da modalidade que as coisas têm (de re), ou seja critica que alguns aspetos da realidade
possam ser necessários e que possam ser tratados com operadores de lógica modal. Para defender esta sua ideia,
Quine apresenta três argumentos. Neste artigo examinamos criticamente cada um destes argumentos e
concluímos que não são argumentos sólidos contra a modalidade de re.
Palavras-chave: Quine – Lógica modal – Necessidade de re.
ABSTRACT:
Quine is incredulous about the modality which things have (de re), he critics that some aspects of reality may be
necessary and it can be treated with operators of modal logic. To defend his idea, Quine has three arguments. In
this article we examine critically each of these arguments and we conclude that they aren’t sound arguments
against the modality de re.
Keywords: Quine – Modal Logic – Necessity de re.
De acordo com Quine (1953a: 156-157), existem três formas de interpretar a ideia de
necessidade:
1
Artigo recebido em 05/02/2013 e aprovado para publicação em 27/02/2013.
2
Doutorando em Filosofia pela Universidade de Lisboa. E-mail: df@domingosfaria.net
exemplo de necessidade como um operador sobre fórmulas fechadas e abertas, está patente a
necessidade de re, ou seja, a necessidade não proposicional ou a necessidade que as coisas
têm.
A necessidade para Quine é o que é a priori ou logicamente necessário, uma vez que a
necessidade metafísica é ininteligível. Portanto, Quine é crítico da necessidade expressa em
(3), o que o leva a tentar refutar a modalidade de re. Mas que argumentos apresenta contra
este tipo de modalidade?
Quine concebe três argumentos contra a modalidade de re. No entanto, é preciso
atender a algumas noções básicas para se ter uma melhor compreensão destes argumentos, tal
como a distinção entre transparência e opacidade referencial.
Por um lado, um termo é referencialmente transparente ou puramente referencial se “o
termo serve num contexto particular para referir o seu objeto. (…) O critério de Frege para a
ocorrência referencial é a substitutividade de identidade” (Quine 1953a: 158). Este princípio,
também designado de “indiscernibilidade dos idênticos”, está presente no seguinte exemplo:
Neste caso, partindo da verdade de (7) não se segue a verdade de (9), uma vez que o
termo ‘Miguel Torga’ tem onze caracteres enquanto que o termo ‘Adolfo Correia da Rocha’
tem vinte caracteres. Deste modo, os contextos citacionais, como a expressão «‘…’ contém
onze letras», são referencialmente opacos, pois não permitem fazer substituições. Além disso,
normalmente não se pode quantificar dentro de um contexto referencial opaco; pois, ao
afirmar:
(11) A aluna Vera acredita que Bernardo Soares é autor do Livro do Desassossego,
(12) Bernardo Soares = Fenando Pessoa,
(13) Logo, a aluna Vera acredita que Fernando Pessoa é autor do Livro do
Desassossego.
Aqui estamos igualmente num contexto opaco em que não podemos substituir um
termo por outro. Ou seja, pelo facto de (11) ser verdadeira não se segue a verdade de (13);
pois, a aluna Vera pode ainda não ter estudado seriamente quem é Bernardo Soares e, assim,
pode não saber nem acreditar que Bernardo Soares é um semi-heterónimo de Fernando
Pessoa.
Em suma, se o valor de verdade de uma expressão pode mudar quando substituímos
um termo por outro que refere o mesmo, então temos opacidade referencial. É por isso que os
contextos opacos não são vero-funcionais.
Tendo em conta estas ideias, podemos avançar para o primeiro argumento 3 de Quine:
3
No tempo de Quine defendia-se que existiam 9 planetas no sistema solar. Porém, atualmente considera-se que
existem apenas 8. Por isso, alterei o argumento original para assumir este facto.
Volume V - Número 12 - Ano 2013 77 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
Faculdade Católica de Pouso Alegre
As premissas (14) e (15) são verdadeiras, no entanto a conclusão (16) é falsa. Com isto
vemos que existe aqui opacidade referencial, pois apesar de (14) ser necessário não se segue
que (16) seja necessário, uma vez que o número de planetas – que é um facto contingente –
poderia ser menor que cinco. Portanto, não podemos substituir dois termos que referem a
mesma coisa num contexto de proposições com operadores de necessidade; pois, como se
constata no argumento, parece que a necessidade é referencialmente opaca. Assim, não
podemos quantificar dentro de □ (…), o que mostra que o tipo de necessidade presente em
(3), a necessidade de re, é incoerente por nos levar aceitar argumentos válidos com premissas
verdadeiras mas com conclusões falsas.
Será este um bom argumento? Parece plausível refutá-lo ao questionar a premissa
(15), pois o número de planetas é uma descrição definida e não um nome próprio. A ideia é
que podemos substituir nomes próprios, mas não descrições definidas, em contextos de
modalidade. Isto porque nomes próprios, como Cícero e Túlio, são designadores rígidos, de
acordo com Kripke (1971: 77), uma vez que designam o mesmo objeto em todos os mundos
possíveis (em que o objeto exista) – deste modo, Cícero e Túlio são intersubstituíveis.
Enquanto que descrições definidas, tal como “o número de planetas do sistema solar”, são
normalmente designadores flácidos ou não rígidos porque não designam o mesmo objeto em
todos os mundo possíveis. Aliás, podemos facilmente pensar um mundo possível em que o
sistema solar tenha apenas um planeta em vez de oito – assim é um designador que pode não
ser intersubstituível por outro.
Além disso, este primeiro argumento comete uma falácia (cf. Smullyan 1948), pois a
conclusão que se segue das premissas não é que necessariamente o número de planetas é
maior que cinco:
Mas sim que o número de planetas é oito e necessariamente oito é maior que cinco:
(16’’) ∃x ( Nx ∧ ∀y ( Ny → y = x) ∧ □( x > 5 ) )
(17) F(p),
(18) F({x: x = Ø ∧ p} = {Ø}),
(19) {x: x = Ø ∧ p} = {x: x = Ø ∧ q},
(20) F ({x: x = Ø ∧ q} = {Ø}),
(21) Logo, F(q).
“Túlio é um orador romano”, e tendo ‘p’ e ‘q’ o mesmo valor de verdade, não se pode seguir
que □ (q) a partir de □ (p); ou seja, tais proposições não são extensionalmente
intersubstituíveis, pois apesar de uma poder ser necessariamente verdadeira a outra pode ser
apenas contingentemente verdadeira. Portanto, ‘□ (…)’ não pode ser um contexto
verofuncional. Isto parece implicar que pode haver falhas na substituição de idênticos e não se
pode quantificar dentro de □ (…), o que constitui novamente uma crítica ao tipo (3) de
modalidade.
Será que esta crítica é plausível? Talvez se possa dizer que há falhas de
intersubstituição de termos co-extensionais na modalidade em caso de designadores flácidos,
mas que tal não acontece com designadores rígidos (como já foi referido na refutação
anterior) – assim, não me parece o argumento de Quine seja uma forte crítica à modalidade.
Do mesmo modo, pode-se questionar as próprias suposições que implicam que F(…) seja
verofuncional. Aliás, muitas vezes F(…) não é verofuncional nem extensional, como em
contextos epistémicos, caso se aplique ao argumento da funda proposições como “sabe-se que
Túlio é Túlio” e “sabe-se que Túlio é Cícero”.
Os argumentos anteriores foram formados por termos singulares. No entanto, para
Quine, “há uma forma mais fundamental da lei da substitutividade da identidade, a qual não
envolve nenhuma constante de termos singulares, mas apenas variáveis de quantificação”
(1953a: 172). Portanto, a partir da lei da substitutividade dos idênticos pode-se dizer que para
qualquer objeto x e y – se x é idêntico a y, então se x tem uma certa propriedade F, y também
tem essa propriedade e vice-versa. Assim, podemos começar a formular o último argumento
de Quine:
Ora, se □ não é referencialmente opaco e se opera sobre formulas abertas, então ‘Fx’ e
‘Fy’ em (22) podem ser assumidos respetivamente como ‘□(x=x)’ e ‘□(x=y)’. Deste modo,
segue-se:
Portanto, a partir de (22) e (23) segue-se que para todo o x e y – se x é igual a y, então
é necessário que x seja igual a y. Ou seja, tudo o que é idêntico é necessariamente idêntico.
Porém, para Quine, (24) conduz a algumas falsidades; pois, se entendermos a
necessidade apenas como necessidade lógica ou a priori (que não recorre à experiência),
então por exemplo a identidade de ‘Estrela da Manhã’ e de ‘Estrela da Tarde’ não pode ser
necessária, uma vez que a sua verdade só pode ser conhecida a posteriori (pela experiência) e
não de forma a priori ou por dedução lógica (cf. Quine 1953b: 143-144). Logo, não podemos
aceitar (24) e, assim, não é permitido quantificar adequadamente sobre o operador de
necessidade, como em (3) – o que refuta a modalidade de re e o essencialismo aristotélico.
Será este um bom argumento contra a modalidade de re? Não me parece e penso que
Kripke (1971: 79-80) tem razão ao distinguir a ‘necessidade’ da ‘a aprioricidade’. Assim,
podemos fazer as seguintes distinções:
Em (25) e (26) estamos perante modalidade metafísica (ou seja, à forma como as
próprias coisas são), enquanto que (27) e (28) referem-se à modalidade epistémica (isto é, à
maneira como podemos saber que certas coisas são de facto verdadeiras). Portanto, temos
duas noções independentes de modalidade, o que torna possível, ao contrário do que Quine
pensava, ter necessidade a posteriori. Por exemplo, considere-se:
A proposição (29) não é uma verdade lógica nem sequer a priori (pois não se
descobriu essa identidade usando apenas o pensamento), mas mesmo assim é necessária; pois,
perguntemo-nos: será que o planeta que chamamos “Estrela da Manhã” pode ser não idêntico
ao planeta que chamamos “Estrela da Tarde”? Ora, como não existe nenhum mundo possível
em que a Estrela da Manhã não seja a Estrela da Tarde, uma vez que designam rigidamente o
mesmo planeta (Vénus) no mundo atual, então estamos perante uma identidade necessária a
posteriori; ou seja, é legítimo passar de (29) para (30). O mesmo acontece, por exemplo, com
Túlio e Cícero (cf. Kripke 1971: 81).
Desta forma, Kripke critica solidamente a suposição de Quine de que a única
necessidade plausível é a a priori. E com isto pode seguir-se claramente que se os enunciados
de identidade são verdadeiros, mesmo aqueles que são adquiridos de forma a posteriori, então
são necessários, não existindo por conseguinte identidades contingentes. Portanto, considero
que não há problemas em aceitar (24) nem em aceitar a modalidade de re.
Bibliografia
QUINE, Willard Van Orman (1953a) “Three Grades of Modal Involvement”. In The Ways
of Paradox. New York: Random House, 1966.
QUINE, Willard Van Orman (1953b) “Reference and modality”. In From a Logical Point
of View. Harvard University Press.