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Resumo
O trabalho analisa a possibilidade de desconsideração da coisa julgada decorrente do
controle de constitucionalidade abstrato em caso de mutações hermenêuticas. Parte
de uma reflexão sobre a internalização da segurança jurídica no conceito moderno
de direito e da relação filosófica entre segurança e tempo. Analisa o conceito de coisa
julgada e as suas especificidades na jurisdição constitucional, assim como investiga o
sentido de mutação constitucional. Avalia criticamente as hipóteses levantadas a par-
tir da análise da possibilidade de um rejulgamento da ADPF nº 153, que versou sobre
a recepção da lei da anistia.
Abstract
This paper deals with the constitutional function of res judicata and its relations with
hermeneutic transformations caused by history in the meaning of the Constitution’s
text. It analyzes the dimension of the definitive judgment of ADPF 153 by the Brazilian
Supreme Court, specifically regarding the reception of the Amnesty Law (6.683/1979)
by the Constitution. This controversial ruling, extending amnesty to all agents of the
military regime, has stirred both domestic and international criticism, which has
prompted scholars and commentators to consider the possibility of a new judgment
about the same matter.
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Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora Adjunta da Facul-
dade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Rua Meton de Alencar, s/n, Centro, 60035-160, Fortaleza, CE, Brasil.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Attribution License (CC-BY 3.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde
que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Campos | Mutações hermenêuticas e coisa julgada na jurisdição constitucional: os limites da mutabilidade do direito
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Loughlin e Walker (2008) nomeiam o “paradoxo do constitucionalismo” moderno o antagonismo fundamental entre dois imperativos: a soberania popular e a limi-
tação do poder pelas instituições conforme a constituição. Embora o paradoxo deste artigo se refira ao antagonismo entre permanência e mudança, a reflexão dos
autores sobre o poder constituinte é um pressuposto lógico para o argumento do trabalho.
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Também é possível refletir sobre a transformação da constituição no plano simbólico, no que se refere especificamente às funções que a carta constitucional pode
desempenhar na retórica política. Barroso menciona a aptidão da constituição para “mobilizar o ideário social”, enquanto Neves realiza um estudo sociológico sobre
o déficit normativo da constituição pelo seu esgotamento semântico a partir do seu uso inflacionário na área política e jurídica (cf. Neves, 2007; Barroso, 2005, p. 4).
4
Os exemplos de Ronald Dworkin e Robert Alexy são paradigmáticos e têm influenciado a teoria constitucional no Brasil de forma determinante (cf. Dworkin, 2014;
Alexy, 2011).
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As ações versam sobre a omissão legislativa na regulamentação do direito de greve dos servidores públicos.
sentido, a vigência legal, salvo exceções, não tem um lapso lidade da sentença. Para o italiano, o trânsito em julgado
temporal predefinido, havendo uma presunção de per- não é condição para a produção de efeitos do ato de-
manência fictícia que permite a criação de uma base de cisório, na medida em que a sentença “é imperativa e
confiabilidade entre sujeito e Estado/legislador. O cerne produz todos os seus efeitos ainda antes e independen-
do ideal da segurança jurídica é, pois, a confiabilidade. A temente do fato da sua passagem em julgado”. Não é a
palavra “confiabilidade” deve ser entendida, como escla- coisa julgada, para o italiano, um efeito da sentença, mas
rece Ávila, “como a exigência de um ordenamento jurí- a condição de sua estabilização no tempo.
dico protetor de expectativas e garantidor de mudanças É instituto tipicamente processual, na medida
estáveis” (Ávila, 2012, p. 130). A nota da juridicidade é em que só os atos jurisdicionais são “suscetíveis de se
justamente a segurança que as normas podem oferecer tornar imutáveis” (Dinamarco et al., 2013, p. 160). Uma
aos sujeitos no regramento de suas relações sociais, uma vez perfeita, a coisa julgada tem a autoridade de impedir
segurança que é “externa”, na medida em que há todo a reanálise do objeto litigioso, independentemente do
um aparato estatal organizado para agir em caso de não que venha a acontecer (ou ser produzido no âmbito
cumprimento voluntário da norma positivada. legislativo). A lide, portanto, é resolvida, ainda que per-
Para o autor, os três “eixos” da segurança jurí- maneça um estado de inconformação de uma ou ambas
dica seriam a inteligibilidade, a confiabilidade e a calcu- as partes.
labilidade. A noção de confiabilidade remete justamen- A proteção da coisa julgada alcança duas dimen-
te à ação do direito no tempo, notadamente quanto à sões. Uma que se pode definir como endoprocessual,
relação entre passado e futuro (Ávila, 2012, p. 345). Em pois diz respeito aos efeitos da sentença em relação ao
outras palavras, importa resguardar da ação do legisla- processo enquanto relação processual organizada pelo
dor expectativas legítimas de estabilidade em relação a procedimento: é a coisa julgada formal. Cada relação
determinado regime ou regramento jurídico voltado a processual que se desenvolve por meio de uma sequên-
um fato social específico, estabelecendo-se como regra cia ordenada de atos necessita de um fim, simbolizado
geral no direito nacional a eficácia não retroativa da le- pela sentença que impede a continuidade permanente
gislação superveniente. do litígio nessa relação processual específica. Nesse
A coisa julgada, situada na dimensão da confia- sentido, a sentença faz coisa julgada formal para repre-
bilidade, constitutiva do conceito de direito, pode ser sentar o fim oficial de determinado processo. A outra
entendida como “Um dos efeitos da sentença, ou como dimensão, coisa julgada material, alcança o conteúdo da
a sua eficácia específica, entendida ela, quer como com- decisão na qualidade de norma concreta e diz respeito à
plexo das consequências que a lei faz derivar da senten- imutabilidade da própria resolução do mérito do litígio
ça, quer como conjunto dos requisitos exigidos, para proferida pelo Poder Judiciário, a decisão que resolve a
que possa valer plenamente e considerar-se perfeita” lide, portanto, ao enfrentar o direito material.
(Liebman, 2007, p. 3). A distinção processual entre coisa julgada mate-
A lição de Liebman é esclarecedora, pois estabe- rial e coisa julgada formal diz respeito, assim, à análise de
lece uma das características da jurisdição: a definitivida- mérito: enquanto a coisa julgada formal é a definitividade
de. Certo que o processo judicial deve se desenrolar no do provimento jurisdicional que põe fim a determina-
tempo, é necessário que tenha uma conclusão, dentro do processo, sempre vindo a ocorrer quando findo um
de uma “razoável duração” que não comprometa sua procedimento, a coisa julgada material é a definitividade
efetividade. A cognição não pode, portanto, ser uma ati- de um provimento de mérito, onde foi avaliada a lide,
vidade interminável, sob pena de o processo perder sua e nem sempre ocorre, só alcançando o dispositivo da
função instrumental relativamente ao direito material. sentença. Essa distinção é fundamental, pois a extinção
Rigorosamente, só os atos jurisdicionais são “suscetíveis sem resolução de mérito – que faz coisa julgada formal,
de se tornar imutáveis”, característica própria da coi- mas não material – não impede a renovação do pedido
sa julgada, definida por Dinamarco et al. (2013, p. 160) quando superados os vícios que impediram a análise do
como “a imutabilidade dos efeitos de uma sentença, em mérito no processo anterior.
virtude da qual nem as partes podem repropor a mesma Além de instituto processual, a coisa julgada
demanda em juízo ou comportar-se de modo diferente constitui uma garantia constitucional prevista no artigo
daquele preceituado, nem os juízes podem voltar a de- 5º, compondo, por isso, o núcleo intangível das cláusu-
cidir a respeito”. las pétreas. O fundamento para a hierarquia constitu-
Liebman (2007, p. 40) discorda desta definição, cional diferenciada atribuída à garantia da coisa julgada
pois parte da distinção entre imperatividade e imutabi- é a sua relação com a segurança jurídica, uma condi-
ção constitutiva do Estado Democrático de Direito. da como uma ampliação subjetiva dos efeitos da coisa
Ao garantir a imutabilidade da decisão, a coisa julgada julgada para além das partes do processo. Enquanto a
estabiliza o conflito, definindo direitos e obrigações eficácia erga omnes indica uma certa semelhança entre
que estão aptos a ser exigidos. O futuro, assim, ainda a sentença oriunda do controle de constitucionalidade
que aberto a mudanças e transformações significativas e a lei, no que tange à generalidade de seus efeitos, o
no direito legislado, não poderá atingir aquela situa- efeito vinculante refere-se à autoridade da decisão re-
ção jurídica já consolidada a partir do comando estatal lativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao
simbolizado pela sentença imutável6: a coisa julgada é, Poder Executivo, que devem guardar respeito à deci-
por essa razão, uma imunidade contra o potencial de- são, ainda que não tenham participado diretamente do
sestabilizador do tempo. processo, sendo expressão da própria autoridade e hie-
Segundo Néry Jr. e Néry (2013, p. 224), apenas a rarquia diferenciada do tribunal constitucional. O Poder
coisa julgada material é alcançada pela disposição previs- Legislativo não fica adstrito à decisão da corte, podendo
ta no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal. legislar em sentido contrário sem que tal atitude confi-
Tem-se que “ao juiz é vedado decidir contra decisão an- gure uma postura inconstitucional. Do mesmo modo, o
terior acobertada pela coisa julgada material”, na medi- STF tem entendido não haver autovinculação, de modo
da em que “a sentença tem força de lei nos limites da que o tribunal pode se manifestar em sentido contrário
lide (CPC 468)”. A autoridade da coisa julgada válida é, no futuro, não havendo uma imposição normativa de
com a ressalva das hipóteses previstas para a ação resci- respeito à própria jurisprudência7.
sória, absoluta, gerando uma vedação normativa quanto Percebe-se, portanto, que a coisa julgada no âm-
à provocação e ao exercício da função jurisdicional. O bito da jurisdição constitucional e, mais especificamente,
artigo 5º, interpretado sistematicamente, concilia a ina- no controle abstrato de constitucionalidade possui ca-
fastabilidade do controle jurisdicional com a coisa jul- racterísticas próprias, dada a natureza objetiva do pro-
gada, que se apresenta como um dos limites ao pleno cesso constitucional, com causa petendi aberta, no qual
acesso à jurisdição. O acesso à jurisdição é inafastável, as partes – autor e réu, por assim dizer – não atuam
desde que não haja coisa julgada já formada sobre o em defesa de interesse próprio, mas na preservação da
objeto litigioso, uma vez que, nesse caso, já houve um sanidade normativa do sistema, por meio da exclusão
pronunciamento oficial que simboliza a própria garantia expressa de normas tidas por inválidas ou incompatíveis
de acesso ao Poder Judiciário. Importa saber, para os com a constituição. Nesse panorama, é possível dizer
propósitos desta análise, se (e em que medida) as carac- que se agrega ao sentido tradicional de coisa julgada:
terísticas e os efeitos da coisa julgada são distintos no (a) sua eficácia geral, porque é sentida para além das
âmbito do processo constitucional. partes do processo, como se a sentença lei fosse, e (b)
No controle de constitucionalidade abstrato e seus efeitos vinculantes, porque a autoridade da sentença
concentrado têm-se o efeito vinculante e a eficácia erga alcança o Poder Judiciário como um todo, bem como
omnes da coisa julgada como manifestações da natureza os órgãos componentes da estrutura administrativa do
do controle exercido, de forma exclusiva, pelo Supremo Poder Executivo.
Tribunal Federal, na condição de guardião último da au- A abrangência da coisa julgada material no con-
toridade constitucional. Tais características, expressas no trole abstrato de constitucionalidade depende da defini-
artigo 102, § 2º da Constituição Federal de 1988, consti- ção precisa do objeto litigioso do processo. No caso da
tuem uma verdadeira ampliação dos limites subjetivos e arguição de descumprimento de preceito fundamental
objetivos da coisa julgada nessas ações, tratando-se, assim, (ADPF), o objeto do processo há de ser a compatibi-
de elementos indicativos de uma natureza distinta. lidade material e/ou formal de norma não impugnável
É preciso distinguir, como categorias distintas, a pela via da ADIN ou ADC com a constituição federal,
eficácia erga omnes do efeito vinculante da decisão to- como, por exemplo, das normas infraconstitucionais
mada pelo tribunal constitucional no controle de cons- produzidas de forma válida e em momento anterior ao
titucionalidade. A eficácia erga omnes pode ser entendi- advento da nova ordem constitucional. A apreciação do
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Ávila chama atenção para um aspecto relevante concernente ao Direito Tributário: o possível conflito entre a coisa julgada individual decorrente de um processo onde
a constitucionalidade da lei é avaliada de forma difusa e a coisa julgada temporalmente posterior, decorrente do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade.
Sendo uma relação continuativa, a coisa julgada posterior não afeta o passado, que se estabiliza, mas pode transformar o futuro, pois a obrigação de pagar o tributo
se reconstitui continuamente. Desse modo, a coisa julgada formada pelo STF teria o condão de desobrigar, para o futuro, mesmo havendo coisa julgada anterior no
sentido de afirmar a obrigação (cf. Ávila, 2012, p. 360).
7
Zaneti Jr. (2015, p. 25) defende uma teoria normativa dos precedentes na qual a vinculação aos próprios precedentes se manifesta como um “elemento de estabilidade
dos ordenamentos jurídicos”, na medida em que garante coerência. O autor chama esse efeito de vinculação horizontal.
(2012, p. 201). Por não estarem inscritas no “contexto cognição do objeto jurídico, mesmo quando não se ob-
normativo” do Estado, as mutações precisam superar serva, pelo menos na aparência, um descompasso entre
o questionamento sobre a legitimidade política de uma texto e expectativa normativa. “Atualizar” a norma e
“atualização sem regra ou parâmetro de controle”. adequá-la à realidade social não é um privilégio inter-
O conceito de mutação manifesto por Dau-Lin pretativo das mutações, mas orienta o fazer hermenêu-
é coerente com os textos de Grau sobre interpretação tico como um todo. Ainda que se reconheça a influência
e aplicação da constituição, em especial quanto à dis- inegável do tempo – e das transformações culturais por
tinção entre texto e norma e ao papel do juiz na tarefa ele impostas – sobre a interpretação, o direito positivo
de construção do direito (2014, p. 25)8. Para Grau, “os do Estado de Direito impõe, contudo, alguns cuidados
juízes completam o trabalho do autor do texto norma- relacionados à ideia de segurança.
tivo. A finalização desse trabalho é necessária em razão O papel funcional da legislação no panorama de
do próprio caráter da interpretação, que se expressa na uma coordenação entre política e direito é a garantia
produção de um novo texto (a norma) a partir de um de previsibilidade, um elemento estruturante da noção
primeiro texto (a Constituição, uma lei, um regulamento liberal de Estado, onde o espaço de autonomia privada
ou um regimento)”. é condição de possibilidade do desenvolvimento econô-
A oposição entre a dimensão legislativa e a di- mico e individual como um todo. Nesse horizonte, ainda
mensão normativa condiz com a ideia de que cabe à que se reconheça que o fenômeno jurídico se manifesta
sentença materializar a interpretação autêntica do direi- como linguagem – em seus múltiplos momentos – o
to, na medida em que interpretar consiste em realizar espaço interpretativo é delimitado, de antemão, pela ob-
uma atividade constitutiva, “decisional, embora não dis- jetividade da lei positivada, materializada no texto. Há,
cricionária”. Referindo-se a Müller, Grau define o mo- assim, um limite à aceitação teórica da mutação cons-
mento da construção do direito, pelo intérprete, “no titucional ou de seu uso irrestrito como ratio deciden-
decorrer do processo de concretização”, isto é, de sua di: este limite é apresentado pela própria lei válida, de
revelação concreta pelo juiz, de modo que, enquanto o modo que o principal obstáculo ao recurso às mutações
Poder Legislativo produz o texto, instituindo a disposi- deve ser a imposição da validade da lei. Admitir uma
ção, o Poder Judiciário constrói (e realiza) a dimensão mutação contra legem é, nesse sentido, sustentar uma
normativa ao proferir a norma de decisão (sentença) hierarquia entre Legislativo e Judiciário, com prevalência
aplicável ao caso concreto. A intepretação, então, como deste, o que parece insustentável na ordem constitucio-
ato e práxis, ocorre no momento da aplicação, inexistin- nal brasileira.
do uma cisão completa entre as duas operações. A ocorrência de mutações, embora desejável em
A ideia de interpretação como ato constitu- certa medida, por permitir uma abertura da ordem ju-
tivo que ocorre no momento da aplicação do direito rídica à contingência, encontra limitações decorrentes
pelo intérprete autêntico parece indicar que as muta- da própria natureza da lei enquanto manifestação de
ções constitucionais não apenas são possíveis e tole- um poder de império. Há uma dimensão objetiva do
ráveis, como fazem parte do próprio modo de ser do texto legal que permanece inalterável, sob pena de es-
fenômeno jurídico. A noção de temporalidade indicada gotamento do princípio da separação de poderes e da
por Grau vai ao encontro do sentido de interpretação preservação da autoridade legislativa. Grau (2014, p. 18)
apresentado por Gadamer em sua obra filosófica, como indica a importância da dimensão legislativa, ao mencio-
indica o autor brasileiro. O influxo do tempo e a limita- nar que o discurso de banalização dos princípios jurídi-
ção interpretativa representada pelo horizonte de pré- cos sob o argumento da realização da justiça coloca a
-compreensão do intérprete estão, no direito, presentes racionalidade formal do direito em risco, ao permitir ao
do momento da criação legislativa à aplicação judicial. Poder Judiciário “a faculdade de ‘corrigir’ o legislador,
O fenômeno jurídico, em sua integralidade, é um objeto invadindo a competência deste”.
histórico que se faz no tempo. Não obstante essa ideia esteja presente nos es-
O desvelar do sentido da norma pela linguagem, critos de Grau, a figura das mutações na jurisprudência
para além de um esforço de atualização textual, como do Supremo Tribunal Federal ainda se mostra incerta
indica o conceito de mutação, é o próprio movimento no que se refere aos limites da liberdade de atualização
da interpretação e está presente em qualquer ato de do texto pelo intérprete autêntico. A incerteza fica evi-
8
Para além do interesse estritamente acadêmico, o pensamento de Grau importa a este estudo por ter sido o relator da ADPF 153, onde proferiu voto favorável
à recepção da Lei da Anistia (cf. Grau, 2014, p. 25).
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Mendes (2004, p. 149-168) defendeu a tese do esgotamento do papel do Senado no controle de constitucionalidade através de artigo.
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Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação
exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961,
e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam
direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e
peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
timas acabou por reavivar a discussão jurídica e política outro, o discurso pelo fortalecimento do direito à me-
acerca da lei da anistia11 e de sua recepção pela ordem mória – com a correlata persecução penal dos respon-
constitucional vigente. Dando nome, rosto e biografia sáveis pelas violações sofridas no passado próximo –
aos desaparecidos políticos e aos responsáveis pelo seu materializado no julgamento da CIDH e pela instituição
desaparecimento, pôde a CNV realizar mais que um da CNV, com a consequente publicação de seu relatório.
trabalho de esclarecimento sobre mortes pontuais ao Esse descompasso acaba por gerar um contexto
promover verdadeira narrativa histórica impregnada de favorável ao questionamento da decisão tomada pelo
realidade que ressignifica e redimensiona o papel do Es- STF, seja no que tange à legitimidade política do tribunal
tado e de seus agentes na perseguição política à dissi- para uma última voz sobre o tema, seja no acerto do
dência ideológica no período da ditadura militar. aspecto estritamente técnico do objeto da sentença. O
Com a publicação do documento oficial, ao mes- que está em discussão, neste trabalho, não é a pertinên-
mo tempo em que crescem os discursos favoráveis à cia ou conveniência de uma revisão da anistia em si, mas
punição dos responsáveis pelas práticas de violação aos a possibilidade jurídica da desconsideração da coisa jul-
direitos fundamentais, sob o argumento da imprescri- gada validamente constituída em ADPF (e demais ações
tibilidade dos crimes praticados contra a humanidade, voltadas ao controle abstrato de constitucionalidade)
tem-se a defesa da estabilidade da coisa julgada decor- já transitada em julgado, o que permitiria uma reanáli-
rente do julgamento da arguição de descumprimento se, em tese, do mesmo objeto de mérito pelo tribunal
de preceito fundamental nº 153, na qual o Supremo Tri- constitucional sem que tenha ocorrido qualquer vício
bunal Federal decidiu ser compatível a lei da anistia em processual que nulifique a coisa julgada já formada.
face da constituição, declarando, em termos peremptó- No caso do julgamento da ADPF nº 153, houve
rios, sua recepção. efetivo julgamento do mérito, tendo o tribunal se mani-
Considerando a substancial alteração na com- festado no sentido da recepção da lei federal nº 6.683
posição da corte e a observação de uma tendência, na de 1979. A resolução do mérito, no caso, implica a esta-
práxis da jurisdição constitucional brasileira, ao ativismo bilização de todos os potenciais conflitos decorrentes
(e protagonismo) judicial, as discussões sobre a possibi- da dúvida sobre a vigência da lei federal e da sua aptidão
lidade jurídica de um rejulgamento da lei da anistia não à produção de efeitos. Superado o questionamento so-
se limitam, hoje, à opinião leiga e difusa, mas alcançam bre sua adequação constitucional, está a lei questiona-
os próprios ministros da corte constitucional, especial- da resguardada em sua eficácia, não cabendo qualquer
mente após o julgamento do caso Gomes Lund e outros renovação da litigiosidade sobre sua incompatibilidade
vs. Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Huma- com a ordem constitucional em vigor.
nos (CIDH)12 em 24 de novembro de 2014. Em decisão É preciso que se diferenciem, portanto, os efei-
posterior ao julgamento da ADPF nº 153, a CIDH con- tos absolutamente vinculantes da coisa julgada, que
denou o Brasil a realizar as investigações e determinar a atinge o próprio tribunal prolator da decisão transita-
punição dos culpados pelo desaparecimento e morte de da em julgado, dos efeitos “relativamente” vinculantes
presos políticos na ditadura brasileira, ignorando, por- da jurisprudência do tribunal constitucional no exercí-
tanto, a autoridade da decisão doméstica. cio do controle de constitucionalidade. Se estes efeitos
Há, portanto, um claro descompasso histórico (e, não têm, segundo entendimento do STF, o poder de
também, hermenêutico) entre essas duas frentes: de um vincular o próprio órgão de cúpula, na medida em que
lado, a postura conciliatória pró-anistia irrestrita assu- pode o tribunal, em distintos e posteriores processos,
mida pela assembleia constituinte de 1987/198813, rea- alterar a ratio decidendi, a coisa julgada, uma vez forma-
firmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, e, de da em relação a determinado objeto em determinada
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Lei Federal nº 6.683/79, que dispõe, em seu artigo 1º: “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto
de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração
Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.”
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O Pacto de San José da Costa Rica, celebrado em 1969, foi inserido na ordem jurídica brasileira mediante o depósito da carta de adesão em 25 de setembro de 1992.
O decreto legislativo 678 de 1992 formaliza sua internalização. A jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevista e estruturada pelo Pacto, foi
reconhecida pelo Brasil em 1998, através do decreto legislativo nº 89. A compatibilidade entre a jurisdição constitucional e a jurisdição internacional sobre direitos
humanos constitui um viés de análise alternativo para o acerto da sentença da ADPF nº 153. Reservaremos sua análise para outro momento, dados os limites da
extensão do presente estudo.
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A partir do estudo de Pilatti (2008), é possível sustentar que o formato sui generis da constituinte brasileira de 1987 contribuiu para uma continuidade institucional
e política, ainda que no contexto de uma redemocratização. A assembleia congressual criou um ambiente favorável à perpetuação de uma tradição de anistia concilia-
tória, que imuniza o passado não só quanto ao revelar dos fatos, mas também quanto à punição de eventuais responsáveis pelos excessos cometidos.
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Aceito: 14/10/2015