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AVALIAÇÃO
Encontre duas passagens diferentes, uma de cada obra estudada no curso (o ensaio “Sobre
alguns motivos na obra de Baudelaire”, de Walter Benjamin, e os três primeiros capítulos de
24/7. Capitalismo tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary), que sirvam de base para que
você estabeleça um paralelo entre o diagnóstico benjaminiano da atrofia da experiência
partilhável na modernidade do século XIX e o de Crary sobre as condições da experiência no
mundo atual da hiper-comunicação, e discorra sobre a relação entre as passagens, mostrando o
porquê de terem sido escolhidas por você. Sua argumentação deve ser embasada nos textos
estudados.
RESPOSTA
Crary conclui que a obsolescência no mundo digital é tão permanente que se torna premente
não mais descrevê-lo, mas voltar-se para a investigação levada a cabo por Benjamin, em
novas bases:
Em “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”, Benjamin descreve uma tensão entre
experiência e vivência, dois modos – históricos – de sentir e absorver o mundo. A experiência
remete a uma memória mais ligada a uma tradição pré-capitalista, uma vez que é descrita na
Europa antes do século XIX, em contraste com a do período moderno. “De fato, a experiência
é matéria de tradição, na vida coletiva como na privada. Constitui-se menos a partir de dados
isolados rigorosamente fixados na memória, e mais a partir de dados acumulados, muitas
vezes não conscientes.” (p. 107). A “experiência no sentido estrito do termo”, segundo
Benjamin, ocorre quando há uma conjugação da memória individual com a coletiva, tornando
os limites entre o coletivo e individual bem mais fluidos (p. 109).
O tempo 24/7 descrito por Crary é ainda mais infernal do que o tempo descrito por Baudelaire
porque não diz respeito mais ao tempo de máquinas que têm uma vida útil palpável, mas o
que oprime o homem é a virtualidade de uma promessa tecnológica que nunca se realiza:
“Apesar das declarações onipresentes da compatibilidade, ou mesmo harmonia, entre o tempo
humano e as temporalidades dos sistemas em rede, disjunções, fraturas e desequilíbrio
contínuo compõem a experiência real dessas relações” (p. 41).
O tempo “atemporal” de 24/7 inferniza o homem porque é uma “palavra de ordem” e com
isso deprecia a temporalidade humana como frágil e inadequada, “com suas tessituras
confusas, irregulares” (p. 39).
Crary denuncia que com isso, a “experiência compartilhada atrofiou (...)” no mundo atual (p.
41). O ponto é que parece que a própria vivência, tal como descrita em Benjamin, parece ter
modificado o seu caráter. O indivíduo contemporâneo que está imerso no 24/7 não é
esvaziado apenas de sua experiência coletiva, mas sequer almeja ou enxerga isso como um
fim. A vivência fragmentada descrita por Benjamin ainda sente os choques da violência
impressa pela hora do relógio ou pelo ritmo alienante de seu trabalho cotidiano. Mas há toda
uma tecnologia e um aparato artístico que ainda o “domesticam” para este fim. No 24/7 não
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A dupla face 24/7 anuncia sua absoluta incompatibilidade com a vida. 24/7
não apenas incita no indivíduo um foco exclusivo em adquirir, ter, ganhar,
desejar ardentemente, desperdiçar e menosprezar, mas está totalmente
entremeado a mecanismos de controle que tornaram supérfluo e impotente o
sujeito de suas demandas (p. 41).
24/7, assim, enquanto uma “temporalidade impossível” (p. 39) é o novo paradigma sob o qual
toda experiência contemporânea é organizada sem qualquer resistência ou questionamento. O
homem esvaziado de si mesmo de Benjamin significa um homem que não tem mais a
dimensão da coletividade mas que mergulha em si mesmo para dar sentido à sua vida. Ele
reflete e narra sua vida em romances. O homem 24/7 não tem mais condições de buscar um
sentido para além do que já é dado pelo mundo digital, uma vez que promove a incapacitação
de qualquer movimento de busca por parte do indivíduo. O controle da sua vida feito por
dispositivos externos é a sua nova natureza. A sua visão é atrofiada na medida em que “a
atividade ótica individual é transformada em objeto de observação e administração” (p. 43),
de modo que o 24/7 “incapacita a visão por meio de processos de homogeneização,
redundância e aceleração” (id.), promovendo uma “desintegração da capacidade humana de
ver, em especial da habilidade de associar identificação visual e avaliações éticas e sociais”
(id). De igual modo, 24/7 promove a “diminuição de suas [do indivíduo] capacidades mentais
e perceptivas” (p. 43).
Esta fragmentação é também compatível com a palestra da escritora indiana Abha Dawesar,
que descreve os danos do “agora digital” na elaboração das experiências e a consequente
perda de sentido do homem diante de sua própria vida. As pobres almas que circulam sem
história de Benjamin não imaginavam a intensificação deste processo neste patamar: as almas
do agora digital sequer precisam andar.
Por fim, a percepção do tempo dentro da lógica do 24/7 considera inatingível a realização do
que quer que seja: o estado de transição permanente, que faz parte da lógica da produção
capitalista, que deve sempre se renovar – não apenas no campo da tecnologia – aumentando a
distância e a impotência do homem diante dessa realidade (p. 46).
Estes são os elementos que eu pude confrontar com o objetivo de examinar algumas
diferenças entre a vivência descrita por Benjamin e da experiência do 24/7 narrada por Crary,
baseadas nos diferentes momentos históricos: enquanto em Benjamin o homem estava se
adaptando à lógica do capital, o 24/7 já representa uma total imersão do homem
contemporâneo dentro dessa lógica, com uma intensificação dos elementos descritos por
Benjamin (a perda dos vínculos sociais, o jugo diante do tempo), e criação de novos dados (a
perda da visão, a impotência generalizada, a incapacidade de construir um sentido para a
própria vida, o aprisionamento total da experiência e do tempo).
REFERÊNCIAS
CRARY, Jonathan. 24/7. O capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução de Joaquim Toledo
Jr. São Paulo: Ed. 34, 2014.
DAWESAR, Abha. Life in the digital now, TED TALKS, junho de 2013. Disponível em:
<https://www.ted.com/talks/abha_dawesar_life_in_the_digital_now> Acesso em: 28/11/2017.