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24 a 28 de outubro de 2006;
Por outro lado, desde outro ponto de vista analítico, pretendo analisar
também como a construção desses diversos ambientes depende, por sua vez,
da utilização do próprio corpo como agente que cria gênero. Como muitas das
denominações que conformam esses mundos podem ser vistas como
“experiências de gênero” e “jogos performáticos” que, além de não possuírem
fronteiras absolutas, dependem de códigos e redes de intercâmbio para sua
efetivação.
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Neste artigo apresento algumas reflexões que surgiram a partir da dissertação em antropologia
intitulada: Negros homossexuais: raça e hierarquia no Brasil e na Colômbia, efetuada particularmente
em Bogotá e Rio de Janeiro. O projeto inicial desta pesquisa consistiu em analisar as maneiras como se
negocia a inserção dos homens negros dentro de territórios gays e dos homens homossexuais dentro dos
circuitos negros. Nesse percurso indaguei nas formas como se articulam fatores de raça, gênero, classe
social, aparência, idade, ocupação e estilo dando lugar à existência e criação contínua e dinâmica de
diversos repertórios homossexuais.
Etiquetando experiências, posicionando sujeitos
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A categoria Entendido apareceu geralmente nas narrativas de meus entrevistados como sinônimo de
homossexual em geral, mais do que em referência a homossexuais cujas relações são de parâmetros
igualitários, como é explicado por Heilborn (1992) e Guimarães (1977).
todas fazem parte das maneiras como foram chamadas de fora aquelas
pessoas que orientavam seu desejo a indivíduos do “mesmo sexo”.
É-me necessário enumerar outras duas denominações colombianas
usadas para nomear a homens dissidentes da norma heterossexual, mas nem
sempre identificados como homossexuais: cacorro e pirobo. Com isto pretendo
justamente mostrar a instabilidade de pensar a totalidade como gay. No
entanto, estes dois apelidos tampouco foram criados dentro dos universos e
circuitos homossexuais, são representações reconhecidas em grande parte do
território nacional. A primeira denota aqueles homens que fazem sexo com
homossexuais, mas exercendo como eles opinam exclusivamente o papel de
ativos sexuais equivalente aos bofes brasileiros, enquanto que o apelido
pirobo denota, para alguns, aos homens que têm práticas homoeróticas por
dinheiro ou através da prostituição análogo aos michês no Brasil3. O cacorro
faz referência à orientação sexual que é frequentemente interpretada por eles
mesmos como heterossexual, e em alguns casos, bissexual ou ao papel de
gênero desempenhado na intimidade, é dizer, o masculino mediado pela
penetração.
O pirobo embora seja uma categoria baseada em uma ocupação
também é frequentemente relacionada com o papel masculino, levando em
conta que alguns reivindicam serem ativos sexuais e outros heterossexuais. O
pirobo também faz alusão à classe social, visto que a prática da prostituição
masculina se associa com o pobre, o perigoso e o marginal, chamar alguém de
pirobo, como em vários contextos brasileiros chamar alguém de michê, pode
entenderse como uma categoria de acusação, uma forma de ofender ou de
relacionar a um indivíduo com esse “baixo” mundo.
Desejo agora passar a examinar outros tipos de denominações que
fazem parte dos mundos homossexuais, mas que a diferença dos
anteriormente expostos foram criados dentro deles, levando em conta como
características marcantes da diferença as características de estilo, aparência,
idade, classe, orientação de gênero e, de uma maneira menos explícita, raça;
menos explícita porque aparece geralmente incorporada ao fator de classe.
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Para alguns poucos indivíduos que conheci e entrevistei no trabalho de campo, os pirobos são homens
que utilizam roupas apertadas e chamativas, que estão no limite entre serem efeminados e serem de mau
gosto.
Essas muitas comunidades homossexuais e seus diferentes repertórios
são, “redes de articulação e interação que [...] confluem para um território de
negociação, para um embate de algum modo significativo e estruturante das
relações sociais”. (Pinho 2004: 131). Existem diversas classificações dos
indivíduos dentro dessas comunidades homossexuais, classificações
taxonômicas que por sua vez cumprem a função de organizar a experiência,
criar sujeitos e oferecer-lhes espaços específicos dentro das interações. Tais
denominações ou posições de sujeito são “etiquetas que os agentes usam
para interagir e para construir naqueles contextos senhas para efetivação de
repertórios de desejo e poder” (Ibid, 130).
Essas posições de sujeito são construídas em relações de contraste ou
antagonismo, como identidades de “contraposição” ou “contra-identificação”,
pares binários contrários (bicha/bofe etc.), que sustentam relações
hierárquicas e de exclusão.
Estas denominações, explica Perlongher (1987) se agrupam mediante pólos
relacionais de gênero, idade e estrato social: mais masculino/mais feminino;
mais jovem/mais velho; mais rico/mais pobre; e eu adicionaria a aparência:
bonito/feio, musculoso/gordo.
Na Colômbia uma denominação que reúne características muito
interessantes e que escutei com certa freqüência na etnografia, é a palavra
palenquero. Diz-se: tal coisa é palenquera, ou tal pessoa é muito palenquera,
em relação a objetos considerados de mau gosto ou de pouco valor econômico
e em referência a indivíduos cuja aparência física, vestuário e estilo são vistos
como feios, pobres, baratos, de má qualidade, de má educação, sem
refinamento. Ao contrário do que poderia esperarse, levando em conta que o
Palenque de São Basílio é um quilombo de população afrodescendente, a
expressão palenquero não se aplica particularmente a pessoas negras,
embora os adjetivos que a definem se associem ao negro, o qual implica que
no uso do termo palenquero se efetua um recorte de classe que estabelece
analogia direta com os prejuízos raciais: o pobre é antiestético, é ordinário, é
ridículo e passado de moda; em suma, é negro. Uma outra classificação ainda
não muito difundida é marica prepago. Chama-se assim aqueles rapazes
homossexuais de pouco capital econômico. O apelido tem origem nos
celulares que se pagam com cartão ou de maneira antecipada com um número
específico de minutos.
Por sua vez, o Rio de Janeiro possui um universo complexo em
denominações classificatórias dos indivíduos. Como já anunciei a palavra
bicha, igualmente à loca, pode ser denotativa de todos os homossexuais ou
um termo corrente no trato cotidiano entre amigos, assim como uma palavra
usada para ofender − bicha nojenta (loca imunda, em espanhol) − faz
referência especialmente aos efeminados quem também se supõe exercem o
papel de passivos na relação sexual como contraparte dos bofes. A partir
deste ponto de vista são apelidados também de bicha pintosa porque “dão
pinta”, ou seja, possuem gestuais e trejeitos femininos. Quando a bicha pintosa
é pobre, vive em um bairro da periferia e, geralmente, é negro, é chamado de
bicha qua qua qua e bicha pão-com-ovo, a diferença entre estas duas
categorias é muito sutil. Ambos são considerados mal vestidas, com roupas
não só pobres como “vulgares” e de cores fortes e de mau gosto, dizse
também que são espalhafatosos e escandalosos. Contudo, para alguns a
bicha cua cua cua é “um pouco menos escrota”, como opinou um dos meus
entrevistados. Chamase de bicha montada aqueles que correntemente
vestem−se como garotos, mas nas noites ou em momentos específicos,
especialmente de pegação, se “montam” de mulher usando peruca, peito de
enchimento e roupas femininas.
Existem também as bichas clubber e fashion, chamadas assim devido a
seu estilo e aparência de vanguarda ou de moda atual respectivamente e por
estarem associadas às classes medias ou medias altas. Apelidam-se de
bichas carão aqueles homens de comportamento arrogante, identificados
como pertencentes a estratos médios e altos. Bicha cacura, cacurucaia ou tia
se aplica a homossexuais considerados velhos, portanto chamados também de
bichas velhas ou madrinhas. Independente da idade, da aparência, do estrato,
da raça ou da orientação de gênero, chamam-se de bichas colorim às pessoas
que têm uma personalidade “maluca”, que falam coisas incoerentes ou
aparentam possuir algum tipo de problema mental. A bicha boy seria o
equivalente na Colômbia a um gay normal, como diz um dos entrevistados:
“não dá muita pinta, se comporta mais como heterossexual embora dá para
perceber que é gay”. Barbie são aqueles homens de corpo malhado,
musculoso e imagem viril, para alguns sua estética é similar aos denominados
“pit-bul” heterossexuais. Sua imagem é a mais vendida na mídia e constitui
uma representação hegemônica do gay, relacionandose frequentemente com
as classes médias. A bicha Susy é uma imagem “modesta” da barbie;
considerase que alguém é Susy e não Barbie se seu corpo não é o
suficientemente malhado, se não possui as mesmas feições que identificam às
barbies e, em menor medida, quando não cumpre as expectativas a respeito
do nível social (motivo pelo qual são chamadas também de barbies pobres).
Metro gay se chama aqueles homens que cuidam cautelosamente de sua
aparência, que não dão pinta, que geralmente são bonitos, podendo ter um
estilo boy, barbie ou intermediário entre estes. Atualmente no circuito carioca
de boates e lugares de encontro homossexual, o metro gay se encontra no
ápice das preferências constituindo outro mito hegemônico do desejo. Os
ursos, por sua vez, são homossexuais viris, mas com uma estética oposta às
barbies: são gordos, peludos e barbados e dizem ser pessoas que não se
preocupam muito com sua aparência. Existem obviamente muitas mais
denominações. O sistema classificatório é dinâmico e permanece em
constante renovação.4
Além destas categorias, existem outras que pertencem a outro nível de
classificação, mas que dentro de vários universos homossexuais cariocas
sofrem adaptações de significado. Refirome por exemplo à categoria travesti.
Vários rapazes reconhecem algumas diferenças entre as travestis, de acordo
com a sua aparência: as que usam prótese e/ou silicone ou são hormonizadas.
Segundo o consenso geral, as travestis são vistas como homens que “andam
de mulher” 24 horas por dia e que trabalham basicamente em três profissões
diferentes: cabeleireiras, prostitutas ou em shows de teatro ou boates, além
daquelas que estão casadas e são donas de casa. Não obstante, há algumas
diferenciações que, embora aludam à profissão, fazem referência também à
aparência e ao estrato social. São as chamadas travestis européias,
denominação que inicialmente aludia àquelas que viajaram para a Europa,
especialmente França e atualmente Itália, e desempenam profissões como as
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Mencionemos outras denominações: frango, bicha paraiba, bicha podre, fanchona, sapatão,, lady,
sapatinha (sapatão com patricinha), entre outras. Cabe registrar ainda que em algumas denominações há
subdivisões. Por exemplo, “as barbies podem ser: chester se tiverem o peito muito desenvolvido;
rasgadas, se forem magras e bem definidas e puffy, as mais exibicionistas de sua musculatura” (Fígari
2003: 356).
mencionadas anteriormente. As européias gozam de um status maior, por um
lado, porque muitas delas possuem uma aparência feminina desejada, porque
algumas permanecem na mídia brasileira e, por tal motivo, pertencem
geralmente às camadas médias. Atualmente o termo européia generalizou-se
entre as travestis cariocas, e é chamada assim aquela que “tem peitão,
bundão, carão e cabelão, e está sempre muito bem vestida”. Muitos
transexuais são considerados nesse circuito como européias, especificamente
aqueles que viajaram para Itália, lugar onde colocaram prótese em vez de
silicone industrial conforme comentam os rapazes e fizeram cirurgia de
transgenitalização, ambas as questões são símbolos de um poder aquisitivo
maior e que em uma categoria hierárquica coloca-as acima das travestis, sem
querer dizer com isto que todas as travestis queiram trocar sua genitália.
Existem, ainda, em ambos os países, outras manifestações associadas
ao imaginário do gay embora nem sempre seus agentes tenham uma
orientação homossexual. Dragg queens, transformistas e gogo boys fazem
parte de diversos espaços de socialização homossexual e seus corpos, a
diferença dos anteriores, são construídos para o espetáculo.
Além da grande diversidade de categorias os sujeitos podem pertencer
simultaneamente a várias classificações.. É possível ser, por exemplo: pintosa-
fashion, transexual-carão, bicha-boy meio pintosa, urso cacucucaia, bofe-susy,
barbie-metrôgay, bicha-pintosa-carão, bicha-clubber-colorim, bicha-susy-
fashion, etc. A interação entre os indivíduos depende muito da classificação na
qual estejam inseridos. Por exemplo, as pessoas consideradas bichas cua cua
cua e pão-com-ovo geralmente se relacionam amigavelmente entre elas, e no
plano de relações erótico-afetivas preferem indivíduos que constroem
subjetividade como bofes. Os boys raramente sustentam laços profundos de
amizade com travestis, especialmente travestis de rua – sem querer
generalizar. Contudo, há aqueles homens másculos que se relacionam erótica
e afetivamente com travestis, chamados de TLovers (amantes de Travestis). É
freqüente escutar e observar que barbie só namora barbie e nunca com uma
bicha pintosa. Os ursos namoram preferencialmente entre eles ou com homens
que chamam de chasers ou “caçadores de ursos”, que podem possuir uma
estética boy, isto é, namoram com outro homem másculo, mas dificilmente com
uma barbie, porque de fato se estabelecem como contrários. As cacurucaias,
segundo o senso comum e o “mexerico”, relacionam-se com michês e garotos
boys. As bichas carão dão-se preferencialmente com pessoas de um poder
aquisitivo maior etc. A raça atravessa de ponta a ponta essas dinâmicas de
interação-exclusão.
Caio, um de meus entrevistados cariocas, diz a respeito:
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A autora explica que algumas minorias gay, lésbicas, transexuais e transgêneras, em reação contrária à
normalização da identidade gay, têm proposto uma proliferação de diferenças de raça, classe, idade e
práticas sexuais não normativas; por isso, sugere pensar em “multidões queer”. Pensar em multidao e
não em minoria, é um outro mecanismo de estruturarse como sujeito político, diz: “Il y n´a pas de
différence sexuelle, mais une multitude de différences, une transversale des rapports de pouvoir, une
diversité de puissances de vie. Ces différences ne sont pas ‘représentables’ car elles sont ‘monstrueses’ et
remettent en question par là même les régimes de representation politique, mais aussis les systèmes de
production de savoir scientifique des ‘normeaux’”. (Preciado, 2003: 25)
Corpos que criam gênero
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Utilizo a idéia de experiência também no sentido de ensaio, de algo não acabado nem definitivo.
7
Tradução da autora.
Existem atos que criam uma idéia de gênero e que são vistos como naturais
com base na repetição. É a repetição que permite ver o gênero como
teatralidade ou performatividade. Isto não quer dizer que cada indivíduo possa
construir seu gênero de acordo com o seu livre-arbítrio; a estilização repetida
do corpo está enquadrada dentro de um marco regulador rígido. Assim, na
teatralização ou atuação do gênero há um libreto e um cenário elaborados com
antecedência, aos quais os sujeitos acessam por meio de uma rede discursiva
historicamente localizada (Rodríguez, 1999, apud Rodríguez 2004)8.
Butler (1990: 277) explica melhor sua posição a partir da metáfora teatral:
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Por exemplo, em nossa sociedade patriarcal, o homem não deve mostrar debilidade nem efeminamento
porque estaria representando um papel feminino que não lhe pertence. A construção de seu gênero está
regulada por um discurso histórico.
mover-se, de gesticular e falar não são mais que técnicas corporais ou atos
estilizados. Tudo se repete infinitas vezes até obter naturalidade. Os
processos de repetição de atos que anuncia Butler são tanto reconstruções
como re experimentações de pautas culturais previamente estabelecidas.
Corpos de performance
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Ver Koestenbaum 1993; Góngora 2004; Ross 1989.
tradicionalmente foram identificados com a mulher, como o caráter e os gestos
doces, dóceis, delicados e até indefesos.
Como inspiração para suas performances as dragg queens escolhem
geralmente divas em “decadência” que alguma vez estiveram na mídia e que
podem estar sendo rechaçadas pelos meios massivos (cantoras, dançarinas ou
atrizes) ou outras que sendo ainda bem sucedidas, destacam-se por sua
irreverência, a forma aberta como cantam sobre sexo, a força com que
desafiam padrões de obediência, o mostrar que possuem uma mente aberta e
o fato de incluírem em muitos de seus repertórios canções sobre “amores
proibidos” e discursos sobre a liberação gay. Muitas destas divas também
utilizam seu próprio corpo como transgressor da imagem de “castidade” da
mulher, um corpo que também representa muitos dos trejeitos de alguns estilos
de ser homossexual.10
Ross (1989) explica que o que caracterizaria este tipo de gosto camp
seria o excesso de glamour ou o excesso do mau gosto (kitsch), en fim, aquelo
que sobrepassa por exceso ou defeito modelos de feminidade (Góngora 2004:
63).
Dragg queens e transformistas, performam uma mulher por meio da
simulação ou do exagero, utilizando a faculdade imitativa do gênero aprendem
a ter comportamentos de diva: matizar a voz, posicionar sutilmente a cabeça,
caminhar com cadência sobre saltos ou sapatos de plataformas muito altos.
Seus corpos construídos para o espetáculo, permitem colocar em cena um
sujeito dissidente das normatividade do gênero, permitem localizar ao sujeito
em uma posição excêntrica em relação à normalidade.
10
A cantora Rosana, escutei no meu trabalho de campo: “foi um veado que deu certo.”, fazendo
referência aos seus movimentos corporais no apogeu de sua canção mais conhecida, Como uma deusa.
“Ela fazia muita veadagem”, “Muitos homossexuais a imitavam de brincadeira”, escutei. Gretchen, como
outra diva do gosto camp, segundo meus entrevistados, marcou o início de uma nova forma de dança no
Brasil: “Com ela aprendemos a rebolar”, “É música para as bichas rebolarem” “Cada vez que
brincávamos de fazer um streaptease, cantávamos Piripiripiripipiripi, e isso também os caretas.”
Bibliografia
GÓNGORA, Andrés. “El camp y la fascinación gay por las divas”. In Góngora et
al, (orgs) Etnografías contemporáneas. Bogotá, Univerdidad Nacional de
Colombia. 2004.