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Anísio Baldessin
Padre da Ordem de São Camilo. Capelão no Hospital das Clínicas de São Paulo da Faculdade de Medicina - USP.
anisio.baldessin@bol.com.br
Baldessin A. (Padre). Morrendo bem equipado. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 55-59.
Resumo: A morte, principalmente na cultura ocidental, sempre foi encarada com muita re-
sistência. Essa realidade pode ser comprovada no cotidiano onde as crianças são, cada vez
mais, afastadas do convívio com a morte. Para fugir desta realidade, a medicina, com o auxílio da
alta tecnologia, busca alternativas para afastar o “fantasma” da morte.
A proposta deste artigo é refletir sobre o uso da tecnologia que, ao mesmo em que tempo
prolonga a vida, acarreta sofrimentos ao paciente, familiares, profissionais e àqueles que devem
arcar com os custos da hospitalização. Neste sentido, o autor do artigo chama atenção dos
leitores para o seguinte fato: enquanto se gasta muito tempo e dinheiro tentando evitar a morte
física, pouco ou quase nada se faz para evitar os outros tipos de morte que muitas vezes, são
piores do que a morte física.
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panhias de petróleo. Pois, no ano passado, o setor te- mentos, investe-se muito pouco na melhoria das con-
ria faturado 406 bilhões de dólares2. No entanto, en- dições de vida da população. Como alguém já disse
quanto os laboratórios estão cada vez mais saudáveis parece que mais do que estarem preocupados com
do ponto de vista financeiro, a imensa maioria dos o bem estar dos doentes estão buscando os bens
habitantes do mundo permanece doente. dos doentes. Pois enganam-se aqueles que pensam
Outro dado alarmante é que mais de 80% dos que o que prolonga a vida são somente os equipamen-
resultados dos exames dão resultados negativos. Em tos e medicamentos de alto custo. Pois, são poucas as
princípio, esse dado pode parecer positivo. No entan- pessoas que dispõem desses recursos para ter acesso
to, isso leva crer que muitos exames de alto custo po- a toda essa tecnologia e aos medicamentos de alto
deriam ser evitados, se houvesse uma boa relação custo.
(conversa) entre profissionais e pacientes. O segundo ponto parte de uma constatação feita
Não podemos esquecer também os aparelhos pelo o saudoso professor Carlos da Silva Lacaz, num
de última geração que são usados nas unidades de velório de um amigo que, mesmo cercado pelos me-
terapia intensiva. Aparelhos que trazem lucros exor- lhores profissionais e recursos terapêuticos morreu.
bitantes aos fabricantes, desgaste para quem faz uso Assim se expressou o insigne professor: “padre, mes-
deles, hospital e/ou familiares do paciente, angústia e mo nos melhores hospitais as pessoas morrem. A úni-
sofrimento para o paciente que muitas vezes, tem pro- ca diferença é que, nestes hospitais sofisticados, os
longado, não a sua vida, mas sim seu processo do pacientes morrem bem equipados e muitas vezes mal
morrer. Fato que acontece com muita freqüência. informados”.
É o eterno drama dos profissionais, familiares e
principalmente do paciente que é o mais interessado, MORRENDO MAL INFORMADOS
mas que na maioria das vezes não têm o direito de
opinar. Realmente, embora estejamos vivendo na era
da informática, da comunicação, da humanização, a
E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA? informação, principalmente nos hospitais, é um gran-
de desafio. As consultas são cada vez mais rápidas e
A definição deste princípio é muito bonita. Ve- com termos cada vez mais técnicos. As receitas mé-
jamos: “Autonomia - autos, eu; nomos, lei. Diz respei- dicas, na maioria das vezes são quase ilegíveis. As
to à capacidade que tem a racionalidade humana de decisões, geralmente, são tomadas pela equipe médi-
fazer leis para si mesma. Significa a capacidade de a ca e comunicada à família. Quase nunca ao paciente.
pessoa governar-se a si mesma, ou a capacidade de Ao paciente é oferecido quartos e hospedagem
se autogovernar, escolher, dividir, avaliar, sem restri- comparados aos hotéis de luxo, exames, cirurgias e
ções internas ou externas. Ou seja, os pacientes não aparelhos de última geração. No entanto, consciente
são objetos e sim sujeitos autônomos que estabele- ou inconscientemente, nega-se na prática, o princípio
cem relações interpessoais, compartilham decisões em tão bonito de autonomia que é definido na teoria. Nega-
parceria e no gozo de plenos direitos”. se a vontade do paciente afirmando que o mesmo não
Realmente, ao contrário do que muitas vezes, tem condições, físicas, mentais para decidir. Por fim
na minha ignorância afirmei não existir, descobri que ignora-se um dos direitos que muitos reclamam que é
este princípio, realmente existe. No entanto, trabalhan- o direito de morrer com dignidade e sem sofrimento.
do num grande hospital e de alta tecnologia, eu, guar- Por fim, nega-se a realidade da morte que é tão certa
dadas as raríssimas exceções, não consegui vê-lo ser em nossas vidas.
respeitado e muito menos posto em prática. O segredo que na realidade pertence ao paci-
ente, o mais interessado, acaba sendo guardado pelos
TECNOLOGIA OU CONDIÇÕES DE VIDA? profissionais. Até a assistência religiosa, as vezes, lhe
é negada devido a falta de representantes religiosos,
Sem cair na ignorância de negar os benefícios empecilhos dos hospitais ou bloqueio da família que
trazidos pela alta tecnologia, indico dois pontos para pensa que a presença de um representante religioso
reflexão. O primeiro é que enquanto se investe mi- pode assustar o doente, apressar ou aumentar ainda
lhões e milhões de reais em alta tecnologia e medica- mais o drama da morte.
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miliares que seu ente querido não resistiu e faleceu. É Outro fator que nos faz refletir e vermos a morte
o problema dos medicamentos que custam tanto e tanto como solução são casos em que pacientes estão ne-
prometem, e na verdade acabam não dando resulta- cessitando de um leito de UTI (Unidade de Terapia
dos. É o transplante que paciente, familiares e profis- Intensiva). Poderíamos nomear os famosos casos que
sionais tanto aguardam e que acaba no centro cirúrgi- chamaríamos de “eutanásia social”, onde é preciso
co, ou alguns dias depois. Nestes momentos, somos escolher, entre dois pacientes, qual deverá ir para a
incapazes de ver a morte como solução. UTI. De repente, um morre! É difícil fazer essa afir-
No entanto não podemos esquecer que a mor- mação, mas é um problema a menos para resolver...
te, que tanto tememos, que nos aborrece e às vezes Portanto, entendendo que a morte não é ape-
nos deixa revoltados até contra o Criador, outra vezes nas um fato biológico, haja vista que a morte de um
possibilita um agradecimento. Quantas vezes já não ser humano é também a morte de um ser social, co-
agradecemos a Deus a morte de alguém? Embora meço acreditar que, realmente, a morte pode ser a
prefiro acreditar que seja por compaixão e não por solução para os problemas do que morreu e também
outras razões. daqueles que continuam vivos.
Baldessin A. (Padre). A well-equipped passing away. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38(1): 55-59.
Abstract: Death, mainly in the occidental culture, was always faced by a strong reaction. This
reality can be confirmed everyday, where we can see that children are more and more separated
from the death intimacy. To escape from that reality, medical science, with the help of the high
technology, searchs for options to remove the “ghost”of death.
The proposal of this article is to consider the use of technology, which at the same time that
extends life, brings also suffering to the patient, family, professionals, and to all those who are
responsible for the costs of the hospitalization. The author calls the attention to the following:
While one expends a lot of time and money trying to avoid physical death, little or almost nothing
is done to avoid other types of death that frequently are worse than the physical death.
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