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PRINCÍPIOS DA ANARQUIA

Leandro S. Pinto

São Paulo – 2015

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Não há sonho com mais asas
que o sonho encarcerado

Costa Andrade

INTRODUÇÃO

A Anarquia é nesse livro definida como um Ideal, ou uma Utopia - esse ideal
significa Vida em Liberdade. Essa obra não apresenta uma descrição imaginária
dessa vida ideal ou utópica, pois uma descrição desse tipo não passa de um
gênero literário, uma ficção, e a proposta desse livro não é ficcional. A Utopia,
como ideal, não é um fenômeno histórico vivo e dinâmico que possa ser
descrito empiricamente, mas é um modelo de sociabilidade que pode ser
analisado em seus princípios ou fundamentos.
A Anarquia é considerada aqui somente uma entre outras formas de utopia.
Esse livro não trata da Anarquia como um estado de coisas qualquer,
sociologicamente mensurável, ou como um evento histórico, assim como não
trata do Anarquismo, entendido como um movimento social característico da
cultura ocidental desde o século XIX. Essa não é uma obra de sociologia.
Todavia, existe uma relação de parentesco entre o ideal ou conceito de
Anarquia presente nesta obra e as idéias do movimento social e político
conhecido pelo nome de Anarquismo.
Reconheço que este livro é o produto de uma reflexão pessoal sobre o
conceito ou a imagem de Anarquia. Os princípios aqui considerados são
portanto os princípios de uma certa forma ou modalidade de concepção da
Anarquia. Outros indivíduos podem acreditar que os verdadeiros princípios da
Anarquia são bem diferentes dos aqui indicados ou aceitos, o que pessoalmente
considero válido e não me provoca nenhuma objeção.
Os princípios existem para ser aplicados, se for o caso, em minha vida, e
não podem ser impostos a ninguém. Eu mesmo não estou obrigado a segui-los.
Tenho assim total liberdade para abrir mão destes princípios, substituí-los ou
modificá-los.

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PRINCÍPIOS ÉTICOS

I - Gozar a Vida! Direito à Vida!

O fundamento principal, o alicerce sobre o qual repousa todo o modelo


ético de Anarquia, é o gozo vital, o prazer de viver, a fruição da própria vida.
Nosso vitalismo é uma completa aceitação da vida dos sentidos, reconhecendo
nos prazeres sensuais uma manifestação autêntica e real da vida. Uma vez que
é a própria natureza da nossa vida que nos impõem a sensação de prazer,
devemos aceitar plenamente essa disposição natural e gozar a vida! Não
devemos ser tímidos ou temerosos em relação ao gozo do viver. O prazer é
natural, espontâneo, um atestado não-falsificado de vida. O prazer é um bem.
E portanto a vida boa, a vida que vislumbramos como Vida em Liberdade, a
Anarquia, não é uma vida contrária aos prazeres, uma vida sem prazer ou
inimiga do prazer. Aceitar a vida como ela é significa gozar, estar pronto para
experimentar todos os prazeres possíveis. Não negar o prazer, o gozo, quando
este se apresenta é um modo de sinceridade diante da própria vida;
sinceridade que é indispensável para a própria saúde mental.
Gozar a vida não quer dizer necessariamente correr atrás do prazer ou ficar
perseguindo prazeres novos, antes é simplesmente aceitar o prazer que
espontaneamente se manifesta no viver cotidiano. O gozo do viver se encontra
nas coisas simples da vida, nos próprios atos diários da sobrevivência. Se a vida
contém dores e sofrimentos, nem por isso ela deve ser condenada. Pelo
contrário, o sofrimento não é a essência da vida e pode ser superado; enquanto
o gozo é natural à toda forma de vida pura. A dor não passa de um acidente,
mas o prazer é inato. Nossa atitude ética parte portanto de um profundo dizer
sim à vida. Viver a Vida, desfrutar a vida, gozar a vida, isso é o mais
importante, sem o qual é impossível amar a vida, contemplar a vida, ou fazer
algo na vida, pois devemos aproveitar a vida, fazer bom uso do tempo, o carpe
diem de Horácio, e assim respeitar a vida, agradecer por estar vivo,
reconhecendo que a vida é sagrada... portanto, reconhecendo o Direito à Vida.
O direito de viver, o direito à vida, é o direito fundamental de todo ser
humano. Cada indivíduo tem o direito de gozar a própria vida. O direito à vida
significa o direito de cada pessoa gozar a vida.
Todos possuem o direito de saborear a vida. A anarquia é um estado de
espírito que se pode encontrar em uma garrafa de vinho.

Anarquia não é revolta metafísica, não é revolta contra a vida, o mundo, a


existência. A utopia que nomeamos de Anarquia não é um ideal contra o

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mundo, uma negação do "estar-no-mundo". Vida em Liberdade, do modo como
entendo, não significa fugir do mundo. Eu não me refiro a um modo de
ascetismo quando falo de Anarquia. Não é sequer "cair fora do sistema".
Anarquia é um grau elevado de vitalidade, força e saúde em completa
liberdade. Vida abundante e afirmativa, livre e natural, em harmonia com o
universo. Vida em comunhão com a natureza, positiva e valorativa. A Natureza
é Sagrada.

A vida é o pressuposto da ética. Não existe ética do não-vivo, ética para


cadáveres. Os princípios éticos da Anarquia supõem a existência de indivíduos
vivos, de sujeitos que vivem, e querem uma vida boa. Por isso começamos pelo
gozo da vida, a total aceitação da vida, e gozar a vida é uma expressão de
amor por si mesmo. Esse fato psicológico é de extrema importância e não
deveria ser combatido ou rejeitado pela ética. Uma ética natural, fundada na
própria natureza humana, deve aceitar o amor do sujeito por si mesmo como
base de uma série de valorações éticas e regras de direito. Até o
autoconhecimento, objetivo de toda filosofia, não é possível sem um interesse
do indivíduo por si mesmo, interesse que não é outra coisa que um
desdobramento do seu narcisismo. O natural amor-próprio é a base do
conhecimento de si, a base da aceitação do valor sagrado da vida, a base
inclusive do direito à vida. Quando afirmamos o direito à vida, quando digo que
tenho o direito de viver, que todos têm o mesmo direito, revelo que tenho
amor por minha vida, que dou valor ao viver, que considero minha vida valiosa:
isso não é outra coisa que amor-próprio.
Autoconhecimento é sabedoria de vida. É saber fazer bom uso do tempo,
isto é, saber dispor da própria vida. Há, eu não tenho a menor dúvida, um
prazer intelectual no conhecimento. Aprender sobre a vida traz satisfação ao
homem. Sócrates dizia que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida.
Negar a razão, rejeitar a consciência, equivale a negar o prazer, isto é, ambas
são mutilações da vida, e uma vida mutilada dessa forma, por descuido
pessoal, por negação dos fatos, é uma vida falseada, uma vida sem sinceridade,
e uma vida dessas é absurda, não vale o esforço para mantê-la. Toda a nossa
vida deve ser honesta, em harmonia com a verdade. A autenticidade é a marca
da sabedoria. Ésquilo dizia que o homem verdadeiramente sábio não queria
parecer, mas sim ser bom.
O homem não dever querer parecer uma coisa que ele não é, ocultando a
sua vida real. "A única disciplina que a vida nos impõe é aceitá-la como ela é"
(Henry Miller). Isso vale para todos os dias, em todos os momentos, sem
exceção. Reafirmar diariamente a vida em sua verdade, sem fingimentos e
trapaças, é valorizar a vida pelo seu ser real. "Todos os momentos da vida são

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valiosos para aqueles que sabem e querem reconhecê-los como tal. A vida é o
momento presente." (Henry Miller). É no presente que o indivíduo pode gozar a
vida, não no passado ou no futuro. É sempre no presente que vivemos. A
anarquia só pode se realizar como uma experiência no presente. Uma
experiência verdadeira que se dá na mesma escala da Natureza. Tudo o que é
natural é bom. A anarquia é boa se for natural, sincera e espontânea. É dentro
da Natureza que podemos realizar a Anarquia. "Ame o mundo como a si mesmo"
(Tao Te Ching). Isso é "ecologia profunda" muito antes de qualquer outro
homem pensar sobre ecologia. Amando a vida, a natureza, o mundo, o homem
semeia a Anarquia.

Viver é um valor que excede qualquer partido ou programa político. A


Anarquia é um estado ou situação existencial onde a vida não é subordinada ao
"poder político", ao poder governamental de Estado, ao poder burocrático ou
partidário. Anarquia quer dizer que a vida foi emancipada de todo programa
político, de todo controle artificial e arbitrário. Anarquia é também um estado
ou condição cultural, tipicamente humana, de respeito pela vida, pois se
compreende que a vida não é uma criação cultural. A Cultura deve estar à
serviço da Vida, não o oposto. Artes e Ciências que destroem a vida ou que
fazem da vida um meio de dominação são formas degeneradas de Cultura. A
cultura deve existir para o bem da vida, para melhorar a vida humana e não
para envenená-la.
Já existe uma cultura libertária fixada no Ocidente, e podemos nos inspirar
nessa cultura para construir nosso ideal de Anarquia. Segundo afirmação de
Michel Ragon, quando da publicação de O Homem Revoltado, de Camus, no
início da década de 50 (séc. XX), o livro foi saudado fraternalmente pelos
anarquistas. Isso é um sinal a meu ver extremamente saudável e positivo. O
livro de Camus é uma denúncia contra todas as formas de totalitarismo ou
revolta que terminam por negar o indivíduo livre ou a consciência individual. A
revolta política, por mais justificada que seja, não pode jamais atentar contra
a vida do indivíduo, e é contra as "revoluções assassinas" que espalham o Terror
ou o Gulag que Camus lançou o seu apelo de liberdade. O direito à vida não
pode ser um direito abstrato, mas um direito de cada indivíduo, de cada pessoa
em sua singularidade. Por isso que o nosso segundo princípio ético, derivado do
primeiro, é o individualismo, a valorização do indivíduo enquanto indivíduo, do
indivíduo em si mesmo, isto é, Único.

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II - Individualismo.

Cada indivíduo é único e essa realidade ontológica não pode ser adulterada
ou falseada por noções igualitárias. Se o direito à vida é um direito de todos
isso não quer dizer que todos possuem a mesma vida ou que a vida de um
indivíduo é igual a de todos os outros. Individualismo significa reconhecer a
unicidade e singularidade de cada indivíduo e portanto aceitar a sua diferença
em relação aos demais. Assim como gozar a vida, aceitar as diferenças é um
modo de aceitação da vida como ela é. Os indivíduos não são obrigados por
natureza a ter o mesmo comportamento, o mesmo gosto, a mesma opinião.
A consciência individual é o fundamento da Anarquia. O respeito à
consciência humana, que se manifesta diferentemente em cada indivíduo, é o
centro da Anarquia. Tolerância, ausência de doutrinação, de dogmatismo
religioso ou sectarismo político é o corolário do respeito ao indivíduo. A
liberdade de expressão também se baseia no individualismo, isto é, no direito
de cada indivíduo ser diferente e poder discordar de uma opinião. "Posso não
concordar com uma vírgula do que você está dizendo, mas defendo até a morte
o seu direito de dizê-lo" (Voltaire). Individualismo significa liberdade de
pensamento, de costumes, de sexualidade, diversidade nos modos de vestir,
falar, comer. Quem não respeita o indivíduo não respeita a Natureza.

A transformação ou a ordem social começa a partir do indivíduo. O


Confucionismo reconhece que o fundamento da paz exterior, social, é a ordem
interior, dentro de cada alma individual: "Os antigos mestres, quando queriam
propagar altas virtudes, punham os seus estados em ordem. Mas, antes disso,
punham em ordem as suas famílias. Antes ainda, punham em ordem a si
próprios. E antes de colocarem em ordem a si próprios, aperfeiçoavam as suas
almas. Procurando ser sinceros consigo mesmos, ampliavam ao máximo os seus
conhecimentos - a ampliação dos conhecimentos decorre do conhecimento dos
fatos como realmente são e não de como queremos que eles sejam. Com o
aperfeiçoamento da alma e o conhecimento dos fatos, o homem se torna
completo. E quando o homem estiver em ordem, a sua família estará em
ordem. E quando a sua família estiver em ordem, o estado também estará em
ordem. E quando todos os estados estiverem em ordem, seguramente o mundo
inteiro gozará de paz e prosperidade." Portanto, antes de haver sociedades ou
comunidades em ordem é necessário ordem em nossas famílias. Mas antes de
haver ordem em cada família, é preciso que os indivíduos ponham em ordem a
si próprios. Para tanto os indivíduos devem aperfeiçoar suas almas. A
sinceridade, a benevolência e a sabedoria transformam a alma e criam uma
ordem interna de justiça. Quando a alma alcança a virtude, o homem está em

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ordem. Se o homem estiver em ordem, as famílias poderão encontrar a paz. Se
as famílias estão em paz, sem guerras ou disputas, a cidade poderá desfrutar
de paz e harmonia. Com as cidades em ordem, todo o país ou nação terá
prosperidade. E quando cada país ou civilização é próspero, o mundo inteiro
goza de felicidade.
Fica claro nessa passagem, conforme a tradição confuciana, que sem
"ordem" individual, isto é, sem paz interior, virtude interior, nenhuma
coletividade pode alcançar a paz e o bem-estar. Não pode existir justiça social
sem haver justiça pessoal. Por isso que a Anarquia concentra a sua atenção no
indivíduo, na sua alma, na sua consciência, na sua subjetividade singular. A
utopia social supõe uma individualidade aperfeiçoada, uma "alma virtuosa",
benevolente e piedosa. O sentido mesmo da Anarquia é o desenvolvimento
individual, não o seu "resultado social". O resultado socialmente positivo é uma
consequência da felicidade individual. Trabalhe para pôr ordem em si mesmo e
tudo o mais se ajeitará. Antes de pensar em "transformar o mundo" comece
transformando a sua alma.
Os que querem corrigir a sociedade ou reformar o Estado sem corrigir ou
ordenar corretamente a própria alma, cometem um grave erro. Anarquia é uma
utopia individualista porque nenhuma sociedade pode ser boa quando o
indivíduo é infeliz. Nosso ideal começa pelo indivíduo, pela sua natureza
ontológica singular, e termina no indivíduo, na sua felicidade. A meta da
Anarquia é o indivíduo viver bem, é o indivíduo satisfazer todas as suas
necessidades naturais. Anarquia significa o mais profundo respeito pela
natureza humana individual. O alto valor do indivíduo decorre do princípio do
direito à vida. Pois é o indivíduo o primeiro detentor desse direito. O indivíduo
é estimado na proporção desse direito, que implica no respeito à vida
individual.

Uma ética individual, determinada pelo próprio indivíduo, é o cerne do


individualismo. O que é moral ou imoral, ético ou anti-ético, se torna uma
questão de consciência pessoal, de livre arbítrio. O anarquismo é um sistema
ético que deve ser baseado na consciência do próprio homem. Todavia, falar de
individualismo moral não é louvar o egoísmo ou concordar com todo tipo de
moralidade, muito menos apoiar a imoralidade. O individualismo contesta
qualquer autoridade moral coletiva. A moralidade não pode ser imposta, não
pode ser o resultado de uma coerção social. O individualismo não pode deixar
de ser polêmico, em perpétua tensão e contradição com o coletivismo ou o
igualitarismo. O individualismo moral significa que o homem pode escolher a
sua moral, reconhecendo a sua liberdade individual. Na Anarquia o indivíduo é
o centro da liberdade, jamais o indivíduo pode ser oprimido pelo coletivismo,

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pelo senso comum, pela moralidade convencional. O indivíduo, do ponto de
vista ético, permanece livre de qualquer coletividade, ele não é dominado pelo
grupo, pela sociedade, pela tradição. O individualismo é pluralismo moral,
variedade de condutas éticas, diversidade de regras de vida. O contrário disso,
o coletivismo, é a imposição de uma moral dominante, única, autoritária, que
todos devem obedecer. Anarquia e coletivismo são opostos e desiguais.
Defendemos o indivíduo contra qualquer forma de opressão coletiva, o
indivíduo não pode ser oprimido pela sociedade, família ou espécie. A
humanidade existe nos indivíduos, é o indivíduo quem realmente vive e sofre.
Todo valor deve ser dado ao indivíduo. Tratar mal um indivíduo é tratar mal a
natureza humana, e por extensão a própria humanidade.
O individualismo não é isolacionismo, não significa misantropia ou viver de
modo anti-social. O individualismo aceita as relações humanas como parte da
vida, mas rejeita todo tipo de autoritarismo ou coerção moral. O ser humano
não pode viver plenamente como um indivíduo isolado, o seu desenvolvimento
depende da sua participação ativa em uma Cultura ou Comunidade. Porém,
essa participação (que a partir de certa idade pode tornar-se consciente e
voluntária) deve estar livre de qualquer coerção que atente contra a dignidade
(o valor) da vida humana. Não há dignidade sem liberdade. Por sua defesa
radical da liberdade pessoal, o anarquismo está muito mais próximo do
liberalismo político do que do comunismo marxista ou de qualquer coletivismo-
igualitarismo de feição autoritária.
Individualismo significa responsabilidade. O indivíduo é responsável por sua
honra. A honra é tributária das quatro virtudes cardeais. Sem virtude, sem
honra. A maior virtude, o centro de todas as demais, é a sabedoria. O indivíduo
tem honra quando ama a sabedoria e conserva a sua honestidade.
Individualismo sem virtude é barbárie. Mas pela virtude o indivíduo ascende à
vida feliz. "A virtude é suficiente para a felicidade" (Antístenes). Todos os
homens devem procurar a virtude se desejam uma vida feliz. "A virtude está
nas ações e não tem necessidade nem de muitas palavras nem de muitos
conhecimentos" (Antístenes). Eloquência e erudição não garantem a felicidade.
Ações moderadas, prudentes, corajosas e justas sim. Essas ações, os "hábitos da
virtude", são independentes das leis ou normas coletivas. "O sábio não deve
viver segundo as leis vigentes da Cidade, mas segundo as leis da virtude" -
Antístenes. A ética do cinismo é individualista, acima de qualquer pressão
social ou coletiva. A obediência cega aos padrões sociais e regras legais não é
uma virtude. Diógenes afirmava que a única constituição reta é a que rege o
universo e, portanto, proclamava-se "cidadão do mundo". Essa é a ética que
convém ao anarquismo, uma ética que, além de basear a felicidade na virtude,
insere o homem na justiça cósmica, nas leis da natureza. O cidadão do mundo

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é aquele que vive em harmonia com a Natureza, em conformidade com o seu
autêntico ser. Seguir ou obedecer a ordem do universo é realizar em si mesmo
o essencial da vida humana. "Torna-te quem és" (Píndaro). Seja você mesmo
conforme a sua verdadeira essência. Isso é o âmago da Anarquia. Anarquia é
um estilo de vida onde o indivíduo se revela como realmente é. Anarquia
combina com sexo, drogas e rock'n'roll.

III - Autonomia.

O princípio do individualismo, antítese do coletivismo, conduz ao princípio


da Autonomia, um conceito amplo que se refere não só ao indivíduo, mas à
Família, comunidade, tribo, Cidade-Estado ou organização Municipal, um
conceito de natureza ético-política portanto, que relaciona o indivíduo livre
com a pólis livre, o sujeito autônomo com as famílias, tribos e etnias
autônomas... O anarquismo é uma filosofia de vida (antes mesmo de ser uma
doutrina política) que enfatiza a liberdade, a solidariedade e o prazer. "Só o
homem livre é feliz" - Demônates. Essa é a minha crença pessoal. A autonomia
individual deve se ampliar para a autonomia do casal, da família, da tribo, da
comuna, da etnia, da nação e mesmo da civilização. Só na extensão da
liberdade pode o ser humano viver com felicidade. Mas o que é o homem livre,
autônomo? Eu sou autônomo quando estabeleço ou determino uma ordem
própria para mim, quando me regro e crio disciplina em minha conduta,
quando reconheço leis para o meu comportamento. Não falo das leis inatas da
Natureza que agem em mim, mas de leis morais da consciência que dependem
da vontade individual. Autonomia é poder colocar ordem em si mesmo, é poder
afirmar "isso não farei, isso não devo fazer", pondo limites ao próprio poder.
Autônomo é o homem capaz de conter a ira, a violência, a preguiça, a
ganância, a hipocrisia, a mentira, a covardia, a avareza, a inveja e tudo o mais
que possa vir a causar desordem ou desequilíbrio na própria alma. A tradição
confuciana já nos falou sobre a importância de pormos nossa alma em ordem.
"E quando o homem estiver em ordem, a sua família estará em ordem. E
quando a sua família estiver em ordem, o estado também estará em ordem".
Uma alma desordenada, destrambelhada, não pode ser chamada de livre. Muito
menos um povo ou país.
Autonomia é construção de normas, de acordos, de regras, de
ordenamentos, de limites, de fronteiras, de valorações ou condutas de valor,
de direitos e deveres, de diálogos, de "convenções" entre indivíduos, entre
grupos, entre famílias, entre comunidades, entre países. Autonomia não é
ausência de comunicação. Autonomia e individualismo não se aplicam ao
náufrago isolado, ao menino-lobo, ao eremita. Referem-se aos indivíduos em

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permanente convívio, em contato constante. Anarquia é uma utopia de
relações humanas, não de solidões. Quando falamos da Anarquia pensamos em
uma situação social e numa vida em liberdade. Mas uma vida em liberdade que
não está contra a sociedade ou fora de uma situação social.
Essa situação não pode ser o triunfo de forças reativas que negam a vida,
não pode ser o rancor, a ira, a inveja, o ressentimento e "espírito de vingança",
não pode ser o triunfo do niilismo e da decadência, das forças que destroem,
oprimem e diminuem a vida. A situação ideal, nomeada de Anarquia, fundada
em princípios claros e distintos, e não num estado de irresponsabilidade e
confusão mental, deve ser a plenitude da Vida e da Liberdade, o florescimento
e a prosperidade de cada indivíduo, da cada família, de cada ecossistema ou
bioma ligado à sociedade, e mesmo de toda a Biosfera.
Nosso ideal é a liberdade de todos, todos os povos, todas as raças, todas as
pessoas. O indivíduo é livre para escolher seus fins, sua profissão ou sua
religião. A meta suprema da vida - Revolução ou Nirvana - é uma escolha
pessoal. Uma comunidade também é livre para escolher seus fins, seu sistema
econômico, suas normas internas, sua ordem política peculiar. A autonomia de
um povo, a auto-determinação dos povos, a autonomia étnica ou comunitária é
tão essencial para a felicidade quanto a liberdade individual. Autonomia do
indivíduo e do grupo ou etnia são complementares, uma não é inferior ou
subordinada à outra. Não podemos chamar de livre uma sociedade onde os
indivíduos são escravos ou oprimidos, nem podemos chamar de livre (ou
autônoma) uma pessoa numa sociedade subjugada, colonizada e explorada. É
verdade que em certo grau e potência todas as pessoas ou coletividades
possuem alguma autonomia, mas a utopia sonhada, a Anarquia, não é o
contentamento com migalhas, não é o grau mínimo de liberdade, mas
justamente o oposto, a abundância de vitalidade em completa liberdade,
magnanimidade com simplicidade, justiça e beleza majestosa, esplendor dos
sentidos, profunda saúde e alegria, ampla harmonia entre os indivíduos, entre
as famílias, entre as tribos, entre as cidades, entre os países. Essa divina
harmonia só pode existir no amor e na liberdade, jamais pela supressão do
amor e da liberdade. Todos nós somos responsáveis pelo bem estar da
humanidade. O bem estar humano só pode existir no respeito à vida,
preservando-se a autonomia individual, familiar, comunitária e até da
civilização, que deve saber dirigir a si mesma com a ajuda de Deus, sem sofrer
agressões externas a sua soberania. A minha autonomia deve ser respeitada
assim como eu devo respeitar a autonomia dos outros.
Anarquia é um estado poético de ser. Anarquia rima com poesia, amor e
liberdade.

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IV - Apoio Mútuo.

Uma vez que o conceito de Autonomia não é de ordem exclusivamente


individual, mas também social, devemos introduzir agora o princípio
fundamental da ordem social sob o ponto de vista ético: o Apoio Mútuo. Esse
princípio não é outra coisa que o respeito e a amizade entre indivíduos de uma
mesma comunidade, família ou nação. A Anarquia não pode subsistir sem
amizade e colaboração espontânea entre as pessoas. A vida em sociedade
depende de uma união entre as pessoas para a realização de tarefas e projetos
comuns. Essas tarefas e metas devem ser relacionadas com as necessidades
humanas. Portanto, o esforço coletivo de colaboração é de natureza funcional
e "orgânica". A sociedade funciona quando os seus membros executam as
tarefas e movimentos necessários para a conservação e prosperidade do todo
social. Enfim, o apoio mútuo é um princípio de natureza ético-política pois
procura agir para o bem comum. O indivíduo coloca a sua atenção no social, no
comum, no partilhado, no que é público, e procura contribuir de modo útil com
o desenvolvimento de sua cidade ou comuna.
Quando os indivíduos de uma sociedade apoiam uns aos outros temos a paz
e a união comunal. Essa paz só pode ser alcançada por meio da liberdade, não
da coerção ou violência. O apoio mútuo que não for espontâneo, mas que viola
a autonomia do sujeito, e cria uma forma autoritária de convívio, se torna uma
mecanismo burocrático compulsório de "assistência social". Isso inclui todos os
impostos e serviços sociais obrigatórios. Nessa circunstância, o indivíduo não é
mais livre, e se vê forçado a colaborar sob o risco de sofrer penalidades. Tais
formas autoritárias de "cuidado com a coisa pública" é um paradigma que a
Anarquia pretende transcender, substituindo-o por formas libertárias de
prestação de serviços. Portanto, a abolição dos impostos e de todas as
modalidades coercivas de auxílio social é um imperativo lógico da Anarquia.
No fundo, o apoio mútuo tem por base e única motivação o amor e amizade
entre pessoas que partilham um destino e uma cultura. Não creio que possamos
estabelecer esse princípio em sociedades muito heterogêneas e marcadas por
conflitos sociais históricos. Por isso que a Anarquia é um ideal de vida
experimental, a ser construído à margem do que se chama de "civilização
ocidental". Talvez as ilhas do Pacífico ou regiões selvagens na África possam no
futuro abrigar comunas anarquistas. A imigração, porém, não é garantia de
sucesso. Aqui estamos, no barro fértil da América do Sul, rodeados por cópias
de modelos ocidentais de sociabilidade que contém todas as dificuldades e
impedimentos à vida em liberdade. Por certo, este não é um contexto
favorável ao anarquismo: Estados corruptos com um histórico de ditaduras

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militares, escravismo e exploração econômica.
Entretanto, caso fosse possível construir uma comuna anarquista na
América do Sul, quais deveriam ser os parâmetros a serem observados por cada
indivíduo? Ora, primeiramente os indivíduos deveriam ter em mente que ajudar
o próximo começa pelo respeito à vida de cada um, respeito ainda pela
singularidade e autonomia do outro. Uma vez que o outro é respeitado como
um sujeito livre, deve-se estar disposto a ajudá-lo na medida do possível. Que
tipo de ajuda podemos oferecer? O que for mais simples e necessário: abrigo,
comida, roupas. Além disso, podemos considerar 8 princípios que podem servir
como parâmetro ao Apoio Mútuo: 1) ensinar os simples; 2) sofrer injúrias com
paciência; 3) perdoar aos que nos injuriaram; 4) rezar pelos vivos e pelos
mortos; 5) curar os enfermos; 6) cobrir os nus; 7) dar de comer e de beber a
quem precisar; 8) dar abrigo aos peregrinos e desalojados. Estes princípios se
baseiam nas tradicionais "obras de Misericórdia", segundo regulamento da
Irmandade de Misericórdia, responsável pela fundação, em Lisboa, da "Santa
Casa de Misericórdia", em 1498, e que foi a origem das inúmeras congêneres
espalhadas pelo mundo lusófono. De fato, não acredito que a Anarquia na
América do Sul poderá nascer pela destruição ou simples esquecimento do
passado, e se a continuidade histórica é mesmo inevitável, então que a nossa
herança seja a semente de caridade e misericórdia de nossos antepassados.
O segredo da felicidade está em nós, em nossa alma, no amor e na
benevolência de cada um por todos. Sem amor, sem justiça, sem lei e ordem,
não é possível uma vida feliz em sociedade. Todavia, a justiça que procuramos
é uma justiça cósmica, uma justiça divina, a lei e ordem que devemos observar
é a lei e ordem do ser, a lei inata do espírito humano. A ordem social deve se
basear na adaptação à ordem universal. (Diógenes não dizia ser cidadão do
mundo por capricho, mas porque acreditava que ser justo era seguir a ordem
cósmica, e portanto ser "cosmopolita"). A lei civil deve estar de acordo com a
lei da Natureza.
A lei civil não é necessariamente um "código" escrito. Essa lei pode ser o
próprio princípio do apoio mútuo operando na "consciência coletiva". É a
amizade efetiva no âmbito comunitário e familiar. Um bom amigo constitui um
bem do mais alto valor... Anarquia significa um tipo de moral onde a amizade
tem um grande valor. Anarquia seria a lei da amizade. Uma lei natural,
espontânea, assim como o apoio mútuo é natural. Não há cisão ou oposição
entre natureza e cultura, entre natureza e costumes. A finalidade natural do
apoio mútuo é garantir a própria sobrevivência do grupo. Não é se esforçar por
coisas fúteis, não é cumplicidade em torno de trivialidades, mas trabalhar pelo
bem comum, para garantir a sobrevivência da coletividade. Existem 10
necessidades físicas do Homem: respiração, hidratação, alimentação, excreção,

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exercícios físicos, banhos de sol, sono, higiene, fabricação de utensílios básicos
(roupas, calçados, mochilas, móveis, remédios, coisas-de-cozinha, coisas-de-
dormir, coisas-de-higiene) e construção de moradias. O apoio mútuo deve
satisfazer essas necessidades. Instinto de sobrevivência e apoio mútuo são
equivalentes. O conflito social generalizado é antes uma degeneração dos
instintos do que o efeito de instintos animais primitivos. A sanidade de um povo
também depende da qualidade dos seus instintos. O homem é um ser sagrado.
E instintivamente evita macular sua raça, sua tribo, sua família. Confúcio
ensinava: "não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a ti". Esse
preceito é o instinto natural de auto-conservação se manifestando através da
razão. É o impulso de sobrevivência emergindo à luz da consciência. É a regra
de ouro da Anarquia.

V - Auto-defesa.

O último princípio ético fundamental da Anarquia também é de natureza


ético-política, isto é, individual e social. Ninguém é obrigado a levar tapa na
cara. Assim como nenhuma comunidade deve aceitar passivamente tiro,
porrada e bomba. A desobediência civil, a revolta popular, a luta armada, o
uso moderado da força, a aplicação dos golpes e movimentos das artes
marciais, a própria arte militar no sentido antigo da expressão, tudo isso só se
justifica para preservar o direito natural à vida e a liberdade pessoal ou civil.
Não podemos chamar de "violência" o que é na verdade auto-defesa. E a
auto-defesa não é um capricho, mas um direito natural. Todo indivíduo tem o
direito de defender os seus direitos, a começar pelos sagrados direitos à vida e
à liberdade. "Antes uma hora de liberdade do que quarenta anos de serventia e
cárcere" - Rigas Feraios. Toda nação, todo princípio de cultura e civilidade,
tem o direito à autonomia, o direito de conservar sua independência ou de
lutar por sua independência. O escravo que se rebela e mata o seu opressor não
é um criminoso. O povo que combate os seus inimigos não viola os "direitos
humanos" ao derramar o sangue dos seus inimigos. O crime, a hybris, a
violência contra o direito natural está nas mãos de quem invade, de quem
oprime, de quem escraviza, de quem cobiça as coisas alheias, de quem usa a
força para invadir terra estrangeira e dominar seus habitantes. Estes são os
criminosos, estes são os culpados, não os que se defendem para preservar a
própria liberdade, a própria vida, a própria cultura.
A injustiça (ou ignorância do direito) é um estado patológico da alma, e a
justiça a sua saúde. Ser injusto não é natural, tanto quanto não é natural ser
doente. O homem justo reconhece o direito do outro, respeita sua vida e sua
liberdade. O injusto, o doente, trata o outro como objeto, como instrumento,

14
como meio para realizar seus próprios interesses, e assim violenta sua
liberdade. Se faz isso por ignorância ou cegueira moral não importa, o que
convém é impedir seus atos, neutralizá-lo, ou fugir do seu campo de ação.
Todavia, não são apenas homens injustos que existem no mundo. Há sociedades
injustas, sociedades autoritárias, totalitárias ou ditatoriais que violam os
direitos humanos. Não se trata de uma violência pontual, mas sistemática, que
conduz à desumanização geral através da supressão de toda liberdade (é o
delírio de controle social tal como se vê no romance 1984). A injustiça social,
ou seja, uma condição social de injustiça não pode ser aceita como se fosse
uma coisa normal, uma coisa natural, uma coisa inevitável a qual devêssemos
nos resignar.
A auto-defesa pode significar tanto a oposição a um indivíduo quanto a uma
sociedade, e essa sociedade tanto pode ser uma outra como aquela onde
vivemos. Defender nossa vida e nossa liberdade é um princípio ético que
deveria nos conduzir para uma nova forma de sociabilidade, emancipada de
todas as servidões e brutalidades. Anarquia significa uma sociedade liberada da
hierarquização social baseada na dominação de classe, e também liberada da
dominação sexista. Não é uma sociedade onde as mulheres são servas dos
homens ou os operários servos dos empresários. Mas o problema das classes
sociais é um tema político que demanda outros princípios.

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PRINCÍPIOS POLÍTICOS

I - Apartidarismo.

O primeiro princípio político da Anarquia é um conceito negativo: a


sociedade sem partidos. Mas essa "ausência de partidos" ou mobilização contra
as organizações partidárias, não quer dizer ausência de qualquer associação
civil. A crítica radical aos "partidos" não é uma negação da livre associação.
Todavia, significa pensar a associação e conduzir tal associação de um modo
inovador que não imite as características de um "partido" (uma parcela da
sociedade civil que luta para conquistar poder no Estado). Em primeiro lugar,
uma livre associação não é representativa, ela não representa uma parte da
sociedade civil, ela é essa parte e nada mais (um partido, pelo contrário, não é
apenas uma parcela, senão uma parcela que se encarrega de representar uma
outra parcela ou segmento social, às vezes a nação inteira ou um ideal político
determinado). Uma associação de escritores não deveria ter a pretensão de
representar os escritores, mas simplesmente associar um número determinado
de escritores para fazer coisas de seu interesse. Isso é muito diferente de um
partido que pretende representar os outros e ainda conquistar votos em
eleições. Uma livre associação não é uma entidade para ser votada ou para
"lançar candidatos", mas para ter sócios que agem diretamente e de comum
acordo pelos seus objetivos.
As entidades denominadas "partidos" são burocracias fortemente
estruturadas que afirmam "representar" as pessoas ou classes sociais ou o
interesse nacional. O caráter burocrático dessas organizações costuma alienar
dos processos políticos os próprios "representados". Quem quer que tencione
falar em nome das pessoas não é as pessoas. Quem fala em nome de uma nação
não é a própria nação. Um "partido político" é um Estado em miniatura que
geralmente se aloja como um parasita no Estado oficial, e nos regimes
totalitários, como a União Soviética ou a Alemanha nazista, o partido constitui
o próprio Estado... o que define o totalitarismo. Como diz Murray Bookchin:
"todo partido tem suas raízes no Estado e não na cidadania. O partido
tradicional está pendurado no Estado como uma veste num manequim." Isso é o
sentido do partido, uma entidade que se enraíza no Estado, que se alimenta do
Estado, que vive para o Estado e pelo Estado, enfim, uma máquina que
sobrevive de ocupar cargos públicos, secretarias e ministérios, postos
administrativos ou de governo. O partido "normal" não tem outra função além
de conquistar poderes estatais; sua maior ambição, aliás, é se locupletar no
poder e a partir daí trabalhar para a manutenção de si mesmo, isto é, no final

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o partido representa apenas a si mesmo, aos seus interesses de domínio do
Estado. Em um país como o Brasil, depois da derrubada do Império, nunca mais
houve renovação da política, temos sempre os mesmos partidos, os mesmos
modelos, as mesmas ambições; de Getúlio a Lula a política brasileira vive
pendurada numa República Velha. Todos querem a mesma coisa: o poder, a
"presidência", os altos salários. Eu rejeito todos os partidos. A pior coisa de um
partido é que ele acaba trabalhando para os seus próprios interesses, e se
transforma numa máquina dependente do Estado. Uma máquina
invariavelmente corrupta cuja energia e poder dependerá cada vez mais dos
recursos do Estado.
Anarquia é uma política fora do Estado e dos partidos. A finalidade da livre
associação, diferente dos partidos, não é o poder, não é "ocupar espaços", não
é governar. Para o anarquismo, a política não é a arte de gerir ou administrar o
Estado, e os cidadãos não são meros eleitores ou contribuintes. A política,
concebida como uma atividade prática (ou arte) e uma ciência, implica num
discurso racional, o engajamento público, o exercício da razão prática (a
virtude) e sua realização numa atividade ao mesmo tempo partilhada (com
outros) e participativa (dentro da sociedade). A política, nessa perspectiva, é
uma ciência do bem comum. Não pode haver política sem comunidade.
Portanto, as livres associações, que, repito, não são organizações partidárias,
agem na comunidade, diretamente, sem vínculos de dependência com o
Estado. O apartidarismo, ao negar os meios pelos quais se quer conquistar o
poder estatal, termina por negar ou no mínimo se diferenciar radicalmente do
Estado. As associações livres se assemelham a "empresas privadas", formas de
livre iniciativa cujo objetivo é o bem comum. Se elas não lutam para derrubar
o Estado, tampouco lutam para controlar o mesmo. Os partidos, com suas
ambições mesquinhas, apenas servem para corromper o Estado. Apartidarismo
não significa manter uma posição isolada. Grupos e associações diversas podem
se unir ou se articular com o fim de promover melhorias na comunidade. Trata-
se de uma política humilde, feita entre amigos e parentes, sem a ambição de
dominar o mundo.

O anarquismo define-se essencialmente pela objeção ao Estado. Mas tal


objeção não seria mais libertária se pretendesse destruir o Estado pelo terror,
oprimindo ou massacrando todos aqueles que discordam do anarquismo e
defendem a manutenção do Estado e do Grande Capital, ao contrário, ela seria
uma objeção intolerante e autoritária. O princípio ético de Autonomia e a
defesa do individualismo devem incluir necessariamente a liberdade de cada
um para seguir ou discordar de quaisquer princípios, e portanto em princípio o
anarquista deve aceitar a objeção ao Anarquismo. Ademais, eu não levo em

17
conta se o apartidarismo funciona no atual contexto histórico. Anarquia é um
modo experimental de convívio social ligado a novas formas de
comportamento. No sentido utópico, o apartidarismo significa uma sociedade
que não está mais dividida em conflitos sociais, uma sociedade onde não há
mais partidos duelando pelo poder, uma sociedade sem opressão e
autoritarismo estatal.
As sociedades têm os seus defeitos, e o anarquismo não é a única filosofia
política a propor uma revolução ou mutação social. Todavia, talvez seja a única
doutrina política moderna que faz da liberdade individual um princípio (o
liberalismo concede ao indivíduo uma liberdade ilusória, pois ele é apenas um
entre outros "igual perante a lei", isto é, um joão-ninguém submisso a normas
coletivas, leis exteriores que o dominam). O anarquismo (do ponto de vista
teórico) nem sequer chega a ser uma doutrina unitária, mas antes uma reflexão
política pessoal centrada no problema filosófico da liberdade. Igualmente, do
ponto de vista da práxis, a sua ação está longe de ser coesa e uniforme, pois ao
longo de sua história as conclusões práticas que se tiravam da reflexão teórica
eram variadas, e assim houve no movimento tanto terroristas quanto pacifistas.
Do meu ponto de vista o terrorismo (Ravachol p. ex.) é uma violência
inaceitável, uma sabotagem do direito natural. A utopia social é Paz. O
apartidarismo também deve ser paz.
No cenário medíocre da política brasileira, o apartidarismo, além de
escolha pessoal, poderia reunir todos os errantes sem partido em grupos de
estudo e diálogo, com um propósito eminentemente estético. Temos que
contemplar nosso habitat e descobrir a beleza oculta da existência. Afinal, o
sonho da Anarquia está para o Estado brasileiro assim como a pintura de
Gustave Moreau está para uma pilha de pneus velhos. Devemos formar
pequenos grupelhos com um propósito teórico definido: conhecer nossas
cidades. Enfim, é demasiado pouco conhecido o bairro, as zonas urbanas, a
periferia, o campo ou zona rural dos municípios, a própria cidade em sua
beleza adormecida, e tudo o que é da ordem do local, do próximo e do
cotidiano devem ser melhor conhecidos... pensar e agir localmente é a
primeira tarefa política. O nosso programa político (dos outsiders e
vagabundos, hippies e anarquistas que percorrem as ruas) é essencialmente
transitório, pois consiste de jogos poéticos. O conceito de jogo desenvolvido na
internacional situacionista deveria ser retomado. "A distinção central a superar
é a que se estabelece entre jogo e vida corriqueira, considerando-se o jogo
como uma exceção isolada e provisória... Nessa perspectiva histórica, o jogo -
experimentação permanente de novidades lúdicas - nunca aparece fora da
ética, da questão do sentido da vida." A política, não como o velho jogo pelo
poder, mas como jogo experimental de novas possibilidades de vida, não está

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separada da ética... e o jogo situacionista não aparece distinto de uma escolha
moral, que é a opção por tudo o que garante o futuro reino da liberdade...
pode-se dizer, o futuro reino da Anarquia, a vida em liberdade...

II- Ação Direta.

O indivíduo, a livre associação, os grupos naturais, uma vez que estão fora
dos partidos, não elegem nem são representantes, agem diretamente na
sociedade. Ação Direta significa a intervenção ou performance (individual ou
grupal) no contexto social. Essa ação pode se dar das mais variadas maneiras,
desde teatro de rua até greves, distribuição de alimentos, varrer as ruas e
limpar as praças ou apenas o encontro público para meditação ou debate das
questões coletivas, nacionais ou regionais. A ação direta pode ser construtiva,
no sentido de elaborar novas paisagens urbanas, ou seja, novas formas de
urbanismo, arquitetura, decoração e paisagismo. A ação direta no campo
econômico é a livre empresa, o livre comércio, as cooperativas de trabalho, a
autogestão das fábricas. O importante na ação direta, o que considero a sua
natureza essencial, é que não há um intermediário entre o sujeito que
demanda uma coisa e a própria execução ou obtenção dessa coisa. Isso significa
não delegar o poder para partidos ou governos. Isso significa assumir a
responsabilidade pelo bem comum, ao invés de transferi-la levianamente para
o Estado.
O problema da violência também é uma questão de ação direta. O
anarquista pode fazer do terrorismo o sentido da vida? Sim. Mas o risco é seu. A
responsabilidade não pode ser atribuída a ninguém mais, pois o anarquismo não
reconhece uma direção central, um partido, uma maioria, uma minoria, uma
fidelidade a qualquer autoridade externa, uma doutrina fixa, uma hierarquia,
uma vanguarda, ou qualquer forma de autoridade política externa. Os atos de
um anarquista são necessariamente "ações diretas" porque eles não
representam o resultado de uma votação, não representam um consenso, um
Congresso ou mesmo uma classe social. Eles expressam apenas a consciência do
indivíduo, que é livre para escolher ahimsa ou terrorismo. O pacifismo, a
desobediência civil ou a luta armada são decisões absolutamente individuais.
Todavia, a utopia, o modelo de vida que chamei de Anarquia, não tem por base
a violência e creio que nunca será alcançado pela violência. Ação direta,
portanto, não é sinônimo de violência.
A ação direta não é representativa. Ela não representa uma classe, um
sexo, um povo, um partido ou uma ideologia de grupo. Ela não representa o
Estado ou a sociedade civil. Ela não representa os "movimentos sociais" e nem
mesmo o anarquismo. Uma ação direta é de responsabilidade individual. Se um

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grupo age de forma planejada, a responsabilidade da ação recai sobre cada
indivíduo em particular que planejou a ação. Se a ação direta não é um
princípio de "representação", também podemos observar que o próprio
anarquismo não representa univocamente o mesmo "sujeito". Ele não é um
movimento em defesa dos "oprimidos", que fala em nome dos outros, dos
"incapazes de se defender". O anarquismo não é um representante do "povo" ou
das "mulheres" ou das "crianças". O anarquismo nos anos 60 não foi um
movimento de classe, proletário, mas um movimento juvenil. Não representava
uma classe social, mas uma geração (não no sentido partidário/comunista de
representação). Basta ver os hippies na Califórnia, os Provos em Amsterdam, os
jovens rebeldes do Maio francês. Nessa época, o anarquismo era uma expressão
criativa de insatisfação e revolta, não em nome da juventude, mas a própria
voz da juventude.
A ação direta, porém, deve ser purificada de certas crenças ou posições
teóricas. Existem muitas coisas obsoletas no anarquismo, por exemplo, o
ateísmo, que não pode ser um princípio, nem a negação dogmática da
propriedade privada. A condenação da propriedade é um grande erro teórico,
que entra em conflito com o princípio de Autonomia. Neste aspecto específico,
estou de acordo com Murray Rothbard, ao invés de Proudhon. Fazer reforma
agrária não é abolir, mas distribuir a propriedade particular, o que por si só não
impede a criação de fazendas públicas, fábricas públicas ou demais formas de
propriedade coletiva. Outra coisa da qual todo anarquista se deveria precaver é
o "ódio pelo Estado", o "ódio contra o capitalismo", sobretudo o ódio pela
polícia, o exército e a burguesia. Tal sentimento irracional não resolve nada. O
conselho de Malatesta continua atual: "não é com ódio que se transforma o
mundo".
Anarquia pode ser um caminho de paz baseado no princípio ou pressuposto
de que a vontade humana é livre. O ponto central do anarquismo é a liberdade,
não a liberdade no mal, no horror, na miséria, mas a liberdade na saúde, na
paz e no amor. A vontade é o fundamento da ação direta. É a vontade o poder
de escolha, o poder de decisão que, unido à vitalidade do ser, conduz uma
ação direta. "Devemos elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores
complexos dos dois grandes componentes que interagem continuamente: o
cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o
alteram" - Guy Debord. O meio urbano e o meio natural formam a paisagem de
nossa existência, polis e physis são "o cenário", o cenário material da vida é o
próprio mundo... A ação direta sobre os fatores do ambiente pode se basear na
teoria situacionista da "situação". A construção de situações começa após o
desmoronamento moderno da noção de espetáculo... Espetáculo quer dizer
alienação e deve-se lutar contra a alienação, toda a ação direta deve ter por

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objetivo principal romper toda forma de alienação; a ação direta deve opor-se
ao princípio característico do espetáculo: a não-participação. A situação é feita
de modo a ser vivida por seus construtores.
A democracia liberal representativa, com seus partidos políticos e
instituições governamentais, não são um modelo de Anarquia. Ação direta em
defesa da democracia atual, o modelo exportado a partir dos Estados Unidos da
América, não faz o menor sentido para a maioria dos anarquistas. Porém, há
quem veja a ação direta como forma tática de democracia, no sentido literal
de poder popular, poder civil ou "ação global dos povos" pela sua autonomia
(política ou econômica). A democracia é um intermediário entre a liberdade e
a escravidão. Ela costuma ser endeusada pela mídia, mas deveria ser antes
criticada pelo quantum de alienação que produz.
No contexto brasileiro, um modo particularmente lúdico de ação direta que
poderia ser aplicado imediatamente é a deriva. Deriva é movimento fundado
na vontade pessoal, o objetivo dessa atividade é o estudo do terreno. O campo
especial é antes de tudo constituído por seu domicílio. Mas da casa, do bairro,
da polis, a observação deveria se expandir para o continente, a América do Sul.
Deriva é uma aventura, deambulação beat baudelaireana. O caráter
principalmente urbano da deriva, em contato com centros de possibilidades e
de significações que são as grandes cidades, o ato de flanar na polis, produz
uma sensação que podemos sintetizar na frase de Marx: "Os homens não vêem
nada em torno de si que não seja o próprio rosto, tudo lhes fala deles mesmos".
A vida urbana é um espelho, um símbolo da alma, a possibilidade ontológica da
psicogeografia (outro conceito situacionista de máxima importância). Chombart
de Lauwe em seu ensaio sobre Paris observa que: "Um bairro urbano não é
determinado apenas pelos fatores geográficos e econômicos mas pela
representação que seus moradores e os de outros bairros têm dele". Vemos aí o
aspecto subjetivo do bairro, ou da cidade, então por que a ação direta não se
poderia exercer sobre o imaginário? O que muda nossa maneira de ver as ruas?
Anotemos a primeira lição da deriva: A mudança do ambiente faz surgir novos
estados de sentimentos... São esse estados subjetivos que a psicogeografia
deve reconhecer e analisar. Definição de Psicogeografia: Estudo dos efeitos do
meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente
sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. Há precedentes históricos para
as nossas investigações prático-teóricas (lembrar que a contemplação da cidade
não está idealmente separada da intervenção ou interação urbana). A vida real
de Thomas de Quincey (como exemplo entre milhões) no período entre 1804 e
1812 faz dele um precursor da deriva. Londres foi a primeira concretização
urbana da revolução industrial, e a literatura inglesa do século XIX mostra a
tomada de consciência dos problemas "no imenso labirinto das ruas de Londres"

21
(Quincey). Ora, que se passa no psiquismo humano dentro destes labirintos
modernos? O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao
reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um
comportamento lúdico construtivo... O jogo poético pode aparecer em cena a
qualquer momento. Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão
rejeitando os motivos de se deslocar e agir que costumam ter, para entregar-se
às solicitações do terreno e das pessoas que nele venham a encontrar. Que
solicitações? Dinheiro, informação, ceda, cigarro, sexo etc. Deriva é disposição
ao vento do eventual.

III- Autogestão.

Se a ação direta é um método, a autogestão é um fim. Anarquia não é


desordem, não é baderna, é autogestão ou "ordem espontânea", sem
autoritarismo. Ausência de Governo central, ou descentralização política, é um
efeito lógico da autogestão; mas a autogestão é um fim necessário para se
chegar num outro fim mais elevado ainda: a felicidade coletiva; o fim de toda
sociedade é o bem comum (essa é a premissa do Municipalismo Libertário). Mas
o que é a sociedade? A pesquisa sociológica tem de ser uma crítica da
sociologia... As concepções municipalistas libertárias se inscrevem numa
perspectiva transformadora e formadora, não apenas mudar as cidades
existentes como construir novas cidades. A Anarquia é a invenção de uma nova
sociedade.
A autogestão política quer dizer a gestão dos negócios públicos pela
população em nível comunitário. A comunidade administra a coisa pública em
assembléias cidadãs livres, no cara a cara, e elege conselhos executivos para
desenvolver as decisões políticas tomadas nas assembléias. Um conselho
executivo se dissolve assim que a sua obra é concluída, não se trata de um
presidente cheio de privilégios durante quatro ou cinco anos. No modelo de
autogestão, as assembléias populares controlam o funcionamento dos
conselhos, que podem ser dissolvidos ou ter seus poderes revogados ou seus
membros substituídos a qualquer momento. O "poder executivo" é constituído
sob um critério essencialmente técnico, conforme as exigências de uma
determinada obra, e não goza de nenhuma independência, ele é apenas um
instrumento sob a direção das assembléias populares.
Nesse modelo de autogestão, existem dois tipos de assembléias: 1-) a
Assembléia Geral ou Municipal, isto é, aquela que representa a comunidade
global, o povo de uma comuna ou cidade na sua totalidade; 2-) a Assembléia
Distrital ou Cúria do bairro, aquela que é formada por todos os cidadãos de
uma localidade urbana, os residentes ou famílias de um mesmo bairro. A

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participação nas assembléias de bairro é livre. Trata-se antes de um direito do
que um dever. As assembléias devem ser compostas por pessoas que levam a
gestão dos negócios públicos a sério. A assembléia do bairro deve ser uma
esfera pública de valores humanos. Ela não "representa" os moradores, ela é
uma forma de democracia direta, pois todos os adultos residentes no bairro
podem participar das suas decisões.
Anarquia significa uma comuna livre, fora da qual a autogestão política não
faz nenhum sentido. "Não pode haver política sem comunidade" (Bookchin). A
comuna é uma república. A comuna é um corpo político independente. Cada
bairro contém uma assembléia popular. Existe ainda a assembléia geral, com
representantes eleitos nos bairros por sufrágio universal (o candidato não se
filia a um partido, ele simplesmente se apresenta diretamente aos seus
concidadãos na cúria do bairro). Mas a vida política não está limitada às
assembléias. A cidadania mantém um enraizamento numa cultura política
fértil, feita de discussões públicas cotidianas, nas praças, nos parques, nas
esquinas das ruas, nos bares, nas escolas etc. O diálogo cotidiano entre as
pessoas não é algo separado do debate público nas assembléias livres. Há uma
continuidade entre vida comunitária e vida política. É dessa forma que a
comuna pode amadurecer o seu senso de coesão e a sua finalidade (a vida boa,
o bem comum, a paz). A vida comunitária está enraizada em festas cívicas,
comemorações, um calendário comum, um conjunto partilhado de emoções,
em ritos religiosos, eventos artísticos, valores culturais que dão a cada
localidade uma cor específica. Pensamos na vida comunitária que favorece
mais a singularidade do indivíduo que sua subordinação à dimensão coletiva. "A
comuna é a célula viva que forma a unidade de base da vida política e da qual
tudo provém: a cidadania, a interdependência, a confederação e a liberdade. O
único meio de reconstruir a política é começar por suas formas mais
elementares: as aldeias, as vilas, os bairros, as cidades onde as pessoas vivem
no nível mais íntimo da interdependência para além da vida privada" (Murray
Bookchin).
Uma "cidadania" separada da comunidade é irreal. A comuna deve ser a
base de uma autêntica individualidade. A comuna é o lugar de comunicação
intersubjetiva, "no seio do qual as pessoas podem intelectual e
emocionalmente confrontar-se umas com as outras, conhecer-se
reciprocamente através do diálogo, da linguagem do corpo, da intimidade
pessoal " (Murray Bookchin) e das reuniões públicas. É na comuna que ocorrem
os processos fundamentais de socialização libertária. A comuna ideal possui a
sua própria paidéia (que como tal pode ou não estar fundamentada na cultura
da antiguidade). A formação do homem é um dos mais importantes processos
da comuna. "A verdadeira cidadania e a verdadeira política implicam a

23
formação permanente da personalidade, a educação e um sentido crescente da
responsabilidade e do engajamento público no seio da comunidade" - Murray
Bookchin. Prestar serviços à comunidade é de certa forma um dever. Que
serviços e como devem ser feitos é um assunto em discussão. Mas a decisão
cabe a cada comuna em particular. A velha máxima comunista de cada um
segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades pode ser
institucionalizada como uma dimensão da esfera pública.

A autogestão econômica implica em processos de "municipalização da


propriedade". Mas a existência de um sistema público de produção econômica
não significa proibir ou destruir toda propriedade privada. "O municipalismo
libertário propõe que a terra e as empresas sejam postas de modo crescente à
disposição da comunidade, ou mais precisamente, à disposição dos cidadãos em
suas livres assembléias" (Bookchin). Essa idéia é correta desde que orientada
para o bem comum. As assembléias de bairro não podem simplesmente
confiscar bens sem que um processo deliberativo decida a questão. Um sistema
público de economia solidária deveria se ocupar inicialmente apenas com
questões de alimentação e saneamento básico. "Como planificar o trabalho?
Que tecnologias empregar? Que bens distribuir? São todas questões que não
podem ser resolvidas senão na prática" (Bookchin). Experimentação, tentativa e
erro, até encontrar o melhor custo\ benefício. O ideal da autogestão econômica
é assegurar às pessoas o acesso aos meios de viver, aos meios de produção,
independentemente do trabalho que elas são capazes de realizar. O livre
acesso aos meios de produção também é direito social. Nenhuma comunidade,
porém, deve esperar adquirir cedo uma autarquia econômica ou auto-
suficiencia absoluta (o comércio internacional pode se fazer necessário) e a
interdependência regional entre diversas comunidades deve ser considerada
com naturalidade, uma necessidade natural.
Outra via de autogestão econômica se dá através dos sindicatos e
associações profissionais, ou em corporações de ofícios como na idade média.
Como é possível passar de uma economia embasada na ética da competição a
uma economia guiada por uma ética baseada na realização de si no seio da
atividade produtiva? como reestruturar uma economia de mercado orientada
para o lucro para uma economia mista onde coexistem sistemas públicos e
privados de produção? Somente as assembléias livres podem responder a estas
questões.
Os cuidados com o meio ambiente são necessários. A comuna precisa saber
viver em harmonia com a Natureza, sem provocar destruições ecológicas ou
poluição ambiental. Uma sociedade ecológica que busca estabelecer uma
relação equilibrada com o mundo natural é um ideal que exige transformações

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técnicas e econômicas. Modos de vida alternativos devem incluir também
mudanças estruturais nos edifícios e ruas (no sentido de uma permacultura
urbana), além de desenvolver novas formas de habitação realmente
comunitárias.

A autogestão comunitária em assembléias precisa resolver como tratar o


problema do delito e da criminalidade. O Anarquismo não admite que o Estado
é necessário por princípio; portanto não admite entre os seus princípios a
necessidade de um Governo central, uma legislação, um sistema tributário,
judiciário, penal, e demais aparelhos que constituem o Estado; tais instituições
públicas e estruturas governamentais não são valorizadas como imprescindíveis
ou inerentes à condição humana, mas vistas como contingências históricas.
Posto isso, como as assembléias da comuna podem tratar da organização dos
tribunais? Juízes serão eleitos? É uma possibilidade.
Na Comuna Anarquista reina a impunidade? Tudo é permitido? O que
acontece em caso de agressão ou de ofensa grave aos direitos naturais? "O
direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às
leis, que são o órgão da vontade de todos" (Beccaria). E quando a vontade de
todos derruba todas as leis (exceto as da natureza) e instaura a Anarquia? E
quando não há leis nem legisladores? Se todos os atos considerados violentos
forem agraciados com a noção psiquiátrica de demência e o perdão público, a
Comuna poderá sobreviver? E se um criminoso se infiltrar nela vindo de fora,
como agir? Uma sociedade pode se auto-organizar, a autogestão pode
realmente funcionar, sem leis? Alguns anarquistas podem acreditar que não.
"Sejam, pois, as leis inexoráveis, sejam os executores das leis inflexíveis; seja,
porém, o legislador indulgente e humano" (Beccaria). Por este caminho a
comuna acaba estabelecendo um Estado, isto é, um conjunto de instituições
com poder de autoridade sobre o comportamento individual. Uma solução
democrática para este problema estaria no Municipalismo Libertário.
Entretanto, se a assembléia geral, de comum acordo, vota uma lei definindo o
que é "crime" e nomeia juízes, e determina a formação de uma corporação de
"guardiões da paz", ela simplesmente estabeleceu uma sociedade policiada.
A Anarquia. utopicamente considerada, não é um estado policial. Ninguém
tem o direito de aplicar penas ou decretar castigos. O anarquismo não tem
princípios legais que possam validar um Código Penal. Uma punição, portanto,
qualquer que seja a sua natureza, seria em todo caso uma iniciativa puramente
pessoal e arbitrária. Não há nenhum Tribunal Revolucionário (ao contrário dos
regimes comunistas) que possa julgar os homens, nem juízes para decidir se o
acusado agiu ou não conforme a lei, e nem mesmo uma câmara legislativa para
criar as leis; e se não há leis civis, não pode haver juízes de direito (que julgam

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segundo as leis) e portanto não há mais nenhum Tribunal. A única lei é a lei do
Karma, a lei de Deus, a lei da Necessidade.
Que uma comuna não tenha polícia nem governo, mas se baseie
unicamente na livre associação, no apoio mútuo, no direito natural, na
autogestão das assembléias comunitárias, e mesmo assim, por estes
mecanismos não autoritários, encontre a mais autêntica paz e harmonia social,
é indiscutivelmente uma Utopia, não um dado empírico. Todavia creio que isso
é possível se os indivíduos tiverem uma inquebrantável fé em Deus, uma fé
profunda na Justiça divina. Para alcançar a verdadeira prosperidade, a
sociedade precisa ajustar as suas aspirações à ordem divina (Dike ou Maat ou
Dharma) que governa o mundo. A comunidade ideal é estabelecida assim sobre
a idéia de que aquilo que une os seres humanos uns aos outros é a lei de um
Bem supremo (Maat ou Dharma ou Eros) impresso na alma.

IV- Internacionalismo.

Comunas independentes podem se associar em federações livres. A questão


do Federalismo, o conceito de nação, a diplomacia, a crítica ao etnocentrismo,
a rejeição do racismo, a criação de acordos ou fóruns internacionais, são
iniciativas e temáticas que deveriam nos levar à uma reflexão sobre a "ordem
internacional". Pois o internacionalismo implica em direitos universais,
comunicação global entre comunas ou civilizações diferentes, e não um
bárbaro isolamento sem interesse pelo restante da humanidade.
Internacionalismo é aceitação e reconhecimento do pluralismo político (não
uma campanha para impor o anarquismo ou qualquer outro sistema em todo o
planeta); a existência de vários estados é um fato histórico e admitimos a
possibilidade de comunas sem estado conviverem pacificamente com Estados-
nação; isso só pode ser possível quando aceitamos a pluralidade de culturas,
raças, civilizações, povos, religiões, modelos políticos, como fenômeno
inevitável da vida humana; uma aceitação positiva das diferenças significa
valorizar toda a humanidade. Anarquia não é homogeneidade, não é
massificação, é viver na Terra entre muitas nações, muitas sociedades, muitas
línguas, muitos costumes, muitas espécies e formas de vida.
O internacionalismo considera que existem muitas formas de nacionalidade
(do ponto de vista simultaneamente histórico e cultural) e todas podem ser
independentes e livres, com autonomia e segurança. O internacionalismo é
contra a guerra... O internacionalismo deve se basear no interesse social geral,
e não de uma única comuna ou federação de comunas.
A essência do internacionalismo é cooperação, amizade entre os povos.
Cooperação entre comunidades independentes. "E, por comunidade, entendo

26
uma associação municipal de pessoas reforçada por seu próprio poder
econômico, sua própria institucionalização dos grupos de base e o apoio
confederal de comunidades similares organizadas no seio de uma rede
territorial em escala local e regional" (Bookchin). Essa concepção indica não
uma comuna isolada, mas já uma federação que poderia muito bem ser
chamada de Nação ou País. O anarquismo considera ainda a criação de novos
países, não por meio da violência, do imperialismo, da guerra, mas através de
uma reorganização social libertária. Os partidos burocráticos devem ser
extintos voluntariamente, não por intervencionismo de uma comunidade ou
nação sobre outra.

A Civilização do Ocidente não deve nada ao Brasil, nenhuma instituição,


ideia, filosofia, arte, religião, ciência, teoria política ou qualquer outro valor
cultural ocidental, depende de algo criado ou concebido no Brasil. O Brasil só
possui um valor econômico, turístico e sexual. Um local feito de orgias e
negociatas - mistura de fazenda, banco e prostíbulo. O Brasil não representa
absolutamente nada na História da Civilização Ocidental. Nenhum livro com
esse título possui sequer um capítulo sobre o Brasil.
Durmam com esse fato, engulam a realidade nacional brasileira em sua
pujante miséria tropical. Eu não. Não aceito ser constrangido a permanecer no
Brasil ou ser obrigado a continuar um cidadão brasileiro. Todos podem fugir,
todos podem abandonar o país.
Antes de ser cidadão de uma República, eu sou um indivíduo natural. Minha
humanidade natural individual é mais essencial que minha cidadania. Antes de
ser "membro" de uma sociedade, de "pertencer" a uma sociedade, eu sou um
ser humano, um indivíduo da espécie humana, vivendo uma existência no
mundo, no cosmos, e como tal sou cosmopolita.
O cosmopolitismo desenraizado pode ser a origem de comunas libertárias
na América do Sul.

V- Antimilitarismo.

Todo anarquista é contra o militarismo, é contra o autoritarismo e o


imperialismo... Consequentemente, todo anarquista é contra o Brasil. Brasil - A
Terra da Cachaça, do Carnaval e do Turismo Sexual. O patriotismo verde-
amarelo me dá nojo. Tolstói acreditava que para a efetiva destruição do Estado
bastava o não pagamento de impostos e a abstenção do serviço militar.
Deveríamos tentar isso no Brasil. Aliás, o caso brasileiro revela como um país
pode ser completamente dominado pelos militares, aqui o problema da
militarização do Estado impregnou toda a sociedade. Em Asfixiante Cultura,

27
Jean Dubuffet escreve: "Não posso imaginar o ministro da Cultura senão como a
polícia da Cultura". Esse é exatamente o caso brasileiro, mesmo com a
instauração da "Nova República". A chamada constituição cidadã de 88 parece
ter piorado ainda mais a indigência mental do país. "Não creio absolutamente
nas virtudes de nenhum sistema de organização social imposto por uma
constituição e por leis... Creio, ao contrário, que, quanto mais leis há, mais o
comportamento pessoal degrada-se." Esse credo de Dubuffet também é o meu,
e penso que de muitos outros anarquistas. Se as leis bastassem para tornar uma
sociedade pacífica e civilizada, o Brasil seria um paraíso. Nem leis nem
militares criam a "justiça social". Antes podem mesmo vir a impedir qualquer
justiça ou bem-estar social. Os custos sociais do militarismo são fontes
permanentes de desequilíbrio social. Os militares são especialistas da guerra e
geralmente inúteis para outros serviços. Os especialistas são os alienados, os
que logo se resignam a viver separados, na alienação, e portanto a ter
carências. Quem fala de especialização fala de alienação. A alienação é um
mal que deve ser erradicado da sociedade, assim como o excesso de armas e
instrumentos bélicos. A abundância, como futuro humano, não poderá ser
abundância de objetos, de armas, de coisas, mas abundância de situações
vitais (de dimensões da vida). O antimilitarismo é a favor do desarmamento
nuclear de todas as nações. A comuna pacifista deve evitar os perigos de uma
guerra termonuclear. Há limites para a auto-defesa. Produzir armas capazes de
exterminar populações inteiras não é uma questão de auto-defesa. Na América
do Sul nenhuma nação possui a bomba da morte, embora existam idiotas que
por imaginárias "razões de segurança" desejam fabricar esse horror. Isso é
intolerável, a burrice não tem esse direito. A pior idéia de todos os tempos foi
o Projeto Manhattan.

28
PRINCÍPIOS ESTÉTICOS

I - Autoria.

Não existe uma estética oficial nem sequer predominante do anarquismo.


No máximo um estilo que se manifesta pela combinação de cores (vermelho e
preto principalmente), roupas, símbolos, cartazes. Mas o fato de não existir
uma "arte anarquista" (com a mesma propriedade com que falamos de arte
barroca ou arte romântica) não significa que os anarquistas não devam admitir
quaisquer princípios estéticos. Um destes princípios eu sugiro que deva ser a
Autoria. A sua negação levaria a uma negação do Sujeito, e consequentemente
da individualidade, o que é incoerente e contraditório com certos princípios
fundamentais vistos anteriormente. Pois bem, o Autor ou Autora é livre para
fazer a arte que queira fazer; sem censura, repressão ou patrulhamento
ideológico. Entretanto, defender uma "estética do autor" não quer dizer apoiar
a política dos direitos autorais no sentido estritamente mercadológico do
termo. Idéias como software livre, copyleft, plágio utópico, antropofagia
cultural, cut-up, sampling, todas são bem-vindas e contribuem para a criação
de uma cultura libertária. Se houvesse existido a propriedade intelectual desde
o Paleolítico, a humanidade nunca teria conhecido As Mil e uma Noites, Ilíada,
Odisséia, Mahabharata, Bíblia etc. "Toda música popular é de domínio público",
dizia John Oswald. A informação livre é um elemento fundamental da
Anarquia. Reconhecer a autoria em arte não quer dizer transformar a arte em
mercadoria.

II - Liberdade de expressão & Beleza.

O artista anarquista é aquele que, sem preocupações com o lucro, sem


desejo de fama, luta contra as convenções oficiais do Estado ou da Cultura, os
modelos rígidos e autoritários de sociabilidade, as formas coercivas de
casamento, família ou educação, os tipos predatórios, poluentes ou
escravizantes de atividade econômica, os sistemas religiosos ou filosóficos que
contenham inclinações autoritárias, fanáticas ou persecutórias. Essa luta não se
dá de um único modo, mas sobretudo através da afirmação da mais profunda
autonomia artística - a liberdade de ser, viver e criar sem estar submetido a
qualquer força externa. "Para a nossa vontade não há causas externas ou
antecedentes" (Cícero). Essa idéia do filósofo latino bem poderia servir aos
propósitos dos anarquistas. Aliás, a luta em questão depende da intenção do
artista. Somente se este tiver a intenção ou vontade de lutar é que a sua arte

29
poderá ser vista como anarquista. Mas se ele aceita todas as regras do jogo e se
conforma com a situação histórica da sociedade, ainda que acidentalmente a
sua obra tenha relação com o anarquismo, nem por isso poderá ser chamado de
"artista anarquista".
A liberdade de expressão é um meio, não um fim em si mesmo. Ela é a
condição prévia para o autor realizar sua obra ou projeto. Qual obra ou projeto
cabe unicamente ao artista dizer. A arte, aliás, pode ter uma função crítica na
sociedade, e se designamos nosso campo de ação na vida cotidiana, trata-se de
uma crítica da vida cotidiana. Em especial, uma crítica da alienação. "É preciso
empreender um trabalho coletivo organizado, que leve à utilização unitária de
todos os meios de transformação da vida cotidiana" (Guy Debord). O importante
é a multiplicação dos períodos emocionantes da vida. Arte é pathos. O objetivo
mais geral deve ser o de ampliar a parte não medíocre da vida. Se a liberdade
de expressão é o meio essencial da arte, o fim supremo é a beleza. A finalidade
da arte não pode ser a mediocridade, a degradação, o "embrutecimento dos
cinco sentidos". O propósito da arte deve ser a elevação do Homem. Essa noção
abriga uma dimensão social. Podemos reinventar as cidades, construir outras
cidades. Transformar o espaço urbano, pela arte, criando novas possibilidades
de comportamento nas ruas, o que mudaria nossa maneira de ver as ruas. Viver
na cidade deveria ser uma experiência estética, a própria cidade como obra de
arte faria da vida cotidiana uma contemplação estética.
É evidente que nós desejamos viver numa cidade bela. A harmonia é o
requisito indispensável da Beleza. Uma criação é bela quando suas partes
combinam-se harmoniosamente. O urbanismo unitário (outro conceito
situacionista) deve ter como medida a harmonia cósmica. O Universo é belo (ou
o Todo é belo, conforme o pancalismo). A beleza feminina, o corpo da mulher,
é um microcosmo da harmonia universal. Oscar Niemeyer tinha toda razão ao
conceber uma arquitetura inspirada nas curvas femininas. Isso pode ser
considerado um princípio estético da Anarquia: a relação entre beleza-cosmo-
mulher-cidade. Beleza é valor inerente à Natureza, é a forma real e verdadeira
da Natureza. Quanto mais belo um objeto mais real ele é. O belo produz a
sensação, o prazer estético, o conhecimento sensível, a alegria. Luz, mar,
amor... O belo é emocionante. E se vivemos num cosmo belo podemos viver
numa comuna, numa vila ou numa cidade bela. Por que não?

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III- Crença Pessoal na Função Social da Arte.

Eu defendo o Inconformismo quando se discute qual é a "função social" da


arte. Se antes afirmei que o propósito da arte é a elevação do Homem, o
sentido social dessa idéia é para ser traduzido pessoalmente, sem
patrulhamento ideológico. Toda direção oficial impressa ao julgamento
estético é fatal e deve ser evitada. A função social da arte não pode ser
determinada a priori por qualquer organização, partido, governo, minoria ou
maioria, pois isso tende a destruir a individualidade. Seria um erro querer
exigir sistematicamente uma tendência política (anarquista ou diversa) exata
na obra de arte. A instrumentalização das artes e o arregimento dos artistas em
proveito de um único programa político seria uma forma de totalitarismo. A
obstinada propaganda em favor de uma arte "engajada" ou "social", em geral
resulta no empobrecimento do imaginário e no cerceamento à liberdade de
pensamento. Não pode haver um conteúdo, mensagem ou escolha do tema, que
seja obrigatório. Muito menos o estilo ou o aspeto formal da obra deveria se
manter fiel a um número de convenções estéticas. Ninguém deve pretender o
controle da atividade artística, logo, não pode haver conformação de todos os
artistas a um Cânone oficial, seja ele "tradicional" ou de "vanguarda". O artista
é livre para ser barroco, clássico, romântico, parnasiano, futurista, ou nada
disso, da maneira que bem entender.
O papel social do escritor é o de um educador. Homero era a "educação da
Grécia". Mas se admitimos a liberdade de ensino, a liberdade de consciência e a
liberdade de expressão, logo todo escritor é livre para educar os outros da
maneira que julgar melhor. O escritor não é funcionário do governo, e não
somente pode criticar o governo como incitar a população à desobediência
civil. A arte é um auxiliar de primeira ordem na luta social. [Princípios: 1)
colocar a arte ao alcance de todos; 2) desenvolver práticas artísticas no próprio
seio da classe operária ou nos centros urbanos; 3) valorizar o folclore e as
formas populares de criação artística; 4) incentivar a pesquisa, a
experimentação e os movimentos de vanguarda.]
As artes gráficas, sobretudo a publicidade, costumam ser desprezadas pelos
críticos do capitalismo. Isso quase fede à censura. Se uma arte tem ou não
função social, se ela útil ou inútil para o bem comum, é uma controvérsia na
qual o Estado não deve intervir. O que parece, porém, exatamente "obsceno"
na publicidade é a maneira como ela explora os "arquétipos de felicidade" em
um sentido mercadológico. Uma vez que para a maioria das pessoas a crença na
felicidade se associa ao paraíso divino, chega a ser uma ofensa ao "sagrado"
associar a felicidade ao consumismo. Todavia, se a publicidade alcança os seus
objetivos é porque sabe se apropriar dos signos "inconscientes" da felicidade.

31
Tudo se passa como se ao comprar um carro ou beber uma cerveja você
também recebesse o direito de desfrutar da companhia das huris do paraíso.
Esta imagem exuberante (feminina) da felicidade constitui o caráter
diretamente sedutor da publicidade... Na publicidade os objetos são tratados
como apaixonantes ("como a vida muda quando se tem um carro maravilhoso
como este!"). A mitologia fundamental da publicidade é associar imagens de
felicidade a objetos de consumo: as mercadorias (televisores, celulares,
apartamentos, móveis, automóveis, sorvetes, perfumes, roupas etc.). A
atividade publicitária levada com exclusão de qualquer juízo crítico prévio
sobre o problema da alienação apenas reforça a ilusão na inexistência da
alienação.

IV - A autonomia das artes frente à política.

Não cabe ao Anarquismo policiar a arte nem exigir dos artistas que se
convertam à causa. A liberdade estética deve ser total. Kropotkin incentivava
os "poetas, escultores, músicos", a colocar sua arte a serviço da revolução. Quê
revolução::: Emma Goldman nos diria: "Se não posso dançar, não é a minha
revolução". Logo, a minha revolução, que pode se transformar na nossa
revolução, é a revolução na qual o individuo é livre para dançar, para dançar
ao seu modo. Uma arte livre requer artistas livres. Uma revolução que promova
a liberdade individual será favorável a todos os artistas. Enfim, é no benefício
da própria arte e da pessoa do artista que a revolução receberia o apoio dos
"poetas, escultores, músicos". Entretanto, a desconfiança em relação à política
permanece a marca característica dos artistas, e isso é compreensível, pois em
geral eles não sabem como, afinal, uma "obra de arte" pode estar a serviço da
revolução. Ademais, isso não faria com que a obra e, consequentemente, a
criação, perdesse a sua autonomia::: A exaltação da arte pela arte, sem
qualquer engajamento ou compromisso político, reflete antes um medo do que
uma esperança ou ideal. Por meio da noção de uma esfera autônoma da arte,
completamente distinta do contexto político-social, com suas fronteiras bem
determinadas, o artista tenta se proteger de uma invasão autoritária nos seus
domínios. Mas essa esfera, se existe, existe de direito, não de fato. Ela é antes
um valor ideal, uma aspiração, do que uma realidade.
Outro problema espinhoso refere-se a condição social da maioria dos
artistas, que raramente é a mesma dos operários militantes e demais
trabalhadores. Isso é um dos motivos que os leva a defenderem a autonomia
das artes, pois temem ser julgados por critérios e valores não somente alheios
à arte, mas até mesmo hostis. Todavia, o que acontece na prática é que
acabam assimilados à burguesia ou aos aparelhos ideológicos de Estado.

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Querem a autonomia da arte, fogem dos populismos e igualitarismos
autoritários, mas terminam submetidos ao mercado de arte, à indústria cultural
e a tutela do Estado. Em tal circunstância, o anarquismo pode ser uma saída.
Um método que realmente conduza à esfera autônoma da arte. Mas para isso, é
preciso haver princípios claros, e minha intenção não é outra senão expor estes
princípios.
Artistas e gente de letras costumam repudiar a luta de classes, pois não se
identificam com nenhum dos grandes blocos sociais dessa luta. Músicos,
escritores, o pessoal do cinema e do teatro, artistas plásticos, em geral não
possuem qualquer "consciência de classe" perfeitamente definida, exceto
aquela que os fazem se sentir ligados subjetivamente ao "mundo das artes". A
classe dos artistas não é, estritamente considerada a partir da subjetividade
dos seus membros, uma classe burguesa ou proletária. Daí porque certa
retórica marxista atraiu pouquíssimos artistas no século XIX e começo do vinte.
Posteriormente, após a revolução de 1917, houve de fato uma corrida geral aos
Partidões espalhados pelo mundo, atraindo gente como Picasso e Breton. Mas
este é um fenômeno específico, ligado em parte ao tema do "ópio dos
intelectuais", cuja complexidade não vou tratar aqui.
Creio ser necessário uma recusa da visão reducionista, de fundo marxista,
que consideraria a arte um elemento da superestrutura submetida à infra-
estrutura econômica. Por esse ângulo todo fenômeno estético se explicaria por
"causas materiais". Esquema simplório não menos deletério que a imposição de
uma "estética oficial". Não se deve reduzir a atividade artística a um
instrumento de propaganda. Contra o stalinismo das artes, a Anarquia é
reconhecimento do espírito criativo do ser humano. Espírito que não nasce do
carbono ou dos lipídios. A oposição contra a decomposição ideológica, o
desaparecimento de toda tradição, memória ancestral ou festividades antigas,
implica no resgate e valorização da arte popular, do folclore, dos elementos
tradicionais de arte sacra etc... Ao mesmo tempo, a crítica de arte é de
fundamental importância no desenvolvimento da cultura libertária. É preciso
criticar as atividades importantes para o futuro, como a teoria funcionalista da
arquitetura. Indicar a importância da vanguarda experimental na sociedade,
que é mostrar desejo de mudança por uma vida essencialmente justa e bela. A
única conduta experimental válida fundamenta-se na crítica das condições
existentes, e em sua superação deliberada.

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V - Conservação e expansão do patrimônio artístico.

Gustave Courbet foi nomeado presidente das Artes durante a Comuna de


Paris de 1871. "Umas das primeiras medidas que ele adotou foi a de preservar
as obras de arte do Louvre e de todos os outros museus parisienses; uma outra,
foi a de pregar a independência dos artistas em relação ao poder" (Pietro
Ferrua). Courbet acreditava que para fazer uma revolução social "não era
preciso cometer qualquer violência". Ele considerava que a causa da liberdade
era "uma causa santa e sagrada". Essa é a atitude que as assembléias do povo,
nas comunas libertárias, devem tomar em relação às artes. Coubert serve de
exemplo para todo "ministro da cultura".
A expansão do patrimônio artístico e cultural de uma sociedade acompanha
e estimula o desenvolvimento da própria vida. Uma ação revolucionária na
cultura não pode ter por finalidade reduzir ou explicar a vida, mas deve
expandi-la... O projeto dos situacionistas serve de exemplo. Devemos construir
situações, ambientes e ruas novas que sejam ao mesmo tempo o produto e o
instrumento de novos comportamentos... Nossa idéia central, ética e estética,
é a construção de situações, isto é, a construção concreta de experiências
momentâneas da vida. É preciso multiplicar os objetos e sujeitos poéticos, e
organizar os jogos desses sujeitos poéticos entre esses objetos poéticos. O jogo
situacionista deveria caracterizar-se pelo desaparecimento de todo elemento
de competição. O elemento de competição deve desaparecer em favor de um
conceito mais erótico e coletivo de jogo: a criação comum das situações ou
vivências lúdicas escolhidas. Mas a aplicação dessa vontade de criação lúdica
precisa estender-se a todas as formas conhecidas de relações humanas e, por
exemplo, influenciar a evolução histórica de sentimentos como a amizade e o
amor...
A situação, como momento criado, organizado, inclui instantes
perecíveis... É inseparável de seu valor de uso essencialmente avesso à
conservação sob a forma de mercadoria. A situação não é um objeto. O que vai
caracterizar a situação é a sua práxis. É possível imaginar, por exemplo, a
televisão projetando, ao vivo, alguns aspectos de uma situação em outra,
acarretando assim modificações e interferências... O cinema chamado
documentário poderia fixar os instantes mais significativos de uma situação.
Como a construção sistemática de situações deve produzir sentimentos
inexistentes anteriormente, o cinema teria o seu maior papel pedagógico na
difusão dessas novas paixões ou emoções.
A situação, estreitamente articulada no lugar, é toda espaciotemporal; os
momentos construídos em "situações" poderiam ser considerados as revoluções
na vida cotidiana individual. Devemos tentar construir situações, isto é,

34
ambiências e performances coletivas, um conjunto de impressões
determinando a qualidade de um momento... A situação é uma mudança no
tempo, a sua duração é uma alteração das condições cotidianas da vida.
Construir uma situação é modificar as relações presentes num ambiente
temporal. A construção de situações começa após o desmoronamento da
sociedade do espetáculo; a principal característica do espetáculo é a não-
participação, a vida social de marginalidade, alienação e exclusão. A situação é
feita para ser vivida pelos seus realizadores.

VI - Transformação, superação e invenção na arte contemporânea de


vanguarda.

A Anarquia apóia a vanguarda. A vanguarda busca explorar novos horizontes


ou territórios ou linhas de fuga ou não-lugares estéticos, sem se limitar a
qualquer convenção ou tradição antiga, sem jamais se submeter a uma norma,
procedimento, técnica, estilo ou linguagem (no sentido mais amplo) do
passado, seja ela do classicismo, do romantismo, do realismo, do simbolismo,
do futurismo ou do surrealismo. Vanguarda é ousadia, esforço, superação,
criatividade. Vanguarda não é conformismo.
Se a Anarquia é a favor da vanguarda, historicamente podemos observar que
as principais escolas vanguardistas se aproximaram do anarquismo. "O neo-
impressionismo, o simbolismo, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, o
letrismo, num determinado momento, aparentaram-se ou aproximaram-se do
movimento libertário." (Michel Ragon) Sempre houve uma conexão entre
Anarquia e Arte Moderna. Em lato senso a arte moderna começa com o
Romantismo, portanto antes que o movimento libertário adquirisse presença
histórica. Todavia, foi só ocorrer sua aparição na cena histórica para que uma
convergência logo se fizesse. Afinal, o verso livre e a filosofia libertária
apresentam uma nítida afinidade. Um poeta como Rimbaud chega a ser
antecipação imaginária da Anarquia ideal. Sua poesia, no conteúdo e na forma,
é libertária.
Por outro lado, houve entre os anarquistas a Crítica da Vanguarda. Félix
Fenéon foi "o exegeta ou o mentor de várias gerações de artistas,
impressionistas ou neo-impressionistas, simbolistas ou nabis, pontilistas ou
fauvistas" (Pietro Ferrua). Houve ainda anarquistas que se associaram ao
surrealismo, mas depois passaram a criticá-lo. "Por que uma fusão orgânica não
pode operar-se entre elementos anarquistas e elementos surrealistas? Ainda
estou, vinte e cinco anos depois, a perguntar-me" (André Breton). O problema,
a meu ver, está numa rigidez intelectual de certos surrealistas, a começar por
seu "líder". Breton comportava-se ortodoxamente em relação ao próprio

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surrealismo. Tendia a querer manter uma espécie de monopólio teórico dentro
do movimento, como se a sua palavra fosse a última palavra em matéria de
surrealismo. Comportava-se, em suma, como um chefe de seita. Essa atitude é
incompatível com a Anarquia. A síntese criativa que leva ao anarco-surrealismo
não pode ser tomada como um princípio, somente como uma das virtualidades,
uma das possibilidades latentes, entre várias outras, da convergência entre
Anarquismo e Arte Moderna.
A corrida geral dos surrealistas e outras artistas no século XX em direção ao
comunismo marxista é um fenômeno tardio, ao qual não irei me concentrar. O
que é interessante destacar, já durante a gênese do simbolismo, será o
encontro entre vanguardas artísticas e literárias e o movimento anarquista.
Aliás, devemos entender a gênese e o desdobramento do conceito de
vanguarda, um termo de origem militar, ligado à estratégia de combate, que
passou ao plano da luta política e posteriormente ao campo das artes. Todos os
"artistas de vanguarda" já estavam de algum modo comprometidos com os
movimentos revolucionários que se definiam como "vanguarda política". Assim,
a figura do artista engajado passa a ser sinônimo de vanguarda estética. O que
não significa que o artista estivesse consciente de um programa político
determinado, mas apenas que ele estava subjetivamente, passionalmente eu
diria, engajado na revolução social. O artista sonhava com a revolução, queria
uma nova sociedade, sem com isso se tornar alguém sectário, afiliado,
integrado à disciplina partidária. Por isso uma afinidade natural, uma
convergência espontânea entre os artistas de vanguarda e o Anarquismo.
Afinidade muitas vezes inconsciente, já que no final do século XIX era mais
comum o artista dizer "socialismo" quando no íntimo queria dizer Anarquia. O
escritor Oscar Wilde seria um exemplo disso. E em todos os literatos que ousam
combater o exército, o alistamento obrigatório e o militarismo, podemos ver as
sementes de uma verdadeira literatura anarquista, em expansão durante a
Belle Époque. Jean Grave foi um dos anarquistas que aproximaram os artistas e
literatos da época ao movimento libertário.
Na virada dos anos 1890, conforme assinala Gaetano Manfredonia, ocorre
uma colaboração cada vez mais estreita entre os militantes libertários e os
artistas "ganhos à causa". Um deles foi Camille Pissarro. A adesão mais
significativa é, contudo, a das vanguardas simbolistas. A atitude dos
simbolistas, recusando-se a aceitar qualquer regra em arte e reivindicando o
verso livre, indicava uma identidade ou simetria entre os seus pontos de vista e
o procedimento anarquista, consistindo em negar as leis e convenções sociais.
Os anarquistas da época também notam (p. ex. Max Nettlau, em sua
Bibliographie de l'Anarchie, Paris-Bruxelas, 1897) essa verdadeira adesão às
idéias anarquistas de quase todas as jovens revistas da efervescência

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simbolista. A publicação fundada em 1891 por Zo d'Axa, L'en-dehors, soube
atrair para si as simpatias quase unânimes da juventude literária e dos
militantes anarquistas. Nesta revista, segundo Manfredonia, "a colaboração
entre anarquistas e jovens vanguardas estreita-se em cumplicidade ativa" [v.
Arte e Anarquismo na França da Belle Époque (1890-1914), in Arte e
Anarquismo, Coleção Escritos Anarquistas, n 17, Editora Imaginário, São Paulo,
2001]. O recrudescimento da repressão ao movimento anarquista, em 1893-94,
contribuiu para esfriar muitos ardores subversivos nos meios de vanguarda. Por
essa época encerra-se a época de ouro do engajamento simbolista. Mas isso não
acaba com as relações privilegiadas entre arte e anarquismo. Artistas "como
Pissarro, Tailhade, Mirbeau, Retté, Lazare, continuarão ainda durante longos
anos a apoiar por seus escritos ou seus trabalhos as diferentes iniciativas
patrocinadas pelos libertários" (Manfredonia).
Na síntese "anarco-simbolista" não faltava contradição, pois, como diz
Manfredonia, "para toda uma parte dos escritores simbolistas, reivindicar a
anarquia em arte não significava forçosamente afirmar a necessidade da
ausência de regras na vida social (a anarquia política)". Ademais, havia entre os
jovens literatos tipos como Rémy de Gourmont, para quem a afirmação do
princípio individualista do anarquismo só podia conduzir a legitimar o
despotismo em política. Esse erro é comum entre aqueles que não têm uma
visão ampla o bastante dos princípios éticos anarquistas. Na visão de
Gourmont, excluída a premissa básica do Apoio Mútuo, só resta um
individualismo grosseiro sem a contraparte da caridade, do direito à vida e do
respeito pelas diferenças, um individualismo, enfim, sem tolerância ou virtude,
o que é uma incompreensão radical do movimento libertário, ou melhor, do
ideal da Anarquia. Nas suas palavras, admitida a soberania individual, teria-se
que aceitar "a dominação de todos por alguns", uma vez que "na ausência de
toda lei, a ascendência dos homens superiores seria a única lei e seu justo
despotismo inconteste". Ora, a ausência de direito positivo, de leis escritas e
de um sistema jurídico, não significa a negação do direito natural, nem de
princípios éticos universais. O princípio de Autonomia não contradiz o princípio
de Apoio Mútuo. Seria um engano ver nas premissas do movimento anarquista
uma apologia do despotismo ou da "lei do mais forte". Não somente o princípio
de Apoio mútuo (caridade) impede essa conclusão, como o princípio de Auto-
defesa reconhece a legitimidade de opor resistência ao autoritarismo e à
tirania. Não obstante, sempre houve entre os jovens artistas uma verdadeira
confusão quanto à natureza da doutrina libertária, amiúde entendida como
uma concepção puramente individualista (simbolistas, surrealistas, punks etc.,
quase todos incorreram nos mesmos excessos e desvios, não por má-fé, mas
devido à imaturidade). Muitos tomaram o anarquismo como uma forma de

37
exaltar o seu próprio niilismo e sede de destruição.
Nietzsche, com certa razão, acabou identificando o anarquismo com as
forças negativas que caracterizam a decadência, mas seu erro foi generalizar
uma atitude específica de revolta com o próprio conteúdo do pensamento
libertário. Evitemos tal confusão - o anarquismo, digo mais, a essência da
Anarquia não é uma forma de revolta contra a vida. O natural amor-próprio,
aliás, deveria ser tomado como o seu princípio ético fundamental, dele
nascendo o desejo de autoconhecimento (também natural), a afirmação do
valor sagrado da vida, e, consequentemente, do direito à vida. Viver a vida,
amar\conhecer a vida, gozar a vida, usufruir dos sentidos e capacidades
naturais do nosso corpo-alma, reconhecer que viver é um valor superior a
qualquer programa político, e que é a Cultura que deve estar a serviço da vida,
e não o contrário, pois é a vida o valor supremo que nenhum produto ou objeto
cultural pode substituir - tais seriam (ou deveriam ser) as noções básicas do
anarquismo ou de uma situação social de Anarquia. Tal situação não pode estar
fundada no ressentimento ou em um "banco de ira" (Sloterdijk). A situação
ideal deve se fundar no amor, na poesia e na liberdade, deve ser a plenitude
da Vida. De qualquer modo, não foi assim que os simbolistas e, depois deles, os
surrealistas, interpretaram o anarquismo ou a anarquia. Não se lia de modo
vitalista, como uma virtude vital, o anarquismo. Este acabou servindo apenas
de justificativa para qualquer "licença poética" ou moral, sem qualquer
comprometimento real com o movimento. Por sinal, "o número de artistas que
realmente deram um passo à frente e engajaram-se na ação política,
permaneceu sempre, em fim de contas, minoritário, e toda uma parte da
juventude literária nunca abandonou sua torre de marfim e a defesa da arte
pela arte..." (Gaetano Manfredonia). Também houve na Belle Époque quem
defendeu "uma arte popular", uma arte social, não apenas engajada, como
também "utilitária" e partidária, uma arte que fosse um modo de "exprimir os
sentimentos e as exigências da classe operária em luta por sua libertação". Mas
a maioria dos artistas, como Pierre Quillard, permaneceu ligada a uma
concepção pessoal da criação artística, recusando obstinadamente subordinar
sua atividade a um objetivo político e social qualquer. É o caso de Gautier ou
Mallarmé.
Por outro lado, não se deve esquecer que em 1895 Jean Grave lança o apelo
aos artistas para que trabalhem "pela elevação intelectual e moral das massas".
No transcurso dos anos seguintes certos princípios anarquistas irão começar a
aparecer com maior nitidez. 1) Pôr fim ao divórcio entre povo e arte por meio
de uma educação estética ampla e gratuita [é para defender tal objetivo que,
em 1901, Louis Lumet vai fundar o grupo de divulgação "A Arte para todos",
sendo uma das principais atividades a de organizar visitas guiadas nos museus];

38
2) Visando a difusão da arte junto ao povo, duas formas de criação artística
serão privilegiadas: o teatro e a canção. As atividades cancioneiras e os
festivais de música constituíam, junto com o teatro, suportes ideais à
propagação das idéias libertárias [em 1897 Louis Lumet cria o Teatro cívico e
no mesmo ano aparece a primeira tentativa de teatro libertário]; 3) Promover
as artes decorativas, jardinagem, artesanato, com o fim de "democratizar a
arte" - seja no sentido de colocar à disposição do povo "objetos artísticos" para
decorar o interior de suas casas, seja no de incentivá-lo a produzir estes
objetos.
Se a vanguarda pode ter um conteúdo social explícito, ninguém defendeu
isso mais assiduamente do que a Internacional Situacionista. A arte integral só
se poderá realizar no âmbito do urbanismo. Não do urbanismo tal como se
desenvolve atualmente, sob o império do capitalismo, da sociedade de
consumo e sobretudo do culto do automóvel. "O erro de todos os urbanistas é
considerar o automóvel individual essencialmente como um meio de
transporte. A rigor, ele é a principal materialização de um conceito de
felicidade que o capitalismo desenvolvido tende a divulgar para toda a
sociedade... Querer refazer a arquitetura em função da existência atual,
maciça e parasitária dos carros individuais é deslocar os problemas com grave
irrealismo" (Guy Debord). Os problemas da locomoção e dos transportes
poderiam ser parcialmente solucionados com as ciclovias, o "plano das
bicicletas brancas", os metrôs, as passarelas verdes com pomares, as garagens
coletivas de carros públicos. Mas não é só isso. "O tempo gasto nos transportes,
como bem observou Le Corbusier, é um sobre-trabalho que reduz a jornada de
vida chamada livre (...) Precisamos passar do trânsito como suplemento do
trabalho ao trânsito como prazer... " - Guy Debord.
O urbanismo unitário não é uma doutrina do urbanismo, mas uma crítica do
urbanismo. Igualmente, a presença da IS na arte experimental é uma crítica da
arte... crítica de toda arte que não altera em nada o quadro geral de alienação
em que a sociedade se vê imersa. Ao contrário do urbanismo convencional, o
urbanismo unitário vê o meio urbano como terreno de um jogo do qual se
participa. O urbanismo unitário não está idealmente separado do atual terreno
das cidades. O urbanismo unitário deve "tanto explorar os cenários atuais, pela
afirmação de um espaço urbano lúdico tal como a deriva o reconhece, quanto
construir outros, totalmente inéditos" (IS); isso significa não separar a
utilização lúdica direta da cidade (dos seus parques, ruas, praças, bibliotecas
etc.) do urbanismo como construção. Tanto a arquitetura como a deriva se
integram nas práticas situacionistas (recordar que a deriva é uma das formas de
ação direta...) e nosso objetivo é fazer progredir a construção de novos
cenários urbanos junto com o pensamento teórico (ou contemplativo - que sou,

39
que é a cidade, o que é a vida, o que é o Céu e a Terra?). O sentido de jogo
poético deve ser integrado à vida cotidiana, e um tipo de urbanismo lúdico se
acha proposto com os bairros "estados-de-espírito". Um dos integrantes da
Internacional Letrista propôs uma teoria dos bairros "estados-de-espírito",
segundo a qual cada bairro da cidade deve provocar um sentimento simples, ao
qual o sujeito se entregue com conhecimento de causa. A arquitetura a ser
feita deve afastar-se das preocupações de beleza espetacular (um cenário
simples repleto de árvores é preferível a um quarteirão de Las Vegas) em
proveito de organizações topológicas que estimulem a participação geral.
Vamos criar uma topofilia. Atração telúrica (devemos saber encontrar lugares
de poder natural) que reconecte o indivíduo ao seu próprio eixo natural.
Possibilidades de vida nova no espaço urbano nascem da fusão do urbanismo
com uma práxis revolucionária, emancipando o urbanismo da tecnocracia; o
urbanismo unitário é uma arte experimental de utilização dos recursos da
humanidade atual (técnicos, científicos, estéticos etc.) para construir
livremente sua vida, a começar pelo ambiente urbano; o urbanismo unitário é o
urbanismo livre, não mais servo da tecnocracia. O urbanismo unitário define-se
pelo emprego do conjunto das artes e técnicas, entendidas como meios de ação
que convergem para uma composição integral do ambiente. Integral significa
que todas as necessidades humanas devem ser consideradas nessa composição.
O urbanismo unitário deverá elaborar tanto o meio sonoro (o espaço acústico
da cidade deve estar livre da "poluição sonora") quanto a distribuição das
diferentes variedades de bebida ou de alimento. O desenvolvimento espacial, a
transformação consciente do espaço urbano, deve levar em conta as realidades
afetivas, eróticas, sentimentais que a cidade experimental vai determinar ou
influenciar.

VII- Erotismo.

"A poesia se faz na cama como o amor". Anarquia é liberdade sexual, cuja
essência aparece na arte na forma do erotismo. As pulsões de Eros são fontes
da criação artística. O fazer poético passa pelo corpo e pela cama (Roberto
Piva). Erotismo da linguagem. Pornografia. Gozo sensorial. "Buscamos a arte
pelo prazer que ela nos causa" (Jorge Coli). Uma poesia sentimental...
O cinema pornô pode ser concebido como uma sequência "mais ou menos
onírica" de situações (teoricamente uma partilha entre Robert Desnos e Guy
Debord). A situação construída é feita de gestos contidos no cenário de um
momento. A pornografia é sempre uma questão de aqui e agora. A linguagem
experimental da pornografia ou da atividade erótica consiste em estabelecer, a
partir de desejos reconhecidos com maior ou menor clareza, um cenário de

40
atividade temporária favorável a esses desejos... Cada um deve procurar o que
ama, o que o atrai... A situação construída - a Orgia - é forçosamente coletiva.
Ela possui uma duração limitada (mesmo que dure semanas). A situação
pornográfica é momentânea. O "ato sexual" é sobretudo temporal, faz parte de
uma zona erótica de temporalidade; os momentos eróticos podem ser
considerados verdadeiras "revoluções" na vida cotidiana.
O principal drama afetivo da vida é o perpétuo conflito entre o desejo e a
realidade hostil ao desejo. Já se interpretaram bastante as paixões; trata-se
agora de descobrir outras. Na modernidade, a lenta evolução histórica das
paixões toma um novo rumo. O cinema e o teatro poderiam documentar ou
representar essa evolução. Lefebvre fala do "momento do amor". Do ponto de
vista da criação de momentos eróticos, é preciso considerar o momento de
determinado amor ou paixão, individualmente, isto é, o momento do amor ou
paixão de determinada pessoa, ou então coletivamente (estudar se há
mudanças na orientação sexual geral de uma sociedade). A série de situações
ligada a um mesmo tema - p. ex. este amor de determinada pessoa - pode
constituir a sequência cinematográfica ou existencial culminante do Erotismo.
Uma sequência possui encadeamento, ritmo, linguagem (e no cinema,
montagem). Não se trata apenas de um erotismo da linguagem impresso ou
visual, sem contato físico corporal direto; há um "urbanismo lúbrico" que se
refere aos momentos de amor de Lefebvre.
O cinema documental pode registrar, para arquivos situacionistas, os
momentos mais significativos de orgias, festivais, celebrações e rituais (em
tese todas as formas de situações construídas podem ser filmadas).

41
Adendum: Notas sobre Pedagogia Libertária

I. O mais importante numa comuna anarquista é o Pluralismo Pedagógico. A


idéia de que os educadores, pais e professores, tenham que estar todos
arregimentados sob uma única bandeira, ideologia, pedagogia, "filosofia da
educação", currículo, normas técnicas etc. é totalmente contrária ao ideal da
"liberdade de ensino", liberdade de consciência, liberdade de expressão ou
mesmo liberdade civil. As Escolas não precisam ser todas iguais.
Tradicionalmente, a pedagogia vincula-se aos problemas de "como ensinar"
(didática), "o que ensinar" (conteúdo), "quando ensinar" (calendário, horário,
em que idade), "onde ensinar" (escola, templo, teatro, praça), "para quem
ensinar" (um indivíduo, meninos, meninas, adolescentes) e, por ser
associada a uma visão-de-mundo, "pra que ensinar" (a finalidade da
educação, o êxtase, a iluminação, a cidadania, a ciência).

II. O que é a educação? A "transferência de saber de uma geração a outra"


(dentro ou fora das "escolas"). O que é esse processo de ensinar-aprender
que chamamos de educação? Socialização, isto é, para se ajustar uma
criança à determinada comunidade é preciso que ela seja educada. Esse
processo de socialização, por uma via educacional ou pedagógica, é comum à
civilização ocidental e aos "povos primitivos". "A educação é a ação exercida
pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda
preparadas para a vida social" (Durkheim). Todas as sociedades humanas
apresentam processos pedagógicos\ educativos. A socialização em sentido
educacional pode ser definida como: "Ação exercida pelas gerações adultas
sobre as gerações jovens para adaptá-las à vida social..." (Dicionário
Aurélio).

III. Educação: do latim "educere", tem os significados de extrair, tirar,


desenvolver. Herbart distingue entre educação (Erziehung, em latim
educatio) e instrução (Unterricht, em latim instructio). A educação se
preocupa em formar o caráter e aprimorar o ser humano. O conhecimento
dos verdadeiros valores (sabedoria, saúde, virtude, liberdade, prazer, beleza)
deve constituir a base de toda educação. A virtude é, segundo Herbart, o fim
supremo da educação. Além de instruir os jovens nas línguas clássicas, na
história, na matemática e nas ciências naturais, deve-se, igualmente,
"educá-los". Herbart dizia que uma educação sem instrução está condenada
ao fracasso. Albino, filósofo médio-platônico, dizia: "Se queremos ser
iniciados nos conhecimentos mais elevados, a preparação e a purificação do

42
demônio que existe em nós deverão acontecer através da música, da
aritmética, da astronomia e da geometria, e deveremos nos ocupar também
do corpo com a ginástica..." Encontramos aqui a tradição pitagórica, modelo
da educação ocidental. É do pitagorismo que nos veio a idéia de quadrivium,
e dos sofistas a de trivium. "Ora, para mim, a pedagogia nunca foi mais do
que uma aplicação da filosofia" (Herbart). Os conhecimentos mais elevados
pertencem ao campo da educatio, não da instructio, que são preparatórios. A
questão socrática se podemos ou não ensinar a virtude, pertence ao campo
da educatio. A educação familiar deveria se ocupar essencialmente com a
questão da virtude e da vida feliz. Os filhos deveriam ser educados para a
vida em liberdade, a vida feliz. Porém, sem sacrifícios. "O pai e a mãe devem
fazer ver que têm direito à felicidade antes de seus filhos" (Makarenko). Se
quiserem envenenar a vida de seus filhos, diz o pensador ucraniano, "os pais
devem começar por sacrificar a própria liberdade".

IV. Princípio da Relatividade Pedagógica. Qual é o objetivo da Educação? Isso


é relativo; conforme necessidades sociais ou econômicas, a educação é um
dos meios pelos quais são criados guerreiros ou burocratas, ou
administradores, ou médicos, ou letrados, ou sacerdotes ou operários... Não
há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o
único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor (Carlos R.
Brandão). Todavia, em geral se diz que o objetivo da educação é desenvolver
as faculdades físicas, intelectuais e morais da criança... Mas até esse objetivo
geral é relativo, uma vez que "tem por objeto suscitar e desenvolver na
criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados
pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança,
particularmente, se destina" (Émile Durkheim). [Noção controversa, como se
a função ou "papel social" fosse definido de antemão]. A noção de que o fim
da educação é suscitar no aluno aquilo que é reclamado pela "sociedade
política no seu conjunto" (termo nebuloso) sanciona a idéia de que a
Educação esteja sob o controle do Estado. Essa não é a perspectiva
libertária. "Cabe à sociedade fixar os objetivos da educação que ela fornece
às gerações ascendentes" - Piaget. Mas, uma vez que a sociedade é
heterogênea e plural, constituída por diferentes povos e culturas, ideologias e
crenças, os pedagogos que fixarem os objetivos da educação devem
respeitar essa pluralidade sem pretender impor um modelo único. O Estado
não tem o direito de determinar a educação de toda a sociedade, e deve
resguardar a liberdade de ensino, só proibindo aquelas formas de educação
que violam os direitos humanos fundamentais. Segundo Herman Horse a
educação é o processo de adaptação superior do ser humano a Deus. (A
"adaptação inferior" está relacionada ao meio-ambiente). A virtude é a
finalidade da educação, dizia Herbart. Pode a virtude ser ensinada? Essa era

43
uma recorrente questão socrática e platônica. Kant escreve que: "O fim da
Educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja
capaz". Essa é uma noção mais próxima dos ideais libertários. Todavia, eu
prefiro essa idéia: "o homem deve ser educado para ser feliz" - Makarenko.
Isso não exclui a ciência, a física ou a geografia. "O estudante precisa
aprender a respeito do mundo em que vive e deve ser posto em contato com
ele." - Skinner. Há quem considere que a educação é um problema
essencialmente político. De acordo com Makarenko: "Não temos o direito de
educar sem fixarmos um determinado objetivo político". Infelizmente, há o
perigo de uma instrumentalização da educação que viola a diversidade e
relatividade pedagógica. "A nossa educação deve ser comunista e cada
pessoa que educamos deve ser útil à causa da classe operária" (Makarenko).
Essa é uma perspectiva tão autoritária quanto considerar que cada pessoa
deve ser útil ao "mercado de trabalho".

V. Na educação atua uma força vital de propagação e conservação de um


tipo definido de "ser homem" ou de "ser mulher". A educação de certa forma
define os gêneros e papéis sociais. O que seja uma conduta masculina ou
conduta feminina de certo modo é uma questão de educação. A definição dos
papéis sociais, todavia, não deve ser autoritária. "A coerção é o pior dos
métodos pedagógicos" - Piaget. Existem exemplos históricos que merecem
ser lembrados. Pestalozzi tratava as crianças como pessoas livres,
autônomas; ele tinha uma crença profunda em uma liberdade natural dos
filhos de Deus. Na escola aberta por Tolstoy para as crianças de seus servos,
nenhuma criança era obrigada a assistir aulas nem obrigada a prestar
atenção. Atualmente, as escolas públicas deveriam reconhecer qual é a
origem do ideal de instrução popular, de instrução para todos, e ver que a
liberdade de consciência era um dos seus princípios, advindos diretamente da
Reforma protestante. "Uma primeira fase do movimento de instrução para o
povo, no Ocidente, teve origem religiosa. Buscava tornar efetiva e
generalizada a leitura direta da Bíblia na língua nacional ou de cada povo,
bem como no livre exame e interpretação dos textos, como reivindicação da
Reforma Protestante. A generalização, contudo, do movimento não se deu
senão quando o Estado julgou ser de seu dever dar a todos um mínimo de
educação, considerado indispensável à participação dos indivíduos na obra
comum nacional" (Anísio Teixeira). Entretanto, mesmo este "mínimo" deve
saber respeitar a autonomia do sujeito. No Brasil, podemos sugerir 3 Metas
do Ministério da Educação: 1-) garantir acesso aos recursos educacionais
existentes a todos aqueles que querem aprender, e não importa em que
momento de suas vidas; 2-) agir de modo que aqueles que querem partilhar
seus conhecimentos possam encontrar os que desejam adquiri-los
espontaneamente; 3-) liberdade de expressão, de diálogo, para que idéias

44
novas possam circular. [Para realizar a primeira meta, bibliotecas,
laboratórios, museus, usinas, fábricas, fazendas, aeroportos, lugares
públicos, deveriam ser acessíveis às pessoas que desejassem se familiarizar
com eles...] Uma lista de "repertório de conhecimentos" poderia estar à
disposição dos cidadãos... (nesse caso é fundamental a existência de um
banco de dados acessível pela internet). Em cada cidade, qualquer indivíduo
poderia conhecer quem possui os mesmo interesses, e assim poderia formar
grupos livres de estudo. Uma "rede de parcerias" que permitiria ao aluno
indicar o domínio que lhe interessa e encontrar um companheiro... Os
educadores profissionais, por sua vez, indicariam seu endereço ou local do
curso, bem como as condições de acesso aos seus serviços. Esse seria um
modelo de desburocratização do ensino. Aliás, o estudo só é vantajoso
quando é voluntário. "É o interesse verdadeiro o que determina a sua
capacidade de estudo. Não é o seu QI." - Olavo de Carvalho. Quem estuda
sob pressão estuda mal.

VI. Em algumas sociedades, as crianças e adolescentes aprendem a caçar,


pescar, a fabricar o arco e a flecha, e outras atividades "manuais". Em outras
sociedades, impera um tipo de educação que enfatiza a alfabetização. O ideal
grego proporcionava instrução física e intelectual. "As crianças devem, antes
de tudo, aprender a nadar e a ler..." - Sólon, legislador e político grego.
Pestalozzi, já na era moderna industrial, se esforçou por introduzir as
crianças na racionalidade econômica (ligação Escola-Indústria) e, ao mesmo
tempo, contribuir para que cada uma delas desenvolvesse sua personalidade
autônoma em uma sociedade de liberdade e responsabilidade. O ofício
livremente escolhido seria um modo de encontrar nessa realização o
desenvolvimento pleno de si mesmo. O trabalho contribui para o
desenvolvimento humano; o trabalho é necessário e enobrece o homem...
tais argumentos atravessaram todo o século XIX. No mundo pós-moderno de
computadores e robôs, a cibernética parece substituir o trabalhador
industrial, e a educação passa a ser essencialmente uma programação de
tarefas de controle. Se o conteúdo do ensino varia segundo as épocas e as
sociedades, por que ele não poderia variar entre as famílias? Passa longe da
pedagogia libertária proibir os pais de educarem seus filhos em casa,
obrigando-os a mandar seus filhos para escolas "oficiais".

VII. O valor das escolas continua a ser debatido. Para alguns, "são as escolas
a base da civilização" - Domingo Sarmiento. Mas em muitas sociedades os
"alunos" (os jovens, adolescentes, crianças) não aprendem na escola, a
instituição escolar não existe, e se olharmos para o Ocidente, veremos que a
escola também não existia na Roma dos primórdios, da época etrusca ou
monarquista, as primeiras escolas de gramática ou de retórica latina só

45
surgiram na época republicana, muitos séculos depois da mítica época de
Rômulo. Tampouco existem professores especializados nos primeiros tempos
de muitas culturas, e a educação é "difusa e administrada indistintamente
por todos os elementos do clã", como disse Émile Durkheim, acrescentando
que: "Não há mestres determinados, nem inspetores especiais para a
formação da juventude; esses papéis são desempenhados por todos os
anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores". Nesse conjunto certamente
se destacam alguns indivíduos especialmente talentosos, pois é raro um
grupo não conter individualidades dotadas acima da média comum em
determinados ramos do saber social. Na modernidade, houve muita
discussão sobre a organização e os métodos da escola. "A escola ativa supõe
necessariamente a colaboração no trabalho. Na escola tradicional (...) a
comunicação entre alunos é proibida e a colaboração quase inexistente."
(Piaget). Aplicação do princípio do apoio mútuo nas escolas supõe
comunicação colaborativa. Para Makarenko, a escola é uma coletividade.
Cada integrante dessa coletividade precisa reconhecer sua dependência com
relação a ela. Assim, "a prática pedagógica é a organização do coletivo, para
a educação da personalidade no coletivo e, somente, através do coletivo".
Mas essa coletividade escolar não pode ser "forçada", isto é, a participação
não pode ser compulsória. A frequência escolar deveria ser livre. A escola é
um lugar privilegiado entre a família e a sociedade civil, e deveria não só
fomentar na criança a passagem de um universo ao outro, mas também
contribuir para a formação da liberdade individual (pensemos na Educação
estética do homem). Nem simples prolongação da ordem familiar, nem
simples lugar de reprodução da ordem social, a escola deverá manifestar sua
ordem própria através da Pedagogia. Essa relativa independência da escola,
seja em relação à ordem familiar, seja em relação ao Estado ou ao "mercado
de trabalho", dotada de uma ordem que lhe é própria, a "ordem pedagógica",
pode ser direcionada (pelo diretor da escola) no sentido de uma nova ordem
libertária, baseada naturalmente na pedagogia libertária. Entenda-se que
isso só é possível se o diretor da escola não for um escravo do ministério da
educação. Nem sempre isso é possível. Muitos pensadores enxergam na
escola um instrumento de opressão. A classe social, o meio familiar, as
mídias, a escola, as igrejas, o estado têm o papel de modelar o
comportamento e a visão que o indivíduo tem da realidade. Para Illich,
entretanto, a escola é a instituição que escraviza da maneira mais profunda e
mais sistemática. Todos nós sabemos que no Brasil a escola é um veneno. Os
professores em geral são canalhas. A revolta contra os professores é quase
universal. Vocês não podem nos ensinar nada, porque não querem ensinar,
só querem dominar, controlar, doutrinar... "A iconoclastia escolar de Illich
não chegou sequer a arranhar o sistema educacional brasileiro no sentido da
desescolarização..." (J. E. Romão).

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VIII. "Educação do Homem conforme a sua verdadeira natureza, de acordo
com o seu autêntico ser - tal é a genuína paidéia grega" (W. Jaeger). O
modelo clássico ainda contém um grande valor em nossa civilização. E "se a
pedagogia deve moldar o espírito do aluno, há de partir do conhecimento do
aluno e, portanto, da psicologia" - Piaget. Entenda-se que uma educação
"conforme a natureza humana" implica no conhecimento dessa natureza.
Todo ensino requer que quem ensine também aprenda (não só compreenda
a psique de cada aluno, mas se mantenha disposto a aprender da própria
matéria que ensina com os seus alunos). Todavia, os professores em geral
não querem aprender, querem impor, moldar, dominar... É uma caterva de
tarados. Como poderiam transmitir qualquer moralidade? "...nenhuma
realidade moral é completamente inata (...) Não há, portanto, moral sem
educação moral" (Piaget). Se o Brasil é um país assolado pela corrupção, um
país desmoralizado e degradado, isso se deve em boa parte ao baixo nível de
sua "realidade moral", o que implica na sua miserável "educação moral". Na
verdade, a escola é um meio de corrupção da juventude, e seria melhor aos
brasileiros não frequentar as escolas, sobretudo as escolas do governo,
cheias de comunistas fanáticos. Aliás, para Ivan Illich, a aprendizagem é a
atividade humana que menos necessita da intervenção de terceiros, a maior
parte da aprendizagem não é consequência da instrução; o desenvolvimento
cognitivo pessoal não depende, necessariamente, de programas e de
manipulações complexas.

IX. "Ensinar é o ato de facilitar a aprendizagem..." (Skinner). Mas a


aprendizagem do que? O que a criança quer ou precisa aprender? Há 5 tipos
de educação tradicional para os romanos: educação liberal, educação moral,
educação física, educação manual, educação militar... Ela deveria ser
reconstruída na América Latina, em associação com uma verdadeira
educação contra a barbárie... Sarmiento entendia que toda a América do Sul
estava lançada na barbárie... resultado direto do processo colonizador...
Sarmiento fala e age em favor da liberdade e do progresso da América do
Sul, e não somente da Argentina. Isso é muito positivo, em face dos
nacionalismos burros e provincianos que separam os latino-americanos.
Infelizmente, Sarmiente era também um defensor do Estado bedel que
controla toda a educação. Não é dessa forma que deveríamos renovar a
educação tradicional romana (ou latina). Em Roma, a educação era deixada
livre para a iniciativa da própria comunidade. Os responsáveis pela
fiscalização da qualidade do ensino eram os próprios patres famílias.

X. "Na segunda metade do século XIX, difundiu-se, nos países ocidentais, a


ideia de que a escola era um dever do Estado e obrigatória para todo

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cidadão" - Maria Cristina Gomes Machado. Rui Barbosa "foi influenciado pelas
discussões dessa época. Tanto que, empenhado num projeto de
modernização do país, interessou-se pela criação de um sistema nacional de
ensino" (Maria C. Gomes Machado). Rui Barbosa chegou mesmo a defender a
criação de um ministério da educação. "Este deveria organizar as escolas
desde o jardim de infância até a universidade, regulamentando o horário de
seu funcionamento, a duração das aulas, os conteúdos divididos por séries, a
uniformização dos compêndios escolares, a higiene, o método de ensino,
entre outros" (Maria C. G. Machado). Como se pode ver, a liberdade de
ensino "fiscalizada pelo Estado" não é mais liberdade de ensino... "O ensino
oficial não deve embaraçar o ensino livre" (dizia Rui Barbosa). Todavia,
Barbosa era defensor da "obrigatoriedade escolar" e afirmava a necessidade
de sanção penal em caso de descumprimento da lei do ensino obrigatório
(princípio autoritário de educação), exigindo a obrigatoriedade e a cobrança
de multas com possibilidade de pena de prisão... Infelizmente, esse viés não
era comum apenas no Brasil; na Argentina, por exemplo, a mesma noção de
obrigatoriedade era conduzida pelo Estado com o aplauso dos intelectuais
"progressistas"; o chamado ensino primário universal, obrigatório, gratuito e
laico, defendido por Sarmiento, é o fundamento de toda pedagogia fascista e
autoritária, na qual o Estado exerce um controle sobre a mente dos
indivíduos. "A obra de educação escolar comum, para todos, se fazia tendo
em vista aparelhar o homem - todos os homens - com a leitura, a fim de
habilitá-lo à participação na vida cívica e cultural do seu país" - Anísio
Teixeira. Sabemos que por detrás dessa singela campanha de alfabetização
sempre se escondeu um projeto autoritário de controle das massas. O
resultado disso é a miséria mental latino-americana. Toda a putada dos
Ministérios da Educação, toda a putada da Unesco, a putada de senadores
legiferantes da "educação primária universal, gratuita e obrigatória", julgam
saber de antemão (sem conhecer qual criança, que aluno, que pessoa real
será educada) o que deve e como deve ser o ensino e a aprendizagem. O
adestramento, o controle mental e cognitivo, a repressão ou "a engenharia
comportamental sem métodos aversivos", o condicionamento uniforme de
todos, cria o "consumidor-padrão", o "cidadão-massa", o batalhão da liga dos
burros - o resultado final desse "programa". A interferência do Estado na
educação, com sua ambição de controlar os métodos e\ou conteúdos do
ensino deve ser combatida e erradicada!

XI. Procedimentos herdados de uma mentalidade fascista vigoram até hoje


na Educação. Destruir ou reduzir a pluralidade de línguas, de formas de
expressão ou de convívio social, de costumes ou de crenças, é um dos seus
efeitos. Uma luz turva de demência, neurose, violência e revolta se derrama
sobre as escolas, universidades, academias... O uso de drogas tornou-se

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uma norma nas escolas públicas brasileiras. Os jovens se revoltam dando
sinais evidentes de ódio ao conhecimento. "O anti-intelectualismo é, muitas
vezes, um ataque generalizado a tudo o que a educação representa"
(Skinner). Exemplos de "anti-intelectualismo" por parte dos educandos:
Chegar atrasado, faltar às aulas, fugir da escola, não prestar atenção,
esquecimento, comportamento verbal obsceno ou irreverente, barulho
proposital, brincadeiras "fora de hora", piadas, conversas, ataques físicos a
professores, vandalismo, destruição de material escolar, não-colaboração,
indisciplina ("o estudante recusa-se a obedecer"), inatividade, letargia etc.
Estes são alguns dos resultados da educação compulsória. "O controle
aversivo (...) é compatível com as filosofias dominantes de governo e
religião" - Skinner. Sistemas autoritários de pensamento produzem apenas
lixo. Devemos ter em mente que os educadores de hoje são os educandos de
ontem, e que no passado o sistema prisional de ensino era muito pior.
"Naquele tempo, o controle educacional ainda era francamente aversivo. A
criança lia os números, copiava os números, memorizava as tabuadas e
executava as operações com os números para escapar à ameaça da
palmatória ou da vara de marmelo. (...) a criança agia para evitar ou escapar
do castigo" (Skinner).

XII. Demos repudiar os principais mitos da "sociedade escolarizada" (Illich).


Mitos escolares: a) o processo de escolarização produz algo que tem um
valor e, por isso, gera uma demanda; b) o resultado da frequência escolar é
uma aprendizagem que tem um valor; c) o valor da aprendizagem aumenta
com a quantidade de informação que ela contém; d) esse valor é mensurável
e ele pode ser certificado por graus e diplomas. Esse mitos são funcionais
para o capitalismo. A corrida pelas qualificações, pelos diplomas e pelos
certificados se justifica pela idéia de que quanto maiores são as qualificações
educacionais, maiores são as possibilidades de acesso aos melhores
empregos no mercado de trabalho. Para Illich, "eis o mito sobre o qual
repousa, em grande parte, o funcionamento das sociedades de consumo (...)
Se esse mito desaparecer, não somente estará comprometida a
sobrevivência da ordem econômica (...) mas também a da ordem política,
construída sobre o estado-nação, no qual os estudantes são (...)
consumidores-alunos aos quais se ensina a adaptar os seus desejos aos
valores comercializáveis..." A escola vende programas ao consumidor
(aluno), cujas reações são medidas, avaliadas, vigiadas, anotadas etc. Nesse
contexto, tudo gira em torno do mercado de trabalho e do condicionamento
das multidões de alienados. Recordemos que Rui Barbosa defendia a criação
dos jardins de crianças (jardins de infância), que deveriam educar antes que
a criança entrasse para a escola primária - aos sete anos - e atender a um
antigo desejo: o estabelecimento de um lugar no qual os filhos dos

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trabalhadores pudessem ficar abrigados. Frobel, criador dos jardins de
infância, era defensor de uma educação sensorial, mas no Brasil as
chamadas creches são apenas depósitos de crianças. Apesar disso, não sei se
o ideal de Illich é possível enquanto existir a sociedade dividida em classes
sociais. Uma sociedade sem escolas parece ser no fundo uma sociedade sem
classes. É esse o sonho utópico da Anarquia. Enquanto tal modo de vida não
se torna realidade devemos pensar que tipo de educação podemos construir
nas condições atuais do Brasil. Algumas diretrizes básicas seriam:
estabelecer Cursos de Belas Artes (uma educação estética libertária ampla e
gratuita). Colocar a arte ao alcance do Povo. Valorizar o folclore, a arte
popular, a arte étnica (africana, ameríndia etc.). Cursos livres de Ciências
Sociais. Renovação da educação tradicional greco-romana. Formação de
professores libertários. Criação de universidades psicodélicas (estudos de
Xamanismo e Etnomedicina). Pode-se pensar também numa ampla difusão
de cursos de desenho, fotografia e vídeo (uma educação visual). Sobretudo,
e sem demora, deve-se acabar com o "ensino obrigatório". O padrão da
escola pública ficaria mais ou menos assim: Aos sete anos a criança pode
ingressar na escola primária. Curso normal ocorre de manhã cedo (leitura,
escrita, aritmética, as artes liberais); cursos especiais ministrados de tarde e
noite. Aos quinze anos entra-se no ginásio. E aos 18 anos quem for
alfabetizado pode ingressar nas Escolas de Integração Social (que oferecem
trabalho em setores da economia, nas forças armadas ou no funcionalismo
público).

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