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Leonid Ouspensky - O sentido e o conteúdo do Ícone - Parte 1

O sentido e o conteúdo do Ícone derivam dos ensinamentos que a Igreja Ortodoxa formulou
em resposta ao movimento iconoclasta dos séculos VIII e IX.

O fundamento dogmático da veneração dos ícones e o sentido da imagem litúrgica acham-se


revelados sobretudo pela liturgia de duas festas: a da Santa Face e a do Triunfo da Ortodoxia,
festa da vitória do ícone e do triunfo definitivo do dogma da encarnação divina.

Tomaremos como base de nosso estudo o kontakion do Triunfo da Ortodoxia, que é um


verdadeiro ícone verbal da festa. De uma riqueza e profundidade extraordinárias, esse texto
exprime todo o ensinamento da Igreja sobre a imagem. Estima-se que ele não seja posterior ao
século X; mas é possível que ele seja contemporâneo ao cânon da festa. Neste caso, ele
remontaria ao século IX, ou seja, ao momento mesmo do Triunfo da Ortodoxia. Com efeito, o
cânon da festa foi escrito por são Teófano o Marcado[1], confessor da ortodoxia durante o
segundo período iconoclasta. São Teófano foi metropolita de Nicéia e faleceu em 847. Esse
cânon, portanto, terá sido escrito por um homem que participou pessoalmente da luta pelo
ícone. Ele representa a soma de toda a experiência da Igreja, uma experiência concreta, vivida,
da revelação divina, uma experiência que foi defendida ao preço do sangue. Sob uma forma
concisa e exata, ela exprime em três frases, por ocasião do triunfo do ícone, toda a economia
da salvação e, por meio dessa, o ensinamento sobre a imagem e seu conteúdo:

O Verbo indescritível do Pai se fez descritível, ao se encarnar em ti, ó Mãe de Deus,

E, tendo restabelecido em sua dignidade original a imagem manchada, ele a uniu à beleza
divina.

Confessando a salvação, nós expressamos[2] isto pela ação e pela palavra.

A primeira parte desse kontakion exprime o rebaixamento da segunda Pessoa da Santíssima


Trindade e, com isso, a base cristológica do ícone. As palavras seguintes revelam o sentido da
encarnação, a realização do plano divino em relação ao homem e, por conseguinte, ao
universo. Podemos dizer que essas duas primeiras frases explicitam a fórmula patrística: “Deus
se fez homem para que o homem pudesse se tornar deus”. O fim do kontakion expressa a
resposta do homem a Deus, nossa confissão da verdade salutar da encarnação, a aceitação
pelo homem da economia divina e sua participação na obra de Deus, e, por consequência, a
realização de nossa própria salvação: “Confessando a salvação, nós expressamos isto pela ação
e pela palavra”.
O conteúdo da primeira parte do kontakion (“O Verbo indescritível do Pai se fez descritível, ao
se encarnar em ti, ó Mãe de Deus”) pode ser resumido da seguinte maneira: a segunda Pessoa
da Santíssima Trindade se tornou Homem, enquanto permanecia sendo aquilo que era, ou
seja, plenamente Deus, possuindo a plenitude da natureza divina e, em Sua Divindade, “Verbo
indescritível do Pai”. Deus assume a natureza humana que ele próprio criou: Ele empresta da
Mãe de Deus essa natureza humana na sua totalidade e, sem modificar Sua Divindade, sem
misturá-la com a humanidade, se torna simultaneamente Deus e Homem: “O Verbo se fez
carne, a fim de que a carne pudesse se tornar verbo”, segundo a expressão de são Marcos o
Asceta[3]. Este rebaixamento é a kenosis de Deus: Aquele que é absolutamente inacessível à
criatura, que não é nem descritível nem representável de modo algum, se torna descritível e
representável ao assumir a carne do homem. O ícone de Jesus Cristo, do Deus Homem, é uma
expressão pela imagem do dogma da Calcedônia: com efeito, ela representa a Pessoa do Filho
de Deus que se tornou homem, que por Sua natureza divina é consubstancial ao Pai, e por Sua
natureza humana consubstancial a nós, “semelhante a nós em tudo, salvo o pecado”, segundo
os termos desse dogma. Cristo reuniu em Si, durante Sua vida terrestre, a imagem de Deus e a
do escravo de que fala são Paulo[4]. Os homemns que cercavam Cristo não viram Nele mais do
que um homem, quase sempre um profeta. Para os descrentes, Sua Divindade estava oculta
sob a forma do escravo. Para eles o Salvador do mundo não passou de um personagem
histórico, o homem Jesus. Mesmo os discípulos mais amados não viram mais do que uma vez,
antes da Paixão, a Cristo não em sua forma de escravo, mas em Sua humanidade glorificada,
deificada: isso se deu no momento de Sua Transfiguração sobre o monte Tabor. Mas a Igreja
tem “dois olhos para ver”, assim como “dois ouvidos para escutar”. É por isso que num
evangelho escrito com palavras humanas, ela escuta a palavra de Deus. Da mesma forma, ela
considera a Cristo sempre com os olhos de sua fé inquebrantável na Sua Divindade. É por isso
que nos ícones ela o mostra não como um homem comum, mas como o Deus Homem em Sua
glória, inclusive no próprio momento de Sua humilhação suprema. Veremos os meios de que
ela se utiliza para tanto; por ora, basta notar que é justamente por isso que a Igreja ortodoxa
jamais representa em seus ícones a Cristo simplesmente como um homem que sofre física e
psiquicamente, como o faz a arte ocidental.

A imagem do Deus Homem é exatamente aquilo que os iconoclastas não puderam entender,
como vimos. Eles perguntavam como era possível representar as duas naturezas de Cristo.
Ora, os ortodoxos não sonhavam representar como tais nem a natureza divina, nem a natureza
humana de Cristo: o que eles representavam, como dissemos, era Sua Pessoa, a Pessoa do
Deus Homem, unindo em Si essas duas naturezas sem mistura nem divisão.

É típico que o kontakion do Triunfo da Ortodoxia se dirija não a uma das Pessoas da Santíssima
Trindade, mas à Mãe de Deus. Estamos aqui diante de uma expressão da unidade do
ensinamento sobre Cristo e sobre a Mãe de Deus. A encarnação da Segunda Pessoa da
Trindade é o dogma fundamental do cristianismo. Mas a confissão desse dogma não é possível
senão confessando a Virgem Maria como sendo verdadeiramente a Mãe de Deus. Com efeito,
se a negação da imagem humana de Deus conduz logicamente à negação da maternidade
divina, e por isso mesmo à negação do próprio sentido de nossa salvação, o contrário é
igualmente verdadeiro: a existência e a veneração do ícone de Cristo supõe o papel da Mãe de
Deus, cujo consentimento “faça-se em mim segundo sua palavra[5]” foi a condição
indispensável da encarnação e também única em permitir que Deus se tornasse visível e
representável. Segundo os Padres, a representação do Deus Homem se funda precisamente
sobre a humanidade representável de Sua Mãe. “Por ter Cristo nascido do Pai indescritível,
explica são Teodoro Estudita, ele não poderia ter uma imagem. Com efeito, que imagem
poderia corresponder à Divindade cuja representação é absolutamente proibida pela
Escritura? Mas a partir do momento em que Cristo nasceu de uma Mãe descritível, Ele passou
naturalmente a ter uma imagem que correspondia à de Sua Mãe. Se ele não pudesse ser
representado pela arte, isso significaria que ele nascera apenas do Pai e que não teria se
encarnado. Mas isso é contrário a toda a economia divina de nossa salvação[6]”. Essa
possibilidade de representar o Deus Homem segundo a carne que ele emprestou de Sua Mãe
se opõe pelo Sétimo Concílio Ecumênico à ausência de representação de Deus Pai. Os Padres
do Concílio repetiram o argumento magistral do papa são Gregório, contido em sua carta ao
imperador Leão o Isauriano: “Por que não descrevemos nós, nem representamos, o Pai do
Senhor Jesus Cristo? Porque não sabemos o que Ele é (...) Se nós O tivéssemos visto como
vimos e conhecemos Seu Filho, poderíamos tentar descrevê-Lo e representá-Lo por meio da
arte[7]”.

Esse raciocínio do Concílio, assim como as palavras de santo Teodoro Estudita tocam num
assunto de grande atualidade para nós e de grande importância dogmática, a saber, a
representação de Deus Pai que existe na prática eclesiástica. O pensamento humano, sabemos
nós, nem sempre está à altura da iconografia autêntica. Dentre outros erros, encontramos a
imagem de Deus Pai que se espalhou pela Igreja ortodoxa especialmente depois do século
XVII. Voltaremos a essa questão quando analisarmos em mais detalhes a interdição da imagem
de Deus Pai pelo Grande Concílio de Moscou em 1666-1667. Aqui nos limitaremos a algumas
considerações de princípio referentes aos textos que citamos.

Como vimos, o Sétimo Concílio fala da ausência de imagens de Deus Pai, não encarnado,
invisível e por conseguinte não representável; ele sublinha a diferença entre a
representabilidade do Filho por ter Este se encarnado, e a impossibilidade de representar o
Pai. Podemos concluir daí que o Concílio confirmou essa impossibilidade de figurar a Deus Pai
do ponto de vista doutrinal da Igreja. Voltamos com isso ao realismo evangélico, base de toda
a iconografia ortodoxa. Evidentemente, podemos representar não importa quem, pois a
fantasia humana não tem limites. Mas o fato é que nem tudo é representável. Muitas coisas
referentes a Deus, não apenas não são representáveis pela imagem, nem podem ser descritas
pela palavra, mas são mesmo absolutamente inconcebíveis para o homem. É precisamente
sobre esse caráter inconcebível, incognoscível de Deus Pai, que o Concílio se baseia ao falar da
impossibilidade de termos Sua imagem. Não temos senão uma chave para o conhecimento da
Santíssima Trindade: conhecemos o Pai por intermédio do Filho, pois “quem Me vê, vê Aquele
que Me enviou[8]”, e “quem Me viu, viu o Pai[9]”; e o Filho pelo Espírito Santo, pois “ninguém
pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’ se não for pelo Espírito Santo[10]”. Assim, nós só representamos
aquilo que nos foi revelado: a Pessoa encarnada do Filho de Deus, Jesus Cristo. O Espírito
Santo é representado tal qual se manifestou: sob a forma de uma pomba na Teofania, sob a
forma de línguas de fogo no Pentecostes, etc.

Se a primeira parte do kontakion fala da encarnação divina enquanto fundamento do ícone, a


segunda parte exprime, como dissemos, o sentido da encarnação e, por isso mesmo, o sentido
e o conteúdo da imagem neotestamentária: “Tendo restabelecido em sua dignidade original a
imagem manchada, ele a uniu à beleza divina”.

Isso significa quem em Sua encarnação, o Verbo de Deus recriou e renovou no homem a
imagem divina manchada pela queda de Adão[11]. Cristo, o novo Adão, primícias da nova
criatura, do homem celeste, conduz o homem ao objetivo para o qual o primeiro Adão foi
criado. Para atingir esse objetivo era preciso retornar à origem, ao ponto de partida de Adão.
Na Bíblia lemos: “Deus disse: façamos o homem à Nossa imagem, segundo Nossa
semelhança[12]”. Portanto, segundo o plano da Santa Trindade, o homem deve ser não
apenas a imagem de seu Criador, mas ainda uma imagem semelhante, ele deve assemelhar-se
a Deus. Mas a descrição no Gênese do ato criador realizado não menciona mais a semelhança:
“Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou[13]”. Ou ainda: “Quando Deus
criou Adão, Ele o criou à imagem de Deus”, kat’eikona Theou[14]. Podemos dizer que o texto
insiste sobre o termo “imagem”, repetindo-o, enquanto que a ausência da palavra
“semelhança” fica bastante evidente[15].

O significado do relato bíblico sobre o projeto da Santíssima Trindade, de criar o homem “à


imagem e semelhança” de Deus, e sobre a criação “à imagem de Deus”, é comentado pelos
Padres no sentido de que o homem, criado à imagem de Deus, está, por conseguinte, chamado
a realizar a semelhança divina. Ser feito à imagem de Deus implica ter a possibilidade de
adquirir esta semelhança. Dito de outro modo, ser à semelhança de Deus é algo assinalado ao
homem como uma tarefa dinâmica a ser cumprida.

É por meio do batismo que a graça restaura a imagem de Deus no homem decaído; quanto à
semelhança divina, a graça a desenha mais tarde, junto com os esforços do homem para
adquirir as virtudes cujo ápice é o amor, traço supremo da semelhança com Deus. “Assim
como os pintores traçam primeiro com uma só cor o esboço do retrato, e depois, fazendo
florescer uma cor depois da outra, aumentam a semelhança do retrato com seu modelo (...)
também a graça de Deus começa a refazer no batismo a imagem tal como era quando o
homem chegou à existência. Depois, quando ela nos vê aspirar com toda nossa vontade à
beleza da semelhança (...) então, fazendo florescer virtude sobre virtude, elevando a beleza da
alma de glória em glória, ela a faz adquirir a marca da semelhança[16]”.
Ora, o homem é um “pequeno mundo”, um microcosmo. Ele é o centro da vida criada e, por
conseguinte, sendo a imagem de Deus, ele é a via através da qual Deus age sobre a criatura. É
precisamente nessa imagem divina que se revela o sentido cósmico do homem. É pelo homem,
através do homem, que a criatura participa da vida espiritual. Colocado por Deus à frente de
todas as criaturas visíveis, o homem deveria realizar em si mesmo a união e a harmonia de
tudo e unir todo o universo a Deus, fazendo dele um organismo homogêneo no qual Deus
venha a ser “tudo em todas as coisas”, pois o objetivo final da criação é a sua transfiguração.

Mas o homem não cumpriu sua vocação. Ele se desviou de Deus; então a tensão de sua
vontade enfraquecida e a inércia de sua natureza encobriu seu impulso para Deus. Isso
provocou uma desagregação dessa microcosmo que é o homem, arrastando consigo
necessariamente em seguida a desagregação cósmica, acarretando uma catástrofe em toda a
criação. Todo o mundo visível foi mergulhado na desordem, na luta, no sofrimento, na morte,
na corrupção. Esse mundo deixou de refletir fielmente a beleza divina, porque a imagem divina
– o homem – inscrita no seu centro se obscureceu. Aconteceu assim exatamente o contrário
da vocação do homem. No entanto, o desígnio de Deus não se alterou, e a tarefa que o
homem decaído, incapaz de restabelecer com suas próprias forças a natureza em sua pureza
primitiva, não mais pôde cumprir, foi realizada afinal pelo novo Adão, Cristo. “O homem, tal
como Deus criara, deixou de existir no mundo; já não era possível que alguém se tornasse
como Adão era antes da queda. Mas era preciso que tal homem existisse. Assim é que Deus,
desejando ter um homem tal como havia criado Adão no princípio, enviou (...) sobre a terra
Seu Filho único que, tendo vindo, se encarnou e assumiu a humanidade perfeita a fim de ser
um Deus perfeito e um Homem perfeito, e a fim de que a Divindade pudesse encontrar assim
um homem digno dela. Eis o Homem – ecce homo: jamais houve outro parecido, não há, nem
haverá. Mas por que Cristo se tornou assim? Para guardar a lei de Deus e Seus mandamentos,
e para lutar e vencer o demônio[17]”. Para salvar o homem do império do pecado original, era
preciso um homem tal como Deus criara no princípio, ou seja, sem pecado, pois o pecado é
uma coisa exterior, sobreposta à natureza humana, uma invenção da vontade criada, segundo
são Gregório de Nisse, uma renúncia voluntária da criatura à plenitude da vida.

A encarnação do Filho de Deus não constitui apenas a recriação do homem em sua pureza
primitiva, mas também a realização daquilo que o primeiro Adão não pôde cumprir. Os Padres
do Sétimo Concílio Ecumênico disseram: “Deus recriou o homem na imortalidade, concedendo
assim a ele um dom que já não pode ser-lhe retirado. Essa recriação foi mais semelhante a
Deus e melhor do que a primeira criação, porque se trata de um dom eterno”. Esse dom de
imortalidade consiste na possibilidade de aceder à beleza, à glória divina. “Ele o uniu à beleza
divina”, diz o kontakion. Ao assumir a natureza humana, Cristo a impregnou com sua graça,
fazendo-a participar da vida divina, e franqueou ao homem o caminho para o Reino de Deus, a
via da deificação, da transfiguração. Pela vida perfeita de Cristo a imagem divina no homem foi
restituída. Pela paixão livremente aceita, ele destruiu o poder do pecado original e conduziu o
homem a realizar a tarefa para a qual este havia sido criado: a semelhança divina. Em Cristo
essa semelhança se acha realizada num grau total, perfeito, pela deificação da natureza
humana. Com efeito, a deificação significa uma concórdia perfeita, uma união total da
humanidade com a Divindade, da vontade humana com a Vontade divina – sua sinergia. É por
isso que a semelhança divina só é possível para um homem renovado, no qual a imagem de
Deus se encontra purificada e reconstituída. Essa possibilidade se realiza em certas faculdades
da natureza humana, e acima de tudo na liberdade. A aquisição da natureza divina não é
possível sem a liberdade, pois ela se realiza num contato vivo entre Deus e o homem. O
homem penetra consciente e livremente no desígnio da Santíssima Trindade e cria em si
próprio sua semelhança a Deus, na medida das suas possibilidades e com a ajuda do Espírito
Santo. Daí vem o termo eslavo prepodobny, que significa literalmente “muito semelhante”, e
que se aplica ao tipo monástico de santidade[18]. O renascimento do homem consiste em
mudar o “estado humilhado atual” de sua natureza, fazendo-a participar da vida divina, pois,
segundo a expressão clássica de são Gregório o Teólogo (que repete são Basílio o Grande) “o
homem é uma criatura, mas ele recebeu ordens para se tornar deus”. Daí por diante, ao seguir
a Cristo, integrando-se em Seu Corpo, o homem pode restabelecer em si a semelhança divina e
fazê-la irradiar sobre o universo. Segundo as palavras de são Paulo, nós, que “contemplamos
como em um espelho a glória do Senhor, nos transformamos nessa mesma imagem, de glória
em glória[19]”. Quando a pessoa humana atinge esse ponto, ela participa da vida divina e
transforma sua própria natureza. O homem se torna filho de Deus, templo do Espírito
Santo[20]; aumentando os dons da graça, ele ultrapassa a si mesmo e se torna mais elevado
do que foi Adão antes da queda, pois não apenas ele retorna à pureza do homem primitivo,
como ainda ele se deifica, se transfigura, “se une à beleza divina”: ele se torna deus segundo a
graça.

Essa ascensão do homem inverte o processo da queda e começa a libertar o universo da


desordem e da corrupção: pois a deificação adquirida por um santo constitui as primícias da
transfiguração cósmica por vir.

A imagem de Deus no homem é inapagável e o batismo não faz mais do que restabelecê-la e
purificá-la. Mas a semelhança com Deus pode aumentar ou diminuir, pois, sendo livre, o
homem pode se afirmar em Deus ou contra Deus; ele pode, se quiser, se tornar “filho da
perdição”. Então a imagem de Deus se obscurece nele, e ele pode realizar em sua natureza
uma dissemelhança abjeta, uma “caricatura” de Deus.

A transfiguração por vir da totalidade da natureza humana, incluindo-se aí a do corpo, nos foi
revelada por aquela do Senhor no monte Tabor: “Ele se transfigurou diante deles: Seu rosto
resplandeceu como o sol e Suas vestes se tornaram brancas como a luz[21]”. O Senhor
apareceu a seus discípulos não mais sob Sua “forma de escravo”, mas como Deus. Todo o
corpo de Cristo se transfigurou, tornando-se, por assim dizer, a veste luminosa de Sua
Divindade. Na transfiguração sobre o monte Tabor “não apenas a Divindade apareceu aos
homemns, mas também a humanidade apareceu na glória divina[22]”. E os Padres do Sétimo
Concílio Ecumênico explicam: “No que diz respeito ao caráter da Transfiguração, ela aconteceu
não de modo a que o Verbo tenha deixado a natureza humana, mas sim pela iluminação dessa
imagem humana por Sua glória[23]”. Ou ainda, segundo as palavras de são Gregório Palamas,
“Cristo não assumiu nada de estranho na ocasião, nem tomou um novo estado, mas
simplesmente revelou aos seus discípulos aquilo que Ele é[24]”. A transfiguração consistiu
numa manifestação perceptível para o ser humano em sua totalidade, da glória divina da
segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que, em Sua encarnação, permaneceu inseparável de
Sua natureza divina, comum ao Pai e ao Espírito Santo. Unidas hipostaticamente, as duas
naturezas de Cristo permanecem distintas uma da outra – elas permanecem “sem mistura
nem confusão”, segundo os termos da definição dogmática de Calcedônia – mas as energias
divinas penetram a humanidade de Cristo e são elas que fazem resplender Sua natureza
humana, transfigurando-a pelo brilho da luz incriada. É o “Reino de Deus surgindo que sua
força[25]”. Segundo os Padres, Cristo mostrou aos discípulos o estado deiforme para o qual
são chamados todos os homemns. Assim como o corpo de nosso Senhor foi glorificado e
transfigurado, resplandecendo de glória divina e de luz indizível, também os corpos dos santos
são glorificados e se tornam luminosos ao se transfigurar pela força da graça divina. É essa
semelhança do homem para com Deus que são Serafim de Sarov não apenas explicou, como a
revelou diretamente, visivelmente, a Motovilov, ao se transfigurar diante de seus olhos[26].
Outro santo, Simeão o Novo Teólogo, descreveu sua própria experiência dessa iluminação nos
seguintes termos: “Neste estado, ele se inflamou pelo Espírito e se tornou inteiramente de
fogo em sua alma; assim ele comunicou ao seu corpo seu próprio brilho, do mesmo moo como
o fogo material comunica ao ferro sua própria natureza[27]”.

Ora, assim como o ferro, ao se tornar fogo, permanece ferro, mas purificado, também a
natureza humana, em contato com a graça, permanece inteira, sendo o que ela é: nada nela se
perde. Ao contrário, ela se purifica como o ferro em contato com o fogo. A graça penetra essa
natureza, se une a ela, e o homem começa desde aqui de baixo a vida do século futuro. É por
isso que podemos dizer que um santo é mais plenamente homem do que um pecador: ele está
livre do pecado que, essencialmente, é estranho à natureza humana; ele realiza o sentido
primordial de sua existência: ele se veste da beleza incorruptível do Reino de Deus, de cuja
construção ele participa por meio de sua própria vida. É por isso que a beleza, tal como é
concebida pela Igreja Ortodoxa, não é a beleza própria da criatura em seu estado atual; ela é
um atributo do século futuro, quando Deus será tudo em todas as coisas. “O Senhor entrou em
Seu reino, ele se revestiu se esplendor (beleza)”, diz o prokimenon das matinas[28] do
domingo, dia que é uma imagem da vida eterna por vir. São Denis o Areopagita chama Deus de
“beleza”, porque, por um lado, Deus confere a toda criatura uma beleza que lhe é própria, e,
de outro lado, Ele a reveste de outra beleza ainda, da própria “beleza divina”. Cada criatura
traz sobre si o selo de seu Criador. Mas esse selo ainda não consiste na semelhança divina, mas
apenas na beleza própria a cada criatura[29]. Para o homem, ela pode ser um meio, um
caminho para se aproximar de Deus. Com efeito, segundo são Paulo, “as perfeições invisíveis
de Deus, Seu poder eterno e Sua Divindade, são vistas pelo olho desde a criação do mundo,
quando as consideramos em Suas obras[30]”. Para a Igreja, porém, o valor e a beleza do
mundo visível não estão no esplendor passageiro de seu estado atual, mas na sua
transfiguração potencial, realizada pelo homem. Dito de outro modo, a verdadeira beleza é a
irradiação do Espírito Santo, a santidade, a participação no século por vir.

É assim que a segunda parte do kontakion nos conduz à compreensão patrística do ícone e nos
permite captar o sentido profundo do cânon 82 do Concílio Quinisexto. “Sobre os ícones, diz o
patriarca são Germano, representamos a carne santa do Senhor[31]”. Os Padres do Sétimo
Concílio Ecumênico explicam isso nos seguintes termos: “Ainda que a Igreja católica
represente a Cristo em Sua forma humana (morphè) por meio de uma pintura, ela não separa
Sua carne da Divindade à qual esta está unida (...) Quando realizamos o ícone do Senhor,
confessamos Sua carne deificada e não reconhecemos no ícone nada senão uma imagem que
representa uma semelhança com o protótipo. É por isso que o ícone recebe seu nome; é
unicamente nisso que ele aí participa e por isso ele é venerado e santo[32]”.

São Teodoro o Estudita explica isso com mais clareza ainda: “A representação de Cristo, diz ele,
não está na semelhança de um homem corruptível, coisa que é condenada pelo apóstolo, mas
na semelhança do homem não corruptível, como Ele próprio já o dissera, precisamente
incorruptível (...) pois Ele não é simplesmente um homem, mas Deus feito Homem[33]”.

Essas palavras de são Teodoro o Estudita e dos Padres do Sétimo Concílio, explicando o
conteúdo do ícone, são como uma réplica às palavras de são Gregório o Teólogo sobre a
confissão do Deus Homem: “Assim como não nos invejam em nossa salvação integral e que
não entregamos ao Salvador apenas os ossos, as veias e o aspecto humano exterior (...).
Conserve o homem inteiro, e acrescente a Divindade[34]”.

Comparando os textos citados, vemos que a tarefa da imagem neotestamentária, tal como a
compreendem os Padres, consiste precisamente em manifestar o mais fiel e completamente
possível a verdade da encarnação divina, na medida em que isso pode ser feito por intermédio
dos meios da arte. A imagem do Homem Jesus é a imagem de Deus; é por isso que os Padres
do Sétimo Concílio disseram, tendo em vista Seu ícone: “No mesmo Cristo, contemplamos
simultaneamente o indizível e o representado[35]”.

Como vemos, o ícone representa não a carne corruptível destinada à decomposição, mas a
carne transfigurada, iluminada pela graça, a carne do século futuro[36]. Ele transmite por
meios materiais, visíveis aos olhos carnais, a beleza e a glória divinas. É por isso que os Padres
dizem que o ícone é venerável e santo, precisamente porque ele transmite o estado deificado
de seu protótipo e traz seu nome, e é por isso que a graça, própria ao seu protótipo, se
encontra aí presente. Dito de outra maneira, é a graça do Espírito Santo que suscita a
santidade, tanto da pessoa representada como de seu ícone, e é neste que se opera a relação
entre o fiel e o santo, por intermédio do ícone deste último. O ícone participa, por assim dizer,
da santidade de seu protótipo e, por meio do ícone, nós participamos dessa santidade em
nossa prece.

Os Padres do Sétimo Concílio distinguiam cuidadosamente o ícone do retrato: este representa


um ser humano qualquer; aquele, um homem unido a Deus. Ele se distingue assim do retrato
por seu próprio conteúdo, e esse conteúdo cria formas de expressão específicas, próprias
apenas ao ícone e que o distinguem de qualquer outra imagem. O ícone indica a santidade de
tal maneira a que ela não seja nem subentendida, nem sobreposta por nosso pensamento,
mas que seja visível aos nossos olhos carnais. Imagem da santificação do homem, ele
representa a realidade que se revelou na transfiguração sobre o Monte Tabor. É por isso que
os textos litúrgicos, sobretudo para a festa da Santa Face em 16 de Agosto estabelecem um
paralelo entre o conteúdo do ícone e a transfiguração: “Caindo por terra sobre a montanha, os
maiores dentre os apóstolos se prosternaram vendo o Senhor revelar a aurora da claridade
divina; e hoje somos nós que nos prosternamos diante da Santa Face que resplandece mais do
que o sol...”; ou ainda: “Tendo iluminado a imagem humana entenebrecida, ó Criador, Tu a
mostrou sobre o Monte Tabor a Pedro e aos filhos do Trovão (...). E hoje, abençoa-nos e
santifica-nos, Tu que amas aos homemns, pela claridade, Senhor, de Tua imagem
puríssima[37]”. Esse paralelo, que poderia ser ilustrado por outros textos litúrgicos,
certamente não é fruto de uma simples imaginação poética; isso seria incompatível com a
inspiração divina dos textos litúrgicos. Trata-se precisamente de uma indicação do conteúdo
espiritual do ícone. O ícone do Senhor nos manifesta o que foi revelado aos apóstolos sobre o
Monte Tabor; não contemplamos apenas a face de Jesus Cristo, mas também Sua glória, a luz
da divina Verdade tornada visível ais nossos olhos pela linguagem simbólica do ícone, “a
realização marcada aos olhos de todos pelas pinturas”, segundo os termos do Concílio
Quinisexto.

Essa realidade espiritual do ícone adquire todo seu valor no ensinamento prático da última
frase do kontakion do Triunfo da Ortodoxia: “Confessando a salvação, exprimimos isso (vale
dizer, a economia divina expressa nas duas primeiras frases) pela ação e pela palavra”. Assim,
o kontakion termina com a resposta do homem a Deus, pela aceitação e a confissão da
economia divina da salvação.

É fácil compreender como confessar a salvação pela palavra. E a compreensão pela ação pode
ser compreendida como o cumprimento dos mandamentos de Cristo. Mas aqui não se trata
apenas disso. É no synodikon do Triunfo da Ortodoxia que encontramos a explicação mais clara
dessas palavras. Esse synodikon contém uma série de anátemas em relação aos hereges
iconoclastas e uma série de proclamações de eterna memória aos defensores da ortodoxia.
Entre outros, o parágrafo 3 proclama “a memória eterna aos que creram e provaram suas
palavras com escritos e suas ações por meio de representações, para a difusão e a afirmação
da verdade, pelas palavras e pelos ícones”. As representações implicam assim justamente
ações que devem ser representadas; mas a criação de imagens constitui também uma ação; e
esta última palavra, no kontakion, se reveste de um duplo sentido: as ações são tanto
interiores como exteriores. Dito de outra maneira, ele resume a experiência vivida pela Igreja,
experiência expressa em palavras ou em imagens pelos homemns que a adquiriram – os
santos. De um lado, o homem pode restabelecer, na graça e pela graça do Espírito Santo, sua
semelhança para com Deus, transformar a si mesmo por meio de um trabalho interior
(a praxis espiritual), fazer de si mesmo um ícone vivo de Cristo. É o que os Padres denominam
“vida ativa”. Por outro lado, o homem também pode, pelo bem dos outros, traduzir seu estado
santificado em imagens, tanto visíveis como verbais: “Nós expressamos isto pela ação e pela
palavra”. Portanto, o homem pode criar também um ícone exterior, servindo-se da matéria
que o cerca e que foi santificada pela vinda de Deus sobre a terra. Certamente é possível
expressar o estado interior apenas por palavras, mas pela representação esse estado é
manifestado e visivelmente confirmado, ele é mostrado: a palavra e a imagem “indicam uma à
outra”, segundo o oros do Sétimo Concílio.

Tudo o que dissemos sobre o conteúdo do ícone pode ser comparado a um texto da Primeira
Epístola de são Paulo aos Coríntios[38]. Ele compara nosso corpo mortal com uma semente
lançada sobre a terra. No decurso da vida presente essa semente deve germinar, ou seja,
entrar numa certa medida na vida por vir; nós devemos entrar na vida do século futuro, a fim
de desabrocharmos na ressurreição geral na forma que Deus quiser nos conceder. “O corpo é
semeado corruptível; ele ressuscita incorruptível. Ele é semeado desprezível, e ressuscita
glorioso; ele é semeado enfermo, e ressuscita cheio de força; ele é semeado animal, e
ressuscita como corpo espiritual[39]”. Cristo, o novo Adão, renovou, recriou na imortalidade
nossa natureza humana: “O primeiro Adão se tornou uma alma viva, e o último Adão, um
espírito vivificante. Mas o que é espiritual não é o primeiro, que é animal; o espiritual veio
depois. O primeiro homem extraído da terra é terrestre; o segundo homem é o Senhor do céu.
Assim o terrestre, assim também os terrestres; e assim o celeste, assim também os celestes. E,
assim como trazemos a imagem do terrestre, traremos também a imagem do celeste. O que
eu digo, irmãos, é que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção
pode herdar a incorruptibilidade[40]”. E um pouco adiante o apóstolo diz: “Pois é preciso que
este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade, e que este corpo mortal se revista de
imortalidade[41]”. A luz da transfiguração sobre o Monte Tabor é desde já a glória do século
futuro; pois a força que ressuscita os santos depois de sua morte é o Espírito Santo que, no
decurso de suas vidas terrestres, vivificou não apenas suas almas, mas também seus corpos. É
por isso que dizemos que o ícone transmite não o rosto banal e cotidiano do homem, mas seu
rosto glorioso e eterno. Pois o sentido mesmo e a razão de ser do ícone consistem
precisamente em mostrar os herdeiros da incorruptibilidade, os herdeiros do Reino de Deus,
do qual eles são as primícias desde suas vidas terrestres aqui em baixo. O ícone é a imagem de
um homem no qual a graça está realmente presente, consumindo as paixões e santificando
tudo. É por isso que sua carne é representada essencialmente diferente da carne comum e
corruptível. O ícone é uma transmissão sóbria, absolutamente desprovida de qualquer
exaltação, de uma dada realidade espiritual. Se a graça ilumina o homem por inteiro, se modo
a que todo seu ser espiritual e físico é tomado pela prece e permanece na luz divina, o ícone
fixa de modo visível este homem que se tornou um ícone vivo, uma semelhança verdadeira de
Deus. O ícone não representa a Divindade: ele indica a participação do homem na vida
divina[42].

Existe assim uma ligação orgânica entre a veneração dos santos e a dos ícones. É por isso que
nas religiões que renunciaram ao culto dos santos, a imagem sacra também não existe, como
vemos no caso do protestantismo, e onde a concepção de santidade difere daquela da
ortodoxia, a imagem se afasta da Tradição.

A análise do kontakion do triunfo da Ortodoxia nos leva a uma compreensão mais clara do
duplo realismo da imagem sagrada neotestamentária. Do mesmo modo como no Deus
Homem, Jesus Cristo, “toda a plenitude da Igreja habita corporalmente[43]”, também a Igreja,
Corpo de Cristo, constitui um organismo que é ao mesmo tempo divino e humano. Ela reúne
em si duas realidade: a realidade histórica, terrestre, e a graça do Espírito Santo, a realidade de
Deus e a realidade do mundo. A razão de ser da arte sacra é justamente de fornecer um
testemunho visível dessas duas realidades: ela é realista nos dois sentidos, e é nisso que o
ícone se distingue de qualquer outra imagem, assim como um texto sagrado se distingue de
qualquer outra obra literária.

Em relação à representação de Cristo, dos santos e dos acontecimentos da História Sagrada, a


Igreja preserva piedosamente a realidade histórica. Somente a submissão à história mais
concreta pode fazer do ícone, para nós, a possibilidade de um encontro na graça do Espírito
Santo com aquele a quem ele representa. “Convém, escrevia o santo patriarca Tarásio ao
imperador e à imperatriz, aceitar os preciosos ícones de nosso Senhor Jesus Cristo, pois Ele se
tornou um homem perfeito, desde que esses ícones tenham sido pintados com exatidão
histórica, conforme o relato do Evangelho[44]”. Os traços característicos dos santos serão
assim preciosamente conservados e somente essa fidelidade à verdade histórica permite à
iconografia dos santos ser tão estável. Com efeito, não se trata apenas de transmitir uma
imagem consagrada pela Tradição, mas, acima de tudo, de preservar uma ligação direta e viva
com a pessoa representada no ícone. Por isso é essencial se manter, na medida do possível,
dentro dos traços que a caracterizam. Claro, nem sempre isso é possível: assim como as vidas
dos santos, seus traços costumam ser mais ou menos esquecidos e é difícil reconstituí-los. A
semelhança corre o risco de não ser perfeita; e a inabilidade do artista pode piorar ainda mais
as coisas. Mas ela jamais desaparece por completo: um mínimo irredutível sempre subsiste,
permitindo manter a ligação com o protótipo do ícone. Como escreveu são Teodoro Estudita,
“mesmo quando não podemos ver no ícone uma imagem perfeitamente conforme ao original
por causa da imperfeição do trabalho, nossas palavras não conterão nenhum contrassenso;
pois a veneração ao ícone é testemunhada não na medida em que lhe falta a semelhança com
seu protótipo, mas na medida em que ele se lhe assemelha[45]”. Dito de outra maneira, neste
caso, o que é essencial, não é a falta de semelhança do ícone ao seu protótipo, mas aquilo que
ele guarda ainda em comum com ele. O iconógrafo pode, em alguns casos de necessidade, se
limitar a alguns traços típicos. Porém, na maioria dos casos a fidelidade ao original é tal que
um fiel ortodoxo reconhece facilmente nos ícones os santos mais venerados, sem falar de
Cristo e da Virgem. E mesmo se um dado santo lhe for desconhecido, ele sempre poderá dizer
a qual ordem de santidade ele pertence, se mártir, hierarca, monge, etc.

A Igreja ortodoxa jamais tolerou a pintura de ícones segundo a imaginação do pintor ou a


partir de um modelo vivo, pois isso significa uma ruptura consciente e total com o protótipo;
desse modo, o nome que o ícone recebe já não corresponderia mais à pessoa representada e
isso constituiria uma mentira flagrante que a Igreja não pode tolerar (embora as violações
dessa regra, ou antes, o abuso, têm sido infelizmente frequentes no decurso dos últimos
séculos). A fim de evitar a ficção e a ruptura da imagem e seu protótipo, os iconógrafos se
servem de ícones antigos e de manuais como modelos. Os antigos iconógrafos conheciam o
rosto dos santos tão bem como os dos seus próximos. Eles os pintavam, seja de cor, seja
servindo-se de esboços ou retratos. Com efeito, desde que uma pessoa adquiria uma
reputação de santidade, logo após sua morte e às vezes bem antes de sua canonização oficial e
do inventário de suas relíquias, era feita sua imagem para distribuir entre o povo crente[46].
Essas imagens conservavam todos os ensinamentos e, principalmente, os croquis e os
testemunhos dos contemporâneos[47].

Mas, como sabemos, a mera realidade histórica, mesmo a mais exata, não constitui um ícone.
A partir do momento em que a pessoa representada é portadora da graça divina, o ícone deve
nos indicar sua santidade. De outro modo, ele não teria sentido. Se ao representar o aspecto
humano de Deus encarnado o ícone só nos mostrasse a realidade história, como se fosse uma
fotografia, isso significaria que a Igreja vê a Cristo pelos mesmos olhos da multidão descrente
que a cerca. Mas, segundo o comentário de são Simeão o Novo Teólogo, as palavras de Cristo:
“Quem me viu, viu o Pai[48]”, não se endereçavam senão àqueles que, olhando o homem
Jesus, ao mesmo tempo contemplavam Sua Divindade. “Com efeito, se concebêssemos essa
visão em relação ao aspecto do corpo, então aqueles que o crucificaram e cuspiram Nele
também teriam visto o Pai; assim, não haveria nenhuma diferença ou preferência entre
incréus e crentes, pois todos teriam atingido, e evidentemente atingirão, essa beatitude
desejada[49]”.

“O Cristo “histórico”, “Jesus de Nazaré”, tal como apareceu aos olhos das testemunhas
estrangeiras, o Cristo exterior à Igreja é sempre ultrapassado na plenitude da revelação
concedida aos verdadeiros testemunhos, aos filhos da Igreja iluminados pelo Espírito Santo. O
culto da humanidade de Cristo é estranho à tradição oriental, ou antes, essa humanidade
deificada se reveste aqui da forma gloriosa na qual os discípulos o viram sobre o Monte Tabor
– a humanidade de Cristo que tornou visível a Divindade comum ao Pai e ao Espírito
Santo[50]”. A contemplação da Igreja se distingue da visão profana precisamente pelo de que
no visível ela contempla o invisível, e no temporal o eterno, que ela nos revela em seu culto,
do qual o ícone faz parte. Assim como o próprio culto, o ícone é uma revelação da eternidade
dentro do tempo. É por isso que na arte sacra o retrato naturalista de um homem não pode
ser mais do que um documento histórico; ele de modo algum pode substituir a imagem
litúrgica, o ícone.

O ícone, como dissemos, exprime a experiência espiritual da santidade, e nele vemos a mesma
autenticidade que existe na transmissão da realidade histórica; estamos “rodeados por uma
nuvem de testemunhos”, segundo a expressão de são Paulo[51], testemunhos que nos
comunicam sua experiência de santificação: “Seria melhor, diz são Simeão, designar essas
palavras como um relato das coisas vistas, enquanto que o termo conceito (noema) deve ser
aplicado a um pensamento que o intelecto faz nascer[52]”. E, com efeito, somente uma
experiência pessoal vivida pode fazer nascer as palavras, as formas, as cores ou as linhas que
correspondem realmente àquilo que elas exprimem. “Todo homem, continua são Simeão, ao
fazer uma exposição sobre algo, como por exemplo uma casa, uma cidade, algum palácio (...)
ou ainda um teatro (...) deve antes ter visto e apreendido a fundo seu conteúdo; somente
então ele poderá falar com verossimilhança. Pois, se ele nada viu antes, que poderá ele dizer
de sua própria criação? (...) Portanto, se ninguém pode dizer ou descrever coisa alguma a
propósito de coisas visíveis e terrestres, sem ter sido sua testemunha ocular, como poderia
alguém ter poder para falar (...) sobre Deus, sobre as coisas divinas e mesmo sobre os santos e
servidores de Deus, e sobre a visão de Deus que vem a eles indizivelmente? É esta que produz
inteligivelmente no coração um poder inexprimível, embora a palavra humana não nos
permita dizer nada de antemão, a menos que tenhamos sido primeiro iluminados pela luz do
conhecimento[53]”.

***

[1] Teófano e seu irmão Teodoro, os Marcados, foram embaixadores da Ortodoxia perante o
Imperador iconoclasta Teófilo, no ano de 836, que os torturou e mandou escrever com ferro
em brasa sobre seus rostos versos de louvor ao iconoclasmo, de onde derivou sua alcunha
de Γραπτοί, “marcados”.

[2] Mais precisamente, nós “figuramos”, “colocamos em imagem” isso, pela ação e a palavra.

[3] Carta ao monge Nicolas, Filocalia, tomo I.

[4] Filipenses 2: 6-7.


[5] Lucas 1: 8.

[6] Terceira refutação, cap. II, PG 99, 417C.

[7] Mansi XII, 963E.

[8] João 12: 45.

[9] João 14: 9.

[10] I Coríntios 12: 3.

[11] Ver a respeito, por exemplo, santo Atanásio o Grande, Sobre a Encarnação, PG 25, 120CD.

[12] Gênese, 1: 26.

[13] Gênese 1: 27.

[14] Gênese 5: 1. Os textos bíblicos citados correspondem à Septuaginta.

[15] Ver a respeito Vladimir Lossky, Théologie mystique de l’Eglise de’Orient, cap. VI, “Image et
ressemblance”, Paris, 1944.

[16] Diádoco de Foticéia, Obras espirituais, LXXXIX, Paris, 1955.

[17] Catequese atribuída a são Simão o Novo Teólogo, Oração I, parágrafo 3, Moscou, 1892.

[18] Essa palavra, criada na época dos santos Cirilo e Metódio para traduzir o termo
grego osios, indica a aquisição pelo homem da semelhança divina. Não existem expressões
correspondentes em outras línguas. Entretanto, o termo e a noção contrária –
“dissemelhança” – podem ser encontrados até uma época muito recuada. Platão emprega
esse termo num sentido filosófico (anomoietetos ponton ou topon) em sua Política, para
exprimir a não correspondência do mundo à sua ideia. Santo Atanásio o Grande a empregava
já num sentido cristão: “Aquele que criou o mundo, vendo-o sucumbir à tempestade em
perigo de ser tragado no lugar da dissemelhança, tomou o governo da alma e veio em seu
socorro corrigindo todas as suas transgressões”. Santo Agostinho, em suas Confissões, disse:
“Eu me vi longe de Ti, num lugar de dissemelhança”.

[19] II Coríntios 3: 18.

[20] I Coríntios 6: 19.

[21] Mateus 17: 2; Marcos 9: 1-8; Lucas 9: 27-36.

[22] Metropolita Philarete, Oeuvres completes, Homilia 12, Moscou, 1873.

[23] 6ª. Sessão, Mansi XIII, 321 CD.

[24] PG 150, 1232C.

[25] Marcos 9: 1.
[26] I. Gorainoff, Séraphin de Sarov, Bellefontaine, 1973.

[27] Tratado Teológico e Ético II.

[28] Salmo 92.

[29] São Denis o Areopagita, Dos Nomes Divinos, cap. IV, 7, PG 3, 701C.

[30] Romanos 1: 20.

[31] PG 98, 157BC.

[32] 6ª sessão, Mansi XIII, 344.

[33] Sete Capítulos contra os Iconoclastas, cap. I, PG 99, 488.

[34] 1re lettre à Clidénius contre Apollinaire, PG 37, 184AB.

[35] 6ª sessão, Mansi XIII, 244B.

[36] Ver I Colossenses 15: 35-46.

[37] 2ª e 3ª Stíchias, tom 4.

[38] I Coríntios 15: 35-38.

[39] I Coríntios 15: 42-44.

[40] I Coríntios 15: 45-50.

[41] I Coríntios 15: 53.

[42] Ouve-se dizer às vezes, da parte de heterodoxos e mesmo da parte de alguns ortodoxos,
que, se a imagem Ocidental, aquela da Igreja romana, tende para o Nestorianismo, o ícone
ortodoxo, ao contrário, seria manchado pelo monofisismo. O que dissemos sobre o conteúdo
do ícone nos permite avaliar o absurdo de tal acusação. Se, por um lado, podemos afirmar que
a imagem da Igreja romana é realmente nestoriana por representar o sagrado apenas sob seu
aspecto humano, ou seja, em sua realidade terrestre, por outro, o ícone ortodoxo não tem
nada a ver com o monofisismo, porque ele não representa nem a Divindade, nem o homem
absorvido por ela. Ele representa o sem dúvida homem em toda a plenitude de sua natureza
terrestre, purificado do pecado e unido à vida divina. Acusar a arte sacra ortodoxa de
monofisismo equivale a não compreender nada de seu conteúdo. Pela mesma razão
poderíamos acusar de monofisismo a Sagrada Escritura e a Liturgia ortodoxa, porque elas
exprimem, assim como o ícone, uma dupla realidade: a da criatura e a da graça divina.

[43] Colossenses 2: 9.

[44] Mansi XIII, 404D.

[45] Refutação III, 5, PG 99, 421.


[46] Falando da base retratista do ícone, N. P. Kondakov cita um caso característico de retrato
como documento para a pintura de um ícone. Quando da descoberta em 1558 das relíquias de
são Nicetas, arcebispo de Novgorod, que foram encontradas intactas, um retrato póstumo
desse santo foi feito e enviado às autoridades eclesiásticas com a seguinte mensagem: “Pela
graça do santo, senhor, nós lhe enviamos sobre papel uma imagem de são Nicetas, bispo (...) e
segundo esse modelo, ordena que seja feito o ícone do santo”. Em seguida vêm
esclarecimentos caracterizando o aspecto exterior de são Nicetas, suas vestes, etc., para
complementar o retrato desenhado sobre papel. (O ícone Russo, 3, 1ª parte)

[47] Quando a tradição viva começa e se perder, ou, mais exatamente, quando ela começa a se
afastar, por volta do final do século XVI, a documentação da qual se serviam os iconógrafos foi
sistematizada, e é então que aparecem os manuais que chamamos de podlinniks, com ou sem
ilustrações. Eles fixaram a iconografia típica dos santos e das festas, indicando as cores
principais. Quando não eram ilustrados, continham breves descrições que caracterizavam os
santos e mencionavam também as cores. Esses podlinniks eram indispensáveis aos iconógrafos
como documentação. Mas eles não passam disso e não se pode de modo algum atribuir a eles
o mesmo significado que um cânon iconográfico ou que a Tradição sagrada, como o fazem
alguns autores ocidentais.

[48] João 14: 9.

[49] Simeão o Novo Teólogo, Tratados teológicos e éticos, Introdução.

[50] Vladimir Lossky, Teologia mística da Igreja do Oriente.

[51] Hebreus 12: 1.

[52] São Simeão, ibid.

[53] Ibid.
Leonid Ouspensky - O sentido e o conteúdo do Ícone - Parte 2

A transfiguração de Cristo aconteceu diante de apenas três testemunhas, três apóstolos


“capazes de receber” essa revelação, e mesmo eles não viram essa “aurora da luz divina”
senão na medida em que podiam (ou seja, na medida de sua participação interior nessa
revelação). Conhecemos algumas coisas análogas nas vidas dos santos. Assim, quando são
Serafim de Sarov se transfigurou diante de Motovilov, ele lhe explicou que ele só podia ver
essa transfiguração porque participava dela numa certa medida; ele não teria conseguido ver a
luz da graça se já não estivesse iluminado por ela. Isso explica porque a Tradição afirma que o
evangelista são Lucas pintou os ícones da Virgem depois do Pentecostes. Sem essa “luz do
conhecimento” de que fala são Simeão o Novo Teólogo, sem uma participação direta à
santificação e um testemunho concreto, nenhuma ciência, nenhuma perfeição técnica,
nenhum talento bastarão. Os próprios apóstolos (que, entretanto, viam a Cristo todo o tempo
e criam Nele) não haviam tido, antes da descida do Espírito Santo sobre eles, a experiência
direta da santificação por meio Dele e consequentemente não podiam traduzi-la, nem pela
palavra, nem pela imagem. É por isso que tanto a santa Escritura quanto a imagem sagrada só
poderiam surgir depois do Pentecostes. Na criação de um ícone, nada pode substituir a
experiência pessoal e concreta da graça. Quando não possuímos essa experiência pessoal, só
podemos pintar os ícones transmitindo a experiência daqueles que a tiveram. Eis porque, pela
voz de seus Concílios e de seus hierarcas, a Igreja prescreveu que os ícones fossem pintados os
pintavam outrora os santos iconógrafos: “Representada pelas cores conforme a Tradição, diz
são Simeão de Tessalônica, assim é a pintura verdadeira, como a Escritura nos livros, e a graça
divina repousa sobre ela porque o que está ali representado é santo[1]”. “Representada
conforme e Tradição”, porque na Tradição participamos da experiência dos santos iconógrafos,
a experiência viva da Igreja.

Essas palavras, assim como as do Sétimo Concílio Ecumênico, sublinham a participação da


imagem na santidade e na glória de seu protótipo: “A graça de Deus repousa” sobre a imagem
porque “os santos, no decurso de suas vidas, estavam cheios do Espírito Santo. Da mesma
forma, depois de sua morte, diz são João Damasceno, a graça do Espírito Santo repousa em
suas almas inesgotavelmente, e também nos seus corpos que estão nas sepulturas, nos seus
traços e nas suas santas imagens, e isso não devido à sua natureza, mas como resultado da
graça e da ação divina[2]”. É a graça do Espírito Santo que permanece na imagem, que
“santifica os olhos dos fiéis”, segundo a expressão do sinodykon do Triunfo da Ortodoxia, e que
cura as enfermidades espirituais e corporais. “Veneramos Tua santa imagem, por meio da qual
nos salvaste da servidão do inimigo”; ou ainda: “Por intermédio da representação, curaste
nosso mal[3]”.

Os meios empregados pelo ícone para transmitir essa qualidade espiritual correspondem
perfeitamente ao estado que eles devem comunicar e que é verbalmente descrito pelos santos
Padres ascetas. É evidente que a graça divina não é exprimível por nenhum meio humano. Na
vida, se nos acontece encontrarmos um santo, não somos capazes de ver sua santidade. “O
mundo não vê os santos, do mesmo modo como um cego não vê a luz[4]”. Essa santidade que
não vemos, também não somos capazes de a representar; ela não pode ser colocada em
palavras, nem em imagens, nem por meio algum que seja humano. No ícone ela pode apenas
ser representada com o auxílio de formas, cores e linhas simbólicas, por meio de uma
linguagem pictórica instituída pela Igreja e suportada pelo estrito realismo histórico. É por isso
que o ícone não é apenas uma imagem representativa de um dado tema religioso, pois esse
mesmo tema poderia ser representado de diferentes maneiras. O caráter específico do ícone
consiste mais precisamente em como é feita essa representação, ou seja, nos meios com os
quais se indica o estado santificado da pessoa representada.

A liturgia nos diz que no caso do ícone da Santa Face nós nos prosternamos diante do rosto do
Salvador que “resplandece mais do que o sol”, e que pedimos para ser “iluminados” pela
imagem de Cristo (ver as stíchias de 16 de agosto). Nesse caso, é preciso levar em conta que,
quando a santa Escritura ou a liturgia, para nos instruir no domínio espiritual, empregam
comparações com o mundo sensível, isso não passa de imagens, e não de descrições
adequadas. Assim, falando do relato da Transfiguração de Cristo pelos evangelistas, são João
Damasceno justifica a comparação – inevitavelmente insuficiente – da luz divina com a luz do
sol, sublinhando que é impossível representar aquilo que é incriado pelos meios da criatura[5].
Dito de outra forma, a luz material do sol não pode ser senão uma imagem da luz divina,
incriada, uma imagem e nada além.

Por outro lado, entretanto, o ícone devem corresponder aos textos sagrados que são
absolutamente explícitos: não se trata de uma imagem poética, nem de uma alegoria, mas de
uma realidade concreta. Essa realidade deve ser traduzida. Mas como traduzir pictoricamente
essa iluminação, essa luz “que resplandece mais do que o sol”, e que, por conseguinte,
ultrapassa todos os nossos meios de representação? Por meio de cores? Mas elas não são
suficientes sequer para mostrar a luz natural do sol. Então, como poderiam elas traduzir a luz
que ultrapassa a luz do sol?

Tanto nos escritos dos Padres quanto nas vidas dos santos nós encontramos muitos
testemunhos de uma certa luz que faz resplandecer desde o interior o rosto dos santos no
momento de sua glorificação suprema, assim como resplandecia o rosto de Moisés quando ele
desceu da montanha, a tal ponto que era preciso cobri-lo com um véu, pois o povo não podia
suportar seu brilho[6]. O ícone traduz esse fenômeno de luz por meio da auréola, atributo
exterior que pe uma indicação exata de um fato bem definido do mundo espiritual. A luz com a
qual resplandecem os rostos dos santos, e que envolve suas cabeças – na medida em que essa
representam a parte superior do corpo – tem naturalmente uma forma esférica. “Imaginem,
diz Motovilov ao falar da transfiguração de são Serafim de Sarov, no meio do sol, no brilho
mais intenso de seus raios do meio dia, o rosto de um homem que lhes fala[7]”. Como é
evidentemente impossível representar essa luz como tal, o único meio de traduzi-la numa
pintura consiste em figurar um disco, como se fosse um corte, por assim dizer, dessa esfera
luminosa. Não se trata de colocar uma coroa sobre a cabeça de um santo, como nas imagens
romanas nas quais essa coroa permanece de certo modo exterior; trata-se de indicar a
irradiação do rosto. A auréola não é uma alegoria, mas a representação simbólica de uma
realidade autêntica e concreta. É um atributo indispensável do ícone; indispensável, mas não
suficiente. Com efeito, ela também serve para expressar coisas diferentes da santidade cristã.
Os pagão também representavam seus deuses com auréolas, assim como seus imperadores,
sem dúvida para sublinhar a origem divina destes[8]. Portanto, não é apenas a auréola que
distingue o ícone das outras imagens: ela não passa de um atributo iconográfico, uma
expressão exterior da santidade, um testemunho da luz[9]. Mas, mesmo que aconteça de que
a auréola esteja apagada, ou que não a vejamos em absoluto, o ícone continua sendo o ícone e
se distingue claramente de quaisquer outras imagens: por todas as suas formas, por todas as
suas cores, ele nos mostra, de modo simbólico naturalmente, o estado interior do homem cujo
rosto “resplandece mais do que o sol”. Esse estado de perfeição interior é inexprimível, a tal
ponto que os Padres e os autores ascéticos o caracterizavam simplesmente por meio de um
silêncio absoluto. Porém, a ação dessa iluminação sobre a natureza humana e, em particular,
sobre o corpo, pode, em certa medida, ser descrita e representada indiretamente. São Simeão
o Novo Teólogo recorreu à imagem do fogo que se une ao ferro. Outros ascetas nos deixaram
descrições mais concretas. “Quando a prece é santificada pela graça divina (...) toda a alma é
atraída para Deus por uma força desconhecida, que arrasta com ela o corpo (...). No homem
nascido para a vida nova, não é apenas a alma, nem somente o coração, mas a própria carne
também que se enche de uma consolação e de uma felicidade espirituais: a alegria do Deus
vivo[10]”. Ou ainda: “A prece incessante e o ensinamento pela Escritura divina abrem os olhos
espirituais do coração que veem o Rei dos exércitos e daí surge uma grande alegria e o desejo
por Deus se inflama com força na alma; então, mesmo a carne é transportada pela ação do
Espírito e o homem inteiro se torna espiritual[11]”.

Dito de outra maneira, quando o estado habitual de dispersão, caracterizados pelos


“pensamentos e as sensações provenientes da natureza decaída”, é substituído no homem por
uma prece concentrada, e o homem se vê iluminado pela graça do Espírito Santo, o ser
humano inteiro como que se funde num impulso único em direção a Deus. Toda a natureza
humana se eleva espiritualmente e então, segundo a expressão de são Denis o Areopagita,
“tudo aquilo que nele era desordem se organiza e se ordena; o que era informe, ganha forma,
e sua vida (...) se irradia cheia de luz[12]”. É então que “a paz de Deus que ultrapassa toda
inteligência[13]” se estabelece no homem, essa paz que caracteriza a própria presença do
Senhor. “No tempo de Moisés e Elias, diz são Macário o Grande, quando Deus lhes aparecia,
uma multidão de trombetas e de exércitos o precediam e serviam à majestade do Senhor; mas
a própria vinda do Senhor se distinguia e se manifestava (...) pela paz, o silêncio e a calma. Pois
está dito: ‘Eis uma leve brisa, e é aí que está o Senhor’. Isso mostra que a presença do Senhor
consiste na paz e na harmonia[14]”. Continuando na sua condição de criatura, o home se torna
deus segundo a graça. O corpo do homem, assim como sua alma, participa assim da vida
divina. Essa participação não o altera fisicamente: “Aquilo que vemos não se altera, diz são
Gregório de Nisse; um velho não se torna um adolescente, as rugas não se apagam. O que se
renova, é o ser interior manchado pelo pecado e envelhecido pelos maus hábitos. Este ser
retorna à inocência infantil[15]”. Dito de outro modo, o corpo mantém sua estrutura e suas
propriedades biológicas, bem como os traços do aspecto exterior de todo homem. Nada se
perde, mas tudo se transforma, e o corpo inteiramente unido à graça é iluminado por sua
união com Deus. “O Espírito (Santo), ao se unir ao intelecto, diz santo Antônio o Grande (...) o
ensina a manter o corpo em ordem, todo o corpo, da cabeça aos pés: os olhos, para que vejam
com pureza; os ouvidos, para que escutem em paz (...); a língua a fim de que ela só diga o bem;
as mãos, para que elas só se movam para se erguem em prece e para cumprir as obras da
caridade (...); o ventre para que ele se guarde nos limites do uso de alimentos e bebidas (...); os
pés, para que eles caminhem direitos na vontade de Deus (...). Desse modo todo o corpo se
habitua ao bem e se transforma, submetendo-se ao poder do espírito Santo, de tal sorte que
ele acaba por participar em certa medida das propriedades do corpo espiritual que ele deverá
receber quando da ressurreição dos justos[16]”.

As passagens patrísticas citadas são como ícones verbais, até mesmo nos detalhes do
ensinamento que santo Antônio nos dá a conhecer. Por isso elas têm uma importância capital
para o nosso tema. A ação da graça divina sobre o corpo humano, em especial sobre os órgãos
dos sentidos, tal como santo Antônio descreve com palavras, nos é mostrada pelo ícone. A
analogia entre a descrição verbal e a imagem é a tal ponto evidente que nos conduz a uma
clara conclusão: estamos aqui diante da unidade ontológica da experiência ascética entre a
ortodoxia e o ícone ortodoxo. É precisamente essa experiência e seu resultado, descritos pelos
ascetas ortodoxos, que nos são mostrados nos ícones e nos são transmitidos por eles. Com a
ajuda de cores, formas e linhas, com o auxílio do realismo simbólico, linguagem pictórica única
em seu gênero, nos é revelado o mundo espiritual do homem que se tornou templo de Deus. A
ordem e a paz espiritual de que dão testemunho os santos Padres são transmitidos pelo ícone
através da paz e da harmonia exteriores: todo o corpo do santo, todos os seus detalhes,
mesmo os cabelos e as rugas, mesmo a veste e tudo o que o cerca, tudo está unificado,
conduzido a uma harmonia suprema. Trata-se aí de uma manifestação visível da vitória sobre a
divisão e o caos presentes na humanidade e no mundo.

Esses detalhes de aspecto inabitual, em particular os órgãos dos sentidos que vemos no ícone,
seus olhos sem brilho, as orelhas de formas às vezes bizarras, tudo isso não é representado de
maneira naturalista, e isso não porque o iconógrafo não tenha conseguido representá-los tais
como os vemos na natureza, mas porque tais como os vemos na natureza eles não fariam aqui
nenhum sentido e não corresponderiam a nada. Seu papel no ícone não é o de nos aproximar
daquilo que vemos na natureza, mas o de nos mostrar que estamos em face de um corpo que
capta o que escapa à percepção habitual do homem: acima da percepção do mundo físico, a
do mundo espiritual. Isso é bem ilustrado pelas questões colocadas com insistência por são
Serafim de Sarov a Motovilov ao se transfigurar diante dele: “O que você vê?”, “O que você
sente?”, etc. Ora, a luz que Motovilov via, o perfume que ele respirava, o calor que sentia, não
eram de ordem física. Seus sentidos percebiam naquele momento a ação da graça sobre o
mundo físico que o rodeava. Esse modo não naturalista de representar nos ícones os órgãos
dos sentidos traduz a surdez e a ausência de reação diante das manifestações do mundo, a
impassibilidade, o desligamento de toda excitação e, por outro lado, a receptividade ao mundo
espiritual, que são coisas alcançadas com a santidade. O ícone ortodoxo é a expressão por
meio de uma imagem desse canto do Sábado Santo: “Que toda carne humana faça silêncio (...)
e que se afaste todo pensamento terrestre...”. Tudo isso está submetido à harmonia geral que
exprime, repetimos, a paz e a ordem, a harmonia exterior. Pois não existe desordem no Reino
de Deus. “Deus é o Deus da paz e da ordem”, diz, parafraseando são Paulo, uma catequese
atribuída a são Simeão o Novo Teólogo.

Assim é que o ícone nos mostra o estado glorificado do santo, seu rosto transfigurado, eterno.
Mas ele é feito para nós: ele deve então ser evidente para nós, conforme o que foi dito, que na
sua linguagem cifrada o ícone se dirige a todos, assim como as passagens citadas dos santos
Padres não dizem respeito unicamente à prática ascética dos monges, mas a todos os fiéis,
pois a aquisição da graça do Espírito Santo é a tarefa assinalada a todo membro da Igreja.
Enquanto manifestação pictórica da experiência ascética da ortodoxia, o ícone tem uma
importância educativa capital e é nisso que reside o objetivo essencial da arte sacra. Sua
função construtiva não consiste somente no ensinamento das verdades da fé cristã, mas na
formação do homem como um todo.

O conteúdo do ícone constitui assim uma verdadeira direção espiritual da vida cristã e em
particular da prece: o ícone nos mostra a atitude que devemos ter em nossa oração, de um
lado em relação a Deus e, de outro, perante o mundo que nos cerca. A prece é uma conversa
com Deus; é por isso que ela demanda a ausência de paixões, a surdez e a não aceitação das
excitações exteriores do mundo. “Assim, irmãos, diz são Gregório o Teólogo, não façamos de
modo impuro aquilo que pé santo, de modo vil o que é sublime, de modo desonroso o que
honorável, e, em resumo, de modo terrestre o que é espiritual (...). Entre nós, tudo é
espiritual: a ação, o movimento, o desejo, as palavras, mesmo o caminhar e as vestes, mesmo
o gesto, porque o intelecto (nous) se estende a tudo e em tudo forma o homem segundo Deus;
e é assim que mesmo nossa alegria também espiritual e solene[17]”. É precisamente isso que
nos mostra o ícone. Uma direção racional de nossos sentidos é indispensável, pois é através
deles que os escândalos penetram na alma humana: “A pureza do coração do homem se turva
em razão do movimento desordenado das imagens que entram e saem pelos sentidos: a vista,
a audição, o tato, o paladar, o olfato, e também pela palavra”, diz santo Antônio o Grande[18].
Os Padres consideram os cinco sentidos como as portas da alma, por assim dizer: “Feche todas
as portas de sua alma, ou seja, os sentidos, ensinou santo Isaías, e vigie-as com cuidado, a fim
de que a alma não venha a devanear pelo exterior, ou que os negócios e as palavras do mundo
não inundem a alma”. Ao orar diante de um ícone, ou simplesmente ao olhar para ele, temos
diante dos olhos uma lembrança constante do que disse santo Isaías: “Aquele que crê que seu
corpo ressuscitará no dia do Juízo, deve mantê-lo sem mácula e puro de toda mancha e de
todo vício[19]”. Isso para que, pelo menos em nossa oração, fechemos as portas de nossa alma
e nos esforcemos para ensinar ao nosso corpo (como o santo no ícone ensinou ao seu) a se
manter em ordem na e pela graça do Espírito Santo; que nossos olhos “vejam com pureza”,
que nossos ouvidos “escutem em paz”, etc., e que nosso coração “não alimente pensamentos
malignos”. Assim, por intermédio da imagem, a Igreja se esforça por nos ajudar a recriar nossa
natureza viciada pelo pecado.
No domínio ascético, o da prece, os Padres caracterizam a experiência espiritual ortodoxa pela
imagem da “porta estreita que conduz à vida[20]”. É como se o homem se detivesse à entrada
de uma via que, ao invés de se perder no espaço, se abrisse sobre um infinito de plenitude.
Uma porta que dá para a vida divina se abre assim diante do cristão. São Macário o Grande,
como muitos outros autores ascéticos, fala assim da progressão espiritual: “Portas se abrem,
diz ele (...), e o homem penetra no interior de muitas moradas; na medida em que ele entra,
outras portas se abrem diante dele (...) e ele se enriquece; e na medida em que ele se
enriquece, novas maravilhas lhe são mostradas[21]”. Uma vez engajado na via à qual leva a
porta estreita, o homem vê abrirem-se diante de si possibilidades e perspectivas sem fim, e
seu caminho, longe de se estreitar, se torna cada vez mais amplo. Mas de início ele é um
simples ponto no nosso coração, esse ponto a partir do qual toda nossa perspectiva deve se
inverter. Esse é o sentido do termo metanoia.

O ícone é assim ao mesmo tempo um caminho a ser seguido e um meio; ele próprio é a prece.
Ele nos revela direta e visivelmente essa liberdade em relação às paixões de que nos falam os
Padres; ele nos ensina a “jejuar com os olhos”, segundo a expressão de são Doroteu[22]. E,
com efeito, é impossível “jejuar com os olhos” diante de qualquer outra imagem, seja temática
ou não figurativa. Somente o ícone pode indicar o que significa “jejuar com os olhos”, e o que
nos permite alcançar essa condição.

O objetivo do ícone não é o de provocar ou exaltar em nós um sentimento humano natural.


Ele não é “tocante”, sentimental. Seu objetivo é orientar para a transfiguração todos os nossos
sentimentos, assim como nosso intelecto e todos os demais aspectos de nossa natureza,
despojando-os de toda exaltação que não poderia ser senão malsã e nociva. Assim como a
deificação que ele traduz, ele nada suprime daquilo que é humano: nem o elemento
psicológico, nem as diversas características do homem no mundo. Assim, o ícone do santo não
deixa de indicar sua atividade terrestre, da qual ele soube fazer uma ação espiritual, quer
tenha esta sido uma atividade eclesial, como a de um bispo ou de um monge, ou uma
atividade mundana, como a de um príncipe, um soldado ou um médico. Mas, como no
Evangelho, toda essa carga de ações, pensamentos, conhecimentos e de sentimentos
humanos é representada em seu contato com o mundo divino, e esse contato purifica tudo e
consome o que não pode ser purificado. Cada manifestação da natureza humana, cada
fenômeno de nossa vida se ilumina, se aclara, adquire seu verdadeiro sentido e seu lugar.

Da mesma forma como representamos o Deus Homem semelhante em tudo, salvo no pecado,
também representamos o santo como uma pessoa liberta do pecado. Segundo são Máximo o
Confessor, “como a carne de Cristo, também nossa carne se liberta da corrupção do pecado.
Pois, assim como Cristo era sem pecado por Sua carne e por Sua alma enquanto Homem,
também nós, que cremos Nele e que nos revestimos Dele pelo Espírito, podemos, por nossa
vontade, estar Nele sem pecado[23]”. É justamente o corpo de um homem santo, “conforme o
corpo glorioso de Cristo[24]”, que nos mostra o ícone, um corpo liberto da corrupção do
pecado e que “participa em certa medida das propriedades do corpo espiritual que ele
receberá na ressurreição dos justos”.

A arte sacra ortodoxa é uma expressão visível do dogma da transfiguração. A transfiguração do


homem é compreendida e transmitida aqui como uma realidade objetiva bem definida, em
acordo com o ensinamento ortodoxo; o que nos é mostrado não é uma interpretação
individual, nem uma concepção abstrata ou mais ou menos deteriorada, mas uma verdade
ensinada pela Igreja.

As cores do ícone traduzem a cor do corpo humano, mas não a carnação natural da carne, que,
como vimos, simplesmente não corresponderia ao sentido do ícone ortodoxo. Trata-se, aqui
também, de muito mais do que apenas mostrar a beleza física do corpo humano. A beleza aqui
é a pureza espiritual, a beleza interior, segundo as palavras de são Pedro: “A vestimenta
interior e oculta no coração, a pureza incorruptível de um espírito doce e pacífico que vale um
grande preço diante do Senhor[25]”. É a beleza do da comunhão entre o terrestre e o celeste.
É essa beleza-santidade cuja fonte é o Espírito Santo, a semelhança divina adquirida pelo
homem, é isso que o ícone mostra. Em sua linguagem própria ele traduz o trabalho da graça
que, segundo a expressão de são Gregório Palamas, “pinta por assim dizer em nós, sobre o que
é a imagem de Deus, aquilo que é a semelhança divina, de sorte que (...) nós nos
transformamos na Sua semelhança[26]”.

A razão de ser do ícone e seu valor não residem, portanto, na sua beleza enquanto objeto, mas
naquilo que ele representa: uma imagem da beleza-semelhança divina.

Compreende-se assim também que a luz do ícone que nos ilumina não é a claridade natural
dos rostos obtida com as cores; é a graça divina, a luz da carne purificada e sem pecado. Essa
luz da carne santificada deve ser entendida não somente como um fenômeno espiritual, nem
como um fenômeno unicamente físico, mas como os dois juntos, como uma revelação da
carne por vir[27].

As vestes, ao mesmo tempo em que mantêm suas particularidades e envolvem o corpo de


uma maneira perfeitamente lógica, são representadas de modo a não dissimular o estado
glorificado do santo; elas sublinham a obra do homem e se tornam, de certa forma, a imagem
de sua vestimenta de glória, da “veste de incorruptibilidade”. A experiência ascética, ou
melhor, seu resultado, encontra aí sua expressão exterior na severidade das formas quase
geométricas, nas luzes e nas linhas das dobras. Elas deixam de ser desordenadas, mudam de
aspecto, adquirem um ritmo e uma ordem submetida à harmonia geral da imagem. Sabemos
que o fato de tocar as vestes de Cristo, da Virgem, dos apóstolos e dos santos trazia a cura aos
crentes. Basta lembrar a história evangélica da mulher que sangrava, ou ainda as curas
operadas pelas vestes de são Paulo[28].

A ordem interior do homem representada sobre o ícone se reflete naturalmente na sua


atitude e em seus movimentos: os santos não gesticulam: eles se mantêm diante da face de
Deus em prece, e cada um de seus movimentos e a própria atitude de seus corpos se revestem
de um caráter sacramental, hierático. Geralmente eles têm seu rosto votado para o
espectador, ou de três quartos. Esse traço caracteriza a arte cristã desde seu nascimento. O
santo está presente aí, diante de nós, e não em qualquer lugar no espaço: ao lhe dirigirmos
nossa prece estamos vendo-o face a face. Essa é sem dúvida a razão pela qual quase nunca se
representam os santos de perfil, salvo raríssimamente, em composições complicadas em que
eles estão voltados para o centro. O perfil de certo modo interrompe o contato direto: é como
o começo de uma ausência. Só são representadas de perfil as pessoas que não adquiriram a
santidade, como, por exemplo, os magos e os pastores no ícone da Natividade.

É típico da santidade santificar tudo o que a cerca; a deificação do homem se comunica ao seu
ambiente. São as primícias da transfiguração do mundo. É no homem e pelo homem que se
realiza e se manifesta a participação da criatura na vida divina eterna. Do mesmo modo como
a criatura caiu com a queda do homem, é pela deificação do homem que ela é salva, pois “a
criação está submetida à vaidade não por sua vontade, mas por causa daquele que a
submeteu – com a esperança de que também será liberta da servidão da corrupção por tomar
parte da liberdade da glória dos filhos de Deus[29]”. Temos uma indicação que marca o início
do restabelecimento da unidade na criatura decaída; é na estada de Jesus no deserto: “Ele
estava com os animais selvagens, e os anjos o serviam[30]”. No Deus Homem Jesus Cristo se
reúnem as criaturas celestes e as criaturas terrestres destinadas a se tornarem a nova criação.
Esse pensamento de unificação na paz da criação inteira atravessa, bem aparente, toda a
iconografia ortodoxa[31]. A união em Deus de todas as criaturas, começando pelos anjos e
chegando até as criaturas inferiores, é nisso que consiste o universo renovado futuro, que, no
ícone se opõe à discórdia geral, ao reinado do príncipe deste mundo. A harmonia e a paz
restabelecidas, a Igreja abraçando o mundo inteiro – este é o pensamento da arte sacra
ortodoxa, pensamento que domina tanto a arquitetura como a pintura[32]. Eis porque vemos
no ícone que tudo o que cerca um santo muda de aspecto. O mundo que rodeia o homem –
portador e anunciador da revelação divina – se torna assim uma imagem do mundo futuro,
transfigurado, renovado: tudo perde seu aspecto habitual de desordem e adquire uma ordem
harmoniosa: os homens, a paisagem, os animais, a arquitetura. Tudo o que envolve o santo se
dobra com ele a uma ordem rítmica, tudo reflete a presença divina, aproximando-se – e nos
aproximando – de Deus. A terra, o mundo vegetal, o mundo animal, são representados no
ícone não para nos aproximar daquilo que vemos todos os dias ao nosso redor, ou seja, o
mundo decaído em seu estado corruptível, mas para nos mostrar a participação deste mundo
na deificação do homem. A ação da santidade sobre a totalidade do mundo criado, em
especial sobre os animais selvagens, é um traço que frequentemente caracteriza a vida dos
santos[33]. Epifânio, discípulo e biógrafo de são Sérgio de Radonege, comenta da seguinte
maneira a atitude dos animais ferozes para com o santo: “Que ninguém se admire, sabendo
que quando Deus habita num homem e o Espírito Santo repousa nele, que tudo se submeta a
ele como a Adão antes de sua queda, quando Adão vivia só no deserto”. O relato da vida de
santo Isaac o Sírio nos diz que os animais que vinham a ele sentiam o odor que exalava Adão
antes da queda. É por isso que, quando são representados no ícone, os animais adquirem um
aspecto inabitual: mesmo mantendo os traços característicos de cada espécie, eles perdem
seu aspecto costumeiro. Isso poderia parecer bizarro ou deslocado, a menos que
compreendamos a linguagem dos iconógrafos que fazem assim alusão ao mistério paradisíaco,
inacessível agora para nós.

Quanto à arquitetura representada no ícone, ao mesmo tempo em que ela se submete à


harmonia geral, ela desempenha um papel à parte. Tal como a paisagem, ela especifica o local
onde se desenrola o evento: uma igreja, uma casa, uma cidade. Mas o edifício (bem como a
gruta da Natividade ou a da Ressurreição) jamais encerra a cena: ele serve apenas de fundo, de
modo a que esta não se passa dentro do edifício, mas diante dele. É que o próprio sentido dos
eventos mostrados nos ícones não se limita ao seu lugar histórico, da mesma forma como,
manifestados no tempo, eles ultrapassam o momento em que aconteceram. Somente depois
do século XVII os iconógrafos, sob a influência da arte ocidental, começaram a representar
cenas que se passavam no interior de um edifício. A arquitetura se lega às figuras humanas
pelo sentido geral da imagem e pela composição, mas a ligação lógica fica faltando. Se
compararmos o modo de representar o corpo humano no ícone com o modo de representar a
arquitetura, veremos uma grande diferença: o corpo humano, ainda que figurado de um modo
não naturalista, é, com raras exceções, lógico: tudo está no lugar. O mesmo acontece com as
vestimentas: o modo como são tratadas, o caimento das dobras, tudo é perfeitamente lógico.
Mas a arquitetura, no mais das vezes, desafia toda lógica humana, tanto nas suas formas como
nos seus detalhes. Se, de um lado, o ponto de partida são as formas arquitetônicas reais, por
outro as proporções são absolutamente negligenciadas; as portas e janelas não estão nos seus
lugares e, aliás, são perfeitamente inúteis por causa de suas dimensões em relação aos
personagens, etc. A opinião corrente vê na arquitetura do ícone uma mistura de formas
bizantinas e antigas, devido a um apego cego dos iconógrafos a essas formas que são agora
incompreensíveis. Mas o verdadeiro sentido desse fenômeno é que a ação representada
transcende a lógica racional dos homens, as leis da vida terrestre. A arquitetura, seja ela
antiga, bizantina ou russa, é o elemento do ícone que permite melhor ilustrar isso. Ela é
decorada com uma certa “loucura em Cristo” pictórica, em contradição total com o “espírito
de pesandez”. Essa fantasia arquitetônica desconcerta sistematicamente a razão, remetendo-a
ao seu lugar e sublinhando o caráter metalógico da fé[34].

O caráter estranho e inabitual do ícone é o mesmo do Evangelho. Pois o Evangelho é uma


verdadeira provocação perante toda orde3m, toda sabedoria do mundo. “Eu destruirei a
sabedoria dos sábios e aniquilarei a inteligência dos inteligentes”, diz o Senhor pela boca de
Seus profetas citados por são Paulo[35]. O Evangelho nos chama para a vida em Cristo, e o
ícone a representa. É por isso que ele utiliza às vezes formas anormais e chocantes, assim
como a santidade exige por vezes formas extremas que parecem loucura aos olhos do mundo,
como a santidade dos louco de Cristo. “Dizem que sou louco, dizia um destes, mas sem a
loucura não se entra no Reino de Deus (...). Para viver segundo o Evangelho é preciso ser
louco. Enquanto os homens forem racionais e razoáveis, o Reino de Deus não descerá à
terra[36]”. A loucura em Cristo e as formas às vezes provocantes dos ícones exprimem a
mesma realidade evangélica. Essa perspectiva evangélica inverte a perspectiva do mundo. E o
universo que o ícone nos mostra é aquele onde reinam, não as categorias racionais, não a
moral humana, mas a graça divina. Daí o hieratismo do ícone, sua simplicidade, sua majestade,
sua calma; daí o ritmo de suas linhas, a alegria de suas cores. Ele reflete o esforço da ascese e a
alegria da vitória. A pena se transforma em “alegria do Deus vivo”. É a ordem nova na nova
criação.

O mundo que vemos no ícone não se assemelha à banalidade da vida cotidiana. A luz divina
penetra tudo, e é por isso que os personagens e os objetos não são iluminados por este ou
aquele lado por um foco de luz; eles não projetam sombras – estas não existem no Reino de
Deus, onde tudo está banhado em luz. Na linguagem técnica da iconografia o próprio fundo do
ícone é denominado “luz”.

***

Tentamos mostrar em nossa exposição que, assim como o simbolismo dos primeiros séculos
cristãos era uma linguagem comum a toda a Igreja, também o ícone constitui uma linguagem
comum ao conjunto da Igreja, porque ele expressa o ensinamento ortodoxo comum, a
experiência ascética ortodoxa comum e a liturgia ortodoxa comum. A imagem sagrada sempre
expressou a revelação da Igreja, trazendo-a numa forma visível ao povo fiel; colocando-a
diante de seus olhos como uma resposta às suas questões, um ensinamento e uma direção,
como uma tarefa a cumprir, como uma prefiguração e como as primícias do Reino de Deus. A
revelação divina e sua aceitação pelo homem são uma mesma ação em dois sentidos, por
assim dizer. O apocalipse e a gnose – a via da revelação e a do conhecimento - correspondem

Uma à outra: Deus Se abaixa e Se revela ao homem; o homem responde a Deus, elevando-se e
conformando sua vida à revelação recebida. Na imagem ele recebe a revelação e pela imagem
ele responde a essa revelação na medida em que dela participa. Dito de outra forma, o ícone é
o testemunho visível, tanto do abaixamento de Deus para o homem, quanto do impulso do
homem em direção a Deus. Se as palavras e os cantos da Igreja santificam nossa alma por meio
do ouvido, a imagem a santifica por meio da vista, primeira dentre os sentidos, segundo os
Padres. “O olho é a lâmpada do corpo, diz nosso Senhor; se seu olho estiver em bom estado,
todo seu corpo será iluminado[37]”. Pela palavra e pela imagem a liturgia santifica os sentidos.
Expressão da imagem e da semelhança divina restabelecidas no homem, o ícone é um
elemento dinâmico e construtivo do culto, longe de ser simplesmente conservador e de
desempenhar um papel passivo, como pensam alguns observadores do exterior. É por isso que
a Igreja, por decisão do Sétimo Concílio Ecumênico, ordenou colocar os ícones “no nível das
imagens da preciosa cruz, fonte de vida, em todas as igrejas de Deus, sobre os vasos e as
vestes sagradas, sobre as paredes, sobre os quadros, nas casas e nas vias públicas”. É porque a
Igreja viu no ícone um dos meios que podem e devem nos permitir realizar nossa vocação, ou
seja, adquirir a semelhança com nosso Protótipo divino, cumprir em nossa vida aquilo que nos
foi revelado e transmitido pelo Deus Homem. Os santos são pouco numerosos, mas a
santidade é uma tarefa assinalada a todos os homens, e os ícones estão colocados por toda
parte como um modelo dessa santidade, como uma revelação da santidade do mundo por vir,
um plano e um projeto da transfiguração cósmica. Por outro lado, como a graça adquirida
pelos santos no curso de suas vidas permanece inesgotável em suas imagens[38], essas
imagens são colocadas por todo lugar, para santificar o mundo com a graça que lhes é própria.
Os ícones são como marcos sobre nosso caminho em direção à nova criação, a fim de que,
segundo a expressão de são Paulo, contemplando a glória do Senhor, nós nos transformemos
na mesma imagem[39].

Os homens que conheceram por experiência a santificação criaram as imagens que lhe
correspondem e que constituem realmente uma “revelação e uma demonstração do que está
oculto”, segundo as palavras de são João Damasceno, assim como outrora o tabernáculo
construído segundo as indicações de Moisés revelou aquilo que lhe foi mostrado sobre a
montanha. Não apenas essas imagens revelam ao homem um universo transfigurado, como
elas permitem a ele participar desse universo. Podemos dizer que o ícone é pintado segundo a
natureza, mas com a auxílio de símbolos, pois a natureza que ele representa não pode ser
representada diretamente. É o mundo que não será plenamente revelado senão quando da
segunda vinda do Senhor.

Assim expressamos aqui o conteúdo do ícone, como expressão do dogma e como fruto da
experiência espiritual ortodoxa durante o período cristológico na história da Igreja, conteúdo
que foi trazido à luz pelos Padres e os Concílios, e, em particular, pelo dogma da veneração dos
ícones.

[1] Diálogo contra as heresias, capítulo XXIII, PG 155, 113D.

[2] 1º Tratado em Defesa dos Santos Ícones, 19, PG 94, I, 1249CD.

[3] Festa da Santa Face, glorificação e ode 7 do cânon.


[4] Philarete, metropolita de Moscou, Sermões, III, 57, Moscou 1874.

[5] Sermão da Transfiguração, PG 94, III, 545-546.

[6] Êxodo 34: 30; II Coríntios 3: 7-8.

[7] I. Gorainoff, Serafim de Sarov.

[8] Não podemos dizer de que ordem seria essa luz entre os pagãos. De uma parte a Igreja
reconhece uma revelação parcial fora dela, e podemos concluir que o mistério da luz incriada
poderia ter sido, numa certa medida, revelado aos pagãos. Em todo caso, eles sabiam que a
Divindade estava ligada à luz. De outro lado, os escritos dos Padres nos revelam que o
fenômeno da luz poderia ter também uma origem demoníaca, pois o próprio demônio é capaz
de se travestir em anjo de luz.

[9] O caso é outro quando vemos em certas imagens um tipo de auréola quadrada. É assim
que outrora se indicava que a pessoa havia sido retratada quando ainda estava viva.

[10] Bispo Inácio Brianchaninov, Ensaio Ascético, Tomo I.

[11] Relato muito útil sobre o Abade Filemon, 3, Filocalia, Tomo III, Moscou 1888.

[12] A Hierarquia Eclesiástica, cap. II, III, Paris, 1943.

[13] Filipenses 4: 7.

[14] Filocalia, tomo I, Moscou, 1877.

[15] Cf. G. Florovsky, Os Padres dos séculos IV e V, Westmead, 1972.

[16] Filocalia, tomo I, Moscou, 1877.

[17] Or. X endereçada a São Gregório de Nisse, PG 35, 840A.

[18] Filocalia, Tomo I.

[19] Abbas Isaías, 15ª catequese, Filocalia, Tomo I, versão russa.

[20] Mateus 5: 14.

[21] Filocalia, Tomo I, versão russa.

[22] Ensinamentos e mensagens úteis à alma, Optina Poustyn, 1895, versão russa.

[23] Capítulos ativos e contemplativos, cap. LXVII, Filocalia, Tomo III.

[24] Filipenses 3: 21.

[25] I Pedro 3: 4.

[26] Filocalia, tomo V – Carta à monja Xenia sobre as virtudes e as paixões”, Moscou, 1889.
[27] É assim que o problema da representação do corpo humano jamais se colocou na
ortodoxia do modo como ele é colocado no catolicismo romano desde a decisão do Concílio de
Trento em 1546 (25ª sessão): “O santo Concílio determina que se evite toda impureza, que não
se dê às imagens traços provocantes...”. Essa “impureza” que se deve evitar era o corpo
humano. A primeira coisa que fizeram as autoridades eclesiásticas romanas foi proibir a
representação do corpo humano nu na arte religiosa. Começou uma verdadeira caça à nudez.
Por ordem do papa Paulo IV, os personagens do Juízo final de Miguel Ângelo receberam véus.
O papa Clemente VIII, abandonando meias medidas, quis apagar todo o afresco e só foi detido
por súplica da Academia de São Lucas. Carlos Borromeu, em quem se encarnou o espírito do
Concílio de Trento, fez desaparecer os nus onde quer que os encontrasse; foram destruídos
quadros e estátuas que pareciam pouco pudicos. Alguns pintores queimaram suas próprias
obras. Na Igreja ortodoxa, o próprio caráter de sua arte exclui semelhante situação.

[28] Atos 19: 12.

[29] Romanos 8: 20-23.

[30] Marcos 1: 13.

[31] Ela se vê particularmente sublinhada em certos ícones que revelam o sentido cósmico da
imagem sagrada, como, por exemplo, “Que todo sopro louve o Senhor...”, ou ainda “Ó cheia
de graça, em Ti se regozija toda a criação...”, e outros ainda.

[32] E. Troubetskoy, o Sentido da Vida, Berlim, 1922.

[33] Por exemplo, as vidas de santo Isaac o Sírio, de santa Maria Egipcíaca, de são Sabas o
Consagrado, de são Sérgio de Radonege, de são Serafim de Sarov, de são Paulo de Obnorsk e
de muitos outros.

[34] O caráter alógico da arquitetura persistiu até a decadência (fim do século XVI e início do
século XVII) quando a compreensão da linguagem iconográfica começou a ser perder. A partir
desse momento, a arquitetura se tornou lógica e proporcional. E, o que é curioso, é nesse
momento que encontramos misturas realmente fantásticas de formas arquitetônicas.

[35] I Colossenses 1: 19.

[36] Arquimandrita Spiridon, Minhas Missões na Sibéria, Paris, 1950.

[37] Mateus 6: 22.

[38] São João Damasceno, Primeiro Tratado em Defesa dos Ícones, cap. XIX, PG 94, I, 1249 CD.

[39] II Coríntios 3: 18.

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