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Práticas de Leitura e
Escrita entre as Crianças
na Pobreza Urbana
Introdução
Gostaríamos de discutir neste artigo, algumas das teses centrais que estão na
base das mudanças conceituais das novas políticas de alfabetização. Alguns
dados de pesquisa por nós realizada apontam a necessidade de certa cautela
quanto às afirmações sobre a ausência de experiências de leitura e escrita nas
camadas populares e suas conseqüências negativas sobre o desenvolvimento
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Primeira Tese
Segunda tese
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Alguns dos nossos dados revelam que há entre as crianças a crença, que se
confirma também entre as próprias famílias de que “não sabem aquilo que é
preciso saber para estar na escola”. A escola não é o lugar onde se ensina
para quem não sabe, mas onde há um “saber” que é preciso dominar e que
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Um dado revelador desse estado de coisas foi o pedido de uma das mães para
que ajudássemos na elaboração de uma lição de casa em que, em uma folha
mimeografada, havia as seguintes inscrições: “Cópia: horóscopo, livro,
revista”. Do que, afinal, tratava-se? O pedido era para copiar as palavras, os
textos escritos nesses suportes indicados? Nem mesmo a criança sabia
explicar. Esse dado revela também um outro aspecto fundamental da relação
da escola com sua clientela pobre, a desconsideração, a priori, da capacidade
da mãe em ajudar na lição, inviabilizando, efetivamente, essa ajuda, e que se
reflete no fato de que não parece necessário informar ao leitor, que esta fora
do contexto escolar, o que de fato está sendo pedido. A mãe escolarizada ou
não, não tem como ajudar.
Há vários anos alguns estudos têm revelado (Patto, 1997; Colares e Moyses,
1996) a existência de preconceitos sociais contra a capacidade das crianças
de camadas populares para aprender a ler e a escrever e que se reflete nas
atitudes da escola em relação a elas. Os nossos dados mostram que esses
preconceitos, que conduzem as atitudes da escola em relação a essas
famílias, como vimos, acaba se confirmando como verdade aos olhos da
escola. A forma com que os próprios pedidos são feitos aos pais inviabiliza a
ajuda na lição e reforça, nos próprios pais e crianças, a idéia na sua
incapacidade de ensinar e das crianças de aprender, como expressa algumas
das falas das crianças de que “não têm cabeça para a escola”.
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É comum para quem chega ao bairro vir perguntar às crianças onde mora
determinado morador, pois elas sempre sabem, bem como indagar se o
lixeiro já passou, se o barbeiro ou o boteco está aberto, quem mudou, quem
nasceu, quem separou ou perdeu o emprego etc. Como pombos correio,
levam e trazem mensagens, notícias, fofocas etc. As marcas espaciais e
temporais da existência e permanência desse bairro são dadas pela
observação e pelo relato das crianças.
As falas das crianças se caracterizam pela narrativa dos fatos vividos, pelo
contar histórias, o que contraria as hipóteses sobre a existência de
deficiências lingüísticas entre as crianças de camadas populares. Ao falarem,
traçam para o ouvinte um percurso, descrevem uma trajetória, situam-no no
tempo e no espaço, constituindo através da suas falas um campo de
significações e sentidos. Assim, ao falarem dos acontecimentos do bairro, da
vida das pessoas, das histórias do que ali se passa, vão situando
concretamente o discurso nos espaços (“foi ali perto da casa da dona
Nezinha, você conhece?”) de modo que o ouvinte passa a percorrer através
das narrativas o mesmo trajeto e a compartilhar, com elas, um universo de
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O que estes dados revelam é que estamos diante de grupos sociais que
também fazem usos dos objetos escritos que fazem parte da cultura escrita,
isto é, estamos frente aos usos sociais da escrita em uma cultura escrita. Os
objetos escritos surgem para atestar uma presença, uma existência, dar
materialidade e legitimidade aos relatos, fazer denuncias e pedidos de ajuda.
Eles ganham sentido através do seu contexto de uso: o relato da sua vida, das
suas dificuldades, da precariedade da existência, da revolta por injustiça
cometida. Talvez, fora das circunstâncias em que ganham sentidos seria
muito difícil a um observador externo tomar conhecimento deles. Aqui a
escrita é também testemunho, é atestado, acompanha um relato oral, não é
letra morta, ganha sentido na economia do todo na luta pela sobrevivência.
- Olha, essa é minha avó, parece; essa outra lá também é minha avó (mostra
sua avó na casa em frente). (Samuel, 6 anos).
- Aqui é lá na Benecy que nós tiramos a foto, a Cristina levou nós. (Birro)
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- Ó Diego, você está aí Diego, você viu você pequenininho chorando? Você
está chorando pequenininho. (Marquinho, 4 anos).
Todos sabem, crianças e adultos, que os documentos têm um peso vital. Ser
abordado pela polícia, sem documentos é ser suspeito e pode levar à cadeia,
já que a palavra do trabalhador braçal não tem valor quando se está diante da
autoridade. Alguns relatos de pesquisa (Magnani, 1984, p.138) já mostraram
que mais do que a carteira de identidade é a carteira de trabalho, o nome e
endereço do empregador, a firma onde trabalha, sua função e registro, que
atestam a credibilidade do operário, do trabalhador braçal, que assegura se o
seu portador é ou não digno de credibilidade.
As crianças também fazem uso dos textos escritos. Circulam pela mão das
crianças muitos e variados folhetos, livretos de propaganda dos mais
diferentes produtos, “passeando para lá e para cá”, num entra e sai da casa de
uns e outros, as crianças não perdem a oportunidade de abordar um
comprador potencial. Muitas vezes elas traziam no grupo de crianças
folhetos de propaganda de produtos da Avon, de lingeries, de potes plásticos
para mantimentos, rifas de produtos doados e até mesmo folheto de
propaganda eleitoral distribuído no bairro mediante a solicitação de que as
crianças os distribuíssem.
- Tia, você quer comprar uma dessa? a sua é igual a dessa? tem rendinha
também? (Biana, 6 anos)
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Numa tarde chuvosa e apinhados num único cômodo, as crianças nos pedem
lápis e papel para desenhar. Os pedidos de folha para desenhar, “fazer lição”
são constantes. Há um fascínio das crianças para escrever e insistem para
que as ensinemos.
- Tia, olha, nós fizemos um bilhetinho para você, lê aí o que está escrito.
(Ariana, 4 anos)
- Sabe o que eu queria falar para a professora estar lembrando assim ó tia,
está lembrando assim de você lá na escola, eu quero trazer folha para tia.
Eu falei assim para a professora, lá tem um monte de folha..
- Vou escrever ó (faz uma porção de bolinhas, uma próxima da outra e vai
falando em voz alta) Diego, Samuel, Marcos, Viviane Lima. (Samuel, 6 anos,
nunca foi à escola)
Iara, a mãe de uma das crianças comenta que aprendeu um pouco de leitura,
“sabe para si” mas não consegue ajudá-las na lição. Costumava ler o jornal
mas deixou de lê-los devido a indignação que uma reportagem enganosa
sobre um incêndio no bairro lhe causou. Um dos moradores esqueceu cigarro
aceso no colchão e saiu para trabalhar; o fogo se alastrou com tanta rapidez,
devido à falta de espaço entre os vários cômodos, que a tragédia tomou
grandes proporções. Noticiado pelos jornais, ficou chocada com as mentiras
contadas, alegando que moradores da favela haviam ateado fogo depois de
uma briga. Revoltada com a reportagem, deixou de ler jornal “só conta
mentira, e vêm aqui pra dizê prus otro que aqui só tem bandido e num é
lugar de gente decente”.
alguma intenção, que a sua simples leitura não basta para apreendê-la. A
leitura do texto precisa vir acompanhada de uma interpretação, trazer outras
informações e outros conhecimentos que o leitor precisa ser capaz de
fornecer.
O texto é percebido por esses “ leitores” como uma produção que se serve de
outros como fonte de informação e referência, ou que se inscreve num
campo de conhecimentos específicos – o discurso técnico, científico, etc. – e
são essas competências que se solicitam aos seus leitores oficiais.
A leitura sem essa interpretação não garante o seu pleno entendimento. Pede-
se algo mais de quem lê, que seja o intermediário, o interlocutor entre o texto
escrito, seu pretenso autor e o solicitante da leitura: que restabeleça na leitura
o diálogo entre texto, autor e leitor, e que o sentido seja construído nessa
intercessão. Funções e formas de leitura que restituem as características das
relações orais da interlocução, cujo sentido é negociado entre os leitores e
texto.
Algumas questões
A leitura e a escrita são produtos da cultura, que faz dela certos usos, que
define seus modos de ensino e seus processos de aprendizagem. Elas são,
portanto, produzidas por relações sociais, por formas culturais que delas se
apossam e definem seus modos de transmissão e assimilação. Desse modo, é
preciso também discutir as concepções sobre o caráter universal de certos
processos cognitivos envolvidos na assimilação da leitura e da escrita pelos
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À guisa de conclusão
Bibliografia
CAGLIARI, Luiz Carlos. O príncipe que virou sapo. In: PATTO, Maria
Helena (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. 2ed. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1997.
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[1] Trata-se de um tipo de dança bastante popular nos bairros pobres de São
Paulo
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