Sie sind auf Seite 1von 15

01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos

Práticas de Leitura e
Escrita entre as Crianças
na Pobreza Urbana

Sandra Maria Sawaya


FEUSP

Resumo - O objetivo do presente artigo é trazer alguns dados de pesquisa


que permitem discutir duas das principais teses que estão na base das
mudanças nas políticas públicas na área de alfabetização, quais seja, a
ausência de práticas de leitura e escrita nos meios populares e as
conseqüências negativas dessa ausência no desempenho escolar das crianças
pobres. Os nossos dados revelam práticas de leitura e escrita entre as
crianças de diversas idades em um bairro pobre da cidade de São Paulo,
mesmo dentre aquelas que ainda não dominem as habilidades de leitura e
escrita. Os estudos recentes na área da história cultural e da sociolingúistica
vêm questionando as teses não só da universalidade das formas de
apropriação da língua escrita num sistema alfabético, bem como as hipóteses
de que ela demandaria níveis de conceitualização superiores aqueles
empregados nos usos da linguagem oral.

Práticas de leitura e escrita, fracasso escolar e camadas pobres

Introdução

Nos últimos 15 anos temos assistido no Brasil à retomada de uma série de


questões que voltam à baila através dos estudos realizados no campo da
alfabetização das crianças de classes populares. Reavivando as teses da
suposta ausência de experiências culturais entre as crianças de camadas
populares, como uma das principais causas do seu mau desempenho escolar,
as políticas educacionais brasileiras vêm promovendo uma “verdadeira
revolução no campo da alfabetização” (Ciclo Básico, 1990; PCN, 1997).

Baseados nos trabalhos das psicólogas argentina e espanhola, Emília Ferreiro


e Ana Teberosky (1979), de enorme repercussão no Brasil, as políticas
educacionais têm se voltado a uma reformulação das propostas de
alfabetização e à capacitação dos professores do ensino fundamental, como
medida de combate aos altos índices de fracasso escolar.

Gostaríamos de discutir neste artigo, algumas das teses centrais que estão na
base das mudanças conceituais das novas políticas de alfabetização. Alguns
dados de pesquisa por nós realizada apontam a necessidade de certa cautela
quanto às afirmações sobre a ausência de experiências de leitura e escrita nas
camadas populares e suas conseqüências negativas sobre o desenvolvimento
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 1/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

cognitivo de suas crianças. Os dados recolhidos foram tema de um trabalho


de pesquisa mais amplo (Sawaya, 1992; 1999) e analisados à luz das
contribuições de um referencial da história cultural (Chartier, 1994).

Primeira Tese

O pressuposto básico que norteia as novas concepções de alfabetização é o


de que as crianças de classes populares são provenientes de lares onde não se
fazem usos da leitura e da escrita. Como conseqüência dessa ausência de
interações com situações de leitura e escrita, essas crianças não teriam
atingido os níveis de conceitualização necessários à construção da escrita na
escola e não compartilham das mesmas competências linguísticas das
crianças de classe média e pressupostas pela escola. Essas teses têm servido
como algumas das principais justificativas para as políticas educacionais de
extinção da reprovação no ensino fundamental, através da implantação da
progressão continuada das crianças pelos 8 anos de escolarização,
permitindo mais tempo para os alunos dominarem as habilidades da leitura e
da escrita e seus usos sociais (PCN, 1997; Davis e Silva, 1993; SEE, 1997;
2000).

Segunda tese

Para que as crianças possam compreender e se apropriar da língua escrita na


escola é preciso que elas tenham atingido níveis de conceitualização que as
crianças de camadas populares podem não ter alcançado. O que constituiria
uma barreira educativa para essas crianças, resultando em sua reprovação
escolar.

Os usos da linguagem oral na pobreza urbana

Um estudo realizado em 1992 junto a um grupo de 14 crianças com idade


entre 3 e 9 anos em um bairro periférico da cidade de São Paulo veio
confirmar dados que algumas pesquisas junto aos grupos populares já
apontavam e que encontram justificativas nos recentes estudos na área de
história cultural sobre as práticas de leitura e de escrita (Chartier, 1994). Há
práticas de leitura e de escrita entre os grupos populares não alfabetizados,
há a circulação de uma diversidade de textos, folhetos documentos, pois não
só os meios de comunicação se encarregam da buscar esses “leitores” como
as várias formas de existência social da escrita têm atingido a todos quando
os papéis começaram a fazer parte da vida da sociedade.

Através de uma perspectiva metodológica proveniente dos estudos


etnográficos (Ezpeleta e Rockwell, 1989) da vida cotidiana dos grupos
populares e dos seus usos da linguagem oral, buscamos dar voz às suas
questões sobre a vida, a família, a escola, o bairro, a casa, os desejos, medos
e suas dificuldades nos reunindo durante dois anos junto a um grupo de 14
crianças duas vezes por semana durante 4 horas para brincar, passear e
conversar.

O grupo de crianças pré-existia ao nosso trabalho e circulava todos os dias


pelo bairro e se impôs às nossas solicitações de separação por idades ou por
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 2/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

estágios de desenvolvimento, nos solicitando outro tipo de relação com o


campo da pesquisa, na qual era impossível separar participação de
observação. Há uma sociabilidade entre elas que torna suas vidas e suas falas
atividades coletivas, vividas em grupo de crianças de várias idades. Os
grupos permitem a constituição de relações e trocas verbais, de sentidos,
percepções e práticas compartilhadas que se estende para além do núcleo
familiar e que vão constituir espaços de sociabilidade para além daquele
construído pelos laços consangüíneos.

Uma das principais características por nós encontrada foi a complexidade


com que as crianças se utilizam da linguagem oral e o lugar que as suas falas
ocupam na constituição de uma memória coletiva e da identidade do bairro.

Ao chegar nos bairros pobres da cidade de São Paulo somos surpreendidos


por duas fortes imagens: a extrema pobreza e a impressão de estarmos num
bairro de crianças. Elas estão por toda a parte: na rua, nos pequenos quintais,
nas pequenas vendas, nas casas uns dos outros. Circulam por toda a parte,
formam grupinhos, brigam, se separam, cumprimentam os passantes,
conversam, cantam, contam piadas e principalmente histórias.

Muito presentes e atuantes no bairro passam seu dias em andanças.


Percorrendo as casas umas das outras, contam histórias, acontecimentos,
incidentes e noticiam a uns e outros a vida cotidiana do bairro. Em um
movimento itinerante, vão contando a uns o que os outros fazem,
construindo uma intimidade, tornando os fatos públicos e compartilhados.
Como andarilhos, esses “faladores” organizam sua vida quotidiana por via
das narrativas e suas “andanças” acabam, portanto, por traçar também o
“percurso” existencial, simbólico e cartográfico desse bairro. É através das
histórias das crianças que o bairro se conhece, o que acaba por atribuir às
crianças um lugar muito especial: o de porta-vozes e de informantes do
bairro e da vida das pessoas.

As crianças relatam os acontecimentos do dia: como o atropelamento de uma


criança na linha do trem, o pai de alguém que perdeu o emprego, o
nascimento de uma criança, a violência sofrida por outra, etc. Ao
compilarem as histórias através da fala das crianças, o bairro se “inscreve”
no espaço e na memória das pessoas.

Como representantes vivazes dos velhos contadores de história são “leitores”


da vida do bairro, narram as histórias que constituem parte da identidade
num espaço constituído de fragmentos, em constante mudança: enchentes,
batidas policiais, morte, atropelamento, despejos, etc. Como vínculos
aglutinadores desse bairro e dessas vidas, as falas das crianças ganham um
papel análogo ao que o escrito assumiu na sociedade letrada: registrar,
informar, tornar presente os acontecimentos passados, reconstruir a história
desse lugar e dessas pessoas. Assim, permitem que a identidade desse bairro,
dessas famílias se reconstrua através das narrativas das crianças, revelando
que muitas das funções sociais da escrita já estão presentes nas suas falas,
que se complementam com o recurso aos textos e documentos escritos que
circulam.

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 3/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

A presença de materiais escritos no grupo de crianças e suas famílias:


elementos para reflexão

Os textos, os materiais escritos e as situações de leitura que surgiram no


grupo de crianças conosco ou em situações familiares apareceram em
contextos, circunstâncias e práticas de leitura bastante diversas. O que nos
permite revelar alguns dos lugares que os materiais escritos e a leitura
parecem ocupar nesse grupo.

Uma assimilação, pelas crianças, da nossa presença no bairro como


representante da escola ou como professora, expressa em seus comentários
sobre a nossa pessoa, nossos objetos - caderno, lápis, óculos, a condição
socioeconômica etc. e também os desejos expressos, sejam dos pais, sejam
das próprias crianças, de que pudéssemos cumprir esse papel, e ensiná-las a
ler e a escrever, contribuíram para a criação de várias situações em que
pudemos perceber algumas das representações das crianças sobre a leitura e
a escrita na escola.

Fomos, em algumas ocasiões, solicitados pelos pais de algumas crianças para


que auxiliássemos na lição de casa e na elaboração de exercícios escolares.
Nunca alegaram, com esse pedido, o fato de não saberem ler e escrever.
Todos os que tivemos oportunidade de ajudar tinham feito várias tentativas
de resolver o problema (há várias mães que lêem mas não escrevem, e
portanto “para si se viram bem”). O pedido vinha no sentido da compreensão
do que estava sendo solicitado pelo professor, como se existisse uma
“linguagem escolar”: exercícios, perguntas, em que só ler ou escrever não
basta. Há um sentido “oculto” em que só quem está de algum modo ligado à
escola é que sabe. Essa mesma relação com a escrita e a leitura “escolar” é
também compartilhada pelas crianças, acrescida da insegurança que a
situação coloca para elas, como veremos a seguir.

Alguns estudos históricos (Hébrard e Chartier, 1988) têm chamado a atenção


para a origem histórica e social das práticas escolares do ensino da língua. A
universalização da escolarização, bem como a naturalização das suas práticas
de ensino, produziu o apagamento histórico e social de suas origens. Assim,
a cópia, o ditado, o exercício, o abecedário, que compõem práticas de uma
cultura escolar, produz em todo aquele que inicia sua vida escolar uma
verdadeira conversão a certos modos de relação com a língua escrita
produzida pela escolarização.

A relação com a linguagem escrita produzida pela escola é um modo


artificial de lidar com ela, e não tem vínculos com os usos cotidianos da
escrita e da leitura (Lahire, 1993). Longe de se tratar de um processo natural
e universal pelo qual todas as crianças em um sistema alfabético passariam,
trata-se de um trabalho produzido pelo sistema escolar, isto é, de formas
culturais criadas pelo ensino sistematizado da língua escrita.

Alguns dos nossos dados revelam que há entre as crianças a crença, que se
confirma também entre as próprias famílias de que “não sabem aquilo que é
preciso saber para estar na escola”. A escola não é o lugar onde se ensina
para quem não sabe, mas onde há um “saber” que é preciso dominar e que
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 4/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

pode ser variável, de acordo com as mudanças de professora e de escola. A


presença divina é sempre evocada pelas crianças que, em suas brincadeiras e
preces, solicitam que Deus as ilumine e guie em seu desempenho escolar.

Há, portanto, na fala dessas crianças sobre a experiência escolar, uma


separação daquilo que são as práticas de leitura e escrita fora da escola
daquilo que é a atividade de ler e escrever na escola. Uma distância entre o
que experimentam como leitura e escrita em seu contexto social não guarda
necessariamente semelhanças com o que experimentam na escola. Além do
mais, o preconceito social contra aqueles que não são escolarizados não os
autoriza a falar na existência de “práticas, usos da leitura e da escrita”,
mesmo que essas atividades estejam presentes (lê para si, etc.), como
constatamos.

Todavia, a escola e as suas atividades escolares não são destituídas de


sentido para essas crianças: “lá se faz lição, continhas, passa-se de ano,
repete-se de ano, faz cópia, ditado”, adquire-se um saber que sabem que é
preciso saber; o status da escola como lugar de saber está incorporado por
essas crianças, bem como a capacidade de ensinar do professor; é ele quem
sabe, é a ele que se deve obedecer, a figura do professor por mais que se
sofra com ele está preservada no imaginário de todas as crianças do grupo,
mesmo das que repetiram o ano, ele diz o certo e o errado, e o que é preciso
fazer para passar de ano - o maior desafio para todas elas e seus pais. Ele é
referência subjetiva, social e cultural para essas crianças.

Um dado revelador desse estado de coisas foi o pedido de uma das mães para
que ajudássemos na elaboração de uma lição de casa em que, em uma folha
mimeografada, havia as seguintes inscrições: “Cópia: horóscopo, livro,
revista”. Do que, afinal, tratava-se? O pedido era para copiar as palavras, os
textos escritos nesses suportes indicados? Nem mesmo a criança sabia
explicar. Esse dado revela também um outro aspecto fundamental da relação
da escola com sua clientela pobre, a desconsideração, a priori, da capacidade
da mãe em ajudar na lição, inviabilizando, efetivamente, essa ajuda, e que se
reflete no fato de que não parece necessário informar ao leitor, que esta fora
do contexto escolar, o que de fato está sendo pedido. A mãe escolarizada ou
não, não tem como ajudar.

As atitudes da escola em relação a essas famílias confirmam isso na medida


que, o exemplo da lição de casa revela que a escola desconsidera, a priori, a
possibilidade da ajuda das mães na elaboração da tarefa das crianças.

Há vários anos alguns estudos têm revelado (Patto, 1997; Colares e Moyses,
1996) a existência de preconceitos sociais contra a capacidade das crianças
de camadas populares para aprender a ler e a escrever e que se reflete nas
atitudes da escola em relação a elas. Os nossos dados mostram que esses
preconceitos, que conduzem as atitudes da escola em relação a essas
famílias, como vimos, acaba se confirmando como verdade aos olhos da
escola. A forma com que os próprios pedidos são feitos aos pais inviabiliza a
ajuda na lição e reforça, nos próprios pais e crianças, a idéia na sua
incapacidade de ensinar e das crianças de aprender, como expressa algumas
das falas das crianças de que “não têm cabeça para a escola”.
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 5/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

O que os dados revelam é a preocupação eminentemente técnica e


instrumental com a língua escrita que define o conteúdo escolar da
alfabetização. Desse modo, é preciso se considerar que se distâncias há entre
as práticas escolares com a leitura e a escrita elas parecem ser decorrentes
muito mais do modo artificial operado pelas escola em tratar a linguagem do
que da ausência de práticas de leitura nesse grupo. As práticas escolares é
que têm sido as responsáveis pela criação da distância das práticas sociais da
leitura e da escrita, na medida em que seu modo de tratar a linguagem
produz um desconhecimento das experiências de que as crianças já
dispunham quando chegaram na escola. O que acaba por tornar as
experiências de leitura e escrita que as crianças tenham tido anteriormente,
como uma experiência que está em descontinuidade e é destituída de valor
em relação àquilo que a escola propõe como atividade de leitura e escrita.

Fazer história e construir uma identidade: a fala e alguns dos usos da


escrita

Um dos modos de apropriação e “registro” do bairro e da vida e história de


seus moradores, como já mencionamos, se dá através da fala das crianças.
Recorrendo a uma memória construída a partir do que ouviu falar ou do que
viu, como “informantes” e “faladores” o bairro fala e se conhece através das
crianças, no bom e no mau sentido. Num bairro em constante mudança e
transformação, em que as ruas não têm nome, nem as casas, números, aonde
os cômodos de quintal vão constituindo labirintos, são as falas das crianças
que traçam a sua cartografia, sua inscrição espacial e sua permanência
existencial.

É comum para quem chega ao bairro vir perguntar às crianças onde mora
determinado morador, pois elas sempre sabem, bem como indagar se o
lixeiro já passou, se o barbeiro ou o boteco está aberto, quem mudou, quem
nasceu, quem separou ou perdeu o emprego etc. Como pombos correio,
levam e trazem mensagens, notícias, fofocas etc. As marcas espaciais e
temporais da existência e permanência desse bairro são dadas pela
observação e pelo relato das crianças.

As funções e os usos sociais ocupadas pela escrita se inscrevem na fala das


crianças, assegurando a permanência e a reunião de informações,
armazenando conhecimentos e conteúdos, registrando e dando certa
continuidade aos fatos.

As falas das crianças se caracterizam pela narrativa dos fatos vividos, pelo
contar histórias, o que contraria as hipóteses sobre a existência de
deficiências lingüísticas entre as crianças de camadas populares. Ao falarem,
traçam para o ouvinte um percurso, descrevem uma trajetória, situam-no no
tempo e no espaço, constituindo através da suas falas um campo de
significações e sentidos. Assim, ao falarem dos acontecimentos do bairro, da
vida das pessoas, das histórias do que ali se passa, vão situando
concretamente o discurso nos espaços (“foi ali perto da casa da dona
Nezinha, você conhece?”) de modo que o ouvinte passa a percorrer através
das narrativas o mesmo trajeto e a compartilhar, com elas, um universo de

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 6/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

sentidos, lugares e tempo. O ouvinte passa a habitar, através da fala das


crianças, aquele lugar e a viver nele com elas.

As crianças pontuam seu discurso de relatos de acontecimentos marcantes,


eventos como o nascimento, mortes, acidentes etc., mas também buscam
formas de acumulação e registro no tempo e no espaço, apoiando-se em
materiais escritos e no álbum de fotografia do casamento dos pais, onde
estão escritas frases e orações, desejos de felicidade e bênçãos, gozações e
piadas. Também compõem um universo de textos escritos a certidão de
nascimento, o álbum que traça os primeiros anos de vida do bebê, o batizado,
as cartas, registros, documentos de compra do terreno, a nota da compra dos
blocos para construção do cômodo, o pagamento da conta de água, o recibo
da luz que não foi paga e ameaça ser cortada, a prova escrita do abuso da
cobrança da conta de luz pelo dono do cômodo; recortes de jornal; receitas
médicas; a bula de remédio, alguns livros, muitas revistas, gibis, a carteira de
trabalho, o registro do último empregador, o último pagamento, a carta de
recomendação etc.

O que estes dados revelam é que estamos diante de grupos sociais que
também fazem usos dos objetos escritos que fazem parte da cultura escrita,
isto é, estamos frente aos usos sociais da escrita em uma cultura escrita. Os
objetos escritos surgem para atestar uma presença, uma existência, dar
materialidade e legitimidade aos relatos, fazer denuncias e pedidos de ajuda.
Eles ganham sentido através do seu contexto de uso: o relato da sua vida, das
suas dificuldades, da precariedade da existência, da revolta por injustiça
cometida. Talvez, fora das circunstâncias em que ganham sentidos seria
muito difícil a um observador externo tomar conhecimento deles. Aqui a
escrita é também testemunho, é atestado, acompanha um relato oral, não é
letra morta, ganha sentido na economia do todo na luta pela sobrevivência.

Mas também cumprem, nesse grupo, as funções sociais da escrita. Não


estamos, portanto, frente a grupos à margem do sistema escrito, grupos que,
por não dominarem as habilidades de leitura e escrita, pertenceriam a uma
cultura oral isenta, isolada do conjunto da sociedade.

- Mãe, vou buscar as fotos para a tia ver. (Birro, 6 anos)

- Olha, essa é minha avó, parece; essa outra lá também é minha avó (mostra
sua avó na casa em frente). (Samuel, 6 anos).

- Olha tia a Fabia, a Viviane, o Diego, e eu. (Birro, 6 anos).

- Aqui é lá na Benecy que nós tiramos a foto, a Cristina levou nós. (Birro)

(...)Ó aqui o batizado do Samuel.

- Ó quem batizou. (Samuel).

- A mãe já comprou a camisa do Rambo para ele (Birro)

- Olha, aqui eu, ó, eu, meu padrinho e minha madrinha (Samuel)

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 7/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

- Ó Diego, você está aí Diego, você viu você pequenininho chorando? Você
está chorando pequenininho. (Marquinho, 4 anos).

As fotos têm um significado especial e são objetos obrigatórios da visita para


as crianças; é como se elas revelassem, concretamente, a posição das
crianças no mundo, sua identidade, sua história, sua existência que ali se
atesta no tempo e no espaço: o batizado, o momento do choro, a madrinha
etc.

Todos sabem, crianças e adultos, que os documentos têm um peso vital. Ser
abordado pela polícia, sem documentos é ser suspeito e pode levar à cadeia,
já que a palavra do trabalhador braçal não tem valor quando se está diante da
autoridade. Alguns relatos de pesquisa (Magnani, 1984, p.138) já mostraram
que mais do que a carteira de identidade é a carteira de trabalho, o nome e
endereço do empregador, a firma onde trabalha, sua função e registro, que
atestam a credibilidade do operário, do trabalhador braçal, que assegura se o
seu portador é ou não digno de credibilidade.

A propaganda escrita e as crianças vendedoras ou “como fazer um


dinheirinho”

As crianças também fazem uso dos textos escritos. Circulam pela mão das
crianças muitos e variados folhetos, livretos de propaganda dos mais
diferentes produtos, “passeando para lá e para cá”, num entra e sai da casa de
uns e outros, as crianças não perdem a oportunidade de abordar um
comprador potencial. Muitas vezes elas traziam no grupo de crianças
folhetos de propaganda de produtos da Avon, de lingeries, de potes plásticos
para mantimentos, rifas de produtos doados e até mesmo folheto de
propaganda eleitoral distribuído no bairro mediante a solicitação de que as
crianças os distribuíssem.

As crianças manuseiam os folhetos de venda de produtos e não perdem a


oportunidade de tentar vender. Sabem a finalidade das revistas e seu
conteúdo, e a falta constante de dinheiro dos pais para comprar o alimento,
os brinquedos desejados, “a roupa da lambada [1] ” para o concurso no
bairro, e sabem também que a venda do produto pode lhes garantir essa
satisfação.

- Tia, você quer comprar uma dessa? a sua é igual a dessa? tem rendinha
também? (Biana, 6 anos)

Revistas de artistas, livros escolares, cartilhas, álbum de figurinhas de


animais, de futebol, revistas de quadrinhos etc., também circulam pela mão
das crianças, trazidas por alguém, e que suscitam comentários entre elas e
nós:

- Se a gente completar tudo ganha uma bonequinha.(Ariana, 4 anos)

- Para mim está faltando esse e esse.(Samuel, 6 anos comentando o álbum


de jogadores de futebol).

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 8/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

A profusão de materiais de propaganda dos mais diferentes tipos e


finalidades também está presente nessas famílias e entre as suas crianças.
Todos eles são consumidores de produtos e materiais escritos distribuídos ou
até mesmo comprados pelo pai de alguém e que circula na mão de todos.

O jornal e a discriminação contra o pobre

Numa tarde chuvosa e apinhados num único cômodo, as crianças nos pedem
lápis e papel para desenhar. Os pedidos de folha para desenhar, “fazer lição”
são constantes. Há um fascínio das crianças para escrever e insistem para
que as ensinemos.

- Tia, olha, nós fizemos um bilhetinho para você, lê aí o que está escrito.
(Ariana, 4 anos)

- Sabe o que eu queria falar para a professora estar lembrando assim ó tia,
está lembrando assim de você lá na escola, eu quero trazer folha para tia.
Eu falei assim para a professora, lá tem um monte de folha..

- Tia, você vai ensinar nós, não vai? (Drianinha, 8 anos)

- Vou escrever ó (faz uma porção de bolinhas, uma próxima da outra e vai
falando em voz alta) Diego, Samuel, Marcos, Viviane Lima. (Samuel, 6 anos,
nunca foi à escola)

Iara, a mãe de uma das crianças comenta que aprendeu um pouco de leitura,
“sabe para si” mas não consegue ajudá-las na lição. Costumava ler o jornal
mas deixou de lê-los devido a indignação que uma reportagem enganosa
sobre um incêndio no bairro lhe causou. Um dos moradores esqueceu cigarro
aceso no colchão e saiu para trabalhar; o fogo se alastrou com tanta rapidez,
devido à falta de espaço entre os vários cômodos, que a tragédia tomou
grandes proporções. Noticiado pelos jornais, ficou chocada com as mentiras
contadas, alegando que moradores da favela haviam ateado fogo depois de
uma briga. Revoltada com a reportagem, deixou de ler jornal “só conta
mentira, e vêm aqui pra dizê prus otro que aqui só tem bandido e num é
lugar de gente decente”.

A leitura de notícias, dos acontecimentos, das desgraças e a preferência por


textos, livros, fotonovelas que relatem como é a vida dos outros fora dali,
que lhes ensinem algo também está presente entre essas famílias, como Bosi
(1986) já havia identificado entre as operárias em uma fábrica em São Paulo.

As práticas de leitura e a veracidade das informações

Mas se alguns “lêem para si”, há também no bairro “escribas” e “leitores”


“oficiais”. Consideradas como atividades distintas, ler e escrever são
atribuições designadas a pessoas possuidoras de competências diferentes. Os
“leitores oficiais” não são escolhidos apenas porque sabem ler, mas também
porque são pessoas de confiança, conhecidas no “pedaço” e “estudadas”, isto
é, capazes de interpretar os vários sentidos explícitos ou implícitos, a
veracidade, a autoria, a confiabilidade do que está escrito e guardar segredo.
Há uma compreensão de que essa escrita foi produzida por alguém e com
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 9/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

alguma intenção, que a sua simples leitura não basta para apreendê-la. A
leitura do texto precisa vir acompanhada de uma interpretação, trazer outras
informações e outros conhecimentos que o leitor precisa ser capaz de
fornecer.

O texto é percebido por esses “ leitores” como uma produção que se serve de
outros como fonte de informação e referência, ou que se inscreve num
campo de conhecimentos específicos – o discurso técnico, científico, etc. – e
são essas competências que se solicitam aos seus leitores oficiais.

A leitura sem essa interpretação não garante o seu pleno entendimento. Pede-
se algo mais de quem lê, que seja o intermediário, o interlocutor entre o texto
escrito, seu pretenso autor e o solicitante da leitura: que restabeleça na leitura
o diálogo entre texto, autor e leitor, e que o sentido seja construído nessa
intercessão. Funções e formas de leitura que restituem as características das
relações orais da interlocução, cujo sentido é negociado entre os leitores e
texto.

A leitura de um documento ou de uma receita médica vem ao encontro dessa


nossa percepção. Uma das moradoras do bairro, ao nos solicitar a leitura de
uma receita médica, comunica que não está “entendendo direito o que ela
quer dizer”; lê a receita e o nome do remédio, mas solicita ajuda para saber
“se o remédio está correto”. Sabe que não somos médico, mas quer saber se
conhecemos o médico, se não terá problemas em seguir a receita, pois
desconfia das indicações do Posto. Alega que “tem gente aqui que passou
mal tomando esses remédios”. As relações dos moradores do bairro com o
Posto de Saúde não são boas. De fato, eles relatam que foram muitas vezes
discriminados e mal atendidos, e isto permeia, com toda razão, a atividade da
leitura e o seu leitor. A significação da palavra escrita, a leitura literal do
texto, não basta, o texto não se esgota nele mesmo, a palavra ali escrita tem
uma história que é preciso conhecer para que a leitura faça sentido ao seu
destinatário.

Do “escritor” se solicita outras competências, outros gestos, outras práticas


distintas: boa caligrafia, estilos de escrita para diferentes funções, que
possam expressar os sentimentos de saudade, sofrimento, ou justamente
saber camuflá-los, um discurso escrito dotado de uma retórica que também
comunique.

Algumas questões

Se estes dados colocam em dúvida as afirmações da inexistência de situações


de leitura e de escrita entre as crianças de classes populares, há também um
longo caminho a percorrer no entendimento da natureza desse contato e dos
usos e apropriações que delas fazem e ainda dos materiais escritos que vão
constituir a “bagagem que as crianças levam para a escola” na aquisição da
leitura e da escrita.

O que chamou particularmente a atenção nesses dados é que não se


confirmam as teses de “deficiências lingüísticas” entre as crianças nesse
grupo e o pressuposto de uma “ carência cultural” mais uma vez mostra sua
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 10/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

inadequação ao afirmar a inexistência de práticas de leitura e escrita entre


grupos não alfabetizados na cultura escrita. As formas narrativas de que se
servem para contar as histórias do bairro, da família e dos acontecimentos
revelam uma busca de compreensão e sentido do que quotidianamente
vivenciam, procurando descrever, informar, traçar para o ouvinte o percurso
da sua curta existência, seus medos, suas vontades de criança, as piadas etc.
Para além desses dados, o contato com materiais escritos e alguns dos seus
usos também puderam ser por nós registrados (documentar uma existência,
recordar acontecimentos passados, registrar etc.) ainda que de maneira
fragmentária e precária, revelando que essas crianças e suas famílias não
estão à margem da sociedade e da cultura em que vivem.

As situações de leitura surgiram através de ações atreladas à fala e às ações


quotidianas dessas famílias e das próprias crianças. Elas recorreram aos
textos e aos materiais escritos como apoio à memória, como um estoque de
informações que pudesse dar credibilidade ao que estava sendo dito, prova
da sua veracidade, permitindo documentar uma biografia e dar-lhe existência
objetiva. Talvez, distante dessas falas e do contexto onde ganham sentido, os
materiais escritos sejam objetos e produtos inertes. Parece haver uma
desconfiança de que o conhecimento que o livro, o jornal ou a revista
transmite baste por si mesmo, pois sabedoria e experiência ainda estão
juntas.

Tomando a leitura e a escrita como práticas sociais, que promoveram certas


formas de organização dos modos de vida na sociedade, as novas concepções
de leitura e escrita revelam os múltiplos aspectos envolvidos nos diferentes
usos que o mundo moderno tem feito da escrita e as mudanças nas
instituições sociais, nos modos de pensar, se relacionar e perceber, que
revolucionaram a sociedade como um todo.

Todos os grupos sociais sofrem as influências das práticas escritas e estão


implicados pelas formas escritas que organizam de determinados modos a
sociedade, porém ao se relacionarem com elas de diferentes lugares sociais e
a partir das contradições que caracterizam a sociedade de classes (as
desigualdades no acesso aos bens culturais, a precariedade ou ausência do
domínio das habilidades de leitura e escrita etc.) estabelecem diferentes
relações, práticas e formas de apropriação, o que abre uma nova perspectiva
aos estudos das práticas de leitura e escrita nas classes populares e nos
permitem questionar vários dos pressupostos sobre os quais estão pautados
os projetos de alfabetização das classes populares no Brasil.

A aquisição pelas crianças da língua escrita demandaria níveis de


conceitualização que podem não ter sido alcançados por elas por ocasião de
sua entrada na escola devido a ausência de situações de leitura e escrita em
seu ambiente familiar?

Relação entre domínio da escrita e desenvolvimento cognitivo

O pressuposto de que a assimilação da escrita demanda níveis de


conceitualização mais avançados – tese sobre a qual se apóiam as novas
políticas educacionais de alfabetização no Brasil, como vimos – é objeto de
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 11/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

muitas controvérsias. Alguns estudos lingüísticos (Houston, 1997; Cagliari,


1997) afirmam que a linguagem é uma das formas mais sofisticas de
abstração, construída sobre conceitualizações e generalizações presentes em
todos os falantes de uma língua, sejam eles alfabetizados ou não. Desse
modo, a criança que sabe falar e conversar dá provas de que já atingiu o
estágio lógico-formal da ontogênese, pois conversar é uma das formas mais
sofisticadas de organização da experiência e da manifestação da inteligência
superior dos humanos. A noção de tempo, espaço, linearidade, causalidade
são ingredientes necessários ao uso da linguagem e estão nela enraizados.

Para esses autores a escrita seria uma das formas de representação da


linguagem verbal, isto é, ela traz a linguagem oral nela embutida.

Outros estudos argumentam pela falta de evidências de que a forma escrita


afete a mente. Muitas das mudanças lingüísticas, cognitivas e sociais
atribuídas à aquisição da escrita também foram encontradas nas culturas de
tradição oral: como a existência de um sistema de recitação, memorização e
acumulação de textos; a criação de instituições para usos dos textos; a
aquisição de uma metalinguagem para a interpretação e explicação dos
textos; e instituições e escolas para a introdução dessas práticas orais como
na tradição védica da Índia e entre os narradores da África (Pattanayak,
1995, p.118).

Para o antropólogo inglês, Jack Goody (1987) o pensamento abstrato,


racional e lógico é inerente a capacidade humana de pensar, mas as formas e
os usos que assumem são o produto da cultura. Não é a aprendizagem das
habilidades de leitura e escrita que asseguram usos superiores da escrita, mas
a produção de uma cultura escrita, da imprensa, a potencialização de
determinados usos quando ela se associa as formas de pensamento científico,
aos quais se atribui papel decisivo nas mudanças sociais e cognitivas da
modernidade. Mesmo porque, como esclarece esse autor, não há vínculo
causal entre escrita e pensamento. E o desenvolvimento das formas de
pensamento científico, aos quais se associam certos usos da escrita que
levariam as formas cognitivas mais avançadas, não penetram na mente dos
indivíduos e nem são necessárias à aquisição das habilidades de leitura e
escrita dos primeiros anos escolares.

Determinados usos da escrita, associados a formas de pensamento


superiores, não são uma decorrência natural da aprendizagem da escrita, mas
fruto de determinados processos sócio-históricos, culturais e políticos que
propiciaram as condições sociais para que a escrita fosse empregada de
determinadas formas, fazendo com que alguns desses usos tenham
implicações sobre o desenvolvimento de certas formas de raciocínio (Goody,
1987).

A leitura e a escrita são produtos da cultura, que faz dela certos usos, que
define seus modos de ensino e seus processos de aprendizagem. Elas são,
portanto, produzidas por relações sociais, por formas culturais que delas se
apossam e definem seus modos de transmissão e assimilação. Desse modo, é
preciso também discutir as concepções sobre o caráter universal de certos
processos cognitivos envolvidos na assimilação da leitura e da escrita pelos
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 12/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

indivíduos da sociedade. E atribuir valor negativo àqueles que não se


relacionam com os textos escritos da mesma maneira.

Na medida em que a história da leitura e da escrita delimita as formas


instituídas que as práticas de alfabetização escolar têm assumido nas
sociedades ocidentais modernas, é preciso se discutir se o que se define
como padrões cognitivos necessários a assimilação da língua escrita não são
produtos dos discursos científicos sobre ela, cujas práticas escolares
pretenderam universalizar?

É preciso se considerar também, que as formas de ensino da língua escrita,


que caracterizam o trabalho escolar da língua escrita (a cópia, o ditado, os
exercícios, as formas de compreensão do texto etc.), são uma construção
teórica sobre a língua, produzida pelos gramáticos, pelas relações de poder e
interesses políticos. E o aprendizado da leitura e da escrita na escola é apenas
uma das formas de introdução das crianças ao mundo da cultura escrita. As
investigações sociais e históricas têm vindo questionar a existência de certas
constantes na apropriação da leitura e da escrita, revelando a grande
variedade histórica e social das práticas que implicam a leitura e a escrita,
mesmo dentre aqueles que não dominam as técnicas de leitura e escrita
(Chartier, 1987). Desse modo, não se pode generalizar as formas de relação
com a escrita das crianças que vivem em diferentes contextos sociais, antes
da sua entrada na escola.

À guisa de conclusão

Os nossos dados revelaram a existência de materiais escritos, bem como de


práticas de leitura e escrita nos meios populares, apontando para a
necessidade de uma revisão dos pressupostos da sua inexistência, bem como
dos efeitos dela sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças pobres. Na
medida em que a leitura e a escrita são entendidas como práticas sociais já
não é mais possível separar o processo de alfabetização, dos usos da língua
escrita.

Os processos de alfabetização, isto é, do ensino e da aprendizagem da língua


escrita envolve processos sociais e formas culturais que se apossam da
leitura e da escrita, conduzindo de determinados modos os processos de
assimilação.

A análise das informações obtidas na pesquisa e as contribuições trazidas


pela história cultural da leitura e da escrita permitiram problematizar as
afirmações sobre a ausência de leitura e escrita nos meios populares e suas
supostas conseqüências cognitivas, ao revelarem que a escrita é uma prática
cultural e, portanto, não se reduz às operações cognitivas com o texto escrito.
Os usos que a sociedade tem feito da escrita permitiram que ela penetrasse,
de diversas maneiras, nos vários domínios da vida social, nas suas formas de
organização, na construção das significações sociais e nas formas de relação
social. Como práticas sociais, esses autores revelam que há modos de leitura
(silenciosa, teatralizada, coletiva etc), modos diversos de emprego dos
textos, diferentes formas e processos de acesso ao texto, apontando para
aspectos desconhecidos das relações que os leitores estabelecem com o texto
http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 13/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

escrito e incluindo neles leitores que não dominam as técnicas de leitura e


escrita. Assim, os processos de exclusão social das populações pobres aos
bens culturais não impediram as relações práticas e simbólicas que a escrita
trouxe ao conjunto da sociedade.

As questões apontadas nos levaram a algumas problematizações dos


pressupostos que até então embasam as concepções sobre as relações das
classes populares com a cultura escrita: não existem, numa sociedade letrada,
grupos marginalizados das práticas e relações escritas; nas sociedades
capitalistas contemporâneas não existe «marginalidade social» como não-
participação na sociedade e na cultura; a cultura popular não pode ser
entendida sem referência à cultura dominante; integrar as crianças pobres à
«forma escolar» de relação com a língua, por meio de automatismos técnicos
de alfabetização, é uma prática de submetimento que, como tal, produz
resistência.

Bibliografia

BOSI, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular, leituras de operárias. 6a.


ed. São Paulo: Vozes, 1986.

CAGLIARI, Luiz Carlos. O príncipe que virou sapo. In: PATTO, Maria
Helena (Org.). Introdução à Psicologia Escolar. 2ed. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1997.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações,


Lisboa, Difel edit., Ltda, 1987.

____________, A ordem dos livros, Brasília, D.F., Ed. UnB, 1994.

COLLARES, Cecília A.L.; MOYSES, Maria Aparecida. Preconceitos no


cotidiano escolar, ensino e medicalização. São Paulo: Cortez, 1996.

EZPELETA, Justa; ROCKWELL, Elsie., Pesquisa Participante, São Paulo,


Cortez /ed.Associados, 1989.

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Los sistemas de escritura en el


desarrollo del niño. México: Siglo XXI, 1979.

GOODY, Jack, La logique de l´écriture, Paris, A Colin, 1987

HÉBRARD, Jean; CHARTIER, Anne-Marie. Discours sur la lecture (1880-


1980). Paris: BPI, 1988.

HOUSTON, Susan. Um reexame de algumas afirmações sobre a linguagem


da criança de baixo nível socioeconomico, p.174. In: PATTO, Maria Helena
(Org.). Introdução à Psicologia Escolar. 2ed. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1997.

LAHIRE, Bernard. Culture écrite et inégalités scolaires. Sociologie de


l’échec scolaire a l’école primaire. Lyon: Presses Universitaires de Lyon,
1993.

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 14/15
01/08/2017 Práticas de Leitura e Escrita entre as Crianças na Pobreza Urbana

MAGNANI, Carlos Guilherme,. Festa no pedaço, cultura popular e lazer na


cidade de São Paulo, São Paulo, ed. Brasiliense, 1984.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Secretaria de


Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais, Introdução.
Brasília: MEC v.1 e v. 2, 1997.

PATTANAYAK, D.P. A cultura escrita: um instrumento de opressão. In:


OLSON, David; TORRANCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. São
Paulo: Ática, 1995.

PATTO, Maria Helena S. A produção do fracasso escolar. 2a.ed. São Paulo:


Casa do Psicólogo, 1997.

SAWAYA, Sandra M. Pobreza e linguagem oral: as crianças do Jardim


Piratininga. São Paulo; 1992. 263 p. Dissertação (Mestrado) - Instituto de
Psicologia da USP.

SAWAYA, Sandra M. A leitura e a escrita como práticas culturais e o


fracasso escolar das crianças de classes populares: uma contribuição crítica.
São Paulo; 1999. 191 p. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia USP.

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO - SÃO PAULO.


Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Ciclo Básico em Jornada
Única uma nova concepção de trabalho pedagógico. v.1 e v.2 São Paulo,
1990.

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO - SÃO PAULO. Fundação


para o Desenvolvimento da Educação. A defasagem entre série/idade regular
de matrícula e o projeto "classes de aceleração". São Paulo, 1997.

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO - SÃO PAULO. A


construção da proposta pedagógica da escola. A escola de Cara Nova
Planejamento 2000. São Paulo, 2000.

SILVA, Rose N.; DAVIS, Claudia. É proibido repetir. Avaliação


Educacional, FCC, São Paulo, n.7, p.5-19, jan./jun. 1993.

[1] Trata-se de um tipo de dança bastante popular nos bairros pobres de São
Paulo

http://www.hottopos.com/videtur18/sandra.htm 15/15

Das könnte Ihnen auch gefallen