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“ A COSTURA “
Ainda hoje me interrogo sobre o que a faria realmente mexer, na vida, aquela
moça. Sexo, manifestamente não era, como tive ocasião de vir a confirmar. Além disso a
sua ignorância abissal sobre pilas, revelava-o, não obstante todas as suas histórias sobre
os namorados que já tivera, as experiências inúmeras, etc, dava para ver que a
sexualidade não era o nódulo central, único ou principal, destas relações. Se acaso
fossem mesmo verdade. Porque como vim a verificar mais tarde, ela não se coibia de
enfiar as suas petas, para tornar mais emotivos e coloridos, os relatos da sua vida.
Também pude confirmá-lo com facilidade, essa questão da importância da sexualidade,
na sua vida quotidiana, ao fazer-me esquecido de foder com ela, ao longo de semanas
seguidas, só para ver como era. Não só não se queixou abertamente, como pareceu nem
dar por ela ou isso revestir-se de qualquer significado ou importância. Havia de ser com
a Paola, a minha ex, que me afirmava sem qualquer rebuço:
- Olha Pepe, eu preciso de foder todos os dias, todas as noites. Portanto livra-te
de fazeres viagens, férias, ou qualquer tipo de ausências, sem mim. Já ficas a saber.
Quem te avisa, teu amigo é...
De facto, com a minha barriga, os indícios indisfarçáveis de calvície prematura e
a quase total ausência de dentes nas descarnadas gengivas, nunca alimentei grandes
ilusões de que a pita subitamente se tivesse apaixonado perdidamente por mim, até
porque ela, nesse aspecto, desde o principio foi sincera comigo, informando-me desde
logo de que tinha um namorado de quem gostava muito, o homem da vida dela, de
momento ausente, internado num centro para recuperação para toxicodependentes, no
qual ela também já estava inscrita e para onde ainda não tinha abalado, pura e
simplesmente porque lhe faltavam as condições económicas. Disse-me também que a
mãe estava a mexer os cordelinhos e a fazer todos os possíveis, junto da Câmara e de
outras entidades de apoio socio-economico junto às famílias mais desfavorecidas, no
sentido de angariar meios, possibilidades e maneiras de conseguir coloca-la lá, fosse a
pagantes ou à borla ou desse lá por onde desse.
- Cá por mim, tudo bem – disse-lhe eu. Até era gajo para dar-lhe uma ajuda,
quando chegasse a altura. É que nesse tempo eu ainda não tinha chegado propriamente
ao limite das minhas possibilidades económicas. Ela ficou bastante agradecida.
Comovida até, segundo afirmou. De facto ela não se cansava de afirmar o quanto eu era
um gajo porreiro, um verdadeiro cavalheiro, como nunca tinha conhecido nenhum.
Dizia à mãe, toda orgulhosa e divertida, que eu a tratava como a uma princesa. A mãe
deixava-se estar calada com uma expressão soturna, como se aquilo trouxesse água no
bico. Mas não comentava. Deixava apenas escapar um ligeiro sorriso que lhe torcia os
cantos da boca.
Por aqui se vê que também não eram propriamente os vícios, drogas, álcool e
outras merdas afins, aquilo que a entusiasmava na vida e a fazia mover. É certo que ela
fumava que nem uma chaminé. E não era só tabaco, como já especifiquei, mas
aparentemente isso não tinha assim muita importância para ela, a julgar pela vontade
que manifestava em querer curar-se, ao contrario de mim, para quem aqueles vícios
todos eram fonte permanente de gozo e curtição. Para ela, aparentemente eram mais
uma tortura e uma limitação, que qualquer outra coisa. Mas não se privava de fazer uma
razia nas nossas reservas, sempre que a oportunidade se proporcionava. Ora essa...
Sobretudo “chamon” e “rebolao”, eram as suas drogas preferidas, mas também
não se fazia rogada à “coca” e ao “cavalo”. Mamava do que houvesse. E até dizer -
Chega ! - Além daquele hábito lixado, das bisgas. Mas sobre isso, falarei mais à frente.
Aparte isso, nada na vida parecia interessar-lhe grandemente. Tirante a sua
obsessão pela limpeza, uma coisa doida a respeito da higiene, como eu nunca vi, de
modos que tomava meia dúzia de banhos por dia e estava quase permanentemente a
lavar as mãos, a fazer máquinas de roupa ou a passar os legumes e vegetais por água,
nada mais fazia que ficar estendida num sofá a ver telenovelas e a arranjar as unhas.
Esta coisa das unhas era outra das suas manias. Levava todo o dia e muitas das noites
também, nessa merda. A puxar as pelinhas com uma pinça e a cortá-las com uma
tesoura minúscula. A alongá-las com uma espátula e a pintá-las com verniz. Uma
psicose autentica. Eu evitava fazer comentários, mas aquilo fazia-me espécie.
Outra das coisas que me fazia espécie era a questão da música. É que ela
aparentemente não suportava a música que eu curtia. Ora eu sempre tive a reputação de
ser um gajo com um gosto particularmente elevado e até elaborado, subtil, em relação à
música que ouço. Tinha até fama de ser um dos gajos com a melhor pinacoteca, da
minha geração. E embora ao tempo me tivesse desfeito de todos os discos em vinil, que
possuía, para mais de oitocentos, entre os quais se encontravam verdadeiras pérolas que
jamais virei a reencontrar, rapidamente reconstruí uma nova, em CD’s. Esta, mais
cuidada, no aspecto em que me tornei mais exigente. Não fazia já questão de possuir
todas as obras dos cantautores que eu curtia e sim especificamente apenas aquelas cuja
audição me era agradável. Para evitar o mesmo erro de antes em que tinha prateleiras
cheias de discos que apenas ouvira uma vez e nunca mais lhes pegara. Ela, não chegava
ao ponto de exigir que eu retirasse os discos do prato quando eu estava a ouvi-los, mas
retirava-se frequentemente mal humorada para o quarto, nessas ocasiões. Ia arranjar as
unhas. O suficiente para eu já não conseguir prosseguir na audição em causa, com a
desejada leveza de espírito. Em contrapartida as músicas que a alegravam e faziam
mesmo dançar entusiasticamente pela casa, eram umas coisas desenxabidas e
indescritíveis, extremamente sincopadas, telúricas, lemúricas até, e paradoxalmente de
uma infantilidade atroz, de umas bandas juvenis modernas e insuportáveis, que sempre
que passavam na radio eu me apressava a mudar de posto, até que, para a não desgostar,
me forcei, obrigando-me a ouvi-las. Aquilo dava-lhe mesmo gozo, era notório. O que
me levou a concluir, com bastante pena minha, que a idade mental dela, não obstante os
vinte e quatro anos que já tinha na altura, não podia ultrapassar uns singelos quatorze
anitos, quanto muito. Menos que isso, de facto, porque essa é a idade da minha afilhada,
que para todos os efeitos me parece bem mais amadurecida que ela. Intelectual e
psicologicamente, pelo menos. Um mistério.
A minha ex, é hoje esposa de um ministeriável. Upa, upa! Isso é qualquer coisa.
Nada que se compare aos tempos em que vivíamos num apartamento de duas peças e eu
tinha que fazer das tripas coração, à pala do gamanço e do contrabando, só para a
menina andar vestida à moda e devorar todas as revistas com fotos do jet set, que
existiam no mercado. Uma bela merda.
Mas hoje é outra fruta. O marido dela é uma espécie de sub secretário de estado
de uma porra dessas qualquer e então papel, é o que há mais naquela casa. Vê-se logo
pelas fotografias. Ela hoje é useira e vezeira nas tais fotos das tais revistas, que dantes
coleccionava, toda gulosa, invejosa. Até parecia que era bruxa, a gaja. Não há semana
em que ela não apareça, sempre de casaco de peles nalguma soirée de luxo, ou de justos
vestidos de cetim vermelho e luvas negras até ao cotovelo, de design exclusivo, um
atelier de alta costura a trabalhar a todo o gás, só para ela abrilhantar a inauguração de
alguma discoteca da moda, ou exposição de arte ou evento social. Está nas suas sete
quintas, a menina.
Só anda de Mercedes com um condutor/guarda costas, impecavelmente
fardado, ou num MG descapotável de dois lugares, para as suas deslocações mais
privadas. Só usa perfumes franceses de marca, roupa interior de cetim ou seda e a
exterior é toda de design exclusivo, italiano ou francês, ou esporadicamente de alguns
artistas nacionais, escolhidos a dedo, que ela nessas merdas, gosta de auxiliar a prata da
casa. Uma verdadeira marquesa, como ela sempre gostou e se achou no direito.
Fico satisfeito por ela até porque não me ignora, nem muda de passeio,
fingindo que não me conhece, nas raras e muito ocasionais vezes em que nos cruzamos,
hoje em dia. Sempre que acontece eu estar de plantão nalguma esquina e ela sai do seu
carrão, ou à porta de algum cinema, ela, venha com quem vier, tem sempre uma atenção
para comigo e dá-me sempre uma esmola avantajada, discretamente é claro. Também
ninguém tem nada que saber dos nossos antigos e mais do que íntimos laços. Acho que
ela consegue fazer passar esses gestos por um altruísmo desinteressado ou as grandiosas
esmolas de uma grande dama, que também já foi povo humilde e não esquece as suas
raízes. Muito na esteira da Evita, a ex madame Péron, que é um dos seus ícones recentes
e que os inúmeros paparazzi que sempre acompanham as suas deslocações, não
desperdiçam.
O que é óptimo para mim, porque qualquer destas simples esmolas que ela me
estende desinteressada e discretamente, dá-me à vontadinha para passar uma semana ou
mais no Ritz, que é clássico e confortável e hoje em dia, bastante em conta, barbeado de
fresco todos os dias, com a roupinha escovada e lavadinha que é um consolo, em
memória dos velhos tempos, quando eu era também um Pinóquio, sempre à moda, bem
vestido e apessoado e tinha a minha empresa de publicidade e essas merdas todas.
Quero mais é que se foda. Também já esqueci esses tempos áureos. Só de pensar nas
contrapartidas... Foda-se.
Também manda entregar-me ou guarda até a ocasião se proporcionar, os fatos e
sobretudos, não muito usados (nunca mais que uma estação), que o marido já pôs de
parte. Esta gente não gosta de se repetir, naquilo que veste. Até pareceria mal deixar-se
ver no mesmo outfit mais que duas ou três vezes. E isto, para os homens é claro, porque
para as damas, voltar a repetir a mesma toilette e vestuário, duas vezes consecutivas ou
não, já é desprestegiante.
À pala disso, devo ser o homeless mais bem vestido da cidade. Ó eu, hein? No
fundo eu continuo a gostar é de borgas e de putas, como sempre.
Ela diz-me que o que gosta é de otários.
Não sei bem em que situação é que isso me coloca, como ex marido dela. Mas
isso agora também não é importante. Ou é?
A decadência. Eis algo que pode levar muito longe. Muito fundo. Mais longe e
mais fundo do que alguma vez pudemos julgar, ou mesmo desejar. É um pau de dois
bicos, como demasiadas coisas acabam por se revelar, na vida.
É claro que a coisa vem aos poucos. Não nos tornamos um monstro da noite
para o dia. Calculo. Não sei como terá sido com o Hitler, o Goebbels, o Beria e a
restante malta dessa igualha. Não é que eu pretenda comparar-me, nem de longe, a esse
tipo de gente, mas enfim, os que hoje me condenam chamam-me nomes e epípetos
semelhantes aos com que outrora os classificaram, ou melhor diria, os desclassificaram
a eles. Do tipo psicopata genocida, criminoso contra a humanidade, inimigo público n.º
1 e outras merdas do género.
O que se passou comigo, é que não soube parar a tempo. Penso que isso
acontece com frequência e não só nos casos do tipo do meu. O certo é que não tive bem
consciência dos limites. Não soube medi-los, entusiasmei-me com os massacres, os
delírios, a excitação da chacina. Por isso me lixei. Porque a coisa excita mesmo. O
sangue exalta deveras, e é sempre em crescendo. É por isso que um gajo acaba perdendo
a perspectiva. Convence-se que é o maior, o mais esperto, que há de levar-lhes a palma
a todos. A si não hão de jogar-lhe a luva. Nunca! Delírios de grandeza, já o disse.
Não culpo, por isso ninguém. Enfim, o costume, o passado, os meus pais, a
minha educação. Uma infância triste e desesperada, sem amor. Nada disso. Pelo
contrário, tive uma infância fabulosa, de filho único, mimado por todos e a quem todos
os desejos eram de imediato satisfeitos. Evidentemente também tive as minhas zangas,
as minhas frustrações, os meus pequenos ódios infantis e inconsequentes. Mas nada de
grave, nem duradouro. Muito menos indelével, fixo, eterno.
De facto, tudo começou bem mais tarde. Já depois de crescido e até de casado.
E bem casado. Invejado até. Mas isso era coisa a que eu estava habituado. Desde sempre
tinha sido invejado, pelos outros, os colegas, os companheiros, os amigos. E
precisamente sempre pelas mesmas razões. Por ser um previlegiado, por possuir sempre
mais e melhores brinquedos do que eles, roupas mais bonitas e de melhor qualidade,
mais carinho e mais amor, da parte dos meus. Mais dinheiro de bolso, serviçais mais
leais e mais humildes, eu sei lá, um ror infinito de queixas, ciúmes, inveja, dor de corno
e má língua.
Não era portanto de admirar que agora me invejassem por possuir a mulher
mais bonita, a mais boazona e a mais famosa da cidade e do grupo. Isto ainda antes
mesmo de ela se tornar uma star notória, primeiro como manequim famosa das
passarelas e das revistas de fofoca e de moda. Mais tarde estrela de televisão, tendo
começado pelas novelas e estreando-se depois no teatro e até mesmo no cinema. Foi
talvez isso que começou a dar-me ideias esquisitas. Nada de concreto a principio.
Apenas impressões, vagas, dolorosas, imprecisas. Uma certa insatisfação, que cada vez
se tornava mais permanente, um tédio insuportável, uma lassidão, uma preguiça, um
aborrecimento constantes. Já tinha havido gente a suicidar-se, no passado, por causas
semelhantes. Mas enfim, eu não era nenhum lorde inglês, nem vivia nos alvores do séc.
XVIII, nas brenhas do campo, sem mais que fazer do que comer criaditas complacentes
e ignorantes e chatear-me de morte no meio das lezírias infindas, asquerosamente férteis
e verdes. Nem ao menos tinha a desculpa de doer-me o cú, fruto das cavalgadas
incessantes da caça à raposa, ou de ter demasiados botões para abotoar e desabotoar.
Enfim, andava chateado. Isso fez com que ela amuasse também. Sentia-se
preterida, negligenciada, abandonada. Era verdade. Não obstante a sua beleza, a sua
graça, a sua pujante feminilidade, eu ultimamente desinteressara-me dela. E o que é
mais grave, comecei mesmo a dar-lhe negas, na cama. Para uma fêmea do seu calibre,
isso era absolutamente intolerável. Ui! Ficava uma fúria. Os olhos dardejavam-lhe de
ódio puro. Se pusesse, matava-me. Não é que lhe faltasse vontade... Simplesmente não
compreendia. Eu bem que tentava explicar-lhe, que a responsabilidade não era dela.
Que continuava a ser uma fêmea excitante, desejável e bela. A culpa era somente minha.
Eu é que andava cansado, arrumado, enervado. Mas a verdade é que já estava farto.
Penso que quando um homem já comeu a mesma mulher para cima de mil vezes, está
saciado. Pelo menos dessa mulher. Pelo menos provisoriamente. Além disso, eu não
tinha já paciência de idolatrá-la, tipo deusa, como ela gostava. De rojar-me aos seus pés,
feito tapete, para ela me espezinhar com os saltos altos da sua indiferença. A cabrona
estava era mal habituada pela permanente adulação dos seus fãs.
Assim, começou a deixar-se cortejar mais assídua e pertinazmente, pela récua
inumerável dos seus inacabáveis admiradores. Talvez de início, fosse somente no intuito
de me enraivecer, de provocar os meus ciúmes. Mas como aquilo em nada alterou a
minha aparente abulia e notório desinteresse, tornou-se para ela numa questão de amor
próprio.
Não tardou muito, de facto que eu me apercebesse que ela andava mesmo a dar
umas baldas ocasionais. E como nestas merdas, o que custa é a primeira vez, dentro em
pouco tomou o freio nos dentes e já mal parava em casa, chegando às tantas da
madrugada, embriagada, descomposta e sempre acompanhada por mujos diferentes, em
potentes máquinas reluzentes. Era evidente que pretendia forçar-me a uma atitude. Eu
porém, não ajudei em nada. Não só, praticamente deixei de frequentar o seu leito, como
a bem dizer, o próprio quarto e quando raramente lhe dirigia a palavra, nada fazia para
ocultar o meu desdém, quase desprezo, repugnância.
A nossa hostilidade mútua foi aumentando. Nem podia ser de outra maneira. Até
que eu me apercebi que os devaneios com que intimamente me torturava, forçando-me a
vê-la nos braços de outros homens em poses cada vez mais ousadas e acrobáticas e em
figurações cada vez mais eróticas e sugestivas, longe de me incomodarem, como
inicialmente seria suposto serem o seu propósito, pelo contrário, induziam-me num
estado de excitação, como havia muito não experimentava.
Comecei a interrogar-me se não possuiria, muito oculta e reprimida, uma
costela, senão todo um esqueleto sado masoquista. Havia já muito que os exercícios
eróticos com máscaras e fatos de couro, o devassá-la com dildos enormes, adornados de
espinhos e protuberâncias diversas, através das quais recebia descargas eléctricas cada
vez mais fortes, o deixar-me chicotear por ela, queimar por cigarros e charutos, ou
lanhar por lâminas e picos, tinham deixado de surtir o efeito desejado. Nem mesmo as
sessões colectivas, os clubes de troca de parceiros, a que recorria-mos sempre que nos
deslocava-mos ao estrangeiro, nomeadamente a Barcelona, cidade que muito
apreciávamos, serviam já para nos satisfazer.
Contudo, ultimamente apercebia-me que o facto de figurar na minha mente, a
minha mulher a ser possuída por outro homem, as imagens lascivas dos seus corpos nús
e entrelaçados, retouçando entre gemidos, suor e mordidelas, longe de me repugnar,
humilhar ou enraivecer, dava-me antes uma espécie meio bizarra, meio dolorosa, mas
sempre excitante, de prazer. Isto era grave. Porque a minha mulher era de facto
extremamente bela e eu amava-a deveras. Por isso aqueles devaneios me davam assim
tanto gozo. Um prazer doloroso e “exquisite”. Assim como que o de uma virgem a ser
violada, lentamente desflorada, imagino.
Só havia uma atitude a tomar. E foi a que eu tomei. Sem grandes rodeios
informei-a, ou melhor, exigi-lhe que trouxesse o seu amante lá a casa, nessa mesma
noite. Ela assustou-se, pensando que eu queria fazer alguma loucura do tipo de desafiá-
lo para um duelo, ou mesmo assassiná-lo friamente, envenená-lo à refeição ou qualquer
merda assim no género, mas quando compreendeu a minha intenção, aquilo também a
excitou. O que só veio confirmar a minha convicção de que as gajas, no fundo, lá
mesmo no fundo, são todas umas grandes putas.
As primeiras vezes ainda tive o pudor de manter-me oculto, observando-os na
maior intimidade, enquanto me masturbava doidamente, percorrido, dominado mesmo
por uma espécie de gozo intenso e bizarro, como nunca tinha sentido antes.
Então ocorreu-me que, se vê-la a ser fodida daquela maneira, por outro gajo,
me dava tão insólito prazer, se o fosse por vários ao mesmo tempo, então o gozo
certamente seria maior. E foi-o de facto.
Mas também isso rapidamente me cansou e aborreceu. Ela na realidade
empenhava-se bastante, não só prolongando e variando as sessões, como tomando
manifestamente atenção para que as suas poses e movimentações me proporcionassem o
melhor ângulo possível. Mas a minha natureza é muito indócil. Por isso passámos então
para as orgias colectivas. Ela, muito louca, sendo devassada simultaneamente por uma
série de gajos, nunca menos de três, matulões, musculosos, excitados e embriagados de
ópios e vinhos e eu a fotografá-los, fodendo e sendo fodido, à vez e mais tarde, mesmo
torturado, batido, rasgado, massacrado, até perder a consciência de exausção e dor. E
também prazer, imagino, se bem que por essa época eu já não tivesse bem noção de
nada. Tínhamos voltado aos nossos joguinhos eróticos e às mascaradas sado
masoquistas, com toda a parafernália de elementos decorativos obrigatórios, fatos
justos, de pele negra, botas altíssimas, chicotes e puas, máscaras, algemas, cintos,
argolas, mordaças.
Não importava. O que era preciso era seguir prá frente. Cada vez mais fundo,
cada vez mais forte, mais louco, na procura das emoções mais bizarras, mais sublimes,
mais sofisticadas e estranhas.
Evidentemente que para manter este trem de vida e relações ocultas, é
necessário muito papel, muita massa, dinheiro vivo. Todos os grandes devassos, os
maiores libertinos, os grandes decadentes da história, tem sido todos ricos. Muito ricos.
Quase sempre nobres, aristocratas, uma elite de senhores, acima da lei, da razão e das
regras que limitam e empobrecem e agrilhoam todos os restantes, os operários, o povo,
gentinha. Basta ter em mente o marquês de Sade, os grandes reis do oriente, os tiranos e
ditadores da era moderna e tantos outros, mesmo mais humildes, artistas, políticos,
homens de negócios. Os Wharrols, os Saddams, os Heffners e tantos mais, mas sempre
superiores às massas, seja por carácter, por fortuna e condição, por cultura, por acaso,
mas sempre, sempre com muito capital por trás. E alguma imaginação, claro.
Felizmente não tínhamos problemas nesse aspecto. Não só ela ganhava o dinheiro que
queria, fruto das suas actividades profissionais, como eu pessoalmente também usufruía
de uma fortuna razoável, por herança. Além disso era um tigre nos negócios. Nem todos
honestos, nem todos legítimos, mas essa era a menor das minhas preocupações. Tinha
uma boa equipa de advogados, para o que desse e viesse.
Porque o gozo na devassa, o grande feeling, é o usufruto do proibitivo, é o
ultrapassar das regras, o ir sempre mais além do que é permitido, o que é normal, o que
é bem. O gosto do sangue escorrendo, do rechinar das carnes queimadas, o estilhaçar
dos ossos, o desmembrar dos tendões, os uivos e gemidos da dor e do prazer.
Por essa época é que começaram os deleites deveras perigosos, a prática de
violências realmente criminosas. Mas aí já não tínhamos controle na nossa demência. A
coisa já nos ultrapassara. Estou em crer que nos encontrávamos já nas mãos do
Demónio, se bem que eu coloque muitas reticências quanto à existência e a realidade
dessa figura. Mas encontrávamo-nos deveras possessos, e completamente
descontrolados. Foi por aí que começámos a comprar pessoas, geralmente menores.
Criancinhas, frutos de famílias numerosas, desfavorecidas e miseráveis que não tinham
condições de alimentá-las sequer, quanto mais de as criar decentemente. Pelo que
fechavam os olhos e os corações, mediante as hipócritas promessas dos meus
recrutadores, relativas a uma vida melhor e mais desafogada, no estrangeiro, como
criados e preceptoras.
É claro que não enganávamos ninguém, mas o dinheiro falava mais alto. Eles
bem sabiam ou calculavam que as suas filhas iriam enriquecer os bordéis do outro lado
do mar, mas também ali, em casa, na própria terra, não teriam mais amplas perspectivas
e lá longe, era sempre possível um golpe de sorte, que alguma caísse nas graças do seu
senhor, ou de algum cliente abastado e acabasse por casar bem, por tornar-se uma
verdadeira senhora e vir a ter um destino melhor que o deles, ou que o futuro por si
mesmo, ali lhes reservaria.
Evidentemente nunca lhes passou pela cabeça que não passassem de carne para
canhão, nas nossas mãos. As pessoas nunca concebem a verdadeira maldade, o mais
odioso e animalesco que a natureza humana pode comportar.
Mas também isso, dentro em pouco se veio a revelar insuficiente. Eram
precisas mais vítimas. A nossa máquina de destruição era insaciável. Os nossos filmes
vendiam-se como amendoins, no mercado negro. Tinham uma procura alucinante,
ansiosa, algo nunca visto naqueles meandros de ociosidade e decadência burguesa.
Aquilo estava a enriquecer-nos de novo, rapidamente. Era um facto. Não nos
tornou porém, mais cautelosos. Antes pelo contrário. Quanto mais dinheiro, mais
facilidades, maior a impunidade, parecia-nos. É claro que não passava de uma ilusão.
Mas era uma ilusão poderosa, colectiva, que nos dominava a todos.
Começamos então com os raptos. As sessões de tortura e os filmes cada vez
mais realistas, mais violentos, hediondos, para consumo privado dessa clientela ávida,
burgêssa, altamente burguesa, disposta a pagar rios de dinheiro, por imagens de uma
violência e de uma raridade ímpares, que era a nossa imagem de marca.
Penso que na América, tudo aquilo fosse banal, mas cá, na nossa parvónia era
altamente original. Por isso, altamente rentável, também. Sobretudo quando começámos
a vendê-las através da Net. E a expandirmo-nos para os sites internacionais do ramo.
Que infelizmente estavam altamente controlados, pela bófia. À pala dos grandes
escândalos de pedofilia e tal.
Foi também a nossa perdição.
Hoje estamos todos presos. Eu, a mulher, os amantes, todos os cúmplices. Todos
sujeitos a um veredicto de prisão perpétua ou mesmo à pena máxima. Não me importo.
Já nada me importa, deveras. Só lamento que o gozo tenha acabado.
Aqui dentro não se pode fazer nada semelhante. Estamos muito limitados,
demasiadamente vigiados, totalmente controlados. Actualmente estamos todos isolados,
em celas individuais, de máximo segredo e rigor, tudo à conta daquele puto que
apareceu estrangulado e cheio de sevícias, golpes profundos e queimadelas de cigarro,
com uma garrafa enfiada no ânus, nú, suspenso de um lençol, na própria cela.
Estamos todos fodidos...
BELTRANO MANINGUE / FARO 2003
“ GAZETA “
by B. L.
Uma manhã, faltei à escola. Nada de especial. Não era a primeira vez nem
haveria de ser a última. Estava um dia bonito, fazia sol, lembro-me bem. Os pássaros
piavam nas árvores, devia de ser primavera. Um daqueles dias em que não apetece
mesmo nada, um gajo deixar-se encafuar numa sala escura, cheirando a madeira velha,
papel velho e cabedal embolorado, a ouvir uma velha ou velho chatos, a mandar vir toda
a manhã a respeito da Aritmética ou Geometria ou Gramática ou História de Portugal,
com uma voz monocórdica e hipnótica, que mais lembra a missa, do que uma aula, ou
seja o que for.
Vai daí, resolvi ir à mercearia do Sô Fernande, que ficava ali pertinho, mesmo do
outro lado do Campo dos Marinheiros, areal desnudo e amplo, onde a maltinha da
Praceta costumava jogar umas grandes futeboladas todas as tardes e devia esse nome ao
facto de ser uma espécie de quintal, a modos que um prolongamento das instalações da
Radio Naval, que a rapaziada ali da vizinhança também frequentava muito, só pelo gozo
das barracadas ao Sô Jaquim, que era o cozinheiro da Marinha e gostava muito de
meninos e jovens marinheiros, também. Nessa manhã o Sô Jaquim não se encontrava na
mercearia, como de costume, com os seus gestos adamados e a vozinha esganiçada, com
que nos gritava - Seus filhas da puta ! - quando nos escorraçava à pedrada, dos seus
domínios, após aquelas barrigadas de gozo que a malta lhe dava, quase todas as tardes.
Comprei um maço de tabaco SG Filtro e uma pastilha elástica, para disfarçar.
Não tive de pagar, porque disse que o tabaco era para o meu avô, como de costume. O
velho atrás do balcão já estava habituado, por isso passou-me as coisas para a mão sem
suspeitar de nada. Efectivamente eu ia lá todos os dias, buscar tabaco para o velhote e
frequentemente outras coisas, frutas, verduras, pão e merdas assim, para a minha avó.
Nunca pagava, porque a gente tinha conta corrente e só no fim do mês é que a minha
mãe ou avó, lá iam pagar o total, sem se preocuparem a conferir minuciosamente as
contas, porque já se sabia e de facto até já se esperava que houvesse sempre um
pequeno gamanço. Isso fazia parte do sistema, da maneira como todas as coisas
funcionavam, lá na terrinha, na própria vida.
Eu devia ter para aí uns oito anos, nesse tempo e andava na 3ª classe. Lembro-
me, porque foi nessa época que comecei a faltar às aulas, sem problemas e sem
remorsos. Era uma classe. Nesses tempos ainda o SG tinha um invólucro amarelo claro,
com riscas verticais paralelas, azuis também claras, ou pelo menos não demasiado
escuras, até ao meio do maço e não devia custar mais que três merreis, ou no máximo,
três mil e quinhentos, já nem me lembro. Nesse tempo ainda o meu avô Manel, era vivo.
Era a pré-história, portanto.
Depois fui para o campo. Um outro descampado, não muito distante, de erva rala
e terreno ondulante onde ponteavam aqui e além umas velhas amendoeiras, secando ao
sol inclemente dos nossos verões e que ficava logo ali, por trás da Radio Naval, que
ocupava um quarteirão inteiro. Na altura estava praticamente isolado do resto da cidade,
se exceptuarmos o meu bairro. O que de facto, era excelente dado que, ainda que
praticamente dentro dos limites do burgo e pertíssimo da minha rua, que era o limite e a
fronteira da cidade com o campo, tinha por isso já um cheirinho muito intenso a
natureza e liberdade. Além disso, mesmo em frente ficava a mata do Liceu, assim
conhecida por se tratar de um bosque enorme, a única realmente grande extensão de
vegetação restante na cidade, dentro do qual, como que coroando-o ao topo da imensa e
larga avenida, se situava o Liceu, nobre construção do tempo do grande ministro,
fascista, que dera nome a tantas praças, pracetas e parques, prematuramente falecido
num desastre de viação. Parece que tinha a mania das velocidades, o gajo.
Eu morava mesmo em frente. Brinquei muito aos índios e aos cabóis, aos circos
e aos trapezistas, pendurado nos ramos das suas árvores. Mas de momento encontrava-
me no outro descampado, mais a norte, onde muitos anos depois viriam a construir
outra escola, nas traseiras das instalações da Marinha. Havia rubras papoilas balançando
suavemente sob a ligeira brisa e minúsculos insectos zumbiam por ali, rés vés às ervas e
flores, abelhas, borboletas, gafanhotos, moscas, libelinhas, passaralhos e toda uma fauna
variada e útil, penso eu, de que...
Então, preparei-me nas calmas para tabaqueá-lo, durante um bom bocado. Era
um dos meus pequenos prazeres. Mamar aí uma meia dúzia de cigarritos, enquanto fazia
tempo até à hora do almoço. Era já um hábito enraizado, se bem que relativamente
recente. Nesse tempo ainda eu me levantava de manhã cedinho, para faltar à escola. Era
um moço ajuizado.
Estendi-me ao comprido numa daquelas covas não muito fundas, mas com um
diâmetro confortável, atapetadas de erva rala e fôfa, entre velhos troncos de amendoeira,
alfarrobeiras e oliveiras secas, papoilas, dentes de leão, mariquitas, beldroegas e outras
ervas rasteiras, com a minha velha pasta de livros ao lado e o céu enorme e
enjoativamente azul, por cima. Uma maravilha. Nesse tempo eu ainda não era muito
exigente. Além disso estava de facto um belo dia, já o disse. Núvens brancas,
arredondadas e obesas, vogavam preguiçosamente pelo espaço, em câmara lenta.
Pareciam flocos de algodão doce enrameado, de formas curiosas e bizarras em constante
mutação, enquanto eu, de cigarrinho ao canto da boca, bestialmente bem disposto, me
entretinha sonhadoramente, deixando escorrer lentamente o tempo e a cinza, por entre
os dedos e os pensamentos dispersos.
Estava eu neste pagode cá muito meu, inofensivo e infantil q.b. quando uma
sombra movediça e esguia veio dar lugar a um vulto, que se interpôs entre mim e o sol.
Piscando os olhos, de surpresa e susto, reconheci um homem alto e macilento,
andrajoso, muito moreno e sujo, de barba crescida, cabelo desgrenhado e roupas
esfarrapadas, que eu já conhecia de vista, por tê-lo visto, de longe, do alto da minha
varanda, ou quando brincava no passeio em frente de casa, a vadiar pela mata, em
diversas ocasiões.
Era uma espécie de mendigo, que fazia uns fretes pelo mercado e umas estivas
no cais e tal e vadiava a maior parte do tempo, bêbedo e vacilante, pela mata e os
arredores. Era conhecido e temido, bem de longe, por todos os putos da minha idade.
Corria a lenda que era mais rápido que um automóvel de corridas e nesse tempo já a
Ferrari e a MacLaren faziam grandes ravages, nas pistas de fórmula 1. foi precisamente
quando o grande Jim Clark se estampou e morreu esborrachado contra uma parede. Por
aí se pode julgar a áurea com que esse desconhecido vinha encoberto. Pelo menos nas
nossas fantasias, de putos reguilas. Era assim uma espécie do papão das velhas fábulas,
em pessoa, artificio a que as mães manhosamente recorriam, para assustar os filhotes, na
miragem de que eles se portassem bem e comessem a sopa toda : - Se não fizeres os
deveres todos vem de lá o Papão e leva-te no saco! Inda agora o vi a passar na mata...
Era realmente assustador, porque todos nós identificávamos a figura lendária do
Papão, com aquela, bem real e concreta, do outro gajo. Era o que se chamava uma
educação à antiga. Nesse tempo ainda não se receava que os putos ficassem
traumatizados, com aquelas merdas.
O gajo era muito moreno, de pele escura e escamosa, andrajoso, calado e
taciturno, como os ciganos. Mas não era cigano, embora parecesse cigano. Nós todos
também tínhamos um cagaço do caraças dos ciganos. Este era assim uma espécie de
pária, sem eira nem beira, desses que apareciam de vez em quando, antigamente. E
depois, tão subitamente como tinham surgido, desapareciam. Presos talvez, ousávamos
nós pensar, fazendo figas com os dedos, escondidos dentro dos bolsos. De facto já uma
vez o tinha visto de longe, a ser abordado por um carro da polícia. Mas, passado um
momento, foram-se embora, sem o levarem nem nada, para meu grande
desapontamento.
Após mirar-me um bom bocado, com aqueles olhos pequeninos, que pareciam
verrumas, imóvel, de pé, ao cimo da riba, ele tossicou, aclarando a garganta e deu um
passo em frente, na minha direcção, enquanto persistia a fitar-me, intensamente, sem
pestanejar, de uma maneira incómoda, que me intimidava e inibia, imponente e
barbudo, à contra luz. Parecia um gigante, um cigano, o rei gigante dos ciganos, um
chefe índio, um guerreiro da Termópilas, ainda que andrajoso e vencido, mas para todos
os efeitos um adulto, um homem crescido, grande e pesado, com aquele sorriso maldoso
que lhe revelava os dentes amarelos, cariados e sujos, de fumador e lhe acentuavam as
rugas, profundas, no rosto comido pelas bexigas. Cuspiu para o lado uma grande bisga e
depois disse, lentamente, arrastando de propósito as palavras, num tom grave e
acusador:
- Com que então, faltas-te à escola, han cabranite ? ...
O tom era cortante, duro, familiar. Como se o gajo me conhecesse de algum
lado, ou aos meus pais e estivesse na disposição de ir chibar-me, imediatamente.
Eu, é claro, nem piei, todo acagaçado. Não disse nada, mantendo os olhos
obstinadamente em baixo, numa admissão envergonhada, amedrontada, de culpa. No
fim das contas ele era um adulto. Um dos crescidos. E estas merdas intimidam, quando
se é ainda puto e não se tem a escola toda, a garra necessária. Toda a nossa educação
tinha sido nesse sentido, de nos condicionar, intimidar-nos em relação aos adultos, ao
poder, às chefias, as hierarquias. E pelos vistos, resultara. Uma foda, tá bem de ver... De
modos que mantive os olhos em baixo, embaraçado e esperei, com o coração aos pulos,
aflitivamente entalado na garganta.
Ele riu. Um riso marau, de quem está por cima, e lhe fez ranger os dentes,
enquanto descia, com ar gingão, o ligeiro declive, que nos separava. Sentou-se no chão,
a uma certa distancia, aí uns três metros, fitando-me sempre intensamente com ar de
juiz, médico, inspector escolar, polícia, uma dessas figuras tutelares e sóbrias, que
aterrorizam os putos, quando nos olham de cima, com seriedade, em silencio. Por outro
lado, tinha um ar sorrateiro, de pilha galinhas e exibia aquele sorriso grosseiro, de
zombaria, simulando parecer bonacheirão e tolerante, para me inspirar confiança. Não o
conseguia, porque era-lhe fácil verificar o quanto eu estava em pânico. Mas talvez fosse
isso mesmo que ele pretendia.
Quanto a mim, mirava-o mudo e assustado, todo encolhido e tenso, tentando
dominar a tremura dos dentes e dos joelhos, sem que ele o percebesse, paralisado pela
responsabilidade e o medo, completamente arrependido já de ter faltado às aulas, nesse
dia. E no entanto, esse era um esquema vulgar e corrente a que a maltinha como eu, os
reguilas, os malandéres, recorria-mos com frequência. Fazer gazeta às aulas e ir fumar
umas cigarradas, conversar e matar o tempo, enquanto petiscávamos, às vezes umas
latas de conserva e umas cervejitas, surripiadas na despensa dos velhotes, ou sacadas a
crédito, lá na mercearia do Sô Fernando. O forrobodó assim em grupo, era ocasional,
raro até. O mais frequente era estarmos sozinhos, ou a dois, eventualmente três, no
máximo.
Às vezes, aos domingos de manhã, eu e o Gordo, que era o meu vizinho mais
próximo, duas portas logo a seguir à minha e o meu mais velho e melhor amigo, nesse
tempo, comprávamos um maço de tabaco a meias, SG Filtro ou Gigante, ou Português
Suave, sem filtro, que era ainda mais forte e o que os verdadeiros cabóis fumavam ( é
claro que eles tinham que enrolá-lo primeiro, mas a nós bastava-nos a simulação ) e
mamavamo-lo inteirinho, antes do almoço, enquanto íamos pitando umas bagas
avermelhadas e amargosas, que proliferavam abundantemente nos arbustos, em certas
épocas do ano, lá na mata, mesmo em frente às nossas casas. Não era bem para enganar
a fome, era mais na esperança de que dissimulasse o fedor.
Depois, antes de regressarmos a casa para o almoço, procedíamos sempre ao
ritual de aspirarmos sofregamente a cal das paredes, na lendária convicção de que o
cheiro, assim, desaparecia. É evidente que acabávamos sempre por comer uns porradões
ou ficarmos de castigo, porque os nossos velhos nada tinham de parvos e conheciam
aqueles truques de ginjeira, até porque também já os tinham utilizado nos tempos deles
e conquanto achassem uma certa piada a verem as mesmas histórias repetirem-se de
geração para geração, não podiam impedir-se de nos disciplinar, sempre que nos viam
entrar em casa de enviesado, com um ar bestialmente comprometido, meio embriagados
e a tresandar a fumo que até agoniava, da boca, dos cabelos e das próprias roupas.
O Gordo era um gajo engraçado. Um autentico fenómeno de feira. Acho que
tinha um problema qualquer nas glândulas. Já nessa altura ele devia pesar bem uns
noventa quilos, enquanto que nenhum de nós outros ultrapassava uns míseros quarenta e
fazia bem o triplo em largura e o dobro em altura, do resto do maralhal. Parecia o pai da
malta toda. Acho que aquele problema glandular de que ele sofria, convertia em
gordura, tudo o que ele ingeria. Isso para a gente era chinês. O que ele era, era gordo,
gordíssimo, um exagero, coitado, um monstrozinho. Parecia um menino Buda, uma
réplica ao vivo daqueles bibelots de porcelana, muito em voga, que as nossas velhas
usavam para enfeitar as cómodas, lá em casa. Tinha umas mamas maiores que às da
Sofia Loren e de barriga então, não havia quem se lhe comparasse. Nem o Pai Natal.
Parecia que estava prenho. A malta toda fartava-se de rir, quando ele despia a blusa e
desatava a abanar aquele monte de banha. Era incrível, como se todo ele fosse feito de
gelatina. Chegava a ser obsceno. A gente é que não reparava.
Às vezes no Verão íamos tomar banho, todos nús, para o cais Neves Pires, logo a
seguir ao Largo da Feira, assim que se passava a linha férrea. Era uma zona quase
deserta, só de velhos armazéns e barracões ao abandono. O próprio cais havia muito
estava desactivado. Desde que tinham construído o Cais Novo, maior, mais amplo e
sobretudo mais fundo. Além disso tinha algo que ver com as barras, novas que o rio
estava sempre a abrir. Ou isso devia-se aos assoreamentos que os industriais e
exportadores de areia, para a construção e tal, estavam sempre a proceder. Esse esquema
era uma grande mafia, segundo os comentários algo arrevesados que eu às vezes
surpreendia ao meu pai, mas ele assim que se apercebia que eu estava á escuta, calava-
se. Adiante. Para todos os efeitos era um sitio altamente. Ninguém nos chateava e
podíamos lá passar uma tarde inteira a curtir, em pelão, na galhofa.
O Gordo tinha uma pilinha minúscula que quase desaparecia entre as pregas
inúmeras, bossas e bolas gordurosas e tremelicantes, que lhe compunham o corpo. Era
pavoroso, mas aquilo, à gente dava-nos era para rir. Quando o Gordo mergulhava a
maré enchia, os barcos naufragavam. O engraçado é que ele não queria ser gordo. Era
como o Óbelix. Negava a própria evidencia: - Gordo? Qual gordo? Não vejo aqui
nenhum gordo! – dizia ele, bestialmente sério. Era uma chatice, principalmente quando
brincávamos ao Bonanza, de acordo com a série televisiva, porque ele nunca queria
fazer o papel de Hoss, que era o que lhe assentava como uma luva, nem de propósito, de
encomenda. Eu cá era quase sempre o Joe Pequeno, porque o gajo era canhoto e eu
tinha a mania que também gramava de tê-lo sido, embora não fosse. Às vezes pegava-
me com o meu amigo Jaquim, que também queria sempre o mesmo papel. De modos
que tínhamos que nos revezar. Quando eu era o Joe Pequeno, ele era o Adam, o irmão
mais velho, o mais careta, mas que também era um bom pistoleiro e sobretudo trajava
sempre de negro, característica que ele apreciava bué, a pontos de a ter conservado até à
maioridade. Quando era ele o Joe pequeno era eu o Adam. Ou então fazia de índio, que
era sempre o meu papel preferido. Sempre curti as minorias étnicas. Quando estávamos
só eu e o Jaquim, era fácil porque ele fazia de Mascarilha e eu de Tonto. Agora o Gordo,
nunca queria fazer de Hoss. Era uma carga de trabalhos para convencê-lo. Às vezes era
o Nandinho, que fazia quase sempre de pai, o velho Ben Cartwrigth, que tinha de trocar
com ele e fazer de Hoss, senão não conseguíamos chegar a acordo, para se brincar nesse
dia. Era uma chatice quando o Gordo se punha com aquelas merdas.
Os próprios adultos comentavam, rindo que a gente parecia o Bucha e o Estica,
outra parelha célebre da TV e era verdade, ainda que o nosso contraste ainda fosse mais
exagerado.
Eu, para a idade era bastante enfezado, roçando mesmo o raquitismo, mas era
extraordinariamente ágil. Isso não admira, porque era mais leve que uma pluma. Era só
pele e osso e os meus ossos deviam de ser ôcos, como os dos passarinhos. Como eles
tinha também o peito em quilha, pelo menos era o que o meu velho afirmava, no gozo,
era minúsculo e andava sempre empoleirado nas árvores.
O Gordo não conseguia trepar nem sequer um muro, rés vés ao chão, por isso
quando só estávamos eu ele, normalmente brincávamos aos circos. Ele fazia de homem
das forças, Hércules, o halterofilista, o homem mais forte do planeta, que era um papel
que ele gramava, imaginando-se vestido com uma pele de leopardo, levantando aqueles
pesadíssimos halteres enquanto as miúdas, na plateia enviesavam os olhos fascinadas de
admiração perante a sua força inaudita e eu, fazia de equilibrista, que era também uma
das minhas brincadeiras preferidas, dado que me fartava de trepar às árvores e
balouçava-me no vácuo, dos ramos altos, preso só pela curva dos joelhos, de cabeça
para baixo, rindo que nem um chalado.
Um dia a brincadeira deu para o torto. Eu nem me apercebi bem como foi. Só sei
que estava como de costume numa grande festa, de cabeça para baixo, a balançar, com o
Gordo a meus pés fingindo que erguia com grande esforço um haltere pesadíssimo,
quando subitamente tive uma branca. Ou uma negra, não sei bem. O certo é que acordei
de repente no chão, não sei quanto tempo passado e do Gordo, nem rasto. Lá me
levantei, meio confuso e estonteado e quando olhei para as nossas casas, mesmo em
frente, do outro lado da rua, distingui a cabecinha dele, medrosamente a espreitar da
janela, a certificar-se de que estava tudo bem e que eu não tinha morrido nem nada, nem
ele iria ser acusado disso e ter de ficar uma data de tempo de castigo e ter de rezar uma
data de Pais Nossos, Avé Marias e a porra dos catecismos todos a que lá em casa dele,
era obrigado todos os dias. Disse-me depois que tinha apanhado um cagaço deveras
grande, porque quando eu caí desamparadamente, com os cornos mesmo no chão, não
dava acordo de mim e além disso comecei a tremer todo, com os olhos revirados e os
lábios desataram a ficar azuis e a escorrer espuma e baba, de modos que ele pôs-se nas
putas e escondeu-se no quarto do irmão, à rasca sem saber o que fazer. Vá lá que aquilo
não tinha demorado muito, porque assim que ele chegou lá acima, ao 1º andar e
espreitou cá para baixo, para a rua viu-me logo já levantado, a olhar meio atarantado de
um lado para o outro.
Também nos fartávamos de jogar à bola, mas o gajo não gramava por aí além
daquela brincadeira, porque eu era muito mais rápido e ágil que ele e dava-lhe sempre
grandes cabazadas de cinco e dez a zero. De modos que a nossa brincadeira mais
frequente eram as coboiadas. Eu preferia sempre fazer de índio ou então de bandido, o
assaltante de bancos e ele era quase sempre o xerife. Normalmente o jogo consistia no
assalto ao banco, com abundância de tiroteio e feridos, seguido de rápida fuga rumo à
mata, com todo o ouro dos caras pálidas e levando como refém, a rapariga, que
providencialmente estava sempre a efectuar um depósito, nessas alturas. Momentos
depois, o xerife, à cabeça de uma “posse”, grupo de voluntários caçadores de bandidos,
embrenhavam-se cautelosamente pela mata, no nosso rasto, até onde eu,
estrategicamente oculto no cimo de uma árvore, os esperava já há longtime,
empunhando a minha reluzente e imaginaria winchester, de repetição. A mocinha,
amarrada a outra árvore, rejubilava de falsa esperança, pois entretanto já se apaixonara
pelo raptor e fazia jogo duplo, atraindo os vingadores para a armadilha combinada de
antemão, pois enquanto se reuniam todos em sua volta no intuito da libertarem, eram
implacavelmente dizimados pelas minhas balas certeiras, após o que, para concluir a
brincadeira, fugíamos os dois para o Leste, onde íamos gozar o ouro e a boa vida, a
bordo de um desses ferrys, de roda nas traseiras do leme e duas chaminés, cruzando
garbosamente o Mississipi. Eu transformava-me então num esguio gambler, de fino
bigode e longas patilhas, envergando uma elegante casaca azul, colete bordado de ases e
um soberbo Stetson, branco, na cabeça. Ela virava corista de Music Hall, com um
provocante cinto de ligas com uma rosa vermelha entalada entre as barbelas, toda
vestida de seda e de rendas e um penteado vaporoso e provocante, enquanto o Gordo se
convertia em sebento croupier, alternando com o posto de comandante do navio ou de
barman, no saloon, consoante as necessidades da farsa e o número de participantes.
Normalmente terminava tudo com um grande duelo ao sol posto, segundo as regras
clássicas do género.
Mas este gajo, esta espécie de cigano, mas que não era cigano, tinha uma ideia
diferente metida nos cornos, dava bem pra ver. Eu não podia adivinhar qual era, naquela
altura, mas conseguia percebê-lo pela maneira como ele continuava a fitar-me,
intensamente, com aqueles olhos pardos e aquele sorriso sardónico, enviesado. Deitou a
beata fora e num gesto pausado levou a mão à braguilha e começou a desabotoa-la
lentamente, pondo depois à mostra uma picha enorme, escura, quase preta, parecia um
bracinho de criança e começou a acariciar pra trás e prá frente, devagarinho, de olhos
semicerrados e franzindo-se todo em caretas parvas, que simulavam volúpia, sempre a
mirar-me, de esguelha.
Eu olhava práquilo surpreendido, chocado e cheio de cagaço. Nunca tinha visto
nada de semelhante, em dias da minha vida, nem mesmo na televisão. Tudo aquilo, de
resto parecia mesmo um filme, sobretudo porque se passava em câmara lenta. Pelo
menos dava essa impressão. Eu é que não estava nada seguro de como é que aquela
história iria terminar. E algo me dizia que não havia de ser como nos filmes que eu
estava habituado a ver. De facto, eu estava mesmo aterrorizado, a ver a vida toda a
andar para trás. Dizem os entendidos que isso normalmente só acontece nos momentos
que precedem a morte. Mas aí, é de facto uma espécie de filme, vertiginosamente e a
cores, que perpassa pela retina dos olhos, enquanto comigo, a coisa passava-se
metaforicamente. Adiante...
- Anda cá ó puto – disse ele naquela voz arrastada, assustadora.
- Faz assim, bate-me aqui uma punheta, devagarinho - e exemplificava,
descabeçando para baixo e para cima aquele mangalho enorme e todo preto, rebrilhante
de saliva. Era asqueroso.
Eu desatei logo a chorar, que nem um desalmado. Estava absolutamente em
pânico. Completamente fora de mim, aterrorizado. Sentia o coração aos pulos,
dolorosamente entalado na garganta, como um bicho acossado. Nunca me tinha
acontecido nada semelhante, em dias da minha vida, tão descansadinha até aí, tão suave
e privilegiada. Uma autentica papa a que eu nunca dera o devido valor, recebendo tudo
de bandeja, como um dado adquirido, como se me fosse devido. E agora, subitamente
via-me enfiado até ao pescoço num pesadelo horrível, nojento, asqueroso, do qual por
mais esforços que fizesse, por mais alto e com mais ganas que chorasse, não conseguia
mesmo acordar. Era pavoroso. Jamais me sentira tão enrascado, na puta da vida. Palavra
de honra. E se eu já tinha passado por boas. Ou más...
Ele riu-se baixinho, sem descerrar os dentes apodrecidos, quase sem fazer som,
não parando nunca de acariciar-se. Era nojento aquilo, não me canso de repeti-lo. Nem
que eu me encontrava absolutamente em pânico, quase em estado de choque. Chorava
baba e ranho e fungava bem alto, na recôndita esperança, toda banda desenhada, ou por
milagre, obra da Divina Providencia, de que alguém casualmente passasse por ali,
naquela precisa ocasião e pusesse o facínora em fuga, salvando-me assim in extremis,
das fauces do lobo, eu sei lá onde é que a minha cabeça já ia. O medo paralisava-me os
reflexos, todos os movimentos, o próprio raciocínio, os pensamentos pois estranhamente
nem me ocorreu que se desatasse de repente a fugir, que nem um gamo, ele certamente
não conseguiria apanhar-me, agachado e desprevenido como estava, todo desabotoado
ainda por cima. Até porque era bem mais pesado do que eu e nem de longe, tão lesto.
- Não tenhas medo, ó puto – disse ele, com aquela voz melíflua, arrastada –
Chega-te cá...
- Ó senhor, deixe-me ir embora, por favor – supliquei eu baixinho, passando o
antebraço pelas ventas, para limpar o ranho, entre fungadelas e lágrimas que até metia
dó , a qualquer outro que não ele, mais empedernido até.
- Deixe-me ir para casa, que os meus pais já devem andar à minha procura –
gemi eu de novo, todo acagaçado. Até acabei por lhe oferecer o resto do maço de
tabaco, tão desesperado e atrapalhado estava.
O cabrão mirou-me de esguelha, com um olho semicerrado, assim todo de alto a
baixo e depois de cuspir uma posta pró lado, pôs uma expressão de desdém nos lábios
moles e arroxeados, todos lambuzados de saliva. Suponho que eu não devia de
representar nada de sugestivo por aí além, nem de estimulante para o seu imaginário
erótico, pois ele acabou por enfastiar-se de estar para ali a dar à mão, pra baixo e pra
cima e tratou de recolher o instrumento para dentro das calças, ainda todo teso e
brilhante e voltando a cuspir com ar condescendente, jogou num ápice a gadanha aos
cigarros, que eu mantinha na mão estendida, humildemente na sua direcção.
- Tá bem, tá bem, ó meu merdas, vai-te lá embora... e vê lá se não voltas a faltar
à escola, senão da próxima vez, vou-te mesmo é ao cú... tás a ouvir?...
Nem precisei que ele o repetisse. Agarrei na pasta num ápice e pisguei-me dali
pra fora com quantas pernas tinha, que eram poucas e estavam bestialmente trémulas,
mas não me deixaram ficar mal. Tenho impressão que foi a partir dessa data que
comecei a ser assaltado, com frequência por uma gama de pesadelos fodidos. Neles,
acontecia-me sempre estar em fuga desesperada, de qualquer perigo eminente e no mais
aceso do pânico faltavam-me as forças nas pernas, caía, arrastava-me de bruços,
rastejando pela terra nua, desesperado para conseguir furtar-me às garras afiadas,
inclementes do perigo. Vá lá um gajo explicar estas merdas. Nem o mister Freud...
Certo é que não foi por isso que deixei de faltar às aulas, daí pró futuro...
Nem de fumar as minhas cigarradas, às escondidas.
by B. M.
Quanto a mim, sempre gostei de escrever. Faço-o desde miúdo, quase. Também
gostava muito de desenhar. Esse talento ainda foi mais precoce. Com o tempo e com a
prática, acabei por me tornar um bom desenhador, modéstia aparte. Sobretudo na figura
humana, que era o que eu mais gostava. O retrato, em particular. Mas isso era muito
trabalhoso e depois eu não gostava das cores. Nunca apreciei muito o colorido, por isso
os meus desenhos eram quase sempre a preto e branco. A pontos, de quando era puto, a
minha mãe ter-se assustado um bocado com aquela minha característica tão insólita. É
que, para me agradarem, fartavam-se de me oferecer caixas de lápis de cores e aguarelas
das mais caras e de melhor qualidade, que eu olimpicamente desprezava, parece. Pelo
que a velhota esteve mesmo vai não vai, para me levar ao psiquiatra. Não sei quem é
que a convenceu a não o fazer, nem porquê. O certo é que ainda hoje me chateia ter de
pintar os meus desenhos. É uma técnica que não domino. O que me valeu durante muito
tempo o epípeto de “o único pintor algarvio, que nunca pintara um quadro”.
Quanto à escrita, sempre é mais fácil. O importante é um gajo conseguir escrever
mais ou menos como fala na rua, normalmente, como quando está com os amigos. É
uma coisa mais difícil do que parece. Também demora o seu tempo. É preciso ter
vocabulário, muitas leituras. Quanto a isso eu estava bem servido. Desde miúdo sempre
gostei de ler. A pontos de, à noite, depois dos velhos já estarem deitados e convencidos
que eu dormia a sono solto, pois já se tinham certificado que eu apagara a luz havia um
bocado, acender uma vela, debaixo dos lençóis e continuar a ler noite adentro, como se
estivesse dentro de uma tenda de campismo. Uma vez, à pala daquela brincadeira ia
pegando fogo à casa, como seria de esperar. Mas para além do susto e do castigo
respectivo não foi nada por aí além. Gramava de tal maneira de ler, que às vezes fazia
uma daquelas trocas habituais de livros aos quadradinhos com o meu amigo Nandinho,
que era um dos que tinha uma das maiores colecções e organizava os books todos numa
pilha, por ordem inversa, deixando os melhores para o fim. E enquanto não acabava de
ler aquela merda toda, táva-me cagando para a rua e para a brincadeira. Nem que
demorasse uma tarde inteira. E se eu era danado prá brincadeira.
Um gajo tem que se corrigir muito, aprender a controlar-se, nesta coisa da escrita.
Não é só pôr no papel a primeira merda que lhe vem à cabeça. Isso dos surrealistas,
dadaístas, do vale tudo, escrita automática e tal, já foi chão que deu uvas. É preciso ter
cabeça fria, aprender a depurar-se. Não hesitar em rasgar, riscar, deitar fora o que se fez
e não presta. Um gajo tem que desenvolver o sentido crítico. E não ter medo. E escrever.
Escrever bastante. Sobretudo se for autodidacta. E continuar a ler, se possível. Ler
muito, ler tudo. Instruir-se, aprender a dominar a palavra, as regras da narrativa, do
enredo, do suspense. Enfim, os truques todos.
Desde cedo os meus professores, sobretudo os de português, me auguraram um
bom futuro como jornalista, quem sabe até como escritor. Isso assustava um bocado a
minha mãe, que era assim do tipo assustadiça. Ela tinha bem presente o exemplo do
meu avô paterno, que se arruinara à conta do jornalismo e das veleidades poéticas. A
pontos de se lhe ter desarranjado a cabeça e ter passado os últimos anos da sua vida,
fechado dentro de um quarto sem querer ver ninguém, nem mesmo a família mais
próxima. Exceptuando a minha avó, que era quem lhe levava a comida todos os dias ao
quarto e o barbeiro, que ia lá a casa duas vezes por mês, para lhe fazer a barba e aparar o
cabelo. Aquilo a mim, fazia-me um bocado de confusão. Lembrava-me bem, poucos
anos antes, de como ele me chamava ao seu quarto e ficávamos os dois, estendidos na
cama, enquanto ele me contava as histórias da baleia branca Moby Dick e do capitão
perneta Ahab, do corcel indomável Flecha Negra, o xerife bandoleiro Tom Mix e outras
com tanto de pavoroso como de maravilha e agora, de um momento para o outro não
queria nem ver-me.
De modos que fez todos os possíveis, a minha mãe claro, para me tirar tais ideias
da cabeça e convencer-me a tirar um curso, porque isso sim, era uma muleta segura para
o futuro, um dia mais tarde em que eles já cá não estivessem, para me valer. É claro que
eu nunca liguei nenhuma às teorias dela. Mais valera que lhes prestasse mais atenção.
De qualquer maneira, como dizia o meu velho professor de matemática:
- Não é desta massa que eles se fazem! – ele referia-se, é claro aos presidentes da
república. E continuava:
- Diz-se para aí que eu não cumprimento os meus alunos, quando me cruzo com
eles, na rua. Tal facto não é verdade. Eu cumprimento sempre os meus alunos. Quando
estão sozinhos. O que eu não falo, é à malta, porque eu não gosto da malta...
Era preciso ter em linha de conta, que para ele duas pessoas já eram malta. E
ajuntava, a modos de gozo:
- Além disso, eu respeito bastante os meus alunos. Nunca se sabe se entre eles não
se encontrará um futuro presidente da República. – e depois relanceando lentamente os
olhos pela turma toda, com ar malino, acrescentava depreciativamente a tal frase:
- Náá, mas não é desta massa que eles se fazem...
Voltando à escrita, devo acrescentar que a principio, mesmo sem querer, sem me
aperceber sequer, mais não fazia que plagiar descaradamente, com ligeiras alterações,
que me pareciam geniais, as obras dos meus autores preferidos. Quer em prosa, quer em
poesia. Mas creio que a maior parte da malta que mete na cabeça em escrever, há de
fazer assim. É por isso que as obras de juventude da maior parte dos escritores acaba
por ser destruída por eles mesmos ou proibida a sua publicação, pelos próprios, mais
tarde. Depois, com o dobar dos tempos, fui aprendendo aos poucos a exprimir-me por
palavras e imagens minhas. Fui-me sobretudo domesticando no acto de ver,
objectivamente, no de pescar no quotidiano factos e episódios que conseguia depois
organizar de maneira a extrair-lhes um conteúdo dramático, ou de comédia, ou
quaisquer outros, conquanto verosímeis.
O maior desgosto da minha mãezinha, era eu não ser doutor, como os filhos das
amigas delas. Mas eu cá, nunca tive paciência para os estudos. Desisti da Universidade
logo no primeiro ano. O curso até era fixe, antropologia. Eu é que não estava para
perder quatro anos da minha vida, na capital, a marrar. Não é que não tivesse cabeça pra
isso, porque embora nunca tivesse sido um aluno brilhante, também não era dos piores.
E de resto, como já disse, a maioria dos professores, sobretudo os de Letras auguravam-
me um futuro pouco menos que brilhante, como jornalista ou escritor. Por isso a velhota
acabou por consolar-se na miragem de que eu conseguisse vir a tornar-me ainda, um
grande artista. Poeta ou dramaturgo, ou um pintor de craveira, qualquer merda assim.
Isso sim, seria uma carreira invejável e potencialmente até mais bem paga e de maior
nomeada e reputação que a dos outros moços todos. Mas isto, é claro, só após a morte
do meu velho. Que esse, não tinha fé nenhuma nessas merdas. Segundo ele, eu cá,
nunca havia de ser nada de jeito na puta da vida. Ele que se não cuidasse a deixar-me
bem governado, havia de ser um descalabro completo. Além disso renegava por
completo essa coisa das artes – Por este caminho, este gajo ainda há de acabar mas é
como o Suetónio! – dizia ele, meio na barraca. O Suetónio era o artista popular mais
conceituado lá do burgo. Era um autodidacta da pintura e da escultura e embora não
fosse nenhum Picasso nem nenhum Dali, toda a vida viveu à custa do seu metier.
Evidentemente que passou por muitas dificuldades, daí a ironia do meu velhote. É
sabido que a maior parte das vezes as pessoas de bem lhe compravam quadros, a mais
das vezes incompletos, por uma tuta e meia, só para ele não morrer de fome. Quanto a
mim, isso era um bom pretexto para eles aplacarem a má consciência, valendo-se do
facto de ele ser uma boa alma e em troca de uma refeição, oferecer sempre um quadro.
Além disso, tinha andado nos copos com eles todos, quando eram estudantes e pessoas
menos respeitáveis, como tinha feito ao longo de três gerações da minha família. Com o
meu avô, quando eram estudantes, depois com o meu pai e os meus tios na altura em
que eles estudavam e mais tarde comigo e os meus companheiros de estudos. Era uma
espécie de patrono estudantil. Jogava ao bilhar connosco, pagava-nos os copos nas
cervejarias e às vezes levava-nos até ao pardieiro onde vivia para nos mostrar as
pombinhas dele - Queres ver as minhas pombinhas? – como se aquilo tivesse algum
jeito, um quintalão a desmoronar-se de velho e umas gaiolas mal paridas, onde
vegetavam uma data de aves esqueléticas e todas cagadas, numa selva de merda
fedorenta e insuportável. Mas o gajo gostava daquilo e a malta fazia-lhe a vontade.
Sempre aproveitávamos as petiscadas e ele dava-nos umas aulas de pintura, àqueles que
tínhamos algum jeito para a poda. Também há quem diga que ele fazia umas
paneleirices com os moços, sobretudo já na velhice, durante as bilharadas parece que se
enganava com o comprimento dos tacos a que metia a mão, mas eu não posso
comprová-lo, porque comigo nunca se passou nada, nem eu era cá dessas merdas e ele
possivelmente sabia-o. O que ele sempre foi e foi-o de gosto e na verdadeira acepção da
palavra, foi um boémio. Do tempo em que a boémia existia e era um modo de vida. Vai
daí, quando aquela malta com que ele curtia as suas noitadas de copos e de putas, nos
velhos tempos em que a nossa cidade se podia orgulhar de possuir verdadeiras putas,
nos seus bordéis e pardieiros oficiais, coisa que já não era do meu tempo e então
decidiam tomar juízo e abandonar a vida estudantil, de boémia e de copos e endireitar a
vida e casar e aburguesarem-se, tornados uns escravos do trabalho e da decência, ele a
velha Suestónia nada mais fazia que, olimpicamente dá-los ao desprezo e deixando-os
afastarem-se, continuar na sua, pintando e bebendo e curtindo a noite e as putas,
enquanto as houve, até a geração seguinte, os filhos dos tais, chegar à idade devida e
começarem por si mesmos a despontar para a noite e a frequentar os mesmos velhos
pardieiros de copos e de putas, em que os papás já tinham andado e lá o encontravam,
firme e rijo no seu posto, sempre alegre e disposto a iniciá-los nas eternas lides de
marialvas, dando-lhes quando necessário, bons conselhos de velho conoisseur e
praticante. Felizmente, nos últimos tempos houve quem se apiedasse do velhote e
deram-lhe uma reformazita razoável. Talvez para lhe calarem a boca, porque ele afinal
não deixava de ser um bocado temido pela sua língua de trapo e se havia alguém que
conhecia todos os podres da pequena e da pretensamente grande sociedade lá do burgo,
era o gajo. Pode ser que algum dia ainda me venham a encomendar uma estátua dele,
para onerar alguma praceta, nunca se sabe. De qualquer dos modos era uma das nossas
figuras bíblicas, como ele próprio se definia com aquela risada manhosa e roufenha, tão
sua característica.
Vai daí, qual não é a minha surpresa, uma tarde ao abrir a caixa do correio,
quando vejo um envelope endereçado à minha pessoa, da câmara não sei donde, cuja
missiva me informava que estavam à minha espera, no dia tal, nos Passos do Concelho
da cidade Y, para a sessão solene em que teria lugar a entrega dos prémios relativos ao
concurso literário tal e tal. Aquilo surpreendeu-me bastante, sobretudo porque não me
lembrava de ter enviado nada, lá prós gajos. Mas como andava sempre meio bezerrado,
até se podia dar a hipótese de tê-lo feito e ter-se-me varrido completamente da
cachimónia, que eu à pala das trips de ácido e outras merdas afins, sempre tive uma
memória que era uma verdadeira miséria. Mesmo assim era um bocado esquisito, não
ter a mínima ideia do facto. Eu lembrava-me realmente do projecto em si. De ter mesmo
organizado qualquer coisa com esse fim, mas depois tinha-me passado e parecia-me
bem que tinha cagado no assunto. Não queriam lá ver que a velhota, com aquela
pancada dela, tinha encontrado os textos e como andava sempre a par daquela cena dos
concursos e tal, tinha enviado a obra em meu nome. Gaja pra isso era ela e pra muito
mais... em todo o caso, estava ali, preto no branco, uma carta em meu nome João
Manuel da Silva, anunciando-me como feliz candidato ao primeiro prémio no tal
concurso de contos da cidade Y. Cá por mim tudo bem, até porque aquelas merdas, além
do prestígio, tinham por costume remunerar os premiados, para garantirem um número
suficiente de autores e pretendentes ao prémio. Nem pensei duas vezes. Toca de
preparar o saco, que na tesúria andava eu. Bastava uma muda de roupa interior, qualquer
coisita decente para a cerimónia e roupa de combate para a viagem, que aquela merda
era ir num dia e voltar no outro. Somos um país pequenito. Aqui, as merdas ficam todas
próximas umas das outras. Principalmente as cidades. Até chateia. Um gajo mal pode
dar um peido que não se saiba logo na baixa e nas redondezas. Consoante o valor do
prémio, podia até aproveitar para dar uma saltada rápida ao Casal Ventoso, à vinda pra
baixo e trazer um saquito de neve e outro de brown, se desse para tanto e upalalá, feliz
da vida, à conta do parlapiê.
Quando cheguei ao local, um pouco antes da hora oficial, uma vez sem exemplo,
quase que ia vomitando. Aquilo eram só kotas do piorio, todos bem fardados e cheios de
nove horas, beija mão e parlatatás. Eram senhores de bigodinho e brilhantina, fraque e
lacinho preto e velhas damas de gola de peles e lorgnons, mintenes e pince-nez. Fiquei
logo enjoado, palavra de honra. Tive que me por nas putas mesmo a acelerar. Fui até
uma esplanada não muito distante, fazer um bocado de tempo enquanto bebia umas
cervejitas bem geladas e definia uma estratégia. É que eu não tinha mesmo vida
práquilo. Havia ali qualquer merda que não estava a bater certo. Eu não estava a ver
aquela gente a premiar um dos meus contos. Mas enfim, nesta vida tudo é possível,
como dizia o outro. E eu até que já estou por tudo, sei lá...
Vai daí quando chegou a malfadada hora do início da cerimónia, lá voltei eu ao
interior do edifício, identifiquei-me ao porteiro e subi as escadas que conduziam ao
salão nobre. Sentei-me numa das filas do fundo e distraí-me com os murais na parede,
durante a seca dos discursos. Quando chegou a hora da distribuição dos prémios e ouvi
chamarem o meu nome, levantei-me educadamente e dirigi-me para o palco, com os
olhos daquela malta toda pregados em mim.
Eles próprios pareciam um bocado admirados de me verem ali, se bem que o
meu aspecto não destoasse por aí além. Evidentemente que não envergava um smoking,
mas dentro do género até não estava mal de um todo. Lá me pregaram a medalhinha ao
peito e passaram-me o cheque prás mãos. Quando passei os olhos pela quantia, ia-me
dando uma coisa. É que os gajos eram verdadeiramente generosos, foda-se! Há mais
tempo que eu me devia dedicar a estas merdas. Tivesse eu sabido.
Chegou então o momento de ler um bocadinho da minha obra e dizer depois
umas palavras solenes sobre a ocasião e tal. Assim que me passaram para as mãos as
folhas com o texto que supostamente eu devia ter escrito, vi logo onde é que estava.
Estas merdas são mesmo incríveis. Já sei que vocês vão dizer que isto é um subtefúrgio
barato de escritor de meia tigela. Mas o facto é que estas merdas acontecem mesmo na
vida real. Daí eu ter começado esta crónica com uma referencia ao meu amigo que não
acreditava em casualidades, coincidências, sorte, acaso, etc. É que isto parece mesmo de
propósito, mas na realidade passou-se mesmo assim. Logo que passei os olhos pelo
texto reconheci imediatamente que aquilo não era produção minha. Vergonha tinha eu
de me por a contar nhan nhan nhans, assim. Sei lá, já não me lembro bem mas era uma
espécie de elegia às virtudes da cidadania, uma história toda lamechas, com gente muito
boazinha e um final tipo novela, feito de propósito para agradar. Ainda por cima,
atendendo ao nome que se ocultava atrás do pseudónimo, que era igual ao meu e à
confusão nas moradas, só podia tratar-se uma vez mais do meu malfadado vizinho de
cima. É que, por incrível que pareça, por mais inverosímil, por demais como nas
novelas, a verdade é que habitamos no mesmo prédio dois indivíduos com o mesmo
nome. A única diferença e é mínima, é que ele se chama João Manuel Silva e eu chamo-
me João Manoel da Silva e ele habita no 1º andar da Av. Olivenga e eu no r/c do mesmo
prédio. De facto eu chamo-me Manoel e assino assim, mas a malta dos Correios, como
de resto toda a gente, não respeitam mais as grafias clássicas, por isso eu já deixei de me
preocupar. Além disso como nunca fui gajo de muitos escrúpulos e sobretudo porque já
tinha o cheque na mão e sabia-me bem, não vi razão nenhuma para esclarecer-lhes o
equívoco, sobre o qual não surgiu de resto, a mínima suspeita.
De maneiras que lá cumpri o meu papel. Cheio de paciência, autentico frete, li
duas ou três páginas do texto e a seguir engrolei meia dúzia de palavras sobre a situação
da cultura actualmente e mais particularmente da literatura, louvaminhando o papel das
autarquias no desenvolvimento das mesmas e o seu importante papel na descoberta de
novos, ocultos e promissores talentos. Fui muito aplaudido.
Assim que pude, com toda a delicadeza e pretextando viagem urgente para o sul,
por motivos pessoais e impreteríveis, pus-me nas putas porque despachando-me e de
taxi, ainda ia a tempo de levantar o cheque na agencia do Banco respectivo, mais
próxima. Além disso era fundamental que aquela malta me perdesse o rasto, não fosse o
Diabo tecê-las, como diz o povo e o povo sabe bem o que diz e porquê.
Pelo que, no mesmo taxi e contra gorda gorjeta, aproveitei e dei logo uma
saltada ao Casal, forneci-me das tais coisas que eu aprecio, umas largas “muchas” de
cada, da castanha e da branca. Tive sorte porque de momento só corria por ali, qualidade
superior. Podia ter tido azar e ser uma altura de maré baixa e só haver murraça em
circulação. Felizmente não era o caso. Em seguida dirigi-me a uma agencia de aluguer
de automóveis, aluguei um mini e desapareci, rumo à fronteira.
De modos que agora, após uma semana maravilhosa de férias na Cuesta del Sol,
cheia de praia, putas e paella, só estou à espera a qualquer momento que me caia em
cima a cabrona da tal consequência, do meu gesto. É que toda a minha vida tem sido
assim. Faz-se uma sacanagem e logo se paga, seja em cana, seja em desgosto, seja em
desastre. E se não for imediatamente, há de ser a longo prazo. Nada fica é pendente. Até
parece que Deus existe. Ou então que há um livro de razão lá em cima. Isto é realmente
como o outro dizia e o próprio povo, que sabe-a toda, também – Cá se fazem, cá se
pagam! – porque o que governa a vida dialéctica é mesmo a lei do karma. “O que
semeias hoje, colhes amanhã”. E o resto é conversa. Não é que essa consciência me
impeça, por enquanto, de ir fazendo as minhas malfeitoriazitas, como foi o caso. Mas
também, acho que todos nós somos assim... até aprendermos, qualquer dia...
by B. M.
( p/ o conto A TRAIÇÃO )
Não, não vivo no Brasil, ainda que o título desta crónica o possa sugerir, mas
isso deve-se ao facto de termos muito mais em comum com essas Republicas das
Bananas, que enxameiam a América Latina, do que com os sóbrios regimes da Europa,
dita civilizada. Isso deve-se sobretudo à nossa vocação Atlântica certamente, a par do
espírito inegavelmente latino, que sempre se caracterizou, a nível de governos pelas
tendências sado masoquistas, o exercício do poder absoluto, a corrupção desenfreada, o
tráfico de influências, o fenómeno da cunha, do caciquismo e do clientelismo.
Não esqueçamos que foi nestas paragens que floresceu a Inquisição, por bem
mais de três séculos. Ora tal não seria possivel, como o não foi nas latitudes mais a
norte, se nos não corressem logo à partida na massa do sangue, as idiossincrasias de
carácter propicias para forjar uma população disposta a aceitar como naturais e
necessárias, todas as baixesas, abusos e atropelos que estão na sua génese. A delação e a
denúncia, motivadas pela inveja, a dor de corno, o rancor e a vingança. O fanatismo, a
ambição criminosa, a falta de escrúpulos, que permitiram as prisões arbitrárias e sem
culpa formada, por tempo indefinido. O puro espírito de rapina, a venalidade e a
maldade necessárias à completa ausência de noções de consciência e à cumplicidade nos
actos de espoliação de propriedade, através de expedientes criminosos como o exílio
forçado, os julgamentos imorais e pré combinados, quando não o desaparecimento
completo, encobrindo o homicídio puro e duro, para simplificar.
Tudo isto aconteceu aqui durante séculos, acobertado por um poder venal e
corrupto que tinha mais de quadrilha de âmbito familiar, a exemplo de todas as
monarquias, do que de poder legitimado por uma maioria esclarecida e representativa.
Sempre coadjuvados pelo clero, que eram os únicos que sabiam ler e detinham uma
forte influência junto das massas populares, devido a uma longa prática na condução das
mesmas que já se tornara tradição obrigatória, em função da conhecida ignorância
destas. ( a desenvolver... )
Só muito mais tarde, já no virar do século xx, em virtude dos histerismos das
implantações das republicas, um pouco por todo o lado, consequência tardia dos ventos
da Revolução Francesa no século das luzes, é que finalmente chegaram às nossas
brenhas, umas ligeiras brisas libertárias, que contudo originaram o sangrento assassinato
do rei e do príncipe herdeiro, no mesmo atentado, o que veio originar as suficientes
convulsões no esclerosado corpo da Nação, a pontos de, escassos anos volvidos,
também entre nós se poder implantar a dita, entre arraiais e festanças, revoltas de
populares e militares, à revessa das grandes famílias do reino e dos poderosos de
outrora. Como sempre chegou com atraso, em relação aos restantes países da Europa e
foi sol de pouca dura, isto a exemplo de quase todas as outras, pois como é sabido foram
tempos de grandes convulsões sociais e tornaram-se necessárias duas guerras mundiais
para separar o trigo do joio e definirem-se finalmente a muito custo, as estruturas
políticas que iriam determinar a vivência da humanidade no terceiro milénio. Conclusão
a que ainda hoje estamos longe de ter chegado, não obstante já se terem passado alguns
anos sobre essa tão simbólica fronteira.
De facto o período entre guerras, as mundiais (de 14/18 e 39/45), aparentemente
lançaram um germe de sedução pela aniquilação global, que ainda hoje não parece
ultrapassado.
É conhecida a reacção da maioria dos países europeus às consequências da
primeira guerra, ao fim dos antigos regimes e à queda dos impérios coloniais e ao novo
desenho das fronteiras e das estruturas geo políticas de influência.
Tirante a revolução russa que entusiasmou meia humanidade, aterrorizando a
restante, todos os outros países endureceram os seus regimes e tiveram uma evolução
retrógrada em relação às conquistas sociais que os tinham antecedido. O culminar das
tensões teve o seu epicentro em Espanha, através da eclosão da guerra civil, laboratório
de ensaio de diversas potências e regimes que se degladiaram cruamente e sem quartel,
diluídos e encobertos adentro as duas facções oficialmente em luta aberta.
“ AS MÁSCARAS “
TEATRO
PERSONAGENS:
- AMÉLIA - Rapariga de aproximadamente trinta anos, alta, magra,
loura, um ar de perpétuo espanto nos olhos claros. Mãe de uma rapariga. Formada em
Arquitectura. Vive com o marido e a filha.
- ARTUR - O marido. Cerca de trinta e cinco anos. Alto,
entroncado, cabelo e olhos escuros. Ciumento e rancoroso. Não concluiu o curso de
designer. Trabalha como vendedor de automóveis. Sente-se frustrado por ganhar menos
que a mulher.
- ANA - A filhota. Tem oito anos e frequenta o 2º ano. Loura e
espigadota, sai mais à mãe, tendo-lhe herdado o carácter sonhador.
- ANTUNES - Inspector de polícia. Lento, obeso, ponderado.
Homem de meia idade, a dar para o baixo, ligeiramente calvo, usa óculos de forte
graduação. Chapéu e gabardina. Polícia da velha escola.
- ALBANO – Oficial subalterno. Adjunto do inspector na presente
investigação. Alto, magro, moreno. Um bocado desleixado na apresentação.
Extremamente perspicaz, contudo.
- BENTO e GUIOMAR – Pais de Artur. Sogros de Amélia.
ACTO I / CENA I
( ELEGIA (?) )
by B.M.