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PERDER A VIDA, MAS NÃO A PIADA


O humor entre companheiros de descrença
(In Kupermann, D.; Slavutzky, A. (orgs.) Seria trágico… se não fosse cômico. Humor e psicanálise,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, no prelo).

AUTOR : Daniel Kupermann; psicanalista, pesquisador (RD/CNPq) junto ao


Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, membro fundador da
Formação Freudiana e autor de Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas
instituições (Revan) e Ousar rir. Humor, criação e psicanálise (Civilização Brasileira).

RESUMO: O ponto de partida adotado nesse ensaio é a incompreensão que


caracteriza a recepção do dito espirituoso na vida cotidiana, analisada através da censura,
ocorrida em um jornal de grande circulação no país, de uma charge dedicada ao Papa João
Paulo II, recentemente falecido. Atribuindo novos sentidos para as idéias desenvolvidas
anteriormente no livro Ousar rir. Humor, criação e psicanálise (Civilização Brasileira), o
autor indica de que maneira a irreverência e a rebeldia atribuídas por Freud ao humor estão
referidas ao posicionamento do sujeito frente à morte, bem como à orfandade que
caracteriza o Homem moderno - associada à descrença positiva, mas muitas vezes
confundida com a desilusão niilista - e à feminilidade, demonstrando, apoiado na
concepção do realismo grotesco de Mikhail Bakhtin e nos estudos de Jean-Pierre Vernant
sobre a Grécia Antiga, como a nossa cultura falocêntrica ainda teme e abafa o riso das
mulheres.
2

PERDER A VIDA, MAS NÃO A PIADA


O humor entre companheiros de descrença

Daniel Kupermann

(In Kupermann, D.; Slavutzky, A. (orgs.) Seria trágico… se não fosse cômico. Humor e psicanálise, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, no prelo).

Para Dave, meu pai

A ambivalência incompreendida do humor


É raro assistir, entre autores consagrados, uma revisão crítica das suas próprias
idéias a céu aberto. Quando isso acontece, o episódio merece destaque, seja pela
magnanimidade do gesto, seja pela curiosidade acerca do problema que suscitou o desvio
de percurso. É o que ocorreu com Peter Gay, biógrafo de Freud, na análise de uma cena que
pode ser considerada uma pérola do humor de todos os tempos, protagonizada pelo criador
da psicanálise nos últimos anos da sua vida.
Antes de libera-lo para que deixasse a Áustria, em maio de 1938, dias depois de
terem submetido sua filha Anna a interrogatório, as autoridades nazistas exigiram que
Freud assinasse um documento declarando não ter sofrido maus tratos. Freud concordou,
mas acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”. 1
Perplexo com a ousadia demonstrada por este homem que contava, na época, mais
de 80 anos, Gay, na primeira análise que dedicou ao que chamou de “gesto curioso”,
incorre em uma interpretação demasiado conservadora, e mesmo amedrontada. Imagina
que, se os oficiais da SS tivessem percebido a sua fina ironia, a vida de Freud estaria em
risco, e levanta a hipótese de uma tentativa inconsciente de suicídio: “havia algo em Freud
fazendo com que quisesse ficar e morrer em Viena?” 2 Um ano depois, reconhecendo que o
tema das piadas e do humor carecia de aprofundamento, Gay arrisca uma nova análise na
qual amplia a interrogação, considerando se o “gesto curioso” não seria também uma prova
da “vitalidade” de Freud e do seu “senso de humor irreprimível”, a ela vinculado. Sua

1
Gay, Peter. Freud. Uma vida para o nosso tempo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.567.
2
Idem.
3

conclusão é reveladora: “Talvez nunca venhamos a saber. Mas é exatamente essa


ambigüidade irresolúvel que está no fundo de toda piada”. 3
A “ambigüidade” a que se refere Gay reside no fato de o humor parecer apontar
tanto para uma extrema vitalidade, quanto para a mortificação, em uma estranha oscilação
entre vida e morte. Fora justamente a admissão da dificuldade em apreender a
complexidade do gesto de Freud o que conduziu Gay (que, aliás, traz a alegria no próprio
nome) à sua releitura. De fato, como a dupla face de Janus, o fenômeno humorístico aponta
para o limiar existente entre aparentes contradições, o que revela a ambivalência e o
paradoxo próprios do tragicômico.
*
Avançando no tempo, encontraremos um outro exemplo, agora recente, ilustrativo
da incompreensão usualmente provocada pela expressão humorística. Nos dias angustiantes
que antecederam a morte do Papa João Paulo II, um conhecido cartunista desenhou uma
charge a partir da imagem impactante, e bastante difundida, do Pontífice esforçando-se para
discursar, sem sucesso, na sacada da sua janela no Vaticano, na qual criava o texto que não
fora proferido. Na legenda da charge, abaixo do rosto contorcido pelo sofrimento, lia-se:
“serei breve!” Pouco depois o falecimento do Papa seria anunciado.
O editor do jornal para o qual trabalha o cartunista mal olhou o desenho, vetando-o:
“com o Papa nem pensar”. O jornal tem um perfil popular, e é certo que o editor tinha suas
razões. Intuía que a charge seria mal recebida pela maioria dos seus leitores e,
considerando-se o grau de sacralização atribuído à figura do Papa, publicando-a, arriscaria
a reputação do jornal. Como escreve Bergson em O riso, 4 para se entender uma piada é
preciso ser da “paróquia” (no caso, talvez se tratasse mais de não ser da paróquia), o que
Freud parafraseou como “todo chiste requer seu próprio público”. 5
Essa formulação se encontra no quinto capítulo de Os chistes e sua relação com o
inconsciente 6 , intitulado “Os motivos dos chistes – chistes como um processo social”, no

3
Gay, P. Lendo Freud. Investigações e entretenimentos, Rio de Janeiro: Imago, 1992, pp.210-211.
4
Bergson, Henri. (1899) O riso, Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
5
Freud, Sigmund. (1905) “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in Edição Standard Brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud (E.S.B.), volume VIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980, p.174.
6
No original alemão, Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten. Witz tem como tradução mais ampla
em português “espírito”, cuja qualidade seria “espirituoso”, e assim será, por vezes, utilizado ao longo do
texto. Considerei também, em outro lugar, que não convinha adotar uma distinção rígida entre chiste e humor,
uma vez que ambos são manifestações do “espírito” e, como demonstrei, caracterizam processos
4

qual Freud analisa o impulso que sentimos para transmitir uma boa piada, para passá-la
adiante, através de uma espécie de entusiasmo contagiante que caracteriza o "processo
social" promovido pelo Witz. 7 Na estrutura da piada, são discriminadas três “pessoas”: a
primeira, o próprio piadista, aquele que conta o chiste; a segunda, aquela de quem se fala,
alvo das pulsões sexuais ou agressivas; e, finalmente, a “terceira pessoa”, que é o ouvinte.
A questão discutida por Freud é justamente a da função desta terceira pessoa, àquela para
quem, movidos por este impulso quase irresistível, contamos a piada, o “público” ou a
“paróquia” aos quais se dirige o humorista, sem os quais a graça não pode circular.
As hipóteses levantadas para solucionar o problema supunham que precisaríamos da
terceira pessoa para reexperimentar através dela o efeito da surpresa que nos acomete
quando ouvimos a piada pela primeira vez; ou então, para sermos afetados pelo ricochete
do seu riso, que nos impele a rir por contágio, uma vez que o riso está entre as expressões
afetivas “mais altamente contagiosas” 8 ; finalmente, o que parece mais interessante, para
autorizar a transgressão da repressão social efetuada pelo comediante. Restringindo o
foco nessa derradeira formulação pode-se reconhecer, entre os autores que, posteriormente,
trataram do tema, duas tendências principais acerca do que seria o “processo social”
promovido pelo Witz.9
Na primeira dessas tendências, contar-se-ia piadas para reforçar os laços identitários
já existentes em determinado grupo, uma vez que se encontraria no ódio à segunda pessoa,
aquela de quem se goza, um fator de comunhão. Assim, expurgada a agressividade no
interior do grupo ao qual pertencem o piadista e seu público, poder-se-ia amar o próximo,
identificando-o como semelhante. Essa leitura obedece à descrição freudiana da “psicologia
de grupo” e, como se pode perceber, nela as piadas teriam uma função bastante
conservadora. O efeito do ridículo deve recair, portanto, sobre o estrangeiro, o diferente,
aquele que não sabe se portar adequadamente na vida social, como nas corriqueiras piadas

sublimatórios. Cf. Kupermann, D. Ousar rir. Humor, criação e psicanálise, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
7
Por se tratar de um momento crucial para o pensamento freudiano sobre o grupo e a formação cultural,
propus a inclusão de Os chistes... na cabeceira da obra cultural de Freud. Cf. Kupermann, Daniel. Ousar rir.
Humor, criação e psicanálise, ibid., cap. 3.
8
Freud, S. “Os chistes...”, op.cit., p.180.
9
Para o que se segue, ver a discussão acerca do humor como defesa, sublimação ou identificação empreendida
por Mezan, Renato. “Humor judaico:sublimação ou defesa?”, in Interfaces da psicanálise, São Paulo:
Companhia das Letras, 2002; e também minhas próprias indicações em Ousar rir, op. cit. Cap. 3.
5

que, no Brasil, se conta acerca dos portugueses ou das minorias religiosas e de gênero
sexual, nas quais se impõe o "narcisismo das pequenas diferenças". 10
Uma leitura alternativa, no entanto, indica uma eficiência bem mais complexa e
valiosa, que configura uma autêntica política do Witz: a dimensão transgressora do
recalcamento viabilizando novas possibilidades identificatórias e sublimatórias, ou seja,
novos modos de sociabilidade. Nesse sentido, ao se transmitir um chiste ou um dito
humorístico, busca-se compartilhar a crítica social e a denúncia das hipocrisias que
sobrevivem em qualquer grupamento, bem como a evidência da farsa embutida na tentativa
de se eternizar toda e qualquer idealização, favorecendo, ainda que pontualmente, uma
libertação temporária das imposições sociais anacrônicas. Porém, a ação subversiva do Witz
- bem mais visível, aliás, no humor do que nos chistes propriamente ditos - cobra o preço
de um movimento de desterritorialização, sempre angustiante em certa medida. Tratar-se-
ia, assim, no exercício libertário promovido pelo espírito, de uma experiência de angústia
coincidente com a emergência de processos criativos.
De fato, a perda das referências identitárias simultânea à emergência de um gesto
criador é mais visível naquilo que Freud nomeou humor, o riso úmido, por sua mistura com
as lágrimas. Se a comicidade pode deter, em certas circunstâncias, uma acentuada vertente
moral - quando faz o ridículo recair sobre o divergente -, pode-se dizer, ao contrário, que o
humor freudiano, o Galgenhumor ("humor patibular"), o humor negro, tende a jamais ser
politicamente consonante.
Há uma anedota paradigmática do que Freud entende por humor, que aparece no
último capítulo de Os chistes..., de 1905, sendo o único exemplo retomado no curto ensaio
dedicado exclusivamente ao tema, escrito em 1927 para a abertura do Xo Congresso
Psicanalítico Internacional: Um criminoso conduzido por seus algozes à forca em uma
segunda-feira comenta: “Bem, a semana está começando otimamente”. 11 Na versão de
1905, há até uma seqüência: sopra um vento cortante no caminho do patíbulo, e o mesmo
condenado solicita um lenço para proteger a garganta a fim de evitar se resfriar. Mas como
é possível rir francamente (assim o crê Freud) dessas anedotas de “humor patibular” nas
quais nos deparamos com uma situação - o enfrentamento da morte - que, originalmente,

10
Freud, S. (1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, in E.S.B., v.XIV, op. Cit.
11
Freud, S. (1927) “O humor”, in E.S.B., v.XXI, op. Cit., p.189.
6

deveria produzir angústia ou mesmo desespero? Esse é um dos maiores enigmas suscitados
pelo humor à psicanálise, sobretudo quando se considera que não se trata meramente de um
processo defensivo ou psicopatológico, cujo sentido seria evitar o contato com uma
realidade desprazerosa.
No período de vinte e dois anos que separam os dois escritos, algumas tentativas de
entendimento se impuseram, mas o aspecto decisivo para o resgate da problemática do
humor no campo psicanalítico foi, justamente, a percepção freudiana de que não se poderia
abarcar um fenômeno tão complexo sem considerar sua proximidade com o campo da
criação estética e, também, as dimensões éticas e políticas nele implicadas. É apenas no
contexto da segunda tópica, quando Freud se encontra às voltas com o problema dos
destinos psíquicos do narcisismo e da pulsão de morte, 12 que se assiste ao retorno da
problemática do humor no campo psicanalítico, como uma provocação aos psicanalistas
que ainda teriam “muito a aprender sobre a natureza do superego” 13 e sobre as vicissitudes
do além do princípio do prazer.
Assim, a análise metapsicológica do humor revelaria, simultaneamente, o caminho
14
para se compreender o processo de criação sublimatória , ao explicitar as três dimensões
da existência implicadas nas ações do espírito: a dimensão ética - a "intenção" (Absicht)
transmitida pelo humor, sua “característica principal”, referente à postura afirmativa do
sujeito frente ao real; a dimensão estética - o jeito de dizer, ou de bendizer a vida, capaz de
produzir o efeito da graça; e a dimensão política - relativa ao posicionamento do sujeito
frente aos ideais e às idealizações compartilhadas na vida cultural. O sentido da imbricação
irredutível dessas dimensões se encontra condensado no elogio maior de Freud: "o humor
não é resignado, mas rebelde". 15 Através das surpreendentes piruetas do espírito, que se
recusa à morte antecipada e à mortificação melancólica, pode-se extrair graça das aparentes

12
Freud, S. (1923) “O ego e o id”, in E.S.B., v.XIX, op. Cit.
13
Freud, S. (1927) “O humor”, op. Cit., p.194.
14
Ainda em Ousar rir, busquei demonstrar que a metapsicologia do humor indicaria um paradigma para se
compreender o problema mais geral da sublimação e da criação na psicanálise, processos de árdua descrição
através dos instrumentos conceituais freudianos. É, de fato, mais imediato o acompanhamento dos destinos da
idealização na constituição de um superego sádico e tirânico do que o esclarecimento da participação das
instâncias ideais no processo de criação sublimatória. Não deixa de ser curioso o fato de a aproximação dessas
duas noções obscuras do pensamento freudiano - o humor e a sublimação - poder contribuir para o
esclarecimento de cada uma delas. Kupermann, D. Op. Cit.
15
Freud, S. “O Humor”, op. Cit., p.191.
7

crueldades do destino. Perde-se a vida, mas não a ocasião de bendizê-la com um triunfante
e ousado dito espirituoso.
*
Voltando à charge. Interrogando-se a censura do editor, pode-se supor que, na sua
avaliação, a maioria dos leitores do jornal, católicos apostólicos romanos, se sentiria
afrontada acreditando ver rebaixada a figura sagrada do Papa e, nesse sentido, a charge
seria interpretada como uma agressão aos valores da Igreja. Mas, se há alguma verdade
nisso - e é a suscetibilidade concreta de um agrupamento social que aqui está em jogo - essa
não é certamente toda a verdade. O humor negro do cartunista fora efetivamente
incompreendido. A título de análise comparativa, em 03 de abril de 2005, dia seguinte à
morte do Papa, o cartunista Chico publicou, na capa do jornal carioca O Globo, uma bela
charge de humor branco (existe o neologismo?). Sem texto, nela via-se o Papa em seu
“papamóvel” - o famoso veículo envidraçado com o qual João Paulo II peregrinou ao redor
do mundo - alçando vôo, subindo em direção ao Céu. Como se pode perceber, nenhum
sinal de humor negro e, talvez, nem mesmo de humor, mas uma despedida amável e
carinhosa. Enquanto nessa charge o papamóvel se eleva, na charge censurada podia-se
entender que a figura do Papa era rebaixada... Em uma, vislumbra-se em paz a harmonia
celeste, na outra, um incômodo difuso pode evocar, nas subjetividades mais sensíveis, o
cheiro acre do enxofre. 16
A incompreensão que muitas vezes acompanha a recepção do gesto espirituoso é, na
verdade, efeito de uma compreensão unidimensional, e se deve a uma perda da capacidade
de apreender a potência criadora existente na ambivalência característica do Witz, que se
manifesta na incômoda proximidade da angústia com o riso. Mas a ambivalência própria ao
espírito não está restrita à concepção freudiana referente às expressões de amor e de ódio
em relação a um mesmo objeto, adquirindo uma pletora de sentidos que somente pode ser
encontrada na análise empreendida pelo crítico literário Mikhail Bakhtin do realismo
grotesco, em cujas formas de expressão se incluem as piadas e o humor freudiano.

16
Convém mencionar que nas semanas seguintes à morte do Papa, o humorista Millôr publicou um desenho
em sua coluna na revista Veja (edição de 20/04/2005) utilizando a mesma fotografia do Papa João Paulo II,
agora sobre a tela O grito, de Edvard Munch. Difere o meio, o momento - afinal, a angústia que marcara o
8

O realismo grotesco: Carnavalização e rebaixamento


Em A cultura popular na idade média e no renascimento. O contexto de François
Rabelais, Bakhtin 17 tece uma minuciosa análise do aspecto cômico da cultura popular -
efetivamente incompreendido pela cultura erudita - apresentado nos festivais e nos
carnavais de rua que ocorriam durante todo o verão na Europa medieval e renascentista. Era
justamente nesses períodos festivos que se podia assistir à expressão maior do realismo
grotesco, categoria estética caracterizada, de um lado, pela percepção carnavalesca do
mundo; de outro, pelo princípio do rebaixamento. 18
Na percepção carnavalesca do mundo as fronteiras tradicionalmente estabelecidas
nos universos cultural e artístico entre os gêneros humano, animal e vegetal se encontram
esmaecidas, donde predominam as misturas e também os excessos, signos da celebração de
um "tempo alegre", o tempo da transformação e da metamorfose, do devir ou, ainda, da
"transitoriedade", no sentido freudiano do termo. 19 No tempo alegre, vida e morte são
concebidas não como fenômenos dissociados, mas fundidos, uma vez que, na
carnavalização, a morte do que é antigo e velho é necessária para a regeneração e o
nascimento do novo. No universo carnavalesco, portanto, nada é estanque e perene, tudo se
mescla e se transmuta. Na estética do realismo grotesco, a expressão da beleza, associada à
perfeição e ao equilíbrio das formas nas artes clássicas, cede a vez à expressão da alegria
de existir nesse mundo em que tudo é mutável, e no qual a desproporção, e mesmo a
“feiúra”, exercem seu fascínio. 20 Daí a onipresença do riso alegre nas expressões da cultura
popular.
Justamente, o riso carnavalesco é definido por Bakhtin como um riso ambivalente:
“alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma,
amortalha e ressuscita simultaneamente”, 21 compondo uma bidimensionalidade
necessariamente paradoxal. É pelo fato de deter essa mesma ambivalência que o humor se

período imediatamente anterior ao falecimento do Pontífice já havia passado - e, não menos importante, o
estilo da mensagem, já que a criativa obra de Millôr explora o terrificante, e não o humor.
17
Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais,
São Paulo/Brasília: Edunb/Hucitec, 1996.
18
Grotesco deriva do italiano grotta, gruta ou porão, em referência ao tipo de pintura ornamental descoberto
nos subterrâneos das termas de Tito, em Roma, no final do século XV.
19
Freud, S. (1916[1915]) “Sobre a transitoriedade”, in E.S.B., v.XIV, op. Cit.
20
Cf. Kupermann, Daniel. “A fascinação da feiúra”, In Katz, C.; Kupermann, D.; Mosé, V. (orgs.) Beleza,
feiúra e psicanálise, Rio de Janeiro: Formação Freudiana/Contra Capa, 2004.
21
Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, op. Cit., p.10.
9

faz freqüentemente incompreendido. Quando se escuta apenas a faceta mórbida e destrutiva


do riso grotesco, ele é celebração da vida; quando se espera o medo e as sombras, ele
provoca alegria e claridade solar; quando se quer humilhar o estrangeiro, ele é riso de si
mesmo. Nesse sentido, o riso carnavalesco é também, necessariamente, festivo - não-
individual - e universal, na medida em que atinge a todos, indistintamente, coisas e pessoas;
todos riem, e todos são alvos em potencial do riso. No carnaval medieval, as figuras
representativas do mundo “oficial” - A Monarquia e a Igreja - eram os alvos privilegiados
da paródia popular, exatamente porque, se é possível se falar em uma ética vinculada à
categoria estética do grotesco, esta implicaria a denúncia de que a seriedade unilateral
representada pelo mundo oficial é redutora da vida e, portanto, estúpida, fundando-se no
medo da própria existência. O riso transformaria, assim, todos os elementos causadores de
medo, seja a autoridade socialmente reconhecida - o rei ou o padre -, bem como os rituais
religiosos e, até mesmo a morte, em espantalhos cômicos, frente aos quais se entoa uma boa
gargalhada.
Pode-se entender, então, de que modo o princípio do rebaixamento é constitutivo do
realismo grotesco, celebrando o tempo alegre que rege a carnavalização do mundo própria à
cultura cômica popular. Rebaixar consiste em trazer junto da terra, a representante dos
princípios de absorção e nascimento, de morte e semeadura. Rebaixar é também remeter as
formas ao sentido da vida material e corporal, em oposição à transcendência pretendida
pelas instituições reguladoras da vida social. Por esse motivo, a figura do corpo, que se faz
tão presente nas manifestações do grotesco, comparece como o corpo dos excessos e dos
orifícios, um corpo aberto, que ingere e que excreta, que engravida e morre, em permanente
intercâmbio com os elementos do ambiente. Uma das figuras mais celebradas no realismo
grotesco é, assim, a da velha grávida que ri, obscenamente. 22 Essa figura emblemática,
quintessência da incompletude, condensa tanto a percepção carnavalesca do mundo quanto
o princípio do rebaixamento, uma vez que consegue uma perfeita mistura da proximidade
da morte com a evidência do nascimento, profanando, ao mesmo tempo, o corpo já
envelhecido de mulher. Se a velha grávida ri, sua imagem também faz rir. No realismo
grotesco, a morte é uma mulher grávida, digna apenas de que sobre ela se faça uma
pilhéria...

22
Ibid., p. 23.
10

A tese de Bakhtin sugere que alguns dos principais elementos explorados, nos
séculos XVIII e XIX, pelo Romantismo Alemão para o enfrentamento dos padrões estéticos
impostos pelo Iluminismo - que remetiam à beleza das formas cultuada na Antiguidade
Clássica - tiveram sua inspiração no realismo grotesco. Encontra-se, de fato, entre os
principais expoentes da iconografia romântica, uma estimulante e inédita associação
estabelecida entre o cômico e a feiúra em torno da caricatura. Ao permitir o recurso ao
disforme e à desmedida, a caricatura “acentuada até o impossível” fora o instrumento
privilegiado encontrado para uma expressão artística não redutível à elevação idealizante
promovida pela arte iluminista. 23 Já no campo literário, os recursos poéticos privilegiados
para expressar as dimensões “sombrias” da existência, recalcadas pelo primado atribuído à
Razão e ao discurso da ciência foram, de um lado, o apelo ao estranho (unheimlich), esse
incômodo afeto indicativo de um alheamento do Homem em relação ao mundo que
habita 24 ; de outro, o próprio Witz. A charge, ao utilizar tanto o desenho como o texto, pode
condensar o poder de afetação visual do traço disforme da caricatura, com o impacto
tragicômico do dito espirituoso.
Mas, ainda acompanhando Bakhtin, parece inegável que o projeto de resgate da
potência do grotesco empreendido pelo Romantismo terminou por privilegiar a dimensão
de angústia e mesmo de horror própria à experiência do contato com o unheimlich, em
detrimento da alegria característica da Festa popular. Herdeiro confesso do Romantismo,
leitor de Jean-Paul Richter, Goethe, Hoffmann e Heine, Freud não deixou de indicar, na sua
cartografia da psique moderna, a dinâmica estabelecida entre a alegria inerente à vontade de
potência e a angústia suscitada pela falência das soberanias. Seja a soberania divina - Deus
morrera, segundo Richter e, posteriormente, Nietzsche -, seja a humana - o eu não era mais
senhor da sua própria casa, estando a consciência submetida aos impulsos incontroláveis de
um “isso” desconhecido. 25 Nesse sentido, sua obra traz, ao lado do mais minucioso
diagnóstico das fontes da angústia 26 , da inquietante estranheza (das Unheimliche) e do mal-

23
Cf. Kayser, Wolfgang. O grotesco, São Paulo: Perspectiva, 1986, p.94.
24
Freud, S. (1919) “O ‘estranho’”, in E.S.B., v.XVII, op. Cit.
25
Freud, S. (1917) “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, in E.S.B., idem.
26
Freud, S. (1926[1925]) “Inibições, sintomas e ansiedade”, in E.S.B., v.XX, op. Cit.
11

estar civilizatório 27 , um contundente elogio da transitoriedade da experiência humana e dos


poderes do Witz.
Apesar disso, e do fato de estarmos comemorando, merecidamente, os cem anos da
publicação de Os chistes e sua relação com o inconsciente, o ensaio sobre as piadas foi,
segundo constatação de Ernst Jones, o texto freudiano menos consultado pela comunidade
psicanalítica, ao menos até a década de 60. 28 Ainda que, de lá para cá, tenhamos assistido
ao resgate de Os chistes... promovido por Jacques Lacan em seu seminário As formações do
inconsciente, de 1957, a edição do seminário é muito recente (1998, na França, e 1999, no
29
Brasil) e, portanto, talvez a avaliação de Jones ainda não esteja superada.

Rir com a vida: o órfão e o humorista


O que talvez não tenha sido suficientemente considerado na avaliação da charge
que, de resto, permitia de maneira brilhante a expressão dos afetos implicados na
expectativa da morte do Papa, é a evidência de que nela o cartunista era, ele próprio, tanto a
primeira quanto a segunda pessoa envolvida na construção do Witz, o que conta a piada e o
seu alvo. E essa é, justamente, a principal característica do humorista: ousar rir de si
mesmo. Isso porque a sentença proferida através da charge, “serei breve!”, expunha a céu
aberto a condição de orfandade à qual todos se viram remetidos (não-católicos inclusive,
devido à influência do Papa na cultura mosaica contemporânea). Bela caricatura da
condição trágica moderna: no rebaixamento da figura sacralizada do Papa, a crueldade da
evidência de um inexorável desamparo mesclada à potência criadora do espírito, o que o
riso ambivalente, ainda que abafado, permitia intuir. Vale à pena acompanhar o modo
através do qual as dimensões simultaneamente órfã e criativa presentes no humorista foram
sugeridas por Freud.
Em Os chistes... encontra-se a indicação de que o humorista obtém sucesso ao tratar
suas agonias, bem como as do seu público, do mesmo modo que um adulto “superior” trata
as aflições de uma criança. Através do distanciamento da realidade penosa assim

27
Freud, S. (1930[1929]) “O mal-estar na civilização”, in E.S.B., v.XXI, op. Cit..
28
Jones, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud, v.2, Rio de janeiro: Imago, 1989, p.337.
29
Lacan, Jacques. (1957-58) O seminário – livro 5: as formações do inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999. Além disso, a leitura de Lacan, nessa época, é ainda muito marcada pelo primado da lógica do
significante, e questões referentes à dimensão estética da clínica e à política da psicanálise, cruciais para o
problema colocado ao campo psicanalítico pelo Witz, não são privilegiadas.
12

produzido, lhe é possível obter prazer, apesar dos afetos angustiantes implicados na
situação em que se encontra. O efeito humorístico procederia, dessa maneira, de uma
economia na despesa com o afeto doloroso. Tornando-se supérflua, a experiência afetiva
desprazerosa deixaria de ocorrer. No exemplo do condenado à forca, onde se esperava a
compaixão para com o seu desespero, advém o riso, uma vez que “o maior interessado” se
recusaria a sucumbir frente à iminência da morte. 30
Em “O humor”, já dispondo da segunda tópica, Freud pode avançar um passo
decisivo no entendimento do processo. O êxito na promoção do distanciamento da situação
desfavorável estaria na possibilidade encontrada pelo humorista de “identificar-se até certo
ponto com o pai”, 31 consolando assim, do alto da sua nova posição, a aflição das crianças
desamparadas às quais reduziu seu público. No entanto, a operação não se restringe aos
ouvintes, recaindo sobre o próprio humorista que, ao rir de si mesmo, é simultaneamente a
criança aflita e o adulto “superior” em relação a essa mesma criança.
Na descrição metapsicológica do humor haveria, dessa maneira, um deslocamento
da ênfase psíquica do ego para o superego, um “superinvestimento” súbito do superego
pelo ego, que revela o poder de modificar as próprias reações do ego, agora esvaziado.
Seria, portanto, o superego quem protagonizaria a cena no distanciamento promovido pelo
humor, fazendo das angústias e dos interesses do ego café pequeno. Na montagem criada
por Freud, o drama egóico cederia a vez à tragicomédia humorística – “a contribuição feita
ao cômico pela intervenção do superego” - e, nela, através da voz do superego, uma
“intenção” estaria sendo transmitida, traduzida como: “Olhem! Aqui está o mundo, que
parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se
faça uma pilhéria!”32
A posição subjetiva evidenciada no humor não se confundirá, portanto, com o
triunfo egóico narcísico, como à primeira vista poderia parecer, e como Freud, inicialmente,
chegou a acreditar, aproximando o humorista, em função da sua aparente intangibilidade,
dos criminosos, das belas mulheres, dos felinos e das crianças. 33 Ao contrário, se o

30
Freud, S. “Os chistes...”, op. Cit., cap. VII.
31
“(...) gewissermaβem indie Vateridentifizierung begebe (...)”, no original alemão. Freud, S. “Der Witz und
seine Beziehung zum Unbewussten”, in Gesammelte Werke, Frankfurt am Main, S. Fischer, 1969, v.VI,
p.386.
32
Freud, S. “O humor”, op. Cit., p.194.
33
Freud, S. (1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, in E.S.B., v.XIV, op. Cit., pp.105-106.
13

humorista tem sucesso em se identificar “até certo ponto” com o pai, é apenas na medida
em que pode reconhecer sua orfandade, ou seja, a falência da pretensão de possuir qualquer
garantia transcendente (idealizada) de onisciência e onipotência, atributos do pai da horda
há muito ausente. 34 Na obra freudiana a figura do órfão se oferece como verdadeiro
contraponto à do herói indestrutível, identificado de modo absoluto com o pai idealizado,
cujo lema, "nada me pode acontecer", reflete a arrogância falicista com a qual se quer
investido. 35 Ao contrário do herói, o órfão - aqui aproximado do humorista, que teria na
orfandade sua própria condição de possibilidade - é aquele que se reconhece
definitivamente insuficiente, identificando-se com o pai somente ao ponto de poder
constituir um ideal do ego portador do signo da alteridade no psiquismo, condição para o
trabalho da imaginação criadora. Admitindo a perda inexorável de toda e qualquer
pretensão fálica, sua e do Outro, o órfão teria como lema “tudo pode me acontecer, a mim
que já perdi o que tinha para perder e que aprendi a rir com a vida”. 36
Uma das piadas preferidas de Freud, três vezes repetida no livro dos chistes, é
ilustrativa da íntima vinculação existente, na psicanálise, entre o humor e a condição de
orfandade: “Um Sereníssimo estava dando uma volta por suas províncias e notou na
multidão um homem, extraordinariamente semelhante à sua própria pessoa. Acenou,
convocando-o, e perguntou-lhe: ´Sua mãe esteve alguma vez a serviço no Palácio?` – ´Não,
alteza, foi a réplica, mas meu pai esteve`”. 37 Como se diz, ri melhor quem ri por último. Mas
seria limitado supor que o que se coloca em jogo nessa piada é a rivalidade entre filhos que
competem para provar quem tem o pai mais potente. O inconformismo e a rebeldia do
humor enunciado pelo personagem moderno “homem da multidão” frente ao nobre, indica
a dimensão política intrínseca a esse chiste: é de desidealização e da desmontagem da farsa
embutida em toda e qualquer pretensão de onipotência e de garantia fundada no apelo à
tradição que aqui se trata.
Nos parágrafos finais de “O futuro de uma ilusão” - curiosamente, o ensaio sobre o
humor foi elaborado durante a sua redação e publicado no mesmo ano de 1927 - Freud,
inspirando-se em Heine, se refere à comunidade criada na modernidade por “nossos

34
Freud, S. (1913[1912-13]) “Totem e tabu”, in E.S.B., v.XIII, op. Cit.
35
Cf. Freud, S. (1908[1907]) “Escritores criativos e devaneios”, in E.S.B., v.IX, op. Cit.
36
Cf. Kupermann, D. Ousar rir, op. Cit., cap. 2.3.1.
37
Freud, S. “Os chistes...”, op.Cit., p.86.
14

companheiros de descrença”: aqueles que, deixando o Céu aos anjos e aos pardais, abriram
mão do seu “infantilismo”, abandonaram definitivamente a “casa paterna” e, afastando suas
expectativas em relação a um outro mundo, têm suas energias liberadas para a vida terrena.
Apesar de exibir-se, nesse momento, com uma roupagem francamente iluminista há tempos
abandonada, que o faz apostar muitas de suas fichas nos poderes da ciência, e de assumir-se
radicalmente “irreligioso”, Freud reserva à arte a função e a competência indispensáveis de
promover o laço identificatório necessário para o compartilhamento das experiências
“emocionais altamente valorizadas”. 38 Portanto, convém grifar: companheiros de
descrença... não de desespero. Talvez ainda seja possível imaginar, agora inspirados no
Witz, uma comunidade contemporânea na qual os órfãos da transcendência tornar-se-iam
companheiros na arte e na ciência, encontrando na mistura de lucidez com ludicidade
proporcionada pelo humor, combustível para evitar a tentação à idealização totalitária que
cada um desses domínios tende a produzir.

O riso obsceno das mulheres


Uma recente pesquisa coordenada por Eric Bressler, do Departamento de Psicologia
da McMaster University, do Canadá, revelou: enquanto sessenta e dois por cento das
mulheres prefeririam os homens que as fazem rir, sessenta e cinco por cento dos homens
buscariam mulheres que apreciam o seu humor. E ainda: “Quando se trata de amizade, os
homens gostam de estar perto de mulheres que produzam humor. Quando a relação é de
natureza sexual, procuram mulheres que riam das suas piadas”. 39 O que surpreende nos
dados divulgados é o seu caráter conservador, bastante adequado aos papéis
tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres nas sociedades falocêntricas do Ocidente,
perpetuados mesmo em um país com um grau de desenvolvimento sócio-cultural como o
Canadá. Assim, na arte da sedução proporcionada pelo humor, a atividade, bem como o
domínio da situação, ainda seriam da competência masculina, enquanto à mulher caberia a
passividade e o recato nos assuntos do espírito.

38
Freud, S. (1927) “O futuro de uma ilusão”, in E.S.B., v.XXI, pp.25-64.
39
Ver, a esse respeito, a matéria “O humor cômico e o temperamento humano”, assinada por Renata Costa,
em www.universiabrasil.net, baseada em notícia de 10/02/2005 divulgada em www.rxpgnews.com, site
voltado aos profissionais da medicina.
15

Na vida social, de fato, o número de humoristas homens é significantemente maior


que o de mulheres, podendo-se reconhecer modalidades de Witz eminentemente
masculinas, como o smut - a abordagem obscena de uma mulher efetuada por um homem
na presença de um terceiro, geralmente outro homem. 40 Em conseqüência, é também
bastante freqüente as mulheres serem, junto às minorias de gênero sexual, a “segunda
pessoa” de um chiste, alvo das pulsões sexuais e agressivas, incluindo nesse rol as piadas
que aludem à incapacidade feminina de entender piadas. A questão que parece se impor a
partir dessas observações, pertinente ainda nos dias de hoje, é em que medida uma mulher
poderia, efetivamente, rir e fazer rir.
Acompanhando os ensaios de historiadores dedicados à Idade Média, como Jacques
Le Goff e Johan Verberckmoes, 41 parece provável que o catolicismo, ao associar o riso aos
pecados do ócio e da licenciosidade, deteve um papel importante na inibição do humor
feminino. No entanto, a hipótese que pretendo explorar é a de que houve, desde os
primórdios da fundação do falocentrismo na Grécia Antiga, uma associação do riso da
mulher à experiência do horror de castração, sendo que a psicanálise é, em grande parte,
herdeira dessa tradição.
A figura mitológica utilizada por Freud, e retomada por inúmeros psicanalistas, para
ilustrar o terror de castração é a da Medusa, cuja visão transformaria os mortais em pedra.
Na análise freudiana, a Medusa simbolizaria o órgão genital da mulher, que remeteria os
meninos ao horror devido à confirmação da ameaça de castração que, em função da
intensidade dos afetos implicados no complexo de Édipo, ocupa seu universo fantasmático.
Os elementos associados ao mito, como as cobras no lugar dos cabelos e o próprio efeito de
empedramento, são considerados confirmações do simbolismo estabelecido entre a Medusa
e a vulva, denotando a tentativa de apaziguar o horror através da simulação da ereção
peniana.
Mas o que escapa na maior parte das leituras realizadas da interpretação freudiana é
a percepção de que a figura mitológica da Medusa é o produto de uma concepção
unidimensional dos órgãos genitais femininos, que “isola seus efeitos horripilantes dos

40
Cf. Freud, S. “Os chistes...”, op. Cit., cap. X.
41
Cf. Le Goff, J. “O riso na Idade Média” e Verberckmoes, J. “O cômico e a Contra-Reforma na Holanda
espanhola”, ambos em Bremmer, Jan e Roodenburg, Herman. Uma história cultural do humor, Rio de
Janeiro: Record, 2000.
16

dispensadores de prazer”. Assim, não seria de estranhar, ainda acompanhando Freud, que
essa “representação da mulher” fosse encontrada em uma cultura fortemente homossexual e
misógina. 42 No entanto, apesar de seu espírito permitir relativizar a força do mito da
Medusa nas representações antigas do feminino, ao insistir nesse “símbolo isolado de
horror na mitologia grega”, Freud peca pela sua naturalização, que vem corroborar a
hipótese da primazia do falo na organização genital infantil e, conseqüentemente, na
constituição das subjetividades dos homens e das mulheres. Se, na teoria freudiana
ortodoxa, o homem se assujeita através da ameaça de castração, resta à menina, já castrada,
a inelutável inveja do pênis; e à mulher, que não teria mesmo do que rir (aliás, sem
superego, estaria incapacitada para o humor), o consolo de parir um filho homem.
Em Todo sobre mi madre o cineasta Pedro Almodóvar oferece um tratamento
alternativo para o enigma do riso das mulheres, mães ou não. Há um momento em que se
encontram em um apartamento quase sem mobília, ao redor de um pequeno ambiente na
sala de estar, Agrado, um travesti surrado recentemente por um cliente, e três mulheres:
Manuela, uma mãe que acabou de perder seu filho único em um atropelamento; Rosa, uma
freira grávida soropositivo; e Huma, uma atriz veterana escravizada pela paixão por uma
jovem viciada em heroína. Elas bebem um espumante e conversam despretensiosamente
sobre frieiras e Prada, até que, após uma confissão inesperada de Huma, “faz muito tempo
que não chupo um pau”, começam a rir às gargalhadas, repetindo os nomes populares do
órgão masculino. A cena toda remete a um autêntico realismo grotesco, no qual cada uma
dessas personagens é, isoladamente, a quintessência da incompletude e, rindo em
companhia, conseguem transformar suas misérias e seus dramas (o Tango argentino
predomina na trilha sonora do filme) em meros espantalhos cômicos. Nenhum vestígio de
inveja do pênis nessa brincadeira com as palavras obscenas, nenhuma recusa da castração,
como nosso gênio interpretativo poderia sugerir, mas a percepção de que o riso dessas
mulheres que se sabem insuficientes e de pouca “mobília” só pode acontecer entre
companheiras na descrença em relação à métrica e a rima falicista. 43
Há, na mitologia grega, uma figura estreitamente relacionada à Medusa que, no
entanto, é absolutamente ignorada pela tradição psicanalítica. Trata-se de Iambe, ou Baubó,

42
Ibid., p.330.
43
O pai de Rosa, demenciado, ao ver qualquer mulher, inclusive a filha, só encontra duas perguntas a fazer:
“quantos anos você tem?” E “quanto você mede?”
17

a velha graîa que acode a deusa Deméter em sua aflição pelo rapto da filha Perséfone,
cometido por Hades. As Graîai são irmãs das Górgonas, o que estabelece o parentesco
irredutível entre Iambe/Baubó e a Medusa (Gorgó). Após nove dias em jejum vagando à
procura da filha, Deméter chega à casa de Eulmolpus, nos arredores de Elêusis, onde é
recebida pela graîa, que lhe oferece uma refeição. Frente à grave melancolia de Deméter e
sua recusa em se alimentar, Baubó, segundo a tradição órfica, levantou a saia e, exibindo
seu sexo, divertiu-a com movimentos e caretas insólitas. Já segundo a tradição homérica,
Iambe teria proferido piadas e obscenidades. Qualquer que tenha sido o expediente da
graîa, visual ou linguageiro, teve sucesso em provocar gargalhadas na deusa, que então se
alimentou (inevitável associar a figura da graîa à da velha grávida carnavalesca que ri).
Jean-Pierre Vernant 44 indica, em um precioso estudo sobre as figurações do Outro
na Grécia Antiga, de que maneira a Medusa e Iambe/Baubó assumem funções simétricas
em relação à categoria do “monstruoso” - que, para os gregos, acompanha as
representações ambivalentes da alteridade, entre o aterrorizante e o grotesco, a paralisia e o
riso -, não podendo ser, portanto, separadas. Qualquer uma dessas personagens, adotada
isoladamente, promoveria uma interpretação unidimensional e restritiva da experiência
helênica de produção de sentido.
A descoberta da recalcada Iambe/Baubó (não ela, que de recalcada não tem nada,
mas no resgate moderno da mitologia grega) é tentadora para a apologia dos efeitos
terapêuticos do Witz. Afinal, segundo a tradição homérica, foi exatamente através do
emprego de uma gestualidade e de uma linguagem marcada pela carnavalização e pelo
rebaixamento grotescos que se deu a cura de Deméter. Iambe, assim como as mulheres de
Almodóvar, teria empregado, para provocar o riso, tudo o que em grego se diz skóptein, ou
paraskópten pollá - obscenidades, injúrias, palavrões, escatologias. 45 Mas não se trata, já ao
final desse ensaio, de simplesmente reafirmar a antiga máxima de que rir é o melhor
remédio, e sim de poder, a partir da problemática imposta pelo Witz ao campo psicanalítico,
indicar um caminho para o questionamento acerca daquilo que define a especificidade da
psicanálise: a circulação da palavra na clínica e, em especial, o emprego desta pelo
psicanalista.

44
Vernant, J.-P. A morte nos olhos. Figuração do Outro na Grécia Antiga. Ártemis e Gorgó, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1991.
45
Ibid., p.43.
18

Língua solta na clínica psicanalítica


É hora de relembrar o chiste da Baronesa em trabalho de parto, apresentado por
Freud em Os chistes...:
O médico a quem se solicitou assistir a Baronesa na hora do parto, anunciou que
ainda não chegara o momento de dar à luz, e propôs ao Barão que esperassem
jogando cartas no cômodo vizinho. Após um momento, um queixume da Baronesa
chegou aos ouvidos dos dois homens: “Ah, mon Dieu, que je souffre!” O marido
levantou-se de um salto, mas o médico lhe fez sinal para que permanecesse sentado:
“Não é nada. Continuemos o jogo!” Pouco depois, escuta-se novamente a
parturiente gritar: “Mein Gott, mein Gott, was für Schmerzen!” [“Meu Deus, Meu
Deus, que dores!”, em alemão] — “Você não quer entrar, Professor?”, perguntou o
Barão. “Não, não. Ainda não é a hora”. Finalmente, escapa do quarto ao lado um
inconfundível [lamento em Iídiche]: “Ai, waih, waih geschrien” [“Ai, waih, waih,
que dor”]. Então o médico largou as cartas e disse: “Está na hora”. 46

Em seu comentário à piada, Freud sublinha, de modo um tanto lacônico, que a dor
obriga à “natureza primitiva” irromper através das camadas de verniz cultural. Entretanto, o
que certamente escapa aos leitores da Edição Standard, é que aqui se trata da irrupção de
uma autêntica “língua materna”, não apenas da mãe Baronesa, mas a própria Mamaloshen
- a “língua da mãe”, como o Iídiche era apelidado pelos judeus da Europa Oriental -
também falada por Amalia, mãe de Freud (esta é, aliás, como observa Kamieniak, a única
piada em todo o livro que tem por personagem uma mãe judia!). E o que a língua materna,
como grito primitivo, testemunha, é a palavra encarnada, o “momento no qual verbo e
carne estão indefectivelmente entrelaçados”. 47 Aqui, mais uma vez, a leitura de Freud tende
a isolar apenas uma dimensão da experiência, a da dor, desconsiderando a evidente alegria
e o triunfo presentes na ocasião de um nascimento.
Desde “Palavras obscenas. Contribuição para a psicologia do período de latência” 48 ,
de 1911, publicado no início da sua carreira como psicanalista, até “Confusão de língua
entre os adultos e a criança” 49 , de 1933, seu último ensaio escrito, o projeto clínico do
psicanalista húngaro Sándor Ferenczi foi caracterizado pela tentativa de se recriar as

46
Freud, S. “Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten”, in Gesammelte Werke, Frankfurt am Main, S.
Ficher, 1969, v. VI, p. 86, colchetes nossos.
47
Kamieniak, Jean-Pierre. “Freud, um enfant de L’humour?”, Topique – revue freudienne, 66, Paris: L’ esprit
du temps, 1998, p.151.
48
Ferenczi, Sándor. (1911) “Palavras obscenas...”, in Psicanálise I, São Paulo: Martins Fontes, 1991.
49
Ferenczi, S. (1933) Confusão de língua...”, in Psicanálise IV, São Paulo: Martins Fontes, 1992.
19

condições, presentes no encontro inaugural de Freud com a catarse das histéricas, para que
os analisandos pudessem mais uma vez “soltar a língua” 50 , enunciando uma palavra
encarnada capaz de expressar e de elaborar a intensidade dos seus afetos, seja a dor das
rupturas, seja a alegria ao criar sentidos para a existência. Foi preciso, assim, desenvolver
um estilo clínico que propiciasse, efetivamente, o resgate da afetividade na relação
terapêutica, a análise pelo jogo, ou análise através do brincar. 51
As experimentações de Ferenczi o levaram a formular, lado-a-lado com a
abstinência que marcou a relação analítica nas primeiras décadas do século XX, o princípio
de laissez-faire, que visava autorizar aos analisandos uma radical “liberdade na fala e na
expressão dos sentimentos”, subentendida na regra da associação livre, mas já esmaecida. 52
Assim, junto ao choro e à dor do desalento referente às perdas e aos episódios traumáticos,
a situação analítica passou a ser habitada também por um enorme conjunto de
procedimentos e verbalizações lúdicas, como se assistia na incipiente análise de crianças:
pequenas histórias inventadas, poemas e rimas forçadas, e ainda injúrias, provocações
obscenas e risos. 53
Mas para que essa transformação pudesse ocorrer seria preciso que o psicanalista
também se implicasse na criação de uma palavra encarnada reivindicando, dessa maneira, o
poder de enunciação capaz de afetar seus analisandos. Ferenczi já o tinha ousado indicar
com “Palavras obscenas...”, arriscando chocar a comunidade psicanalítica e científica da
época com sua proposta de que, nas análises, a abordagem dos assuntos ligados à
sexualidade deveria ocorrer segundo o tratamento coloquial, e não através de latinismos.
Sua formulação derradeira, nos anos 30, fora a de que o psicanalista precisaria dispor da
“linguagem da ternura” própria para a comunicação com o infantil do psiquismo. 54
É bastante esclarecedora a aproximação estabelecida por Anna Verônica Mautner
entre a concepção ferencziana de uma linguagem da ternura, e o sentido que o Magiar,
como língua materna, deteve para os húngaros. Como até o início do século XX a Hungria
ficou à sombra de povos dominantes, a língua “oficial” estrangeira era imposta junto às
instituições reguladoras da vida social, enquanto o Magiar ficava restrito à informalidade

50
Idem.
51
Ferenczi, S. (1931) “Análises de crianças com adultos”, in Psicanálise IV, op. Cit.
52
Ferenczi, S. (1930) “Princípio de relaxamento e neocatarse”, idem.
53
Ferenczi, S. “Análises de crianças com adultos”, op. Cit.
20

das relações pessoais e ao âmbito familiar, preservando-se, assim, como “uma grande
língua de blasfêmias! (...) para rir, chorar, xingar e amar”. 55 Essa mesma contraposição
linguageira é encontrada na concepção bakhtiniana de uma “linguagem familiar”
característica da praça pública na qual ocorriam as festividades carnavalescas na Europa
medieval e renascentista, na qual se usava e abusava de apelidos, diminutivos e injúrias de
maneira a criar e denotar intimidade afetiva entre as pessoas. 56 Convém ainda sublinhar a
dimensão política implicada no uso, necessariamente semiclandestino, de uma língua
materna em situações de dominação, uma vez que, assim, se tem sucesso em criar
agenciamentos e experimentações afetivas marginais aos processos de subjetivação
dominantes. A intuição ferencziana foi a de que os psicanalistas precisariam, a cada novo
caso, inventar uma linguagem que lhes desse acesso à criança presente em cada analisando,
para que a psicanálise pudesse persistir em seu trabalho de resistência à submissão e de
criação de sentidos singulares, livrando essas subjetividades do mutismo no qual se
encontrariam aprisionadas.
Na esteira de Ferenczi, pode-se reconhecer na obra de D. W. Winnicott, que
amadureceu o estilo clínico por aquele inaugurado, as mais preciosas indicações acerca da
importância do humor e do brincar na clínica. 57 Mestre do paradoxo, Winnicott reconhece
que é apenas no brincar que se frui a alegria e a liberdade de criação. No entanto, o
exercício do brincar em uma análise só se faz possível se o psicanalista puder bascular entre
a posição de suporte da ilusão e a de sobrevivente da sua própria destituição desse lugar,
acolhendo, sem ameaça de abandono ou de retaliação, a onipotência e a agressividade do
seu analisando. Para habitar esse espaço paradoxal no qual a realidade se constitui a partir
do compartilhamento de uma ilusão, o psicanalista não pode, decididamente, se tomar
muito à sério, arriscando estragar o jogo.
O curioso é que ambos os autores do estilo clínico calcado na regressão e no brincar
são identificados, por parte da comunidade psicanalítica, como analistas maternalizantes.
Foi preciso, de fato, um movimento de desfalicização e, conseqüentemente, de
feminilização, para que se pudesse resgatar a potência erótica e criativa da palavra

54
Ferenczi, S. “Confusão de língua...”, op.Cit.
55
Mautner, A. V. “Ferenczi: cultura e história”, in Katz, C. S. (org.) Ferenczi: história, teoria, técnica, São
Paulo, 34/Formação Freudiana, 1996, p.28.
56
Bakhtin, M. A cultura popular..., op. Cit.
21

desnudada na clínica psicanalítica. Companheiros de descrença no poder soberano do


instrumento interpretativo, tanto Ferenczi quanto Winnicott desacreditaram também da
possibilidade do psicanalista posicionar-se, no campo transferencial, como um “substituto
paterno”, como imaginara Freud. 58 Mas antes de se oferecerem como “mães” protetoras, é
como órfãos de qualquer álibi de transcendência que pretendesse garantir o exercício da
clínica que ambos se apresentaram.
Se há algum ponto de aproximação entre a metapsicologia do analista e a do
humorista, este seria o estatuto da orfandade, no sentido acima sugerido do órfão como
aquele que, não tendo mais nada a perder, aprendeu a rir com a vida. Se a palavra Witz, em
alemão, remete ao verbo wissen, que significa saber, 59 teríamos, com o humor, uma boa
definição para o gaio saber que move o psicanalisar. Com conhecimento de causa,
Winnicott constata que, se o analista não tem humor, não é adequado ao ofício 60 . É certo
que o Witz por si só não promoverá uma cura, mas é legítimo questionar os efeitos sobre
um analisando que é levado a crer que seu analista é incapaz de rir, sobretudo de si mesmo.

Daniel Kupermann
danielk@openlink.com.br

57
Winnicott, D. W. O brincar & a realidade, Rio de Janeiro: Imago, 1975.
58
Freud, S. (1937) “Análise terminável e interminável”, in E.S.B., v.XXIII, op. Cit, p.286.
59
Cf. Kohn, Max. Freud e o Iídiche: o pré-analítico, Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.9.
60
Winnicott, D. W. O brincar & a realidade, op. Cit., p.80.

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