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I ir <"I análise textual, orientando-se para aspectos Hoje, sua utópica compreensão do fenômeno há
supra-individuais das obras. Assumem, no caso, que ser necessariamente revista, a partir de uma
como finalidade última, a aproximação global da li- concepção de uma perspectiva "planetária", na qual
t cratura, na qual cabe dar conta da complexidade de tem insistido René Etiernble."
I' .laçôes interliterárias e de como, por força desses Mas se Goethe ambicionou a criação de uma
1rocessos, se estabelece a tradição. literatura mundial para a qual todos os escritores co-
Esse procedimento, que afirma a vinculação laborariam, a concepção da literatura como uma to-
da literatura comparada com a teoria literária, recu- talidade, dinâmica e interativa, perpassa a obra de
pera para os estudos comparativistas a noção de muitos escritores modernos. Na de Jorge Luís Bor-
Weltliteratur em novas bases, sem as marcas da incli- ges, por exemplo, essa idéia configura-se como uma
nação cosmopolita de inícios do século XIX ou da vi- biblioteca interminável que, ao ser percorrida por
são utópica de Goethe, quando empregou e difun- um eterno viajante em qualquer direção, comprova-
diu o termo em 1827. Na perspectiva goethiana, a ria, no final dos séculos, que os mesmos volumes se
noção de "literatura mundial" pressupunha a exis- repetem em igual desordem.
tência de nações com identidade própria e com co- N a noção do literário como globalidade estão
municação no plano literário. A construção lógica. presentes a de "comunidade" e a de "continuidade",
do conceito remete à sua origem eurocêntrica, pois sendo esta entendida como um processo que alterna
deve seu surgimento à pulverização progressiva da memória e esquecimento. Vigora também aí, de for-
língua latina como código universal, que durante sé- ma subjacente, a perda do conceito de propriedade
culos constituiu um meio de produção e de comuni- privada, pois nesse grande conjunto tudo se torna
cação literária na Europa." Foi com certeza o apare- propriedade de todos, patrimônio comum a que o
cimento de várias formas de expressão literária em escritores recorrem consciente ou inconscientemen-
latim vulgar, transmutado em línguas vulgares, que te. A tradição se faz por um efeito de memória. Ou
depois configuraram as diversas literaturas nacio- como diz Ricardo Piglia: "Para um escritor a memó-
nais, o motivo provocador da reflexão sobre rela- ria é a tradição. Uma memória impessoal, feita de i-
ções recíprocas e liames entre elas e além delas. tações, na qual se falam todas as línguas. Os frag-
2 Veja-se a respeito, Manfred Naumann, "Entre réalité et utopie: 3 Etiemble, René. Es~aisde liuérature (vraiment)générale. Paris, (::11
Coethe et sa notion de Ia Weltliteratur". In: Liüérature compa- limard, 1974 [1975] e Quelques essais de liüérature nniV('I~I'I'III', 1',1
rée/Liuêrature mondiale, Actes du Xlêrne Congrês de Ia AILC, Pa- ris, Gallimard, 1982. Ver ainda Ouoertureis) sU?o '1/.1'1 COlllfl(/l(/I/I/lI/'
ris, 1985, Peter Lang, 1991. planétaire. Paris, C. Bourgois, 1988,
7'J.
o PRÓPRIO E O ALHEIO
INTEln'EXTUALIDADE: 73
Ainstrumentalização do conceito teórico foi vra esclarece: texere, isto é, tecer, tramar. Daí "int r-.
rápida. Foi tal sua difusão nos anos 1970 que Marc texto", que significa "tecer no, misturar tecendo" e,
~genot observou, com razão, que seria possível de forma figurada, entrelaçar, reunir, combinar."
Ilustrar a própria noção de intertextualidade com a O texto permite a leitura de intertextos, ou
n:igração do termo "intertexto" e de seu campo no- seja, do "conjunto de textos que se pode aproximar
cional.?
daquele que temos sob os olhos, o conjunto de tex-
A idéia varia segundo os contextos teóricos: tos que encontramos na memória de uma dada pas-
por vezesintegra a poética genética, outras, a estéti- sagem", como definiu Riffaterre.?
ca da recepção; em alguns autores ela ocupa uma É, portanto, na trama do que se perde e do
posição central; em outros, é termo ocasionalmente que se recupera, na alternância de esquecimento e
empregado. O fato é que a noção fez "fortuna críti- memória do que se lê que se organiza a continuida-
ca", não surpreendendo, pois, que se transladasse de literária, tal como ela se manifesta em cada texto.
ao domínio compara tista, fortalecendo a solidarie- A intertextualidade, ao operacionalizar-se, possibili-
dade existente entre as formas de investigação do li- ta que se recomponham os fios internos dessa vasta
terário. Desde o número 27 da revista Poétique, continuidade em seus prolongamentos e rupturas.
"Intertextualités", dirigido por Laurent J enny, vá- Mas se a intertextualidade como propriedade textu-
rias publicações são dedicadas ao tema.
al é seletiva, pois a absorção de elementos alheios
A intertextualidade, como propriedade des- responde a uma necessidade particular, o procedi-
crita, passou a significar um procedimento indis- mento nos leva a pensar na constituição de uma
pensável à investigação das relações entre os diver- "tradição" não-ilimitada, como queria T. S. Eliot,
sos textos. Tornou-se chave para a leitura e um mas num conjunto de dimensões formais e temáti-
modo de problematizá-Ia. Como sinônimo das rela- cas que certos grupos de textos têm em comum.
ções que um texto mantém com um corpus textual
pré ou coexistente, a intertextualidade passou a ori-
.n tar a interpretação, que não pode mais desconhe- 8 Cf. Ruprecht, H-C. "Intertextualité". In: Texte. Les Ed. Trintex-
. r os desdobramentos de significados e vai entrela- te, 1984.
~'<Í-Iosçorn., a própria origem etimológica da pala- 9 Riffaterre, M. Op. cit. Paris, Seuil, 1979. Sobre "intertextualida-
de" há uma vasta bibliografia teórica. Cabe aqui registrar ape-
nas os números especiais de revistas literárias dedicados à ques-
tão. Trata-se de Poétique n.27 (dirigido por Laurent Jenny),
1976; Sémiotique et Bible, n.15, 1979; Littérature n.41, 1981 e Tex-
7 t\ng nOl, M. "Intertextualité, interdiscursivité, discours social".
te, 1984. Veja-se também o livro de Nathalie Piégay-Cros, Intro-
111: Texte. Les Editions Trintexte, 1984.
duction à l'Iniertextualüé, Paris, DUNOD, 1996.
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lidades de, partindo dela, ganhar acesso ao que sua concepção, que René Wellek procurou reorien-
constitui mais propriamente a parte do autor em sua lar em seu conhecido ensaio sobre a "Crise da litera-
obra e ao que haja, nesta, de verdadeiramente orgâ- tura comparada". Já ali dizia: "A literatura compara-
nico e intrínseco". A seguir, ilustra suas afirmações, Ia tem o imenso mérito de combater o falso isola-
completando: "Para Cláudio Manuel da Costa, mento das histórias literárias nacionais: está obvia-
aquele encontro do Metastasio fornece-lhe, numa mente certa (e tem apresentado um acúmulo de pro-
primeira e inevitável etapa, o modelo ideal que o vas para apoiar isso) na sua concepção de uma tradição
ajudará a livrar-se, na medida de suas possibilida- ocidental coerente de literatura entretecida numa rede de
des, das cadeias que ainda o prendem a uma estética 'inúmeras inter-relações" 13 (grifo meu).
transacta: a do Seiscentismo. A seguir, porém, o Nesta passagem, Wellek pretendia desfazer a
mestre antes absorvente irá transformar-se em efi- dicotomia entre literatura geral e literatura compa-
caz estímulo. A esse estímulo deveu o brasileiro a ini- rada, estabelecida por Van Tieghem,julgando a dis-
ciação e o vinco arcádicos que irão marcar toda a sua tinção desnecessária, pois, como disse: "Literatura
obra ulterior e sua ação no ambiente natal"!". omparada tornou-se l)rp._!~rmo estabelecidô paia
A transcrição dessa passagem do ensaio de qua quer estude;- de literatura que transcenda às li-
Buarque de Holanda evidencia como e em ue me- mites-deurií"aliteratüra nacional". Contudo, era
dida a apropriação de determinados modelos é ne- preciso ressaltar que e;;e estudo não poderia de-
cessária à constituição de uma certa obra e, por meio l r-se no simples mapeamento de relações entre as
dela, alimenta a literatura a que pertence. Eviden- iversas literaturas, mas necessitava, sobretudo, ex-
cia, também, como ojogo intertextuãI que se estabe- plicitar o que essas relaçõe~eviam indicar.
lece se faz por força de convenções cuja migração I Deve-se reconhece;:, em René Wellek, uma vi-
noS1extos Tespon e pela continuidade literária. E - são sistêmica da literatura e, nessa perspectiva, a
mais, como o ponto de vista comparativo pode escla- "rede de inúmeras inter-relações" de que fala deve-
r r o intercâmbio literário e suas repercussões na ria abarcar as relações intertextuais, cuja análise nos
configuração definitiva de cada literatura. ajuda a perceber o andamento dos elementos literá-
Aliás, foi esse processo de relações interliterá- rios que configuram a tradição, mas também as rela-
rias, olj to central da literatura comparada desde .ões entre as literaturas em sentido amplo, cuja or-
torical Poetics (l 978/1 981), que reúne estudos dos a da literatura nacional, examinando-a em suas arti-
anos 1?70, pode ser dada p~los estudiosos de Bratis- culações com outras literaturas."
lava, liderados por Dionyz Durisin, que desenvolve- Os estudos mais recentes sobre comunidades
ram a noção de "comunidades interliterárias" vi- interliterárias fogem ao esquematismo e ao determi-
sando ao estabelecimento de um sistema teórico e nismo mecânico que ainda pareciam persistir nos
~eto~ológico coerente para as relações literárias. As primeiros textos. Isto se percebe, por exemplo, no
lI~vestIgações de Durisin e de seus colaboradores estudo sobre "Retardement, déplacement de phase,
nao que~em apenas identificar os conjuntos históri- développement accéléré", de István Fried, de Buda-
cos das lIteraturas e das unidades literárias históri- peste, no qual há a preocupação em ultrapassar os
cas : an~lógica~ do passado, como co~unt~s supra- conceitos fixados de "diferença cronológica" ou de
nacionais, m~s .I?tentam definir conceitos e catego- "atraso", dizendo não ser possível reduzir o proces-
nas que possibilitem interpretar melhor as relações so literário ao fator cronológico, pois ele tem cadên-
que ~ss~guram sua conformação e continuidade. A cias próprias. Segundo ele, é preciso aceitar que em
constItUIção dessas comunidades interliterárias é de algumas literaturas os estilos marcados pela época
natureza múltipla, condicionada por fatores varia- apareçam incompletos, fragmentários, enquanto
dos, que podem ser geográficos, políticos, lingüísti- em outras se aclimatam e fixam-se correntes dife-
cos, de. proximidade, de parentesco ou mesmo de rentes. São vários os fatores que colaboram no pro-
~nalogIa ~e proc:dim~ntos artísticos. Além disso, cesso, sendo impossível condensá-Ios em constru-
as comumdades mterhterárias não existem nem se ções simplificadas ou esquemáticas e menos ainda
desenvolvem isoladamente, mas através de uma in- apriorísticas. Como dirá: "Nosso trabalho será mais
rteração variável com seu contexto'v-. Por isso ,ca d a rentável e nós compreenderemos mais exatamente
Iteratura .nacional pode tornar-se, ao longo de seu as transformações da literatura no espaço do tempo,
~esenvolvlI~ento histórico, um componente de vá- se ao longo de nossas reconstruções nós não nos li-
na comumdades interliterárias, não se constituin-
do sas em sistemas fechados ou invariáveis. Essa
prop sta teórica nos permite reavaliar noções como
15 Analisei essa questão em dois artigos: "Diálogo Intercultural na
América Latina: Machado de Assis e J. L. Borges". In: Dialogo
Intercultural: Migración de Discursos [Org. Narzena Adanczyk),
Varsóvia, CESLA, Universidade de Varsóvia, 1993, p. 359-368,
v e "Comunidades interliterárias e relações entre literaturas de
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1>1,"i in, ?'. In: Les Communautés Interlittéraires Spécifiques. Acadé- fronteira". ln: Identidade e representação [Org. Raúl Antelo), Flo-
Illl(' d 'S S I nces Slovaque, Bratislava, 1991. rianópolis, UFSC, 1994, p. 93-102.
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o PRÓPRIO E O ALHEIO INTERTEXTU ALI DAD E: 87
mirarmos a observar et traiter processos reduzidos a '1111 It .cb por sua aproximação à teoria literári~, a
um só pólo e esquematizados" 16. 111"1 .uura comparada tende a acentuar a generahza-
Além de possibilitarem a revisão de conceitos, , lI) e-m detrimento da simples comparação entre
de objetos e de métodos da literatura comparada , I, 111 'nl s e a ampliar os seus domínios numa pers-
tradicional, as reflexões sobre comunidades interli- 111'( I iva interdiscursiva e interdisciplinar. Investe,
terárias permitem que se recupere a perspectiva da 1" 1'1 an to, no amplo relacionamento dos t~xtos na
literatura mundial sob um novo ângulo. E os estudos i ultura. "A possibilidade de comparar a hteratura
de literatura comparada encontram nas questões de «1I1l1 qualquer coisa", como sugere Jo~athan Culler
-
intertextualidade
---......- e de comunidades interliterárias f'llI "Comparative Literature and ~Iterary. T~e?-
um campo próprio de investigação no qual se conso- I "17 onde refere a comparação do discurso hterano
, .
lida sua articulação com a teoria literária, que lhe 10111 outros tipos de discursos, desde o maI~ corr~n:e
fornece o instrumental para fundamentar seus pro- ,'sludo da presença na literatura e nos escntos histó-
cedimentos, enquanto dá a essa os elementos neces- I ico de esquemas narrativos similares e mo~elos ,de
sários para que formule conceitos específicos e pecu- r ompreensão, passando pelos .textos, ~utoblOgrafi-
li.ares aos problemas literários de que o compara ti- (os até os textos filosóficos e psicanalíticos.
vismo se ocupa. Se a noção de intertextualidade trouxe para a
É nesse sentido que a comparação ou con- lit fatura comparada uma revitalização, também
frontação textual, característica da literatura com- Ihe provocou um grande desafio: a sua permanente
.l parada e prática antes ocasional da crítica literária, I' definição como prática de leitura que remete
)por meio da noção de intertextualidade, passou a (' nstantemente a outros textos, anteriores ou simul-
ocupar uma posição central nos estudos literários t âneos, que estão presentes naquele que temos sob
em geral, não apenas comparativistas. os nossos olhos.
Diante disso, o comparatista se depara com a
necessidade de redefinir seus campos de atuação e
de acentuar, em sua prática, a compreensão da lite-
ratura como um todo. Com o embasamento teórico