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Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
288-0061-6
Resumo:
O presente estudo tem como tema duas distintas interpretações historiográficas sobre a
contravenção da vadiagem e dos agentes históricos estereotipados como “vadios”, na cidade do
Rio de Janeiro , entre os anos de 1888 a 1906. De um lado, a repressão, a violência e a exclusão
às camadas populares que não se enquadravam ao processo de cosmopolitismo, aburguesamento
e modernização da então capital da República; de outro, a homogeneização dos espaços e dos
corpos da “cidade maravilhosa”: a estratégia de adaptar o centro da cidade e sua população para
as novas práticas econômicas da urbe. Ora: a arraia-miúda foi vítima de um processo de
marginalização social ou foi alvo de um projeto normatizador da sociedade? Foi segregada da
sociedade e da cidade ou se posicionaram e marcaram seu espaço e presença na capital federal?
“[o] ‘fato histórico’ resulta de uma práxis, porque ele já é o signo de um ato e,
portanto, a afirmação de um sentido. Este resulta dos procedimentos que
permitiram articular um modo de compreensão num discurso de ‘fatos’. (...) A
organização de cada historiografia em função de óticas particulares e diversas se
refere a atos históricos, fundadores de sentidos e instauradores de ciências.”
(Certeau, Michel de, 2008: 41)
A discussão que se segue não trata da “verdadeira interpretação sobre os fatos históricos”, mas
sim sobre a percepção das distintas interpretações historiográficas. Entre “as palavras e as coisas”
o problema não está em atingir a coisa (o fato), mas sim os efeitos de verdade formulados pelas
Mestranda em História pelo PPGH-UERJ, pesquisadora interna do LEDDES (Laboratório de
Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais). Pesquisa fomentada pela CAPES.
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
288-0061-6
Para esse fim, a autora tem como principal corpo documental os Livros de Matrículas da Casa de
Detenção do Rio de Janeiro, nos quais faz um levantamento sistemático, embasado em métodos
quantitativos e estatísticos, sobre a entrada e saída na Casa de Detenção; o que a leva a
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Sobre as palavras (os efeitos de verdade) e as coisas (os “fatos”) ver: Foucault, Michel. As
palavras e as coisas.
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
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Código Penal de 1890: “Capítulo XIII – Dos Vadios e Capoeiras:
“Art. 399. Deixar de exercer profissão, offício, ou qualquer mistér em que ganhe a vida, não
possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio
de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes.
‘Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.
1º Pela mesma sentença que condenar o infrator como vadio, ou vagabundo, será ele obrigado a
assignar termo de tomar ocupação dentro de quinze dias, contados do cumprimento da pena.
“2º Os maiores de quatorze serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde
poderão ser conservados até a idade de 21 anos.
Art. 400 - Se o termo fôr quebrado, o que importará reincidência, o infrator será recolhido, por
um a três anos, a colônias penaes, que se fundarem em ilhas marítimas, ou nas fronteiras do
território nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presídios militares existentes.’
Parágrafo único. Se o infrator for estrangeiro será deportado.” (PIERANGELLI, José Henrique,
1980: 316-317)
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
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Sendo assim, Cristiane Rodrigues conclui que as Reformas urbanas e higiênicas são:
Pois bem, analisando não os fatos em si, mas a (re)interpretação do passado apresentada,
percebemos a escolha de uma narrativa que produz um efeito de explicação justificador da
formação de um grupo social definido e serializado, repetitivo e geral: as camadas populares
enquanto vitimas da ação repressiva e excludente do Estado. Ação esta que visava a eliminação
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Grifos meus.
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Grifos meus.
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
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dos pobres da cidade, passando, dessa forma, a serem marginalizados pela contravenção da
vadiagem.
No entanto, a historiadora deixa escapar dois indícios que permitem a reflexão sobre os limites
desse modelo explicativo. Prosseguiremos então para análise de tais pistas.
Diante da busca de uma “brecha” na produção historiográfica do objeto em questão, eis que surge
a possibilidade de um recorte temático relevante e original: eureca! A heurística entra em ação!
Primeiro indício: Cristiane Rodrigues afirma em sua dissertação que havia, no ano de 1905, 58
policiais no Rio de Janeiro que garantiam o controle e vigilância de dez mil habitantes. Ora:
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Grifos meus.
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“(...)58 policiais para 10 mil habitantes!? Será que, efetivamente, esse número de
agentes policiais garantiriam a repressão e o controle da população desfavorecida
do centro da cidade do Rio de Janeiro? Será que não haveria lacunas no
cumprimento de tal vigilância? E esse controle visaria apenas a repressão dos
populares? O fato de criarem prisões correcionais para reeducar os vadios ao
trabalho não seria um indício de intenções do Estado para além da repressão e
também uma tentativa de transformação e conseqüente disciplinamento dos vadios
à nova lógica do poder da cidade? Será que esse controle se daria apenas pelos
policiais? E a sociedade adaptada aos novos padrões de convívio, será que, através
dos micropoderes, não atuariam na vigilância e controle dessa população? E a
“ralé”? Qual a sua reação frente à estratégia do poder? Aceitaram como vítimas a
repressão e a transformação de seus valores e costumes? Ou engendraram alguma
resistência? Nesse caso, de que forma essa resistência se desenvolveu?” (Carvalho,
Marina, 2008:18)6
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Trabalho de conclusão do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil,
apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Sobre o poder disciplinar ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.
Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
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Sobre a análise das Posturas Municipais, das Reformas Urbanas e Higiênicas, ver: SILVA,
Marilene Rosa Nogueira da. Normatizando o Espaço Carioca: cultura política e sociedade nos
primeiro anos da República. In: SANTOS, Cláudia Andrada dos; BARROS, José D’Assunção;
FALCI; Miridan Brito (orgs). Espacialidades: espaço e cultura na História, Vassouras, RJ:
LESS, 2004, pp. 243-262.
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Segundo indício: o relatório do chefe de polícia da Capital Federal, do ano de 1905, apresentado
pela historiadora Cristiane Rodrigues:
Pois bem:
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A História, enquanto disciplina, convive com uma diversidade de métodos e teorias que resultam
em maneiras diferentes de construir o conhecimento do passado. Neste artigo podemos perceber
como paradigmas distintos de compreensão do mundo, são decisivos para a interpretação dos
fatos históricos.
A meta-história mais uma vez se torna o cerne das tensões: tais disparidades interpretativas sobre
o mesmo objeto, podem ser percebidas pelo cisma na produção da ciência: de um lado, o
paradigma indiciário e, de outro, o paradigma galileano, descritos respectivamente por Carlo
Ginzburg:
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Cabe ressaltar, que tal resistência dos personagens em questão, a população estigmatizada pela
contravenção da vadiagem, se opera golpe a golpe, lance por lace: aproveitando astuciosamente
as circunstâncias, os personagens aproveitam os interstício na vigilância e controle de forma a
promover seus malabarismos cotidianos entre o disciplinamento e a diferença: estamos diante das
noções de estratégia e tática desenvolvidas por Michel de Certeau.
Sobre as noções de tática e estratégia ver: Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. artes
de fazer. Petrópolis, RJ, Vozes, 1994.
Sobre as reações e resistências dos criminalizados como “vadios” ver: CARVALHO, Marina
Vieira de. Os Vadios na Resistência ao Disciplinamento Social da Belle Époque Carioca.
Trabalho de Conclusão Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em História do Brasil, Rio de
Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2008.1.
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
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enquanto individuais, e justamente por isso alcançam resultados que têm uma
margem ineliminável de casualidade. (...) [Já] a ciência galileana tinha uma
natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escolástico individuum est
ineffabile, do que é individual não se pode falar. O emprego da matemática e o
método experimental, de fato, implicavam respectivamente a quantificação e a
repetibilidade dos fenômenos, enquanto a perspectiva individualizante excluía por
definição a segunda, e admitia a primeira apenas em funções auxiliares.”
(Ginzburg, Carlo, 1990: 156)
Por fim, a riqueza da produção do conhecimento histórico pode ser encontrada justamente nessas
diversidades de categorias analíticas. Elas convivem, atualmente, em um campo fragmentado e
múltiplo e não mais sobre o domínio de apenas um modelo global de análise. Daí a possibilidade
de encontrarmos a poética do texto: a escolha de sua narrativa, a apresentação de seu efeito de
verdade.
Referências Bibliográficas
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
288-0061-6
- Certeau, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2. Ed., 2008.
- Foucault, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução
Salma Tannus Muchail. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (Coleção Tópicos).
- PIERANGELLI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo:
Jolavi, 1980.
- SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Normatizando o Espaço Carioca: cultura política e
sociedade nos primeiro anos da República. In: SANTOS, Cláudia Andrada dos; BARROS, José
D’Assunção; FALCI; Miridan Brito (orgs). Espacialidades: espaço e cultura na História,
Vassouras, RJ: LESS, 2004, pp. 243-262.
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