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“Família guarani capturada por caçadores de escravos”, Jean-Baptiste Debret
Revisão
João Sette Câmara
Bibliografia
ISBN 978-85-7740-206-9
2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO ..........................................................................................................................7
CAPÍTULO 1.
O NASCIMENTO DO BRASIL:
REVISÃO DE UM PARADIGMA HISTORIOGRÁFICO .........................................................45
CAPÍTULO 2.
AS MORTES DO INDÍGENA NO IMPÉRIO DO BRASIL:
O INDIANISMO, A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE E
SEUS ESQUECIMENTOS ...................................................................................................75
CAPÍTULO 3.
A CONQUISTA DO VALE AMAZÔNICO: FRONTEIRA,
MERCADO INTERNACIONAL E MODALIDADES DE TRABALHO COMPULSÓRIO..........117
CAPÍTULO 4.
NARRATIVAS E IMAGENS SOBRE POVOS INDÍGENAS E AMAZÔNIA:
UMA PERSPECTIVA PROCESSUAL DA FRONTEIRA .......................................................161
CAPÍTULO 5.
UMA ETNOLOGIA DOS “ÍNDIOS MISTURADOS”?
SITUAÇÃO COLONIAL, TERRITORIALIZAÇÃO E FLUXOS CULTURAIS ............................193
CAPÍTULO 6.
MENSURANDO ALTERIDADES, ESTABELECENDO DIREITOS:
PRÁTICAS E SABERES GOVERNAMENTAIS
NA CRIAÇÃO DE FRONTEIRAS ÉTNICAS .......................................................................229
CAPÍTULO 7.
REGIME TUTELAR E GLOBALIZAÇÃO:
UM EXERCÍCIO DE SOCIOGÊNESE DOS
ATUAIS MOVIMENTOS INDÍGENAS NO BRASIL ...........................................................265
CAPÍTULO 8.
SEM A TUTELA, UMA NOVA MOLDURA DE NAÇÃO.....................................................289
CAPÍTULO 9.
PACIFICAÇÃO E TUTELA MILITAR NA
GESTÃO DE POPULAÇÕES E TERRITÓRIOS ....................................................................317
PREFÁCIO
E
ste livro reúne textos que, nos últimos anos, a convite de co-
legas historiadores e antropólogos, escrevi para conferências
em congressos, artigos em revistas e coletâneas. Abordam
eventos, personagens e processos de momentos distintos da histó-
ria dos indígenas no Brasil, descritos e analisados de maneira sepa-
rada, sem a intenção de estabelecer entre eles qualquer forma de
continuidade cronológica ou nexo causal. Correspondem a olhares
específicos que, embasados numa perspectiva etnográfica e dialógi-
ca, vim a lançar sobre alguns episódios importantes na história do
Brasil. Em todos eles, a intenção é reexaminar criticamente as inter-
pretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas
formas de agência e participação que as populações autóctones ti-
veram na construção da nação.
Nunca me preocupei em delimitar unicamente uma história
dos indígenas, mas sim, em refletir sobre conjuntos de relações es-
tabelecidas entre os indígenas e os demais atores e forças sociais que
com eles interagiam. Não é possível entender as estratégias e per-
formances indígenas ignorando as interações que mantêm com os
contextos reais em que vivem – ou seja, as relações interétnicas na
escala local, a inserção dentro de um Estado-Nação, bem como as
redes e fluxos transnacionais. A história, em suas múltiplas escalas
e temporalidades, não pode ser concebida como algo exterior e aci-
dental, mas “um fato constitutivo, que preside à própria organiza-
ção interna e ao estabelecimento da identidade de um grupo étnico”
(PACHECO DE OLIVEIRA, 1988:58).
Em geral, as ações indígenas no passado – e também no presen-
te – são explicadas a partir de representações distorcidas e estigma-
tizantes, que impossibilitam a compreensão dos objetivos e signifi-
cados que tiveram para os seus contemporâneos, levando os leitores
7
(atuais e do passado) a minimizar a importância dessas iniciativas.
Os meus textos, assim, frequentemente precisam ser iniciados por
uma revisão crítica das fontes, procedendo a uma operação histo-
riográfica, no sentido apontado por De Certeau (2002).
Recolocar os indígenas como agentes efetivos na construção
do Brasil não é uma tarefa com repercussões restritas e pontuais.
À semelhança de mexer em um castelo de cartas, somos involun-
tariamente conduzidos a rever as interpretações mais frequentes
e consagradas que eminentes historiadores, sociólogos, geógrafos,
economistas e antropólogos formularam sobre o país. Buscar com-
preender melhor – mais além dos estereótipos – as motivações e
significados das ações realizadas por indígenas implica lançar outra
luz sobre eventos e personagens da história nacional. As repercus-
sões disso frequentemente vão muito além da temática indígena e
dos objetos usuais da etnologia.
Longe de se limitar, assim, a um exercício circunscrito de his-
tória indígena, etno-história ou etnologia indígena, os artigos que
integram este livro constituem exercícios de uma antropologia
histórica. Não tomam como foco de sua atenção exclusivamente
os atores indígenas e as diversificadas culturas que elaboram, nem
pretendem de modo algum limitar-se a redescobrir sentidos para
as ações indígenas dentro de uma história convencional do Brasil,
bem como das cronologias e significados nela estabelecidos e crista-
lizados. O que fazem é lançar desafios e hipóteses interpretativas he-
terodoxas e originais sobre o processo de nation building, esperando
assim contribuir para uma melhor compreensão das contradições
e jogos políticos e ideológicos que caracterizaram a formação da
nação. Não estaremos falando apenas do passado, mas de conflitos
e processos atuantes na contemporaneidade brasileira.
Os textos que constituem os capítulos deste livro mantiveram em
geral a sua versão original ou foram muito pouco alterados. Pretendi,
assim, intencionalmente preservar no livro o caráter de exercícios
analíticos fragmentários, de ensaios que dialogam com bibliografias
e temas distintos, e que propõem uma compreensão nova sobre fa-
tos claramente delimitados. Na seleção dos artigos e comunicações,
transformados em capítulos, em momento algum planejei preencher
“buracos” temporais, temáticos ou analíticos. Não se trata de uma
prefácio 9
extensa pesquisa histórica e iconográfica. Disso resultou um diálo-
go com a perspectiva historiográfica e algumas vertentes teóricas da
história, bem como uma maior aproximação com a antropologia do
colonialismo. A maioria dos textos que integram este livro estão de
algum modo relacionados a esta última fase de estudos e pesquisas.
Apesar de concebidos em diferentes momentos e com motiva-
ções e corpus empíricos distintos, cabe destacar que os textos que
compõem este livro estabelecem uma relação de mútua dependên-
cia e de complementariedade, da qual só vim a ter uma consciência
mais clara ao reuni-los e revisá-los. Isso decorre certamente de uma
mesma perspectiva analítica, cujos referenciais estão sempre pre-
sentes e operantes em todos estes trabalhos, apesar das descontinui-
dades temporais e temáticas.
prefácio 11
com um novo reenquadramento sistemático dos personagens e das
relações que mantêm entre si.
Um ponto cego constantemente repetido e naturalizado nas
grandes interpretações sobre o Brasil é quanto à participação do
indígena. Desde a primeira grande síntese, a História geral do Brasil
(1978) [1854] elaborada por Varnhagen na metade do século XIX, até
historiadores marxistas do século XX, a presença indígena na for-
mação da nacionalidade é tratada de forma exotizante e repetitiva,
como fruto exclusivo de acasos, incidentes menores e relatos pito-
rescos. Do monarquismo católico, escravagista e conservador, às
investigações sobre a formação da classe trabalhadora, o que ficou
como secundário em tais narrativas e painéis interpretativos foi a
diversidade étnica e racial do país.
No caso das populações afrodescendentes, uma conjunção de
fatores bem distintos e independentes – como o culturalismo de
Gilberto Freyre, as pesquisas sociológicas,3 as minuciosas investiga-
ções dos brasilianistas americanos, os estudos sobre a diáspora afri-
cana e, sobretudo, a presença crescente de intelectuais e de movi-
mentos negros na vida cultural e política – interferiu positivamente
para que essa distorção fosse progressivamente compensada e não
seja mais uma marca da produção histórica atual.
Com as populações indígenas isso não ocorreu, suponho, por
duas razões. Primeiro, pela situação de exclusão e marginalidade
em que desde o início da colonização foram mantidas, sempre sub-
metidas a uma forte e direta tutela, que outorgava a outros o direito
de pensar e falar por eles. Avaliados segundo os interesses e precon-
ceitos das elites como inferiores e primitivos, sendo sempre repre-
sentados por seus tutores, os indígenas não obtiveram um reconhe-
cimento similar ao de intelectuais negros. Enquanto estes, desde a
primeira metade do século passado, publicavam livros, escreviam
em jornais, militavam nas artes e na política, abrindo espaços im-
portantes e atingindo visibilidade na opinião pública, é ao contrário
bem recente o reconhecimento dado a escritores indígenas e profis-
sionais que passaram pelas universidades.
prefácio 13
investigações basicamente para os aspectos de diferença. O que o
antropólogo propunha-se fazer era o caminho inverso da coloniza-
ção, buscando a diversidade onde esta impusera uma norma homo-
geneizadora, tentando libertar da filosofia política e moral o olhar
sobre as sociedades não ocidentais.
Estas eram as orientações dominantes nas antropologias hege-
mônicas das antigas e novas metrópoles coloniais. O trabalho do
antropólogo em tais contextos era investigar a variedade das cul-
turas “nativas”, que tomava como primitivas, exteriores e incompa-
tíveis com a colonização, buscando preservá-las para a ciência por
meio de suas coleções, museus, teses e livros, e para o patrimônio
cultural da humanidade. Tal como no projeto cognitivo de uma an-
tropologia da salvação (A. Bastian), situada no contexto da expan-
são colonial do século XIX, ou no africanismo britânico e francês do
século XX, ancorado no exercício da administração colonial.
O que foi deixado de lado na constituição universitária da nova
disciplina, a Antropologia, bem como de suas repercussões mais
amplas intelectuais e políticas, foi o mundo colonial dentro do qual
os indígenas viviam, inseridos em duras relações de dominação –
ainda que exercendo sempre que possível a sua agência, colocando
em prática formas variadas de resistência e de acomodação. O que
tais estudos deixaram fora de seu foco comum de interesse era jus-
tamente conhecer as formas concretas pelas quais as coletividades
indígenas lograram resistir, se organizaram e continuaram a atuali-
zar sua cultura na contemporaneidade, inclusive formulando pro-
jetos de futuro. É de uma antropologia assim que necessitamos para
entender os indígenas de hoje em dia.
prefácio 15
Uma anistia aos aspectos violentos da colonização foi, assim,
autodecretada pelos intelectuais não indígenas, impondo a invisibi-
lidade etnográfica da tutela e transformando o relativismo em fer-
ramenta única de seu horizonte ideológico. Aceitando tacitamente
as condições de uma pesquisa realizada em um contexto colonial,
os etnógrafos evitaram investigar sobre a tutela e os processos de
dominação sofridos pelos indígenas, considerando as suas mani-
festações socioculturais como se procedessem de uma essência per-
manente e imutável, por completo imune às relações locais e aos
contextos políticos concretos.
prefácio 17
A FRONTEIRA COMO GUERRA PERMANENTE E NEGAÇÃO DE DIREITOS
prefácio 19
outorga a alguém um poder de mando múltiplo e polimórfico, fre-
quentemente exercido sobre outrem sem qualquer limite e fiscaliza-
ção, raramente contestado e controlado.
Ao contrário da ambição por riqueza material ou por atingir a
virtude, o desejo por esta modalidade de poder não faz parte das
motivações originais dos colonizadores, mas resulta da experiência
vivida na situação colonial. É esta que engendra a possibilidade de
que um indivíduo, na condição de membro de um grupo, venha a
exercer sobre outro, na condição de membro de um outro coletivo,
uma relação de sujeição quase absoluta e a desenvolver práticas de
desfrute e representação virtualmente ilimitadas.
prefácio 21
eles tiveram que incorporar mulheres e crianças nativas, constituin-
do uma camada de mestiços (“mamelucos”) que iria desempenhar
papéis econômicos e militares fundamentais. Sem eles, a coloniza-
ção não marcharia para o interior e não geraria novas riquezas.
A origem da maioria das famílias brasileiras não pode ser pen-
sada como monocultural, mas como baseada em relações interétni-
cas11 e em status assimétricos. Ainda que os sinais diacríticos da pre-
sença indígena no interior das famílias cristãs ou na própria socie-
dade colonial fossem atenuados, negados ou que, mesmo ao longo
do tempo, se tornassem desconhecidos,12 pois sempre implicavam
alguma forma de desvalorização social, isso não deve ser esquecido
pelo estudos sociológicos atuais. Os códigos culturais das popula-
ções subalternizadas, como alertava Gilberto Freyre, também saí-
ram das senzalas para a casa-grande, criando na vida privada e nos
afetos trocas e relações mais complexas e ambíguas entre senhores
e escravos. Isso se passava, então, com muito mais naturalidade nas
famílias que não eram de donos de terra e de escravos.
Desde a Independência, no entanto, a forma de percepção de
uma suposta “mancha” decorrente de um casamento interétnico
começou a ser modificada até mesmo para a elite dirigente da nova
nação. É o que nos diz José Bonifácio de Andrade e Silva (1992)
[1823], o chamado Patrono da Independência, para quem os índios
seriam “em tudo capazes de civilização”. E ele exemplifica de modo
contundente: “Newton, se nascera entre os Guaranis, não seria mais
que um bípede implume; mas um Guarani criado por Newton tal-
vez que ocupasse o seu lugar [...] Não falta aos índios bravos o lume
natural da Razão”. Ou seja, pensado não como coletivo mas como
individualidade, o índio, desde que afastado de sua comunidade de
origem e adequadamente socializado, é tido como inteiramente so-
lúvel na colonização.
11 Tal como indicado por Mendes Junior (1912) para as primeiras famílias pau-
listanas. Para pesquisas recentes, ver Garcia, 2015.
12 Cabe destacar aqui a importância dos estudos sobre os “índios coloniais”, aque-
les que viveram dentro de fortes contextos de dominação e no entanto em diver-
sos momentos exerceram o seu protagonismo e criatividade (ALMEIDA, 2003).
prefácio 23
O racismo oficial perante os negros e indígenas não podia ope-
rar apenas por marcas biológicas ou culturais (isto é, de “civilização
europeia”), como seria o caso em regimes de apartheid, mas precisa-
va conviver com intrincadas histórias de famílias, que apresentavam
genealogias desconcertantes e impuras. Nesse contexto, o nome de
família ou o vínculo com uma pessoa de destaque e poder eram in-
dicadores importantes para a estratificação social e para os direitos
a ela reconhecidos pelas autoridades ou por outros colonos. Uma
dominação de tipo patrimonial, centrada da figura de um “patrão”
e manifestada mediante variadas formas de relação com ele, acabou
por instalar um permanente estilo paternalista,13 que servia como
uma cômoda ideologia que mascarava a desigualdade na vida eco-
nômica e política, e parecia nuançar as práticas repressivas e disci-
plinarizantes.
As peculiaridades da formação social brasileira não se explicam
apenas pela polaridade entre trabalho escravo e trabalho livre.14 O
trabalho compulsório é uma chave imprescindível para compreen-
der instituições aparentemente não capitalistas – ou melhor, dis-
tintas das formas do capitalismo nascente na Europa renascentista,
que promoveu a emancipação dos camponeses e sua transformação
em assalariados e mão de obra fabril.
Um grande bias da historiografia brasileira é não reconhecer
jamais os indígenas como trabalhadores e produtores de valores e
riquezas, raciocinando sempre como se eles estivessem à margem
da economia.15 Dessa forma, a construção do passado incorpora
13 Ver nesse sentido para uma critica profunda das desigualdades econômicas
e sociais que limitam e conferem características especiais ao funcionamento
de uma democracia brasileira, o clássico trabalho de Vitor Nunes Leal (2012).
14 Ver na antropologia os estudos de Palmeira (1971) e Almeida (2008) respecti-
vamente sobre formas agrícolas e extrativas, respectivamente localizadas no
nordeste e na Amazônia.
15 Ver Monteiro, 1994, para apontar os usos que se fazia em São Paulo no sé-
culo XVII do trabalho indígena, intitulados inclusive como “negros da terra”.
Investigações novas nessa direção estão sempre empreendidas por diversos
autores, como Sampaio (2008), Moreira (2010), Machado (2010), entre ou-
tros.
prefácio 25
OS MÚLTIPLOS REGIMES DE ALTERIDADE
prefácio 27
O terceiro regime de memória opera com uma imagem do in-
dígena sempre remetida ao passado – é o autóctone, aquele que pre-
cedeu ao colonizador português. Fortemente estetizado e enobreci-
do em seus costumes, foi transformado em personagem trágico da
literatura indianista e das artes românticas (IMAGENS 23 – 26). Ao
contrário, o indígena real, caracterizado pela perda cultural e pela
condição de miséria, não chama a atenção dos artistas e intelec-
tuais do século XIX, sendo um personagem insólito (tal como surge
nas charges políticas), expressando com radicalidade os segmentos
marginalizados da sociedade brasileira (IMAGEM 27).
Quarto, o indigenismo republicano retoma a postura do in-
dianismo do século XIX, falando do indígena sempre de maneira
bastante romântica e idealizada. À diferença do indianismo, porém,
este indígena não se encontra no passado, mas nas regiões mais re-
motas do Brasil atual, numa espécie de coração ou núcleo da nacio-
nalidade, no meio das florestas intocadas, que reproduzem a natu-
reza do país antes do descobrimento (IMAGEM 29).
O objetivo é despertar na opinião pública a simpatia por eles,
favorecendo um sentimento de culpa em relação às perdas que tive-
ram (antigos territórios, línguas e culturas), e estimulando uma res-
ponsabilidade pública sobre o seu destino. Os relatos e as imagens
buscam sempre um índio “tradicional” e etnificado, com aparência
física e comportamento supostamente específicos de sua cultura,
como se estes estivessem eternamente no momento dos primeiros
contatos.
Ao enfatizar unilateralmente o distanciamento dos indígenas
frente ao mundo dos brancos, bem como a sua dificuldade em lidar
com as instituições e a tecnologia modernas, este regime de me-
mória evidencia as suas conexões com o discurso paternalista e de
justificação da tutela. Por sua vez, os problemas vividos pelos indí-
genas em seu cotidiano dentro das terras e dos postos indígenas, na
relação com os funcionários e com o regime tutelar que os sufoca,
não são de forma alguma retratados.19
prefácio 29
REPENSANDO A CLIVAGEM ENTRE ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA
DESAFIOS E INSTRUMENTOS
prefácio 31
efetivamente dispõe, bem como os caminhos (sociais, intelectuais e
afetivos) que percorreu para chegar à delimitação de seu objeto e às
interpretações propostas. Esta é uma preocupação permanente na an-
tropologia processualista,21 e inspira muitas outras abordagens poste-
riores. É um ato de rigor e honestidade intelectual que tem sua corres-
pondência nos cuidados preliminares dos historiadores ao proceder à
explicitação e crítica das fontes que utilizarão em seu trabalho.
Os fatos que o antropólogo diretamente observa e estuda não
sucedem nem podem ser analisados como se estivessem dentro de
um laboratório, em que as variáveis externas estão sob um relativo
controle do cientista. Eles se dão na história real e vivida, sujeitos à
multiplicidade de fatores intervenientes e versões diferentes sobre
os mesmos fatos. Apresentam-se como ações singulares que afetam
a pessoas específicas, cujas relações com instituições e papéis resul-
tam de construções empreendidas por abstração pelo antropólogo,
seja apoiado em bibliografia, seja por sínteses produzidas por seus
mais próximos informantes. As inferências e generalizações devem
portanto serem cuidadosamente investigadas.
O exercício da etnografia pressupõe o estabelecimento prévio
de contextos, que demarcam os limites das motivações e signifi-
cados dos fatos estudados e norteiam a sua comparabilidade. Tais
contextos correspondem a construções hipotéticas do pesquisador,
nas quais algumas variáveis determinantes estão claramente identi-
ficadas na sua inter-relação com as demais.
Nos capítulos deste livro, tais contextos são frequentemen-
te chamados de “situações históricas”22 – mantendo o colorido da
prefácio 33
não podem mais gerar os efeitos de conhecimento que hoje os an-
tropólogos necessitam para explicar e intervir nos fenômenos con-
temporâneos.
prefácio 35
colocados em fuga e perseguidos, divididos e fragmentados, sub-
metidos a formas brutais de escravidão. A verdadeira conquista da
Amazônia não trouxe para o imaginário nacional “pacificadores”
nem memoráveis cenas de pacificação: ela se processou de forma
anônima, difusa e encoberta por meio da expansão extrativista da
borracha e de outros produtos. Genocídio, diáspora, cultura do ter-
ror e trabalho compulsório foram concretizados por meio de práti-
cas conhecidas regionalmente como “correrias de índios”, realizadas
por “amansadores de índios”.24
É importante compreender a formação de alteridades como inte-
grando um intrincado processo de subalternização que aciona cate-
gorias e identidades sociais com direitos bem diferenciados. É o que
aponta o título desse capítulo – o “caboclo” e o “brabo”. Na genea-
logia do “caboclo” está o tratamento de “tapuio”, aplicado na região
nos séculos XVII e XVIII aos índios que não representavam mais uma
ameaça aos colonizadores, sendo, portanto, radicalmente distintos
dos “índios bravos”. Os “descendentes” de índios foram chamados
genericamente de “caboclos”, num movimento classificatório que, se,
por um lado, os separava claramente dos índios inimigos dos coloni-
zadores, por outro lado, continuava a indicar-lhes a origem indígena,
o que lhes impunha necessariamente uma condição social inferior.
Os seringueiros nordestinos, recém-chegados à Amazônia, fo-
ram paradoxalmente chamados de “brabos”. A razão para isso era
o seu desconhecimento das técnicas de trabalho no látex, algo que
deveriam superar rapidamente para não “estragar” as árvores de seu
“patrão” e não serem por ele duramente punidos. No termo esco-
lhido existe, porém, uma implícita alusão àqueles que habitavam
essas terras e que agora rondam permanentemente os seringais – os
“índios bravos”, que eram encontrados nas “estradas” de seringa e
nas suas “colocações” (barracas de moradia), pessoas às quais qual-
quer direito era negado, e que podiam cotidianamente ser objeto de
morte, escravização ou rapto (no caso de mulheres e crianças)
O capítulo quarto, tomando como foco também a Amazônia,
traça da região um painel histórico de longa duração, indo das
prefácio 37
O sétimo capítulo se propõe estudar a história dos índios no
Brasil a partir dos censos nacionais, apresentando dados surpreen-
dentes sobre a importância demográfica da população indígena em
diversos contextos em que as referências aos indígenas são mera-
mente residuais. Tanto os levantamentos realizados às vésperas da
independência política quanto o primeiro Censo Nacional (1872)
indicam expressivos contingentes de indígenas e uma distribui-
ção não só em estados distantes e economicamente mais atrasados
(Amazonas, Mato Grosso e Pará), mas também em vários outros
(como Ceará, Pernambuco, Minas Gerais, Bahia e São Paulo), con-
siderados como não possuindo mais índios.
Este capítulo contribui ainda para uma perspectiva crítica no
uso dos dados quantitativos, em especial dos registros demográficos.
Analisa os censos oficiais como investigações cujos objetivos e me-
todologias são determinadas por ideologias, valores e interesses da
elite governante. Os seus resultados, assim, não podem ser tomados
como fiéis retratos da realidade, mas, mediante uma análise antro-
pológica, precisam ser considerados tendo em vista a relação que
mantêm com os contextos políticos e governos.
No capítulo oitavo é mostrado como se deu na década de 1980 a
revogação da tutela de Estado sobre os indígenas, analisando as suas
múltiplas repercussões na vida institucional brasileira, com a cria-
ção de novas categorias jurídico-administrativas que estimularam a
mobilização de outros segmentos da população (como os quilom-
bolas, extrativistas e comunidades tradicionais). No plano teórico,
se discute como a forma de constituição de Estado instituiu grupos
subalternizados e os administrou mediante o mecanismo jurídico
e social da tutela. Neste capítulo, se aponta como o próprio pensa-
mento político brasileiro não pode ser descrito como um sistema
fechado e integrado homogeneamente por atores com direitos e de-
veres já conhecidos, mas sim, como um sistema aberto, engendrado
por meio da guerra, e que incorpora como subordinadas popula-
ções marcadas por uma origem étnica e racial distinta.
O capítulo 9 analisa o uso atual pelos governos e pela mídia da
categoria colonial de “pacificação” para lidar com problemas urba-
nos contemporâneos, ocupando um lugar central nas políticas vol-
tadas para a população das favelas cariocas, em sua maioria negra e
25 Levinas, 2001.
prefácio 39
O término de um longo período militar e a elaboração de uma
Constituição que enfatiza os compromissos sociais do Estado e re-
conhece direitos coletivos e das minorias trouxe fatos novos para a
vida brasileira. Os indígenas obtiveram o reconhecimento de terras
que montam a cerca de 18% da Amazônia Legal, e muitos milhões
de hectares ali são cobertos também por reservas extrativistas e uni-
dades de conservação. No país como um todo, as áreas quilombolas
atualmente reivindicadas chegam a vários milhares. As políticas so-
ciais, decorrentes dos novos termos constitucionais, como as ações
pela igualdade racial e de gênero, bem como aquelas voltadas para a
diminuição da pobreza e da desigualdade, apontaram para o surgi-
mento de um novo país.
Uma expressão viva desse movimento transparece na alegria
e orgulho com que as mulheres Tupinambás, na foto colocado na
contracapa deste livro, usam sua cultura e identidade na busca por
novas formas de cidadania. Os Tupinambás, primeiro povo indíge-
na a confrontar-se com a colonização, sofreram por diversas vezes
processos (ditos definitivos) de “pacificação”, mas souberam por
múltiplas formas e em diferentes contextos exercer seu protagonis-
mo na sociedade brasileira. Tal imagem é uma útil inspiração não
apenas na luta cotidiana por direitos coletivos, pelo reconhecimen-
to das diferenças e pela redução das desigualdades econômicas e so-
ciais, mas também na releitura de episódios passados e presentes da
história nacional, aí vindo a encontrar novos sentidos e horizontes.
prefácio 41
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