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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 87-88, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.

22409/1984-0292/v29i2/2500

Editorial v. 29, n. 2 (2017) - Dossiê Corporeidade


A publicação do presente número da Fractal: Revista de Psicologia é motivo para celebração e resultado de um
esforço de tessitura coletiva. Aqui celebramos parcerias: de amizades, práticas, saberes e instituições. Celebramos a uni-
versidade pública que resiste às adversidades políticas de nossos dias; celebramos uma academia que resiste a um modo
soberano de produzir ciência, fazendo-se inventiva, porosa, apostando em alianças, militâncias e interfaces. Celebramos
e ofertamos aqui, enfim, um modo de pesquisar e de produzir conhecimento que aposta na vitalidade de um pensamen-
to-corpo que é tecido, necessariamente, na dobra entre teoria e prática, na transversalidade entre campos e saberes.
Apresentamos o Dossiê Corporeidade, uma celebração-partilha de textos de um coletivo de pesquisadores e institui-
ções reunidos pelo Laboratório de Subjetividade e Corporeidade (CorporeiLabS) do Instituto de Psicologia da Universi-
dade Federal Fluminense (UFF), em associação com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade
Federal do Ceará (UFC) e a Faculdade Angel Vianna (FAV). O CorporeiLabS reúne professores e orientandos de três
campi da UFF (Niterói, Rio das Ostras e Campos de Goytacazes), entre outros cursos, os de Dança (UFRJ, UFC, FAV)
e de Terapia Ocupacional (UFRJ), constituindo-se não só interinstitucional, mas também, numa trama transdisciplinar.
Para este número, além de contarmos com a ampla participação de pesquisadores associados ao Laboratório,
convidamos ainda, outros parceiros que pudessem enriquecer a discussão sobre o tema da corporeidade através de
um enfoque teórico-prático, ampliando o diálogo com pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade de São Paulo (USP), Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES), do AND_Lab de Lisboa, e do Japão, alargando assim, nossas partilhas numa rede entre
Psicologia, Dança, Terapia Ocupacional, Saúde Coletiva, Antropologia e Filosofia.
Que alegria tivemos em perceber que a maioria dos textos aqui apresentados narravam um conhecimento advindo da
experiência, na urdidura de um saber encarnado. São textos que manifestam uma implicação comum com uma dimensão
prática do pensamento inteligível-sensível sobre a corporeidade, articulado aos estudos da subjetividade. Nesta aborda-
gem, consideramos que o ato de pesquisar demanda presença, contágio e intervenção, possibilitando novas narrativas.
O Dossiê Corporeidade consolida, assim, uma das apostas do CorporeiLabS de constituir uma zona de interface entre
processos de investigação da corporeidade e da subjetividade, consistindo um dispositivo de coletivização de pesquisas.
Neste sentido, o artigo de abertura do Dossiê, “Que lugar para a corporeidade no cenário dos saberes e práticas
psis?”, começa a ser escrito coletivamente em meados de 2013, quando experimentamos dar um primeiro contorno
às inquietações que nos aproximavam na época da formação CorporeiLabS: a necessidade de explicitar o tema da
corporeidade nos saberes e práticas psis na contemporaneidade. No intuito de afirmar uma outra política de percepção
a respeito da subjetividade, afirma-se nesse texto uma direção metodológica: incluir nos estudos da subjetividade
sua relação intrínseca com os processos de corporeidade. Desde esta perspectiva se abre uma clínica e um modo de
pesquisar como processualidades, em que a dimensão sensorial, ética, estética e política são convocadas. Em seguida,
no artigo “Cabeça Dizpensa, corpo desvago: experimentações de um Laboratório de Sensibilidades”, é narrada uma
experimentação com uma comunidade-corpo, que se modulou em uma performance, discutindo-se, dentre outras, as
noções de intervenção e interferência. Em “Percepção e Ontogênese: modulações transdisciplinares da subjetividade”,
o autor aborda a percepção a partir de uma perspectiva transdisciplinar onde o corpo emerge como sede dos processos
cognitivos e foco das intervenções clínicas, como meio de constituição e transformação da subjetividade. As autoras
do artigo “Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto” apresentam uma experiência que investe em
estratégias de atenção e formação em Terapia Ocupacional em diálogo com as políticas públicas de saúde e cultura.
O artigo “Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de si” apresenta também experimentações
com o corpo, que envolvem a dança, a música, as artes e a escrita e discute as relações entre Aprendizagem Inventiva,
experiência estética e o cuidado de si. Já no artigo “Volume Morto: performance e corporeidade”, assistimos uma
descrição do processo de pesquisa e criação de um espetáculo que é campo de partida de um relato sobre performance,
memória corporal e relações estético-políticas. O artigo “Corposições entre o ver, o dizer e o agir” enuncia as ques-
tões que mobilizam um coletivo de investigação entre dança e clínica, explicitando o “como”, “onde” e “quando”
os campos de atuação de seus integrantes se imbricam para construir um corpo comum. A seguir, o artigo “A dança
como política do encontro com pessoas e lugares” partilha experiências do projeto “Cartografias do Corpo na Cidade”,
destacando os processos de errância e ocupação afetiva como prática artística de re-existência.
Em “O corpo cultivo da arte”, os autores discorrem sobre uma pesquisa aberta ao convívio acadêmico que consiste
no compartilhamento dos corpos, seu poder de afetar e contrair memória, apostando no corpo cultivo da arte como
dispositivo micropolítico de resistência. “O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância” apresenta
uma análise sobre as oficinas de sensibilização realizadas num Serviço de Psicologia Aplicada, a partir da seguinte
pergunta metodológica: como gerar uma disponibilidade afetiva sem cair na docilidade?
Em “Pistas somáticas para um estudo da corporeidade: uma aprendizagem das sensações”, a autora apresenta al-
gumas pistas para um estudo da corporeidade a partir da metodologia de aprendizagem somática evidenciando-a como
uma aprendizagem do/pelo corpo vivido. Para tanto, se aproxima da abordagem somática Body Mind Centering. Em
seguida, “Transversalidades corporais: o corpo entre clínica, educação e saúde” pretende mostrar que um corporalis-
mo capaz de transversalizar clínica, saúde e educação irá implicar-se eticamente em produzir alegria, porém, tomando-
-a como afeto que norteia o exercício educacional e promotor de saúde de ampliar a capacidade de agir e ser afetado.
Ainda, o artigo “Corpo, metamorfoses, cuidados: uma formação possível com profissionais de saúde” apresenta uma
proposta de intervenção no campo da formação em saúde denominada “clínica da metamorfose”.
Por sua vez, a autora de “Modulações do existir: entre luzes e sombras” analisa que a partir de um sentido crítico
sobre abordagens somáticas, pesquisadores contemporâneos apresentam sintonia com uma clínica que se constitui nos
intervalos da comunicação linguageira, apresentando uma distância crítica das práticas de assujeitamento. Em “Perfor-
mers sem Fronteiras, uma plataforma clínico-performativa de ações em arte relacional” os autores narram o trabalho
da plataforma clínico-performativa que trabalha em contextos de pessoas em situação de trauma pontual ou crônico,
bem como em ações de cultivo e promoção de saúde, abordando a interface arte/cura a partir do conceito de PARC
(Performances de Arte Relacional como prática de Cura). No artigo “Por uma política do co-passionamento: comuni-
dade e corporeidade no Modo Operativo AND”, são apresentadas as questões do comum e da comunidade, articulando
a ferramenta-conceito co-passionamento e as consequências que tomam (e fazem) corpo através da sua frequentação.
Finalizando este Dossiê, “Corporeidade e violações de direitos humanos: saúde e testemunho” traz uma reflexão a
partir da experiência profissional dos autores como coterapeutas de um grupo, abordando a especificidade da violência
praticada por agentes do Estado em suas dimensões ético-estético-políticas. Na sessão “Depoimento”, “Conversas
precisamente incertas com Kuniichi Uno” trata de conversas com o filósofo japonês Kuniichi Uno, feitas presencial-
mente e por mensagens eletrônicas, a respeito de seu trabalho, que envolve pesquisa sobre delineações do corpo na
dança e na filosofia.
Por fim, nossa aposta na feitura afetiva desse Dossiê se sustenta num gesto de afirmação de uma micropolítica da
dimensão sensível do corpo e de um modo coletivo de produzir conhecimento nos campos por onde passeia nossa
escrita: a arte, a clínica, a política e os processos de formação.
Desejamos que os leitores possam ser tocados por nossas inquietações e que tenham uma boa leitura!

Catarina Resende e Ruth Torralba


Editoras convidadas para o Dossiê Corporeidade

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 87-88, 2017
Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 89-95, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2330
Dossiê Corporeidade

Que lugar para a corporeidade no cenário dos saberes e práticas psis?


Catarina Resende,I, H Hélia Maria Oliveira da Costa Borges,II
Eduardo Passos,I Marcia Moraes,I Ruth Silva Torralba RibeiroII
I
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
II
Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
O presente artigo realizado por pesquisadores do Laboratório de Corporeidade e Subjetividade (CORPOREILABS –
Universidade Federal Fluminense [UFF], Faculdade Angel Vianna [FAV], Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ],
Universidade Federal do Ceará [UFC]) surge da necessidade de explicitar o tema da corporeidade nos saberes e práticas psis na
contemporaneidade. O sujeito moderno emerge de uma radical experiência de separação eu-mundo e a subjetividade, entendida
por uma perspectiva representacional, sofre uma cisão dos processos sensíveis do corpo. No intuito de afirmar uma outra política
de percepção a respeito da subjetividade, afirma-se nesse artigo a necessidade de incluir nos estudos da subjetividade sua
relação intrínseca com os processos de corporeidade. Desde esta perspectiva se abre uma clínica e um modo de pesquisar como
processualidades, em que a dimensão sensorial, ética, estética e política são convocadas.
Palavras-chave: corporeidade; subjetividade; pesquisa; criação.

What place for corporeality in the scene of psis knowledge and practices?
Abstract
The present article carried out by researchers of the Laboratory of Corporeality and Subjectivity (CORPOREILABS – Fluminense
Federal University [UFF], Angel Vianna College [FAV], Federal University of Rio de Janeiro [UFRJ], Federal University of
Ceará [UFC]) arises from the need to explain the subject of corporeity in Psis knowledges and practices in the contemporary
world. The modern subject emerges from a radical experience of separation from the world and subjectivity, understood by
a representational perspective, undergoes a split of the sensory processes of the body. To affirm another policy of perception
regarding subjectivity, it is stated in this article the need to include in the studies of subjectivity its intrinsic relation with the
processes of corporeality. From this perspective opens a clinic and a way of researching as processualities, in which the sensorial,
ethical, aesthetic and political dimension are summoned.
Keywords: corporeality; subjectivity; research; creation.

Sem a luz da dúvida, o ódio cresce melhor apontado, mas, também, na marca contemporânea do
(COUTO, 2012, p. 83). excesso de eu que pode ser visto na exibição contínua do
sujeito espetacularizado em seus fazeres.
Nada fácil esboçar o começo de um texto, hipertexto, O sujeito nasce, na modernidade, da radical experiência
tecido na diversidade constituída por várias mãos, de rachadura entre o eu e o mundo, rachadura que se constitui
diversos modos de apreensão de signos. Cartografia de pela ausência do contato com a produção incessante da
uma paisagem complexa, que convoca uma construção existência. Produção realizada através da vivência sutil,
situada e temporária, desafiando a tradicionalidade via corporeidade, no silêncio e obscuridade do que não está
vetorizada de uma lógica racional que insiste em aniquilar nem no homem interior, nem no exterior, mas, nos campos
a instabilidade da dúvida no processo do conhecimento. de produção da vida incansável em sua turbulência.
Como uma tela em branco, uma coreografia por vir, Portanto, dizemos que é na consciência que se apóia
passamos a nos ocupar dos contornos de um território na hipertrofia de um corpo alienado, esvaziado que
onde gesto, traço, poderão formar sua sequência. se impossibilita o pensamento crítico que convoca a
Território para composição-decomposição necessária à constante reinvenção de mundo. O homem identitário,
emergência dos acasos – que integram a manifestação individualizado pensa para ausentar-se. Assim, na busca
artística – e que, aqui neste texto, se coloca através de um cientificista pelo ideal de si, afasta-se da proliferação
pensamento crítico a partir de práticas de subjetivação e multiplicidade de mundos possíveis visando ser o
implicadas na emergência do homem contemporâneo. homem superior da razão. Agamben (2008) nos mostra,
A experiência de se tornar adulto vivida na cultura, tem com profunda clareza as implicações deste projeto no
sido marcada pela violência exercida pelo pensamento sofrimento do homem contemporâneo como expressão
do homem que tem se sustentado na razão/consciência. paradigmática do massacre hitlerista na busca por uma
Violência bem estabelecida como resultado, não só da raça de homens superiores.
dissociação entre corpo e razão, como vários teóricos e Dentre os pensadores da cultura, críticos ao projeto
pensadores de diferentes áreas do conhecimento nos têm da modernidade, é importante ressaltar Freud e sua
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Centro de psicanálise. A psicanálise, desde a formulação inicial,
Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Rua Professor Mar-
cos Waldemar de Freitas Reis, Campus do Gragoatá, Bloco O, sala 218. São
surge com uma proposta transgressiva aos saberes
Domingos - Niterói, RJ – Brasil. CEP: 24210201. E-mail: catarinamresende@ instituídos que, a partir da luz da dúvida, se caracterizou e
gmail.com, borges.helia@gmail.com, e.passos@superig.com.br, mazamoraes@
gmail.com, ruthtorralba@gmail.com
se caracteriza pela extrema mobilidade de seus conceitos
Catarina Resende; Hélia Maria Oliveira da Costa Borges; Eduardo Passos; Marcia Moraes; Ruth Silva Torralba Ribeiro

e decorrentes transformações e que se constitui como um práticas psis, uma clínica como processualidade, em
campo de pesquisa sobre produção de subjetividades, que a dimensão sensorial, estética, entendida como um
nas bordas dos saberes, operando novos conjuntos como posicionamento ético faz voltar a diferença.
referenciais para pensar o sujeito. Nasce com a potência O que é interessante notar, tanto na psicanálise
da denúncia de uma cultura que centraliza seu projeto quanto na psicologia, é que a herança da modernidade
em uma perspectiva racionalista, propondo como agente é marcada como um campo de conflitos e tensões. Tanto
perturbador o fato de que o homem vive do seu isso: o numa quanto na outra, o que se põe em cena, a partir da
inconsciente como corporeidade revela a fragilidade da modernidade é, de um lado, a captura da subjetividade
consciência tão cara ao projeto iluminista. pela via de uma identidade – deixando o corpo como
Freud parte do que a ciência não conseguia dar conta, resto – e, de outro lado, a captura do corpo pelo viés da
das marcas manifestas nos corpos sensíveis das histéricas. matematização e da metrificação de seus parâmetros.
O sexual e o infantil, temas de que se ocupou e que faz Deste modo, a herança moderna é antes o legado de um
erodir a perspectiva da certeza, do fundamento e da verdade problema, de um terreno de conflito mais do que de um
calcada na racionalidade da consciência iluminada. campo pacificado. É neste sentido que se faz necessário
Embora o caminho tortuoso de Freud tenha retomar a herança, a fim de forçar ao limite as tensões
favorecido a emergência de fascismos instituídos no que neste domínio comparecem.
campo analítico, grande parte de suas conceituações A psicologia do século XIX, contemporânea da
permanecem marcadas pela dissidência de seus começos. psicanálise freudiana, toma como objeto de investigação
Cabe, portanto, retomá-los. o problema do erro no exercício do conhecimento.
Na psicanálise clássica ou ortodoxa, vemos Para alguns autores, como Figueiredo e Santi (2003), a
desaparecer a força do campo intensivo – a corporeidade psicologia surge no avesso do projeto moderno porque
sofre um aborto, pois que a subjetividade entendida seu objeto de investigação é a falha, o erro que os sentidos
desde o campo representacional resta estacionário provocam na construção do conhecimento. É no ponto
no conflito edípico, no desejo como falta e na lógica mesmo em que o sujeito falha que a psicologia se afirma.
binária da supremacia fálico/castrado: como se não Daí decorrem dois eixos a serem destacados. O primeiro
bastasse Deleuze e Guattari (2010) para denunciar é que se a psicologia se ocupa do erro dos sentidos,
o absurdo deste projeto. Mesmo com as releituras sua ambição é, sem dúvida, superar o erro, justifica-
sucessivas oriundas das contribuições veiculadas por lo, ultrapassa-lo. O segundo, é que o corpo é tomado
estes dois autores à psicanálise clássica e sua lógica como lócus de inscrição material da subjetividade. O
binária, pautada no significante e na falta, ainda hoje se sujeito de que se ocupa a psicologia, no século XIX, é
mantém hegemônica a perspectiva de uma certa clínica psicofísico, isto é, inscrito na materialidade da fisiologia
psicanalítica, majoritária, que exclui a corporeidade de sensorial. Crary (2012) salienta inclusive que a versão de
suas considerações teóricas e/ou práticas. subjetividade que marca o campo da psicologia é aquela
da visão encarnada, isto é, de uma experiência sensorial
Cabe colocar em relevo que a corporeidade, para
cujo solo é corpo tomado em sua matriz fisiológica,
alguns, como não poderia deixar de ser, também se torna
quantificável e objetivável.
o significante supremo, deixando escapar a deriva. E isto
é aquilo que nos interessa desde um olhar que busca no Mais uma vez, o que se aborta é a corporeidade,
corpo não seu sentido, mas sua experiência. Basta de entendida como plano de articulação sensorial. Em lugar
verdades e evidências! da corporeidade o que se afirma é o corpo fisiológico
– quantificável, tecido no modelo do mecanicismo
As dicotomias continuam assombrando o
moderno. No entanto, como dissemos, se a herança é
conhecimento que, pela espetacularização do eu –
mais um problema do que uma solução, o que nos resta a
marca da contemporaneidade – incansável narcisismo
perguntar é: que lugar para a corporeidade no cenário dos
exacerbado, tem como decorrência o silenciamento das
saberes e práticas psis?
experiências na redutora busca de evidências. A aderência
a um corpo esvaziado resulta, por exemplo, na demanda Dirigidos por esta pergunta, seguimos não
de consistência nas produções de ideias, na medida em propriamente na busca de uma solução para o problema,
que isto também se atrela a exposições explícitas de um mas queremos definir pistas que nos orientem frente
saber “arrogante”, impedido de corporeidade que tem no aos impasses advindos do esquecimento do corpo e do
julgamento seu olhar. que, na subjetividade, se expressa como experiência
encarnada, concreta. Pistas e não protocolos, prescrições
Portanto, no ato de poder suportar a existência no
ou receitas metodológicas. Tampouco a aposta é em um
empuxo gravitacional que nos afeta, se coloca uma clínica
novo paradigma, já que não podemos supor a unificação
ativa que vai além da proposta discursiva e interpretativa
deste campo da experiência em que o humano se faz
pelo acolhimento e a partilha que se compromete com
de maneira errante. Porque se o erro foi desde sempre
um caminho errante, opaco e instável característico dos
a marca deste objeto que interessou todo um campo
processos de criação, ofertando à sensação a possibilidade
de investigação no século XIX, tais falhas – e dotado
de captar as forças invisíveis e de revelar o momento
da capacidade de falar, o sujeito tropeça nas palavras,
de metamorfose. Propomos assim, entre os saberes e
munido da faculdade mnêmica, ele se esquece, senhor da
razão, ele se equivoca – lançam a experiência subjetiva

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Que lugar para a corporeidade no cenário dos saberes e práticas psis?

em uma errância, evolução criadora (BERGSON, Vês aqui a grande Máquina do Mundo,/etérea e elemental,
2010) ou deriva autopoiética como preferiram designar que fabricada/assim foi do Saber, alto e profundo,/que é
Maturana e Varela (2011). A corporeidade é, por sua vez, sem princípio e meta limitada./Quem cerca em derredor
a dimensão da experiência subjetiva que materializa o este rotundo/globo e sua superfície tão limada,/é Deus: mas
espírito em seu movimento criativo, que o torna realidade o que é Deus ninguém o entende,/que a tanto o engenho
histórica multideterminado e atravessado pelas relações humano não se estende (CAMÕES, 1963, p. 142).
de força que animam o seu tempo. A corporeidade Dos poetas à psicologia, interessa tomar essa
confere aos estudos da subjetividade sua dimensão dimensão criadora que, se em Camões e Drummond
materialista, o que Deleuze e Guattari (2010) definiram aparece no singular de uma “máquina do mundo”, não se
como uma psiquiatria materialista, isto é, como prática deve supor aí nenhuma delimitação definitiva e essencial
clínica correlata à filosofia da diferença. nem do criador nem da criatura. Melhor seria dizer,
Há, aqui, uma evidente referência ao pensamento de máquinas de mundos para insistir nesse pleonasmo da
Marx em sua análise econômico-política dos modos de criação ininterrupta. Qual é, então, insistimos, o lugar do
produção da realidade. No texto de 1859, Contribuição à corpo nessa maquinação de si e do mundo que não cessa?
Crítica da Economia Política, afirma que “na produção Se os corpos se organizam e tornam-se tão somente
social da própria existência, os homens entram em organismos sob uma visada mecanicista ou de um
relações determinadas, necessárias, independentes de cientificismo depurador, esta composição (a de um
sua vontade; essas relações de produção correspondem a produto) do corpo enfrenta o que nela se mantém da
um grau determinado de desenvolvimento de suas forças sua abertura constituinte e indefinida. O corpo sofre de
produtivas materiais” (MARX, 1859/2008, p. 47). Marx sua própria organização, o que equivale dizer que nele
esboça uma noção de um inconsciente produtivo e social. se mantém inalterada uma dimensão não organizada,
Mas se a produção é, para Marx, eminentemente social, não estratificada. A identidade produto-produção cria,
pois produção social da existência, e se ela é material portanto, um terceiro termo, que mantém a experiência
porque econômica, para Deleuze e Guattari a produção subjetiva em estado de abertura: a corporeidade como
nem bem é social, nem bem econômica. Com isto não corpo ainda sem organização, corpo amorfo que
querem dizer que ela seja individual e ideológica, pois testemunha sua autoprodução. O sentido de amorfo,
a produção não é uma instância transcendente ao seu aqui, não pode ser confundido com um indiferenciado,
produto. Segundo a inflexão que estes autores querem pois é da abertura da corporeidade ser a superfície de
dar ao materialismo histórico, a análise da produção, em deslizamento das diferenças: os diferentes corpos, os
Marx, permanecia numa lógica de oposição, distinguindo diferentes momentos do desenvolvimento de um corpo.
e separando o domínio dos produtos (a existência O amorfo designa o sem forma, o sem organização, por
individual, a superestrutura ideológica) e o domínio da onde as diferenças ou intensidades livres resistem à
produção (as forças produtivas e relações de produção, tendência estratificadora-organizadora dos processos de
que comporiam a infraestrutura). Deleuze e Guattari, subjetivação. Entre o corpo-organismo e a corporeidade
superando esta lógica dialética, afirmam a produção como aberta aos processos de subjetivação se traça uma linha de
processo que não separa o produto de sua produção, o que deriva, uma linha do pensamento, uma linha de pesquisa.
para nós significa não separar o espírito de suas condições Nem terreno de conflito nem campo pacificado,
materiais ou corpóreas. Assim, na subjetividade tudo traçamos uma linha de pesquisa num plano de deslizamento
é produção porque tudo funciona como máquinas das diferenças, de sustentação das turbulências, aberto às
autopoiéticas ou máquinas desejantes: “máquinas derivas. Os estudos da subjetividade, na sua dimensão
formativas, cujas próprias falhas são funcionais e cujo materialista, são habitantes das zonas de vizinhanças entre
funcionamento é indiscernível da formação; máquinas práticas e saberes que se contaminam reciprocamente
cronógenas, confundidas com sua própria montagem” nos interstícios de um conhecimento inteligível-sensível.
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 363). O processo de Na contramão da herança iluminista, ocupamo-nos da
produção segue o princípio do desejo. Todo movimento tensão oriunda da tentativa de iluminar algo que se torna
desejante é um movimento de produção de si e do mundo visível apenas de modo esfumaçado, criamos tensão na
– “máquina do mundo” que Drummond retomou de Os experiência de um pensamento claro e confuso que ganha
Lusíadas para reinscrevê-la no movimento de abertura ilhas de consistência sob a “luz da dúvida”. Isto porque
que a caracteriza, assim como experimenta a perplexidade buscamos dar inteligibilidade à experiência sensível
do poeta: “a máquina do mundo se entreabriu/para quem de um terceiro termo da identidade produto-produção,
de a romper já se esquivava/e só de o ter pensado se emergente da brecha que se abre entre a estratificação e
carpia./Abriu-se majestosa e circunspecta,/sem emitir o devir. Seguimos as pistas da dimensão autopoiética de
um som que fosse impuro/nem um clarão maior que o uma existência errante.
tolerável!”(ANDRADE, 1983, p. 271).
Nosso hipertexto é tecido a partir de diversos modos
A máquina do mundo newtoniana deve reunir de apreensão de signos de um objeto de investigação que
precisão e impreciso, sujeita ao indefinido do humano e só se revela transversalmente e em sua condição movente,
que Vasco da Gama contemplava pela dádiva de Tétis no vibrátil. Ao rastrear pistas para o estudo da corporeidade,
Canto X dos Lusíadas. nos lançamos em uma paisagem complexa que nos
convoca ao tracejado de uma abordagem transdisciplinar,

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Catarina Resende; Hélia Maria Oliveira da Costa Borges; Eduardo Passos; Marcia Moraes; Ruth Silva Torralba Ribeiro

pulsante e porosa, numa zona intervalar de indefinição, designando as experimentações de organização subjetiva
sujeita a interferências que melhor potencializem o anteriores à linguagem e à consciência reflexiva, a partir de
encontro entre o saber e o fazer. relações dinâmicas entre subjetividades e corporeidades.
Fazemos um uso dos conceitos sem cerimônia, em Evidenciando que os modos sensoriais do bebê são,
que a produção de conhecimento é, antes, um exercício de desde o nascimento, movimentos de diferenciação, Stern
bricolagem de um bloco de sensações que seja capaz de indica ainda que essas organizações do eu pré-verbal são
se pôr de pé sozinho, sobre a superfície trepidante de uma um caminho para o advento da linguagem.
abordagem transdisciplinar (RAUTER, 2012). Se por um Os processos primários de subjetivação, desse modo,
lado, estas pistas não se pretendem universais, produtoras não passam pela consciência reflexiva, pelo campo
de uma verdade ou modelo sobre a corporeidade, por outro, simbólico ou semiótico, mas pela experiência sensorial
não se isentam de terem o seu rigor. Construir territórios de uma corporeidade encharcada por uma subjetividade
de sentido num plano movente e fugidio é, ainda, afirmar emergente, em modulações intensivas com as “formas
dispositivos que garantam um suporte de compreensão de dinâmicas de vitalidade” (STERN, 2010). As formas
sentido, mesmo que cambaleantes e temporários. dinâmicas de vitalidade são vetores intensivos do corpo
Ao pensar a experiência da corporeidade por um atravessados por signos do mundo e do encontro com
enfoque transdisciplinar, portanto, não queremos instituir o outro, um estado inapreensível e não categórico do
uma nova fórmula empírico-teórica, mais verdadeira do estado sensível da corporeidade enquanto duração e da
que outras, mas precisaremos abordar uma estratégia subjetividade como experiência autopoiética.
singular, tomar partido de algo que diz da atitude de um Para sustentar seu argumento, Stern (2010) faz
coletivo de pesquisadores diante da peculiaridade deste uma aliança com as “artes baseadas no tempo”, ou
objeto de investigação. de linguagem não-verbal, nomeadamente, a dança, a
O primeiro passo é percorrer os acidentes e os música, e certos tipos de teatro e de cinema. Segundo ele,
relevos da pesquisa cartográfica no plano de dissolução as “artes baseadas no tempo” apresentam-se estritamente
entre o observador e seu objeto. É preciso evidenciar em tempo real, à parte da lógica da representação.
os movimentos do pesquisador ao mesmo tempo em Apesar de estar permeando qualquer interação cotidiana,
que este se torna impessoal e o objeto é circunscrito a experiência estética das formas dinâmicas de
enquanto paradoxalmente subjetivo. Arriscamo-nos por vitalidade teria naquelas artes um meio privilegiado de
um método intensivista, com o qual investigar implica performatizar essas intensidades do estado sensível num
sustentar transformações ético-políticas da elaboração grau ampliado, refinado, exercitado repetidamente.
estética (do grego est-ética, numa ética da estesia) de um Portanto, o interesse especial pelo o campo das
campo conceitual encarnado. artes se justifica na medida em que elas constituem um
O alargamento da noção de corporeidade propõe um dispositivo catalisador da experiência sensível. Não
deslocamento dos saberes e práticas psis da modernidade só porque dão às formas de sensações uma apurada
que estratificam a subjetividade numa identidade cindida capacidade expressiva de compartilhamento, mas por
do corpo enquanto aparato mecanicista. Daniel Stern, elas serem o campo pioneiro na exploração da dimensão
psiquiatra e psicanalista do final do século XX e início dinâmica da experiência humana. Mais do que qualquer
do século XXI, emprega pesquisas empíricas atuais ciência empírica ou saberes psis, a arte é a área que
para integrar estudos cognitivos, sensório-motores se ocupou, por mais tempo, de um modo de elaborar
e desenvolvimentistas, a fim de penetrar amiúde o as formas dinâmicas de vitalidade que integram a
universo sócio-afetivo do bebê humano pré-verbal. subjetividade à sua dimensão materialista e criadora.
Com uma investigação acerca dos processos primários Em suma, é próprio da arte, criar caminhos para
de subjetivação, Stern evidencia as forças do mundo encontrar, identificar, lapidar, expressar as intensidades
como campo subjetivante. Oferece, com isso, um afetivas que possam ser compartilhadas no plano coletivo
escopo de compreensão para a relação de contágio da das forças. O plano das forças, amorfo, precipita-se numa
subjetividade-corpo com as forças das coisas do mundo, abertura indefinida em relação dinâmica com o plano
cuja integração somatopsíquica se faz na fronteira de organização, enquanto nos conecta com um mundo
cambiante entre o dentro e o fora. de “imagens-nuas”: estamos imersos numa vastidão de
Em oposição ao paradigma tradicional hegemônico, imagens capazes de preencher nossa percepção de toda
na sua perspectiva desenvolvimentista, o processo a sua carga de forças (influências) e de conteúdos não-
se processa em sua eterna processualidade, em que verbais. Os conteúdos não-verbais que estão expressos
uma etapa não ultrapassa outra, permanecendo em nas artes baseadas no tempo são detentores de sentidos
justaposições ativas e coexistentes ao longo da vida. irredutíveis a signos verbais. As imagens-nuas estão
As organizações subjetivas envolvem tanto o processo associadas às pequenas percepções que surgem num
quanto o produto, vão se sobrepondo aos sobressaltos, intervalo entre signos e nos reenvia para algo mais forte
por “linhas de desenvolvimento contínuo” de diferentes que não está lá – da ordem de uma “impresença”, um “não
camadas dos “sensos de si” [senses of self] (STERN, sei quê” que nos afeta –, mas que nos dá a capacidade de
1992). Os sensos de si, diferentemente de um eu nuclear captar o todo, o invisível e o movimento (GIL, 2005).
e identitário, destacam mais o processo do que o produto,

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Que lugar para a corporeidade no cenário dos saberes e práticas psis?

No terreno da dança e das artes do corpo, a passagem buscar o outro lado (o avesso) da intencionalidade e da
do século XIX para o XX se configurou como um percepção que busca o sentido do objeto. A consciência
momento importante na mudança paradigmática que está sempre num estado de osmose com o corpo,
oferece contornos diferentes a respeito do entendimento e e, mesmo nos casos em que há uma extrema ruptura
da experimentação com o corpo. Com a dança moderna, entre eles – como nos casos de psicose – ela nunca é
o corpo passa a ser experimentado como um plano de completa, haverá ainda uma ligação residual, uma
forças e de comunicação com o mundo. Não mais objeto, textura comum que os atravessa. A essa impregnação
não mais corpo-organismo ou corpo-veículo de um eu da consciência pelo corpo, entende-se a “consciência
pretensamente controlador e unificador das experiências, do corpo” enquanto receptáculo de forças e de devir
mas um corpo que se abre aos afetos e às intensidades formas, intensidades e sentido do mundo.
que o percorrem como uma paisagem em movimento. Há uma reversibilidade sensível entre sujeito e objeto,
Mas de onde nasce o movimento? Essa foi a pergunta eu e o outro, tal como podemos apreender na célebre frase
que conduziu muitos dos criadores da dança moderna de Gerda Alexander, criadora da eutonia: “aquilo que
americana e da dança expressionista alemã. Ao se tocamos também nos toca” (ALEXANDER, 1991, p. 17-
perguntarem a respeito do plano de origem do movimento 22). Para a autora, a experiência de contato entre corpos é
no corpo, um espaço intensivo e não topológico se abriu um salto para fora dos limites de si e um esgueirar-se à beira
como um solo de experimentação, dando visibilidade ao do mundo. A experiência com o corpo se expressa assim
invisível-sensível que nos rodeia e nos constitui. num processo de dilatação intensiva dos limites topológicos
A corporeidade inaugurada nesse contexto é um do eu, num plano de continuidade com os objetos e forças
plano de articulação sensorial, um movimento que do mundo. Experiência que se defronta com uma dimensão
nos confronta com nossos deslimites, afirmando a incorporal do corpo: mergulho no plano intensivo onde
rasgadura inevitável de um corpo em movimento no a experimentação de si excede para além dos limites
espaço. O escultor Giuseppe Penone afirma o corpo no topológicos do corpo-indivíduo, corpo-matéria. Experiência
espaço como uma escultura, uma obra em vida (DIDI- de uma corporeidade duplamente paradoxal: para acessar
HUBERMAN, 2009). O espaço esculpe um corpo que o imaterial do corpo é preciso mergulhar em sua matéria
recorta simultaneamente esse espaço. A gravidade cria sensível. É a carne que abre para o incorporal.
uma postura, um modo de se mover no mundo que Françoise Delsarte (1811-1871), importante estudioso
cria um olhar para o mundo. O ar que respiramos cria do movimento humano que influenciou vários personagens
direção e volume no espaço interior do corpo, numa importantes da dança moderna e das práticas de educação
troca intermitente entre a matéria que compõe um corpo somática, afirma o corpo como lugar privilegiado para
e que compõe o mundo. O espaço do corpo é prenhe de expressão da alma. Numa certa filiação, Rudolf von
buracos: somos superfície porosa que faz ver a superfície Laban (1978) se articula ao pensamento delsartiano
enquanto limite como pura abstração. O tecido que separa na sua busca da região do silêncio, esgarçando esse
é o mesmo que conecta. Onde termina e começa a pele? pensamento: o corpo “cria” uma alma. Ao habitar essa
O mundo nos chega pelos poros, por isso Gil (2004) região do silêncio, o dançarino expulsa de si as imagens
dirá que a percepção de um corpo se faz pelos poros da cotidianas e já codificadas reconhecidas do mundo, o
consciência. Mas nestes termos, a consciência reflexiva que implica num saber-morrer: abandonar a estrutura
não basta para ativar essa dimensão sensível do corpo. predeterminada do corpo em um eu psíquico para se abrir
Nessa experimentação a consciência é sempre aos fluxos e intensidades do movimento. Para alcançar
paradoxal: uma consciência descontínua, que abre essa região, o dançarino precisa conduzir e ser conduzido
espaço para um inconsciente do corpo, fora da dialética por seu êxtase, sem cair nele. Um momento em que o
entre corpo e consciência. Apreendida por aquilo dançarino cria uma corporeidade singular, contingente,
que os sentidos são capazes de mostrar, na dimensão desaparecendo enquanto indivíduo para aparecer como
molecular desse processo, intervindo na mente e nos puro movimento em uma dança (LAUNAY, 1999).
tecidos do corpo, há um saber paradoxalmente “claro” e A corporeidade se faz no tensionamento gravitacional
“indistinto” (um inteligível confuso), que não comporta entre a terra e o céu, entre a matéria e o imaterial do corpo.
em si um juízo moral acerca da diferença das coisas, mas Tensão que faz ver o invisível, que mostra o quanto de carne
conhecimento ético de si e do mundo através da estesia. há na pele, o quanto de não-organismo há na organização
Falamos, de uma consciência atmosférica, impregnada de um corpo, que faz ver a sombra na luz e que arrasta a
pelo corpo, no ponto de imanência do pensamento ao consciência de si não mais como reflexividade-espelho,
corpo: a consciência subvertida na sua intencionalidade mas como corte de um espelho sem azougue.
reflexiva; o corpo subvertido na sua tridimensionalidade Didi-Huberman (2005, p. 78, tradução nossa) nos fala
material. Abre-se um plano de imanência, onde corpo e dessa experiência através da imagem de “ombre du reflet”
consciência são de uma indissociabilidade inconciliável, (sombra do reflexo) que é “aquele que obscurece, destrói
e o indivíduo é uma multiplicidade convergente. ou deforma sem retorno do seu reflexo sobre si mesmo”.
Sobre a dimensão paradoxal da consciência na relação A experimentação de si ou conhecimento de si não se faz
com o corpo, Gil (2004) recorre à fenomenologia para como aparição distinta, mas como um sopro indistinto,
dela se distanciar, numa transformação de conceitos que uma experiência atmosférica, onde as imagens que se
resulta em uma “metafenomenologia”, isto é, ele vai desdobram são mais da ordem do sopro, da abertura do

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 89-95, 2017                                93


Catarina Resende; Hélia Maria Oliveira da Costa Borges; Eduardo Passos; Marcia Moraes; Ruth Silva Torralba Ribeiro

corpo ao plano inconsciente do corpo que se conecta Adentrar a sala era compartilhar histórias com essas
com as forças do mundo, do que do reconhecimento da pessoas. Compartilhar experiências, sentidos, encontros de
imagem própria num espelho. corpos. Eu queria saber seus nomes. Acredito que era um
misto de querer aproveitar aquela proximidade e também
Entendemos a experiência sensorial nesse movimento,
efeito da densidade que se fez ali. Comentaram no sábado:
como estado germinal para a criação de novos sentidos,
talvez eu não saiba o nome de todo mundo, mas eu conheço
do conhecimento de si e do mundo. Nessa perspectiva,
o cheiro de um, reconheço a outra pelo pé, uma pelo toque,
os sentidos da vida seguem uma linha de continuidade pelo jeito de falar...
com a experimentação corporal, sensorial e intensiva de
modo que o corpo possa obter uma ciência do mundo. Pude conhecer muitos modos de existir, muitos caminhos
A corporeidade é o corpo em carne viva, corpo pleno de vida. Havia uma reunião de peculiaridades que me fez
intensivo que equivoca as dualidades sujeito-objeto, colecionar afetos em forma de gesto, voz, palavra, sotaque,
dentro-fora, corpo-psiquismo, e que abre o corpo ao seu mania, cor, cabelo. Para mim, isso é importante de ser
aspecto imaterial, invisível, porém sensível, vibrátil e por partilhado não pelo que em mim se guarda, mas pelo que,
isso mesmo capaz de fazer estremecer a forma, dando através do encontro se abre de possibilidade em mim. Falo
dos campos de estudo, das afinidades, dos percursos, das
passagem aos fluxos da vida na constituição material-
versões multiplicadas.1
imaterial de um corpo em movimento-mundo.
Neste panorama, o Laboratório de Corporeidade e Nesta aposta consideramos que incluir a dimensão
Subjetividade (CORPOREILABS – UFF, FAV, UFRJ, da corporeidade no cenário das práticas e saberes psis
UFC) visa evidenciar a presença da problematização é manifestar nossa implicação com uma dimensão
do tema da corporeidade nos trabalhos elaborados no prática do pensamento inteligível-sensível nos estudos
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF e da subjetividade: pesquisar demanda atitude, contágio
afirmar a parceria interinstitucional entre os Curso de e intervenção, por um movimento em que pensar inclui
Psicologia da UFF, o Curso de Dança da FAV e os Cursos o gesto de dar consistência à elaboração estésica de
de Dança da UFRJ e UFC, e de Terapia Ocupacional da um corpo. Como na poesia-canção de Arnaldo Antunes
UFRJ, promovendo a partilha de conhecimento sobre o (1995): “tire a mão da consciência e ponha a mão na
tema numa perspectiva transdisciplinar. consistência”. Criar consistência é uma atividade da
matéria inteligível-sensível do corpo e “pôr a mão na
Numa experiência recente, realizada em fevereiro de
consistência” nos mostra que para conhecer essa matéria
2017 e que ainda está sendo elaborada como processo de
é preciso um fazer, uma atividade, uma experiência
pesquisa do laboratório, tivemos a oportunidade de criar
que inaugura um terceiro termo na experimentação da
um curso de verão denominado “Corpo Arte e Clínica”
subjetividade: colocar a mão na consistência do próprio
no qual foram oferecidas sete proposições diferentes e
corpo é deformar, desfazer a ordem e habitar um triplo
complementares entre si, num mergulho intensivo ao
movimento onde se é a um só instante criador, matéria e
longo de seis dias corridos. Cada uma destas proposições
obra do processo de conhecer-criar a si e o mundo.
foi coordenada de modo colaborativo por duplas ou
grupos de pesquisadores e propositores convidados, com Referências
parcerias prévias ou não. Desenvolvidas no contexto ANDRADE, C. D. de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova
político em que estamos imersos na atualidade, no Brasil e Aguilar, 1983.
no mundo, atravessadas pela transversalidade corpo-arte-
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e o
política, tiveram como foco exercícios de pensamento,
criação e crítica nos campos da Clínica, da Performance e testemunho (Homo Sacer, III). São Paulo: Boitempo, 2008.
da Dança, no intuito de serem experimentadas as linhas de ALEXANDER, G. Eutonia: um caminho para a percepção
continuidade e de sobreposição entre teoria e prática. Nesta corporal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
primeira experiência de coletivização das nossas práticas,
ANTUNES, A.; SCANDURRA, E. Consciência. Intérpretre:
reunimos dezoito propositores (entre pesquisadores do Arnaldo Antunes. In: ANTUNES, A. Ninguém. São Paulo:
laboratório e convidados) e quarenta participantes que BMG Ariola, 1995. 1 CD. Faixa 2.
puderam compor e experienciar, através de nossas ações,
o plano de indiscernibilidade arte-vida, singular-coletivo, BERGSON, H. A evolução criadora. São Paulo: UNIFESP,
2010.
pensamento-movimento, clínica-política.
As proposições articulavam relações as mais variadas CAMÕES, L de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963.
entre corpo, micropolítica, cidade, música, poética, COUTO, M. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro:
performatividade, território, com experimentações de Companhia das Letras, 2012.
deriva, de cartografias corporais, de obras da Lygia Clark, CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no
sobre as formas dinâmicas de vitalidade e pequenas século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
percepções, e algumas técnicas do campo da dança e da
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. São Paulo:
educação somática. Uma participante nos traz algumas
Editora 34, 2010.
impressões sobre a experiência com o curso a partir um
breve fragmento do seu relatório:
 Trecho retirado do Relatório de Bolsista do Curso de Verão Corpo Arte e Política
1

da participante Beatriz Pizarro, aluna do Curso de Graduação em Dança da UFRJ.

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Que lugar para a corporeidade no cenário dos saberes e práticas psis?

FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. Psicologia: uma (nova)


introdução. São Paulo: Educ, 2003.
DIDI-HUBERMAN, G. Gestes d’air et de pierre: corps,
paroles, souffle, image. Paris: Minuit, 2005.
DIDI-HUBERMAN, G. Ser crânio: lugar, contato, pensamento,
escultura. Belo Horizonte: C̸ Arte, 2009.
GIL, J. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo:
Iluminuras, 2004.
GIL, J. A imagem-nua e as pequenas percepções: estética
e metafenomenologia. Tradução de Miguel S. Pereira. 2. ed.
Lisboa: Relógio D´água, 2005.
LABAN, R. Domínio Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LAUNAY, I. Laban ou a experiência da dança. In: PEREIRA,
R.; SOTER, S. (Org.). Lições de Dança. Rio de Janeiro:
UniverCidade, 1999. v. 1, p. 73-78.
MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política
(1859). São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MATURANA, H.; VARELA, F. A árvore do conhecimento. São
Paulo: Palas Athena, 2011.
RAUTER, C. Clínica do esquecimento. Niterói: EdUFF, 2012.
STERN, D. O mundo interpessoal do bebê: uma visão a partir
da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento. Tradução
de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1992.
STERN, D. Forms of vitality: exploring dynamic experience in
psychology and the arts. New York: Oxford University Press,
2010.
Recebido em: 4 de abril de 2017
Aceito em: 2 de junho de 2017

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 89-95, 2017                                95


Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 96-102, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2156
Dossiê Corporeidade

Cabeça Dizpensa, corpo desvago:


experimentações de um Laboratório de Sensibilidades
Alexandre Oliveira Henz,I, H Andre Rodrigues,I Angela Aparecida Capozzolo,I Carlos Eduardo Alves Santos,I
Eliana Rocha de Lima,I Gustavo Lucas Bardelli de Cordeiro,I Harete Vianna Moreno,I Lara Aparecida Machado
Almeida,I Maria José da Silva,I Rafaela Camargo Baldo,II Sidnei José Casetto,I Tahamy Louise Duarte Pereira,I
Thayara Paule Herrera LimaI
I
Universidade Federal de São Paulo, Santos, SP, Brasil
II
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Resumo
O Laboratório de Sensibilidades da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) é uma tentativa de construir experimentos
abertos às alteridades, com ações em diversas superfícies que podem reverberar dentro e fora de seu lugar material. Neste artigo
expomos algumas experiências que transversalizam o corpo desvago do Laboratório e suas incidências nos corpos que o compõem
e decompõem. Narramos uma experimentação com uma comunidade-corpo, que se modulou em uma performance que nomeamos
coletivamente de “Cabeça Dizpensa”. Discutimos, dentre outras, as noções de intervenção e interferência, e um itinerário de
problematizações e pequenas narrativas com ecos do laboratório.
Palavras-chave: Laboratório de Sensibilidades; corpos; experimentação; interferência.

Lo(o)se-Head, diffuse body:


experimentations with a Sensitivities Laboratory
Abstract
Sensitivities Laboratory at Federal University of São Paulo (UNIFESP) is an attempt of creating experiments that are open
to alterities, with actions in many different surfaces which can reverberate into and out of its material place. In this paper we
expose some experiences that transversalize the Laboratory’s diffuse body and their incidences in the bodies that compose and
decompose it. We report an experimentation with a community-body, which has shaped into a performance we collectively named
“Lo(o)se-Head”. Among others, we bring the discussion of the notions of intervention and interference, as well as an itinerary of
questionings and short narratives that bring echoes from the Laboratory.
Keywords: Sensitivities Laboratory; bodies; experimentation; interference.

As conchas são os ossos do oceano, disperso esque- aplainam oscilações conforme as várias médias definidas e
leto, desvago. Guimarães Rosa. modificáveis. Nossos órgãos se adaptam a tais modulações
tendendo a avaliar as oscilações a partir dessas médias do
Preliminares
que já estamos acostumados e do que vai se acostumando
Num dia desses, entrando em um shopping qualquer, noto em nós. Os corpos se tornam lâminas em justaposição,
que minha passagem para dentro do prédio era marcada havendo sempre uma superfície a ser conquistada e
por uma cortina de ar, tão sorrateira quanto constante. modulada; multiplicam-se as taxas, o leque de controle
Senti-me entrando em um laboratório daqueles brancos, segue seu desdobramento, média ao lado de média: ar-
com um cheiro amargo de limpeza, onde todo tipo de condicionado, colesterol-condicionado, lactobacilos-
ruído permitido parece surgir de caixas de som instaladas: condicionados, investimento-retorno-condicionados,
objetos metalizados, animais farfalhando em gaiolas, jaleco serotonina-condicionada, hora-de-acordar-condicionada,
raspando pelos cotovelos. Era como se as condições fossem número-de-palavras-em-uma-frase-condicionadas,
milimetricamente filtradas para que tivesse início algum satisfação-própria-condicionada etc.
experimento sem fim. Controlam-se os microrganismos no
Mas há um outro tipo de experimento em laboratório em
ar, a iluminação, a alimentação, o tempo de permanência
que se tenta habitar, algo como um estúdio de produções
em frente aos vidros, o limite dos espaços, a cintilância dos
abertas. Uma faixa sonora se desprende com a fricção entre
objetos. Durante a dita purificação corporal, tornar-nos-
focos de alteridade impossíveis de identificar, as oscilações
íamos livres para medir e consumir os valores segundo
são elas mesmas avaliações, quem experimenta é intérprete
nossas vontades mais conscienciosas. O ar-condicionado
de uma música que não se sabe de onde veio nem quando
mantém a temperatura constante, há uma miríade de
se iniciou. Essas fugas sonoras não respeitam as paredes
silenciosos aparelhos que detectam, acompanham e
cronológicas, muito menos as de concreto e provocam
 Endereço para correspondência: Universidade Federal de São Paulo, Departamento
H descompassados. Uma síncope dos sentidos acompanha
de Ciências da Saúde. Av. Ana Costa, nº 95 - Bairro Vila Matias. Santos, SP – a aparição de corpos em nós: nossos corpos tornam-
Brasil. CEP: 97015-372. E-mail: alexandrehenz2000@yahoo.com.br, dreepsico@ se possuídos por movimentos inusitados, o pensamento
hotmail.com, angeruma@uol.com.br, carloslhd@gmail.com, elianarocha810@ dispensa coisas imprescindíveis para um tipo de vida,
gmail.com, gugalucas0@gmail.com, harete@uol.com.br, lara.almeida96@yahoo. a língua arrisca-se em gestos no limite do suportável,
com.br, majosil@uol.com.br, rafaelacamargob@gmail.com, sidneicazeto@uol. contornando desconcertada as beiradas do menos de tudo
com.br, tahamy.pereira@gmail.com, thayara.paule@hotmail.com
Cabeça Dizpensa, corpo desvago: experimentações de um Laboratório de Sensibilidades

que se é. Aqui a alma é um estômago1 e seu regime é uma de chuva, mostrou que havia readequações estruturais
brincadeira séria. que precisavam ser feitas para que fosse seguro habitá-lo.
Ao engendrar performances, perturbações, O LS ficou, então, sem espaço físico por alguns meses.
ambiências, o Laboratório de Sensibilidades (LS) Nesse meio tempo, começamos3 a pensar em uma
procura ser um lugar para estas possibilidades, de modo reinauguração para quando o Laboratório estivesse
a criar espaços de germinação e espraiar-se. O LS tem se pronto. Durante a preparação, lembrávamos que ocorrera
constituído em um folheado: ensaios e oficinas de dança, uma performance inaugural4 em 2007. Nesse recomeço
experimentos e oficinas abertas com performance, o grupo pensávamos que uma produção coletiva poderia marcar
de estudos (GELS), o grupo de articulação do LS - que esta nova chegada. Alguém trouxe a foto da obra de
agencia ações no campus, em estágios e com coletivos de Lygia Pape, O Divisor, que é a montagem de um corpo
artistas – um blog com efeitos dentro e fora da UNIFESP coletivo público. Um tecido com fendas na superfície
e ações nos módulos de graduação e seminários de pós- com muitas cabeças, um corpo aberto andando sem uma
graduação com incidência na formação de profissionais cabeça única guiando.
da rede de assistência social, saúde, saúde mental e Em outra semana, assistimos o vídeo da bailarina e
educação. Alguns egressos, por exemplo, que passaram coreógrafa portuguesa Vera Mantero: Vamos sentir falta
pelo Laboratório, referem as marcas das experimentações de tudo aquilo que não precisamos em que os participantes
com o Clube dos Saberes,2 de que agora lançam mão nos apareciam com cabeça de manequim de onde retiravam
serviços das redes da Saúde Mental e Assistência Social, coisas em silêncio. Também a problemática do “comum”
em proposições intergeracionais e com agenciamentos como uma espécie de categoria política e clínica estava
entre profissionais e movimentos sociais. presente em nossas problematizações. Ao mesmo tempo,
Reunimos narrativas recortadas e espalhadas que vínhamos trabalhando com a noção nietzschiana de que
aqui arranjamos em um conjunto heterogêneo. Por A alma é um estômago, isto não é uma metáfora (LS,
isso, diferentes tempos verbais podem se misturar, sem 2012) e com as antropofagias. Interessaria uma seleção
linearidade ou sequência cronológica. Passado e presente, nutricional, ético-política, que experimenta e interfere
juntos na mesma folha, orientam-se pelos fluxos de com diferentes regimes: comer certas coisas, outras não,
pensamento e das experiências que nos atravessam, privar-se do que nutre alguns tipos de órgãos, arriscar o
permitindo entrever espaços-tempos que nos acompanham. paladar com pratos atípicos, abster-se do cardápio do dia,
exercitar músculos em jejum etc.
Cabeça dizpensa
Isso tudo foi se recombinando em nós ao modo da
como dizer – ao ver – estratégia de William Burroughs (1994, p. 57) que
entrever – anotava no que mais apreciava, as iniciais GETS, de
crer entrever –
Good Enough to Steal: bom o bastante para roubar,
querer crer entrever –
pois apostávamos no roubo de partes, de fragmentos
isto de querer crer entrever o que onde
criteriosamente rapinados que constituíram os elementos
Samuel Beckett
pelos quais, ou que em seus intervalos, tivemos acesso a
Era início de 2012, e ocorria a desocupação do sons e imagens que interessavam.
prédio da Ponta da Praia - uma das unidades do campus
Parecia-nos boa a cena de tirar coisas das cabeças;
Baixada Santista, espaço em que estava o Laboratório
as do vídeo eram grandes, semelhantes a de manequim.
de Sensibilidades. A mudança ocorreria para o prédio
Pensamos que cabeças de boneca de tamanho grande,
na rua Silva Jardim, recém-construído para abrigar aulas
de plástico e porcelana, funcionariam para a nossa
e diversos laboratórios (dentre eles o LS), bem como
performance – embora ainda não a chamássemos assim.
a biblioteca e o restaurante universitário. Após a saída
Aos poucos começaram a habitar o Laboratório cabeças
do prédio da Ponta da Praia, soubemos que o andar da
de boneca, que iam fazendo parte de uma decoração algo
Silva Jardim em que ficaria o Laboratório ainda estava
bizarra: cabeças, cabeças, muitas cabeças. A foto de O
em obras e levaria algum tempo para ficar pronto. Um
Divisor também ficava à vista. No processo da produção
incidente com a cobertura de gesso do teto, após um dia
da performance, a ambiência do Laboratório sofreu
1
 Acerca de essa questão ver também a instalação “A alma é um estômago: relato
torções: virou depósito de bonecas, panos variados,
de um visitante” (LABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES, 29 abr. 2016a). Cf. cozinha improvisada, materiais de umbanda etc. Surgiu a
Ferraz (1999, p. 32, grifo do autor), “o tema da função digestiva do esquecimento ideia de uma espécie de cortejo com o longo pano branco
se relaciona diretamente à seguinte afirmação do parágrafo 16 do capítulo ‘Das translúcido, com aberturas para deixarmos as cabeças de
velhas e novas tábuas’ de Assim falou Zaratustra III: ‘o espírito é um estômago’,
fora, em que carregássemos as outras cabeças.
em que o ‘é’ foi destacado por Nietzsche. Trata-se, também nesse trecho, de
enfatizar que, mesmo em um texto como o Zaratustra, não se trata aqui de uma
metáfora, de uma simples analogia. O espírito não é semelhante a um estômago;
espírito e estômago se fundem: [A alma é um estômago]”.
2
 O trabalho com o Clube dos Saberes foi sustentado pelo laboratório e é 3
 A narrativa segue na primeira pessoa do plural, que se refere ao coletivo que
atualmente um dispositivo utilizado por egressos da UNIFESP em equipamentos compõe o grupo de articulação do Laboratório de Sensibilidades.
da Assistência Social e Saúde Mental da Baixada Santista. As primeiras 4
 Ocorrida em 12/03/2007, a inauguração do Laboratório de Sensibilidades
experiências do Clube na UNIFESP e do próprio Laboratório foram analisadas abriu o espaço com uma performance. Os registros em vídeo e uma narrativa
no escrito: Laboratório de Sensibilidade, Inteligência coletiva e Clube dos deste momento estão disponíveis em Laboratório de Sensibilidades 2007:
saberes (CASETTO et al., 2007). primeiro dia (LS 2011).

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 96-102, 2017                               97


Alexandre Oliveira Henz; Andre Rodrigues; Angela Aparecida Capozzolo; Carlos Eduardo Alves Santos; Eliana Rocha de Lima;
Gustavo Lucas Bardelli de Cordeiro; Harete Vianna Moreno; Lara Aparecida Machado Almeida; Maria José da Silva; Rafaela Camargo Baldo;
Sidnei José Casetto; Tahamy Louise Duarte Pereira; Thayara Paule Herrera Lima

O tempo que levamos digerindo nossas múltiplas esvaziar, de dispensar, tirar o excesso daquilo que não
questões e gestando a reinauguração não nos é claro, mas precisamos e sentiremos falta, como diz o subtítulo do
a lembrança que acessamos é de que o caminhar foi lento. trabalho de Mantero.
Muitas vezes parecíamos falar novamente as mesmas Corpos quaisquer disponíveis à experimentação:
coisas: “será que entramos em looping?” Alguém uma aposta política. Tomando emprestada uma frase
dizia ou trazia algo inédito, ou ainda alguém ouvia de Deleuze e Guattari (1966) ainda que um pouco
como inédita alguma coisa já diversas vezes enunciada. modificada,6 poderíamos dizer que antes do corpo há
Produziam-se então diferenças. Retornávamos. a política e que o corpo é político. O divisor de Lygia
Num dado momento, decidimos uma data. Isto Pape parece ser um experimento desta ordem, talvez
ajudou a trazer a produção para um plano de atualização - uma comunidade-corpo provisória e acéfala.7 Um devir
de quais agenciamentos precisamos para que aconteça? imperceptível, experimentado em algum momento pelos
Definimos quais objetos sairiam das cabeças; pensamos corpos abertos, na condição de acéfalos.
em convidar a bateria da UNIFESP - Repicapau - para Na performance brincamos com trocadilhos e ditos
acompanhar; “que tal um bolo-intestino? Vi ontem à populares como “está faltando um parafuso na sua
noite na TV Folha”. Resolvemos usar TNT branco e cabeça” ou “limpar a mente” ou ainda “lavar a alma”.
translúcido emendado com cola quente para fazer o Retiramos das cabeças signos e objetos: dinheiro,
nosso Divisor e pensamos em grudar pegadas no chão, moedas, uma pequena cabeça de Barbie (extraída com
mostrando o caminho do saguão até o LS, no terceiro uma pinça); também remédios, farinha, carrinhos,
andar. A reinauguração tomava delineamentos, e seguiu cruzes, até minhocas. Por fim, uma cabeça de boneca de
se formando até o momento de acontecer. porcelana escapa das mãos e se estilhaça.
05 de dezembro de 2013: Em uma das paredes do Assim, nessa performance que engendramos, cada
saguão da Universidade, um pano anunciava o nome da um carregava sua cabeça paradoxalmente, debaixo
produção: Cabeça Dizpensa. do pano. Não ocupamos todos os buracos para poder
receber quem quisesse entrar.
Cada um ocupou um espaço
e outros se uniram a nós em
dissonâncias, mantendo um
fluxo de movimento com
o tecido numa espécie de
composição com os corpos;
era preciso perceber o tempo
e o ritmo do outro para juntos
avançarmos. A pequena
caminhada pelo saguão
da universidade exigiu
um exercício de perceber
as temporalidades, as
respirações, ajustes de alturas
e distâncias, a partir de uma
certa negociação coletiva
silenciosa. Era preciso
acionar sentidos do corpo,
tatear com os poros, os fluxos
e a cadência da Bateria.8
Um a um se retirava da
comunidade-corpo provisória
Cabeça-despensa com ‘s’, é um verso, slogan, verbete, e acéfala e se deslocava à sua maneira até onde iria
anti-slogan de Palavra Desordem de Arnaldo Antunes 6
 A frase referida é “antes do ser há a política” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 78).
(2002). O enunciado pairou na conversa conseguindo 7
 Várias manifestações contemporâneas contra o golpe de 2016 no Brasil têm
reunir tantos sentidos daquilo que estávamos construindo, uma configuração acentrada e acéfala sem o grande líder encabeçando ou o
partido-guia. Nessa questão há também ecos da revista Acéphale publicada
gestando, ruminando há tempos. Essa performance (originalmente em janeiro de 1937) por Georges Bataille, Pierre Klossowski,
também carregava marcas de ações anteriores do projeto André Masson, Jean Wahl, Jean Rollin, bem como do escrito Polegarzinha de
Michel Serres (2013, p. 37) com a cabeça fora do pescoço: “Agora, a cabeça
de extensão Literatura e Clínica,5 ligado ao Laboratório. decapitada da Polegarzinha se diferencia das antigas, podendo ser mais bem-
De início se chamava “Palavra”, em seguida Despalavra. constituída do que cheia. Não tendo mais que se esforçar tanto para armazenar
o saber, pois ele se encontra estendido diante dela, objetivo, coletado, coletivo,
A brincadeira ressoava com um movimento nosso de conectado, totalmente acessível, dez vezes revisado e controlado; ela pode voltar
sua atenção para a ausência que se mantém acima do pescoço cortado. Circula
por ali o ar, o vento”.
 Houve um período em que o Laboratório de Sensibilidades foi um projeto de
5
8
 A Bateria RepicaPau da UNIFESP pode ser vista e ouvida no registro em
extensão articulado com outros projetos, como o Cinema e Saúde e o Literatura
e Clínica. Acerca da experiência do Literatura e Clínica ver especialmente Henz vídeo intitulado Cabeça Dizpensa: grupo de articulação do laboratório de
et al. (2012). sensibilidades (LS, 2016b). A performance durou cerca de 20 minutos.

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Cabeça Dizpensa, corpo desvago: experimentações de um Laboratório de Sensibilidades

fazer sua ação. As cabeças, então esvaziadas de suas Integram o escrito alunos da graduação, egressos,
coisas, eram deixadas no chão e cada um seguia o professores, residentes, mestrandos, trabalhadores da
percurso até retornar ao pano, onde reinseria sua própria rede; juntos, pesquisadores. Todos pondo a mão na
cabeça. Uns cambalearam, outra foi lentamente, uma se massa, aquela do bolo antropofágico, feito de açúcar
arrastando, alguns firmes em seus passos, cada passada impalpável,10 trazendo ideias, autores, contaminações,
ia à sua batida de pisada. Tantas cabeças esvaziadas, imagens, instantâneas comunicações, cadernos de
corpo desvago, era um. No chão, ia se formando uma anotações, envio de problemas e silêncios.
espécie de despacho de tudo aquilo que não precisamos Nos bastidores deste escrito, produziu-se uma zona
e, entretanto, sentiremos falta. Retiramos o pano branco intermediária, uma meticulosa e paciente tentativa de
dos ombros e estendemos por cima do feito, minhocas, preensão das nuvens de experiências do Laboratório em
farinha, espuma e todos os outros objetos retirados. A lugares em que dele nunca se escutou falar. O coletivo
bateria silenciou seu batuque e seguimos nos misturando de escrita, em deambulação, trabalhou ao modo de um
aos que assistiam; mais um, “qualquer” um que deixa sismógrafo sondando cenas que eram ondas que estavam
seu feito e continua no jogo do comum. no Laboratório e mais, em egressos, estágios, módulos de
graduação, pós-graduação
e serviços, de forma
menos direta e explícita.
Eram intervenções e
interferências e foi preciso
trabalhar com fragmentos
narrativos editados,
embaralhados, riscados,
várias vezes reescritos.
Percebemos que nem
todas as experiências que
aparecem no artigo se deram
no espaço do Laboratório.
Inversamente, nem todas
as inquietações políticas
e conceituais dos grupos
de Estudo e Articulação,
que comparecem nesse
escrito, ganharam ecos
em experimentações,
instalações, dispositivos ou
performances.
Tomamos as
experiências estéticas,
as experiências com as
artes como produtoras de
pensamento, operadores de
pesquisa, em contraste com
Bastidores: a feitura do artigo a distinção hierarquizada entre a área da ciência como um
Existe a procura por um autor e existe a procura bloco (sério e de valor) e o setor da arte-cultura que seria
do-(s) autor - (es).9 outro bloco, ligado à fruição.
Peixoto Interferências e intervenções
No decurso de um tempo fizemos reuniões, Partimos de uma distinção entre a noção de interven-
percorremos juntos piscinas de silêncio, produzimos ção e a de interferência (INFORSATO, 2010). Seria pre-
narrativas que contornaram e irrigaram algumas ciso pensar as interferências ao modo das ondas de rádio,
experiências do Laboratório dentro da sala e fora em seus ondas curtas,
transbordamentos sutis. Um dos primeiros movimentos
foi cada um enviar para os outros fragmentos de no sentido de uma intromissão: uma onda que, eventual-
narrativas, ao mesmo tempo coletivas e singulares mente, em suas oscilações, frequenta outra onda, ao estar,
por instantes, na mesma frequência que a outra. É uma re-
relacionadas às experiências do Laboratório, e, então,
foram se delineando diferentes encontros de textos que 10
 O Grupo de Articulação do LS agradece a presença generosa da professora
Maria Fernanda Petroli Frutuoso, do curso de nutrição da UNIFESP que, além
por fim se apresentaram neste artigo, dispersos, desvagos. de várias interferências no LS, integrou o coletivo de curadoria, trabalhou
ativamente em montagens, atuou no Cabeça Dizpensa, no projeto A alma é um
estômago, além de fazer conosco o bolo antropofágico recheado com açúcar
impalpável que é o nome de um tipo de açúcar geralmente feito com açúcar de
9
 O plural foi adicionado pelos autores do texto. confeiteiro moído com maisena.

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Alexandre Oliveira Henz; Andre Rodrigues; Angela Aparecida Capozzolo; Carlos Eduardo Alves Santos; Eliana Rocha de Lima;
Gustavo Lucas Bardelli de Cordeiro; Harete Vianna Moreno; Lara Aparecida Machado Almeida; Maria José da Silva; Rafaela Camargo Baldo;
Sidnei José Casetto; Tahamy Louise Duarte Pereira; Thayara Paule Herrera Lima

lação não programada e inevitável, tanto quanto o é o fim era possível vê-los por fora, inclusive uma revista Mente
inesperado desta justaposição. Um ocupa o outro: simples- e Cérebro -, baldes de areia, um rebanho pastando foi
mente ocupação, porque seus movimentos ondulatórios as- projetado o tempo todo em que circulávamos pelos
sim o exigem (INFORSATO, 2010, p. 198). espaços, o auditório estava com pouca luz, um homem
chafurdava no chão em uma espécie de chiqueirinho tão
A intervenção pode supor a aplicação de certos mo-
feito de jornais quanto ele; duas moças dançavam e não
delos, ideologemas, simbolizações definidas. Nesse jogo,
cansavam de cortar e ajustar os cabelos; outro passeava ao
a  intervenção procuraria transformar as experiências
léu, de sunga; sons de bocas e gemidos, murmúrios. Houve
numa determinada direção. Tende-se a querer subir a um
sustos, não houve conversa ao final.
patamar elevado, a querer luz, a realizar uma missão. Em
contraste, interferências podem lidar com delicadezas, su- Trata-se paradoxalmente de um trabalho e “desobra”
tilezas que tentam não se sobrepor às situações, abrindo- (não fazer obra) (INFORSATO, 2010): nada de sucesso,
-se a direções não pré-estabelecidas (ORLANDI, 2012). de convocar sentimentos ou de fazer analogias. Também
nada de “distraídos venceremos” – não se tratava de
Uma  intervenção  simplificadora pode ser aquela
vencer ou chegar lá – talvez, sobretudo, falhar, falhar de
que incide “sobre” a complicação dos casos, das
novo, falhar melhor.11
experiências, dos equipamentos, das ruas; incide ali
uma ordenação que  acachapa as complexidades. Outro A verdade do corpo
problema: um voluntarismo pode enredar as intervenções A experiência se deu no Laboratório de Sensibilidades.
e interferências. Daí a questão do “dar certo” – sempre Era um dia atípico de avaliação conduzida por um grupo
ligada a modelos e parâmetros – e uma demanda de de egressos e alunos de quarto e quinto ano, cada qual
controle do resultado, como imaginar que se possa vinculado de uma forma às aulas que, em um dado momento
preparar uma interferência com um tiro único, sem de suas graduações, lançaram-lhes problematizações
agenciar de novo, escavar mais embaixo, e, se não “deu com as artes, subjetivação contemporânea, pondo em
agora”, desconfiar de sua estratégia, e, se deu bem demais xeque construções naturalizadas: o psicológico e a
desconfiar também. Lawrence (2012, p. 37), em seu própria noção de homem.
Estudos sobre a literatura clássica americana, escreveu:
De antemão esclarecidos sobre a proposição
“o que achamos que fazemos não importa muito. Na
mais “corporal” do dia, ocorreram experimentações que
verdade, nunca sabemos realmente o que estamos envolviam desvios sensoriais e formas inauditas de se
fazendo. […] Somos os atores, nunca inteiramente os relacionar com os conceitos e questões tratados no decurso
autores de nossos próprios atos ou obras”. do semestre. Essa aposta fugia à lógikca cerebral já tão
As interferências não reivindicam total compreensão. exercitada no meio acadêmico. Houve desinteresse e pouca
Interferência é produção de subjetividade – conhecimento receptividade. Para muitos, o tempo gasto com essas
vivo que não passa necessariamente pelo “espelho da oficinas poderia ser melhor empregado. Outros relatavam
consciência” (NIETZSCHE, 2001, p. 248-249). Interessa um desconforto com atividades que envolvessem corpos.
um rigor nas ligações e montagens das interferências Em um meio em que a preocupação majoritária
vindas de curadorias que criem um campo de gestão e era produzir um material12 que conciliasse boas
gestação coletiva, espaços para fazer e desdobrar juntos articulações e demonstrasse domínio acerca das ligações
ideias, mixá-las e recombiná-las. conceituais, eis que irrompe uma provocação que, ainda
Interferência e produção de pensamento pedem um que pouco ou nada tenha servido como argumento favorável
“para nada” que é insuportável na ambiência universitária à experimentação, remeteu a algo para além daquela sala e
ou na dos serviços. Pedem que se faça um exercício, uma do motivo da reunião.
tentativa-experiência de “desastre”, de perder o astro – no Disseram: “Alguém tem experiência fora do
sentido de algo que guia -, não se tratando das chamadas corpo?”
experiências exitosas, demasiadamente predeterminadas.
Isso envolve ligações complexas, experimentações Um atlas anatômico é uma produção estética e ética,
sem garantias, não necessariamente projetos com suas politicamente determinada. Um atlas anatômico parece
intencionalidades. Pede talvez uma leveza e inteligência algo neutro e útil; ao mesmo tempo ele não é a verdade de
de outra ordem que não compõem com o arrivismo e a um corpo. É produção de uma certa realidade operando
meritocracia – podendo implicar uma gratuidade que não com um modelo de corpo. E ela não é sem direção e/ou
se inscreve na lógica da comunicação ou da finalidade; efeitos ético-clínicos, e implica as terapêuticas. Não é um
um jogo esvaziado precisamente da finalidade, uma corpo no atlas anatômico, é o corpo estilo greco-romano
espécie de “para nada” que não lhe retira, mas justamente dos desenhos da biomedicina, obviamente uma represen-
imprime intensidade. Na ausência de finalidade podem tação que também nos auxilia e leva em certa direção.
instaurar-se experiências que ativam o corpo-desvago
como possibilidade de invenção de si.
11
 Referindo-se a expressividade romântica nas artes, Samuel Beckett afirma que
Um exemplar: o pintor Bran Van Velde foi o primeiro a desistir desse automatismo estetizado
denominado expressão, o que ele considerou uma fidelidade ao fracasso, um
[...] interferência em uma aula, um auditório foi interditado; falhar como ninguém mais ousou falhar (BECKETT, 1949/2001).
todos ficaram fora, as cadeiras foram empilhadas, livros 12
 O referido material é um diagrama produzido na avaliação dos módulos
foram congelados dentro de enormes barras de gelo - Constituição e emergência do psicológico que integram o curso de graduação
em Psicologia da UNIFESP.

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Cabeça Dizpensa, corpo desvago: experimentações de um Laboratório de Sensibilidades

As imagens do artista Walmor Corrêa,13 impressas Finalmente


em tamanho A3 e expostas no campus da universidade,
Pesquisar contra si e encontrar o que não aceita-
apresentam minuciosos mapas anatômicos com um grau mos na experiência do método
enorme de detalhamento, utilizando os signos e verdades
Gels
da anatomia para criar uma imagem verossímil, isto é,
plausível, com efeito de verdade. E sempre temos isso, Meus ombros pesados adentram a sala. Colocam-se
tão-somente, o verossímil – que parece verdadeiro, que ao lado de muitos outros ombros e nucas cheios de nós.
produz efeito de verdade. Walmor Corrêa produz um Costumamos carregar todas as aulas e trabalhos acima
mapa anatômico de uma sereia com os órgãos descritos dos membros, por aqui. Uma biopolítica. As testas estão
em detalhe, descrições de um bebê-sereia no útero, a enrugadas. Silêncio. Blablablá e... “podemos escolher os
panturrilha descrita e aberta do Curupira. campos, então?” Sim! As testas se dobram ainda mais.
Penso na política das testas enquanto a discussão se
A palavra alemã Unheimlich, título desta série de
desenrola. Uma voz enuncia, como cenário possível de ação
imagens, tem sido traduzida como “o inquietante” ou
“Arte no Dique”14 e também enrugo a testa. Dois braços se
ainda “o estranho-familiar”, dentre outras possíveis. erguem. Duas vagas disponíveis. Cada braço ocupa uma
Com Freud (1919/2010), ela comparece em discussões a vaga e resolvemos. Ombros e testas, agora tranquilos, se
respeito da sensação de assombro ou estranheza que por levantam e seguem rumos.
vezes envolve coisas conhecidas e familiares. Na série de
Walmor Corrêa, as imagens da exposição - dissecações No primeiro encontro do grupo de estudantes15
de seres inventados, aliás, como todos - não se separam do terceiro ano, ocorrido no LS, levo os sentidos às
dos processos artísticos, científicos e metodológicos sensibilidades. Espaço que produz corpos. Cria outros
órgãos e desorganizações. Lá, o tempo é outro e as pessoas
que constituem as próprias figuras, o que, no limite,
não são as mesmas. Piso e meu passo já muda de jeito,
possibilita colocar em jogo noções e imagens de todos
recordando as lembranças daquela sala vazia e, por isso
os corpos, corpos quaisquer – também produzidas. O
mesmo, cheia de tudo. Sala de mundos que, fora de lá,
desencaixe que pode provocar essas imagens ajuda a
são mudos. Quase inaudíveis. Imperceptíveis. Sensíveis.
pensar: “O que é que junta em mim as coisas que leio Encontro-me com mais uns doze pares de olhos. “Vocês por
e vejo? Que forças em mim me fazem ver isso? Que aqui?!” Coexistimos, ainda preservando distâncias. Até
forças em mim me fazem expressar ‘assim o que estou que uma chegada se anuncia. Movimentos. Correria. Vapt-
pensando’? Que forças já me dominam? Com que forças vupt. Todo mundo se apronta para a recepção. As luzes se
me alio?” (ORLANDI, 2012, online). apagam e é dada a largada.
Interferir-se A convidada começa seu caminho com pés de
Em que medida as interferências – que exigem um pesquisadora e nós permanecemos grudados ao chão, como
rigor e tentativas – deslocam percepções, produzem se nos fundíssemos ao piso e incorporássemos obstáculos.
micropercepções? Nas interferências estético-políticas Que momento delicado. Inicia-se a dança de bambolês,
pode haver um apelo fácil ao já sabido, ao sensacional, ao cones, braços, ouvidos. Percursos sonoros. Percalços. Vou
espetacular ou sentimental. Interessa considerar o convi- me aproximando mais de cada vida ali presente. E somos
te forte à autopromoção, à busca de sucesso e “gerencia- povoados, finalmente, e de luzes acesas, de novos sentidos
mento empresarial de si” na universidade, nas artes, nos nos olhos. Veio-me uma frase: “o olho pensa”. E quantos
serviços etc.; são musculaturas que podem ser acionadas impensados compartilhamos. Teve verde, preto, castanho,
azulzinho. Histórias azuis, sentimentos castanhos. Duas
com as experimentações, sustentando modos de traba-
pequenas bolinhas logo acima do nariz que me sorriam.
lhar e pesquisar. Hoje a lógica da empresa - que não está
Sorri de volta um sorriso que me veio do estômago. E
em um único lugar - é um gás espalhado que coloniza
seguimos ouvindo e dizendo histórias, ao mesmo tempo em
o que chamamos de nosso desejo. É antes de tudo um
que gestávamos novas contações. Geríamos, girávamos.
modo de fazer que tenta tomar o que é federal, estadual e Escutei-me falando de minha história com a arte pela
municipal com incidências as mais diversas nas artes, na primeira vez na vida. Primeira vez que absorvia isso pelos
pesquisa, na saúde e na clínica com seus prêmios, exci- ouvidos. Entrava pelo ouvido e saía não sei por onde.
tações e saudáveis motivações. Sobretudo é um fluxo de
jogo metaestável espraiado na tessitura subjetiva. Nesse Jogamos mais algumas palavras na roda e
jogo de interferências estéticas pode haver uma espécie descobrimos que tudo o que dissemos não escapou pela
de “guerrilha contra nós mesmos” ou melhor, porta nem pelas janelas da sala. Continuaram pairando
pelos vãos dos nossos dedos, pelas brechas entre uma perna
[...] a guerrilha contra as potências maiúsculas – sejam au- e outra, preenchendo todos os espaços vazios dos corpos.
tomatismos, empreendedorismos, partidarismos, missiona-
rismos laicos ou quaisquer proeminências transcendentes Há, então, que se tomar cuidado com as palavras
– que nos invadem, que nos habitam ou que nos habilitam mortas. Mas como é que se vivifica uma escrita, uma
na sacanagem muito contemporânea de certo servilismo frase, um ponto? Talvez perfurando com perguntas.
(ORLANDI, 2006, p. 66). Estou disposta a encontrar aquilo que não aceito?
14
 Trata-se de uma ONG da Zona Noroeste de Santos, que promove atividades
com as artes e os moradores do bairro, e, especialmente das palafitas do Dique
da Vila Gilda.
 Algumas destas imagens da série Unheimlich estão disponíveis no blog do
13 15
 Estudantes que cursavam o módulo Práticas Clínica Integrada do Eixo Trabalho
Laboratório de Sensibilidades (2016c). em Saúde no ano de 2016.

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Alexandre Oliveira Henz; Andre Rodrigues; Angela Aparecida Capozzolo; Carlos Eduardo Alves Santos; Eliana Rocha de Lima;
Gustavo Lucas Bardelli de Cordeiro; Harete Vianna Moreno; Lara Aparecida Machado Almeida; Maria José da Silva; Rafaela Camargo Baldo;
Sidnei José Casetto; Tahamy Louise Duarte Pereira; Thayara Paule Herrera Lima

O fim está no começo e, no entanto, continua-se16 com/2011/12/07/laboratorio-de-sensibilidades-2007-primeiro-


dia-4/>. Acesso em: 17 set. 2016.
No dia seguinte à segunda votação favorável à
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 24117 na LABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES. A alma é um
Câmara dos deputados federais, que congela por 20 estômago, isto não é uma metáfora: comidas, digestões
anos os gastos públicos (saúde e educação inclusos), alegres, dispepsias políticas-ressentimentos e a saúde de
certas anorexias. 7 ago. 2012. Disponível em: <https://
uma lona preta de vinte metros atravessou corredores
laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2012/08/07/a-
do edifício central do campus universitário como uma alma-e-um-estomago-isto-nao-e-uma-metafora-comidas-
onda de ressaca, levada pelas bordas por professores digestoes-alegres-dispepsias-politicas-ressentimentos-e-a-
e estudantes.18 Ruidosa, sem palavras, descia e subia saude-de-certas-anorexias/>. Acesso em: 18 set. 2016.
escadas, mar indócil, revolto, inconformado.
LABORATÓRIO DE SENSIBILIDADES. A alma é um
No princípio era a ação:19 acéfala, desvaga. estômago: relato de um visitante (instalação). 29 abr.
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pipCLdQS7to>. Acesso em: 20 out. 2013. 1 vídeo.
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PEC 241 é aprovada em segundo turno na Câmara. Rede
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Sensibilidades 2007: primeiro dia. 7 dez. 2011. Disponível
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em: <https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.
gastos-publicos-e-aprovada-em-2o-turno-falta-votar-
16
 Cf. Beckett (2002, p. 128).
destaques-3820.html>. Acesso em: 31 out. 2016.
17
 A PEC 241 foi aprovada na câmara de deputados em 26/10/2016. Acerca da
aprovação da proposta de Emenda à Constituição nº 241/2016, ver: <http:// SERRES, M. Polegarzinha. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro:
www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/10/pec-do-teto-dos-gastos-publicos- Bertrand Brasil, 2013.
e-aprovada-em-2o-turno-falta-votar-destaques-3820.html>.
18
 Confira os vídeos da interferência Comum da Lona Preta com Luiz Orlandi na Recebido em: 12 de novembro de 2016
UNIFESP–BS (LS, 2016d). Aceito em: 11 de maio de 2017
19
 Ver especialmente a referência de Freud (1912-1913/2012, p. 157) ao Fausto de
Goethe na última frase de Totem e Tabu.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 96-102, 2017
Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 103-109, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2159
Dossiê Corporeidade

Percepção e Ontogênese:
modulações transdisciplinares da subjetividade
Danilo MeloH
Universidade Federal Fluminense, Rio das Ostras, RJ, Brasil
Resumo
Atravessando as principais teorias e sistemas da psicologia onde o problema da percepção é abordado, não se verifica uma de-
dicação profunda aos processos por meio dos quais os fenômenos perceptivos são constituídos. Predomina aí o pressuposto da
percepção e do objeto percebido como elementos “dados” ontologicamente, ou seja, já constituídos previamente à experiência
perceptiva. Na contramão desta abordagem ontológica, buscaremos compreender os processos ontogenéticos através dos quais os
fenômenos perceptivos são criados, estruturam-se e modificam-se. Para isso, abordaremos a percepção a partir de uma perspecti-
va transdisciplinar onde ressoam elementos da biologia, etologia, filosofia e artes. No centro dessa investigação, o corpo emerge
como sede dos processos cognitivos e foco das intervenções clínicas, como meio de constituição e transformação da subjetividade.
Palavras-chave: percepção; ontogênese; transdisciplinaridade; corpo; subjetividade.

Perception and Ontogenesis:


transdisciplinary modulations of subjectivity
Abstract
Crossing the main theories and systems of psychology where the problem of perception is discussed, there is not a deep commitment
to the processes by which the perceptual phenomena are constituted. There prevails the assumption of perception and perceived ob-
ject as ontologically “given” elements, i.e., constituted previously to the perceptual experience. Against this ontological approach,
we seek to understand the ontogenetic processes through which the perceptual phenomena are created, structured and modified. In
order to do so, we will address the perception from a transdisciplinary perspective which resounds elements of biology, ethology,
philosophy and arts. In the center of this investigation, the body emerges as source of cognitive processes and focus of clinical
interventions as a means of formation and transformation of subjectivity.
Keywords: perception; ontogenesis; transdisciplinarity; body; subjectivity.

No conjunto da produção de conhecimento dos sis- que percebe. Tais representações são consideradas como
temas e teorias da psicologia, o fenômeno da percepção “totalidades” que resultam da (re)organização do campo
não encontrou, até os dias atuais, uma forma ampla de perceptivo a partir da lei “fundamental” da Boa Forma.
compreender sua gênese e os processos contínuos que De acordo com tal fundamento, as forças de organização
contribuem para sua transformação (PENNA, 1973; da percepção tendem a um equilíbrio estático que resulta
FERREIRA, 2010; KASTRUP, 1999; SIMONDON, sempre na “melhor forma”, não restando aí qualquer lugar
2005). Assim, do associacionismo ao behaviorismo, do para a criação de uma “figura improvável” (DELEUZE,
gestaltismo às ciências e tecnologias da cognição, a psi- 2007). Para Simondon (2005, 2006, 2012), tal modelo
cologia compôs, em sua diversidade, uma convergência de “equilíbrio estável”, no qual os potenciais de gênese
que restringe os processos perceptivos a uma abordagem e transformação da percepção tendem a se esgotar na re-
utilitarista da subjetividade (PENNA, 1973; FERREIRA, organização do campo problemático que dá pregnância
2010). Estática ou dinâmica, a percepção resulta frequen- às formas, surge como resolução de um problema num
temente num processo que supõe como já constituído on- campo tensional. Neste sentido, Simondon argumenta
tologicamente tanto as funções cognitivas de apreensão que a psicologia da Gestalt desconhece um outro modelo
dos dados que compõem o mundo, assim como o próprio que lhe possibilitaria pensar a continuidade dos proces-
mundo que se oferece dado ou pronto para ser percebido. sos de criação da percepção, o “equilíbrio metaestável”.
Ou seja, o que é percebido neste processo apresenta-se Por outro lado, do ponto de vista prático, nos experimen-
como um recorte “útil” do “mundo” para uma ação apro- tos conduzidos por Köhler (1978) com chimpanzés, as
priada daquele que percebe. situações problemáticas já continham em si as possibi-
Nesta perspectiva, mesmo na Psicologia da Gestalt lidades de resolução, considerando inteligente o animal
(GUILLAUME, 1960; WERTHEIMER, 1980; KOF- que “compreendesse” o problema e o solucionasse, isto
FKA, 1975), onde a percepção constitui o alvo princi- é, que ao reorganizar a “percepção” tivesse subitamente a
pal das suas investigações, as “figuras” que emergem chave geral de “ação” para resolver o problema (imediata
do “fundo” são imediatamente reconhecidas como algo ou progressivamente) e assim reduzir a tensão a um nível
que já possui existência e designação linguística, ou seja, mínimo, restaurando a estabilidade do equilíbrio.
emergem prontamente como representações para aquele Este modo recorrente de tratar a percepção mostra
como a psicologia manteve-se aprisionada ao modelo
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Polo
Universitário de Rio das Ostras. Rua Recife, s/n - Jardim Bela Vista. Rio clássico de ciência, encerrando o conhecimento num pa-
das Ostras, RJ - Brasil - Caixa-postal: 28890000. CEP: 28895-532. E-mail: radigma dicotômico que separa e opõe sujeito e objeto.
danilomelo.uff@gmail.com
Danilo Melo

É, portanto, a partir do pressuposto da existência de um processos cognitivos) deve ser compreendida (KAS-
sujeito que percebe e de um objeto que pode ser percebi- TRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008). Esta política, que
do que a psicologia apoiou, em suas diversas abordagens, visa tão somente os aspectos utilitários e adaptativos da
o problema da percepção. Neste sentido, perceber torna- percepção, se concilia com os dispositivos coletivos de
-se sinônimo de conhecer e o conhecimento, na ordem normatização que servem para regular os modos de re-
dos organismos vivos, visa à adaptação e “adaptar-se é lação dos indivíduos com o meio em que estão inseridos
tornar-se gradativamente mais adequado a um mundo de acordo com as diferentes formações socioculturais
que preexiste” (DO EIRADO et al., 2006, p. 80). das quais fazem parte. Nesta perspectiva, a percepção
A percepção, então, estabiliza a imagem do mundo torna-se subsumida pela “forma da representação” e ser-
para favorecer uma ação, efetiva ou simplesmente elabo- ve ao “modelo da recognição”, instaurando um “senso
rada, que possa tirar proveito da situação em que o orga- comum” que é compartilhado sob a forma de um “bom
nismo está inserido, havendo, de um lado, o “agente” que senso”, constituindo assim o conjunto das representações
percebe, e de outro, o “estímulo” percebido, como, por sociais. O que a representação e a recognição operam
exemplo, nos funcionalismos, behaviorismos e no inte- sobre a subjetividade, de acordo com Deleuze (1988), é
racionismo piagetiano. Enquanto ciências da adaptação, uma certa “conformidade” em relação aos aspectos “da-
estas abordagens tomam seu modelo científico da Biolo- dos” do senso comum, levando os indivíduos a tomar
gia, preocupando-se com o ajustamento dos organismos como natural o conjunto das representações melhor com-
a seu meio ambiente (PENNA, 1973; FERREIRA, 2010; partilhadas no meio social em que vivem. Apoiada sobre
SIMONDON, 2005). Para elas, a percepção é duplamen- esta perspectiva, a psicologia “formou uma concepção
te funcional, pois é uma função do organismo e tem uma representacional da subjetividade: pensamos, sentimos,
finalidade que é adaptativa e se conclui na ação, seja no agimos para nos adequar a ou transformar um mundo que
modelo do reflexo de Dewey (1971), no operante de Skin- supostamente subsiste independentemente do sujeito que
ner (1974) ou nos esquemas sensório-motores de Piaget o experimenta” (DO EIRADO et al., 2010, p. 86).
(1961). Em todas elas a percepção é parte integrante da De algum modo, este processo coincide com a “evi-
atividade, embora com recortes funcionais diferentes. dência” de que o indivíduo já experimenta, concreta-
Encontramos ainda no Cognitivismo (PENNA, 1999; mente, uma dupla “naturalização”: 1) do fato de que ele
FERREIRA, 2010; SEIDL DE MOURA; CORRÊA, percebe, e 2) do fato de que o que ele percebe está em
1997) uma perspectiva que reduz o fenômeno perceptivo conformidade com o que é percebido pelos outros indiví-
a um “padrão de estímulos” ao qual deve corresponder duos que compartilham o mesmo meio, o que viabiliza e
um “padrão de respostas”, pressupostas ou constituídas, é viabilizado pelas formas de comunicação. É, portanto,
em função da resolução de um problema, isto é, da adap- com base nesta “dupla natureza”, possivelmente eviden-
tação. O que importa aí é o processamento mental que, ciada na experiência dos indivíduos, que a psicologia
por um lado, analisa as formas de organização das dife- apoia suas construções teóricas e experimentais, favore-
rentes propriedades das entradas sensoriais (input) e, por cendo com isso uma “política normativa da percepção”,
outro, seleciona ou produz as respostas/ações (output) isto é, uma posição na qual a compreensão da subjeti-
correlativas à solução do problema em questão. Com vidade está subsumida a dispositivos coletivos de regu-
isso, “o estudo da psicologia (cognitiva) buscou identi- lação adaptativa que estabelecem relações utilitárias dos
ficar a que propriedade estrutural do ambiente está rela- indivíduos com o meio em que estão inseridos.
cionado o comportamento: nós reduzimos o mundo para Contudo, a experiência concreta dos indivíduos reve-
agir nele” (DO EIRADO et al., 2010, p. 86). la também outros processos que envolvem a percepção
Na escala humana, a despeito da complexidade dos e, a partir dela, os modos pelos quais os indivíduos se
processos cognitivos, a coerência entre a percepção e o relacionam com os meios (físico e sociocultural) em que
mundo percebido não só viabiliza as adaptações do in- estão inseridos (SIMONDON, 2005). Trata-se dos pro-
divíduo como também se torna condição do estabeleci- cessos de “mudança” nos modos de perceber, isto é, da
mento de padrões de normatização, os quais, por sua vez, passagem de um modo constituído a outro modo (dife-
determinam as formas adaptativas da subjetividade nas rente) que se constitui. Para o indivíduo, que se satisfaz
diversas sociedades e culturas (CANGUILHEM, 2003; com a complacência do senso comum, esta experiência
FOUCAULT, 1999). É justamente em consonância com de passagem de uma percepção a outra é comodamente
esta perspectiva adaptacionista que se funda o projeto da ignorada. Porém ela existe e habita abundantemente nos-
psicologia como ciência, compreendendo a percepção do sa vida cotidiana. O que então ela nos indica em sua efe-
mundo e o próprio mundo como uma totalidade ou uma meridade? Que há um processo contínuo de gênese das
junção de pequenas totalidades. Depreende-se daí que os percepções, que ordinariamente tomamos como “dadas”.
divergentes projetos da psicologia, que consideram de di- Pensar a gênese das percepções implica imediata-
ferentes formas o problema da percepção, abordam-na a mente compreender que toda forma de apreensão da re-
partir de um horizonte comum caracterizado pela homo- alidade é construída, logo, que não há qualquer “dado
geneidade e pela estabilidade (FERREIRA, 2010). natural” perceptivo, assim como qualquer “dado natural”
Consideramos este modo de abordar a percepção do mundo. Ou melhor, que não há percepção nem mundo
como uma certa posição política a partir da qual a subje- dados em si mesmos ontologicamente, mas que ambos
tividade (enquanto funcionamento conjunto dos diversos resultam de um processo ontogenético ininterrupto de

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criação. Desse modo, não se trata mais de abordar apenas BARROS, 2000). Esta atitude visa, portanto, produzir
os “pontos de parada” na passagem de uma percepção a efeitos de transversalidade1 entre os diversos saberes,
outra, mas buscar acompanhar o próprio movimento de tendo por resultado a produção tanto do objeto quanto
gênese destas percepções, que posteriormente tendem a do sujeito que coemergem nas práticas de conhecimento.
se “naturalizar” em função das necessidades práticas do Assim, ao invés de supor a preexistência dos termos que
vivo. Porém, devemos compreender esta “naturalização” se distinguem e se opõem, a perspectiva transdisciplinar
ou “pontos de parada” perceptivos fora de uma perspecti- busca traçar o mapa de sua gênese, compreendendo o par
va estática, compreendendo-os como modos de equilíbrio sujeito/objeto como termos que se constituem a partir de
metaestáveis nos quais o aspecto inventivo permanece uma relação singular.
operando continuamente. Desse modo, esta perspectiva No que diz respeito ao objeto de nossa investigação,
ontogenética implica, consequentemente, em problema- o fenômeno da percepção se determina continuamente
tizar uma concepção meramente estática e ontológica do como “relação”, delineando singularmente o “sujeito”
mundo percebido, na medida em que não se pode pensar percipiente e o recorte da “realidade” correspondente.
a gênese da percepção “descolada” da gênese do real. Nesta perspectiva transdisciplinar, a não preexistência de
Portanto, o problema da gênese coloca a necessidade de um “dado” do mundo e de um “observador”, anteriores
uma outra maneira de abordar a percepção, isto é, exige à experiência perceptiva, nos permite pensar a gênese da
uma política da percepção não apenas devotada à adap- percepção como um “perspectivismo”2 em processo. Em
tação, mas direcionada também aos processos de criação algumas abordagens oriundas de campos diversos do sa-
e transformação dos fenômenos perceptivos. Assim, a ber científico, os processos de gênese dos fenômenos per-
imagem tradicional da teoria do conhecimento na qual a ceptivos são pensados de acordo com esta perspectiva.
psicologia manteve-se apoiada e que separa e opõe sujei- Como exemplo, podemos mencionar inicialmente os tra-
to e objeto (percepção e mundo dados ontologicamente), balhos do zoólogo estoniano Jacob von Uexküll (1982),
deve ser sobreposta por uma perspectiva em devir (on- um dos pioneiros da Etologia. Sua principal contribui-
togênese) que pensa a “percepção” e o “mundo” como ção foi a elaboração da “doutrina do mundo-próprio”
“coemergentes”, como duas dimensões da experiência (Umwelt), segundo a qual a percepção é indissociável da
que se distinguem, porém sem se separar. ação nos sujeitos vivos e que as formas de conexão entre
Esta abordagem ontogenética da percepção demanda o mundo da percepção (Merkwelt) e o mundo da ação
da psicologia um deslocamento para novas bases epis- (Wirkwelt) formariam ciclos de funções perfeitamente
temológicas, abandonando o modelo clássico de ciên- determinados. O número de ciclos de função compo-
cia (que conduz à objetivação dos dados da experiência ria, portanto, o mundo próprio de uma determinada es-
cognitiva), e adotando um modelo de ciência não mais pécie animal, de modo que “todos os sujeitos animais,
comprometido com a definição exclusiva de um campo os mais simples como os mais complexos, estão ajusta-
de saber que possuiria seu objeto específico. Logo, con- dos com a mesma perfeição aos seus mundos-próprios”
sideramos que a própria experiência cognitiva pode ser (UEXKÜLL, 1982, p. 36).
enriquecida com as contribuições de diversas áreas do O problema ao qual Uexküll se dedicou consistiu em
saber, tais como a biologia, a etologia, a filosofia e as observar que, dentro de um mesmo “mundo ambiente”
artes. Apreendido em sua gênese, o processo perceptivo (Umgebund), diversas espécies animais conectam suas
extrapola os limites que as perspectivas clássicas tentam ações a distintos “sinais característicos” (estímulos),
lhe impor à custa da objetividade e se expressa numa di- expressando cada qual seu “mundo-próprio” (Umwelt).
namicidade heterogênea que melhor permite ser acompa- Assim, todo o opulento mundo ambiente que rodeia cada
nhada por uma perspectiva “transdisciplinar”. espécie animal é contraído e transformado num “quadro
De acordo com Gondar (2002; 2005), é preciso não mesquinho” de apenas poucos estímulos aos quais suas
confundir esta perspectiva com uma simples colaboração ações reagem, formando o seu mundo-próprio. A ques-
entre diversas disciplinas, onde cada qual contribuiria, tão que Uexküll coloca é: entre centenas ou milhares de
separadamente, com seu saber especializado em torno de “estímulos” presentes no mundo ambiente, porque as
um mesmo objeto (multidisciplinaridade), nem com uma espécies “percebem” somente alguns poucos aos quais
tentativa conjunta de reconciliação entre disciplinas so- direcionam suas ações? Com esta questão, Uexküll co-
bre um tema comum, porém sem que cada uma delas co- loca em xeque o “estatuto ontológico da realidade”, des-
loque em questão a estrutura do saber que lhes garantem locando-a de uma existência “em si”, dada para todos os
identidade e unidade próprias (interdisciplinaridade). Em seres viventes. Desse modo, o etólogo nos adverte con-
ambos os casos, as fronteiras que mantém a ordem das tra a ilusão relativista que “é alimentada pela suposição
disciplinas são preservadas. De outro modo, a noção de da existência de um mundo único em que todos os seres
transdisciplinaridade busca romper com os limites entre vivos estão encerrados” [...] e “de que deve haver um
as disciplinas, constituindo-se como uma “atitude crí- único espaço e um único tempo para todos os seres vi-
tica” que põe em questão tanto a identidade do sujeito vos” (UEXKÜLL, 1982, p. 42). É preciso, ao contrário,
que conhece quanto do objeto conhecido. Esta deses- compreender sua “doutrina do mundo-próprio” como um
tabilização da dicotomia sujeito/objeto termina, enfim, “perspectivismo” no qual cada espécie animal constrói o
por produzir uma subversão dos limites que sustentam 1
 Sobre a noção de transversalidade, ver Guattari (2004).
a unidade das disciplinas e dos especialismos (PASSOS; 2
 Sobre a relação entre o perspectivismo e a gênese da subjetividade, ver: Melo (2011).

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Danilo Melo

seu próprio “mundo de percepção” indissociável do seu aí um estatuto ontológico definitivo. O concreto é o lugar
próprio “mundo de ação”. Então, ao invés de uma única da ontogênese que nos liga ao presente da experiência
realidade que seria relativa a cada espécie animal, have- onde a subjetividade e a realidade emergem simultanea-
ria uma realidade perspectiva singular que comporia par- mente, porém esta emergência é sempre problematizada,
te do mundo-próprio de cada uma das espécies.3 o que põe nossa cognição em um contínuo devir. Assim,
Outra abordagem que encontra ressonância com a diferentemente das máquinas inteligentes que simulam a
“doutrina do mundo-próprio” de Uexküll é a “aborda- cognição humana em situações artificiais, nossos micro-
gem enativa da cognição” do biólogo Francisco Varela. mundos e microidentidades são frequentemente abalados
Em ambas, o processo cognitivo tem por base o fenô- por colapsos (problemas) para os quais não possuímos
meno da vida, expresso pela relação de um corpo vivo respostas no repertório de nossos esquemas cognitivos.
singular com o meio que o envolve. Tanto em Uexküll Os colapsos nos forçam a engendrar novos recortes per-
quanto em Varela, o corpo é compreendido a partir de ceptivos e novas ações apropriadas a eles com vista à sua
suas capacidades sensório-motoras, embora para este úl- resolução. Dessa maneira, os colapsos nos colocam numa
timo tais capacidades se realizem não somente num con- “deriva inventiva de percepções e ações” que fazem “no-
texto biológico, mas também cultural. A perspectiva de vos mundos” surgirem e “novas capacidades sensório-
Varela consiste numa reação crítica às abordagens estri- -motoras” emergirem. Enfim, segundo Varela (2003, p.
tamente abstratas das ciências cognitivas, onde a cogni- 78), “são os colapsos que constituem a origem do lado
ção é reduzida a um processo formal de processamento autônomo e criativo da cognição viva”, fazendo coemer-
de informações descolado da experiência vivida num gir sujeito e mundo/objeto na experiência concreta.
contexto concreto (biológico/cultural). Neste sentido, Apesar de apostar no aspecto de criação da subjeti-
Varela (2003, p. 79) afirma que “o ponto de partida para vidade e do mundo, esta perspectiva enativa revela que
a abordagem enativa é o estudo sobre como o ‘sujeito a cognição possui em si a “tendência de resolver os pro-
percipiente’ orienta suas ações em situações locais”, de blemas” que são colocados nos contextos biológicos e
modo que as faculdades cognitivas são ligadas ao histó- culturais. Movida pelo impulso de perseverar na existên-
rico do que é vivido pelo sujeito. Derivado do inglês to cia, a vida encontra nos processos adaptativos um meio
enact, enação é um conceito cunhado por Varela (1996) para esta finalidade em todos os seres viventes. Em todo o
que significa “efetuar”, “pôr em ato”, “atuar”, marcando reino animal, a ferramenta basicamente utilizada em prol
a indissociabilidade entre a ação e o ator, entre o fazer e desta garantia é o “instinto”, enquanto que para alguns
o ser, de modo que o sujeito não tem uma preexistência antropóides4 e para os seres humanos também se desen-
independente de sua ação no mundo. Mas o mundo tam- volveu a “inteligência” (BERGSON, 2005). Em ambos os
bém não preexiste ao sujeito da ação, pois “coemerge” casos, o ponto de partida é a constituição dos corpos vi-
com ele no próprio ato, o que marca o “aspecto onto- vos a partir de duas faces, sensorial e motora, que diferem
genético” de sua perspectiva cognitiva. Disto depreen- em complexidade entre as espécies animais. De um lado,
de-se que o mundo muda a partir das ações do sujeito. a percepção estabiliza as imagens a partir de um recorte
O “novo mundo” percebido incita, por sua vez, “novas do meio, e de outro, o vivo elabora e efetua a ação mais
ações” do sujeito, que mais uma vez mudam o mundo, apropriada de maneira a tirar proveito da situação em que
possibilitando novas ações, e assim sucessivamente, se- está inserido. Assim, as formas de resolução de problemas
guindo uma deriva de auto-engendramento do sujeito e diferem a cada espécie, porém mantém-se com o mesmo
do mundo no decorrer das situações concretas vividas. propósito: garantir a adaptação do ser vivo.
O que se vê nesta perspectiva é a sucessiva conexão Neste sentido, de acordo com o filósofo Henri Berg-
entre percepção e ação, num sentido muito próximo ao son (2006, p. 158), a percepção é um auxiliar da ação, “ela
elaborado por Uexküll. O caráter histórico desta operação isola, no conjunto da realidade, aquilo que nos interessa;
revela, por sua vez, o modo como se opera a gênese dos mostra-nos menos as coisas mesmas do que o partido que
modos de perceber do sujeito e da realidade a ele atrelada delas podemos tirar”. Da relação e do ajustamento entre
por meio de suas ações. Segundo Varela (2003), é através percepções e ações, em cada espécie, resulta a formação
da recorrência entre uma determinada “situação concreta de esquemas habituais ou automáticos que terminam por
percebida” e uma “prontidão para ação” a ela associada “naturalizar” ou corporificar o conjunto dos “dados úteis”
que emergem, ao mesmo tempo, os “micromundos” e as do meio como constituindo a própria realidade. Há, por-
“microidentidades”. Deste modo, o aspecto recorrente tanto, uma coemergência de percepção e ação, tal como
da conexão entre percepção e ação forma não somente Varela nos apontou acima, no entanto sem ressaltar que
o conjunto das estruturas cognitivas corporificadas, mas este processo coemergente é conduzido por um princípio
também dá à realidade, que emerge na percepção, um utilitário e adaptativo. Assim, a percepção utilitária forne-
caráter concreto. Contudo, o concreto para Varela não é ce uma imagem estática e indubitável da realidade sobre a
sinônimo de estabilidade, como se a realidade ganhasse qual a ação, também utilitária, irá incidir.
3 Esta ilusão relativista está presente em algumas das abordagens da psicologia Esta imagem ou conjunto de imagens que dão à reali-
animal, sobretudo no Behaviorismo e no Gestaltismo (FERREIRA, 2010; PEN- dade um aspecto “natural” constituem, no caso específico
NA, 1973). Em tais perspectivas da psicologia, há um preconceito do experi-
mentador em atribuir ao campo experimental a “presença” dos estímulos a serem da percepção humana, o que o terapeuta corporal Hubert
percebidos pelo animal. No entanto, de acordo com Uexküll (1982, p. 41), “este
mundo ambiente não é mais do que o nosso mundo-próprio humano” que proje-  Experiências de resolução de problemas com chimpanzés na perspectiva da psi-
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tamos sobre o mundo-próprio do animal nas situações experimentais. cologia da Gestalt são relatadas em: Köhler (1978).

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Godard (2006) chama de “olhar objetivo”, ou objetivan- A filosofia de Bergson (2006, p. 157), por sua vez,
te, ligado à história do indivíduo e também à linguagem, expressa uma direção semelhante à de Merleau-Ponty, ao
e que contribui para imputar um “aspecto ontológico” à considerar que a visão que ordinariamente temos dos ob-
realidade percebida. Neste sentido, o que ordinariamente jetos exteriores e de nós mesmos é:
denominamos como “atenção” não passa desta forma de [...] uma visão que nosso apego à realidade, nossa necessi-
apreender a realidade a partir de uma perspectiva estrita- dade de viver e de agir, nos levou a estreitar e esvaziar; [...]
mente objetiva, passando de um “dado” a outro, ou por e que as necessidades da ação tendem a limitar o campo da
aspectos mais ou menos complexos de um ou vários “da- visão; [...] [de modo que] a percepção distinta é simples-
dos” de uma mesma realidade objetivada. mente recortada, pelas necessidades da vida prática, num
Até aqui vimos algumas indicações de como se dá conjunto mais vasto.
a gênese da “percepção natural” (BERGSON, 1990), ou No entanto, Bergson e Merleau-Ponty vão além ao
melhor, das perspectivas objetivas que se produzem a propor duas vias possíveis que nos possibilitariam ex-
partir da relação entre nosso corpo e o mundo material pandir nossas faculdades de perceber: a arte e a própria
que nos envolve no decorrer de nossa história. No en- filosofia. Nas palavras de Merleau-Ponty (2004, p. 1-2),
tanto, este processo de objetivação da realidade nos faz “um dos méritos da arte e do pensamento modernos [...]
“virar as costas” ao processo contínuo de gênese da per- é o de fazer-nos redescobrir esse mundo em que vive-
cepção que viabiliza sua transformação e assentarmo-nos mos, mas que somos sempre tentados a esquecer”. Para
sobre as perspectivas já constituídas em nossa experiên- Bergson (2006, p. 159), haveria uma operação comum
cia. Desse modo, passamos a ignorar a possibilidade de à arte e à filosofia no sentido de ampliar as faculdades
retomar os processos de gênese e de fazermos mudar ou de perceber que consiste em produzir um deslocamento
variar nossas perspectivas sobre o “mundo conhecido”. da nossa atenção utilitária: “tratar-se-ia de afastar essa
É justamente esta possibilidade que nos incita a deline- atenção do lado praticamente interessante do universo e
ar o problema que pretendemos abordar, partindo do se- de voltá-la para aquilo que, praticamente, de nada ser-
guinte questionamento: como compreender a percepção ve”. Por fim, Godard (2006, p. 73) nos diz que o “olhar
a partir de uma perspectiva ontogenética, isto é, como objetivo” coexiste com um “olhar subjetivo”, que “é um
um processo contínuo e heterogêneo responsável tanto olhar através do qual a pessoa se funde no contexto, não
pela emergência dos “dados” objetivos, que possibilitam há mais um sujeito e um objeto, mas uma participação no
nossas ações utilitárias, quanto pela mudança de nossos contexto geral. Então, esse olhar não é interpretado, não
modos de perspectivar a realidade, que permite transfor- é carregado de sentido”.
mar nossas configurações subjetivas?
Inspirado na perspectiva da artista e terapeuta bra-
Dito de outro modo, nossa proposta de investigação sileira Lygia Clark, Godard ressalta a importância do
pode ser colocada da seguinte maneira: ao invés de pen- olhar subjetivo tanto no campo da criação da obra de arte
sar a gênese da percepção a partir dos dados objetivos quanto no campo da clínica psicoterápica. Neste sentido
já constituídos e estáveis em nossa subjetividade, buscar ele aponta que Lygia Clark realizou uma “revolução no
compreender como estes dados emergem de um processo nível da percepção” tanto em suas obras de arte quanto
relacional metaestável que se mantém continuamente sob em sua abordagem clínica, já que “as duas trabalham so-
a forma de tensão entre nosso corpo e o ambiente em que bre uma remodelagem e uma recolocação da percepção
estamos inseridos. Segundo nossa hipótese, o acesso a em movimento” (GODARD, 2006, p. 75). No entanto, é
este processo metaestável que permite a ampliação das preciso compreender que esta “revolução da percepção”
nossas faculdades de perceber tem por condição a sus- não consiste em substituir o “olhar objetivo” pelo “olhar
pensão dos laços utilitários entre nossos modos automa- subjetivo”, mesmo que Lygia Clark aponte sempre a im-
tizados de perceber e agir. portância deste último para a criação da arte e da subjeti-
Alguns dos autores supracitados oferecem indicações vidade, mas em produzir um movimento de ir e vir entre
que nos auxiliarão a pensar um desenvolvimento inicial ambos. Assim, parte-se da ideia de que os dois operam ao
desta questão, entretanto é o filósofo Merleau-Ponty mesmo tempo, mas que a recorrência histórica de nossa
(2004, p. 1) quem melhor apresenta o delineamento dis- percepção produzirá um filtro através do qual passamos a
parador de nossa problemática, ele nos diz: perceber “sempre a mesma coisa” e encontramos dificul-
O mundo da percepção, isto é, o mundo que nos é revelado dade em “reinventar os objetos do mundo”, constituindo
por nossos sentidos e pela experiência de vida, parece-nos o que Lygia Clark denominou de “neurose do olhar”.
à primeira vista o que melhor conhecemos, já que não são A direção do tratamento, nesta perspectiva, consisti-
necessários instrumentos nem cálculos para ter acesso a ria então em buscar de alguma maneira mover esse filtro,
ele e, aparentemente, basta-nos abrir os olhos e nos dei- mas como? Godard nos indica:
xarmos viver para nele penetrar. Contudo, isso não pas-
Pode-se ver que nos dispositivos, nos acontecimentos ou
sa de uma falsa aparência. [...] Esse mundo é em grande
coisas desta ordem, realizados por Lygia, há uma tentativa
medida ignorado por nós enquanto permanecemos numa
de modificar essa posição do olhar, de refazer um mergulho
postura prática ou utilitária.
num olhar subjetivo onde há uma perda das noções gravi-
tacionais e outras, permitindo atingir um olhar talvez mais
primeiro ou menos manchado de linguagem, [...] o que per-

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Danilo Melo

mite participar completamente das coisas do mundo antes de DELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de
engessá-las numa interpretação (2006, p. 73, grifo do autor). Janeiro: J. Zahar, 2007.
Enfim, é sempre rumo ao “olhar subjetivo” que a traje- DEWEY, J. O conceito de arco reflexo. In: BORING, E. G.;
tória de Lygia Clark se pôs em movimento, possibilitando HERRNSTEIN, R. J. (Org.). Textos básicos de história da
que abandonemos essa espécie de segurança do “olhar ob- Psicologia. São Paulo: Herder/Edusp, 1971. p. 197-220.
jetivante” a partir dos encontros que ela cria com o inau- DO EIRADO, A. et al. Memória e alteridade: o problema das
dito através dos materiais de sensibilização dos sentidos, falsas lembranças. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 75-
fazendo do corpo o lugar onde a intervenção clínica e a 86, 2006.
criação artística se tornam indiscerníveis. Neste sentido, DO EIRADO, A. et al. Estratégias de pesquisa no estudo
embora Lygia Clark se expresse em termos de “olhar”, da cognição: o caso das falsas lembranças. Psicologia &
a percepção deve ser compreendida como um fenômeno Sociedade, Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 84-94, jan./abr. 2010.
por meio do qual todo o corpo se relaciona com aspectos CrossRef.
intrapsíquicos e extracorpóreos, ou seja, como um proces-
so de “mediação” entre a interioridade subjetiva e a exte- FERREIRA, A. A. L. (Org.). Percepção. In: ______. A
pluralidade do campo psicológico. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
rioridade objetiva do mundo que envolve o corpo. Este
p. 215-251.
processo de relação mediadora dos sentidos de si e do
mundo, pela percepção, nos oferece uma compreensão da FOUCAULT, M. A psicologia de 1850 a 1950. In: MOTTA, M.
“corporeidade” como um processo contínuo e paradoxal B. (Org.). Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria
de produção de automatismo e de criação, de contração e e Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
Coleção Ditos & Escritos, v. 1, p. 133-151.
de expansão, de corporificação e de mudança.
Por fim, essa experiência paradoxal expressa entre GODARD, H. Olhar cego. Entrevista com Hubert Godard,
por Suely Rolnik. In: Lygia Clark: da obra ao acontecimento.
as duas modalidades da percepção propostas por Lygia
Somos o molde. A você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do
Clark, ilustra a nossa hipótese de uma “perspectiva on- Estado de São Paulo, 2006. p. 73-80.
togenética” dos fenômenos perceptivos. Isto é, ao in-
vés de simplesmente partir dos aspectos “objetivados” GONDAR, J. Ciências humanas e transdisciplinaridade: a
da percepção, buscar compreender e fazer emergir seus relação da ciência com a linguagem. História & Perspectivas,
Uberlândia, n. 25/26, p. 81-97, 2002.
aspectos “subjetivos” que são condição de toda objeti-
vação e de toda transformação da percepção objetiva. É GONDAR, J. Quatro proposições sobre memória social. In:
justamente a compreensão e a emergência deste aspecto GONDAR, J.; DODEBEI, V. (Org.). O que é memória social?
“subjetivo” que põe a percepção em movimento que pre- Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2005. p. 11-26.
tendemos trazer para o debate com as teorias e sistemas GUATTARI, F. A transversalidade. In: ______. Psicanálise e
psicológicos, a fim contribuir para a ampliação do campo transversalidade: ensaios de análise institucional. Aparecida,
conceitual da psicologia, tanto no que diz respeito aos SP: Ideias e Letras, 2004. p. 101-117.
aspectos teóricos dos estudos dos processos cognitivos GUILLAUME, P. Psicologia da forma. São Paulo: Companhia
quanto no plano prático das intervenções terapêuticas. Editora Nacional, 1960.
Concluímos, portanto, que o estudo da gênese e da trans-
KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo. Campinas: Papirus,
formação da percepção implica, não apenas para estes
1999.
campos supracitados, mas para a diversidade de todo o
campo da psicologia, em tornar extremamente relevan- KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. Políticas da
te o papel do corpo enquanto sede de emergência dos Cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008.
processos psicológicos e foco de intervenção clínica, fa- KOFFKA, K. Princípios de psicologia da Gestalt. São Paulo:
zendo da vida que nele encarna um contínuo movimento Cultrix/Edusp, 1975.
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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 103-109, 2017
Percepção e Ontogênese: modulações transdisciplinares da subjetividade

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Recebido em: 13 de novembro de 2016
Aceito em: 2 de junho de 2017

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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 110-117, maio.-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2160
Dossiê Corporeidade

Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer juntoH


Erika Alvarez Inforsato,HH Eliane Dias de Castro, Renata Monteiro Buelau, Isabela Umbuzeiro
Valent, Christiana de Moraes e Silva, Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Resumo
O desenvolvimento de pesquisas e metodologias na interface arte, corpo, saúde e cultura é uma experiência de multiplicidade,
produção de corporeidade e cooperação com o território e implica o cultivo de práticas que proponham soluções inventivas para
a população envolvida. A experiência aqui apresentada investe em estratégias de atenção e formação em Terapia Ocupacional,
pautadas nos conceitos e práticas do corpo, das artes, da produção de subjetividade e da participação social; em diálogo com as
políticas públicas de saúde e cultura, a partir da construção de redes, agenciamentos territoriais e circulação de estudantes e da
população atendida pela cidade.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional/educação; corpo; produção de subjetividade; rede arte/saúde/cultura; políticas públicas.

Art, body, health and culture in a territory of doing together


Abstract
The development of studies and methodologies in the interface of arts, body, health and culture is an experience of multiplicity,
production of corporeity and cooperation with the territory. It implies the promotion of practices that propose inventive solutions
for the people involved. The experience presented here invests in strategies of attention and training in Occupational Therapy,
based on the concepts and practices of the body, the arts, the production of subjectivity and social participation; in dialogue with
public policies on health and culture, based on the construction of networks, territorial assemblages and transit of students and
the population assisted throughout the city.
Keywords: Occupational therapy/education; body; production of subjectivity; art/health/culture net, public policies.

1. Introdução As perspectivas, abertas ao campo da Terapia Ocu-


No tempo e na relação com o trabalho compulsório, pacional (TO) e das Artes, assumem sentidos múltiplos,
encontrar o trabalho possível, pulsante, que faz corpo e pois preparam terapeutas ocupacionais para atuar de for-
dá corpo a conjuntos de exercícios que ocorrem sob pro- ma interdisciplinar, ao introduzir conteúdos transversais
tocolos acadêmicos e que escapam a eles. A elaboração à formação em diferentes áreas de atuação, enfatizando
processual e a construção coletiva do trabalho de forma- a inscrição da TO em territórios culturais e artísticos.
ção que acolhe as condições do momento presente. Inven- Nesse deslocamento, as ações de formação arrastam con-
tar saídas que proponham tensionamentos com o modo sigo as populações tradicionalmente fixadas no territó-
habitual de produção na universidade é a trajetória do rio de equipamentos e práticas da saúde e tensionam a
Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia disposição do campo artístico-cultural a criar condições
Ocupacional – FMUSP, que tem constituído uma propos- para esse alargamento de seus contornos. Essa formação
ta de formação de artistas e terapeutas ocupacionais num implica a produção e o desenvolvimento de práticas que
território de interface entre as artes, o corpo, a saúde, e proponham soluções inventivas para as pessoas e grupos
a cultura. No cotidiano dessa experiência, articulam-se em situação de vulnerabilidade envolvidos nessas ações
atividades de sensibilização e experimentações em práti- - em sua maioria marcados por experiências com defici-
cas corporais e artísticas com ações interdisciplinares de ências, sofrimento psíquico e outras situações de ruptura
construção de redes e cooperação com o território, acom- das redes sociais e de suporte. Fica assim, favorecido o
panhadas de estudos que abordam a clínica e a produção acesso a serviços, equipamentos e práticas de arte, cor-
de subjetividade numa perspectiva ético-estético-política. po e cultura, correspondendo a aspectos sociais e coleti-
vos necessários para dar lugar a novos modos de existir
que possam resistir e enfrentar aqueles soterrados pelos
H
 O trabalho integrado de ensino, pesquisa e extensão desenvolvido pelo Labo- funcionamentos predominantes. Numa perspectiva trans-
ratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional – FMUSP disciplinar as ações e projetos construídos na fronteira
tem recebido apoio e financiamento de diferentes agências de fomento; en-
tre elas: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), dos campos das Artes, da Educação, da Psicologia, da
com bolsas de Iniciação Científica, Mestrado e Auxílio Pesquisa; Conselho Cultura e da Terapia Ocupacional têm por foco: a pro-
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com bolsas
de Iniciação Científica; Pró-reitora de Cultura e Extensão da Universidade de dução de cultura e subjetividade; o enfrentamento dos
São Paulo (USP), com bolsas do Programa Aprender com Cultura e Extensão. processos de institucionalização e de hegemonização dos
Essas bolsas estão associadas à pesquisa “Agenciamento cultural e cuidado
às populações em situação de vulnerabilidade social: construção e avaliação modos de fazer; e o investimento na instrumentalização
de tecnologias socioculturais no campo da terapia ocupacional”, que recebeu crítica em relação às padronizações na cultura, na educa-
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Uni-
versidade de São Paulo. ção e na saúde que insistem nas especialidades e rejeitam
HH
 Endereço para correspondência: Universidade de São Paulo, Faculdade de a dimensão múltipla e paradoxal no tratamento à vida.
Medicina da Universidade de São Paulo. Rua Cipotânea, 51 (CDP - Tera-
pia Ocupacional). Butantã, São Paulo, SP – Brasil. CEP: 05360160. E-mail: Elementos da clínica transdisciplinar (PASSOS; BAR-
erikainforsato@usp.br, elidca@usp.br, renatabuelau@usp.br, isabelauv@ ROS, R., 2004), da atenção psicossocial (AMARANTE,
gmail.com, christiana_moraes@hotmail.com, beth.araujolima@gmail.com
Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto

2007; YASUI, 2009), da produção de subjetividade (PE- reivindicando seu direito autoral; e outro que trabalhava
LBART, 2003) configuram-se como contribuições con- sobre superfícies grandes, com desenhos geométricos mis-
ceituais importantes para a construção dessa proposta teriosos, com cores abertas e que partiu em viagem de fuga
de formação e atenção na interface arte, corpo, cultura e com seu cachorro, vagando à pé até a exaustão no prédio
saúde (CASTRO et al., 2016). da universidade. E tantas e tantos que são a matéria mais
intensa e viva que dá consistência e motivo à existência re-
Para engendrar a formação desenvolvida pelo Labo-
siliente do trabalho do Laboratório (INFORSATO, 2016).
ratório no âmbito da graduação, especialização e pós-
-graduação, destacam-se os seguintes eixos: A consistência que essas imagens assumem nessa
narrativa recolhida de variadas situações vivenciadas nos
• construção de redes, agenciamentos territo-
atendimentos, que aparecem em trânsito nas reuniões, su-
riais e circulação de estudantes e das pessoas
pervisões, seminários e discussões coletivas do Laborató-
e grupos acompanhados nas ações pela cida-
rio, dão a ver um pouco do exercício de deixar coincidir
de, exercitando formas de uma corporeidade
corpos num território de fazer junto, inventar um corpo
no encontro com outros corpos nas vivências
comum. É uma tentativa cotidiana, incentivada no âmbito
do cotidiano;
da formação no Laboratório, na perspectiva de cartografar
• produção de experiências e pesquisa de meto- aquilo que se trama no encontro entre estudantes, profis-
dologias em corpo e arte para ativar uma sen- sionais e a população envolvida nas ações da vida cos-
sibilidade estético-clínica que opere aberturas tumeira. Um registro que traça os percursos que devem
na expressão dos terapeutas e artistas em for- menos servir a dar respostas e mais a aplacar o ímpeto
mação; e intervencionista dos profissionais em ação. Acompanhar
• estudos e exercícios críticos numa perspecti- esses caminhos, delinear seus mapas, construir marcações
va ético-estético-política, para a construção sensíveis desses trajetos, conforme o pensamento de Fer-
de uma atuação comprometida com pessoas e nand Deligny (apud MIGUEL, 2015, p. 61),
grupos em situação de vulnerabilidade no que [...] é o modo mesmo de traçar o corpo comum. [...] os ma-
concerne a conflitos emergentes da atualida- pas não são instrumentos analíticos, nem tampouco de um
de, estratégias políticas afirmativas e proposi- saber positivo. Os mapas, para falar a verdade, não dizem
ções de políticas públicas intersetoriais. muita coisa, senão que nós não sabemos, de forma alguma,
2. Construção de redes, agenciamentos territoriais do que se trata nem o humano, nem o comum. Os mapas são
e circulação de estudantes e das pessoas e grupos antes dispositivos performáticos e de evacuação: evacuação
acompanhados da linguagem verbal e da angústia terapêutica. Por um lado,
os mapas servem para tratar a angústia daqueles que supos-
Vai e vem. Bolo, refrigerante, biscoito, bala, café e coxi- tamente devem tratar [...].
nha. Atravessam a rua, com cuidado para não encostar no
ombro de alguém que pode empacar em meio à faixa de E se nesse desconhecido somos impelidos pelo enre-
pedestres. E vão pro museu, pro centro de treinamento do damento da universidade a realizar projetos, podemos di-
corpo de bombeiros, pro parque, pro shopping, pra lugar zer que ocorre aí um agenciamento de redes e a produção
nenhum. Esses vão. Outros toda semana encontram-se, em de tecnologias socioculturais para o desenvolvimento de
torno a uma mesa aguardada em disputa num espaço de práticas de intervenção social correspondendo a deman-
circulação pública, e trazem lápis, aquarela, papéis de pro- das deflagradas no campo da saúde, na relação com os
paganda, fitas colantes, e café. Um dia a garrafa térmica direitos sociais, com as estratégias políticas afirmativas e
voou porta afora do ônibus, numa freada brusca; compra- no empenho de produção coletiva da vida.
ram uma nova! E também de manhã, duas ou três moças No caos da cidade, o emaranhado de corpos, as in-
estudantes entram numa casa soturna, e uma senhora está tensidades dos encontros e a vida coletiva imprimem
pronta na varanda, e outra precisa ser aguardada, com os
registros que demandam tempo e espaço para serem deco-
cabelos desgrenhados, vagando com um pedaço de pão até
dificados e melhor compreendidos. O corpo vibra, produz
encontrar o vestido com o qual quer fazer sua aparição
excitação, contrai-se, quer contato, evita contato, torna-
naquele dia; tomam o ônibus com a carteira vencida, e
-se território de enunciação das experiências, matérias
contam com a condescendência dos motoristas que gentis
as deixam na esquina mais próxima, fora do ponto. E mais,
de fabricação de novas vitalidades. Terapeutas, artistas e
também numa casa em reforma, outra moça estudante, en- participantes compartilham a sustentação dos encontros,
contra com a mulher que virou criança adequada, educada, acolhem as forças que se fazem nos corpos, nos múltiplos
que pede autorização pra tomar água e pra pegar o pincel. aprendizados que se dão em ato e instauram exercícios
Elas conversam de histórias que já foram dessa mulher, de cooperação e de produção do comum. A tensão des-
driblam a insistente interrupção da mãe, vão à biblioteca se esforço faz-se presente na formação, é acolhida pelos
no parque e muitas vezes saem para um sorvete na rua. supervisores e pelo próprio empenho dos estudantes com
E há histórias que estranhamente são passado: um rapaz sua participação e responsabilização possível no proces-
que fora acompanhado e acompanhou diversas estudantes, so. Tarefas exigentes e complexas que demandam mui-
dormindo, tomando cafezinho, pintando quadros com cores tos cuidados: invenção de práticas, criação de mundos,
densas, e pedindo para passar o boneco no pinto; e ou- elaboração de afetos e de experiências de exclusão, que
tro inventor de ideias engenhosas que esticou as bordas da restituem possibilidades de emancipação e vida comum.
atuação do laboratório até contornos do sistema judiciário

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Erika Alvarez Inforsato; Eliane Dias de Castro; Renata Monteiro Buelau; Isabela Umbuzeiro Valent; Christiana de Moraes e Silva; Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima

Para a construção e consolidação das ações desen- tos da esfera pública do território da Lapa” (CASTRO;
volvidas são estabelecidas parcerias com equipamentos LIMA; NIGRO, 2015, p. 128). À medida que este tra-
e serviços da rede pública de saúde e de cultura, proje- balho conjunto avançava, outros equipamentos da região
tos autônomos e organizações não-governamentais com foram se articulando numa rede de atenção que incluiu a
finalidade pública. Nesse âmbito, encontram-se práticas Biblioteca Municipal da Lapa, o Serviço Residencial Te-
em rede que organizam diferentes modalidades de ins- rapêutico da Lapa, a Casa de Cultura Tendal da Lapa, o
crição dos usuários de serviços de saúde na trama socio- Cecco Bacuri, o Senac e outros grupos e equipamentos de
cultural, ampliando o campo assistencial e experimental saúde, educação e cultura da região. A partir daí, consti-
e o número de pessoas beneficiadas. Na medida em que tuiu-se o Agenciamento Territorial Lapa, um movimento
o entendimento da dimensão coletiva e pública da inter- de conexão para mapeamento de equipamentos da saúde,
venção vai entrando em foco, a percepção se amplia e educação e cultura da região, articulação de redes, esta-
um novo plano de colaboração se estabelece. A formação belecimento de parcerias, discussão e realização de ações
se faz no estabelecimento de uma posição ética que abre de renovação cultural no território. Foram implementadas
passagens para a vida, instaurando um desafio político de propostas de oficinas com linguagens artísticas e artes do
emancipação de todos os envolvidos. corpo, grupos de circulação cultural, além de reuniões en-
Do conjunto dos projetos que atualmente compõem tre os serviços que compõem o Agenciamento.
os cenários de formação prática dos estudantes ligados ao Entre as ações desenvolvidas destacamos o proje-
Laboratório, e que potencializam a construção de redes e to Território Cultural, voltado para experimentações de
os agenciamentos territoriais, para efeito deste trabalho, acesso, circulação e apropriação territorial. Coordenado
serão destacados o Projeto Cultura Itinerante, o Agencia- coletivamente pelos estagiários de Terapia Ocupacional,
mento Lapa e a parceria com o Centro de Convivência e tem a participação de uma população adulta heterogênea,
Ponto de Cultura É de Lei. e está voltado à convivência e circulação pelo território,
Projeto Cultura Itinerante buscando mobilizações com experimentações e interven-
ções do campo das artes na relação com a cidade e o ca-
O projeto Cultura Itinerante foi apresentado em 2012 minhar, o que ocorre através da circulação por transportes
ao Edital da III Chamada de Seleção de Projetos de Rea- públicos, exploração do entorno, reconhecimento dos tra-
bilitação Psicossocial: trabalho, cultura e inclusão social jetos e expansão do repertório de serviços e equipamen-
na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) pelo Centro de tos culturais. O projeto investe também na sustentação da
Convivência e Cooperativa Parque da Previdência (CEC- experiência nos trajetos e nos locais visitados, traçando
CO Previdência) em parceria com a UBS Jd. Boa Vista, a redes de pertencimento. Aspectos como a heterogeneida-
UBS Jd. São Jorge, o CAPS Butantã e diferentes Labora- de das histórias de vida, o direito à participação, a inten-
tórios do Curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de sificação de experiências culturais e o estabelecimento de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Seu trocas entre os participantes e a cidade suscitam desloca-
propósito principal é contribuir com a Rede de Atenção mentos sensíveis, individuais e coletivos.
Psicossocial na região do Butantã através do fortaleci-
mento e da articulação de experiências e ações culturais Centro de Convivência e Ponto de Cultura É de Lei
já desenvolvidas no território em torno de um projeto Tessitura gradual e delicada ocorre com a parceria
comum, que visa potencializar e valorizar os espaços de do Laboratório com o Centro de Convivência e Ponto
sociabilidade e trocas, o acesso à cultura e a capacidade de Cultura É de Lei. O acordo de cooperação faz-se de
criativa de sujeitos e coletivos. Através da implantação modo a estabelecer trocas importantes para a formação
de espaços compartilhados de capacitação, discussão e de estudantes de terapia ocupacional no que concerne
afirmação do trabalho no campo da reabilitação psicosso- ao desenvolvimento de proposições culturais e artísticas
cial, da cultura e das artes o projeto favorece momentos públicas e abertas a qualquer um, com foco em criar es-
de convivência entre profissionais e usuários, impulsiona tratégias para acolher a participação de pessoas em situ-
o processo inventivo dos grupos envolvidos, investe no ação de vulnerabilidade associada ao uso de drogas, com
repertório de criação e viabiliza o compartilhamento das destaque para a população em situação de rua. As ativida-
produções materiais e imateriais da comunidade local.1 des compõem estratégias de Redução de Riscos e Danos
associados ao uso de drogas e acontecem no Ponto de
Agenciamento Territorial Lapa
Cultura É de Lei, localizado no centro da cidade de São
A parceria do PACTO com o Centro de Atenção Psi- Paulo e em diferentes espaços públicos da cidade. Desde
cossocial (CAPS) da Lapa, construiu uma cooperação com 2013, os estudantes do Laboratório compõem as equipes
os terapeutas ocupacionais do serviço e gerou, “uma tes- do núcleo de cultura para acompanhamento de ações de
situra complexa de práticas na atenção clínica e formação criação em linguagens artísticas; agenciamento de pro-
profissional que interferiu na organização de equipamen- cessos coletivos de produção cultural e cultura digital;
1
 Documento não publicado, elaborado por representantes do CECCO Parque da
apropriação do território da cidade e articulação de co-
Previdência, UBS Jd. Boa Vista, a UBS Jd. São Jorge, o CAPS Butantã e dos letivos. O Laboratório também tem oferecido um espaço
seguintes Laboratórios do Curso de Terapia Ocupacional na USP: Laboratório
de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional (PACTO); Laboratório
de assessoria à equipe de Práticas de Redução de Danos,
de Investigação e Intervenção em Saúde Mental (CONEXÕES); Laboratório de para encontrar elementos analisadores que modifiquem
Reabilitação com ênfase no Território (RBC); Laboratório de Estudos em Rea-
bilitação e Tecnologia Assistiva (REATA); Laboratório de Estudos e Ações em
as configurações centrais, desnaturalizando processos, e
Terapia Ocupacional e Gerontologia (GeronTO).

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Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto

verificando nas circunstâncias atuais da instituição, mo- A expressão é aquilo que faz ponte, caminho entre
dos de minimizar o sofrimento no cotidiano de trabalho e os eventos e seus elementos constitutivos, que faz uma
potencializar o projeto coletivo. junção temporária para acomodar o que vem. Não se trata
Nos três projetos acima descritos o adensamento de de explicar, interpretar, nem de revelar. “Uma expressão
conceitos e práticas do corpo, das artes e da cultura, tanto é tanto melhor quanto mais nos incita a pensar o que ain-
nos atendimentos quanto na formação, colocam em opera- da não foi pensado através do que se tem por adquirido,
ção a produção de conhecimentos e afetos que instauram e ela só se mantém viva ou em uso porque através dela
um território de confiança para a produção da saúde e dos ainda nos ligamos ao mistério do exprimido” (FURLAN,
direitos de participação sociocultural. O cotidiano das prá- A.; FURLAN, R., 2005, p. 32). Diferentemente da re-
ticas busca restaurar uma corporeidade porosa e sensível presentação das vivências, a solicitação é por uma forma
nos modos de se comunicar, de cooperar, de viver junto. que possa dar importância aos acontecimentos, um conti-
nente que funcione favorecendo o acompanhamento dos
3. Produção de experiências e pesquisa de processos, onde as experiências possam pousar e seguir
metodologias em corpo e arte na formação em seu incômodo, sua indagação, indicando outros aconteci-
Terapia Ocupacional mentos. O próprio experimento estético-clínico inventa
O Laboratório, através de seu projeto didático-as- um novo processo, a partir da recombinação do vivido.
sistencial PACTO, investe na produção de experiências Produzido conjuntamente e atrelado aos demais pro-
e pesquisa de metodologias em corpo e arte para ativar cedimentos (supervisão, práticas grupais nos projetos
uma sensibilidade estético-clínica que opere aberturas na acompanhados, ateliês, orientações, estudo e visitas), os
expressão dos terapeutas e artistas em formação. experimentos-estéticos clínicos devem compor uma rede
Foram produzidas estratégias a partir de relações aguda para que a distância entre a assistência/mediação
conceituais com a filosofia – política e estética –, a psi- nos projetos e a pesquisa/registro na formação profissio-
cologia e a sociologia, especialmente, em exercícios de nal se ajuste. No decurso do processo formativo, cada
nomeação, descrição e interlocução que sustentam a ex- estudante prepara este experimento ao modo de uma car-
perimentação e o desenvolvimento de suas ações clínicas, tografia: encontrando formas provisórias para “a rede de
artísticas e culturais com a população atendida, os profis- forças” à qual a prática em questão se encontra conecta-
sionais e estudantes envolvidos. Para tanto, experiências da, “dando conta de suas modulações e de seu movimen-
de acompanhamento combinam-se com experimentações to” (BARROS, L.; KASTRUP, 2009, p. 57). O resultado
estéticas que possam dar lugar a afetos e marcas produ- deve funcionar como registro do período em que se dá
zidos nos encontros e, ao mesmo tempo, oferecer ferra- o percurso da prática, e as sensações são seu ponto de
mentas para a instauração de processos de criação que partida, com o objetivo de construir um território com
possibilitem a aprendizagem e a passagem desses afetos várias teias, suficiente para dar consistência às experiên-
do plano das forças ao plano das formas. Neste artigo, cias vividas naquele momento. As sensações referem-se
serão apresentadas, como exemplos, as estratégias dos não só aos órgãos do sentido, mas principalmente à sen-
Experimentos Estético-Clínicos e dos Encontros de Sen- sibilidade e ao pensamento produzidos no contato com
sibilização em Artes. os elementos implicados nas práticas de formação e com
Experimentos Estético-Clínicos outras regiões da vida que a elas possam associar-se de
modo livre e atemporal.
Diversos formatos têm sido adotados para estreitar
Cada experimento estético-clínico é desenvolvido em
o enlace entre a assistência/mediação nos projetos e a
continuidade, sob etapas definidas para as apresentações.
pesquisa/registro na formação profissional. Cadernos de
Neles devem constar descrições das situações, elabora-
campo, diários de campo, cadernos de artista - instru-
ções, associações, comentários, citações, referências,
mentos das artes, do corpo, da antropologia, e da clínica
grafismos, pinturas, colagens, cópias, fotos, dobras, tex-
foram empregados para buscar esta aproximação (DU-
turas, gestos, ritmos etc., que mantenham algum tipo de
ARTE; INFORSATO, 2011).
relação com o vivido. Em cada apresentação do mate-
O experimento estético-clínico é, neste sentido, uma rial para apreciação ocorre uma interlocução/devolutiva
proposta de registro que conjuga exercícios a partir de na forma de um exercício crítico coletivo que contribui
estratégias clínicas do campo da Terapia Ocupacional, construindo parâmetros e destacando pontos de força.
de operações estéticas do campo das artes e de práticas
corporais visando aproximações com a região indetermi- Encontros de Sensibilização em Artes
nada entre estes territórios, a saber, as estratégias estéti- A necessidade e o desejo de estudar, conhecer e inven-
cas da TO e as operações clínicas das artes e do corpo. tar tecnologias de potencialização da participação socio-
Este embaralhamento que a zona fronteiriça destas áreas cultural capazes de diluir as imagens mais estereotipadas
apresenta é tomado como uma convocação sensível para em relação às populações comumente atendidas pela Te-
que cada estudante possa investir na busca pela melhor rapia Ocupacional, evitando as habituais arbitrariedades
expressão dos acontecimentos de sua prática, das marcas que observamos na maioria dos espaços sociais e forta-
e dos afetos que pedem passagem em seus corpos. lecendo ações em que as questões das artes e do corpo
possam servir àquelas da vida, mobilizou a proposição de
encontros de sensibilização em artes na formação.

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 110-117, 2017                               113


Erika Alvarez Inforsato; Eliane Dias de Castro; Renata Monteiro Buelau; Isabela Umbuzeiro Valent; Christiana de Moraes e Silva; Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima

O Laboratório experimenta diferentes composições e No âmbito deste eixo, apresenta-se abaixo a estraté-
proposições que viabilizam a pesquisa em torno dessas gia dos Grupos de Estudos e Seminários – que favorecem
estratégias, tais como: ações que tocam o campo da per- o exercício crítico na relação com a profissão – e o Gru-
formance e exercitam o caminhar pela cidade como uma po de Trabalho Arte, Saúde e Cultura, que se configura
prática estética; apresentação e discussão de referências do como uma contribuição do Laboratório, junto a parceiros
universo das artes e do corpo; visitas técnicas a museus, da rede de arte, saúde e cultura, na proposição de políti-
galerias, ateliês e espaços culturais; e construção de narra- cas públicas intersetoriais compromissadas com os direi-
tivas de cenas vividas a partir de procedimentos literários. tos das populações atendidas.
Entre essas proposições, também foram desenvolvi- Grupos de Estudos e Seminários
dos projetos voltados às questões da mediação em artes
Os grupos de estudo configuram-se para criar con-
com o Museu de Arte Contemporânea da Universidade
dições aos estudantes/profissionais de construírem um
de São Paulo (MAC/USP), a Fundação Bienal de São
trânsito por elementos conceituais que favoreçam a
Paulo e o Paço das Artes, nos quais estudantes e tera-
constituição de um corpo de referência para as práticas
peutas acompanharam percursos de grupos em visita
desenvolvidas no campo da Terapia Ocupacional em
guiada por educadores das instituições - com prioridade
sua interface com as artes, o corpo, a cultura, a clínica,
àqueles com populações de serviços de saúde e assistên-
o campo social e a educação. Através do estudo de te-
cia social. Essas parcerias foram multiplicadoras de um
máticas transversais, a leitura dos textos selecionados é
contato entre diferentes saberes de maneira cuidadosa
acompanhada da preparação de diagramas conceituais e
e acompanhada para a constituição de novos modos de
do levantamento de questões que subsidiem as discus-
atuação e intervenção junto às populações que acessam
sões coletivas orientadas. Os diagramas devem articular
e devem acessar os espaços e equipamentos de arte e
os conceitos-chave dos textos, privilegiando zonas de
cultura. Nessas ocasiões, o trabalho requereu um esfor-
contato entre eles. Por conceitos-chave consideraremos:
ço interdisciplinar para a construção de respostas mais
palavras, expressões e até mesmo citações, que devem
complexas às demandas das populações atendidas pela
ser conectadas por meio de setas, flechas, linhas, ponti-
Terapia Ocupacional, aos diversos frequentadores desses
lhados, sobreposições, cores, fitas, sinais, grafismos etc.
espaços, às questões mobilizadas pela arte contemporâ-
Comentários, observações breves, indicações e legendas
nea e aos atravessamentos institucionais e seus contextos
podem ser acrescentados. Cada conceito-chave deve ser
de inserção. No cruzamento dessas forças, acentua-se na
pensado e assinalado em relação aos demais através de
mediação sua função crítica e política, no sentido de pen-
indicações de bifurcação, tangência, avizinhamento,
sar-se “como uma negociação entre interesses diversos,
transversalidade, conexão, diferenciação, ruptura, impli-
sem nenhum poder conciliatório, e que não se exime de
cação, coexistência etc. O objetivo é traçar um panorama
evidenciar seus próprios interesses e contradições” (HO-
da compreensão de cada estudante, evidenciando pers-
NORATO, 2009, p. 61).
pectivas convergentes, dissonâncias e complementarida-
4. Estudos e exercícios críticos numa perspectiva des no contato com os materiais teóricos apresentados.
ético-estético-política Nesta direção ocorre também a preparação pelos es-
Diante de uma série de movimentos políticos que vi- tudantes de seminário coletivo com apresentação oral e
saram alterar o cenário de participação social de pessoas escrita para as equipes, de forma a produzirem uma con-
antes restritas a instituições fechadas (pessoas com defici- tribuição ativa para os profissionais com quem desenvol-
ência, com doenças degenerativas, com histórico de sofri- vem as práticas. Esta tarefa configura-se como exercício
mento mental e/ou em situação de vulnerabilidade social) de exposição dos entendimentos e questionamentos de-
inaugura-se contemporaneamente um panorama ético-po- correntes das concepções dos projetos e da extensão das
lítico. Algumas oportunidades começam a estruturar-se ações desenvolvidas pelo PACTO. Para o seminário de-
através de políticas públicas e legislações que estabele- vem convergir as articulações com os espaços de discus-
cem novos funcionamentos sociais, a partir da exigência são coletiva, as leituras e interlocuções que acontecem
de composição entre diferentes setores da sociedade. nos espaços de supervisão, coordenação e formação. A
A instauração desse panorama ético-político pede temática é selecionada de modo a contribuir com as dis-
a construção de ferramentas conceituais que permitam cussões da equipe, e agregar perspectivas para análise das
pensar os acontecimentos e localizar as ações de Terapia situações relacionadas aos respectivos campos de ação e
Ocupacional nas configurações atuais, numa perspectiva pesquisa. Com isso, oferece-se aos estudantes a possibili-
de problematização do presente e de construção de uma dade de compartilharem o estudo atualizado da bibliogra-
atuação comprometida com os direitos e com a proposi- fia, numa operação processual, com um pensamento em
ção de políticas intersetoriais. Isso exige da formação a trânsito que acompanha o movimento de um trabalho em
imersão num universo conceitual que possibilite a apro- desenvolvimento. A bibliografia, revista e atualizada se-
ximação ao campo da prática com olhar crítico e atento mestralmente, é definida levando-se em consideração as
às diferenças que se fazem no cotidiano dos serviços, nos experiências clínicas, políticas e institucionais implica-
projetos e nos modos de levar a vida. das neste trabalho de interface e o ponto de problematiza-
ção que as ações dos profissionais enfrentam, de modo a
apresentar ao profissional em formação o solo conceitual
que sustenta as práticas e as pesquisas do Laboratório.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 110-117, 2017
Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto

Acompanhar as ações de sujeitos com histórias com- de aos equipamentos de cultura não costuma se dar de
plexas implica, nos termos de Foucault (1984/2004), no forma espontânea e imediata devido aos diversos impedi-
exercício de pensar diferentemente, e remete a um campo mentos físicos, sociais, econômicos e simbólicos que elas
de inventividade a partir do acesso às múltiplas perspec- enfrentam cotidianamente. O encontro com a diferença
tivas que os diferentes campos do conhecimento podem produz mobilizações e tensionamentos nem sempre fá-
proporcionar. Assim, os textos indicados são provenien- ceis de serem manejados, mas não por isso devem ser
tes de diversos campos de saber que tangenciam as fron- neutralizados. Ao contrário, essas situações interessam
teiras das Artes, da Terapia Ocupacional, da Educação, do ponto de vista de ações éticas, comprometidas com a
da Filosofia e da Saúde. Isto envolve temáticas pautadas vida e os direitos humanos.
na contextualização histórico-conceitual da utilização A urgência de uma articulação intersetorial para a pro-
das atividades artísticas e práticas corporais no campo posição de políticas públicas mais transversais intensifica-
da saúde, no conhecimento de aspectos relacionados à -se no fato de que as experiências profícuas do ponto de
estética e história das artes, na compreensão das relações vista do encontro com a diferença e do trabalho desenvol-
entre processos de criação e processos de subjetivação, vido na interface das artes, da saúde e da cultura geralmen-
nos estudos da corporeidade e das abordagens corporais, te dependem, quase que exclusivamente, da sustentação
na construção de conhecimento técnico e metodológico individual e militância de alguns profissionais – o que
nestes campos, nas produções textuais recentes da TO coloca essas iniciativas em uma situação de fragilidade
que se aproximam das propostas do PACTO e, em uma incompatível com a necessidade destes espaços na cidade.
contextualização mais ampla, do encontro entre práticas
Dentre as ações já realizadas pelo GT, destaca-se o
clínicas e sociais (CASTRO et al., 2009).
“I Encontro Arte, Saúde e Cultura - construindo uma
Grupo de Trabalho Arte, Saúde e Cultura política Municipal de interface” (LOPES; VALENT;
A partir da mobilização de projetos, grupos e expe- BUELAU, 2015), na Praça das Artes - que contou com
riências dos serviços públicos de saúde e cultura, da so- a participação de aproximadamente 200 pessoas de dife-
ciedade civil e da universidade em direção às Secretarias rentes territórios da cidade, reunindo gestores, trabalha-
Municipais de Saúde e Cultura, surgiu, no início de 2014, dores, usuários, estudantes e pesquisadores, bem como o
o Grupo de Trabalho (GT) Arte, Saúde e Cultura. Atu- Secretário Municipal de Cultura e o Secretário Adjunto
almente composto por gestores, trabalhadores, represen- da Saúde em exercício naquele momento; o “I Encon-
tantes da universidade, da sociedade civil e da Câmara tro entre Centros de Convivência e Cooperativa, Casas
Municipal de São Paulo, este grupo busca construir es- de Cultura e Pontos de Cultura”, no Centro Cultural São
tratégias para a criação de políticas públicas situadas em Paulo; e o “II Encontro entre Centros de Convivência e
territórios de fronteira entre as artes, a cultura e o campo Cooperativa, Casas de Cultura e Pontos de Cultura”, na
social que potencializem a produção de saúde e cultura e Câmara Municipal de São Paulo - com a presença de ges-
ampliem a rede de diálogo interdisciplinar e intersetorial tores e trabalhadores vinculados a esses equipamentos
no município de São Paulo. nas diferentes regiões da cidade de São Paulo. Nos três
eventos foram levantadas fragilidades, potencialidades e
Este investimento do GT parte da percepção de que as
propostas para ações nesse campo de interface, de forma
experiências que acontecem na interface desses campos
a contribuir para a elaboração de uma Política Municipal
de intervenção e conhecimento se potencializam mutua-
de Interface. O GT também contribuiu, na etapa de con-
mente e contribuem para a produção de saúde, cidadania,
sulta pública, com a construção do Plano Municipal de
participação social e fortalecimento cultural. Identifica-
Cultura da cidade de São Paulo (2016), propondo ações
-se a necessidade de fomentar e ampliar estratégias que
práticas de sustentação e formação para o trabalho da
promovam a interdisciplinaridade e a sinergia de políti-
cultura na interface com outras dimensões da vida.
cas públicas intersetoriais, favorecendo, prioritariamen-
te, o encontro com a diferença e a ampliação de espaços O acúmulo de discussões a respeito deste campo colo-
de convívio e criação que não se reduzam a princípios ca o GT em condições de contribuir com a proposição de
culturais, artísticos, de saúde e/ou sociais hegemônicos, políticas públicas intersetoriais que incorporem a ética de
e sustentem a chamada diversidade cultural, para além respeito e valorização da diferença como princípio trans-
de categorias específicas, sejam elas sociais, diagnós- versal, e de propor ações práticas que possam oferecer
ticas, identitárias, étnicas, geracionais, etc. O GT parte condições efetivas de sustentação e formação para o traba-
do reconhecimento de que o convívio com a diferença, lho na cultura em interface com outras dimensões da vida.2
a acessibilidade e o exercício no campo cultural requer o 5. Um corpo que cria comum num território de fazer junto
investimento de diversos agentes e equipamentos traba-
lhando em parceria com o intuito de ampliar os espaços A dimensão investigativa e exploratória do trabalho
de pertencimento das populações que têm sua circulação desenvolvido no PACTO o situa num território no qual
frequentemente restrita aos equipamentos de saúde e/ou as questões são abordadas num recorte que considera a
assistência social e, simultaneamente, exige um distan- formação dos profissionais, a população atendida, a es-
ciamento do uso instrumental da arte e da cultura que co- 2
 Foram utilizadas para a elaboração deste item as informações contidas em docu-
mumente ocorre nas ações destinadas a essas populações. mentos não publicados, produzidos pelos integrantes do GT, tais como “Docu-
mento do GT Arte, Saúde e Cultura aos responsáveis pela elaboração do Plano
A chegada e sustentação das pessoas com deficiências, Municipal de Cultura da cidade de São Paulo” (2016) “Carta à Comissão de
sofrimento psíquico e/ou em situações de vulnerabilida- Educação, Cultura e Esporte da Câmara Municipal de São Paulo” (2016).

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Erika Alvarez Inforsato; Eliane Dias de Castro; Renata Monteiro Buelau; Isabela Umbuzeiro Valent; Christiana de Moraes e Silva; Elizabeth Maria Freire de Araujo Lima

truturação e o funcionamento dos projetos, as redes de Com isto, contemplam-se aspectos da produção de
suporte, as produções artísticas, as manifestações corpo- subjetividade – que se distinguem da apreensão subjetiva
rais e as relações da TO com o campo artístico-cultural. ou objetiva de fenômenos –, ao considerar a instauração
Considerando que o contato com as populações em situ- de modos de sentir, agir e pensar agenciados pela multi-
ação de vulnerabilidade solicita uma abordagem clínico- plicidade de forças (a história e a necessidade das pesso-
-política em que devem ser considerados os efeitos dos as e grupos e as situações de vulnerabilidade, as políticas
funcionamentos sociais sobre os corpos e sobre a vida, públicas, os panoramas históricos, os sistemas econômi-
bem como os deslocamentos destes funcionamentos e a cos, os direitos civis, as ciências, as artes, os esforços
instauração de outras políticas de subjetivação. para a construção do comum, etc.) atuantes na vida das
A experiência proposta aos estudantes, de participa- populações atendidas pela TO e verificadas no decorrer
ção nos projetos coletivos e nos Encontros de Sensibili- do trabalho do PACTO.
zação, acompanhamento das ações do GT Arte, Saúde e Corroborando a enunciação de Spinoza (2009, p.
Cultura, realização dos Grupos de Estudos, Seminários 64), quando diferentes corpos se movem de modo a se
e Experimentos Estético-Clínicos, provoca efeitos trans- comunicarem e transmitirem seus movimentos uns aos
versais em sua formação. O trabalho territorial, o contato outros, podemos dizer que esses corpos compõem, jun-
com a população atendida, o exercício crítico do pensa- tos, um outro corpo. Nesse sentido, entendemos que, de
mento e a abertura para uma sensibilidade estético-clíni- todas essas ações do PACTO se depreende um corpo co-
ca levam à construção conjunta de modos de exploração letivo multifacetado, formado por outros corpos que, em
da cidade e do cotidiano, em função de demandas detec- relações de composição, afetam-se mutuamente por suas
tadas ou inventadas, a fim de fortalecer os vínculos com a velocidades e lentidões; um corpo que busca perseverar
própria vida. Esses trabalhos traduzem-se em registros de e aumentar sua capacidade de agir, cuja potência emerge
pontos relevantes de aproximação entre as artes, o corpo das relações de força que o constituem e de sua capacida-
e a saúde nesses processos. de de criar conexões e multiplicá-las. Um corpo feito de
A efetuação destas experiências se dá nos corpos: de corpos que coincidem num território de fazer junto.
cada estudante, participante ou profissional em exercício Referências
e em formação, de modo a compor densidades de assi-
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de
milação coletiva dos acontecimentos. Considerando a Janeiro: Fiocruz, 2007.
proposição deleuziana que a partir de Nietzsche diz que
o corpo é a desigualdade de tensão entre forças (DELEU- BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar
ZE, 1976, p. 33), num espaço de escuta crítico e analíti- processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L.
(Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção
co, cada interrogação que se produz diante das vivências
e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulinas, 2009. p.
cotidianas faz emergir elementos passíveis de confusões, 52-75.
dá lugar a constituição de instrumentos de apreciação e
manejo dos encontros/combates na interface da clínica CASTRO, E. D. et al. Formação em Terapia Ocupacional na
com as artes e a cultura e proporciona uma consistência interface das artes e da saúde: a experiência do PACTO. Rev.
Ter. Ocup. Univ. São Paulo, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 149-156,
para os corpos implicados nessas ações.
set./dez. 2009. CrossRef.
Um corpo é um processo aberto em formação contínua, os-
CASTRO, E. D. et al. Território e diversidade: trajetórias
cilante, que des-estrutura toda forma a priori de fundamen-
da Terapia Ocupacional em experiências de arte e cultura.
tação. Um corpo é um fluxo constante de forças diferentes
Cadernos de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 24, n. 1, p.
em relação dis-funcional com outros corpos, mas sempre é 3-12, 2016. CrossRef.
uma totalidade inacabada e incompleta. Devido a isso, não
é possível delimitar, definir, identificar de antemão o que CASTRO, E. D.; LIMA, L. J. C.; NIGRO, G. M. S. Convivência,
é um corpo. O corpo se subtrai aos limites do pensamento trabalho em grupo, formatividade e práticas territoriais na
representativo, dado que um corpo é sempre possibilidade interface arte-saúde-cultura. In: MAXIMINO, V.; LIBERMAN,
F. (Org.). Grupos e Terapia ocupacional: formação, pesquisa e
de realizar diferenças sempre novas, mas um corpo é sem-
ações. São Paulo: Summus, 2015. p. 128-147.
pre mais do que realiza, é um campo de forças gerativas
e produtivas [...] atualizando-se sem esgotar seu poder de DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora
transformação (EMANUEL ESPERÓN, 2013, p. 23). Rio, 1976.
A experiência de múltiplos corpos compondo com DUARTE, R. E. S. T.; INFORSATO, E. A. De que forma.
um trabalho de instauração de um plano de possibilida- Interface (Botucatu), Botucatu, v. 15, n. 39, p. 1225-1228, out./
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de formas coletivas de existir, articulando presenças, pro- dominação: a compreensão deleuziana do elemento trágico da
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Arte, corpo, saúde e cultura num território de fazer junto

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Recebido em: 14 de novembro de 2016
Aceito em: 26 de maio de 2017

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 110-117, 2017                               117


Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 118-126, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2163
Dossiê Corporeidade

Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de siH


Flavia Liberman,I, HH Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima,II
Viviane Santalucia Maximino,I Yara Maria de CarvalhoII
I
Universidade Federal de São Paulo, Santos, SP, Brasil
II
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Resumo
Nos últimos anos temos trabalhado com as práticas corporais e artísticas na formação, e junto a comunidades, em serviços de
saúde e espaços de produção artística, entendendo que essas práticas promovem a produção de cuidado, o encontro e o aumento
de potência de vida, segundo uma ética que resiste aos modelos prescritivos, normativos e excludentes, incidindo nos processos de
subjetivação. Aqui apresentamos experimentações com o corpo, que envolvem a dança, a música, as artes e a escrita, e discutimos
as relações entre Aprendizagem Inventiva, experiência estética e o cuidado de si, tomados como referências conceituais para
pensar os corpos em estado de presença, produzindo conexões, inventividade e um voltar-se para si com implicações coletivas,
políticas, clínicas e estéticas que movimentam o pensamento, os corpos e a vida.
Palavras-chave: práticas corporais; formação em saúde; cuidado de si; aprendizagem inventiva; experiência estética.

Corporal and artistic practices, inventive learning and the care of the self
Abstract
In the last years we have worked with corporal and artistic practices with students and communities, in institutions of health and
spaces of artistic production, understanding that these practices promote the production of care, the encounter and the increase
of the potency of life, according to an ethics which resists prescriptive, normative and exclusive models, focusing on the processes
of subjectivation. Here we present experimentations with the body - involving dance, music, arts and writing - and discuss the
relationships between Inventive Learning, aesthetic experience and the care of the self, taken as conceptual references to think
bodies in a state of presence, producing connections, inventiveness and a turning to oneself with collective, political, clinical and
aesthetic implications that move thought, bodies and life.
Keywords: corporal practices; professional education in health; care of the self; inventive learning; aesthetic experience.

Introdução Para dar passagem a essas dinâmicas, cultivamos e


compartilhamos patrimônios da humanidade: os cantos,
Como fazer com que a música, a dança, a criação, todas
as formas de sensibilidade, pertençam de pleno direito ao
as escritas, as danças, as leituras, as performances entre
conjunto dos componentes sociais? [...] Como produzir outras artes, como modos distintos de movimento, a fim
novos agenciamentos de singularização que trabalhem por de reconhecer e brincar com os fluxos e ritmos da vida.
uma sensibilidade estética, pela mudança da vida num plano Temos conduzido práticas corporais e artísticas que
mais cotidiano e, ao mesmo tempo, pelas transformações colocam em suspensão modos estratificados de pensar
sociais a nível dos grandes conjuntos econômicos e sociais? e agir com os corpos, acompanhando o impacto dessas
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 22). iniciativas que reverberam em várias direções. Os encontros
Este texto apresenta experimentações com práticas entre corpos (LIBERMAN, 2008) nos movimentam e nos
corporais e estéticas em contextos de formação incitam ao trabalho expressivo, abrindo diferentes canais
e produção artística. Para expor essas práticas perceptivos que ampliam nossas sensibilidades, lugares
transformamos em narrativas o que nos aconteceu e assim e tempos. Nossos coletivos têm, cada vez mais, apostado
oferecemos matéria prima para as discussões que buscam nas trocas, nas forças do agir e do pensar, que implicam no
correlacionar esses temas aos processos formativos em Cuidado de si (FOUCAULT, 2006).
saúde, à Aprendizagem Inventiva e ao cuidado de si. Como balizadora para essas intervenções trabalhamos
Em diferentes contextos e cenários – estéticos, de com o método da cartografia (PASSOS; KASTRUP;
formação e de intervenção, buscamos migrar do lugar ESCOSSIA, 2010) que serve como guia para delinear
daqueles que possuem o saber e “tratam as pessoas” trajetos, considerando a existência de inúmeras camadas,
prescritivamente, para um outro lugar...um lugar de micro e macropolíticas, para a compreensão daquilo que
produção de conversa, escuta e fazer junto que nos fazemos com os corpos. Reconhecendo e acolhendo a
ensina sobre os desequilíbrios, os riscos, as incertezas, imprevisibilidade, as incertezas e o desejo de persistir nesse
os desconfortos, como espaços e afetos potentes para caminho investimos em uma ética afirmativa na produção
ressignificar as relações consigo mesmo e com os outros. de bons e alegres encontros (SPINOZA, 2007). Nossos
caminhos são traçados no próprio caminhar, realizados em
redes conectivas que se (re)configuram permanentemente
nos encontros e nas composições, ou não, entre os corpos,
H
 Financiamento próprio.
HH
 Endereço para correspondência: Universidade Federal de São Paulo- Baixada sejam eles pessoas, objetos, cheiros, ondas ou ventos.
Santista. Av. Dona Ana Costa, 95. Vl. Mathias - Santos, SP – Brasil. CEP:
11060-001. E-mail: toflavia.liberman@gmail.com, beth.lima@usp.br, vivi-
max9@gmail.com, yaramc@usp.br
Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de si

Especialmente nos cenários de formação, reconhecido quando uma faculdade o visa como idêntico
considerando sua dimensão coletiva, provocamos e ao de uma outra ou, antes, quando todas as faculdades em
ampliamos nossos olhares para os acontecimentos e conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a uma
problematizamos distintas questões: a relação saúde forma de identidade do objeto.
e arte; a importância das práticas corporais e artísticas Para este autor, o aprender acontece no choque
como práticas de cuidado de si; a potência destas na entre os signos do mundo, na interpretação e produção
atuação profissional, em diferentes contextos, no trabalho destes signos que não correspondem fielmente aos seus
interprofissional e na atuação em grupos e com grupos. objetos emissores. Há, portanto, duas facetas: aquela
Pautamo-nos pelo conceito de Aprendizagem reconhecível e assimilável pela recognição e aquela onde
Inventiva (KASTRUP, 2010), para a produção de há uma brecha entre o signo e a realidade do seu suporte.
conhecimento corporificado (KELEMAN, 1992), que É esta faceta inassimilável que, com sua estranheza,
cria marcas (ROLNIK, 1993) ampliando repertórios causa uma disruptura possibilitando o aprendizado. A
existenciais. Trata-se de um convite permanentemente à ênfase está na relação, não só entre sujeitos, mas também
experimentação de processos vivos, fluidos e, sobretudo, entre estes e o mundo e seus signos. (PASCUAL, JUSTA,
movimentos pensantes. A formação, assim, diz dos 2009). A importância da exterioridade da relação de
processos de subjetivação que decorrem das experiências aprendizagem traz a possibilidade de agenciamentos e
complexas que agregam a dimensão dos afetos e das ultrapassa o processo exclusivamente subjetivo quando
sensibilidades. Os tempos de formação e intervenção, de se considera que a invenção é sua matéria-prima.
aprendizagem e invenção coexistem e colocam em cena Para Rolnik, a experiência de desestabilização, que gera
todos os corpos e, particularmente, o corpo em estado inquietação, é inevitável pois resulta da própria demanda
de presença, pressupondo uma ética do saber implicado, da vida, como força que produz efeitos nos corpos. Nesta
uma ética do Cuidado de si (FOUCAULT, 2006). situação, o desejo é sempre ativado na busca de recobrar
Aprendizagem Inventiva, experiência estética e o equilíbrio vital, no entanto, de acordo com as políticas
cuidado de si predominantes, o modo de resposta à desestabilização
pode gerar diferentes efeitos na realidade.
Kastrup chama de Aprendizagem Inventiva o
desencadeamento de um processo de criação, que Para que a subjetividade possa sustentar-se na tensão
pode ocorrer quando nos encontramos com algo que de sua desestabilização entre as formas que produzem
nos surpreende, provocando estranhamento e nos certa estabilidade e as forças que a atravessa, é preciso
forçando a pensar. (KASTRUP, 2010). A Aprendizagem a emergência de um processo de criação que converta
Inventiva (KASTRUP, 2004, 2005, 2007, 2010) coloca- as afetações em imagens, palavras, gestos, modos de
se como uma política cognitiva na qual o sujeito é existência. No entanto, “quando o desejo é capturado
instigado a criar situações e pensamentos ao invés de pelo mercado e para a produção de capital, pode ser
apresentar respostas a problemas já existentes. Difere da desviado de seu destino criador e o corpo é anestesiado
aprendizagem que vê a cognição (percepção, memória, em sua potência de [...] decifrar o mundo a partir de
linguagem e solução de problemas) apenas como aparato sua condição de vivente: o saber do corpo torna-se
para o processamento de informação, deixando de inacessível” (ROLNIK, 2015, p. 15).
lado aspectos afetivos, emocionais, sociais, políticos, Vemos, portanto, a importância dos processos
etc., retirando seu caráter de experiência e não abrindo criativos na produção de uma subjetividade não submissa
espaço para o questionamento nem para o exercício de e que dê sustentação às desestabilizações próprias da
um pensamento-imaginação. Este tipo de aprendizagem vida. As práticas corporais e artísticas, mobilizando
reforça processos recognitivos e é importante diferenciá- espaços de arte na vida, na formação inventiva e nas
la da experiência de problematização. A recognição ações de cuidado convidam a estes processos.
permite o reconhecimento, caracterizando-se pela O conceito de experiência estética de Dewey também
assimilação do conhecimento anterior e sua utilidade nos ajuda a pensar o lugar da arte na Aprendizagem
na vida prática. Já a experiência da problematização é Inventiva. Associando os processos artísticos a situações
aquela que acontece quando os esquemas da recognição cotidianas, Dewey traz a concepção de arte como
são inadequados ou impotentes para assimilar o que se experiência e afirma que, embora muito do que é vivido
nos apresenta, trazendo um intuito cognitivo, pois pode no cotidiano possa ser perdido, quando a experiência não
produzir deslocamentos, suspendendo atitudes naturais é interrompida, um fluxo de pensamentos e sensações
e produzindo um processo de Aprendizagem Inventiva conduz a pessoa a um estado distinto do estado anterior,
(SANCOVSCHI; KASTRUP, 2013). fazendo com que esta seja uma experiência estética,
Deleuze (1988, p. 221- 222) refere-se ao modelo da marcada por emoções e sensações intensas, que não se
recognição como um dos modos de funcionamento do dissipam e não são facilmente esquecidas (DEWEY,
pensamento: 2010). A experiência faz aparecer uma nova configuração
A recognição se define pelo exercício concordante de
que é produção de território existencial com as matérias
todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo do mundo, gerando processos formativos.
o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado,
lembrado, imaginado, concebido [...] Mas um objeto é

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Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima; Viviane Santalucia Maximino; Yara Maria de Carvalho

As experiências estéticas e os processos de criação “aquele que cuidasse adequadamente de si era, por isso
são próprios da vida e dos corpos e podem acontecer nas mesmo, capaz de se conduzir adequadamente em relação
situações cotidianas, mas nosso modo de existência produz aos outros e para os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 271).
distâncias entre o corpo e o que ele pode, sua potência Assim, o cuidado de si torna-se ponto de referência
e seus processos. O contato com as práticas artísticas e de uma estética da existência, constituição de um
corporais recoloca o problema da aprendizagem sob a modo de ser e de se conduzir, que se completa em uma
perspectiva da invenção: dimensão de ação, por meio das práticas de si. Essas
[...] a arte não é um alvo, mas um atrator caótico, um ponto práticas não são alguma coisa que o próprio sujeito
que é tendencial, sem ser fixo e sem possibilitar falar em invente, mas “esquemas que ele encontra em sua cultura,
regimes estáveis ou em resultados previsíveis. Colocar sua sociedade e seu grupo social” (FOUCAULT, 2004,
o problema da aprendizagem do ponto de vista da arte é p. 276); elas entram em conexão com a produção da vida
colocá-lo do ponto de vista da invenção. A arte surge como obra de arte e envolvem a criação de parcelas,
como um modo de exposição do problema do aprender ainda que pequenas, de mundos que se abrem em novas
(KASTRUP, 2001, p. 20). composições entre corpos. São outras sensibilidades,
Aprender, portanto, é entrar em processo de pensamentos e ações que implicam na imersão em um
transformação acompanhado, comprometido e implicado. campo de experiências.
Só posso conhecer aquilo que me afeta e com o que me Os fragmentos apresentados a seguir, são expressão
relaciono. Aprender envolve a abertura às experiências de alguns destes processos.
estéticas e também às práticas de si. Tomar a própria vida Fragmento 1: leitura e escrita como prática estética e
como algo a ser criado. Dobrar a força que incide sobre de cuidado de si
cada um produzindo sujeitos, para que seja possível
viver, sentir e pensar de outra maneira. Vivemos um cotidiano que nos incita ao medo e
à passividade, e também à reprodução de valores que
Na Aprendizagem Inventiva, a invenção não é vista
nos distanciam de nós, pensantes e persistentes na
como algo raro e excepcional, privilégio exclusivo de
experiência e no cuidado de si (FOUCAULT, 2006).  E
artistas ou cientistas, está em nosso cotidiano e permeia o
o ambiente universitário, cada vez mais, incita à
funcionamento cognitivo de todos nós.
competição e ao individualismo, reproduzindo a lógica
Para Foucault (2006), os sujeitos não são uma produtivista e corporativista que orienta nossos modos de
substância mas formas produzida por jogos de poder pensar e agir na contemporaneidade, um tema já bastante
e saber e se encontram em relações de produção e de problematizado.
significação que são complexas. Pesquisando as relações
As dificuldades para romper padrões na formação em
entre sujeito e verdade, o autor explorou as práticas do
saúde não são poucas porque estes estão cristalizados.
sujeito consigo mesmo, o cuidado de si e sua emergência
Nesse sentido, ler, estudar, interpretar, descrever, narrar
no mundo grego. Trata-se de práticas e ações pelas quais
e escrever e posicionar-se diante das ideias dos autores
o sujeito, ele mesmo, se coloca em movimento, atuando
são atividades que, apesar de presentes no cotidiano
daquilo que constitui os modos de subjetivação. Segundo
do trabalho intelectual, cada vez mais vem sendo
Deleuze (2000, p. 123), Foucault estava se perguntando
desencorajadas ao longo do processo de formação, seja
sobre a possibilidade da resistência: “transpor a linha de
no âmbito da graduação ou da pós-graduação.
força, ultrapassar o poder, [...] seria como curvar a força,
fazer com que ela mesma se afete, em vez de afetar outras A formação técnica prevalece. A ênfase nas disciplinas
forças: uma ‘dobra’, uma relação de força consigo”. e nas especialidades, em detrimento de uma aprendizagem
inventiva dificulta a “constituição de uma base cultural
O cuidado de si remete ao conhecer em sentido
para compreensão do significado do processo educativo
ampliado como movimento da existência, já que não
enquanto parte integrante da dinâmica de socialização”
há acesso ao conhecimento sem uma transformação
(SILVA, 1992, p. 161).
contínua de si mesmo.
O que pretendemos, em última instância, é transformar
O cuidado de si é certamente o conhecimento de si [...], mas
o espaço da sala de aula em espaço de experiência
é também o conhecimento de um certo número de regras
estética e de formação. A experiência é compreendida
de conduta ou de princípios que são simultaneamente
aqui “como uma expedição em que se pode escutar o
verdades e prescrições. Cuidar de si é se munir dessas
verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade
‘inaudito’” (LARROSA, 2010, p.10). A formação, por
(FOUCAULT, 2004, p. 269). sua vez, é “um devir plural e criativo, sem padrão nem
projeto, sem uma ideia prescritiva de seu itinerário e
Por outro lado, o cuidado de si é inseparável de uma sem uma ideia normativa, autoritária e excludente de seu
atitude diante do outro e implica relações complexas, resultado” (LARROSA, 2010, p. 12).
assim como o sujeito só pode conhecer a si mesmo perante
Para a experimentação trabalhamos com as práticas de
outro sujeito. “Tem-se aí um dos pontos mais importantes
escrita, compreendidas como acontecimentos da pluralidade
dessa atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui
e da diferença, como aventuras rumo ao desconhecido, ou
um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática
social” (FOUCAULT, 1985, p. 57), já que para os gregos,

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Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de si

ainda como produções infinitas de sentido (KASTRUP, São 60h de carga horária na disciplina. A ideia é
2002) e que podem contribuir para esse pensamento aberto propor aos estudantes diferentes experimentações com as
sobre formação (LARROSA, 2010). práticas corporais e estéticas, aqui especialmente as de
Também aqui fica claro o uso do método da escrita, explorando a mistura delas a fim de problematizar
cartografia e do conceito de Aprendizagem Inventiva a respeito do “corpo em arte”.
(KASTRUP, 2002) como referenciais teóricos e Dos procedimentos cabe mencionar que, inicialmente,
analíticos da experiência da escrita como prática estética, agregam o acolhimento de todos, ou um modo de
que pressupõe uma ética do saber implicado, assim como apresentar os participantes que instigue a atenção e o
uma ética do cuidado de si. cuidado com o outro e consigo; depois, um aquecimento
Temos experimentado as práticas de escrita na com exercícios de relaxamento e respiração para
prepararmos o corpo para o “encontro” com a escrita; em
sala de aula1 (ALVES; CARVALHO; DIAS, 2011), e
seguida, definir um tema disparador para o trabalho da
os relatos dos estudantes dizem de uma descoberta e
escrita – corpo e arte, por exemplo; explorar a prática
também de um contentamento. Poderíamos dizer que,
propriamente dita, com exercícios de escrita (solta,
em alguns, produz encantamento, diante das experiências
sintética, objetiva, poética); observar sua escrita; olhar
surpreendentemente inusitadas no processo de formação.
para e experimentar as escritas dos outros; narrar, escutar,
E, a partir delas, os estudantes nos chamam a atenção
conversar e trocar a respeito das diferentes experiências
para a importância de conhecer outras perspectivas do
de escrita a fim de perceber o que cada um traz e instigar
processo ensino-aprendizagem no que diz respeito às
a troca de impressões a respeito do que foi realizado.
experiências com o corpo, o livro e a escrita.
Trata-se de uma prática nos termos de uma “escrita
O espaço da sala de aula é o lugar onde
de si” que não é uma prática descritiva do que aconteceu,
problematizamos a experiência estética e investigamos
mas uma prática que movimenta o pensamento
as práticas como processos criativos transformadores
(FOUCAULT, 2006). A formação aqui se transforma
de corpos e de relações (ALVES; CARVALHO, 2015).
em uma prática estética, um campo de experimentação
Nesse sentido, a figura da professora/tutora/orientadora
de si, como arte de viver (FOUCAULT, 2006, p. 146).
do processo também se altera: ela oferece uma exigência,
Nesse campo, os exercícios de “escrita de si” produzem
uma tensão, uma vontade, um desejo. A pesquisadora,
forças e funcionam como dispositivos capazes de acessar
por sua vez, provoca situações de desconforto e de
o inusitado, o intempestivo, o inenarrável do cuidado de
deslocamento. Como escreveu Larrosa, procura elevar os
si. E para perceber os fluxos que atravessam esta escrita,
estudantes “mais alto do que a si mesmos, ao que existe
é preciso se deixar afetar, sem apego.
em cada um deles que é mais alto do que eles mesmos
[...] puxa e eleva, faz com que cada um se volte para si Como escrevemos em outro momento:
mesmo e vá além de si mesmo, que cada um chegue a ser Não é fácil imprimir as intensidades da experiência no
aquilo que é” (LARROSA, 2002, p. 12). campo da escrita, mas, se lançar ao permanente aprendizado,
Larrosa (2010, p. 13) menciona as práticas de leitura, em processos de formação abertos a experiência dessa
ele acredita que a virtude dela qualidade da escrita, pode ser um caminho. Dobrar a
atenção sobre as profundidades reveladas na “escrita de si”
[...] é sua infinita capacidade para a interrupção, para o
desvio, para a ‘desrealização´ do real e do dado (inclusive significa pensar a própria formação como um exercício de
do real e do dado de alguém) e para a abertura ao cultivo, que vai além de um período determinado, para se
desconhecido. A iniciação à leitura aparece, assim, como o implicar na constituição da própria vida. E, isso também
início de um movimento excêntrico, no qual o sujeito leitor significaria a propagação indefinida da ‘escrita de si’ [e, em
abre-se à sua própria metamorfose. última instância, um cuidado de si] (ALVES; CARVALHO;
DIAS, 2011, p. 255).
Entendemos que essa qualidade da prática de leitura
pode também ser uma qualidade da prática da escrita. Tal Fragmento 2: corpo e experiência estética:
qual a “experiência da leitura como algo que põe o leitor aprendendo com mulheres da Noro2
em questão, tira-o de si e eventualmente o transforma” Os alunos estão acostumados a dormir na van, mas nesta
(LARROSA, 2010, p. 101), entendemos que a prática experiência o corpo precisa estar desperto, de prontidão,
da escrita também pode provocar essa transformação para conhecer e encontrar os caminhos que levam a uma
(ALVES; CARVALHO; DIAS, 2011). região  de vulnerabilidade, para entrar em contato com os
imprevistos que  não são poucos: não sabem se a mulheres
que vamos buscar em casa estão dispostas para o encontro,
se há conflitos com a polícia naquele momento, se a chuva
provocou um transbordamento dos rios ou mesmo se obras
1
 O espaço da disciplina “Dimensões Filosóficas da Educação Física e do Esporte” que esburacam as ruas impedem o acesso às casas.3
na Escola de Educação Física e Esporte e o da disciplina “Saúde e Corpo” na
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo tem sido usado
2
 Projeto Delicadas coreografias iniciado em 2009, no módulo “Clínica integrada:
para as práticas estéticas – de leitura e escrita – a partir do tema “Formação em produção de cuidado” com alunos dos diferentes cursos da saúde na Universidade
Saúde” e, cada vez mais, fica evidente a importância e pertinência de insistirmos Federal de São Paulo, Baixada Santista. Tem como objetivo geral a formação de
nessa qualidade de Experiência e com o aporte teórico da Aprendizagem uma clínica comum aos vários campos profissionais, avançando na produção e
Inventiva. Mas também a leitura e escrita em espaços de convivência e produção gestão do cuidado individual e coletivo em saúde.
de trabalho e redes que se constituíram no campo da saúde, em projetos de 3
 Arquivo pessoal. Esta narrativa foi retirada do “Caderno de registros” de uma das
integração ensino-serviço (CARVALHO, 2016). autoras, Flavia Liberman, também coordenadora do grupo de mulheres. Ali são

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Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima; Viviane Santalucia Maximino; Yara Maria de Carvalho

Estes são alguns dos problemas que enfrentamos na aparições”, os vários corpos que habitam D. Zefa. São
realização de uma das nossas atividades de ensino. Trata- os corpos que existem e os novos corpos que se tornam
se de ir a campo com estudantes para exercitar o cuidado. visíveis pelos dispositivos utilizados.
Nossa proposta é acompanhar um grupo mulheres com Esta narrativa singular de D. Zefa não se fecha nela
diferentes desafios por meio de práticas corporais e estéticas mesma, reverberando no grupo, produzindo um contágio,
realizadas em um equipamento de arte e cultura da região. “estes encontros podem funcionar como um dispositivo
Um trabalho artesanal. Aqui se aprende perseverança, quando produzem um efeito de caráter ativo” (BARROS,
paciência e atenção ao pequeno. Aqui se faz um trabalho 1996, p. 97) disparando algo em cada participante, dando
corpo a corpo, tecido em micro movimentos. O corpo é ensejo a produções individuais e coletivas, ampliando a
afetado pelo encontro com a paisagem, pelos diversos exploração dos territórios corporais.
cheiros, pelos becos, produzindo estados paradoxais: Baremblitt (1992) nos diz que o dispositivo é um
confortos e desconfortos, incômodos e satisfações, artifício de inovações que gera acontecimentos. Esta
distanciamentos e aproximações (LIBERMAN; abordagem reafirma o caráter especialmente potente das
MAXIMINO, 2015). Deslocamentos da sala de aula práticas corporais e estéticas realizadas em grupo, que
para a rua, para outra realidade. Na maioria das vezes, tentam resistir às imposições que anestesiam os corpos
os encontros “constituem oportunidades para saber roubando seu caráter inventivo, distanciando-os uns dos
mais de si, dos modos de funcionamento acessados na outros, produzindo solidão e diminuição da potência de
complexidade dos contatos” (LIBERMAN, 2008, p. 11), se presentificar no mundo.  
na tentativa de fugir dos mapas e trilhas habituais.
No encontro do grupo de alunos e docentes com cada
As mulheres com as quais trabalhamos vivem em mulher busca-se instaurar um clima curioso e receptivo,
condições socioeconômicas precárias, com difícil acesso a exercitando um olhar que apreende o conjunto sem perder
experiências que abordem o corpo em sua expressividade a singularidade nas propostas mais variadas: explorar
e possibilidade de comunicação com outros corpos o que, objetos, lembrar de uma música, contar histórias, tocar
entre outros fatores, produz isolamento e diminuição do outros corpos, brincar. Estas propostas são criadas a partir
pulso vital (KELEMAN, 1992). Percebe-se também uma dos desejos e participação de todos e visam a exploração
anestesia e neutralização da capacidade desejante. dos corpos, a ampliação da percepção e da sensibilidade,
Ampliar o acesso é um dos objetivos principais do a instauração de um estado de presença.
nosso trabalho, porém não se trata somente do acesso Estar em grupo amplia a chance de acionar nos
concreto das pessoas em relação a sua mobilidade participantes o que Dewey (2010) chama de experiência
espacial, nem apenas disponibilizar ofertas. Trata-se de estética, apostando que estas podem colocar a pessoa
promover possibilidades para os encontros consigo, com em movimento, desencadeando processos de criação,
as pessoas e com coisas. Acessibilidade é principalmente engendrando novos territórios existenciais, reinventando
aquilo que pode possibilitar que algo aconteça. vidas (LIBERMAN, 2008). Os participantes são
Convidamos a todos os envolvidos, com delicadeza, catalizadores e também testemunhas das experiências.
a um investimento afetivo, corporal e vincular para Busca-se criar um território propício à surpresa, ao
mergulhar no desconhecido e se fazer mais presente para acolhimento do inesperado e ao acionamento de
viver e produzir acontecimentos, inventando modos de movimentos inventivos (KASTRUP, 2010).
criar, de se comunicar, pesquisar e construir corpos. No entanto, “A experiência estética não é aquela
Keleman (1992) indica que os modos de funcionamento meramente divertida ou que gera entretenimento, mas
dos corpos são produzidos por vários fatores, entre sim aquela que é marcada por sensações intensas”
outros, genéticos, culturais, hereditários, aos tipos de (KASTRUP, 2010, p. 40), por vezes trazendo sofrimento:
vínculo e experiências vividas ao longo da existência e entrar na casa pequena de D. Nina e saber que seus
aos atravessamentos da subjetividade dominante que três netos estão presos; aguentar o desconforto de não
modulam os comportamentos (FAVRE, 2012). ter espaço para sentar e ao mesmo tempo escutar uma
D. Zefa está com um xale amarelo, presente de uma música que relativiza a importância do dinheiro; oferecer
aluna. Produz um novo corpo para este encontro. Nem flores e sentir diferentes perfumes com uma mulher que
sempre foi assim, nem há garantia de que seja nas próximas está perdendo a visão.
vezes. Há momentos em que é necessário tirá-la da cama, A percepção sutil dos processos, o cuidado e o modo
dar banho e vesti-la. Ela entra na van e fala: eu sou a mais como se traz a proposta, a construção de um ambiente
nova aqui, sendo que ela é idosa e provavelmente nem confiável e um respeito pelo tempo formativo favorecem
sabe sua idade. Aquele corpo desdentado sorri quando que a experiência possa ser incorporada e atualizada para
diz: eu sou preta e você é minha filha branca, trazendo novas e outras situações.
sua ancestralidade e a história, e lugar dos negros. Faz O que mais ajuda a acessar a experiência estética?
um gesto repetido de colocar as mãos no chão, com Cultivá-la. Deleuze diz que ele não acredita na cultura
grande flexibilidade, para espanto de todos: foi o trabalho em si, mas nos encontros, não só com pessoas, mas, so-
na enxada, diz, lá na minha terra. Estes gestos, também bretudo com as coisas. Deleuze não procura os espaços
liberados pelas propostas realizadas, fazem surgir “as de arte e produção cultural para ter mais cultura, mas para
registradas sensações, percepções e comentários sobre o trabalho desenvolvido.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 118-126, 2017
Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de si

cultivar-se (DELEUZE, s.d., online). Portanto, cultivar da vida singular e coletiva. Ela usará sua maestria de
pode ser compreendido como a abertura aos encontros, transitar pelas esferas da subjetividade e da cultura
como um exercício de atenção à espreita. para tratar sua própria dor. Sua forma de se cuidar é
No grupo fazemos um convite ao olhar-se, ao desenvolver o problema que o acontecimento envolve,
conhecer-se, ao reinventar-se. Experimentar o corpo efetuá-lo, fazê-lo terminar de acontecer.
significa tentar tocá-lo em suas mais diversas dimensões, Produzindo a vida como obra de arte, Sophie começa
entendendo-o como processos e espaço de passagem que a cuidar de si pluralizando-se; ela é muitas, torna-se
procura dar formas às intensidades. muitas. Para tratar de si pede a diferentes mulheres que
Fragmento 3: criação e cuidado de si interajam com a mensagem a partir de suas profissões,
em um jogo de espelhos que multiplica infinitamente o
Em experimentações na arte contemporânea, que faz a própria artista a partir de seu metier, que é o da
acompanhamos o desenvolvimento de obras imanentes arte conceitual.
à vida e aos processos de criação de si e do mundo. Elas
São mulheres que, como ela, perderam um amor.
não se materializam em uma coisa ou objeto; possuem
A carta irá reativar em cada uma a dor, criando novas
uma existência efêmera e se fazem presentes no mundo
respostas, que se multiplicam: pode-se atirar na carta,
apenas no momento em que são experimentadas para
num gesto de precisão e violência, que quase nos provoca
depois se desfazerem, deixando atrás de si o rastro dos
uma espécie de alívio; pode-se desabar sobre ela; pode-
acontecimentos que se inscrevem na memória e restos
se interpretá-la, corrigi-la, traduzi-la para outras línguas,
materiais que permanecem no mundo.
transportá-la para outros contextos; pode-se dançar com
Nessa perspectiva, a potência da obra, como processo ela ou fazê-la desaparecer como num passe de mágica.
formativo, revela-se na instauração de campos de
Tantos são os caminhos possíveis para a travessia da
dizibilidades e visibilidades inusitados, e na abertura de
dor do fim do amor…
possibilidades para a sensibilidade, o pensamento e a
aprendizagem. E o que esta obra produz no público? Que dores
ressuscita ou reativa? Que caminhos tortuosos se trilha
Como nos ensina Favaretto (apud LIMA, 2006, p.
para atravessar a perda, o fim do amor? As pessoas que
325)
visitam a exposição provavelmente conhecem esses
Na busca de novos rumos da sensibilidade contemporânea caminhos, algumas já os trilharam em sua vocação
[...], a atividade artística desloca o acento das obras para a solitária. Cada um é a 108a mulher a quem Sophie pede
produção de acontecimentos, ações, experiências, objetos que responda a carta.
[...], liberando uma significação básica: a reinvenção da
arte é condição para que ela possa intervir na transformação Este fragmento de texto é a minha resposta.
radical do homem e do mundo. Assim fazendo, estaria A resposta de Sophie é a produção de respostas em
realizando e ultrapassando as categorias de arte, tornadas cascata. Sophie multiplica-se em muitas mulheres e faz
categorias de vida. proliferar os modos possíveis para si, mas também para
A obra de Sophie Calle, Cuide de você, que esteve em nós. Do desprezo e deboche, ao ódio e ao dilaceramento,
exposição em São Paulo no Sesc Pompéia, é uma experi- as emoções ganham contorno e forma nas produções que
mentação desse tipo e coloca em foco as relações entre o não são nunca somente uma resposta à carta, mas sim um
cuidado e a criação artística. O trabalho foi desenvolvido envolvimento com ela que desenvolve o acontecimento
a partir de uma mensagem de e-mail recebida pela artis- que ela produziu.
ta, na qual seu namorado rompia o relacionamento que Como médica de si e do mundo (DELEUZE, 1997),
havia entre eles. A mensagem terminava com um usual Sophie se cuida, se trata e trata também de nós, o público.
“cuide de você” - take care of yourself ou, na língua da O problema aqui não é mais somente de Sophie e seu
artista, prenez-soin de vous -, como um “até mais” ou namorado. Aqui, trata-se do amor nos tempos da internet,
“nos vemos por aí”. das viagens, das distâncias, dos espaços entre corpos.
Recebi um email de rompimento. E não soube respondê-lo. Nos tempos de aproximações e evitações, da busca de
Era como se ele não me fosse destinado. E terminava com intimidade com muito pouco contato, da falta de olhar
as palavras: Cuide de você. Levei essa recomendação ao pé nos olhos e tocar a pele.
da letra. Pedi a 107 mulheres, escolhidas por sua profissão, Ao cuidar de si, a artista, descobre um coletivo, uma
para interpretar a mensagem por um ângulo profissional. dor que se desindividualiza, uma alegria de não estar só.
Analisá-la, comentá-la, cantá-la, dançar com ela. Dissecar a E nós descobrimos a alegria do depois do amor, do além
mensagem. Esgotá-la. Compreender por mim. Responder no da dor, que é a alegria da criação de si, depois que tudo
meu lugar. Uma maneira de ganhar tempo para romper. No desmoronou, e da criação de uma parcela pequena de
meu ritmo. Cuidar de mim (CALLE, 2008, tradução nossa). mundo. Um novo mundo que se abre para que inventemos
A dor provocada pela mensagem pede um outras formas de vida possíveis.
desdobramento; o acontecimento não para aí. Mas Visitar exposições como esta faz parte da formação
como fazê-lo passar? (ROLNIK, 2015). Sophie Calle dos estudantes de Terapia Ocupacional da USP: a
é uma artista singular na cena contemporânea, que exploração de diferentes campos das atividades humanas
sabe manejar de uma forma particular os tênues liames tem a potência de interferir nos processos de subjetivação,

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Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima; Viviane Santalucia Maximino; Yara Maria de Carvalho

atuando na produção de saberes, na construção de corpos teatrais, arquitetônicas, literárias, filosóficas, etc. “Tais
e gestos, na experimentação de formas de estar no mundo, cartografias ficam à disposição do coletivo afetado por
de cuidar e de criar. este ambiente, como guias que ajudam a circular por suas
Na disciplina Atividades e Recursos Terapêuticos: desconhecidas paisagens” (ROLNIK, 1997, p. 3).
Processos Criativos,4 vamos juntos com os estudantes a A partir da imersão em múltiplas experiências, do
exposições que estão em cartaz na cidade, na busca de que contato com obras de arte e da produção de um caderno
esse deslocamento da sala de aula em direção ao mundo de criação - no qual são exploradas diferentes formas de
e aos territórios culturais possa provocar estranhamento registro de processo -, os terapeutas ocupacionais em
e afeta-los de tal forma que processos de pensamento e formação são acompanhados na elaboração de um projeto
criação sejam desencadeados. poético que possibilite decifrar os signos que se fizeram
Nossa proposta é instaurar um campo de experimentação enigma em seu corpo. A imersão em processos de criação
que convoque nos corpos um estado de presença para estimula os estudantes a construírem suas próprias
que encontros, trocas e produção de conhecimento cartografias sensíveis que expressem a viagem realizada
compartilhado possam ocorrer. Esta proposta se aproxima e, ao mesmo tempo, funcionem como suporte para o
fortemente do campo das artes, com vivências em ateliê, trabalho com as múltiplas questões disparadas. Busca-se
pesquisa em arte, propostas de apreciação em sala de assim, inserir na formação de terapeutas, o exercício das
aula e em espaços expositivos e desenvolvimento de práticas de si, numa implicação ética com a constituição
trabalhos poéticos em diálogo com práticas artísticas de si mesmo como alguém que se prepara para cuidar
contemporâneas que têm deslocado o foco dos objetos dos outros. Como nos ensina Foucault (2004, p. 271), o
para os acontecimentos, que tocam as práticas grupais e cuidado de si é ético e “implica relações complexas com
que dialogam com experiências de aprendizagem. os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também
uma maneira de cuidar dos outros”.
A arte, por suas características de invenção e de
integração do processo ao produto, favorece as experiências Tecendo relações e algumas considerações finais
estéticas. É fruição, aproveitamento e consumação em si No relato de algumas das experiências com práticas
mesma: “A experiência, na medida em que é experiência, corporais e artísticas é possível perceber a miríade de
consiste na acentuação da vitalidade, uma troca ativa problematizações que emergem do vivido. Questões
e alerta com o mundo; que em seu auge significa uma que deslocam saberes pré-estabelecidos e, por meio
interpenetração completa entre o eu e o mundo, os objetos de fragmentos, buscam dar visibilidade a territórios
e acontecimentos” (DEWEY, 2010, p. 83). habitados por aquilo que é quase imperceptível
A atividade artística está associada também à criação e que se expressam na dimensão dos gestos, das
de desejo. Se a arte é a realização de um desejo trata- sensorialidades, das linguagens, do pensamento.
se de um desejo intensificado pelo próprio ato artístico Não é tudo que se transforma em experiência, que se
e não dado por antecipação. Em oposição aos processos incorpora como repertório e que poderá ser acessado
mecânicos, a arte desenrola-se de maneira inusitada em outras situações. Algumas vivências, embebidas de
e “o suspense, na arte, é um apetite que aumenta a afetos e sentidos, produzem marcas nos corpos, pedem
partir daquilo com que é alimentado” (KAPLAN apud decifração e impulsionam processos de criação. Aqui a
DEWEY, 2010, p. 28). arte é um direito e, portanto, acessível a qualquer um;
No contexto da disciplina, as visitas a exposições de modifica ambientes; possibilita maior conexão consigo
arte e o contato com obras que encarnam, envolvem e e com o entorno na produção de realidades que alargam
desenvolvem um campo problemático, visam favorecer sensibilidades, constituindo corpos porosos às afetações
a experiência estética, a intensificação de desejo e a do mundo que nos atravessam permanentemente.
ativação da sensibilidade. Aprendizagem é entendida Em nossos fragmentos observamos, por vezes,
aqui como um processo movido por desejo, interesses esgotamento, colapso, enrijecimento e anestesia dos
e capacidades, que provoca transformações e cria novas corpos. Neste sentido, qualquer ação que se queira
formas de ser, articulando a possibilidade de compartilhar transformadora deverá compreender um trabalho com
conhecimentos e saberes e de construir caminhos próprios o corpo e com a sensibilidade. Debruçar-se sobre as
e singulares na pluralidade da existência humana. experiências, tanto na vertente formativa, quanto nas
O contato com as obras também permite o encontro interferências em campo, revela-nos que é possível
com mapas de sentido que funcionam como guias para produzir sensibilidades mais atentas ao que é vivo e ao
que se possa enfrentar as desestabilizações subjetivas pulso vital, e modificar, mesmo que de modo sutil, as
que participam dos processos de criação e dos processos relações e os modos de cuidar.
de cuidado. Para Suely Rolnik (1997), relações de força Finalizando, práticas corporais artísticas, experiências
inéditas atravessam os corpos e ganham forma, sentido estéticas, Aprendizagem Inventiva e cuidado de si são
e valor em microuniversos culturais e artísticos através empreendimentos de saúde e o leitor, o escritor e o
de cartográficas musicais, visuais, cinematográficas, artista, como médico de si e do mundo, põe em jogo a
invenção de novas línguas para acontecimentos que se
 A disciplina “Atividades e Recursos Terapêuticos: Processos Criativos” - do Curso
4

de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo - compõe a formação no dão na fronteira da linguagem.
campo das práticas artísticas, corporais e culturais que são desenvolvidas pelo
Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte e Corpo em Terapia Ocupacional.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 118-126, 2017
Práticas corporais e artísticas, aprendizagem inventiva e cuidado de si

E aqui nos lembramos dos fractais... FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática de
liberdade. In: MOTTA, M. B. da (Org.). Ética, Sexualidade e
Formas geométricas com padrões complexos que se Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. Coleção
repetem infinitamente... Ditos & Escritos, v. 5, p. 264-287.
Estão em todos os corpos: vegetais, animais, minerais... FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins
Estão nos nossos corpos... Fontes, 2006.

Dos equipamentos mais sofisticados, como as próteses, até GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografia do
desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
os corpos em arte...
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O princípio dos fractais inspira a produção de música,
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Flavia Liberman; Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima; Viviane Santalucia Maximino; Yara Maria de Carvalho

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católica de Sao Paulo). [2015]. Re-visiones, Madrid, n. 5, 2015.
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SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Recebido em: 14 de novembro de 2016
Aceito em: 18 de julho de 2017

126                               
Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 118-126, 2017
Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 127-134, maio.-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2169
Dossiê Corporeidade

Volume Morto: performance e corporeidade


Eloísa Brantes Mendes,I, H Maurício da Silva de Lima,II Ana Paula Ferrari Emerich,I Thaís Leitão ChilinqueII
I
Univerisdade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
II
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
O processo de pesquisa e criação do espetáculo Volume Morto é o campo de partida deste relato sobre performance, memória
corporal e relações estético-políticas implicadas na trajetória artística do Coletivo Líquida Ação desde 2007. A presença da
água como elemento vital, utilizada nas performances de intervenção urbana, faz parte da proposta artística deste coletivo que
problematiza as fronteiras entre visibilidades e invisibilidades da cidade habitada. A água, ligada às múltiplas temporalidades da
experiência corpo-espaço na ação performática, também vai ao encontro das práticas de convívio e produção artística, voltadas
para a sustentabilidade do próprio coletivo como espaço de pesquisa independente.
Palavras chave: performance; corporeidade; memória; água e montagem.

Dead volume: performance and corporeity


Abstract
The process of research and creation of the show Dead Volume is the starting point of this report on performance, body memory
and aesthetic-political relations implied in the artistic trajectory of the Coletivo Líquida Ação since 2007. The presence of water as
a vital element, used in the performances of urban intervention, is part of the artistic proposal of this collective that problematizes
the boundaries between visibilities and invisibilities of the inhabited city. Water, coupled with the multiple temporalities of body-s-
pace experience in performance acting, is also in line with the practices of socializing and artistic production, geared towards the
sustainability of the collective itself as an independent research space..
Keywords: performance; corporeity; memory; water and composition.

O processo de pesquisa e criação do espetáculo Vo- partir, são constituintes do próprio coletivo como espaço
lume Morto, realizado pelo Coletivo Líquida Ação é o político no qual o exercício da alteridade comporta dife-
campo de partida deste relato sobre performance, me- renças e resistências ao tipo de organização hierárquica.
mória corporal, processos de montagem e relações es- Acordos e contrariedades muitas vezes produzem afasta-
tético-políticas implicadas. A trajetória artística deste mentos críticos e proximidades incômodas que nos levam
Coletivo formado em 2007 é marcada pela presença da a refletir sobre o que estamos fazendo juntos. O desafio
água, utilizada em todas as performances e intervenções de trabalhar na ausência de consenso incorpora forças
urbanas realizadas desde então. A presença da água como que desestabilizam nossas certezas gerando questões que
elemento vital é parte das performances que colocam em mobilizam as performances. A delimitação e clareza das
jogo processos de montagem entre corpo – água – espaço questões que se apresentam é um exercício de precisão
urbano, problematizando as fronteiras entre visibilida- intelectual, emocional, estética e ética que colocam em
de e invisibilidade da cidade habitada. A água, ligada às jogo a própria compreensão “do que estamos fazendo”.
múltiplas temporalidades da experiência corporal acio- Neste exercício, às vezes árduo e sempre estimulante de
nadas durante a performance, também passa pela relação desconstrução de si na relação com o outro, a prática da
entre maleabilidade e coletividade em nossas práticas de performance nos oferece a instabilidade necessária à des-
convívio e modos de produção artística. Este artigo es- coberta do que é comum para além do grupo de pessoas
crito de forma fragmentada, e assinado por cada partici- envolvidas, pois o comum inclui também nossas visões
pante do processo Volume Morto, é uma oportunidade de e relações com a vida da cidade em sua complexidade
pensar nosso coletivo a partir de heterogeneidades, que e heterogeneidade. Neste processo de pesquisa, em que
sem se misturarem de forma fusional por uma narrativa o próprio “estar junto” é sempre questionado, seguimos
do coletivo como entidade autoral, mantem suas tensões a economia do desejo em “agenciamentos coletivos de
criativas por relações de alteridade. enunciação” e fluxos de pensamento-ação. que desá-
Eloisa Brantes guam pelo corpo. (GUATTARI; ROLNIK, 2005).
Nas performances de intervenção os usos da água
O Coletivo Líquida Ação, constituído por artistas de
intensificam a temporalidade da relação corpo – espa-
diversas áreas apresenta, desde seu início em 2007, uma
ço em dois aspectos: as reações imediatas do corpo em
grande circulação entre seus participantes e colaborado-
contato com a água e o acesso à memória coletiva da
res. A estrutura de grupo, baseada na permanência das
água nas cidades. No cruzamento destas temporalidades
mesmas pessoas com funções definidas, não é a base dos
distintas, ecoa o conceito de “ação em estado líquido”,
nossos trabalhos coletivos. A circulação de pessoas e suas
ou seja, uma ação maleável cujos fluxos, formas e per-
escolhas em participar ou não das performances, ficar ou
cursos dependem dos suportes físicos e simbólicos do
H
 Endereço para correspondência: Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua espaço, dos corpos envolvidos e das interações com os
São Francisco Xavier, 524 - 11º andar /bloco E, sala 110. Maracanã, Rio de Ja-
neiro, RJ – Brasil. CEP: 20550900. E-mail: elobrantes@gmail.com, maulima@ diversos contextos sociais e culturais que atuam sobre as
gmail.com, anapaulaemerich@gmail.com, thais.thaischilinque@gmail.com
Eloísa Brantes Mendes; Maurício da Silva de Lima; Ana Paula Ferrari Emerich; Thaís Leitão Chilinque

performances. Neste sentido a corporeidade dos perfor-


mers não é trabalhada como instrumento de expressão da
linguagem cênica. Trata-se de uma corporeidade trans-
pessoal, ou seja, um corpo-performer que transita por
diferentes camadas de subjetividades produzidas no tem-
po-espaço constituinte da performance. Podemos pensar
em uma corporeidade líquida cuja potência vital penetra
nos ambientes, espacializando temporalidades distintas
(o imediato, a memória, a duração, o instantâneo, a ex-
pectativa, a espera, etc.) por deslocamentos estéticos que
reconfiguram as relações entre as coisas, corpos, lugares
e imaginários em realidades dadas - a liquidez do cor-
po-performer entregue aos fluxos de movimentos que o
atravessam. A questão da presença, aqui, não se coloca Paisagens Inter-Urbanas. Bienal SESC de Dança/ Santos, 2013.

como consciência do corpo, mas como possibilidade de Foto: Lairton Alves.

acessar fluxos que mobilizam as fronteiras entre o que


está fora e o que está dentro do corpo individualizado. Somos 70% água!
O contato com a alteridade pode ser visto como proce- A crise hídrica que, em 2013, deflagrou a insusten-
dimento artístico das pesquisas em performance com o tabilidade das cidades em Estados bem desenvolvidos
Coletivo Líquida Ação. economicamente como São Paulo, Rio de Janeiro e Mi-
Trabalhando há alguns anos com performances em nas Gerais no sudeste brasileiro, foi o ponto de partida
situação de intervenção urbana, começamos a perceber do processo de criação do espetáculo Volume Morto:
que a emergência de movimentos coletivos pode ser pro- uma referência direta ao uso das reservas hídricas vitais.
vocada pela dissociação entre sujeito e ação realizada. As Depois de nove anos atuando com água em espaços pú-
interferências dos lugares e das pessoas são constituintes blicos e problematizando as fronteiras sociais, culturais
da ação. A imprevisibilidade da performance que sempre e econômicas em torno da distribuição de água na pro-
é coletiva quando se trata de intervenção urbana, gera um dução da memória urbana, a violência da crise hídrica
tempo/espaço que coloca em jogo os próprios limites do nos levou a questionar nossas ações de transportar água
corpo em performance. Até que ponto nossas reações ao pela cidade. As mudanças no contexto social e político
que acontece fazem parte do que sabemos de nós? A des- do país nos levaram para dentro de uma sala de ensaios.
tituição do sujeito como único responsável pela ação rea- Diante da questão recorrente sobre “o que estamos fazen-
lizada é importante na dinâmica processual, inclusiva e do juntos”? surgiu a necessidade de um recolhimento. As
coletiva da performance de intervenção. Se trata de uma ações-intervenções em espaços públicos não poderiam
corporeidade líquida cujos fluxos de movimento descen- nos provocar tanto quanto a entrada em uma sala de tea-
tralizam a dimensão expositiva do corpo como principal tro, com todas as implicações políticas e institucionais
foco de atenção da performance. O caráter provocativo que estão envolvidas neste “lugar da arte”. Como levar
da performance de intervenção urbana demanda um mer- a performance para uma sala de espetáculos? No modo
gulho do performer nas profundezas de sua própria pele como atuamos com a rua a relação com o espectador é
em contato direto com a cidade. Corporeidade política maleável, instável e não pré-estabelecida como no tea-
que ao deslocar a ordem das relações existentes possibi- tro. Romper as convenções da representação teatral com
lita a emergência de outras realidades. a impermanência da performance se tornou um desafio.
A pele-superfície de um corpo que, sendo penetrável A “inutilidade” da reserva de água é fundamental na
pelo entorno, interfere na cidade na medida em que de- dinâmica de funcionamento dos mananciais, pois nela se
sestabiliza as fronteiras da linguagem artística. Nos des- mantém todo o ecossistema da vida aquática. O consumo
locamentos estéticos provocados pela performance de da água contida no volume morto pode causar danos ir-
intervenção, a decodificação “arte” pode ser redutora. A reversíveis ao meio ambiente. Mas durante a crise hídri-
confusão entre diversos registros de percepção da reali- ca um acúmulo de fatores - o desespero da população, o
dade cria uma suspensão dos sentidos que é fundamental despreparo dos governantes e gestores públicos em lidar
no caráter de intervenção da performance (RANCIÈRE, com a “tragédia anunciada” pela sua própria ineficácia
2017). O performer não é apenas o artista, mas inclui to- administrativa, e o sensacionalismo midiático em de-
dos que atuam e/ou são atuados pelo acontecimento. Em nunciar o desperdício de água pedindo para as pessoas
espaços públicos toda performance é política. economizarem seu consumo doméstico - dava mais im-
portância à retirada da água do volume morto para ser
usada, do que a sua permanência vital ao ecossistema.
A inversão desta perspectiva utilitária das reservas foi o
ponto de partida da criação do espetáculo baseado em di-
versos fragmentos de arquivos pessoais e coletivos como
ativadores de nossas reservas de água-vida.

128                               Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 127-134, 2017


Volume Morto: performance e corporeidade

Alguns elementos dessa nova pesquisa pressupunham o


ato de repetir. A repetição é uma das bases do teatro e
da dança. Todo diretor, ator e bailarino, lida com esse
elemento diariamente em suas criações e cada um tem
sua própria forma de fazê-la. Para nós, enquanto coletivo,
esse era um elemento novo, então precisávamos desco-
brir, criar formas de vida, dia após dia.
Quando se está na rua a alteridade se apresenta de for-
ma bruta – o fluxo de pessoas, de carros, intervenções so-
noras e visuais - a convenção artista > público fica abalada,
exigindo do performer um estado de presença extremo. Já
no teatro essa alteridade se manifesta de forma diferente,
talvez não tão direta pois está vestida com os “bons mo-
Volume Morto/ Sesc Copacabana 2016. Foto: Cícero Rodrigues.
dos” da convenção teatral, mas igualmente forte.
Em 2015 começamos uma investigação artística sobre Quando estávamos na rua, por vezes procuramos desa-
montagem e memória corporal no processo de criação do parecer, borrar o contorno da representação, fazer ver o invi-
espetáculo Volume Morte. Nos colocamos o desafio de sível, nós íamos até o “público”, agora o público vem a nós.
elaborar uma dramaturgia baseada na temporalidade da
Volume Morto é parte de uma pesquisa de anos. Po-
performance e sua potência transformadora. Como levar
de-se dizer que esse processo se iniciou antes de seu iní-
para o palco a potência transformadora das performan-
cio. Ele foi tomando forma aos poucos – nas primeiras
ces de intervenção, que lidam diretamente com as espe-
experimentações com texto em “Mitologias Urbanas –
cificidades dos lugares em seus fluxos de movimento?
Ouro Líquido”, realizado no Festival de Inverno de Ouro
Ou melhor, como lidar com as especificidades do palco
Preto e Mariana, a partir de trechos da obra Marília de
inserindo todas as pessoas presentes no acontecimento
Dirceu do autor Tomás Antônio Gonzaga; nas primeiras
cênico? Como trabalhar na elaboração de fragmentos a
construções dramatúrgicas envolvendo palavra, memória
serem vistos pela totalidade de um espetáculo, ou seja,
e movimento em “Rio Cruzeiro”, performance realiza-
como fazer uma dramaturgia que não seja apenas expo-
da a partir da narrativas de moradores da Vila Cruzeiro
sitiva? Como elaborar uma dramaturgia selvagem que
acerca da ocupação do exército na favela em 2011 – ação
mantenha as tensões da imprevisibilidade e desestabili-
realizada na própria favela e tendo como performers os
ze o lugar do espectador e do performer? Estas questões
próprios moradores; ao relacionamento intenso com o
atravessaram o processo de pesquisa e criação do espe-
Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do Padre Antonio
táculo entre 2015 e 2016. A investigação dos arquivos e
Vieira, sendo essa a primeira palavra-ação que nos acom-
a transformação destes materiais em ações e fragmentos
panha até aqui. Talvez o espetáculo Volume Morto seja
de cena foram a base do espetáculo. Importante dizer que
a radicalização de uma pesquisa de anos, a fricção entre
todos os objetos utilizados foram retirados do acervo do
espaço público (rua) e espaço privado, movimento e pa-
Coletivo Líquida Ação. A própria memória do coletivo
lavra, indivíduo e coletivo, visibilidade e invisibilidade.
estava em jogo nesta montagem que também era uma
reciclagem. Um mergulho nas coisas que guardamos, o
que fica em nós, a permanência da inutilidade: volumes
mortos como potência de vida.
Maurício Lima
A trajetória individual dos artistas do Coletivo Líqui-
da Ação tem um elemento comum. O caminho dos três
artistas envolvidos diretamente na criação de Volume
Morto é atravessado pelo teatro. O teatro, então, se apre-
senta como uma nova pesquisa espacial, para além de sua
dimensão física e, sobretudo, enquanto linguagem.
Uma nova questão se apresenta: como levar a rua
para um espaço fechado, aparentemente controlado, con-
vencionado, sem entrar em uma representação da mes- Volume Morto/ Sesc Copacabana 2016. Foto: Cícero Rodrigues.
ma? Como sair da rua sem abandoná-la?
Estar na rua é da ordem do descontrole, tudo pode O trabalho do coletivo é caracterizado por uma forte
acontecer. Isso motivava nossas criações, aquilo que não pesquisa plástica. A plasticidade constitui nosso pensa-
se pode calcular, prever. E onde é que habita o imponde- mento ético-estético. Durante anos trabalhamos com um
rável da sala fechada? objeto específico: o balde. Desenvolvemos durante esse
Durante todo o processo, que dura pouco mais de um tempo toda uma pesquisa de movimento e de produção
ano, dia após dia, tentamos descobrir e inventar formas
de manter a vida, o frescor, e o risco, dentro da repetição.

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Eloísa Brantes Mendes; Maurício da Silva de Lima; Ana Paula Ferrari Emerich; Thaís Leitão Chilinque

de sentidos, na relação corpo-objeto-espaço. O balde, às As formas de financiamento para produção artística


vezes em grande quantidade, às vezes em apenas uma estão cada vez mais escassas. Não há, em nossa cidade,
unidade, era dispositivo para essa provocação estética. uma política cultural pública e privada consistente, que
Ao iniciarmos os ensaios de Volume Morto, nos colo- valorize a arte como bem comum e necessário, cultural
camos algumas “regras”, a primeira delas era a negação e educacionalmente, como potencializador na construção
ao balde. Era preciso negar um elemento tão constituinte de uma sociedade mais crítica. É preciso, então, subver-
de nossas ações para saber onde nossos corpos - a única ter a ordem das coisas, e buscar um processo que não
coisa que nos restava- poderia nos levar. trabalhe a partir da falta, daquilo que ‘poderíamos ter’,
seja em relação a tempo ou dinheiro. Mas, sim, trabalhar
Partimos, então, com nossos corpos e toda a memória
com aquilo que se tem. É preciso fazer uso das nossas
individual e coletiva que tínhamos, rumo a um rio sem
reservas para transformação do velho em novo. Como
margens.
o volume morto é uma grande concentração de vida, a
A água agora, mais do que nunca, se apresenta como nossa dramaturgia pensa a reciclagem, a multiplicação
assunto urgente a nós. No auge da crise hídrica nacio- e transformação do que já existe, ao invés da produção
nal, pensávamos em como seguir depois do fim da água. de mais lixo. Fez-se necessário, em Volume Morto, ir ao
Atravessados por toda essa situação política, nos encon- encontro de si para conseguir encontrar o outro.
tramos com o tão repetido “volume morto”. O que é esse
volume morto que todos os jornais estampavam? Volume Thaís Chilinque
morto é o nome dado a quantidade de água que fica abai- Concomitantemente à ostensiva divulgação da crise
xo dos canos de captação de uma represa. A água, que hídrica no Estado de São Paulo, veiculada pela grande
recebe este nome não deveria ser usada por se tratar de mídia, recebemos a notícia da impossibilidade do uso
uma parte onde se concentram metais pesados. Mas, o da água na proposta de intervenção urbana, apresentada
que pouco se falou é que esse mesmo volume de água é ao projeto de residência artística PERFORMANCE.1 Ao
indispensável para a vida e manutenção de todo um ecos- lidar com tal “impedimento” na ação coletiva de trans-
sistema existente ali. portar água pela cidade, o grupo (re)afirmou a natureza
Dramaturgia Sustentável - formas de se fazer: de sua pesquisa e atualizou seu percurso de criação em
performances no encontro com o fluxo dos acontecimen-
A sociedade estimula o consumo desenfreado de
tos. Como evocar a potência líquida, vital, imagética e
notícias, de aparelhos celulares, de um feed de infor-
sensorial do elemento água na sua ausência?
mação efêmero no Facebook – o novo em detrimento
do velho. Fazendo com que tudo seja rapidamente des-
cartado, descartável. Indo na contramão dessa “ordem
social”, o processo se coloca o desafio de trabalhar
apenas com o consumo daquilo que já existe, acessan-
do memórias pessoais e coletivas na tentativa de uma
construção sem excessos. Na urgência do tempo não
há espaço para prolixismo, é preciso dizer apenas o
necessário antes que o tempo acabe.
Esse pensamento está para além de um fio condutor
para construção da dramaturgia – a dramaturgia não está
apenas ligada a construção de um texto, mas também à
própria criação da cena, do movimento, da sonoridade
- ou de apenas uma forma de baratear custos, mas essen-
cialmente, como pensamento político e forma de trabalho Residência artística PERFORMANCE / Sesc Campinas 2014.
do Coletivo Líquida Ação.
Num meio onde as condições de trabalho para o ar- Na ocasião, a escolha pelo elemento areia não era uma
tista muitas das vezes são ínfimas, beirando o desrespeito representação da falta d’água, mas a potência da água em
nas relações com instituições, onde ele é o que menos sua ausência, modificando ações e linhas de força da pro-
ganha e aquele que recebe por último, buscamos um posta de intervenção. Considerando a mudança de peso,
modo de trabalho onde o artista é o “bem mais precioso”. a areia modificou nossas relações com a gravidade e com
Para isso, nesse processo, é importante lembrar a parti- a densidade das relações entre corpo e cidade. Ao verter
cularidade deste trabalho e do momento atual do Cole- grãos de areia, instaurou- se uma violência vertiginosa
tivo Líquida Ação. Priorizou-se um investimento maior entre macro e microesferas; houve uma reconfiguração
no material humano ou, ao menos, mais equilibrado no das tensões que se estabeleciam entre um grão de areia e
âmbito do orçamental. Isso não é uma regra geral que se a paisagem. Vazando as camadas mais internas da pele e
opõe a outras formas de trabalho, visto que, aqui, a forma do corpo, experenciamos um novo fundo tônico ligado à
não está separada do conteúdo. precisão, à atenção e à inteireza do movimento e de suas
relações com outros corpos e espaços.
1
 Na 9ª Edição do evento PERFORMANCE (Sesc Campinas/ 2014), o coletivo
realizou a performance Ser ou Não Peixe? e uma oficina que culminou na inter-
venção Paisagens Inter-Urbanas.

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Volume Morto: performance e corporeidade

A violência e velocidade gravitacionais atualizaram nidade ética do trabalho e das relações. Com o caixa do
de maneira profunda movimentos de resistência impon- coletivo, conseguimos manter alguma independência do
deráveis. Não resistir era sucumbir – e ponto. A radica- mercado da arte. O trabalho construindo o seu próprio
lidade dessas sensações trouxe à tona a lembrança da tempo de autonomia e dedicação.
performance Ser ou Não Peixe? também realizada no Na construção do espetáculo, objeto dessa escrita, o
Morro da Providência (Rio de Janeiro, 2012). A leitura volume morto do Sistema Cantareira ativou memórias,
molhada do sermão do transgressor Pr. Antônio Vieira desejos e inquietação dessa água que nos une. Na sala de
inaugurou um mar eufórico de crianças que se divertiam ensaio procuramos traçar a localização “geográfica” dos
em golpear água nos performers; o fim da “água limpa”, corpos; (re)conhecer as pessoas com as quais trabalha-
cuidadosamente distribuída em baldes coloridos, trouxe mos; entender se o que estávamos fazendo na rua ainda
uma enxurrada de água esverdeada na direção da ação. fazia sentido. Partimos de um ambiente rarefeito e árido
O texto de 1654 foi o dispositivo performático que deto- para tocar (nossos) volumes. Quando o texto do Fernando
nou um encontro estético e político entre performers, as Reinach (2014) chegou em nossas mãos, reafirmamos as
crianças, seus pais, traficantes e toda gente que ali estava; potencialidades e vitalidades dos volumes mortos. O pro-
um encontro de realidades diversas e produção de uma cesso acessou um espaço liminar entre a nossa memória
realidade comum naquele espaço-tempo.2 e a memória do mundo, entre a liquidez das nossas von-
A experiência de Campinas veio romper com a “pon- tades e “limitações” e vontades e “limitações” do mundo.
deração” e a “condescendência”, seja pelo viés da memó- Asfixia e desconforto acompanharam o processo. Era
ria corporal, alienação e/ou hegemonia daquilo que nos preciso estranhar; transformar o familiar em exótico (e
afasta da experiência do corpo. Inauguramos o tempo da vice-versa) para conseguir mergulhar, ultrapassar a fase
urgência e de uma economia do desejo, bem como o tem- umbilical e expandir a noção de indivíduo. Esse atraves-
po da falência de modelos, de cidade, de reforma urbana, samento só foi possível por uma ética e confiança cons-
de como fazer arte; e até arte urbana, dita por muitos, truída entre nós durante os seis anos de trabalhos juntos.
como arte da espontaneidade, liberdade e da coisa pú- O trabalho tinha a ver com (re) inventar mundos, num
blica. Foram mais de 12 meses de investimento e inves- processo incessante de esquecer e lembrar. O medo e vul-
tigação. Naquele momento quais seriam as questões de nerabilidade estavam presentes diante de um “fim”; do
gravidade para cada pessoa do Coletivo? Como produzir fim de uma imagem de si, do outro e daquilo que até en-
encontros afetivos e efetivos usando o caminho da arte? tão conhecemos como “nosso mundo”. A ficção teve um
Como radicalizar, dentro do próprio grupo, aquilo que peso nesse processo; ficcionar para multiplicar, sobrepor,
não é hierárquico e nem familiar no intuito de criar um acumular e reconfigurar realidades. Não era nosso obje-
espaço possível para o exercício da alteridade? tivo determinar um caminho, polarizar discursos, dar a
Beleza, nostalgia, salubridade, harmonia.... As cores direção para uma humanidade salutar. Seria ingênuo e
dos baldes foram se distanciando e o olho foi perden- alienado pensar em ocupar apenas um lado da história.
do sua dependência por uma exterioridade chapante; Acessar as lógicas da sociedade de consumo e do capital
a atenção expandiu por uma “movência” complexa: financeiro era acessar a complexidade e controvérsias da
interna-individual-privada-singular-subjetiva e exter- nossa própria existência. A ideia era duvidar, deslocar e
na-coletiva-pública-múltipla-institucional e individual- estranhar; refletir e fazer refletir; colocar em jogo nossos
-múltipla-pública-subjetiva e por aí vai. Sustentar o peso próprios contornos e, quem sabe, fundar outros contornos
de sacos de areia, mergulhar e banhar-se nessa aridez possíveis. O mergulho na rua da pele trouxe o que era
do concreto não revelou o fundo, o fim e nem um lado, excessivo, o que sobrava no nosso imaginário e cotidia-
mas trouxe à tona o reservatório de vida, tridimensional, no, diante de um país que vivia a iminência de um golpe
imensurável e imanente ao corpo. Volume Morto é um de Estado. Entrar na caixa-preta, naquele momento, era
continuum da pesquisa do Líquida Ação que espirala, questionar a vida em sua forma intensiva, espetacular,
circula, dobra, verte, refrata, mergulha, toca, chacoalha, efêmera e vulnerável.
arrebenta, respira e muda de estado físico. Os procedi- Em abril de 2015 éramos 5; ficaram 3 e depois 4. Sem-
mentos deste trabalho estão comprometidos com o es- pre na reserva e na urgência ordinárias. Era uma cons-
paço, com o que o compõe e o anima. Por isso pensar trução de espetáculo repleta de volumes de diferentes
no trabalho de criação é pensar também em como via- naturezas: poluições e transposições de rios para alimen-
bilizá-lo financeiramente, dialogar com as instâncias tar metrópoles; formas de violência urbana por questão
monetárias, institucionalizadas e burocráticas. Investir de gênero, desejo sexual, religião e cor da pele; crises
na pesquisa é também experimentar um modo de fazer para controlar a cólera do mercado financeiro; corpos vi-
artístico inexorável à prática comercial: elaborar-per- vos e mortos que desapareciam; os sistemas de cárceres;
formar-produzir. Desde o início do grupo, foi criado um investimentos do Estado na desigualdade social; burocra-
“caixa”. A venda de um projeto corresponde a investir tizações da vida; a sacralização do consumo para alienar
nesse caixa, um valor equiparado aos cachês e serviços. a classe trabalhadora; fomento da impotência, ceticismo
Um valor comum ao coletivo que o alimenta, numa dig- e melancolia; correntes de imigrantes rumo à Europa.
2
 Em 2012, a Secretaria de Habitação do Município do Rio de Janeiro marcou com Protegidos por um romantismo burguês, observávamos,
“SMH” centenas de casas que seriam demolidas para a implantação do teleférico
da Providência. Além de demolir a Praça Américo Brum- um espaço importante
para a comunidade- a SMH conseguiu desapropriar cerca de 200 famílias.

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Eloísa Brantes Mendes; Maurício da Silva de Lima; Ana Paula Ferrari Emerich; Thaís Leitão Chilinque

no horizonte, “o fim” e, como dizia Eloísa, estávamos uma tensão entre o que conhecíamos (e até desejávamos
nos dedicando a viver “futuros passados”, excitados com manter) e um amórfico “devir” das coisas. Vazamos a vi-
a ideia de um progresso. sualidade e sentidos cotidianos para escutar essas ações
A criação do espetáculo se desenvolveu simultanea- em sua polifonia, numa conversa rica e inquietante entre
mente ao projeto homônimo que seria realizado em três os artistas que compuseram a equipe do espetáculo, o pú-
cidades no curso do Rio Doce. Eloísa, Ana Paula e Cau blico e os colaboradores. Numa multiplicação de vozes,
(produtora) submeteram, a partir da pesquisa do Líquida silêncios e ruídos, surgiram estranhamentos potentes que
Ação, o projeto de residência artística Volume Morto. Em reconfiguraram os afetos, as produções artísticas e os
5 de novembro de 2015, três dias depois de submeter a procedimentos para manter vivo o trabalho de pesquisa
proposta, essa matéria de vida e criação se misturou à e criação artística em performance.
lama tóxica da Samarco. O Rio Doce, que alimentava a Ana Emerich
região de maior biodiversidade do planeta, tinha sido ex-
Um breve desvio acerca da escuta dos rios, da voz de
terminado num duro golpe. Para nossa surpresa, fomos
suas fontes e do tempo visual: Volume Morto coloca para
aprovados no edital, o que se revelou como um grande
a percepção uma dimensão temporal relativa, não somen-
desafio. O que surge da água- lama? O que fazer depois
te ao passar do tempo, mas também às marcas visíveis que
do fim? Qual é o uso que fazemos das nossas reservas?
as ações imprimem no espaço, com a memória do tempo.
Viver a intensidade desse luto radicalizou nossas postu-
Traz uma gama de sonoridades entrelaçadas – dos sons
ras como performer e seres humanos.
de água à voz humana, dos sons de objetos à materiais de
A direção do espetáculo estava comprometida em evi- arquivo – em gestos visuais e faixas compostas a partir
tar o voyerismo. O acesso biográfico à lógicas predató- destes elementos. Há um espectro de ações poéticas que
rias, como procedimento de fricção espacial e temporal, percorre e contamina os contornos de uma experiência cê-
era um convite de acesso à reserva energética e à matéria nica que pensa a carne da terra. O corpo que carrega um
que nos constitui, no que se refere tanto ao artista como rio não é um corpo perene, o corpo do humano não é um
ao espectador. Essa fricção produziu a ação de rolar con- corpo ingênuo e um corpo em processo de criação não é
tinuamente pelo chão. Rolávamos na Casa da Glória, no um corpo neutro. Todo corpo é político por isso.
Centro Coreográfico, no Laurinda, no Sesc, não tínhamos
mais a mesma referência. Volumes movidos e moventes Pausa
por uma coluna metálica imaginária e horizontal. Os cor- Atelier da Escuta é uma proposta de acompanhamen-
pos pereciam como em fornos de padarias, porões de na- to de projetos que desenvolvo junto à artistas e institui-
vios, presídios, leitos de hospitais, e orfanatos. O enjoo ções em módulos de colaboração. Pensar o som como
vinha de uma ação paradoxal de passividade e agência lugar permeado de imagens latentes, não retinianas. En-
combinadas; permitiu instaurar o “milagre da multiplica- tender as vozes humanas e as vozes diversas como uma
ção”: o ruído das referências pessoais e coletivas detona- porção intangível do espaço e que são, elas mesmas, cor-
ram uma polifonia cênica que nos interessava. po. Pensar as sonoridades e o volume arquitetônico junto
“Quantos somos?” É a questão que sempre retorna à dramaturgias do cotidiano ou em contextos cênicos, e
e nos localiza no tempo-espaço. O volume é uma abs- o tempo como uma prática de expansão: plataforma para
tração, mas nos auxilia a tocar nas forças que nos fazem emergência de polifonias heterogêneas.
mover. Durante a maior parte do tempo, éramos apenas O convite e os encontros com o Coletivo Líquida
três. Fora a direção, um homem e uma mulher em cena. Ação trouxeram uma dobra à esta pesquisa. Especifica-
Como criar um espetáculo sem resumi-lo ao universo mente, considerar a dimensão sônica das ruas e o contor-
particular? As individualidades e tensões interpessoais se no acústico de uma sala de teatro abre uma investigação
apresentaram. Não havia rota de fuga. O tempo era ur- acerca de encontros e também de passagens. Imprime um
gente e atravessado. Por isso, o rigor nos procedimentos. certo ritmo e contaminações ao percurso desde o início.
Investimos nas potencialidades dos volumes mortos- não Que pontos de interseção entre o dentro-fora do palco são
pela via do ressentimento na iminência do fim- mas pela também pontos de permanência e âncoras da dramaturgia
via da alegria em acessar a reserva de maior concentra- do Coletivo, construída a partir de fragmentos ficcionais,
ção e potência criativa. Das improvisações, surgiram memórias e atualidades?
fragmentos, gestos e textos que compuseram uma drama- Havia um terceiro chão a ser mapeado, onde se cru-
turgia acidentada por forças coexistentes e que complexi- zavam as urgências da macropolítica – lutas deflagradas
ficaram a abordagem de questões como o cuidado com o nos últimos anos e que tomam as ruas no Brasil hoje – e
meio ambiente, o machismo e o racismo. A violência físi- as resistências da micropolítica que, neste recorte, po-
ca e psíquica impelida aos corpos lançou um movimento demos entender como um estado em arte. Uma procura
vertiginoso de estar sempre dentro e fora das situações, por dizer com e desde a poética em cena. Estado para
num marejar das estruturas já conhecidas. construir um fazer que é tão mais singular quanto mais
Esse modo de implicação com o trabalho e com a arejado forem seus contornos:
vida trouxe, sem dúvida, uma outra maneira de “estar [...] a idéia de subjetividade é aberta, é um todo aberto, ela
junto” mais plural, coletiva, responsável, vulnerável, afe- não está calcada neste modelo de identidade, de interiori-
tiva, horizontal e autônoma. Performar objetos, textos e dade, de uma delimitação, ela é aberta a tudo que é exte-
ações do acervo do coletivo e do acervo pessoal criou

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Volume Morto: performance e corporeidade

rior, ela não tem um centro, ela não tem uma identidade, ou em contrapontos com as imagens vistas pelos olhos. E
ela está mais disponível para as forças que a atravessam também acerca da imaginação – a possibilidade de criar
e a habitam, ou seja, a subjetividade, por definição, está espaços de imagens abertas e momentos de suspensão na
mais aberta aos devires que a tomam, mais aberta a uma relação direta entre olhar e escuta. Como uma fermata,
multiplicidade que a habitam, mais aberta aos atravessa- esta figura musical que sustenta o som vibrando no ar por
mentos e as multiplicidades que empurram para inúmeros um tempo determinado, não por uma mensuração exata e
lados (PELBART, 2016, online). fixa, mas, sim, pela experiência sensível de uma duração.
Neste terreno de convivências - postas em cena pe- Ampliando a idéia de terreno – elemento chão, a carne
los três performers e por outros corpos materiais - sons da terra – perceber as vozes ancestrais de um espaço-ter-
e imagens operam entre si movimentos autônomos em reiro trouxe a busca por acomodar uma sobreposição de
estruturas relacionais. Como um objeto composto de memórias, entender um lugar poético para estas narrati-
elementos indissociáveis, os gestos sonoro-visuais inter- vas. A voz de uma companhia siderúrgica foi atualizada
vêm na fala, na dança, no canto, na luz, na dramaturgia, por sons de objetos não presentes em cena naquele instan-
no tempo de Volume Morto: ritmos aliados à silêncios; te, mas que soam como instrumentos musicais em outros
vozes em contraponto a escutas; a privação da visão em momentos do espetáculo – um deslocamento temporal. A
diálogos com o espaço cênico; o palco sobreposto por voz de um homem do “povo da floresta” a soar junto com
movimentos de dança e também pela presença do públi- uma chuva que se modula, pouco a pouco, em uma trama
co, muito próxima. Coisas que, juntas, estabelecem dife- de fala e sonoridades dicotômicas semanticamente. Uma
rentes texturas em cena. voz feminina com o mesmo texto, em camadas, cria tim-
Algo idiomático às texturas é o olhar tridimensional bres e vocalidades da composição aquática. Por exemplo.
que parecem sugerir. Uma textura não determina uma Em Volume Morto não há um tempo de cena exa-
percepção única acerca do que se fabula durante o es- to, a ser cumprido irremediavelmente, quer quanto aos
petáculo, mas, sim, abre janelas de escuta. Um volume é sons, quer quanto às imagens e movimentos no espaço.
sempre algo a ser percebido a partir de diferentes dimen- Há margens de improviso por parte dos performers e da
sões e perspectivas, afinal. diretora. Está, em performance, a presença de uma sin-
Uma mala é arrastada, uma voz de mulher canta. Um gularidade do encontro, que faz ecoar atravessamentos
peixe anda de costas, faz som mecânico. As rodas que do instante ao mesmo tempo em que protocolos cênicos
correm, da mala e da mesa, o zíper que abre. Um projetor sustentem tais variações.
faz som de ar e de máquina. Imagens da mineradora, as A escolha por um projeto sonoro que prioriza os ges-
imagens fazem um som mudo, de dor, de amor? Sons de tos acústicos produzidos em tempo real e, no qual, as
bem longe, vestígios afetivos. Uma piscina e uma bom- faixas sonoras são operadas em cena, instaura a noção
ba. Bomba de ar. Bombas em toda parte lá fora. Há po- de tempo presente como lugar de ação. Lugar este que
lícia aqui dentro, sim. Há um rio que morre. Uma lona aproxima do palco, em sentidos múltiplos, os trabalhos
que se abre, tantos sons, violência tamanha, água para desenvolvidos pelo Coletivo Líquida Ação em espaços
todo lado. Três histórias em vida, outras em memória. públicos até então.
Vozes de homens, em cena, em locução, na mata. Chove.
Respira. Chove. Uma garrafa de água é um fio que pul-
sa, também. Faixas de composição, sons concretos. Do
aqüífero, camadas de voz, subterrâneos. “Qual a cor da
minha pele?” Pensar o tempo do silêncio, ausência não é
esvaziamento. Propor subtrações: de trilhas sonoras, de
sons reproduzidos – os escapes em cena são a linha mais
potente do dizer. O som dos pés no chão.
Pausa
Entrar em uma história é um movimento cuidado-
so. É sobre estabelecer proximidades, reunir-se com um
“reservatório de possíveis”. Envolver as sonoridades
de objetos pessoais do Coletivo e de objetos dos traba-
lhos anteriores instaurou no processo sonoro de Volume Volume Morto/ Sesc Copacabana 2016. Foto: Cícero Rodrigues.
Morto a ação de trans-criar e de criarmos juntos. Estes
objetos tiveram, neste contexto, suas naturezas subver-
tidas para as cenas, mudaram de lugar no mundo, em
sua função de objetos cotidianos.
Propor os sons em uma relação emancipada com as
materialidades cênicas – corpos orgânicos e inorgânicos
– presentes visualmente ou manifestos como memória in-
delével das histórias em fragmento levadas à público – ins-
taurou um pensamento acerca dos sons – em dissociação

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Eloísa Brantes Mendes; Maurício da Silva de Lima; Ana Paula Ferrari Emerich; Thaís Leitão Chilinque

Referências
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do
desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
PELBART, P. P. Um reservatório de possíveis em nós. 20 out.
2016. Disponível em: <https://laboratoriodesensibilidades.
wordpress.com/2016/10/20/um-reservatorio-de-
possiveis-em-nos/>. Acesso em: 28 out. 2016.
RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: Martins
Fontes, 2017.
REINACH, F. Volume morto ou vivo? O Estadão, 22 mar.
2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/
noticias/geral,volume-morto-ou-vivo-imp-,1143746>.
Acesso em: 16 jun. 2016.
Recebido em: 16 de novembro de 2016
Aceito em: 23 de junho de 2017

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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 135-142, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2172
Dossiê Corporeidade

Corposições entre o ver, o dizer e o agir


Catarina Mendes Resende,I Iacã Machado MacerataI, HLeticia Costa Barbosa,II Mariana Barbosa Pimentel,III
Mariana Borges de Moraes,I Cesar Augusto de Macedo,IV
I
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / II Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
III
Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal / IV Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
Este artigo enuncia as questões que mobilizam o coletivo de investigação “Corposições: Profanações entre afeto, performatividade
e território”, explicitando o “como”, “onde” e “quando” os campos de atuação de seus integrantes se imbricam para construir
um corpo comum. A partir de suas principais ferramentas de trabalho - a Composição em Tempo Real de João Fiadeiro e o Modo
Operativo AND de Fernanda Eugenio – o jogo proposto pelo grupo é o de partilhar suas experiências, dando visibilidade ao que
desestabiliza, ventila e amplia suas práticas e discursos. Tal proposição implica modos de ver específicos – a articulação entre
corporeidade, afeto, território e performatividade – e modos de agir – uma investigação que é experimentação e laboratório, na
qual são performadas intervenções entre dança e clínica.
Palavras-chave: Composição em Tempo Real; Modo Operativo AND; corporeidade; dança; clínica.

Corposições between seeing, saying and acting


Abstract
This article states the questions that mobilize the research group “Corposições: Profanations between affection, performativity
and territory”. It highlights “how”, “where” and “when” the fields of action of its members imbricate to build up a common body.
Considering its main work tools - João Fiadeiro’s Real Time Composition and Fernanda Eugenio’s AND Operative Mode - the
game proposed by the group is to share their experiences, giving visibility to what destabilizes, ventilates and broadens its practi-
ces and discourses. This proposition implies specific ways of seeing - the articulation between corporeity, affection, territory and
performativity - and ways of acting - an investigation which is experimentation and laboratory where interventions between dance
and clinic are performed.
Keywords: Real Time Composition; AND Operative Mode; corporeity; dance; clinic.

1- Panorama Dança, Da Clínica. O que aqui se compõe é feito de vá-


Este artigo enseja apresentar o coletivo de investiga- rias práticas e persespectivas que atravessam a dança e a
ção “Corposições: Profanações entre afeto, performati- clínica. Temos ao mesmo tempo alguns pontos comuns
vidade e território”, que investiga e propõe composições e alguns pontos de particularidades irredutíveis. Isso re-
entre arte e clínica. Mais do que apresentar nosso co- quer - e se trata de um aviso - uma estratégia narrativa
letivo, interessa-nos “mostrar” como, onde/quando as que ora fala em um nós, ora em um ele/ela, ora em um eu.
questões dos vários componentes se imbricam, formando Cada pronome pessoal nada mais é que um agenciamen-
assim, um corpo comum do grupo. Corpo comum que to coletivo de enunciação (DELEUZE; PARNET, 1998)
por sua vez é repartido em cada prática que se realiza momentâneo de processos irredutíveis ao nome que se
fora do Corposições. Trata-se aqui de um duplo exercí- dá. Nosso problema é esse e sempre retorna: a enuncia-
cio: apresentar e enunciar trajetórias específicas que se ção. Com esse problema nos ocupamos sem nenhuma
encontram, que constróem uma superfície de contato; intensão de esgotá-lo: trata-se mesmo de mantermo-nos
indicar as consequências – que não deixam de ser cau- neste jogo/exercício de expressar o mesmo problema de
sas – que esta superfície produz nos âmbitos que cada modos diferentes. De modo que o problema nunca é “um
componente atua. Um movimento constante de encon- já aí”, e tampouco um lugar a se chegar de vez por todas.
Nosso jogo de dizer é fazer ver as relações que compõem
tro-dispersão-reencontro constitui nosso “jogo”:1 uma
nossas problemáticas, recriando-as: ato performativo de
experiência coletiva, e sempre parcial e provisória, de
enunciar com aquilo que fissura e escapa do já dito.
enunciar o indizível que nos une.
Enunciar (com) um coletivo que ganha corpo passa
Aqui falamos de trajetórias ou corpos muito diferen-
inevitavelmente por localizar um encontro que teve efeito
tes que, em uma primeira mirada, poderiam ser divididos
(afetivo) de enunciação: o encontro com Modo Operativo
em dois grandes campos: a dança e a clínica. Porém, ao
AND (MO_AND), desenvolvido pela antropóloga brasi-
nos determos mais atentamente, vemos não se tratar Da
leira Fernanda Eugenio, em articulação com a Composi-
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Departa- ção em Tempo Real (CTR) desenvolvida pelo coreógrafo
H

mento de Psicologia Rio das Ostras. Rua Recife - até 599/600 - Jardim Bela
Vista. Rio das Ostras, RJ – Brasil. CEP: 28895532. E-mail: catarinamresende@ português João Fiadeiro.2 Encontro Brasil-Portugal, en-
gmail.com, imacerata17@gmail.com, letibarbosa@gmail.com, maribpimen-
tel@gmail.com, marianabmoraes@yahoo.com.br, artegutal@gmail.com contro de placas tectônicas que reverbera blocos de en-
1
 O modo como compreendemos esse jogo da nossa escrita nos aproxima da no- contros-acidentes. O encontro de cada um de nós com o
ção de “dispositivo”, uma vez que nosso primeiro exercício é darmos relevo às
curvas de visibilidade e de enunciação num conjunto multilinear e heterogêneo MO_AND e com a CTR produziu um efeito enunciativo,
que opera em devir. Nas idas e vindas entre o ver e o dizer, nossso jogo vai
pondo em relevo também as linhas de ruptura, de subjetivação e de força que o 2
 Tais ferramentas serão apresentadas quando estivermos descrevendo o mapa das
compõem entre a desestabilização e a consistência (DELEUZE, 1996). condições iniciais de nosso jogo na sessão 2.
Catarina Resende; Iacã Machado Macerata; Leticia Costa Barbosa; Mariana Barbosa Pimentel; Mariana Borges de Moraes; Cesar Augusto de Macedo

não de decifração, mas de “sacação”: “Ah! então é isso!”. experimentação que gira em torno do tabuleiro de jogo
Sensação-sentido partilhado de um fazer ver e fazer falar do AND, ou do espaço demarcado da performance da
algo que cada um a seu modo vinha perseguindo, em sua CTR, mas que tende a trazer para nossa experiência ou-
trajetória específica. O MO_AND e a CTR foram para nós tros usos desses dispositivos e dessas duas perspectivas.
a expressão presentificada de visões de mundo, de modos Aquilo que entendemos por profanar: se por um lado o
de ver, que partilhávamos, que se articulavam e se con- encontro com tais persepctivas e dispositivos profanou
cretizavam ou corporificavam em um dispositivo de jogo. nossa própria prática individual, nosso coletivo trabalha
Dizemos que o encontro “deu onda”: mergulho do corpo e no sentido de utilizar o MO_AND e a CTR para produzir
do pensamento em uma trama molecular3 das substâncias outros espaços de experimentação, profanando-os. Essa
que os compõem. No MO_AND iam se implicando e se é a direção e o modo de proceder que queremos afirmar.
articulando pessoas com práticas as mais diferentes. E este artigo tem a função de demonstrar tal horizonte e
tal caminhando. Ao fim e ao cabo, de nossa experiência
O interesse e o envolvimento comum com o MO_
nas ferramentas, do nosso espaço coletivo e das nossas
AND fez com que nos juntássemos primeiramente para
práticas fora do grupo, temos como efeito a emergência
estudar e praticar o dispositivo jogo, e posteriormente
disso que chamamos corposições.
para investigar não somente o MO_AND, mas através
deste. O MO_AND é uma perspectiva e um dispositivo 2-Mapa das condições iniciais de nosso jogo
que compôs com nossa perspectiva e outros dispositivos 2.1- As ferramentas-perspectivas catalisadoras: a CTR e o MO_AND
de que já dispúnhamos, veiculando o desdobramento de
um processo de investigação. Por perspectiva entendemos Duas são as ferramentas principais no âmbito de nos-
um modo de ver e um modo de agir situado em um cor- sa investigação e constituição como grupo de estudos: a
po, seja ele individual, seja coletivo. Um corpo-perspec- Composição em Tempo Real (CTR) desenvolvida pelo
tiva entendemos como uma localização, uma articulação coreógrafo português João Fiadeiro desde 1995 e o Modo
em um espaço-tempo que agencia, apreende e expressa Operativo AND (MO_AND), criado pela antropóloga
um modo de ver o mundo, também um modo de agir, de brasileira Fernanda Eugenio em interlocução com João
construir o que se vê. Corpo-perspectiva como um modo Fiadeiro entre os anos de 2011 e 2014, enquanto juntos
de ver é uma operação de “ver como…” (MACERATA, co-dirigiram o AND LAB – Centro de Investigação Ar-
2015). A instância que concretiza uma perspectiva é o tística e Criatividade Científica.
corpo, ao mesmo tempo que o corpo determina a pers- Antes de mais nada, é preciso remarcar um duplo
pectiva (CASTRO, 1996, 2010). sentido do que estamos chamando de ferramenta. Aqui
Se cada um de nós foi tendo seu modo de ver e agir em ferramenta é tanto um dispositivo prático, que se con-
sua prática modificado pelo encontro com o MO_AND e cretiza em um instrumento com um certo método – um
com a CTR, ao mesmo tempo nos interessava continuar jogo, no caso do MO_AND – mas também fala de uma
jogando, tirando consequências disso, continuar atuali- prática teórica, ou ainda, para nós, uma perspectiva, um
zando isso que fez efeito, essa sacação, essa onda. Mas modo de ver a realidade, que implica posicionamentos
a onda e a sacação individual – que se deram como efei- perceptivos, éticos, estéticos e políticos. De modo que se
to no pensamento e no corpo – também se davam pelo temos uma ferramenta concreta, como instrumento que
encontro entre nós. Nosso processo de investigação por- pode ser usado, que se repete, digamos um certo corpo,
tanto trata de estabelecer certa zona de interesse comum, temos também uma perspectiva, como posicionamento
construindo alguns dispositivos para nos ocuparmos des- num espaço de relações muito amplo: um modo de ver
se comum, e que acaba por (re)definir cada prática indi- no mundo. Toda concreção, corpo, veicula e é veiculada
vidual fora do espaço do coletivo. por um olhar, um modo de ver e de agir.
Neste artigo propomos um jogo que é o de enunciar o É nesse sentido que João Fiadeiro, em seu dossiê so-
que experienciamos em rede, dando visibilidade ao que bre a CTR, a define como “uma ferramenta teórico-prá-
desestabiliza, ventila e amplia nossas práticas e discur- tica que estuda, problematiza e sistematiza a experiência
sos. Aqui nos interessa apresentar o nosso coletivo como de improvisação e da composição em arte, utilizando o
uma composição que nos faz compartilhar um corpo campo proporcionado pela dança contemporânea como
comum, mas que também nos convoca a tomar posição território privilegiado de investigação e aplicação” (FIA-
com/em nossos corpos na relação com os outros: nos- DEIRO, 2016, p. 2). Neste método, o ato criador precisa
sas práticas na clínica e na dança fora do corposições. ser resultado de um encontro, e não exatamente da mente
Estamos enunciando o comum do grupo a partir da ar- Do Artista. Não resulta de uma projeção pessoal, seja ela
ticulação entre três “motivos”/temas que entendemos explícita ou implícita. A partir do encontro com um tem-
estarem mutuamente implicados: afeto, performativida- po, um espaço, um outro, uma coisa, um afeto que serão
de e território. Tal comum, podemos dizer, se apresenta geradas as condições de descoberta daquilo que de fato
também em nossas práticas individuais e compõe uma toca, move e infeta o coletivo, que constrói então a partir
corporeidade coletiva. Nossa investigação se faz como da suspensão das trajetórias individuais seu plano comum
de partilha. A prática da CTR desenvolve-se em estúdio a
 Molecular aqui se refere a uma dimensão da realidade ali onde a realidade é an-
3

terior às formas molares, nomeáveis, delimitadas, dizendo respeito aos processos


partir de um simples dispositivo: um claro enquadramen-
que tem consistência das forças, afetos. Realidades pré-conscientes, pré-indivi- to espacial (um dentro e um fora) e temporal (um antes
duais, dimensão pré-individuada. O conceito dupla face molar/molecular está em
(DELEUZE; GUATTARI, 1997).
e um depois). No início, os participantes encontram-se

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Corposições entre o ver, o dizer e o agir

“fora” do espaço delimitado e o trabalho começa no mo- jogada instaura a posição 1. A segunda, uma segunda po-
mento em que a atenção dos participantes se concentra no sição que cria uma primeira relação. A terceira posição/
espaço “em branco”, o que já constitui uma pré-ação. São jogada poderá criar uma relação com a relação anterior-
necessários certos acordos e princípios prévios para que mente presente. A primeira jogada é a mais aberta, na
se desenvolva a ética do comum e da suficiência, aspectos qual todos os hologramas são possíveis; a segunda pode
vitais deste método, os quais também podem ser chama- clarificar o afeto em jogo, enquanto a terceira pode con-
dos de “sensibilidade às condições iniciais”: a capacidade firmar o afeto comum e assim possibilitar que o grupo
de inibir o reflexo – tendo em vista que a ação por impulso “encontre o jogo”. O exercício de escuta e do reparar nor-
revela a necessidade pessoal do participante de ter uma teiam as ações que se sucederão, de acordo com o que o
ideia e apresentá-la aos demais; o agir em silêncio, sem acontecimento pedir. Assim, uma posição é a perspectiva
explicações ou justificativas; a capacidade de concreti- de um corpo situado, considerado na sua relacionabilida-
zar relações entre posições (e não entre situações, como de; é o gesto de afirmar uma localização e uma duração
tendemos a operar) e a restrição de não se poder fazer num espaço-tempo circunscrito, tomar parte e partilhar,
duas jogadas seguidas. A dinâmica do método acontece de no mesmo movimento, as linhas de visibilidade e dizi-
forma circular e cumulativa, num movimento constante bilidade de um plano comum. Cada posição será sempre
entre o que está “fora” e o que está “dentro”, movimento tomada na sua dimensão composicional, no ato de criar
este que pode ser interrompido por feedbacks meticulosos materialidade às relações que estão em relação.
os quais constituem uma ferramenta central no processo O MO_ AND foca no afeto e suas relações, em um
de transmissão do mesmo. A CTR antes desenhada como espaço “entre”, refletindo sobre a gestão de uma comuni-
suporte de pesquisa coreográfica das criações de João Fia- dade que não hierarquiza sujeito, objeto e acontecimento,
deiro afirma-se, após o encontro com Fernanda Eugenio retardando o mecanismo do “saber” em prol da emergên-
e a contaminação pelo MO_AND, também como instru- cia do “sabor” (EUGENIO; FIADEIRO, 2013). O prota-
mento e plataforma teórico-prática para pensar a decisão, gonismo do sujeito transfere-se para o do acontecimento.
a representação e a colaboração. Essa transferência dá-se substituindo as perguntas habi-
Desdobrada, pensada e praticada como investigação, tuais do sujeito – quem e por quê? – por interrogações
prática de formação e prática de jogo, o MO_AND é uma que o acontecimento nos coloca: o quê, como, onde e
“abordagem ético-estética de aplicabilidade transversal, quando? Pergunta a cada situação que se apresenta: O
dedicada à ‘pensação’ dos funcionamentos e modulações quê, aí está? Como, neste quê? Onde e quando, com este
do acontecimento e à mediação das relações” (EUGE- como? Um laboratório de hipervisualização do plano
NIO, [201?], online), que vem sendo desenvolvida pela molecular dos encontros.
antropóloga Fernanda Eugenio. Emergiu da contamina- Podemos entender o MO_AND como um modo de
ção recíproca entre o método da Composição em Tempo ver e agir, uma perspectiva, que veicula um corpo te-
Real (João Fiadeiro) e o método da Etnografia Aplicada órico e prático de exercícios que podem se dar no es-
à Performance Situada desenvolvida por Fernanda Eu- paço do dispositivo do jogo, mas que também pode (e
genio. Pode-se definir o MO_AND como “um sistema se dá) em qualquer espaço de vida. O MO_AND tan-
de ferramentas-conceito e conceitos-ferramenta de apli- do quanto a CTR podem ser enunciados também como
cabilidade transversal à arte, à ciência e ao cotidiano para exercícios no modo de compor: de modo que qualquer
a tomada de decisão, a gestão sustentável de relações e composição seja guiada e sustentada não em um líder ou
a criação de artefactos” (EUGENIO; FIADEIRO, 2013, em uma ideia, mas no acontecimento tal como ele se dá
p. 222). Guiado pelas perguntas “como viver juntos?” e em um território que envolva os mais variados agentes.
“como não ter uma ideia?”, o MO_AND se utiliza de um Atualmente, o MO_AND concentra-se na abordagem
dispositivo-jogo que permite praticar tal modo de operar, ético-estética dos usos políticos da etnografia nos mais
ao mesmo tempo que constrói um corpo teórico. diversos meios de atuação, enquanto a CTR retorna seu
O jogo se dá da seguinte forma: no plano laboratorial foco para a composição em arte, nomeadamente, em
estabelece-se um espaço inicial com a demarcação de um dança e suas interfaces com outras áreas.
quadrado no chão com fita adesiva, que produz um acor- 2.2- As posições iniciais em nosso coletivo: posição
do comum de fronteira fictícia entre os espaços dentro e com-posição
fora do quadrado. O quadrado, também chamado de tabu-
leiro, cria uma zona de atenção compartilhada e de jogo. Neste ponto, entramos no exercício de narrar nosso
Cada inserção/subtração neste quadrado é uma jogada, “tabuleiro” do Corposições. São as paisagens de um en-
chamada de tomada de posição. Cada tomada de posição contro que se corporificam a partir de vários encontros em
é uma modificação da paisagem do tabuleiro. Há geral- tempos distintos e que têm como porta de entrada o MO_
mente um número de objetos que podem ser manuseados AND e a CTR. Entramos em relação com um corpo situa-
pelos participantes em suas tomadas de posição, podendo do e afetado por estes paradigmas-ferramentas e narramos
o corpo também estar implicado nas jogadas/posições. É menos as nossas histórias e mais o que carregamos em
um jogo cujas regras são encontradas no próprio jogar. nós, como se dão nossos deslocamentos durante a criação
O jogo do jogo é “encontrar o jogo”, entendido como de superfícies de contato entre os integrantes do Corpo-
o exercício da construção do plano comum. Encontrar o sições. Trata-se de um exercício de apresentar as “posi-
jogo exige ao menos três tomadas de posição: a primeira ções 1” que cada um trouxe ao grupo, e que geram nossas

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Catarina Resende; Iacã Machado Macerata; Leticia Costa Barbosa; Mariana Barbosa Pimentel; Mariana Borges de Moraes; Cesar Augusto de Macedo

com-posições; revelando nossa sensibilidade às condi- uma ideia, agora torna-se plataforma de encontro e com-
ções iniciais de relação (pondo em cena uma espécie de partilhamento de uma comunicação fina do corpo sutil.
começo que não pretende estabelecer uma origem). Para Este pensamento faz relativizar a angústia presente em
tanto, fizemos uma rodada de entrevistas com cada inte- um processo criativo nos momentos de crise, pois pos-
grante, buscando construir uma linha temporal do nosso sibilita a observação da cena e seus componentes com
primeiro encontro com as ferramentas, mas também como certo distanciamento necessário para quem cria, dirige e
esse encontro tem se propagado em nós, dialogando ou atua simultaneamente – fato tão presente nesta contem-
produzindo questões para/com nossas práticas. As entre- poraneidade recheada de artistas-etc.5 Faz desconstruir as
vistas gravadas em áudio, foram transcritas, e aqui fazem próprias expectativas, fazendo com que o processo seja
uma aposta narrativa: o escrito que se segue mantém a voz ainda mais desafiador porque despido de saberes prévios
de seu narrador, que em algum momento passa a ser ou- e execuções puras de ideias as quais muitas vezes estão
tra, e depois outra, até traçarmos todos os nossos modos mais relacionadas ao “ego” do que ao comprometimen-
de entrar em relação mútua. O objetivo é dar a ver uma to do que se está trabalhando no espetáculo – sobretudo
corporeidade coletiva emergente, por movimentos que se para artistas da dança que passam grande parte de sua
entrecruzam, vão-e-voltam no tempo, entram numa es- formação observando-se no espelho.
piral de começos e recomeços, recuam para avançar, se
Outro importante mote neste processo é a construção
ensinuam entre o individual e o coletivo, entre o eu e um
de um plano comum de leitura da imagem-cena, o que
qualquer. Movimentos de ligação, movimentos que nos
não significa uma leitura igual para todos e decifrável por
distiguem, mas não nos separam em nossas corposições.
meio de explicações e interpretações fechadas, verticais e
O primeiro contato com a CTR aconteceu no Atelier hierárquicas. O desenvolvimento do plano comum é agu-
RE.AL em Lisboa no ano de 2008, período em que as çar as percepções, o parar e o re-parar na transversalidade
minhas criações se situavam num plano demasiado re- das relações: o público não é um mero receptor. Ele cons-
presentativo. Cada movimento surgia como explicação e trói junto com o que está em cena o que ela se propõe. Pú-
mimesis de uma ideia prévia e isso me incomodava pro- blico e artistas são co-criadores do acontecimento.6 Tal
fundamente. Outro aspecto é que minha criação indivi- co-responsabilização mobiliza a criação para um lugar
dual nunca envolveu a invenção de frases coreográficas de partilha colaborativa desde o início do processo até
extremamente definidas e marcadas. Dependendo da ma- a apresentação do espetáculo, já carregado de alteridade.
neira como são organizadas, as frases coreográficas en-
cerram-se em uma virtuose que pouco tem a acrescentar Depois de uma longa trajetória com o Grupo Co-
ringa (RUIZ, 2013), e nos últimos anos, em crise com
à percepção.4 A prática da CTR é, portanto, para mim,
o Contato Improvisação – CI (KALTENBRUNNER,
conseguir lidar radicalmente com essas inquietações.
1998), conheço a abordagem psicossomática Movimen-
O meu afeto e interesse neste trabalho estão intima- to Autêntico – MA (JORGE, s.d., online), através da
mente ligados a habitar o vazio e dele fazer emergir algo.
Como fazer emergir um espetáculo a partir de um simples professora Soraya Jorge7 que estava introduzindo esse
objeto ou ação? A sensibilidade às condições iniciais, o trabalho no Rio de Janeiro/Brasil. Inicio um mergulho
trabalhar com o que se tem, o esmiuçar profundo de um prático com ela na pergunta pilar desse sistema: “O que
objeto indo além de sua função, assim como uma ação me move?”, “O que me faz mover?”, e decorre um res-
contém muito mais do que o que está na superfície do gate do prazer de improvisar com o CI. Assim, dadas as
fazer; e a inibição do reflexo que vem carregado de tais condições, iniciamos uma parceria de pesquisa sobre
ideias prévias são aspectos inerentes deste método que me como funcionar juntando o CI com o Contato Autentico
mobilizam e alteram minha forma de enxergar a criação. (KALTENBRUNNER, 2009). Fizemos algumas propos-
tas durante o nosso percurso, usando o Contato Autên-
A articulação deste método com o MO_AND colocou tico como processo de criação, convidando um público
em relevo outros aspectos importantes no meu processo para assistir uma performance, criando a Jam-Roda Viva
perceptivo tais como o foco na relação entre o que está no (MACEDO, 2007)... e foi nesse momento que conheci o
espaço e a dimensão de jogo nesta interação com o outro João Fiadeiro com a CTR.
– um outro que está dentro e está fora, trazendo a ques-
tão: existe de fato esta diferenciação? Outro componente Depois de muito tempo fazendo as Jams-Roda Viva,
foi a extrapolação do espaço do estúdio para o espaço oferecendo algumas performances junto com um grupo
urbano, o que trouxe práticas etnográficas fundamentais de estudos, reapareceu a Fernanda Eugenio (que já tinha
para pensar processo criativo na dimensão arte-vida. feito com a Soraya o Movimento Autêntico) junto com
o João Fiadeiro, apresentando um jogo, o MO_AND.
Estas perspectivas influenciam intensamente o meu Eu me deparei muito com as minhas limitações... estou
fazer, que consiste na criação e apresentação de espe- falando do “ego”, né?... das tomadas de decisão... e do
táculos de dança contemporânea, na gestão e produção desejo de criar algo já pré-definido... então foi importante
cultural, na curadoria, na formação artística por meio da 5
 Conceito desenvolvido pelo artista e professor Ricardo Basbaum (2005), que
proposição de oficinas, na escrita e produção teórica. O evidencia um aspecto característico do artista contemporâneo que possui diver-
que antes parecia pura plataforma de apresentação de sas outras funções para além do criar e apresentar.
6
 Indico aqui a bibliografia do autor contemporâneo Jacques Rancière, tais como A
 Neste escopo, a identificação com métodos de criação heterodoxos - como de Mer-
4 partilha do sensível (2005) e O espectador emancipado (2010).
ce Cunningham, por exemplo -, foi crescendo bem como com metodologias que 7
 Soraya Jorge, embora esteja afastada durante os anos de 2016 e 2017, também
criassem um ambiente de co-responsabilização e horizontalidade entre os materiais. faz parte do coletivo Corposições.

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Corposições entre o ver, o dizer e o agir

aprender a parar e re-parar, entender o movimento cole- O MO_AND me emprestava um tabuleiro onde toda
tivo... e como isso poderia ser transformador da própria essa dinâmica podia ser “jogada” a partir de microacon-
forma de criar. Poder criar com mais cooperação e não tecimentos que passavam a ter estatuto de existência.
só com uma parceria única. Tenho uma sensação de que Era como encontrar um laboratório de hipervisualização
coisas que eu fiz há 30 anos atrás... agora estou me apro- do plano molecular dos encontros, e consequentemente,
priando, podendo oferecer. Mover a partir da sensação do o que isso mobiliza na escala dos afetos (RESENDE,
corpo. O MO_AND foi algo que me impulsionou pra um 2012). Uma espécie de maquete das sutilezas.
lugar que eu não sabia como ir, mas desejava! Porém, ao Já de volta ao ato de clinicar, o MO_AND me sensibi-
enunciar, aquilo já se... já se... neutralizava! Então isso liza às condições iniciais de um primeiro encontro (uma
foi quase que uma mágica, fazer o quadrado... e aquele entrevista, por exemplo), às múltiplas dinâmicas que es-
vazio se estabelece, aquela atenção se estabelece... e eu tão se compondo pelo entrecruzamento de linhas errantes
não tenho que falar mais nada! Eu fiquei muito angustia- que favoreçam a vibratilidade de um acontecimento, uma
do com isso, como o meu eu aparece nos nossos jogos. primeira conexão em que nos sentimos criando uma lín-
O nosso grupo foi muito terapêutico pra mim; aprender gua comum para o indizível dos afetos. Uma sensibilida-
a parar, a reparar, a encontrar outro tempo, produzir o de às condições iniciais da sintonia dos corpos na clínica.
tempo coletivamente foi um grande ganho.
O encontro é uma ferida. Uma ferida que, de uma maneira
Por uma série de co-incidências fui sendo levada à tão delicada quanto brutal, alarga o possível e o pensável,
João Fiadeiro, à Fernanda Egénio, ao Atelier RE.AL, sinalizando outros mundos e outros modos para se viver jun-
onde me hospedei por 4 meses durante o meu doutorado- tos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua
-sanduíche, em 2012. É assim que chego ao MO_AND: emergência disruptiva (EUGENIO; FIADEIRO, 2012, s/p.).
pela SECALHARIDADE.8 É este o meu primeiro afe- Este é um trecho do texto “O encontro é uma ferida”
to-impacto: alimentar a visibilidade de linhas que se (EUGENIO; FIADEIRO, 2012). E é com este texto que
compõem na errância e ganham a vibratilidade de um acontece meu primeiro encontro com o que vou descobrir
acontecimento. Acolher e lidar com aquilo que calhou em seguida ser o MO_AND. Neste momento da história
em por-se lado a lado. do MO_AND a conversa com a psicologia clínica já tinha
Chego ao MO_AND pelos encontros entre brasileiros começado, estava em estado de reconhecimento. Percebí-
e portugueses. Chego ao MO_AND pelos desencontros amos suas coincidências, usávamos esse novo olhar para
entre o português e o “brasileiro”. Neste caso me refiro à ativar nossos próprios conceitos. Um segundo encontro,
experiência de ser estrangeira na língua materna: uma ex- que de certo modo é o primeiro, se dá no workshop minis-
periência limite de dilatação da sensibilidade às rupturas trado por João e Fernanda na Unirio, em 2013.
que se dão na continuidade de um mesmo mundo comum O que eu lá (vi)via era a experiência de manuseamen-
– ser estrangeira à própria enunciação. to pelo próprio clínico dos afetos que dão direção aos
Lembro da aposta do Eduardo Passos: “você precisa diversos elementos que surgem no setting. Elementos,
conhecer o coreógrafo João Fiadeiro em Lisboa; o que eu por exemplo, como o tempo de uma intervenção, a veri-
vi do trabalho dele em Fortaleza é muito clínico!”; e uma ficação da justeza dessa intervenção e também a abertura
vez ali, vejo as possibilidades de um mergulho na apro- dela para que possa ganhar a força de um acontecimento.
ximação com a clínica. Uma clínica que emerge de uma Além do improviso, que nos campos científicos tem cará-
certa secalharidade; no sentido que se direciona menos ter tão pejorativo, mas que faz parte de nosso cotidiano e
por um projeto psicoterapêutico e mais por uma atitude que neste jogo é o foco, digo mais, é a ciência.
ética composta pelos encontros; se sustenta não num sóli- Esse efeito foi experimentado por mim e por meus pa-
do pilar verticalizado pelo saber-poder de um especialis- cientes imediatamente. Todos os dias ao fim do workshop
mo, mas sim numa superfície trepidante criada a partir de eu retornava à minha prática clínica e punha essa nova
um fora, operando por intercessores (DELEUZE, 1992): sensibilidade para jogo. A ferida estava ali aberta e meu
por atravessamentos e ressonâncias entre elementos he- possível e meu pensável já tinham outras dimensões.
teróclitos com a potência de conectividade e de produção Essa diferença foi percebida e sinalizada por muitos dos
de sentido. Uma clínica que tem no desenvolvimento do pacientes que puderam dizer coisas como: “O que está
vínculo terapêutico a confiança de um acompanhamento acontecendo? Tem algo diferente aqui e não consigo ver
mútuo, e nessa trajetória compartilhada, uma aposta na o que é!”. Essa percepção era física! Era material! O
produção (e acolhimento) de desvios que favoreçam a MO_AND e a minha clínica entraram em relação.
diferenciação e a consistência de um plano comum (num
Ali eu vivi o pensamento em meu corpo, tinha for-
“tipo” de sensação de pertencimento naquilo que se com-
ma, contorno, era palpável, às vezes mais rígido, às vezes
põe com a diferença, de se sentir continuando-a-ser-o-
mais maleável. Todo o tempo em que venho estudando,
-mesmo com tudo que se tornou estranho).
praticando e transmitindo o MO_AND, a experiência da
concretude dos afetos e do pensamento sempre me soou
8
 Neologismo de Fiadeiro e Eugenio para uma lógica do acontecimento, a partir de
uma expressão muito usada em Portugal: “se calhar”. Há um siginificado mais como primordial. Tão primordial, que o próprio jogo do
ampliado daquele que teríamos aqui no Brasil, pois muitas vezes é empregado no MO_AND para se iniciar, primeiro precisa desarticular as
sentido paradoxal de indicar a possibilidade de algo acontecer, já acontecendo.
Há uma espécie de contração do tempo em que aquilo que irá acontecer já está ferramentas que fazem com que o pensamento se desta-
acontecendo: “se calhar, te deixo aqui nessa esquina”, disse uma amiga que me que de sua dimensão material. Busco então fazer consis-
dava uma carona, já parando o carro.

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 135-142, 2017                                139


Catarina Resende; Iacã Machado Macerata; Leticia Costa Barbosa; Mariana Barbosa Pimentel; Mariana Borges de Moraes; Cesar Augusto de Macedo

tir. E o faço apronfundando numa pesquisa de mestrado sações que emergiam de cada encontro. Saía do lugar
que busca pensar as articulações possíveis entre a clíni- de simplesmente compreender a fala do paciente, e me
ca e o MO_AND. Essa pesquisa se apresenta como uma colocava na posição de viver uma fala construída conjun-
pesquisa de meu próprio corpo, de meu corpo clínico. tamente, num execício coletivo de enunciação. E o jogar
Uma pesquisa talvez em equivalência com os exercícios propiciava perceber o afeto conjunto, que composições
de propriocepção, que permitem reconhecer seu corpo, afetivas emergiam pelo encontro. Era possível perceber
suas possibilidades, seu tônus. como o outro me afetava e devolver o afeto com outra
Como entender o outro como um sujeito inteiro, não modulação, numa experiência de sintonia. O uso do jogo
fragmentando e cindido quando no momento histórico trazia uma espécie de amplificação da minha percepção
atual, o corpo é objetificado, domesticado e anestesia- do campo afetivo, abrindo meu corpo para perceber os
do o tempo todo? Quais são as possibilidades na clínica gestos que até então não eram possíveis perceber.
em operar sobre este sujeito que pede ajuda escapando Evidenciava-se mais ainda que ignorar a corporeida-
a esta leitura de mente e corpo como partes distintas de 9
de na clínica é não considerar as propriedades do cor-
um todo? Como criar um espaço no encontro clínico para po como produtor de sentidos. Participar desse coletivo
que o outro seja visto e se perceba para além da lógica permitiu-me pensar uma clínica sensível como jogo-a-
da representação? Como produzir novos sentidos através contecimento, a perceber a construção conjunta da co-
dos afetos vividos no encontro, e não reduzir a interven- municação e do afeto, do entre.
ção clínica à elaboração discursiva do sofrimento?
O que me chamou para o MO_AND foi o olhar e o
Estas perguntas foram suscitadas em meio a muitas agir em relação ao tabuleiro: no tabuleiro antes de sujei-
angústias vividas durante a prática clínica, não somente a tos e objetos, viam-se paisagens, espaços relacionais de
angústia trazida pelos pacientes, mas as sensações emer- produção de sujeitos e objetos.
gentes em meu corpo durante e após os atendimentos.
O MO_AND transfigurou minha pesquisa, trouxe
Em muitos casos, o sentimento que eu experimentava era
para o uso muitos conceitos, interferiu diretamente na
ao mesmo tempo de uma grande dificuldade em intervir
maneira como pensei e produzi a expressividade do que
no sofrimento do outro e uma impossibilidade de elabo-
vivi no campo e da proposição que quis fazer com a tese
rar o encontro em meu corpo. O ingresso na pós-gradua-
de doutorado: uma clínica de território. Minha pesquisa
ção lato sensu em Terapia pelo Movimento – Corpo e
tratava de enunciar a prática de cuidado de uma equipe de
Subjetivação, e os contatos com o Movimento Autêntico
saúde que trabalhava com pessoas que viviam nas rua no
e a ferramenta MO_AND foram grandes marcos nesse
centro da cidade do Rio de Janeiro. Para fazer isso, cons-
processo, em que pude reinaugurar um campo sensível
truímos espaços de conversa com os profissionais, que
fundamental para minha clínica. Com os encontros do
partiam de enunciados iniciais dos mesmos sobre suas
nosso grupo, veio a vontade de experimentar a ferramen-
práticas. Isso me pareceu como um espaço de jogo: ha-
ta na clínica. Apresentava o jogo para alguns pacientes,
via uma posição inicial, colocada pelos trabalhadores, e
quando queria experimentar uma outra forma de estar
a partir disso, nós pesquisadores íamos colocando nossas
junto, de produzir uma forma de conversar que abdicasse
posições, até acharmos um jogo que produzia uma com-
da fala, sobretudo em casos em que não conseguia me
posição, que seria ao fim, a expressão da prática clínica
sentir em uma sintonia fina com o paciente a partir de sua
naquele território que era onde a equipe se desenhava.
fala e de minhas pontuações.
Expressão que não seria uma representação da prática,
Propus, então, o jogo a um paciente de 12 anos. Tí- mas sim uma criação a partir da enunciação da experiên-
nhamos feito algumas sessões, e percebia que até ali nossa cia vivida. Era uma invenção o que fazíamos ali.
conversa se limitava às minhas proposições de algumas
Fomos entendendo que o modo de fazer o grupo de
atividades e a ele, a execução. Pouco conversávamos e ne-
discussão, a pesquisa, era operacionalmente similar ao
nhum interesse por parte dele sobre as atividades propostas
modo de cuidar. Na prática de cuidado realizada entre
e sobre a possibilidade dele propor apareceram até então.
trabalhadores e seus usuários/pacientes tratava-se de vi-
Sentia que precisava estar junto de outra forma. A partir de
ver junto, de criar um jogo, de compor algo. E o cuidado
nosso primeiro jogo, passei a construir com ele um jogar
já não seria nem uma ação que somente restauraria um
nosso, e prontamente nossas posições no encontro clínico
estado de saúde anterior; nem era feito por alguém; nem
mudaram. Deixei de ser propositora e passei a jogar junto.
explicado por um porquê. O cuidado era ele mesmo um
Ele demonstrou um grande interesse pelo jogar, e passou
ato de criação, de composição a partir de certo modo de
a propor o jogo por muitas sessões consecutivas. E o que
se relacionar com o território existencial onde os sujeitos
me chamava a atenção era não somente o quanto ele estava
que viviam nas ruas do Centro do Rio eram formados. A
interessado naquilo que fazíamos juntos, mas também as
prática de cuidar ia se definindo a partir da construção
sensações que percebia em mim a cada sessão. Uma eufo-
mapas de o quê, como, onde/quando. Menos cair na ar-
ria, agitação, um pensar com o corpo inteiro.
madilha de explicar um porque e um quem, na situação
E a partir dessa experimentação conjunta, trouxe a de vida da pessoa que morava na rua, e mais acessar os
ferramenta para a clínica de forma mais frequente. E para  Dimensão da experiência subjetiva que materializa (corporifica) o espírito em
9

cada paciente que propunha, uma experiência de jogar seu movimento criativo; espaço das intensidades livres que resistem à tendência
estratificadora-organizadora dos processos de subjetivação. O que diz respeito à
inteiramente diferente. Passei a reparar no que eu sen- subjetividade em sua dimensão corpórea, ali onde opera uma lógica da sensação,
tia durante o jogo, a cada tomada de posição, nas sen- uma linguagem a-significante. Mais à frente desdobraremos esse termo.

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Corposições entre o ver, o dizer e o agir

processos de constituição daqueles territórios de vida. perpassam a todos, quais sejam afeto, performatividade
Nessa estratégia territorial de cuidado, podia-se conjurar e território. Nesta exploração precisamos assumir um
os efeitos nefastos que práticas de saúde com as zonas modo de operar singular deste grupo: a profanação. Ao
à margem da sociedade podem ganhar: normalização, dessacralizar nossas ferramentas iniciais, nos apropria-
adaptação, inclusão serializada. A prática de cuidado, mos efetivamente delas, as fizemos nossas. Tomamos po-
como modo de compor com todo um território-paisagem sição! Compusemos juntos nosso corpo em posição, em
se aproximava mais de uma prática de composição, onde posições: Corposições.
aqueles que tinham mandato social de cuidado, passam a A partir da enunciação atual do grupo, notamos que
ser mais um elemento do tabuleiro. Não estando em po- nossas linhas de força constituem - em suas possíveis re-
sição exterior e superior – sobre, contra os territórios de lações - relevos do que entendemos como corporeidade.
vida dos usuários – mas em com-posição: no território, a
Corporeidade: dimensão processual e situada; evi-
partir do território, com o território, para o território. To-
denciando o corpo em sua autoprodução (GIL, 2004),
mar parte, habitar o território de vida dos usuários, essa
conectado à subjetividade pelas relações sensíveis, pelos
era a direção que ganhava o cuidado. Era a partir de um
afetos; o corpo em ato e atualização constante, sempre
certo agenciamento coletivo, territorial que o cuidado se
em vias de performatizar os seus estados de presença
dava. Ao modo da composição. O cuidado era efeito de
em um espaço temporalizado e heterogêneo capaz de
um modo de operar, que chamamos de clínica, mas que
territorializar sua existência. Ali onde o corpo está para
opera de maneira similar ao jogo: que envolvia a criação,
além dos limites do organismo. Corporeidade é pro-
o corpo, um certo corpo atento que repara, um certo re-
cessual, mutável e contingente, é a abertura do corpo
corte espaço-tempo que seria uma zona de atenção, que
ao mundo. É uma dimensão corpórea entre o ver e o
seria a composição com aquilo que ali, naquele recorte
dizer, que implicam uma concomitância entre pensar-
territorial se apresentava: polícia, miséria, lixo, comida,
sentir-dizer. Quando investimos nossa corporeidade nas
bueiros, calçadas, tráfico, corpos em transe, corpos indi-
relações, intensificamos o plano comum: os corpos são
ferentes… Enfim, todos os elementos que construíam a
tecidos e tecem relações simultâneas de afetabilidade,
paisagem da rua: como a enfermeira usava os cobertores
comunicação e contágio com outros corpos.
que estavam escondidos nos bueiros para fazer uma en-
fermaria na rua; a confiança que o cachorro do usuário Performatividade (AUSTIN, 1990): ato de inscrição e
precisava ter nos profissionais para que o tratamento fos- concretização da presença deste corpo afetivo e relacio-
se em frente. Era preciso compor com e a partir dos mais nal no mundo. Performar é fazer agir em ato, realizar ati-
diversos elementos da rua, entender o efeito que aquilo vidade; é o corpo em sua contínua atualidade, agindo no
gerava. A transformação daquelas experiências era ter- espaço e no tempo, lidando com o movimento constante
ritorial: o território mudava, os profissionais mudavam, do seu aparecimento e do seu apagamento. No ato per-
os pacientes, os transeuntes, os outros atores que faziam formativo não só se cria o corpo que performa (em uma
parte da rua habitada. O cuidado já não era somente uma dinâmica de circularidade operacional). Mas também se
ação de um ente, mas um efeito de rede: cuidado era uma cria o espaço, o meio. Se cria o território.
rede, um território de relação que se formava no próprio Território: plano de expressão (criação) de uma
território de vida das pessoas que viviam naquelas ruas. existência. Território (DELEUZE; GUATTARI, 1997;
Estas são as corposições iniciais que oferecemos no GUATTARI, 1992) não é sinônimo de espaço, mas é um
espaço de jogo de nosso coletivo. Entramos em modo espaço tornado expressivo, um espaço/tempo, sempre
jogo com essas posições, com estes corpos. O jogo faz provisório, no qual emergem sujeitos e objetos. É pensar
com que esses corpos se transformem entre si, com que qualquer existente como sendo produzido em relação a
cada corpo se corporifique em sua prática singular de uma alteridade, em um espaço de relação. É sempre em
maneira diferente. Mesmo falando por meio de primeiras um território que se performa o corpo. O território é o
pessoas do singular, o que almejamos aqui foi antes uma territorializado (forma) e a desterritorialização (proces-
polifonia espiralada dos modos de enunciar essa coletivi- so), o movimento que o anima, que o torna vivo. É ato
zação de singularidades que compõem uma corporeidade de repetição estilizada. O território é um performar sem
comum: convocação do corpo para a sua transformação e autor, sem agente-origem. Corpo e território são meios
abertura ao mundo, o corpo como nó de uma rede, como acessíveis à nossa configuração existencial para chegar
superfície de contato e de articulação das forças molecu- ao comum. É sempre em um território que o comum apa-
lares. Uma corporeidade comum que se produz e é pro- rece como evento fenomenológico, e é sempre por meio
duzida reciprocamente pelos enlaces que dão relevo ao do corpo, como articulação paradoxal entre o olhar sub-
afeto, performatividade e território, numa zona de fricção jetivo e objetivo (ROLNIK, 1998).
e de composição entre CTR e MO_AND, dança e clínica, Plano comum: onde a corporeidade está assentada, su-
práticas artísticas e de cuidado. perfície de contato, articulação das forças. Espaço de inter-
3- Corposições: profanações entre afeto, face do interior com o exterior. O plano comum é o plano
performatividade e território das relações, o plano dos afetos. A construção de um plano
comum de leitura sem apagamento das subjetividades tor-
Enunciamos! Encontramos um plano comum entre na-se um desafio constante da vida em comunidade.
estes corpos e perspectivas. E é a partir dessa enuncia-
ção que pudemos explorar estas linhas de força que nos

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 135-142, 2017                                141


Catarina Resende; Iacã Machado Macerata; Leticia Costa Barbosa; Mariana Barbosa Pimentel; Mariana Borges de Moraes; Cesar Augusto de Macedo

Afeto: é a materialidade, o meio condutor das rela- DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta,
ções, das trocas, das transformações entre os corpos. Ele 1998.
é a qualidade de um território; ele é a matéria articulada DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e
em um corpo. É no plano afetivo da realidade que o per- esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 1.
formar age, e daí, por reverberação, age nas coisas e nas
EUGENIO, F. Sobre o And Lab. [201?]. Disponível em:
pessoas, nos sujeitos e objetos. Podemos dizer que nossa <https://www.and-lab.net/sobre>. Acesso em: 20 out. 2016.
matéria prima de experimentação e investigação são os
afetos, que é diferente do sentimento pessoal. O afeto diz EUGENIO, F.; FIADEIRO, J. O encontro é uma ferida. Excerto
respeito a um pré-pessoal, pressubjetivo, préorganísmico. da conferência-performance Secalharidade de Fernanda
Eugenio e João Fiadeiro. Lisboa: Culturgest, jun. 2012. Não
Profanação (AGAMBEN, 2007): inserção de um paginado.
novo sentido naquilo que já existe e tem sua razão de
EUGENIO, F.; FIADEIRO, J. Jogo das perguntas: o modo
ser no mundo, é mais que um simples jogo de sentidos, é
operativo “AND” e o viver juntos sem ideias. Fractal, Rev.
uma estratégia de modificação das relações poder-saber Psicol., Niterói, v. 25, n. 2, maio/ago. 2013. CrossRef.
e de diferenciação da partilha sensível entre os corpos.
Profanar não é o fim, não é o objetivo do Corposições, FIADEIRO, J. Composição em tempo real. Dossier de
mas sim resistir aos dispositivos de poder, de modo sem- divulgação, 2016.
pre singular, circunscrito e temporário. GUATTARI, F. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Nossas experiências de composição e nossos exer- GIL, J. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo:
cícios de pensamento emergem numa tarefa de “pen- Iluminuras, 2004.
sação” (EUGENIO; FIADEIRO, 2013), qual seja,
JORGE, S. Movimento Autêntico: a arte de mover e ser
desestabilizar os sentidos instituídos em um território movido. Instituto Junguiano do Rio de Janeiro. s.d. Disponível
performatizado pela afetabilidade de um pensamento- em: <http://www.jung-rj.com.br/artigos/movimento_autentico.
-corpo. Profanamos o MO_AND e a CTR, veiculada e pdf>. Acesso em: 2 set. 2016.
concomitante a essa primeira profanação, profanamos
KALTENBRUNNER, T. Contact Improvisation: moving –
também cada uma de nossas práticas-trajetórias que tra-
dancing – interaction. Oxford: Meyer und Meyer (UK), 1998.
zemos para o espaço de jogo do coletivo.
KALTENBRUNNER, T. Contact Improvisation, bewegen, sich
Re-existimos a cada encontro. Cada um de nós ativa
begegnen und miteinander tanzen. Aachen, Germany: Meyer
o próprio fazer através do fazer do outro, “colocando- & Meyer, 2009.
-se com” sendo este ato o aspecto crucial do que vem a
ser com-posição no âmbito desta perspectiva. Partilha- MACEDO, G. Bright spots in Brazil. Contact Quaterly, New
mos um esforço coletivo de habitar as questões uns dos York State, v. 32, n. 2, summer/fall 2007.
outros, inibindo reflexos, retrocedendo na ação de saber MACERATA, I. Traços de uma clínica de território. 2015. Tese
como interpretação e fixação de significados. Este esfor- (Doutorado em Psicologia)–Universidade Federal Fluminense,
ço pode ser análogo ao esforço do espectador ao se de- Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de
parar com uma obra de arte contemporânea, do crítico de Psicologia, Niterói, 2015.
arte ao abordar ações artísticas ou de um psicanalista no RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34,
processo de escuta e registro das dramaturgias múltiplas 2005.
construídas por seu paciente. Tanto na arte, quanto na clí- RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu
nica, o exercício é o de alargar a relação com as formas e Negro, 2010.
passar a se relacionar com elas como forças.
RESENDE, C. Coreografismos clínicos: contágio e outramento.
Referências In: SEMINÁRIO DA FACULDADE DE DANÇA ANGEL
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. VIANNA, 6., 2012, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro:
Faculdade de Dança Angel Vianna. Disponível em: <http://
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes www.escolaangelvianna.com.br/seminario/anais/trabalho/
Médicas, 1990. coreografismos-clinicos-contagio-e-outramento>. Acesso em:
BASBAUM, R. Amo os Artistas Etc. in: MOURA, R. (Org.). 12 jul. 2016.
Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais. Belo Horizonte: ROLNIK, S. Subjetividade Antropofágica / Anthropophagic
Museu de Arte da Pampulha, 2005. Disponível em: <https:// Subjectivity. In: HERKENHOFF, P.; PEDROSA, A.
rbtxt.files.wordpress.com/2009/09/artista_etc.pdf >. Acesso em (Curadores). XXIV Bienal de São Paulo: Arte Contemporânea
28 ago 2017. Brasileira: Um e/entre Outro/s. São Paulo: A Fundação, 1998.
CASTRO, E. V. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo p. 128-147.
ameríndio. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 115-144, out. RUIZ, G. Graciela e Grupo Coringa: a dança contemporânea
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CASTRO, E. V. Metafísicas caníbales: líneas de antropología Recebido em: 16 de novembro de 2016
postestructural. Buenos Aires: Katz, 2010. Aceito em: 27 de abril de 2017
DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DELEUZE, G. O que é um dispositivo? In: ______. O mistério
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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 143-151, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2182
Dossiê Corporeidade

A dança como política do encontro com pessoas e lugaresH


Ruth Torralba Ribeiro,I, HH Lidia Costa Larangeira,II Laura Vainer de Albuquerque,III
Bruna Raquel Simões Gouvêa,II Thaís Leitão ChilinqueII
Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
I

II
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
III
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Resumo
Este relato de pesquisa visa partilhar a experiência no projeto “Cartografias do Corpo na Cidade”, realizado pelo Núcleo de
Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O Núcleo utiliza a cartografia como
bússola metodológica para mapear experiências intensivas na cidade em que a dimensão vibrátil dos corpos é acionada. Neste ar-
tigo destacamos os processos de errância e ocupação afetiva na região portuária do Rio de Janeiro e a realização de proposições
de dança em movimentos de resistência política no ano de 2016, como prática artística de re-existência. Ao investigar a fricção
entre arte-e-vida, expandimos o entendimento do que pode a dança quando emerge do encontro com pessoas e lugares.
Palavras-chave: dança; cidade; política.

Dance as a meeting policy with people and places


Abstract
This research report aims to share the experience in the project “Cartographies of the body in the city”, conducted by Núcleo
de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ). Núcleo uses cartography as a
methodological compass to map intensive experiences in the city in which the vibrating dimension of the bodies is triggered. In this
article, we highlighted the experience in the processes of wandering and affective occupation in the port region of Rio de Janeiro
and the realization of dance propositions in political resistance movements in the year 2016 as a re-existence artistic practice.
By investigating the friction between art and life, we expand the understanding of what can dance do when it emerges from the
encountering with people and places.
Keywords: dance; city; policy.

Este texto apresenta algumas experiências de re-exis- sistência1 que identificamos como zonas intensivas em
tência políticas do corpo na cidade a partir do projeto de nossa pesquisa. O primeiro plano é chamado “errarcom,
pesquisa “Cartografias do corpo na cidade”, do Núcleo estarcom”, sua introdução é feita por uma cartografia que
de Pesquisa, Estudos e Encontros em Dança, do Departa- reflete a construção da pesquisa a partir da errância e do
mento de Arte Corporal da UFRJ. A pesquisa se interessa encontro. O segundo, “a cartografia como bússola”, abor-
pelo encontro com pessoas e lugares para refletir e criar da como o método da cartografia pode ativar, pela via
práticas de corpo e cidade. A perspectiva em dança na da experiência, a pesquisa artístico-acadêmica em dança.
qual nos inserimos acontece na fricção entre arte-e-vida O terceiro plano intitulado “proposições coletivas como
como uma composição entre corpo, movimento, cidade, experiência de re-existência nas ocupações da cidade do
escrita, imagem, som e processos de subjetivação. Orbi- Rio de Janeiro” apresenta parte de nossa atuação em mo-
tamos ao redor da zona portuária do Rio de Janeiro - re- bilizações políticas populares ocorridas em 2016.
gião que sofreu recorrentes intervenções urbanísticas ao Os planos de composição têm deslizamentos entre si,
longo de sua história, particularmente nos anos de 2011 por isso a narrativa deste artigo compromete-se menos
a 2016, com o Projeto Porto Maravilha - e nos mantemos com a ordem cronológica dos acontecimentos e mais
próximos aos acontecimentos político-culturais da cida- com a co-emergência das linhas de força que desenham
de, alargando, inclusive, os contornos da Universidade. cada plano. Interessado nos atravessamentos que emer-
A atuação do Núcleo aposta na ocupação afetiva e gem na experiência, o processo de escrita implica-se em
artística de espaços como procedimento para a produ- ser, ele próprio, uma composição das forças que movem
ção de conhecimento em dança. Trata-se de uma dança a pesquisa. Realizamos arranjos de palavras, rodopios;
expandida que produz percepções, reflexões e fazeres posicionamos ideias, conceitos, referências, para que o
que questionam e re-localizam nossos processos de for- texto seja, pela ordenação de caracteres, espaços, letras
mação e criação em dança. Neste sentido, traremos as e palavras, um material de reflexão em dança. Escrever
forças de investigação teórico-práticas do Núcleo para tem sido uma aventura..., como dançar uma dança...,
criar, nesta escrita, três planos de composição ou de con- como surfar uma onda: todo o corpo presente, todos os
poros como olhos, ouvidos e tônus.

H
 Fonte de financiamento: Programa de Bolsas de Iniciação Artística e Cultural-
PIBIAC/UFRJ 2016.
HH
 Endereço para correspondência: Faculdade Angel Vianna. Rua Jornalista
Orlando Dantas, 2 – Botafogo. Rio de Janeiro – RJ. Brasil. CEP: 22231-010
E-mail: ruthtorralba@gmail.com, llarangeira@yahoo.com.br, laauravainer@ 1
 A metodologia de escrita deste texto é inspirada no artigo “Planos de Composi-
gmail.com, brunarsgouvea@gmail.com, thais.thaischilinque@gmail.com ção” de André Lepecki (2012).
Ruth Torralba Ribeiro; Lidia Costa Larangeira; Laura Vainer de Albuquerque; Bruna Raquel Simões Gouvêa; Thaís Leitão Chilinque

1: errarcom, estarcom Me Assombro, e mais do que isso, me Maravilho-


com, todas as segundas-feiras, no morro.2
sobre segunda feira, todas as segundas no Morro.
O Núcleo foi criado pela necessidade de aproximar ar-
segunda-feira é dia de encontro. me Alegro, e
tistas-pesquisadores interessados em investigar, a partir do
mais do que isso, me Admiro que toda a segunda-feira a
encontro, perguntas comuns tais como: Por que dançar?
gente continue enfrentando todas as adversidades da vida,
Como dançar em ressonância com os acontecimentos polí-
continue resistindo e indo… indo, se encontrando e se
abrindo para o encontro. mesmo sem obrigação, mesmo ticos que se iniciaram em junho de 2013?3 Como articular
sem cobrança, mesmo sem verba, sem bolsa, sem garantia. as questões da nossa cidade com a dança na Universidade?
Como pode a dança ativar as questões políticas do territó-
mesmo que às vezes alguém não venha, al-
rio em que atuamos? Como pode a dança, em sua dimen-
guém adoeça, alguém não consiga chegar, alguém te-
são de encontro, ser uma experiência de re-existência?
nha uma banca, um congresso, um trabalho, um filho
doente, existe um ‘nós’ que sempre arrisca não estar Sem um objeto de pesquisa, um tema ou uma hipó-
lá, mas que sempre chega. é a junção desse nós que tese previamente estabelecidos, o ponto de convergência
garante que esse mesmo nós continue a existir. e isso é do grupo foi a necessidade de fabular, divagar e exercitar
Admirável, e mais do que isso, Espantoso. as questões comuns. Nesse contexto a errância urbana,4
então, toda segunda-feira nos reunimos na Casa como uma experiência participativa na cidade, revelou-
Porto e conversamos sobre coisas: vida, projetos, fatos, au- -se como metodologia que possibilita orbitar em torno
tores... e saímos para a rua sem rota previamente estabele- de nossas inquietações e descobrir-inventar procedimen-
cida. sem nenhuma ação previamente combinada. nos une tos formativos e criativos na pesquisa em dança. Tendo
a experiência coletiva de uma atenção aberta à espreita de a indeterminação, a imprevisibilidade e a incerteza como
um encontro com as pessoas e lugares (o que a Ruth chama elementos presentes e desejados, a metodologia de tra-
de atenção felina) olhamos sem foco para que as coisas nos balho em errância utiliza a intuição, a espreita e a aber-
olhem de volta, chamem o nosso olho, nada. deriva. uma tura para escutar e acolher o que lá está como potência.
porosidade na atenção, na escuta e na presença. chamando Em nosso interesse por pesquisar possíveis cartografias
por uma “dança” que esteja emaranhada na nossa cami- do corpo na cidade, realizamos práticas de errância que
nhada, nas nossas lentes de contato, na sola do sapato que incluem caminhadas, permanências, derivas, paragens e
toca nosso pé no chão. uma dança invisível. percebo que observações pelas ruas, escadarias, largos, praças, vielas,
não distinguo mais roupa de dança e roupa de vida. me jardins, viadutos, esquinas e outras topografias habitadas
Surpreendo, e mais do que isso, me Delicio. por moradores de rua, brincantes, ambulantes, trafican-
aos poucos, com a persistência da nossa presen- tes, artistas, skatistas, prostitutas e passantes.
ça, com a continuidade do nosso nós, toda segunda-feira, O plano de composição “errarcom” consiste em uma
começamos a criar cúmplices...o francisco da Casa Porto, prática de errância urbana coletiva que se lança sem rotas
dona maria da casa 8, os meninos da “boca”, a escola, a previamente estabelecidas, sem objetivo e sem metas, em
igreja, as flores do jardim, o gato preto, as pedras da rua ressonância com as pessoas e os lugares da cidade. Dedi-
do escorrega, o olho d’água que brota no meio do concreto, camos tempo à experiência de abertura para o encontro,
a escadaria que não aparece no mapa, a dona da casa que para investigar esse estado de presença que necessa-
cuida das flores, o adro, o mezanino, a sombra da árvore, riamente é vulnerável, intensivo e vibrátil. Emergem,
os espaços de nada. tudo gente-tudo coisa. vou mapean- portanto, do “errarcom”, algumas linhas de atuação do
do esses encontros com meu celular na mão, capturando projeto, brevemente enunciadas a seguir:
imagens que são uma tentativa de atualizar a experiência
de olhar para algo que me toca. me Entusiasmo, e mais 1) Ocupação afetiva e ações artísticas nas ruas
do que isso, sinto Vertigem quando me encontro com es- do Morro da Conceição, tendo a Casa Porto
ses pequenos detalhes que me vibram a presença. todas as como parceiro institucional. Por exemplo:
camadas de tempo e vida grudadas nas paredes, nas pe- leituras e discussões nas praças, refeições
dras, nas portas, nas janelas. o que fazer com isso? volta e compartilhadas nas ruas, exercícios de escri-
meia caímos no buraco de ter que fazer algo que conste no ta em ressonância com os lugares, conversas
hall de tarefas previamente estabelecidas. estamos crian- com moradores e comerciantes, prova das
do a não tarefa de juntar-nos para nada, forçar o espaço comidas locais, visita a espaços culturais, re-
do nada, ocupar-nos do nada, violar a ordem produtivista, alização de improvisações em dança, experi-
violentar a urgência de ser especialista em coisas, de estar mentação de programas performativos, etc.
no circuito instituído e reconhecido... estamos criando um
circuito por dia. chupar sacolé, conhecer o observatório, 2
 Este texto é uma cartografia construída em travessias realizadas no Morro da
Conceição. Outras cartografias produzidas pelo núcleo podem ser encontradas
deitar na rua, entregar uma flor, criar correspondências, em <http://nucleodeestudoseencontros.blogspot.com.br>.
escrever, fotografar, andar com sapato de dança, desenhar, 3
 Nos referimos às manifestações populares que eclodiram em todo o território
conversar, olhar, visitar, imaginar. gestos para nada, dan- nacional, iniciadas pelo descontentamento com o aumento abusivo das tarifas de
ônibus e contagiadas por outras insatisfações, tendo marcado a história do ano de
ça, obrigada Deligny! 2013 e os movimentos de resistência até hoje.
4
 Paola Berenstein Jacques (2005), no texto “Errâncias urbanas: a arte de andar
pela cidade”, realiza um pequeno histórico das errâncias urbanas modernas di-
vidindo em três: o Flâneur de Baudelaire de final do séc XIX, as deambulações
aleatórias dos dadaístas e surrealistas de 1910-1930 e a deriva urbana dos situa-
cionistas dos anos 1950 e 1960.

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A dança como política do encontro com pessoas e lugares

Figura 1 – Errância no Morro da Conceição - RJ


2) Proposições em mobilizações populares de 3) Ciclo de Encontros de Extensão, realizado
ocupação na cidade do Rio de Janeiro (#Ocu- na Casa Porto. Conversas demoradas com
paAmaro, #OcupaMincRJ, #OcupaSusRJ), artistas, pesquisadores/as e profissionais que
tratadas no terceiro plano deste texto; pensam arte e cidade em seus engendramen-
tos políticos;

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 143-151, 2017                                145


Ruth Torralba Ribeiro; Lidia Costa Larangeira; Laura Vainer de Albuquerque; Bruna Raquel Simões Gouvêa; Thaís Leitão Chilinque

4) Produção de materialidades artístico-acadê- 2: A cartografia como bússola


micas: publicações no blog do grupo, traba- Na busca por encontrar-nos, coletivamente, com sa-
lhos de conclusão de curso, trabalho cênico beres e práticas menos delimitadas e estratificadas, o mé-
solo intitulado “Brinquedos para Esquecer”; todo da Cartografia é utilizado como instrumento para
5) Intercâmbio com festivais e participação em pensar-produzir pesquisa acadêmica em dança, por tra-
eventos de arte e pesquisa como: Pedras tar-se de uma abordagem que entende a pesquisa como
d’Água organizado pelo c.e.m - centro em acompanhamento de processos, produção de subjetivida-
movimento (Lisboa/PT), em julho de 2016; de, criação de realidades e de mundos. O educador fran-
e World Dance Alliance - Americas, (Puebla/ cês Fernand Deligny criou na França, na década de 1970,
MX), em agosto de 2016. uma comunidade para acompanhar crianças autistas se-
O c.e.m, instituição de investigação artística de Lis- veramente comprometidas. Ele, juntamente com seus
boa, lança em 2010 uma revista virtual chamada Pedras pares, desenvolveu um sistema cartográfico para entrar
d’Água - A arte de estar com pessoas e lugares, na qual em “relação” com essas crianças através do mapeamento
discute o termo “estarcom” utilizado na pesquisa. Ob- das linhas de errâncias desenhadas em seus trajetos coti-
servamos, estudando as publicações do c.e.m, que o ter- dianos, acompanhando-as em suas derivas e aproximan-
mo aparece grafado de maneiras diferentes: estar com, do-se delas pela partilha espacial dos gestos e não pela
estar-com e posteriormente estarcom e estarcom. É in- linguagem. Em 1980, Deleuze e Guattari (1996, p. 21)
teressante notar o caminho que a palavra caminha para no livro Mil platôs apontam brevemente para o conceito
consolidar-se como um conceito que emerge de uma ur- de cartografia, a partir do trabalho de Deligny, pensando
gência, de uma necessidade. Nas palavras de Agostinho, a construção do conhecimento como uma atitude rizomá-
gestora artística do c.e.m: tica e “inteiramente voltada para uma experimentação do
real”. Posteriormente, nos anos 1980, Guattari e Rolnik
Detecto que as propostas que alimentamos no c.e.m têm
muitas vezes essa característica: como não trabalhamos por
realizam exercícios cartográficos em viagens acompa-
objectivos mas por urgências, frequentemente organizamos nhando movimentos micro e macropolíticos pelo Brasil.
palavras pela necessidade de nomear o indizível até que ele Dessas viagens os autores escrevem juntos o livro Mi-
pela insistência da prática se transforma de facto em algo cropolítica: cartografias do desejo (GUATTARI; ROL-
que pode ser dito e então vai ocupando o lugar do nome que NIK, 1996) em 1986 e individualmente Suely Rolnik
lhe foi destinado [...] Pessoas e Lugares não fala de quem (1989) escreve Cartografia sentimental: transformações
nem de onde, mas da experiência de Estar-Com. Também contemporâneas do desejo. Todas essas obras são refe-
não fala de “O quê”. Estar-Com para nós não denuncia a rências para o desenvolvimento do nosso trabalho, sendo
necessidade de um quê para onde deságua o Estar. Pessoas o livro Pistas do método da cartografia: pesquisa-inter-
e Lugares não são por isso alvos a “estar com”, mas sim venção e produção de subjetividade de 2009, organizado
potenciadores da relação que faz aparecer a particularidade por Eduardo Passos, Virginia Kastrup e Liliana Escóssia
da acção Estar-Com enquanto ela própria, sem necessida- a obra que tem orientado teoricamente a nossa produção.
de de qualquer finalidade para se cumprir. É dessa atenção, O referido livro é composto por oito pistas que vão dese-
desse espaço aberto que convida a fazer aparecer o que até nhando a atuação do cartógrafo em seu processo de pes-
aqui não tinha forma, que se reorganiza tudo o resto que já quisa-intervenção em diversas áreas do conhecimento.
lá estava, da mesma forma evidente que colocar mais uma
A investigação pela via cartográfica desinveste em um
rosa num bouquet obriga a que todas as outras flores que já
modo de pesquisa que se ocupa em analisar um determi-
lá estavam se reposicionem. Não se trata portanto de uma
obrigação filosófica ou moral mas de uma evidência física
nado objeto ou fenômeno de forma apartada da experiên-
(AGOSTINHO, 2010, p. 3-4). cia do pesquisador. A relação sujeito-objeto na pesquisa
a partir do método da cartografia é íntima, afetiva e de
Por urgências que nascem do encontro e da errância, construção mútua. Segundo Barros e Passos (2009, p. 17):
algumas palavras foram emergindo em nosso vocabulá-
A Cartografia como método de pesquisa-intervenção pres-
rio – pensar com, compor com, criar com, desejar com,
supõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não
errarcom e estarcom: o sufixo “com” tonifica a contração
se faz de modo prescritivo, por regras já prontas nem com
coletiva e aponta para a potência dos movimentos que
objetivos previamente estabelecidos. No entanto, não se
se constituem coletivamente. A experiência em errância
trata de uma ação sem direção, já que a cartografia reverte
pela cidade constituiu com muita densidade a noção de o sentido tradicional de método sem abrir mão da orienta-
que a dança pode ser uma prática artística de re-existên- ção do percurso da pesquisa. [...] O ponto de apoio é a ex-
cia, de ressignificação do corpo em seu território, recon- periência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber
figurando relações desgastadas e exauridas pelos modos que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência
de produção de consumo e propondo experimentações direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-sa-
que abrem outras subjetividades, corporeidades, novos e ber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o
potentes territórios existenciais. “caminho” metodológico.
A partir do paradigma do cartógrafo, entendemos que
a pesquisa é sempre criação de realidades e subjetivida-
des. Para Barros e Passos “conhecer o caminho de cons-

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A dança como política do encontro com pessoas e lugares

tituição de dado objeto equivale a caminhar com esse O interesse do Núcleo pela produção de cartografias
objeto, constituir esse próprio caminho e constituir-se no do corpo na cidade busca mapear, não extensivamente,
caminho” (BARROS; PASSOS, 2009, p. 31). mas afetivamente, espaços, territórios e movimentos da
Afirmando que o objeto de pesquisa se produz no pro- cidade que operam essa dissidência da qual Pelbart (2016)
cesso de pesquisar, a cartografia torna-se uma ferramenta fala; que agenciam desejos comuns, que interrompem a
precisa para o trabalho que realizamos, ao acompanhar- lógica da subserviência, apatia e passividade e operam a
mos, carne-a-carne, os referidos processos de re-exis- ativação da autonomia, da organização coletiva, da au-
tência na cidade. Rolnik (1989) ressalta que é tarefa do togestão e da potência micropolítica vibrátil dos corpos.
cartógrafo dar língua para os afetos que pedem passagem. Essa força nos convocou a acompanhar e a realizar ações
Dele se espera que esteja mergulhado nas intensidades de artísticas em movimentos de ocupação cariocas.
seu tempo. Um dos procedimentos metodológicos ado- O Núcleo esteve no Colégio Estadual Amaro Caval-
tados por nós é a atenção aberta e flutuante: uma atitude canti, durante o OcupaAmaro, no Palácio Capanema no
para estarmos em sintonia com as forças que nos atraves- OcupaMinC e no prédio do Ministério da Saúde do Rio de
sam, de modo a ativar a potência do corpo vibrátil. Para Janeiro, no OcupaSUS, realizando proposições artísticas.
Rolnik (2010, online): 09 de maio de 2016
[…] o corpo vibrátil é aquele ponto de interrogação em nós
Segunda com os estudantes da OcupaAmaro,
que está sempre levando a uma recriação do espaço, ele é
com a força e o silêncio que nasce do barulho…
irredutível ao nosso contorno atual, é a presença do mundo
no nosso corpo que nos leva a ser mundo e a criar mundo. Chegamos ao Colégio Amaro Cavalcanti, ocupa-
do há quase um mês…
Nas práticas de errância que realizamos na cidade,
exercitamos a atenção do cartógrafo e ficamos à es- Chegamos com os nossos materiais de tra-
preita de um encontro: atitude que habita a duração do balho: baldes, panos de chão, produtos de limpeza,
enquanto: presente. As cartografias são construídas na tecido, ideias, atenção aberta, disponibilidade para o
experiência afetiva com os espaços da cidade. Elas são encontro, escuta atenta.
desdobramentos escritos, fotográficos e videográficos Primeiro fomos levadas para uma “expedição
das experimentações vividas em campo. Cartografar cartográfica” pelo prédio. Encontro com as camadas do es-
tem sido para nós uma experiência de fazer corpo com paço. Salas, banheiros, quadras, cozinha, dormitório. Saca-
a cidade, um modo de estarcom espaços e de alargar e da (forte), ponto estratégico de melhor visualização da rua.
“gaguejar” o que é fazer-pensar dança. Nesse movimento
Muitos e muitos livros intactos, que os estudan-
cartográfico criamos danças em expansão, contagiadas e
tes, até então, nunca tinham tido contato, nem sabiam que
constituídas pelas forças e intensidades do mundo.
existiam. Assim como muitos e muitos quilos de carne estra-
Por entendermos que a pesquisa que desenvolvemos gada no congelador, só descobertos na ocasião da ocupa-
está em movimento e transformando-se, as cartografias ção. Achamos livros de Artes, achamos Lygia Clark e Hélio
produzidas tornam-se partilhas possíveis que nos possi- Oiticica na página 94. Carregamos esses livros conosco,
bilitam ativar a dança como forma de estarcom a cidade. para utilizá-los na nossa atividade. Não que acreditemos
Assim, cartografar não é somente documentar, registrar na pedagogia da cartilha, mas confiamos que os livros têm
ou representar as nossas ações, é sobretudo uma expe- o poder de ativar a curiosidade e de abrir mundos.
riência em dança através dos movimentos de uma grafia
A movimentação é intensa. Professores da própria
sensível e encarnada. escola, jornalistas, pesquisadores, pessoas apoiando com
3: Proposições coletivas como experiência de re- doações, fluxo de estudantes. Número infinitamente menor
existência nas ocupações da cidade do Rio de Janeiro do que as 2 mil pessoas que circulavam na escola diaria-
mente antes da greve e da ocupação, mas essas que ali estão
Em 2016, Pelbart, em texto lido no Colégio Fernão
e permanecem não só circulam… elas cuidam, gerenciam,
Dias Paes de São Paulo, fala que as ocupações nas es-
persistem, insistem, constroem dia-a-dia, minuto a minuto
colas estaduais paulistas de ensino médio – iniciadas no
aquele espaço e todas as suas relações. De cara, observa-
ano anterior, contra um plano arbitrário de reorganiza- mos que não há um líder, não tem ninguém dizendo a todos o
ção da rede pública estadual pelo governo Alckmin – são que fazer. Pelo menos nessa escala convival da ocupação...
um dos gestos coletivos mais ousados vistos no Brasil (certamente existem lideranças e hierarquias no movimento
recentemente, e que esse movimento “destampou a ima- como um todo). Cada um cuida de algumas coisas, eles vão
ginação política em nosso país”. Ele acrescenta dizendo se revezando em tarefas e isso é muito marcante.
que os estudantes introduziram uma nova “coreografia
política” nas representações institucionais com uma di- Iniciamos a nossa proposta de limpeza coletiva
nâmica de proliferação, contágio, frescor, afeto coletivo, do espaço no hall de entrada da escola:
operando um corte na continuidade do tempo político e Convidamos todo mundo… Alguns chegam, ou-
uma inflexão na percepção social e na sensibilidade co- tros desconfiam, as câmeras se voltam pra nós. Molhar,
letiva na cidade de São Paulo. Pode-se dizer que esse torcer, conectar pés, bacia, costas, braços, cabeça… Tudo
corte e inflexão inspiraram movimentos de ocupação que meio estranho, tudo meio familiar.
aconteceram em diversos territórios do nosso país (PEL- Eles embarcam, nós também. Sentimos todos o peso
BART, 2016, online).

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Ruth Torralba Ribeiro; Lidia Costa Larangeira; Laura Vainer de Albuquerque; Bruna Raquel Simões Gouvêa; Thaís Leitão Chilinque

e a insistência dessa ação. Alguns encontram o silêncio que Nesse contexto, a cidade é mais do que o cenário
permite se conectar, outros estão dispersos e incomodados. das lutas sociais contemporâneas, o direito à cidade é o
Não tem jeito certo de fazer, tem que descobrir fazendo… próprio epicentro das disputas em questão. O direito à
Estendemos, então, o tecido de voile no chão para realização de novas coreografias na utilização dos bens
iniciarmos uma adaptação de “a viagem” de Lygia Clark. públicos comuns, às gestões mais participativas e menos
Quem quiser deita… um de cada vez. Só quem quiser. Aten- arbitrárias, e aos projetos urbanos menos mercadológicos
ção para escutar outras coisas que não as próprias palavras. e mais comuns, voltados ao bem-estar dos seus moradores
Eles se interessam, “escutar o quê?” Dar espaço para a es- e não aos interesses especulativos do mercado. O direito
cuta do silêncio que é cheio de rua, gaita escocesa, conversa, à educação pública de qualidade, à cultura e de acesso ao
carro, respiração... É difícil o silêncio em um momento em sistema único de saúde, são algumas das lutas em torno da
que se precisa gritar tanto!!!! Falar muito e repetir inúme- cidade e por condições mais igualitárias de vida.
ras vezes... Mas ele se faz. E depois de o primeiro estudante A greve de ocupação ganha força na medida em que
ser envolvido pelo pano, carregado coletivamente pelo hall investe os espaços públicos de uma produção afetiva, ope-
e pousar embaixo da escada, trama-se uma rede entre nós. rando a construção de novos territórios existenciais. As-
JUNTOS. Começa nesse momento o que achamos que pode
sim, o espaço público não é somente cenário para esses
ser mais relevante nesse encontro... que é o próprio encon-
movimentos de ocupação, os movimentos em si produzem
tro... (E não em si a realização da atividade proposta, porque
ou reproduzem o caráter público do ambiente material.
não há nada que possamos ensinar fora do encontro. Não há
conteúdo mais importante do que a vida)...
As palavras, as percepções, imagens, reflexões
encharcadas da vida, do corpo que ocupa, que permanece,
que insiste e que resiste.
- Parece um morto.
- Pode-se velar alguém sem estar morto? O cuidado com
o corpo do outro. A morte como assunto, o que estamos
matando de um sistema escolar falido para fazer nascer
uma nova escola. As pequenas mortes que devem acontecer
para o novo poder nascer…
- Como é o nome disso? Dança? Vamos criar um nome pra
isso…
- Corpo velado!
- Como reativar esse estado de escuta no nosso dia-a-dia,
como podemos nos escutar melhor?
- Parece que eu deveria acordar assim toda manhã, mas
nós já acordamos estressados, com panelaço…
- O que podemos fazer com isso? Um texto... Um caderno...
Vamos criar o nosso livro de ocorrências...
Muitas questões iam surgindo cada vez que uma
pessoa fazia a experiência, e a cada vez era um novo espa-
ço de atenção e escuta.
Percorremos alguns espaços da escola e en- Figura 2 – Proposição no OcupaAmaro
cerramos o trabalho no refeitório. Lugar que nos parece Nas ocupações por nós vivenciadas, percebemos que o
crucial para a manutenção da ocupação e das relações. O
espaço público é reinventado, repensado, criado pela pre-
lugar da comida. Que aliás é onde todos se encontram…5
sença das pessoas, pelas práticas comuns, encontros e pelo
Para Lepecki (2013, p. 56), a política, diferentemen- ato de transformar o espaço em lugar e o lugar em casa.
te da politicagem dos políticos, seria “uma intervenção Transformar o espaço público em casa, reconfigurar o que é
no fluxo de movimento da cidade e nas suas representa- da esfera pública e da esfera privada, cuidar dos prédios pú-
ções”, realizando uma operação coreográfica de ruptura blicos como se cuida do próprio lar é também redimensio-
da fantasia do espaço público como vazio ou livre de aci- nar a ação política. Os ocupantes estabelecem uma vivência
dentes de terreno. Essa intervenção transforma um espa- em comum: dormem, comem, conversam, vivem juntos.
ço de circulação compulsória num espaço onde o sujeito Cria-se – através do ato de ocupar um espaço, da organiza-
possa aparecer não agenciado por “vetores de sujeitifica- ção de grupos de trabalho e de uma gestão coletiva, da pro-
ção pré-dados” (LEPECKI, 2013, p. 56). moção de debates e programações culturais – uma inventiva

 Este texto é parte de uma cartografia escrita após o encontro com os estudantes
5

da Ocupa Amaro. A cartografia na íntegra está disponível em: <www.nucleode-


estudoseencontros.blogspot.com.br>.

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A dança como política do encontro com pessoas e lugares

re-existência às medidas arbitrárias e autoritárias que o País, cima, topo da cabeça para baixo. As indicações que suce-
o Estado e a cidade do Rio de Janeiro vêm sofrendo nos dem orientam o deslocamento de uma extremidade a ou-
últimos anos e particularmente em 2016.6 tro do espaço e apontam para a importância de se realizar
esta ação juntos e em silêncio. A duração e a velocidade
Como aponta Pelbart (2008), se as formas de resis-
do deslocamento são criados pelo grupo durante a expe-
tência ao poder capitalista, há décadas atrás, se pautavam
riência. Ao atravessar o espaço a escuta se amplia: traba-
numa matriz dialética de oposição direta ao poder conce-
lhamos para manter a conexão entre a estrutura do corpo
bido como centro de controle, atualmente, as formas de
e a estrutura do espaço; entre o tempo pessoal e o tempo
resistir fazem eclodir posicionamentos híbridos, oblíquos
do grupo; a presença do corpo e a poética do espaço. Tal
e sempre cambiantes que se constituem num plano co-
implicação aguça a percepção e a sensibilidade criando
letivo. O coletivo não é reunião de pessoas, mas a força
uma dimensão coletiva na ação que possibilita vivenciar
de constituição de um plano comum, um plano de inscri-
esse chão tantas vezes pisado, de uma maneira nova. Per-
ção dos movimentos que convocam a criação de mundos
mite fazer re-existir o espaço cotidiano.
co-possíveis. Deste modo, a resistência opera um desar-
ranjar das configurações
dominantes e produz um
movimento de contágio e
difusão de forças singulares
criando um plano comum
de re-existência, acolhendo
as diferenças e produzindo
deslocamentos.
Uma das proposições
que nos ajuda a refletir e
praticar a dimensão cole-
tiva a partir do encontro
é a Limpeza Coletiva do
Chão. Conforme Oida
(2007) no livro O ator in-
visível, alguns coletivos
teatrais, práticas religiosas
e de artes marciais orien-
tais realizam essa ativida-
de de forma ritualizada.
A proposta parte da ação
cotidiana de limpar o chão
e se interessa mais pelo
modo como tal limpeza se
dá do que na funcionalida- Figura 3 – Limpeza do chão no OcupaAmaro.
de da ação em si.
Nosso interesse, ao propor a Limpeza Coletiva na
Os primeiros direcionamentos são para que cada par- Ocupa Amaro, passava por participar de uma atividade
ticipante escolha um pano de chão, mergulhe em um bal- cotidiana do grupo de ocupantes, redimensionando-a
de com água e torça. Neste momento, pede-se atenção ao a partir do desejo de estarcom as pessoas e o lugar. Na
contato dos pés com o chão, ao alinhamento da bacia em rotina do colégio existia um grupo que era responsável
relação a coluna, e a ativação do centro do corpo. Todo pela limpeza do chão do pátio de entrada da escola e que
o corpo engaja-se na ação de molhar e torcer o pano. Os trabalhava para cumprir a tarefa de manter o chão lim-
participantes colocam-se lado a lado, em contato, com po. Após a atividade proposta escutamos relatos dos alu-
as palmas das mãos sobre os panos estendidos no chão, nos apontando positivamente a diferença entre a prática
em uma base de quatro apoios: ísquios direcionados para quando assumida como obrigatoriedade e quando com-
6
 Em 2016 o Brasil viveu um processo de impeachment presidencial que foi enten- preendida como atividade coletiva - e neste caso, inclu-
dido por uma parcela da população como golpe de Estado. A presidenta Dilma
Rousseff, reeleita em eleições diretas no ano 2014, foi deposta e substituída pelo sive, como atividade que possibilita o fortalecimento da
vice-presidente de sua chapa, Michel Temer. Com o princípio deste novo gover- relação do grupo. A lógica funcional de limpar o chão é
no o país passou a sofrer uma série de medidas arbitrárias que vão desde cortes
sistemáticos no investimento em áreas fundamentais para o desenvolvimento subvertida quando lançamos para o espaço um olhar que
social - como a educação e a cultura -, até o desmonte dos direitos sociais e cuida e que se ocupa afetivamente.
humanos - com o aumento significativo da violência policial no exercício de con-
tenção das manifestações populares que se posicionaram contrárias ao sistema Outra proposição que realizamos foi inspirada na obra
de governança pós-impeachment. Afora os comprometimentos à nível federal,
no âmbito estadual e municipal, a população do Rio de Janeiro convive com da artista brasileira Lygia Clark. A potência mobilizadora
um legado de inadimplência em diversos setores do funcionalismo público, fo- e ativadora do corpo vibrátil nas obras relacionais e coleti-
mentado pelos investimentos feitos nas obras da Copa do Mundo de 2014 e dos
Jogos Olímpicos de 2016. Uma gestão de recursos financeiros demasiadamente
comprometida com iniciativas de cunho privado que tem precarizado a largos
passos a oferta pública de serviços de saúde e educação.

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Ruth Torralba Ribeiro; Lidia Costa Larangeira; Laura Vainer de Albuquerque; Bruna Raquel Simões Gouvêa; Thaís Leitão Chilinque

vas de Clark ativam, pela experiência sensorial do corpo, Considerações finais


a dimensão do comum que consideramos tão importante A experiência de encontro com pessoas e lugares que
neste contexto de produção de novas cidades possíveis. é facilitada pelas proposições em dança realizadas pelo
Lygia Clark foi uma das fundadoras do movimento projeto nos ajuda a entender que as relações entre o cor-
neoconcretista no Brasil e juntamente com Hélio Oitici- po e os espaços da cidade não estão previamente deter-
ca, Lygia Pape, Ivan Serpa, entre outros artistas, uma das minadas, nem cristalizadas em suas práticas ordinárias.
pioneiras a trazer para o campo das artes a experiência de É a qualidade da nossa presença e a relação dos corpos
co-participação, afirmando a relação arte-vida e o públi- com o mundo que cria este estarcom e que modifica a
co como propositor. maneira pela qual nos relacionamos com as pessoas e os
Nas experimentações coletivas realizadas durante a lugares. Nos movimentos de ocupação que vivenciamos
estadia de Clark na França e a fase posterior de retorno ao percebemos que ocupar, insistir, resistir e inventar os es-
Brasil, denominada Estruturação do Self, a artista vai afi- paços públicos pode forçar novas possibilidades de co-
nando seu envolvimento com a produção de objetos que mum, ressignificando os afetos, ajudando a reimaginar o
não são pensados por seu valor estético, mas em sua po- sistema de representação macropolítico, refazendo assim
tência relacional. Os objetos relacionais ativam a aware- o chão que erode sob nossos pés.
ness, a presença do corpo, e potencializam experiências Desta maneira, atualizamos a pergunta feita no início
transubjetivas ou transicionais; atuam como agentes de do nosso processo de pesquisa: Como dançar nesses tem-
uma experiência sensorial coletiva de relação entre o cor- pos em que o chão está em plena erosão? Como dançar
po e o mundo. Eles têm assim uma potência poética de findos 2016? Como manter-nos conectadas com movi-
colocar o imaginário e a sensopercepção em movimento. mentos que ativam a dimensão vibrátil dos corpos e acio-
Segundo Pedrosa, quando alguém participa de uma expe- nem possibilidades de re-existência na cidade? Como
rimentação como essas, não participa de uma obra, mas permanecer dançando e produzindo movimento de vida
inaugura um corpo-coletivo e cria um espaço-tempo para em tempos que se mostram movediços? Como seguir
um “exercício experimental de liberdade” (PEDROSA produzindo uma dança em ressonância com o mundo?
apud FABIÃO, 2014, p. 287). Estarcom essas perguntas nos parece cada vez mais
Se acompanharmos o pensamento de Lepecki pode- urgente e as respostas são impermanentes. É necessário
mos afirmar que Lygia cria com suas proposições uma estar sempre à espreita, praticando a atenção do cartó-
coreo-grafia espacial afetiva. Lepecki (2014, p. 282) grafo para encontrar as brechas e as dobras em que essas
percebe no trabalho da artista uma “geografia afetiva de potências possam emergir…
viver” que cria o que ele denomina de “diagramas para
Referências
coexistência social”. Sua obra se afirma enquanto ato
imanente que se desdobra numa ação coletiva que coloca AGOSTINHO, M. Pessoas e lugares. Revista Pedras d’Água -
em jogo os limites individuais do corpo. Arte coletiva, a arte de estar com pessoas e lugares. Lisboa, 2010. Disponível
por excelência onde o artista-criador não é o centro da em: <http://www.c-e-m.org/newsletter/revista_pessoas_
lugares.pdf>. Acesso em: mar. 2016.
experimentação, ele tampouco é criador sozinho, sendo
o público co-criador de uma experiência compartilhada. BARROS, R.; PASSOS, E. A cartografia como método
Abre-se um espaço-tempo para uma atmosfera de parti- de pesquisa-intervenção. In: KASTRUP, V.; PASSOS, E.;
lha da experiência sensível e criação de um continuum ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto alegre:
entre corpo-mundo (LEPECKI, 2014).
Sulina, 2009. p. 17-31.
No nosso encontro com os estudantes ocupantes do
Colégio Amaro Cavalcanti, e em outra ocasião, com os DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. 2. ed. São Paulo:
Editora 34, 1996. v.1.
profissionais de saúde da ocupação do Ministério da
Saúde, realizamos um trabalho inspirado na proposição FABIÃO, E. The making of a body: Lygia Clark’s
“Viagem” de Lygia Clark. Estendemos um tecido de voi- anthropophagic slobber. In: BUTLER, C. H. (Org.). Lygia
le no chão, o chão e o material se fizeram espaço para Clark: the abandonment of art, 1948-1988. New York: The
Museum of Modern Art, 2014. p. 294-299.
partilha da experiência e o corpo confiou e entregou seu
peso. Nós sustentamos juntos o peso de cada um e atra- GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do
vessamos o espaço da ocupação, traçando linhas movedi- desejo. Petrópolis: Vozes. 1996.
ças com nosso corpo-coletivo. O silêncio se fez presença JACQUES, P. Errâncias urbanas: a arte de andar pela
e foi possível escutar as intensidades mudas. Essa experi- cidade. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2005. Disponível em:
ência conectou e modificou o estado dos corpos, o tônus, <https://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_
eriçou os pelos e gerou uma contração coletiva, abrindo revista_7/7_Paola%20Berenstein%20Jacques.pdf>. Acesso
brechas para depoimentos, impressões, assuntos e parti- em: 13 nov. 2016.
lhas que fizeram dançar os limites corpo-objeto/corpo- LEPECKI, A. Planos de composição. In: GREINER, C.;
-mundo, redesenhando a coreografia afetiva do espaço e SANTO, C. E; SOBRAL, S. (Org.). Cartografia: Rumos Itaú
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A dança como política do encontro com pessoas e lugares

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Recebido em: 22 de novembro de 2016
Aceito em: 9 de junho de 2017

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 143-151, 2017                                151


Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 152-157, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2204
Dossiê Corporeidade

O corpo cultivo da arte


Elizabeth Medeiros Pacheco,I, H Thadeu Pinto Lobo,II
Gabriel Barbosa Gomes,II Karina Junqueira MataII
I
Universidade Federal Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil
II
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Resumo
O capitalismo urbano midiático atual pervade as subjetividades, extraindo os afetos vitais, vetores de criação, através de má-
quinas semióticas que capturam a experiência da cooperação e inoculam nas vidas a autoexigência, a autosuficiência, a autoi-
maginação, na urdidura do mais individual dos mundos: o mundo sem si. Tal forma de vida se torna incubadeira das patologias
do ânimo, com pregnância dos afetos de insuficiência, enquanto testemunhamos a expansão incessante das redes de solidão
participada. Nesta constante convocação à dispersão pelo excesso de oferta e ânsia de velocidade, a constituição de experiência
é cada vez mais precária e a mesma abundância que ora incita à demanda, pode também assombrar com o tédio. Nosso projeto
O corpo sem álibi, pesquisa aberta ao convivio acadêmico da Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes,
consiste em compartilhar nossos corpos, seu poder de afetar e contrair memoria, apostando no corpo cultivo da arte como dis-
positivo micropolítico de resistência.
Palavras-chave: afetos; arte; corpo; experiência; resistência.

The body-cultivation of the art


Abstract
The current urban media capitalism pervade the subjectivities, extracting their vital affections, vectors of creation, through
semiotics machines wich catch the experience of cooperation to inoculate in the lives the self demand, self sufficiency, self
imagination, in a ploy of the most individualistic world that ever existed: the world without self. Such way of life form becomes
incubator of many pathologies of the vitality, with the experience of inadequacy, while we testified the incessant expansion of the
nets of announccing solitude. In this constant demand to the dispersion owing to the excess of the offer and wish of acceleration,
the constitution of experience is more and more precarious and the same abundance that now it incites to the demand, it can also
astonish with the boredom. Our research The body without alibi, wich is open to the academic conviviality of the Federal Flumi-
nense University in Campos of Goytacazes, consists of sharing our bodies, their power to affect and to make memory, betting in
the body-cultivation of the art as micropolitic resistance.
Keywords: affections; art; body; experience; resistance.

“Para homens dos quais toda naturalidade foi subtraída, eficácia pretendem esgotar a realidade com o que julgam
todo gesto torna-se um destino” (AGAMBEN, 2015). conhecer através da ciência e/ou da técnica? Que dese-
O capitalismo contemporâneo já não dispõe apenas jo vingará perante esta convocação de nossa subjetivi-
de mecanismos de controle para afetar diretamente os dade ao país da Anestesia, drogados oficialmente para
corpos com meios que se justificam por suas finalida- assegurar um real entorpecido por conveniências? Qual
des. Os tempos mundanos cada vez mais nos assolam será o apelo que se aninha nestes usos se o desejo não
em seus ritmos de urgências e emergências, para as quais visa satisfações, mas sim desejar? Como diferenciar o
não cessam de reivindicar todos os álibis que se alinhem uso prescritivo da droga que se impõe, individualmente,
ao argumento da segurança que se impõe soberana. Não medicinalmente, a populações de supostos perfis sinto-
será que nosso ímpeto de imaginação e invenção vem máticos e/ou patológicos, de um outro uso de drogas que
sendo sequestrado em função da execução de progra- se compartilha como experimentação ou prenúncio de
mas que monitoram nossas vidas, segundo estratégias de aventura? Esta imposição da funcionalidade que passa
sobrevida? Mas o que será constitutivo da experiência a convocar, em cada um de nós, os procedimentos de
do valor da vida? As mudanças e transformações pelas controle sobre nossos corpos e nossos hábitos e, simulta-
quais uma vida torna singular o percurso de qualquer neamente, a insuflar a culpabilidade por nossas escolhas,
um parece terem-se esgotado nessa busca de estratégias aparece como sintoma da imensa ansiedade, do medo
de defesa - contra o inimigo de fora e contra o inimigo avassalador da experiência de falha, de incompletude, da
de dentro. Considere-se de fora o que estranho. Consi- imprevisibilidade da vida como devir. A vida que pulsa
dere-se de dentro o que me estranha: Desejo. Mas não nas medulas sabe se esquivar, fugir, trair, gritar, lutar,
será o desejo este apetite de mundo? Mas que mundo mas pode não suportar a estase de apenas durar, como
ainda resiste perante este avassalador programa de ni- medida regrada de um tempo que apenas finda. Se nos
velamento do real ao verificável? Como se constituem afastarmos das experiências do simples viver que fazem
os parâmetros e os critérios com os quais os arautos da o tempo sair do regime dos fins, podendo engendrar ou-
tros modos incitando o pensamento e a invenção, estare-
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional. Rua José do Patrocínio, mos expropriados da graça e do vigor de nossos corpos.
71. Centro - Campos dos Goytacazes, RJ – Brasil. CEP: 28010385. E-mail:
elizabethmp@id.uff.br, pintolobo@gmail.com, barbosagomesgabriel@gmail.
com, karinajunqueira.s@gmail.com
O corpo cultivo da arte

Guiada pelo regime estético, nossa pesquisa nos leva paço efetivo do nosso Campus universitário. Analisamos
ao corpo como cultivo da arte, este impessoal poder do os modelos de relações que ali se produzem como corpo
possível. A escolha deste nome, O Corpo sem álibi, se e como subjetividade, através do dispositivo de peque-
justifica por esta inevitável presença do corpo na cena de nas cenas para forum do Teatro do Oprimido e outras ofi-
sua experiência psíquica, tornando indissociáveis a sub- cinas que permitem cartografar, com leitura semiótica, a
jetividade do corpo e a corporeidade da subjetivação. O distribuição dos espaços e as normas de seus usos, desde
álibi, como figura jurídica, apresenta a evidente ausência a arquitetura das salas dos prédios e containers, até a
do suspeito na cena da qual é acusado. Acontece ao corpo configuração dos corpos nas distintas situações de convi-
de não ter álibi, pois ele não pode se ausentar da cena da vência tais como, nas reuniões, no auditório, na cantina,
vida. A pesquisa se passa com alguns alunos da gradu- na tenda; também contamos com textos transdisciplina-
ação em Psicologia (bolsistas e não bolsistas de desen- res, literatura e filmes. Através dos filmes como suporte
volvimento acadêmico) na intersecção entre o estudo de aos estudos da semiótica, desenvolvemos o estudo dos
textos voltados à dimensão estética da experiência e cer- signos e dos planos de composição dos corpos, a leitura
tas práticas comuns a algumas terapias corporais, assim dos gestos, que nos levam a considerar modos de vida
como à experimentação teatral. Através da interlocução que não são certos ou errados, mas outros.
entre a filosofia e a arte, nossa pesquisa propõe encontros Reverberando as palavras de Agamben (2015, p. 20),
de experimentação em grupo enquanto espaço de reapro- “a intelectualidade e o pensamento não são uma forma de
priação da atividade relacional, pensando nossas práticas vida ao lado de outras nas quais se articulam a vida e a
de modo a nos comprometermos com o fato de termos produção social, mas são a potência unitária que constitui
um corpo e de estarmos atentos aos vários regimes de sua em forma-de-vida as múltiplas formas da vida”. Nossas
afetabilidade, no corpo a corpo dos muitos corpos - hu- experiências na pesquisa permitem que façamos um re-
manos e inumanos - cultivando nossa escuta das emoções cuo e pensemos o que é relevante em nosso tempo de
que vão constituindo a experiência de meio, como di- formação, para além dos registros acadêmicos, méritos,
mensão mais que pessoal, até impessoal ou transpessoal, títulos, coeficientes de rendimento, pois as modelizações
criando memória de composição. O paradigma estético impostas pelo instituído são certamente úteis à formação
nos surpreende como invenção do real. As muitas práti- do social, mas a questão é a conveniência de sacrificar
cas da pesquisa demonstram que ao adentrar o universo a saúde psíquica e a subjetividade para tornar-se útil.
de outra pessoa, seus ambientes, seus meios, criamos no- O que produz o conceito de utilidade vigente? Um tra-
vas significações e algo surge ali, algo acontece, tonali- balho acadêmico, por exemplo, não é prazeroso porque
zando tudo o que se passa. Esse adentrar acontece fora faz crescer minha lista de realizações, mas porque, além
do plano comunicacional, com olhos e poros bem aber- de me potencializar como aluno ou professor, constitui
tos, “pisando devagar”, deixando espaço para ser tocado um plano de relações que afetam meus rumos como pes-
pelas distâncias num entre-dois singular, que incita uma soa na implicação ética de minhas escolhas e dos meus
mutualidade, um estado de arte. Esse respeito com o es- gestos. Agamben apresenta os modos do fazer e do agir,
paço do outro resignifica a violência oculta e cotidiana da identificando o gesto como um terceiro modo do agir que
sociabilidade compulsória. Pesquisar essas questões tem é propriamente sem álibi, pois um gesto se assume e esta
nos proporcionado um olhar completamente atípico so- condição apresenta a responsabilidade ética como o que é
bre a formação de psicólogo e suas aspirações científicas. proprio ao humano. Citando-o: “Se o fazer é um meio em
Num momento em que a lógica empresarial e seu modelo vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o gesto
de gestores impõe-se à educação, tornando o espaço aca- rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a
dêmico cada vez mais instrutivista, priorizando a adequa- moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao
ção do estudante à sua devida inserção profissional como âmbito da medialidade, sem se tornarem, por isso, fins”
produto, em detrimento da vivência e da convivência em (AGAMBEN, 2015, p. 59, grifo do autor).
suas pesquisas no campo de sua problematização, con-
Ao pensar numa perspectiva estética, não trataremos
sideramos que a experiência do cultivo do corpo e seus
da estética do belo ou da Estética como estudo da arte,
gestos afirma-se como plano estratégico de resistência.
mas de uma estética das sensações, ou uma estética dos
O corpo que se constitui através das relações, per- poros, que respiram ou sufocam, tratando das imagens
passado por questões micropolíticas e macropolíticas que chocam, das imagens que afetam das mais diversas
comparece à cena de nosso cotidiano na universidade formas, abrindo o atual para deixar vir o virtual. O que
e convoca estratégias que possam enfrentar o problema temos em vista é pensar os corpos como produção sen-
ainda maior que a evasão estudantil, que é a precariza- sível e abertura aos possíveis, pois se o real é virtual, o
ção das condições de vida de estudantes, professores, atual é o que acontece. O que estaria mais a serviço do
técnicos e terceirizados, que compõem o ambiente aca- real do que os corpos em seu acontecimento? O corpo se
dêmico, seus afetos e suas práticas. Através das experi- apresenta e se submete, é interessado e receptivo em re-
mentações realizadas em nossos encontros, cultivamos a gime de afetação. Deixaremos de lado os ideais do corpo
sensibilidade de um corpo que se desdobra para resistir que constituem o corpo da utilidade, ou o corpo como um
às amarras do instituído, perante a arquitetura de poder apêndice da máquina mental.
que atravessa as relações institucionais que compartilha-
mos - enquanto discentes e docente - implicados no es-

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Elizabeth Medeiros Pacheco; Thadeu Pinto Lobo; Gabriel Barbosa Gomes; Karina Junqueira Mata

Trataremos o corpo enquanto operação do entre cor- compõem e produzem afetos. Dentre os movimentos que
pos constituindo-se como meio. Um alimento não só sa- exercemos cotidianamente podemos extrair gestos que
cia a fome, mas constitui a identidade de um povo; um se exprimem no âmbito de uma medialidade pura sem
utensílio não é importante somente na medida de sua nenhuma finalidade e que emitem signos e comunicam.
utilidade prática convencionada, mas também de acor- A coreógrafa brasileira Carmem Luz, apresentou no tea-
do com o modo como ele aproxima diferentes gerações tro Cacilda Becker (Panorama de Dança Contemporanea
e constitui subjetividade (BARTHES, 2007). É preci- 2000), como desdobramento de seu trabalho com jovens
so apenas sair do caráter de previsibilidade e utilidade, na comunidade do morro do Andaraí, um trabalho co-
abandonar a dimensão estéril da objetificação. A ampli- reográfico, COBERTORES, fazendo dançar a rua e os
ficação das relações até o inumano permite o estabeleci- gestos dos adolescentes habitantes da rua. A vida a céu
mento das experiências sensíveis que constituem o corpo aberto no gesto da dança. Lindo, impactante e fidedigno.
potencial. “A paisagem vê” (DELEUZE; GUATTARI, A criação de um corpo vivo, pulsante, depende do
1997, p. 219), carrega em si afetos que estão longe de po- cultivo da sensibilidade, pois existir no mundo é ter e ser
derem ser considerados ‘humanos’, mas que também não corpo, mas, como nos diz Latour (2008, p. 39, online)
podem ser ignorados enquanto afetos próprios do inuma- “O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo de
no, dos quais Van Gogh nos deu um mundo de imagens. superior - uma alma imortal, o universal, o pensamento
Vemos o sequestro do corpo como um dos frutos dessa - mas aquilo que deixa uma trajectória dinâmica através
lógica utilitarista e funcionalista que se instaurou sobre da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de
as relações, formando um molde binário que generaliza que é feito o mundo”. As relações de sentido estabelecidas
as relações como se só pudessem ocorrer por uma via tanto pelo olhar quanto pela dança que os tornam, inclu-
de mão única: a relação homem-objeto. Mesmo quando sive, meios de comunicabilidade, são traçadas de forma a
homem-objetificado. Mas se o inumano não é o outro de obter significações muito específicas e, ao mesmo tempo,
nossa interação humana - aquele Tu que me permite di- plurais. O gesto, a dança e “o olhar” compõem blocos de
zer Eu - ele é outrem, ou seja, o outro fora do plano de sensação, “mesmo o vazio é uma sensação, toda sensação
subjetivação, mas como algo passível de relação. Atra- se compõe com o vazio, compondo-se consigo, tudo se
vés desse entrecorpos, as fronteiras entre sujeito e objeto mantém sobre a terra e no ar, e conserva o vazio, se con-
tornam-se cada vez mais indiscerníveis. Por que ignorar serva no vazio conservando-se a si mesmo” (DELEUZE;
um saber fora das epistemes em favor de uma acuidade GUATTARI, 1997, p. 215). O vazio é o que constitui a
científica, de uma lógica racional ou mesmo de uma su- relação, e a arte acontece na ética da relação. Composi-
posta imparcialidade? Sobretudo, “o olhar” é um gesto, ção. A ética de adentrar outro “pequeno universo” criando
por isso não pode ser tocado, no sentido lato da palavra significações muito nossas e valorizando algo que surge
“tocar”. O gesto de olhar se assemelha ao gesto dançado ali. Esse adentrar deve acontecer com os olhos e poros
do bailarino, por sua constituição sígnica fugidia. bem abertos e “pisando devagar”, ou seja, com respeito
Podemos dizer: a dança, por si própria não significa nada. ao espaço do outro. Essa é a ética da relação. Da mesma
O gesto dançado, a menos que tenha sido concebido (codi- forma como não tocamos o gesto de olhar, não tocamos o
ficado) para apresentar certa significação precisa, não quer movimento, tocamos o corpo, o braço, os pés, mas o mo-
dizer nenhum sentido em que a linguagem articulada pode- vimento só é tocado por outro movimento, o movimento
ria traduzir de maneira fiel e exaustiva. O gesto é gratuito, só se finda em outro movimento. Ou melhor, não se finda,
transporta e guarda para si o mistério do seu sentido e da reverbera, criando novos movimentos que, de certa forma,
sua fruição (GIL, 2001, p. 103). são extensões infinitas do movimento “inicial”. Gil (2001,
Determinados movimentos dos olhos e determinados p. 107) sustenta que o movimento da dança é um movimen-
ângulos e expressões faciais, podem ter significação pró- to infinito. O movimento é muito aerado para ser esqua-
pria dada por alguma pessoa ou grupo de pessoas, mas drinhado por perspectivas biológicas que se apresentem
no geral seu significado é múltiplo e enigmático, apresen- como uma solução definitiva para sua análise. O vazio que
tando-se de forma única para cada pessoa. Para Deleuze circunda o movimento e estabelece a relação entre espaço
e Guattari (1997, p. 215) “algo só é uma obra de arte se, e corpo também precisa ser considerado na compreensão
como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para (não apreensão) do movimento. Tal vazio é característico
permitir que neles saltem cavalos”. da relação que se dá no “entre corpos”, de um vazio que se
constitui com a matéria móvel que é o corpo.
Dos múltiplos sentidos que podem ser atribuídos ao
vazio, de qual estamos tratando? Da potência de afecção O movimento trabalha constituições distintas, que
e de recriação. Se a forma traz a utilidade, o vazio traz podem ser observadas na dança, no teatro, em um desfile
o valor, como o diz o passo 11 do TAO. A arte propaga de moda. Não é apenas a produção de um corpo, mas
signos que surpreendem até o próprio artista. Mas artis- a produção de uma relação entre corpos e espacialida-
tas então somos todos nós que, no simples ato de nos des, ou seja, tal produção é mútua e simultânea. O bai-
deparar com arte, (re)criamos a arte. Em alguns casos, larino, por exemplo, necessita de referências espaciais
reconhecemos a arte antes que alguém a denomine, como para executar o seu movimento, precisa ter o conheci-
na fotografia, em cenas do dia a dia, pequenos fragmen- mento do espaço que o cerca e a liberdade de explorá-
tos assignificantes que nos afetam. Uma coreografia, -lo de forma única. A beleza de um movimento depende
por exemplo, é um conjunto de signos plásticos que se da sensibilidade do bailarino, da capacidade de utilizar

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O corpo cultivo da arte

as características físicas de seu corpo (peso, força mus- plifica-se a liberdade do corpo, ao invés de aprisioná-lo.
cular, flexibilidade) como propulsão para os gestos que No regime artístico o corpo “aprende” a ser afetado, o que
compõem o mosaico sígnico que concerne à coreografia. constitui um regime de fuga, pois se desperta o corpo para
Para executar os movimentos com plasticidade, o baila- os afetos. Nesse caso, um “corpo ideal”, através de Tórt-
rino necessita desenvolver seu corpo de forma a aguçar sov, Stanislavski diz não existir pois, segundo ele
sua sensibilidade e criar um corpo-suporte para as exi- a estrutura humana ideal é coisa que não existe. Tem de
gências da dança. O que se busca não é o máximo do ser feita. Com este fim temos primeiro de estudar o corpo
desenvolvimento muscular, mas aumentar a potência do e compreender as proporções das suas diversas partes. Os
corpo de forma natural, fazer com que este corpo possa defeitos, uma vez achados, devem ser corrigidos (STANIS-
realizar os mais diversos movimentos e em diversas va- LAVSKI, 2015, p. 72).
riações rítmicas. Em seu processo de treinamento, como
Estes aspectos nos levam a pensar que o bailarino e
em qualquer atividade que envolva o corpo, o bailarino
o ator têm formas diferentes de lidar com os afetos em
tem sua estrutura corporal corrigida, moldada ao que é
seus trabalhos, mas ambos necessitam do cultivo de uma
funcional para a execução da dança. Do mesmo modo, o
dimensão potencial de afeto, que constitui o caráter artís-
ator também deve preparar o seu corpo de forma similar
tico de suas atividades. A técnica está a serviço do afeto,
ao do bailarino. Geralmente, os atores estão comprometi-
assim como o corpo está a serviço do gesto. O gesto é a
dos com certo realismo em seus trabalhos, o que os con-
materialidade corpórea do afeto, o que faz o corpo não ter
trapõe em relação aos bailarinos, que estão mais hábeis a
censura. A resposta corporal a certas variações é nítida e
movimentos mais embebidos de afeto. Mesmo com esta
não é necessário um corpo extremamente sensível para
ressalva, os atores, em momentos cruciais, são postos à
que isso se faça notar. O afeto e o gesto se confundem, o
prova, para que deixem de se firmar na técnica e tenham
gesto afeta e o afeto compõe o gesto, pois são a mesma
a intuição de agir sem pensar demasiadamente na sua
dimensão em registros distintos. Trata-se não de escolher
ação. No livro A construção da personagem, Stanislavski
uma das vias como legítima, mas considerá-las coorigi-
(2015) usa a história de um professor e diretor de teatro
nárias e coexistentes, compondo juntas o corpo intensivo.
chamado Tórtsov, e suas aulas em uma escola de teatro
O ator trabalha o gesto como produção de figuras do real,
em Moscou, para falar de sua técnica. Em certo episódio,
o bailarino trabalha o gesto como expressão motora de
o professor leva um acrobata circense à aula de ginástica
afeto, já a modelo experimenta o gesto como ficção plás-
dos alunos de seu curso e argumenta que, ao acrescentar a
tica, podendo variar de um caráter performático (MAC
“cambalhota” às atividades de aula, estará auxiliando-os
na criação dos personagens e “nos grandes momentos de QUEEN, 2011, online) ao modelo de “corpo-cabide”
máxima exaltação”. Disse-lhes: (SAINT LAURENT, 2016, online). O ator preza pela
limpeza de seus movimentos, deve exercer um controle
O motivo é que a acrobacia ajuda a desenvolver a qualida-
extraordinário sobre o corpo para manter-se em um nível
de da decisão. Para um acrobata seria desastroso demais
de afetabilidade menos passional, sem perder a capaci-
ficar devaneando logo antes de executar um salto mortal
dade de produzir efeitos. O bailarino se concentra mais
ou qualquer outra proeza de arriscar o pescoço! Nesses
no corpo e, por meio da sensibilidade, explora a própria
momentos não há margem para indecisão. Sem parar para
refletir, ele tem de estregar-se nas mãos do acaso e da sua
potência corpórea a serviço do afeto.
própria habilidade. Tem de saltar, haja o que houver (STA- Cada gesto prolonga-se para além de si próprio, numa con-
NISLAVSKI, 2015, p. 73). tinuidade tecida pelo movimento da dança. Eis o que parece
decisivo: O gesto dançado abre no espaço a dimensão do
O que o personagem de Stanislavski vê de proveitoso
infinito. Seja qual for o lugar onde se encontra o bailarino, o
na dança e na acrobacia para o trabalho do ator é a técni-
arabesco que descreve transporta o seu braço ao infinito. As
ca de “padronização do corpo”. Ele propõe que o ator se
paredes do palco não se constituem como obstáculo, tudo se
utilize das técnicas de “correção corporal” que os exer- passa no espaço do corpo do bailarino. Contrariamente ao
cícios físicos das duas modalidades trazem consigo. A ator de teatro cujos gestos e palavras reconstroem o espaço
partir disso, podemos pensar na produção de corpos des- e o mundo, o bailarino esburaca o espaço comum abrindo-o
tinados à execução de determinada função. Mas, se por até o infinito (GIL, 2001, p. 14).
um lado, essa produção pode ser encarada como forma
de docilização dos corpos, como ocorre no cotidiano so- A modelo tem seu corpo exigido, mas não em relação
cial, com “métodos que permitem o controle minucioso à potência de movimento. O seu gesto se caracteriza ou
das operações do corpo, que realizam a sujeição constante por uma personagem, em que os “excessos” gestuais são
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade– permitidos e talvez possam ser uma hipérbole do psiquis-
mo de um grupo, ou uma imagem quase estéril de gestos
utilidade” (FOUCAULT, 1997, p. 133), por outro lado,
paupérrimos de afeto. Assim como o ator e o bailarino,
pode ser vista como libertação no trajeto de destinação à
a modelo também executa processos de produção de um
arte. Podemos pensar em como esses exercícios produ-
corpo. No entanto, seu corpo é moldado não no sentido
zem novas possibilidades de corpo, dão vivacidade a um
da utilidade e capacidade motora, mas no alcance de um
determinado tipo de sensibilidade, que é sim específico,
padrão de proporções estéticas muito específicas. O corpo
mas não deixa de se constituir como linha de fuga. Para
de uma modelo pode ser desenvolvido no sentido motor,
o desenvolvimento de capacidades corporais que sejam
mas isto se dá como efeito coadjuvante ao objetivo princi-
úteis ao movimento artístico, potencializa-se o corpo, am-

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 152-157, 2017                                155


Elizabeth Medeiros Pacheco; Thadeu Pinto Lobo; Gabriel Barbosa Gomes; Karina Junqueira Mata

pal, que é um “corpo-vitrine”, que em geral se baseia em teatro, os atores têm um desafio ainda maior, pois a rela-
padrões eurocêntricos. É interessante observar que, assim ção que estabelecem é composta por seu próprio corpo,
como os atores, diversas vezes as modelos são advertidas colegas de trabalho, elementos de cena e toda a plateia,
para evitar excesso de gestos. Em contrapartida, em con- que naturalmente também afeta enquanto é afetada. Tor-
textos específicos, como certos desfiles e fotos, as mode- na-se notável que o corpo dos afetos sobressaia ao corpo
los devem explorar a própria capacidade expressiva, em da técnica ou do script, pequenos deslizes não abalam
alguns casos, se transformando, criando novas imagens e uma atuação visceral e ao mesmo tempo simples, ou seja,
corpos. A modelo é a epítome da imagem, o seu compro- intenso em sua microdimensão. Na passarela, a mode-
misso é emprestar o corpo a uma constituição de persona- lo tem a micro dimensão como um grande perigo, ou
gem imagética, e é necessário um nível de desprendimento como o seu diferencial. No campo das micropercepções
da própria imagem para se submeter às diversas e intensas também estão pequenos gestos que se tornam “marca re-
transformações exigidas por esta atividade, pois, a cada gistrada de uma modelo”. É possível também distinguir
trabalho, constrói uma quantidade maior de imagens de si afetos, às vezes, de uma profissional confiante, que acre-
mesma. Tal desenvolvimento pode se refletir na ampliação dita em si mesma e no que veste, ou de uma pessoa que se
do repertório de poses que pode executar. sente desconfortável ou não acredita no trabalho de quem
Dadas as semelhanças observadas entre o bailarino, o produziu a roupa. A modelo necessita de compromisso
ator e a modelo, aqui os chamamos de “artistas do corpo”. e desprendimento, não basta corresponder aos padrões,
Nessa perspectiva, para obter um maior dinamismo cor- ser bela e estar de corpo presente, é preciso estabelecer
poral, dinamismo de personagem, eles acabam tendo que uma relação de trabalho ética, prazerosa. Estar presente
neutralizar cada vez mais o corpo e, como nos diz Cun- não só na materialidade do corpo, mas na pulsação dos
ningham (apud GIL, 2001, p. 17) ao falar do bailarino: “o afetos. A atenção aqui direcionada à imagem da modelo,
bailarino deve fazer silêncio no seu corpo. Deve suspender se justifica pelo fato de que, assim como sua indumentá-
nele todo o movimento concreto, sensorial, carnal afim de ria, esta possui um maior nível de variações e múltiplas
criar o máximo de intensidade de um outro movimento, na facetas. Já a imagem do modelo, apesar de um processo
origem da mais vasta possibilidade de criação de formas”. de desconstrução, ainda se encontra presa a um conceito
Há necessidade de esconder ao máximo a pessoa do de masculinidade que limita os possíveis de sua profissão
artista para o corpo estar a serviço do gesto do perso- (VERSACE, 2016, online). É necessário que a amplia-
nagem. Porém, há algo da ‘identidade’ do artista, não ção de horizontes no vestuário se intensifique e resulte
uma identidade social, mas sim uma identidade corpórea na ampliação de possíveis para os modelos, um nível de
do campo do singular. Essa singularidade pode ser ex- experimentação e de produção criativa maior. Na dança,
pressa, de certa forma, pelo que Hubert Godard chama da mesma forma, cada variação intensiva importa, cada
de pré movimento, que seria “essa atitude em relação detalhe é pensado e cuidado, porque cada microalteração
ao peso, à gravidade, que existe antes mesmo de se ini- é uma coisa nova; pequenas diferenças nos movimentos
ciar o movimento, pelo simples fato de estarmos em pé” distinguem um passo do outro, e cada microdiferença
(GODARD, 2002, p. 13). Godard fala de como esse constitui o que chamamos anteriormente de identidade
pré-movimento nos permite identificar, quando alguém do artista. Isso acontece porque a dança opera totalmente
que conhecemos sobe uma escada, somente pelo barulho em composição estética. Não é a quantidade de movi-
impresso através do andar. É um “timbre de movimen- mentos complexos que um bailarino consegue realizar
to”, um timbre de corpo que os artistas têm em si e que que determinam o seu nível técnico, mas sim o grau de
vai ficando evidente também quando nos familiarizamos “perfeição” de cada movimento, desde os mais simples,
com o trabalho do artista. Os artistas do corpo demons- o grau de ajustamento ao que a técnica exige, não por
tram com clareza a fusão de corpo anatômico e corpo pura técnica, mas porque a técnica trata do detalhe, do
de arte. O movimento constitui uma produção cinética cuidado, da delicadeza com que cada passo deve ser
do corpo-arte, o corpo anatômico se lança em poder de executado. Porque, nesse caso, a técnica está a serviço
diversas forças variáveis, refutando uma estabilidade que do rigor da expressão. Trata-se de potencializar o corpo,
microscopicamente nunca existiu. Dessa forma, não há num regime de operação de movimento muito diferente
ausência de movimento, o corpo está sempre em estado do cotidiano. Trata-se de expandir os possíveis do corpo.
de agitação microscópica, mesmo quando aparentemen- Só assim, ele poderá ser canal para a expressão das mais
te “em repouso”. O que ocorre é uma variação intensiva variadas cenas, das cenas que chocam, emocionam, pro-
de movimento. “É antes uma questão de escala de per- vocam, aliviam, enfim, produzem mundos. É dessa forma
cepção: o repouso (ou primeiro movimento) oferece-se que se apresenta um real ficcionado, cheio de graça, de
numa macropercepção, ao passo que a micropercepção fabulações, que transforma o corpo em arte pura, arte que
não encontra, senão, movimento” (GIL, 2001, p. 16). faz o que Rancière chama de revolução estética: “a aboli-
ção de um conjunto ordenado de relações entre o visível
No teatro, o artista geralmente tem movimentos mais e o dizível, entre o saber e a ação, entre a passividade
sutis, o que torna as micropercepções de variação algo
e a atividade” (RANCIÈRE. 2009, p. 25). Tudo isso
crucial na busca de uma representação convincente. Um
com uma dose de exagero, como se fosse uma lente de
ator prova sua capacidade de representar nas cenas mais
intensas de afeto, nas quais deve permitir ser afetado e
assim afetar os seus espectadores. Especificamente no

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O corpo cultivo da arte

aumento, distorção sobre a ‘realidade’ que faz da arte o


meio mais claro que temos de enxergar a nós mesmos,
tanto como sujeito quanto como povo.
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Recebido em: 22 de dezembro de 2016
Aceito em: 30 de junho de 2017

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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 158-167, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2220
Dossiê Corporeidade

O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância


Ana Claudia Lima Monteiro,H Clara Sym Cardoso de Souza
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Resumo
Em nosso texto apresentaremos as oficinas de sensibilização realizadas no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Fede-
ral Fluminense (SPA-UFF), no segundo semestre de 2014 e primeiro semestre de 2015. Nosso trabalho visa construir um disposi-
tivo em que corpos e subjetividades são efetuados pelos afetos gerados e geridos no mesmo. A recalcitrância atravessa a produção
deste texto e das oficinas, pois, ao trazer à cena a construção das mesmas, nos vimos envolvidos tanto numa preocupação em
construir as oficinas a partir de nosso campo teórico-metodológico, quanto em um comprometimento de compor, com os partici-
pantes, estas oficinas. Nossa pergunta era: como gerar uma disponibilidade afetiva sem cair na docilidade? Optamos então por
apresentar a questão seguindo tais passos: teórico, metodológico, de elaboração das oficinas e de execução das mesmas. Nossa
aposta em considerar os afetos nos fez perceber a possibilidade de criar dispositivos em que haja disponibilidade sem docilidade,
pois consideramos também o que é trazido pelos participantes.
Palavras-chave: recalcitrância; corpo; subjetividade; dispositivo.

The device of body workshops and the question of recalcitrance


Abstract
In our text we will present the workshops about sensitiveness that performed in the Service of Applied Psychology of the Flumin-
ense Federal University (SPA-UFF), in the second semester of 2014 and first semester of 2015. Our work intents to build a device
in which body and subjectivity are effectuated by affection generated and managed in that device. The recalcitrance guides the
production of this text and its workshops, because by bringing to the scene their construction, we see ourselves concerned about
building the workshops based on our theoretical-methodological field, as well as making a commitment to composing these work-
shops with the participants. Our question is: how to generate a affective availability without becoming docile? Therefore, we chose
to present the question following these steps: theoretical, methodological, elaboration of the workshops and their execution. Our
bet in considering the affections made us realize the possibility of creating devices in which there is availability without docility,
because we also considered what is brought by the participants.
Keywords: recalcitrance; body; subjectivity; device.

Uma chegada possível: pegando o fio da meada fora dela, possamos elaborar uma nova maneira de se
Assim como a expressão “fio da meada” nos remete pensar a construção dos sujeitos levando em considera-
ao trabalho de encontrar o ponto inicial da fabricação de ção também a produção de um corpo que se afeta. Neste
um tecido, nosso trabalho de escrita também se apresenta sentido, traçamos nossa intervenção considerando que o
no desafio de construir um caminho coerente em meio a corpo é produzido de maneira múltipla (MOL, 2002) em
tantas experiências vivenciadas em nossa pesquisa. Op- que instâncias, ditas “não mentais”, também participam
tamos então em apresentá-la a partir de um problema que da construção deste sujeito.
nos saltou aos olhos: a diferença entre disponibilidade As oficinas de sensibilização nos proporcionam o
e docilidade. Para cumprir tal tarefa apresentaremos as acompanhamento dos participantes envolvidos numa
oficinas de sensibilização realizadas no SPA-UFF, no se- construção do corpo, que nos faz pensar nossa própria
gundo semestre de 2014 e primeiro semestre de 2015, inserção profissional sob uma perspectiva completamen-
que são o foco de nossa pesquisa de campo. A proposta te nova. Por outro lado, o campo escolhido nos permite
destas oficinas, abertas ao público, é trazer para estes es- a construção de dispositivos de experimentação corpo-
paços de construção de dispositivos a própria proposta ral que abarcam não apenas aqueles que possam procu-
de PesquisarCom (MORAES, 2010), na qual sujeitos, rar o Serviço de Psicologia Aplicada, mas o público em
corpos e afetos são construídos em conjunto. Nossa in- geral. Nosso trabalho, portanto, ajuda a produzir novas
tervenção propicia a articulação entre os pressupostos reflexões e novas maneiras de ser ao possibilitar aos par-
teóricos e metodológicos da psicologia e nossa inserção ticipantes a construção de si que abarque também a cons-
nas oficinas de sensibilização, capacitando-nos a cons- trução dos seus corpos.
truir uma relação entre corpo e subjetividade que nos Neste trabalho, apresentaremos alguns pressupostos
faça compreender a nossa “herança psicológica”. Vincia- teóricos que balizam nossa pesquisa e ajudam a locali-
ne Despret (1999) é quem nos ajuda a pensar a herança zar o campo teórico no qual estamos imersos, trazendo
como um problema e não como algo a ser recebido passi- os principais conceitos em jogo em nosso trabalho. Em
vamente. Por outro lado, intervimos no campo para que, seguida, será apresentada nossa proposta metodológica
junto com os participantes advindos da Universidade e e também os enfrentamentos a que tal metodologia nos
convocou na prática. Mais adiante, discutiremos os desa-
 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia, Campus do Gragoatá. fios encontrados no próprio manejo das oficinas, portanto,
H

Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco N, 4º andar, Sala 419 -
CEP 24.210-201, Niterói, Rio de Janeiro-RJ (Brasil). E-mail: anaclmonteiro@ neste momento, serão discutidas as questões relacionadas
gmail.com, clarasym@hotmail.com
O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância

aos pesquisadores, em como estes puderam também ex- dispositivo que convida os participantes a estar junto, e,
perimentar novas formas de relacionar corpos e subjetivi- ao mesmo tempo, lhes dá a possibilidade de desviar, de
dades no dispositivo das oficinas e como, desta maneira, usar o dispositivo de uma maneira interessante.
um corpo de pesquisador também pôde ser construído a O território que ocupamos: os conceitos que
partir não apenas das oficinas, mas também no dispositi- compõem nossa jornada
vo das supervisões de equipe. Vale lembrar que, na parte
sobre o tornar-se pesquisador serão apresentadas quatro Mesmo que a Psicologia, em suas reflexões sobre a
oficinas em que, duas ocorreram no segundo semestre de subjetividade, tenha privilegiado a constituição desta le-
2014 e duas no primeiro semestre de 2015. Na parte so- vando em conta as relações do sujeito com o mundo, de
bre a recalcitrância, falaremos apenas de uma oficina que alguma maneira, tal relação sempre se apresenta numa
ocorreu no primeiro semestre de 2015. contraposição, como se sujeito e mundo fossem onto-
logicamente distintos. Tal herança (cartesiana) também
Dando continuidade ao trabalho, falaremos sobre
constitui nossos corpos como algo que deve ser estudado
uma questão importante que surgiu no dispositivo das
apenas em seu funcionamento biológico, como se este se
oficinas, no momento em que elas ocorriam. Estamos
encontrasse na ordem da natureza, distinta da ordem do
falando de recalcitrância e da tensão que se apresentou
pensamento – ou mesmo dos afetos. Tais afetos, que já
em nosso campo de pesquisa entre docilidade e disponi-
nascem híbridos, por ocorrerem nas regiões fronteiriças
bilidade. Tal questão surge antes do estabelecimento do
entre corpo e subjetividade, são postos como problemáti-
campo de pesquisa e baliza este texto, pois, a recalcitrân-
cos, como algo “sofrido” pelo sujeito, como passividade
cia é um conceito fundamental para pensarmos o disposi-
(DESPRET, 1999). Porém, o que nos interessa em nos-
tivo das oficinas. Na construção do dispositivo tínhamos
sa pesquisa é justamente este caráter híbrido dos afetos,
como pressuposto o fato de que os participantes são parte
sua necessidade de ser produzido no corpo, mas que, ao
integrante não apenas por participarem das oficinas, mas
mesmo tempo não se reduz a um corpo biologicizado. Os
também por trazerem seus corpos, seus afetos e sua dis-
afetos encontram seu espaço de potência quando produ-
ponibilidade. A questão que nos fez pensar foi justamente
zem subjetividade, quando agem e fazem agir a partir dos
o desafio de coordenar e atuar no dispositivo buscando
encontros entre corpos, como efeitos de superfície (DE-
não transformar esta disponibilidade em docilidade.
LEUZE, 2000). Subjetividade, portanto, é algo que se
Segundo Latour (1997), é Isabelle Stengers quem fabrica também a partir das relações que estabelecemos
melhor desenvolveu este conceito de recalcitrância. Em com as coisas, objetos e animais, pois esta fabricação não
Cosmopolitiques VII, Stengers (1997) nos apresenta o se encontra restrita à nossa interioridade e nem se esgota
que ela denomina de “maldição da tolerância”, que para nela. Neste sentido, estamos misturados às coisas e as
nós, modernos, nos marca. Seríamos civilizados justa- coisas estão misturadas a nós (SERRES, 2001).
mente porque toleramos as outras culturas. Veja bem, não
Em nossa pesquisa, trata-se de pensar então um corpo
nos confundimos com elas – que ainda estão repletas de
afetado, efetuado por suas relações com o mundo (LA-
crenças, que ainda não desencantaram o mundo – somos
TOUR, 2007), ponto nevrálgico de negociações entre in-
modernos justamente porque carregamos o fardo do de-
terioridade e exterioridade. O corpo também é construído,
sencantamento. “Nós”, modernos, sabemos, conhecemos
ao mesmo tempo em que construímos nossa subjetivida-
e desvendamos um mundo de relações causais, livre de
de (MONTEIRO, 2009). E este corpo não possui mera-
preconceitos. Para Stengers (1997), este fardo não pas-
mente um lugar de “sede” dos processos mentais, mas se
sa de certo orgulho em carregar este desencanto, de ser
apresenta como o principal negociador daquilo que será
aquele que efetivamente conseguiu descobrir a natureza,
compreendido como pertencendo ao corpo (“eu” interno)
sem preconceitos. Sua “maldição da tolerância” impli-
e daquilo que será posto do lado de fora (“mundo” exter-
ca então em uma maneira de fazer nas ciências humanas
no) (LATOUR, 2007), o corpo é então ativo e age pelos
aquilo que já se faz nas ciências exatas: construir dispo-
encontros e afetos que lhe chegam e lhe constituem.
sitivos que sejam, ao mesmo tempo, interessantes – que
se façam interessar por aqueles a que ele interroga – e A importância de construir outra relação entre sub-
passíveis de serem questionados – e até mesmo rejeita- jetividade e corpo foi o que impulsionou primeiramente
dos pelos investigados. Como exemplo, podemos trazer o nossos estudos teóricos acerca do tema, uma vez que o
fato de que os objetos não necessariamente respondem ao corpo também deveria ser pensado como negociação e
dispositivo ao qual são convocados. Como nos diz Sten- como processo. Michel Serres foi um grande aliado na
gers, os laboratórios de ciências exatas explodem, os de constituição deste território de pensamento principal-
ciências humanas não. Daí a questão da recalcitrância e o mente porque, ao contrário da tradição moderna, também
desafio de construir dispositivos que possam cumprir às não distingue, nem mesmo em sua escrita, os campos tão
exigências postas acima: de ser interessante e ao mesmo bem separados na modernidade, que são: as ciências, a
tempo, passíveis de ser questionados. Este é o problema filosofia, a religião e a arte. Em seus textos, mistura, num
central que permeará nosso texto e guiará nossa escrita. mesmo parágrafo, por exemplo, o Banquete de Platão e
a Santa Ceia cristã (SERRES, 2001). Deste modo, Serres
Por último, avaliamos nosso percurso e buscamos
também nos traz uma visão do corpo que não passa pela
pensar os caminhos e possibilidades de se construir cor-
separação deste de uma “imaterialidade” representada
pos e subjetividades tendo como ponto central a constru-
pelo Cogito cartesiano. Ao contrário, para Serres, a ativi-
ção dos afetos. Além disso, mantemos nossa aposta num

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Ana Claudia Lima Monteiro; Clara Sym Cardoso de Souza

dade do corpo está intimamente relacionada a uma ativi- quando nos deparamos com outras culturas – podemos
dade do pensamento, à consciência, ou ao que podemos construir outras relações subjetivas. Como exemplo, é
denominar de subjetividade (SERRES, 2004). Aliás, para possível pensar o luto não apenas como uma questão a
ele, nomear as coisas é construí-las, assim, no momento ser resolvida internamente, mas como uma maneira de
em que nomeamos nossa interioridade de subjetividade, re-suscitar os mortos como possibilidade de construção
também estamos construindo este personagem concei- de relações não interiorizadas. Em outras palavras, po-
tual (SERRES, 1997). Mais interessante ainda é que a demos “dar lugar aos mortos” nas relações ao invés de
proposta de Serres (2004) nos mostra que, quanto mais enterrá-los em nossa subjetividade (DESPRET, 2011d).
adquirimos habilidades corporais, quanto mais encontros Em seus textos a autora nos apresenta uma prática em
realizados com o mundo, mais nos tornamos aptos a pen- psicologia que não abre mão de considerar um número
sar. Portanto, o pensamento não se encontra em contrapo- maior possível de atores. Estes estudos têm como ponto
sição ao corpo, nem mesmo à produção de subjetividade, de partida não apenas a fabricação da subjetividade, mas
o que ocorre é uma mútua construção do corpo e do mun- também a importância de compreendê-la como algo que
do, ao mesmo tempo em que nomeamos o que acontece é compartilhado numa determinada cultura e num de-
“dentro de nós”, como parte do sujeito e o que acontece terminado tempo. É exatamente por isso que cabe a nós
“fora de nós” como parte do mundo. Neste jogo, o corpo multiplicar as versões possíveis deste mundo ao invés de
encontra-se como peça fundamental a partir da qual as apenas acatar uma única versão. Sua proposta ontológica
negociações ocorrem. Tendo como ponto de partida as nos indica que quanto mais somos capazes de agregar
reflexões deste autor, podemos afirmar que o que ocorre atores, de distribuir as relações, mais somos capazes de
inicialmente são misturas, conexões, deslocamentos que, articular possíveis subjetividades.
ao adquirirem estabilidade, produzem as diferenciações A partir desses estudos, o passo seguinte é construir
que conhecemos como campos distintos. um campo de pesquisa que tenha essa proposta teórica
Por outro lado, mesmo que as questões trazidas por como balizador. Em 2014, buscamos a construção de um
Michel Serres abram um caminho para se repensar as re- campo de pesquisa que nos possibilitasse atuar através
lações entre subjetividade e corpo, estas não são suficien- de oficinas de sensibilização, a construção deste corpo
tes para produzir um estranhamento que nos coloque em que se afeta. Esta proposta buscou respeitar duas ques-
posição de atuar a partir destas questões. Para isso, as pes- tões importantes que norteiam nosso trabalho: primeiro,
quisas realizadas por Vinciane Despret nos mostram que com a implementação das oficinas, fomos capazes de
é necessário um posicionamento que ofereça a possibili- PesquisarCom, uma vez que todas as ações que foram
dade de transformação no mundo ao qual estamos habitu- feitas nestas oficinas foram negociadas com os partici-
ados a viver. Em outras palavras, a pesquisa torna-se uma pantes, estes tiveram total capacidade de agir e intervir
maneira de intervir no mundo a partir de uma prática que em nossas práticas. Em segundo lugar, nossa proposta vi-
não reproduza as formas habituais de compreensão tanto sou deslocar o olhar que comumente se tem do psicólogo
da subjetividade quanto do corpo. Despret utiliza-se de al- como aquele que “conserta as pessoas” para a construção
gumas ferramentas que, ora são puramente epistemológi- de uma prática que buscou potencializar as relações e a
cas, tais como os estudos acerca da produção dos sujeitos vida dos sujeitos. Assim, ao invés de buscar a normatiza-
nos laboratórios de psicologia experimental e a reflexão ção, pensamos numa forma de atuação que apostasse nas
sobre os estudos realizados por aqueles que ela denomina potências do próprio sujeito.
de etnopsicólogos (DESPRET, 1999); ora buscam inter- Portanto, pudemos pensar a construção de um corpo
vir no próprio funcionamento das coisas, que podemos que se afeta e é afetado pelo mundo. Podemos construir
denominar de abordagens práticas, como a entrevista um corpo que se afeta como movimentos corporais, com
aos criadores de gado bovino e suíno (DESPRET, 2007). objetos, com montagens de cenas, com o toque, com pa-
Desta forma, a autora nos mostra que tanto numa refle- lavras. Para isso, precisamos o tempo todo negociar com
xão epistemológica quanto na prática, nas intervenções, o os participantes, entrar em contato com suas formas de
que ocorre são sempre modos de fazer proliferar versões existir e de agir, construir uma narrativa conjunta com
do mundo (DESPRET, 1999). Ela nos coloca a questão estas pessoas. Trabalhar os afetos, os corpos, as subje-
de que a nossa produção é sempre um posicionamento, tividades, enfim, a construção do sujeito, deve ser uma
é sempre falar de um determinado lugar. Isso implica em aposta que traga em seu bojo a participação ativa daque-
pensar que, mesmo quando estamos falando em relação à les que se engajam conosco em nossas oficinas e que se
subjetividade, não devemos nos privar desta localização disponibilizam a construir novos mundos conosco.
(HARAWAY, 1995), ou seja, ao compreendermos a subje-
Dito por outras palavras, apostamos que ter um corpo
tividade como algo que faz parte de um sujeito, estamos,
não significa estar limitado às fronteiras corporais, mas
ao mesmo tempo, fazendo com que esta versão da subje-
que o corpo se apresenta como esta região fronteiriça, na
tividade ganhe legitimidade e seja reforçada.
qual somos capazes de negociar nossas relações com o
Segundo Despret (1999), ao mesmo tempo em que nos mundo e, ao mesmo tempo, construir nossa interioridade,
compreendemos como um produto desta subjetividade que pode ser tão maior quanto mais efetivamos sua exis-
interiorizada, nós a fazemos proliferar a partir de nossas tência. Assim, a proposta de nossas oficinas também con-
práticas. Na medida em que somos capazes de compre- siste em repensar essa construção de subjetividade tendo
ender que estas formas não estão dadas – como acontece como ponto de partida a construção de um corpo que não

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O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância

se apresenta como base ou sustentáculo material para a que oferecem ao nosso trabalho “o que eles já são”. Por
emergência de um sujeito que se diferencia do mundo, isso, o cuidado com o dispositivo deve ser fundamental,
mas, ao contrário, de pensar como somos capazes de nos pois construímos sujeitos, não descobrimos.
diferenciar na medida em que construímos, a cada instan- Em terceiro lugar, a construção de narrativas conjun-
te, uma relação entre corpo e subjetividade que necessita tas requer uma participação ativa daqueles que frequen-
ser reafirmada, testada, construída. tam as oficinas. Neste sentido, os materiais e técnicas
O caminho percorrido: a construção de uma oficina utilizados serão também discutidos com os participan-
de sensibilização corporal tes, para que possamos pensar juntos o que efetivamente
produz efeito e como este efeito é produzido (MORAES,
Em primeiro lugar, é necessário afirmar que a pesqui-
2010). Tanto a escrita quanto as vivências realizadas nas
sa não é apenas o prolongamento de nossas teorias, mas
oficinas vão requerer de nós um trabalho conjunto.
também é a capacidade de reinventar e retraduzir nos-
sas práticas (DESPRET, 1999). Fazer pesquisa é intervir Os alunos pesquisadores foram responsáveis tanto
no campo ao qual propomos nossa inserção (MORAES, pela execução das oficinas, quanto pela elaboração dos
2010). Neste primeiro pressuposto, apontamos para o po- diários de campo, nos quais foram relatadas as experiên-
sicionamento do pesquisador: este não é neutro, ao con- cias vivenciadas por eles. Cada oficina foi realizada no
trário, sua inserção no campo já é, por si mesma, uma período de aproximadamente quatro meses. Foram rea-
questão a ser discutida com os pesquisados (DESPRET, lizados encontros semanais com duas horas de duração
2011b). O caminho para tal inserção segue algumas re- que contaram com 15 participantes em média, incluindo
gras que serão esclarecidas a seguir: os coordenadores. Nenhum aluno foi a campo sozinho,
pois os relatos não foram elaborados como um instru-
Em primeiro lugar, convocamos o trabalho de Latour
mento objetivo, mas levaram em consideração também
(1994) que nos aponta a primeira regra metodológica a
as impressões e afecções daquele que escreve. Assim,
seguir: devemos levar em conta todos os atores que se
o compartilhamento destes relatórios com outros pes-
apresentam para nós, atentos a tudo aquilo que produz
quisadores, foi essencial para a troca de experiências e
“agência” (LATOUR, 2007). Qualquer coisa que possa
impressões. Esta proposta se justifica na medida em que
ser conectada e que produza efeitos diferenciados daque-
compreendemos que a linguagem descritiva possui limi-
les que são produzidos sem estes agentes, são passíveis
tações no que tange à questão das impressões vividas nas
de investigação e devem ser considerados na produção
relações que se estabelecem no campo. Buscamos, por-
do campo de pesquisa. Não há privilégio de forma, de
tanto, uma narratividade que se encontra compartilhada
material ou de lugar ocupado pelos mesmos a priori, o
pelos membros da pesquisa, que é discutida entre tais
que não significa que não existam diferenças entre os ato-
membros para que possamos agregar mais elementos do
res. É justamente pelas diferenças que é possível cons-
que quando estamos apenas descrevendo, isoladamente,
truir o espaço de pesquisa que leva em conta as múltiplas
uma cena que presenciamos, que é sempre feita de um
possibilidades de encontro e afecção.
ponto de vista. A discussão sobre os diários de campo
Em segundo lugar, nossa proposta implica numa to- contrapõem experiências e impressões diferenciadas, o
mada do campo como algo que possui uma dinâmica pró- que enriquece nosso contato com o campo. E esta pro-
pria. Isto significa que os atores envolvidos se encontram posta tem funcionado adequadamente em nossa inserção.
em processo e articulam-se de maneira singular. Pesquisar
Nossa metodologia se estabelece, deste modo, numa
significa atuar junto e possibilitar novas relações e vín-
proposta que visa fugir do realismo euro-americano (MO-
culos (MORAES, 2010). Neste sentido, trabalhamos com
RAES, 2010), uma vez que não considera o mundo como
o conceito de dispositivo tal como este se apresenta no
uma realidade já dada, definida e precisa, que espera ser
trabalho de Despret (2011c): aquilo que estabelece as re-
descoberta e que haveria uma única maneira de se alcan-
lações entre pesquisador e pesquisado no campo da pes-
çar tal realidade. Apostamos então numa realidade que
quisa e, portanto, faz surgir hierarquias, jogos de poder,
se constrói a cada momento em que nos inserimos nela e
mal-entendidos e forças que são próprios daquele espaço
dela participamos ativamente. Dito isto, estamos sempre
específico. Neste sentido, nosso trabalho também implica
implicados nesta construção de mundo e somos também
em levar em consideração tais movimentos e dinâmica e
responsáveis por aquilo que fazemos emergir, fazendo
não simplesmente negar-lhes a existência. Em nosso caso,
com que nossa postura diante do campo ganhe dimensão
o processo que é desencadeado pelas oficinas de sensibili-
ético-política, uma vez que o que colocamos em nossa
zação deve ser pensado como algo que produz efeitos que
pesquisa e o que deixamos de fora é sempre uma questão
estão para além de uma compreensão puramente corporal,
de negociação e não da emergência da verdade.
ou puramente subjetiva e que, nesta maneira, faz emergir
afetos até então ausentes em outros dispositivos diferen- A criação de uma sensibilidade: a construção do
tes deste da pesquisa. Daí a importância de construirmos corpo pesquisador:
com os participantes a narrativa da pesquisa, de sermos Nesta parte de nosso texto, como dissemos anterior-
sensíveis ao que se apresenta no campo e a manejar nosso mente, iremos focar na questão da supervisão das oficinas.
trabalho compreendendo que estamos lidando com afetos Tal questão não pode ser vista de maneira simplista, uma
e corpos em produção e não apenas com sujeitos prontos vez que, em nossa aposta metodológica, buscamos sensi-
bilizar corpos e subjetividades. A questão que se apresen-

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Ana Claudia Lima Monteiro; Clara Sym Cardoso de Souza

ta então é esta: como construir um corpo sensível imerso tes para os próprios pesquisadores e que, a maneira como
nas oficinas? Afetar e ser afetado é parte fundamental distribuímos os sujeitos neste dispositivo, afeta comple-
de nossa pesquisa (MONTEIRO, 2009), nos conduz em tamente a maneira como os afetos ocorrem.
nossos estudos. Construir uma oficina de sensibilização Percebemos o quanto era presente este lugar de po-
é nossa aposta para ver emergir corpos e subjetividades der ocupado pelos coordenadores fixos, mesmo que isso
mais atentos à sua própria produção. Deste modo, nós, nunca tivesse sido dito, discutido ou imposto. Este lugar
enquanto pesquisadores, também participamos da cons- gerou assimetrias entre os coordenadores, algo que ocor-
trução dos afetos, também somos afetados, também cons- reu sem que esperássemos. Mesmo que não tenha sido
truímos nossos corpos e subjetividades. Como manejar posta toda a responsabilidade das oficinas nestes coor-
as oficinas se somos partes integrantes destas relações? denadores, na prática, foi isso o que aconteceu. Ao longo
Como construir uma maneira de agir e ser afetado mesmo do desenvolvimento de nosso trabalho, os coordenadores
tendo uma posição diferenciada neste dispositivo? Nos fixos relataram acerca do incômodo que este lugar gera-
dois semestres descritos aqui pudemos trabalhar a ques- va neles. Sem que percebêssemos, este lugar produziu
tão do manejo em pesquisa de maneiras diferentes. Nas muitas questões na nossa forma de atuar. Dentre elas,
primeiras oficinas, que aconteceram às segundas-feiras, podemos destacar a própria figura do pesquisador, pois,
de 10:00 às 12:00, às quartas-feiras de 16:00 às 18:00 e, ele supostamente deteria o poder de comandar devido ao
posteriormente foi aberta mais uma às quintas-feiras de saber que lhe é imputado. Esta afirmação é tão marcante
10:00 às 12:00, durante os meses de setembro a dezembro que, mesmo tentando desconstruí-la, ela ainda permanece
de 2014, organizamos a oficina de maneira que houves- por outros meios. Percebemos que tanto os participantes
se um coordenador que participava de todas as oficinas quanto os coordenadores, de alguma maneira, esperavam
daquele dia. A este chamávamos de coordenadores fixos. do coordenador fixo um lugar diferenciado, daquele que
Cada oficina tinha então um coordenador fixo para cada controlava o dispositivo. Isso nos fez pensar o quanto
dia: um para segunda, um para quarta e um para quin- este arranjo produziu afetos diversos que não estavam
ta. Estes contavam com dois outros participantes que se previstos, mas que estiveram bem presentes. Percebemos
revezavam. Assim, cada oficina tinha, em média, cinco de maneira bastante clara o quanto nossa proposta me-
coordenadores, o coordenador fixo participava de todas todológica nos exige um cuidado ao lidar com os afetos
as oficinas e os outros coordenadores ser revezam, de dois e os arranjos que se apresentam no dispositivo. A nós é
em dois. Nesta dinâmica, cada coordenador não fixo só impossível negligenciar a emergência dos mais diversos
participava de duas oficinas seguidas e voltaria a parti- afetos e a necessidade de estarmos sensíveis aos movi-
cipar depois que terminasse o rodízio. Por exemplo, os mentos apresentados pelo grupo. Por isso, resolvemos
coordenadores “x” e “y” começariam junto com o coor- acabar com esta figura do coordenador fixo e diluir tal
denador fixo; na segunda oficina, o coordenador “x” não responsabilidade por mais coordenadores.
participaria, o coordenador “y”, que participou da primei-
Tendo isso em vista, mudamos a configuração das ofi-
ra oficina participaria, junto como o coordenador “z”; na
cinas no semestre seguinte: todos seriam coordenadores
terceira oficina, o coordenador “z” participaria junto com
fixos, distribuindo não apenas a responsabilidade de co-
um coordenador “a”; na quarta oficina o coordenador “a”
ordenar, mas distribuindo também os afetos, favorecen-
participaria com “x”, e assim, sucessivamente.
do tanto o vínculo com os pesquisados e o dispositivo,
Esta organização gerou alguns efeitos inesperados, quanto possibilitando a partilha dos afetos e o manejo
dentre eles podemos citar certo relaxamento entre os do dispositivo com todos os coordenadores. As segundas
coordenadores móveis em relação à elaboração das ofi- oficinas, denominadas no decorrer do texto como oficinas
cinas, e, ao mesmo tempo, uma desafetação que foi en- do segundo semestre, aconteceram às segundas-feiras, de
tendida por nós como um efeito da descontinuidade que 16:00 às 18:00, e às quartas-feiras, de 10:00 às 12:00,
dificultou a formação de vínculo com os participantes. Os de abril a julho de 2015. No segundo semestre, quando
afetos então estavam sendo gerados também pelas ausên- nos deparamos novamente com a questão do manejo, nos
cias dos coordenadores. Por outro lado, os coordenadores demos conta de que as novas oficinas nos demandavam
fixos estavam se sentindo sobrecarregados, até mesmo outras relações e um cuidado constante com o que está-
afetivamente, por ter que se responsabilizar pelo disposi- vamos propondo. Este cuidado se sustenta no fato de que,
tivo. Esta responsabilização não aparecia como forma de mesmo que as atividades sejam as mesmas – o que rara-
cobrança, mas como aquilo que podemos compreender mente aconteceu – o que elas produzem é inédito, pois
como sendo a necessidade de responder ao dispositivo. leva em consideração o arranjo sempre móvel de cada
Tais coordenadores já estavam na pesquisa acerca de um encontro. Consequentemente a nossa coordenação não é
ano, tinham mais leituras sobre o tema, estavam em perí- dada e depende de nossa atenção às múltiplas articulações
odos mais avançados na Universidade também, mas isso possíveis no campo. Dentre tais articulações temos ainda
não se refletiu em leveza ou em algum tipo de segurança o fato de que as oficinas também se influenciam mutua-
em relação à construção do dispositivo. Com isso perce- mente. Assim, a concomitância de duas oficinas faz com
bemos que a construção de corpos e subjetividades, no que, inevitavelmente, elas sejam postas em relação. Não
dispositivo das oficinas também geram efeitos importan- se trata de uma simples comparação, mas de uma forma
de articulação que leva em conta os “corposafetos” dos
coordenadores entre si, nas supervisões. O fato de parti-

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O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância

cipar de uma oficina e não de outra constrói arranjos di- que estávamos construindo. As diferenças que surgiam
ferenciados entre os coordenadores, o que torna possível eram discutidas para que esta diversidade fosse levada
um posicionamento diverso e uma rica discussão sobre em conta, ao mesmo tempo em que percebíamos a cons-
os lugares ocupados e os arranjos efetuados nas oficinas. trução também de um espaço comum, propiciado pelas
Destacamos também o fato de que, nestas segundas ofici- discussões. Os diários de campo propiciaram a nós um
nas, os coordenadores, em sua maioria, estavam tendo o momento de cuidarmos uns dos outros, de estarmos aten-
contato com estas pela segunda vez, o que também gerou tos ao que era sentido por cada coordenador e de propi-
mais segurança nos mesmos. Pudemos perceber como o ciar um espaço em que cada um pudesse ser ouvido e que
corpo do coordenador foi sendo construído no decorrer também pudesse partilhar suas impressões e sentimentos.
do trabalho, não que houvesse uma repetição das ofici- Por isso os momentos da escrita do diário de campo e
nas, mas os coordenadores também foram adquirindo um da supervisão foram de fundamental importância para a
novo corpo, mais sensível aos encontros e à maneira de reflexão e compreensão da pesquisa e para que os pesqui-
construir dispositivos em que o cuidado com os afetos sadores também construíssem este corpo de pesquisador
que emergem no dispositivo está presente. em conjunto com toda a equipe.
Construir um corpo de coordenador não é algo banal, Corpos afetados pela pesquisa: o dispositivo das oficinas
uma vez que, como dissemos, também estamos presentes
Esta parte do texto não está totalmente desvinculada
com nossos corpos e subjetividades no dispositivo das
da anterior, uma vez que a questão da coordenação se
oficinas. É relevante destacar o fato de que, mesmo es-
relaciona com o problema a seguir. O que move nossa
tando no lugar de coordenador, o que implica uma pre-
escrita neste ponto é a tensão constante entre docilidade
paração anterior, longas discussões sobre as ferramentas
e disponibilidade. Portanto, o ponto a ser pensado aqui
utilizadas nas oficinas e todo o trabalho de escrever os
é: até que ponto nossos participantes foram disponíveis
diários de campo (que será melhor apresentado a seguir),
ao trabalho proposto? Tal disponibilidade sempre esbarra
estes não escapam aos afetos surgidos nas oficinas. O
no que denominamos de recalcitrância, ou seja, na capa-
manejo das mesmas exige dos coordenadores uma sen-
cidade de resistir ao que é proposto (DESPRET, 2004b;
sibilidade muito grande em relação aos participantes e
LATOUR, 1997). Este impasse se apresenta na medida
seus afetos, mas também ao que o próprio lugar que o
em que, ao estudar os dispositivos experimentais, perce-
coordenador ocupa neste dispositivo.
bemos que estes são construídos para incentivar a docili-
Neste sentido destacamos a necessidade de coordenar dade dos sujeitos (DESPRET, 2004b). Neste sentido, tal
em conjunto. Isto possibilita uma relação de diálogo, de docilidade compromete o próprio experimento, uma vez,
sensibilidade e de confiança, o que significa que, mesmo que se sustenta na autoridade do pesquisador. Os desejos,
que por vezes a sensibilidade possa vir a paralisar com expectativas, afetos dos sujeitos – mesmo que presentes
a coordenação distribuída, outros coordenadores podem – são desconsiderados por se apresentarem como algo
protagonizar o manejo. Assim como eles, éramos também que interfere na pesquisa. Desta forma, os sujeitos são
sensibilizados, nossos corpos e subjetividades compu- tomados como ingênuos, construindo uma maneira dó-
nham aquele dispositivo e novos afetos estavam presentes cil de se apresentar no dispositivo experimental. Porém,
o tempo todo. Portanto, a questão era menos exercer uma acreditamos que apresentar-se indiferente ao dispositivo
neutralidade (que também se apresenta como uma forma não faz dele algo “mais científico”, transforma o experi-
de afetação e não a ausência dela) e mais partilhar e ma- mento num lugar de produção de sujeitos desafetados. O
nejar, com todos os atores presentes nas oficinas, os afetos que não nos interessa, pois buscamos produzir interesse
que emergiam ali. Esse maior entrosamento advindo do no dispositivo e não indiferença ou passividade.
coordenar em conjunto também torna possível uma maior
No caso de nossa pesquisa, não nos interessamos em
atenção com o tempo de execução das atividades e das
produzir sujeitos desafetados, até porque afirmamos a
discussões posteriores. Os coordenadores se tornam mais
produção conjunta de corpos e subjetividades e não po-
sensíveis, não apenas ao tempo do grupo e a percepção do
demos (nem queremos) desconsiderar os afetos. Este é
tempo deles próprios e entre si, como também a como o
nosso ponto de partida. Perguntávamos sempre: quere-
grupo recebe e reage a cada atividade, construindo cons-
mos produzir sujeitos que afetam e são afetados pelo dis-
tantemente este lugar sempre fluido da coordenação.
positivo, então, como evitar a docilidade e a passividade
Todas estas questões foram possíveis de serem tra- que o dispositivo carrega? A questão torna-se mais sutil,
balhadas nas supervisões porque, além das conversas pois, sabemos que o nosso trabalho não se assemelha aos
semanais em equipe, também eram elaborados diários dispositivos experimentais: não estamos de jaleco bran-
de campo, pois a escrita posterior do que tinha aconte- co, não produzimos nosso conhecimento num laborató-
cido nas oficinas se apresentou como um instrumento rio, partilhamos nossas propostas com os participantes,
importante para o trabalho (FAVRET-SAADA, 2005). convidamos os mesmos a interferir nas oficinas. Mas,
As supervisões sempre eram pautadas na escrita destes isso é suficiente? Ainda estamos na Universidade, ainda
diários e na troca de impressões e experiências entre os ocupamos o lugar de saber, ainda estamos fazendo uma
coordenadores do mesmo grupo e de grupos diferentes. pesquisa. Como lidar com esta assimetria que atravessa
As discussões eram muito ricas e geravam momentos em as pesquisas de campo em nosso trabalho?
que, na própria supervisão, nos sentíamos também inse-
ridos num dispositivo, afetando e sendo afetados pelo

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Ana Claudia Lima Monteiro; Clara Sym Cardoso de Souza

Como dito acima, a produção de um corpo de pes- balhamos as emoções como este modo de construir os
quisador também requer o manejo dos afetos que sur- espaços de afetação. Desta forma, todos os atores envol-
gem nas oficinas. Os pesquisadores precisam lidar não vidos na construção das oficinas são ativos, produzem
apenas com o planejamento e a execução das atividades, efeito, o que nos ajuda a colocar o problema da disponi-
mas também com os afetos que emergem a partir dos bilidade em outros termos.
encontros produzidos naquele espaço, Muitas vezes nos Os efeitos produzidos nas oficinas então são formas
perguntamos sobre os efeitos que esperávamos de nosso de se produzir um determinado mundo e não outro, o que
planejamento e das surpresas que o campo nos trouxe. significa dizer que não há uma única maneira de experi-
Portanto, não se trata de impor nossas propostas, mas de mentar os afetos gerados ali. Apostamos numa construção
criar um corpo sensível para as interações que se dão no coletiva de corpos e subjetividades que são cambiantes e,
campo. Sabemos o quanto é difícil escrever tais palavras ao mesmo tempo, carregam a potência de gerar novos
sem dar a impressão de que “qualquer coisa serve”, ou posicionamentos de modo muito mais ativo. Os sujeitos
que “deixamos fluir” para não pressionar os sujeitos a se em nossos dispositivos são convidados a exercer suas po-
submeterem ao dispositivo. Mas, não é disso que se trata, tências afetivas não apenas naquele lugar, mas também
o que está em jogo é uma proposta sensível de interação exercitar potências afetivas que transbordem em outros
em que os sentidos vão se produzindo na medida em que espaços de vida. Isso significa que há uma aposta de que,
nos disponibilizamos ao trabalho. aquilo que construímos no dispositivo, é uma dentre mui-
Sabemos que, para sermos afetados deve haver uma tas possibilidades de agenciar a realidade. Tendo tal pro-
disponibilidade para estar nas oficinas, para construir um posta em vista, nos permitimos atuar considerando que,
corpo mais sensível. Os participantes são o tempo todo mesmo que haja alguma espécie de docilidade advinda
convidados a atuar conosco na experimentação conjun- dos participantes, esta será diluída entre os diversos ele-
ta de afetos. Apostamos numa construção afetiva que é mentos que compõem a experiência de estar ali, naquele
também ativa, em que os sujeitos participam da cons- espaço, com aqueles atores.
trução de seus próprios afetos e, consequentemente, de Esta proposta se apresentou em nossas oficinas em
seus corpos e subjetividades. Em nossas oficinas busca- diversos momentos. Gostaríamos de trazer aqui apenas
mos exercitar a sensibilidade do corpo agenciando ato- um deles. Éramos, o tempo todo, convocados a experi-
res heterogêneos e esperamos que nossos participantes mentar, junto com os participantes, os limites de nossos
estejam disponíveis a tal sensibilização e aos encontros próprios corpos, como dissemos anteriormente. E em
propostos. Ao mesmo tempo, esperamos que esta dispo- alguns momentos nos sentimos incomodados com a ex-
nibilidade não se reverta numa espécie de docilidade em trema disponibilidade de um grupo das oficinas que era
que a autoridade dos pesquisadores fale mais alto do que composto por estudantes de psicologia (estes também po-
a possibilidade de dizer não, de resistir, de recalcitrar. A diam participar, o que gerou muitas discussões em nossas
atividade dos sujeitos é uma das apostas mais importan- supervisões que serão desenvolvidas em outro trabalho).
tes de nosso trabalho, uma vez que não consideramos os Parecia-nos que o interesse pelas mesmas era puramente
afetos como algo passivo e a-político (DESPRET, 1999), “acadêmico”, como o aprendizado de determinada práti-
nossos afetos também produzem mundo, nos fazem inte- ca. Este afeto nos causou muita surpresa e uma espécie de
ragir e nos dão um lugar no mundo em que vivemos. Por incômodo em relação à presença destes participantes. As
exemplo, a distinção entre homens e mulheres também oficinas ganharam cores de aprendizado e puseram-nos,
passa por aquela entre razão e emoção. Em nossa cultura mais fortemente o impasse entre docilidade e disponibi-
aprendemos, desde muito cedo, que mulheres são mais lidade. O que chegava até nós era que ali as relações de
“emocionais” e homens são mais “racionais”. A cons- poder se davam na possibilidade de ser “ensinada” uma
trução de nossa cultura está enraizada nesta distinção técnica corporal para o trabalho em Psicologia, o que não
(DESPRET, 2011a) o que nos faz pensar que as emoções era a nossa proposta.
ocupam também um papel político nas relações que esta-
Curiosamente, quando pedimos para este grupo apre-
belecemos com o mundo e com os outros.
sentar suas expectativas, logo no início do trabalho, apa-
Em nossas oficinas buscamos problematizar este lu- receu de uma das participantes esta mesma questão, posta
gar das emoções, compreendemos que mesmo a razão é exatamente com estas palavras: a diferença entre ser dó-
também um dos afetos que permeiam o mundo e que o cil e de estar disponível. Havia uma preocupação muito
produz (DESPRET, 1999). Ser mais racional não nos faz grande em relação ao perigo de coagir os participantes
“mais centrados”, nos faz exercitar um afeto e uma ma- a fazer aquilo que estava sendo proposto, sem gerar um
neira de se relacionar com o mundo, em detrimento de espaço para a recalcitrância. Sentimos que esta preocu-
outras. A razão não é, como afirmava Descartes (1994), pação – que sempre se apresentava nas supervisões como
a atividade própria do homem, que o faz ascender de uma preocupação da coordenação – foi deslocada dos
seu corpo. A razão também está no corpo e o faz agir. coordenadores para uma das participantes logo no início
Do mesmo modo, as emoções não são uma passividade desta oficina e que permeou a construção dos afetos de
exercida do corpo ao pensamento, mas sim um leque de todos que ali estavam presentes.
possibilidades de relacionar-se. Razão e emoção não são
Esta oficina foi marcada por um incômodo que se ex-
opostas, são maneiras de se construir um corpo afetado,
pressou nas seguintes frases que apareceram na super-
seja de um modo, seja de outro. Em nossas oficinas, tra-
visão: “O que estou fazendo aqui?” e “O que está sendo

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O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância

para as pessoas?”. A partir de tais questionamentos, pu- trução conjunta, pois o “sim” pode configurar-se como
demos elaborar uma oficina em que apostamos na fabri- uma ausência enquanto o “não” nos remete a um corpo
cação de uma caixa que encarnasse este incômodo. Esta que está presente, por não estar docilizado. Estes afetos
oficina consistiu em retomar as expectativas do início, geraram um efeito bastante interessante. Elaboramos en-
para colocar na caixa do incômodo o que fosse o avesso tão uma oficina muito arriscada na qual desafiamos os
destas expectativas, ou seja, o indesejado. Esta proposta participantes a recalcitrarem. Esta oficina se configurou
teve como objetivo dar corpo ao incômodo em algum lu- como uma “não proposta” dos coordenadores na expec-
gar que não fosse pessoalizado nem nos participantes e tativa de que os participantes se tornassem rebeldes, que
nem nos coordenadores. Um dos participantes nos disse dissessem o tão esperado “não”. Os coordenadores es-
que não havia incômodo algum, porém pegou uma folha peraram durante quarenta minutos que os participantes
de papel e escreveu inúmeras palavras relacionando-as reagissem de alguma maneira ao silêncio quase ensur-
com setas, depois ele mesmo percebeu a contradição en- decedor que se instaurou, e ao “não fazer nada”. Um dos
tre o não incômodo e aquela escrita catártica. Mais uma participantes, percebendo isso, reagiu sem ação, de forma
vez pensamos na tensão entre a docilidade – que se apre- a provocar os coordenadores a ficarem incomodados com
sentou em suas palavras, e a recalcitrância – que acabou aquele silêncio e aquela angústia. Ele disse que achava
aparecendo em seu agenciamento com a folha de papel. que aquela oficina era um tipo de jogo em que “venceria”
A partir deste momento, a oficina tomou um rumo quem ficasse mais tempo em silêncio, como na brinca-
inesperado, pois, a questão da ausência tornou-se presen- deira do “sério” em que vence quem não ri. Quando este
te, como uma forma de recalcitrância ainda não percebi- silêncio foi quebrado discutiu-se sobre a disponibilidade
da pela equipe. Numa oficina posterior, apostamos numa deles, sobre o que tinha levado cada um a fazer a oficina,
atividade que fez emergir, através das experiências cor- sobre o papel da coordenação e de participante, sobre a
porais, um efeito de esvaziamento. Os coordenadores se confiança em relação às propostas dos coordenadores. E
deram conta, neste momento, que as ausências estavam neste momento foi decidido que os participantes elabora-
permeando estas oficinas desde o início, como exemplo riam a oficina seguinte, que seria a última.
podemos citar o fato de que a lista de presença só foi feita Portanto, os participantes desta oficina tiveram uma
no primeiro dia. Percebemos que dois dos três coordena- relação com a recalcitrância que permitiu a eles um posi-
dores não estavam fazendo o diário de campo. Além dis- cionamento ativo frente aquilo que estava sendo coloca-
so, na supervisão posterior a esta oficina citada, apenas do. O silêncio aqui foi posto em outro lugar, gerou uma
um coordenador participou. Neste momento tomamos a suspensão da atividade, uma forma de se construir um
decisão de suspender a oficina seguinte. Apostamos lite- tipo de resistência que veio em forma de sentimentos de
ralmente na ausência para chamar atenção àquelas que rebeldia. Foi a partir desta resistência e de nossas apostas,
já vinham ocorrendo desde o princípio dessas oficinas, muitas vezes bastante arriscadas, que pudemos construir
e várias questões emergiram tanto em relação à coorde- uma oficina que não ignorou este tipo de recalcitrância às
nação quanto em relação aos participantes. Ficou muito avessas. É importante destacar que isso foi possível so-
evidente que a disponibilidade dos participantes se apro- mente porque era aquela oficina específica, com aqueles
ximava muito perigosamente da docilidade, fazendo com participantes – inclusive por serem da Psicologia da UFF
que a recalcitrância emergisse muito mais no manejo dos – que tais questões puderam ser trabalhadas dessa manei-
coordenadores do que no espaço das oficinas. ra. Neste sentido, pudemos construir possibilidades afe-
Então, a própria ausência da oficina se caracterizou tivas em que a tensão entre docilidade e disponibilidade
como uma oficina da ausência, pois surtiu efeitos. Outra fosse trabalhada naquele dispositivo com aqueles atores
participante nos disse que tinha se afetado muito com a ofi- presentes. Tornar-se sensível à construção do dispositi-
cina anterior e isto a fez resistir a estar presente na próxima vo das oficinas foi uma experiência fundamental para
oficina. Quando esta oficina foi “cancelada”, ela sentiu-se compreendermos nosso trabalho e para mantermos nossa
aliviada, o que mostra que este incômodo reverberou e ain- aposta em nossas oficinas pra continuar construindo cor-
da precisava ser cuidado, a recalcitrância pôde então ser pos e subjetividades potentes.
distribuída. A partir da oficina-ausência e da leitura do di- Um desfecho sem fecho: a afirmação de uma aposta no corpo
ário de campo de um dos coordenadores, percebemos que
Como nos propomos inicialmente, apresentamos
o jogo entre docilidade e disponibilidade estava sempre
nosso trabalho de pesquisa a partir de quatro momentos
presente e se distribuía de maneiras muito assimétricas.
distintos: o aporte teórico-conceitual, o traçado metodo-
Um efeito interessante foi o fato de que este afeto da do-
lógico, o lugar do coordenador e a questão da recalcitrân-
cilidade gerou sim, recalcitrância, mas uma recalcitrância
cia presente no dispositivo criado por nós. A partir desta
deslocada, presente muito mais no manejo das oficinas do
escrita, transformamos nossas oficinas mais uma vez:
que propriamente em seu espaço de acontecimento.
damos a ela um corpo de sentidos feito por palavras. Sa-
Os coordenadores sentiram-se incomodados com o bemos que estas não são suficientes para apresentar a ri-
excesso de “sims” apresentado pelos participantes, tal- queza de afetos gerados, mas apostamos na escrita como
vez pelo fato apontado acima: a vontade de aprender uma uma forma de deslocamento que faz proliferar outras
“técnica corporal” para atuar como Psicólogos. Com isso versões de mundo (DESPRET, 1999), também potentes.
nos demos conta do quanto o “sim” muitas vezes impede A escrita deste texto é também uma escrita política, uma
a fluidez das oficinas enquanto o “não” leva a uma cons- vez que aposta na produção de um contágio, de uma nova

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Ana Claudia Lima Monteiro; Clara Sym Cardoso de Souza

afetação para fazer proliferar espaços potentes de cons- -fecho, porque nosso término é apenas um recorte feito
trução de corpos e subjetividades, consequentemente, a para dar sentido à parte de nosso trabalho. Sabendo que
produção de novos mundos. este é apenas um recorte, oferecemos a possibilidade aos
Dessa maneira, é possível dizer que, em todos os mo- leitores de puxar outros fios e de construir novas propos-
mentos em que estivemos inseridos, seja no campo, seja tas de pensar a relação entre corpo e subjetividade que
no dispositivo da supervisão, procuramos desenvolver um componham um mundo mais amplo e diverso.
posicionamento crítico em relação à nossa própria prática, Referências
questionando sempre esse nosso lugar de ator-pesquisa-
DELEUZE, G. Lógica do sentido. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
dor, que influencia e é influenciado a todo momento. 2000.
Tudo isso nos levou sempre a questionar, também, o
DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2. ed. São Paulo: Graal,
papel do próprio psicólogo que, ao nosso ver, deve possi-
2006.
bilitar a emergência de modos diferentes de ser no mun-
do, e não um mero especialista, intérprete e ditador de DESCARTES, R. As paixões da alma. In: ______. Obras
existências estabelecidas a priori. Em outras palavras, se Escolhidas/Descartes. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994. p. 295-404.
acreditamos que em nossas pesquisas fazemos emergir
novos arranjos de conceitos e de conhecimentos (MO- DESPRET, V. Ces émotions qui nous fabriquent:
RAES, 2010), então trata-se de uma aposta ético-política ethnopsychologie de l’authenticité. Paris: Institut d’édition
possibilitar a emergência de subjetividades distribuídas. Sanofi-Synthelabo, 1999.
É verdade que nos deparamos com impasses em DESPRET, V. Hans: le cheval qui savait compter. Paris; Les
nosso percurso, a exemplo de dificuldades envolvendo Empêcheurs de penser en rond/ Le Seuil, 2004a.
nossa própria coordenação, porém até as mesmas nos DESPRET, V. The body we care for: figures of anthropo-zoo-
permitiram fortalecer nossa convicção de que o campo genesis. Body and Society, [S.l.], v. 10, n. 2-3, p. 111-134,
deve ser também um lugar de resistências, que permita 2004b. CrossRef.
recalcitrâncias, para que nossa produção não seja empo- DESPRET, V. Être Bête. Paris: Actes Sud, 2007.
brecida por imposições e autoritarismos. Estes escondem
toda potencialidade que nasce no encontro e na dispo- DESPRET, V. As ciências da emoção estão impregnadas de
nibilidade de todos os envolvidos no dispositivo, sendo política? Catherine Lutz e a questão do gênero na ciência as
emoções. Fractal Revista de Psicologia, Niterói, v. 23, n.1, p.
que o que pretendemos com nossa prática é possibilitar
29-42, jan./abr. 2011a. CrossRef.
a emergência de subjetividades incorporadas, ora indi-
viduais, ora distribuídas. Portanto acreditamos que, não DESPRET, V. Os dispositivos experimentais. Fractal: Revista
colocando em risco nossos pressupostos, cairíamos na de Psicologia, Niterói, v. 23, n.1, p. 43-58 jan./abr. 2011b.
CrossRef.
cilada de buscar apenas comprovar algo pré-existente e
estabelecido, já dado, e jamais poderíamos nos surpre- DESPRET, V. O que as ciências da etologia e da primatologia
ender com o campo. Isso iria fortemente de encontro aos nos ensinam sobre as práticas científicas? Fractal: Revista
nossos objetivos mais caros, uma vez que não buscamos Psicologia, Niterói, v. 23, n. 1, p. 59-72, jan./abr. 2011c.
dispositivos autorreferentes (STENGERS, 1990). CrossRef.

Nossa intenção não é a repetição de um método ou DESPRET, V. Acabando com o luto, pensando com os mortos.
a afirmação cega de nossa aposta teórica, é a possibili- Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 23, n. 1, p. 73-92,
jan./abr. 2011d. CrossRef.
dade de construir mundos em que caibam mais e mais
afetos, distribuídos de maneira cada vez mais coletiva. FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Cadernos de Campo, São
Deste modo, o uso de uma de nossas experiências deve Paulo, n. 13, p. 155-161, 2005.
ser lido também como uma forma de afetação e não como HARAWAY, D. Saberes Localizados: a questão da ciência para
uma “maneira de condução”. As possibilidades são múl- o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos
tiplas, como dissemos, os arranjos variam de acordo com Pagu, Campinas, v. 5, p. 07-41, 1995.
os atores que são postos em cena nas oficinas. Não há
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34,
previsibilidade, mas há rigor. O rigor encontra-se nesta 1994.
própria aposta de gerar espaços coletivos de afetação, de
distribuição de subjetividade. Portanto, seguimos nosso LATOUR, B. Des sujets recalcitrants. La Recherce, Paris, v.
301, p. 88-90, 1997.
trabalho, no qual os impasses se apresentam, como as
questões postas acima, e que nos exige sempre reposi- LATOUR, B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos
cionamentos e muito trabalho coletivo. Não buscamos estudos sobre a ciência. In: NUNES, J.; ROQUE, R. (Org.).
respostas para problemas já postos, como nos ensina Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência.
Deleuze (2006), atuamos em campos problemáticos Porto: Afrontamento, 2007. p. 40-61.
que nos exigem a cada momento rearranjos e mudanças MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice.
de posição. Com isso, apostamos na construção de um Duham: Duke University Press, 2002.
conhecimento que passe pelo corpo, pelos afetos e que
ocorre de maneira sempre coletiva porque não pressupõe
elementos dados, mundos fechados. Por isso, escolhemos
apresentar um desfecho, brincando com a palavra des-

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O dispositivo de oficinas de corpo e a questão da recalcitrância

MONTEIRO, A. C. L. As tramas da realidade: considerações


sobre o corpo em Michel Serres. 2009. Tese (Doutorado)−
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/11811>.
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STENGERS, I. Quem tem Medo da Ciência? Ciências e
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STENGERS, I. Cosmopolitiques VII: pour en finir avec la
tolérance. Paris: La Decouverte, 1997.
Recebido em: 10 de janeiro de 2017
Aceito em: 1 de abril de 2017

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 158-167, 2017                                167


Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 168-176, maio.-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2226
Dossiê Corporeidade

Pistas somáticas para um estudo da corporeidade:


uma aprendizagem das sensações
Patricia de Lima CaetanoH
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil
Resumo
Este texto pretende apresentar algumas pistas para um estudo da corporeidade a partir da metodologia de aprendizagem somática
evidenciando-a como uma aprendizagem do/pelo corpo vivido e experimentado através da habitação de sua dimensão material
intensiva e heterogênea, produtora de alteridades espaço-temporais. Para tanto, nos aproximaremos da abordagem somática Body
Mind Centering. Serão apresentados relatos de experiências registrados em um diário de bordo e em entrevistas que procurarão
evidenciar a natureza estético-sensível do corpo como impulsionadora de um aprendizado pela via das sensações. Os relatos
compõem um campo investigativo no qual o corpo, em experimentação de si, se faz bússola de um processo errante de buscas pela
legitimação do corpo enquanto realidade plena, potente e vital.
Palavras-chave: corporeidade; educação somática; aprendizagem experimental; sensações; alteridade.

Somatic clues for a study of the corporeity: a learning of sensations


Abstract
This text intends to present some clues for a study of the corporeity from the methodology of somatic learning evidencing it as a
learning of / by the lived and experienced body through the habitation of its intensive and heterogeneous material dimension, pro-
ducer of space-time othernesses. To do so, we will get closer to the somatic approach developed by Body Mind Centering. We will
present accounts of experiences recorded in a logbook and in interviews that will search to highlight the aesthetic-sensitive nature
of the body as a propellor of learning through sensations. The accounts set out an investigative field in which the body, in self-expe-
rimentation, become the compass of an errant process of searching for the legitimation of the body as a full, potent and vital reality.
Keywords: corporeity; somatic education; experimental learning; sensations; otherness.

Ao longo deste texto, apresentaremos algumas pistas apresentada pelo pesquisador francês Michel Bernard
para um estudo da corporeidade a partir da metodologia (2001). Ao evocar a categoria corporeidade em contraposi-
de aprendizagem somática, evidenciando-a como uma ção subversiva à categoria corpo, Bernard quer pensar uma
aprendizagem experiencial que se dá pela via das sen- experiência corporal diferenciada, heterogênea e mutante,
sações por meio de um contágio estético-sensível entre composta por forças “pulsionais” e “intensidades díspares
corpo e ambiente. Em tal aprendizagem, a habitação do e cruzadas”. Segundo ele, a categoria corpo, enraizada no
corpo em sua dimensão material instável e heterogênea, ocidente, designaria uma experiência corporal caracteri-
promove a abertura da matéria-corpo, tornando-a produ- zada pela homogeneidade e estabilidade, através da qual
tora de alteridades espaço-temporais. Por meio de rela- é possível estabelecer uma relação corpórea objetificada,
tos de experiência, será possível evidenciar a natureza controlada e massificada. Ao reconhecer a complexidade
sensível e cambiante da matéria-corpo, como um aspec- lingüística, ontológica e performativa que envolve a ter-
to impulsionador do aprendizado de si e do mundo, em minologia “corpo” dentro do contexto cultural ocidental,
um processo necessariamente contínuo e pulsante de re- Bernard (2001, p. 24), aproximando-se da corporeidade,
-configuração próprio ao vivo. Tais pistas nasceram do afirmará que “a negação teórica do conceito tradicional de
interesse em aprofundar um olhar acerca da abordagem ‘corpo’ é, sobretudo, uma reação e uma proteção imuno-
somática Body Mind Centering™,1 interesse este que lógica contra a visão filosófica que este conceito veicula;
se concretizou ao longo dos percursos investigativos de enfim, um verdadeiro ‘anticorpo’ no duplo sentido da pa-
uma tese de doutorado realizada no Programa de Pós- lavra”. O modelo tradicional de corpo, tal qual é conhecido
-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.2 Longe de apre- no Ocidente, longe de ser um dado natural, fruto de uma
sentar uma prescrição ou uma receita, apresentaremos experiência universal, se encontra atrelado a um modelo
aqui algumas pistas advindas de um campo investigativo de existência carregado de uma visão ordenadora do mun-
no qual o corpo em experimentação de si, se fez bússo- do que, segundo Bernard (2001, p. 20), é típica do “projeto
la de um processo errante de buscas pela legitimação do tecno-científico de um capitalismo triunfante”.
corpo enquanto realidade plena, potente e vital. Iniciada em fins do século XIX e intensificada ao lon-
Conforme veremos mais adiante, a noção de corpo go do século XX, a crise do sujeito moderno no Ocidente
compreendida e abordada pelo campo da educação somá- se fez visível a partir de inúmeros movimentos imbuídos
tica em muito se aproxima da definição de corporeidade pelo desejo de religar arte e vida em diversos campos -
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal do Ceará, Instituto políticos, sociais, culturais e artísticos. Neste cenário, o
de Cultura e Arte - ICA. Campus da UFC Pici. Fortaleza, CE – Brasil. CEP:
60440900. E-mail: tita.caettana@gmail.com
corpo começou a ganhar um novo estatuto. Nesta mesma
1
 Também designado pela sigla BMC. época é possível perceber nos países do norte europeu e
 Tese defendida em março de 2012 na cidade de Salvador, no PPGAC/ UFBA.
nos Estados Unidos o advento do Movimento Corporalis-
2

Ver Caetano (2012).


Pistas somáticas para um estudo da corporeidade: uma aprendizagem das sensações

ta, que mais tarde veio a ser designado por Educação So- tem a oportunidade de experienciar o mundo e a si mesmo
mática. Inseridos em diferentes áreas de conhecimento, para além da representação de corpos, objetos e signos já
diversos pesquisadores desenvolveram técnicas, práticas dados. Olharemos para estas questões com mais cuidado a
e métodos corporais pautados em uma semelhante abor- partir da metodologia somática do Body Mind Centering.
dagem do complexo corpo-mente envolvendo domínios Criado pela norte americana Bonnie Bainbridge
como o sensorial, o cognitivo, o motor e o afetivo (FOR- Cohen, o Body Mind Centering consiste numa anatomo-
TIN, 1999, p. 40). Dentro deste campo de conhecimen- -fisiologia experimental do corpo. Tal abordagem tem
to, a matéria corpórea passou a ser matéria prima para a como proposição metodológica a experimentação dos
construção de um conhecimento de si e do mundo. sistemas corporais (sistema esquelético, muscular, endó-
A noção de soma que dá origem ao termo somática(o) crino, nervoso, sistema dos ligamentos e fáscias, sistemas
foi utilizada pela primeira vez pelo pesquisador Thomas dos órgãos, sistema dos fluidos, e os órgãos dos sentidos e
Hanna em 1976, em seu artigo “The field of somatics”, a percepção) por meio da visualização, toque, movimento
no intuito de evocar um corpo vivido e experienciado a e sonorização. Além da experimentação dos sistemas cor-
partir da percepção daquele que experimenta o corpo. O porais, esta abordagem também propõe o estudo e a ex-
soma enquanto corpo experienciado se opunha à noção perimentação das etapas ontogenéticas e filogenéticas do
de corpo objetificado e mecanizado. A partir de então, o desenvolvimento do movimento, pressupondo “planos de
corpo entendido desde a perspectiva somática é aquele contágio” em movimento entre humanos e não-humanos.
que se experimenta ao mesmo tempo em que experimen- Diferente de outras abordagens somáticas, o Body
ta o mundo, ou, experimenta o mundo ao mesmo tempo Mind Centering não propõe um método centrado em
em que se experimenta. Portanto, o soma jamais poderá exercícios corporais codificados, através dos quais se
ser compreendido ou abordado como um objeto inerte, operaria uma reorganização do corpo na direção de um
passivo, secundário e passível de controle ou docilização. uso sensório-motor mais adequado previamente estabele-
Bem ao contrário, o soma é o corpo que experiencia, se cido. Trata-se aqui de uma aprendizagem eminentemente
experiencia e, gostaríamos de incluir aqui, gera experi- experimental através da qual o corpo compreendido em
ência. Assim, o corpo como gerador de experiência é um sua ontogênese perpétua explora os seus próprios meios
criador de realidades. No encontro com o mundo, o soma de constituição tanto materiais e energéticos, quanto
(ou ainda, a corporeidade) é o corpo inacabado, proces- formais. Esta aprendizagem ocorre por meio da focali-
sual e relacional, que se cria na experiência, ao mesmo zação senso-perceptiva sobre uma ou várias estruturas
tempo em que cria um mundo possível. Dentro desta anátomo-fisiológicas (regiões teciduais constitutivas
perspectiva, mundo e corpo são realidades que somente da matéria-corpo em sua pluralidade) implicadas num
existem por co-engendramento. Como poderemos obser- movimento determinado e em relação com o meio cir-
var mais adiante, gostaríamos de afirmar que para além cundante. Por meio desta focalização, solicita-se fazer
da experiência fenomenológica pessoal de um sujeito que emergir uma paisagem de qualidades táteis e cinestési-
experimenta o mundo em primeira pessoa, a noção de cas, de texturas diferenciadas em suas intensidades, as-
soma desenvolvida pelas práticas somáticas, se aproxima sim como diversificados limiares energéticos. A partir de
intimamente das afirmações do filósofo José Gil (2004, p. então, redesenha-se tanto o território corpóreo sentido
56) quando este nos apresenta o corpo como “metafenô- pelo experimentador, como o espaço de projeção da ci-
meno”, tanto visível quanto invisível, “feixe de forças” e nesfera.3 O espaço ao redor é modificado por meio da
“transformador de espaço-tempo”. reverberação entre dentro e fora, somente possível pela
A Educação Somática é um campo vasto composto ativação de uma qualidade porosa e vibrátil da pele e
por diferentes abordagens e técnicas. Cada qual com suas demais membranas do corpo. A partir desta ativação, as
especificidades, possui em comum uma metodologia qualidades vibráteis do corpo e do ambiente podem se
de investigação corpórea pautada pelo trabalho sobre a contagiar mutuamente.
senso-percepção. Podemos citar algumas como a Euto- Aqui tocamos na dimensão performativa do soma.
nia, o Método Feldenkrais, a Técnica de Alexander, os Tal metodologia somática propõe que possamos expe-
Bartenieff Fundamentals, o Body Mind Centering, entre rienciar o corpo e seus sistemas corporais por meio do
outras. No Brasil, podemos ainda considerar como per- embodyment. Assim, acompanhando os processos expe-
tencentes ao campo da Educação Somática, a metodo- rienciais do corpo, sempre em atitude relacional com o
logia Klauss Vianna e a Metodologia Angel Vianna de ambiente, opera-se uma diminuição na preponderância
Conscientização do Movimento. da atenção analítica do eu-indivíduo, e uma outra quali-
A partir de um exercício de alargamento dos sentidos, dade de atenção, que Cohen chama “consciência celular”
estas práticas somáticas atuam como propositoras de uma dos tecidos e/ou sistemas experimentados,4 ganha força
experiência de abertura à criação de um corpo “outro”, 3
 Cinesfera é a esfera de espaço tridimensional ao redor do corpo dentro da qual
acontece o movimento e cujas periferias podem ser alcançadas facilmente pelos
expandindo os limites de suas organizações demasiada- membros esticados sem que precisemos mudar a nossa base de apoio. Ao nos
mente condicionadas em automatismos cristalizantes. De movermos carregamos conosco a nossa cinesfera, transferindo-a para um novo
ponto de apoio, como uma aura. Também denominada kinesfera, este conceito
um modo geral, as práticas somáticas convidam o corpo pertence ao Método Laban de Análise do Movimento. Para maiores informações
a exercitar os sentidos fora do regime restrito da repre- vide Fernandes (2006).
sentação. Assim, a partir de um convite à experimentação 4
 Segundo Cohen (2010), os sistemas e tecidos corporais são compostos por co-
munidades celulares. Verdadeiros conglomerados de células que possuem quali-
dos sentidos no âmbito prismático das sensações, o corpo dades vibracionais específicas.

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 168-176, 2017                               169


Patricia de Lima Caetano

de presença. Por meio de suas proposições, exploramos dismos, como processos importantes do conhecer e do
transitar desde a experiência celular até os sistemas cor- re-configurar-se. Assim, a partir da prática somática do
porais, direcionando a atenção para os diferentes tecidos BMC, intencionei perceber que, através da operação
do corpo e experimentando diferentes qualidades de mo- de desestabilização da dimensão demasiadamente
vimento e estados de presença.5 Poderíamos afirmar que organizada do corpo, é possível ver emergir uma
o embodyment ou a “corporalização” opera a entrada em corporeidade mutante feita de fluxos e intensidades.
um estado de atenção outro, um estado de sensação, por Neste processo, o experimentador pôde habitar um
meio da captura de forças das matérias-corpo que, a par- espaço limiar do corpo, um campo de forças da matéria-
tir de então, guiam os movimentos e gestos do experi- corpo que é também um espaço de abertura à emergência
mentador no espaço. Neste processo, o experimentador da alteridade corpórea.
entra em estado de devir. Ao deslocar-se do centramen- Os seguintes relatos apresentam a descrição das aulas
to de si, experimenta-se em deriva habitando as forças relacionadas e as narrativas de experiências sensíveis, se-
que o constituem. O corpo que se experimenta por meio guidas por breves reflexões. Tais reflexões apontam para
do embodyment passa por várias etapas de investigação, algumas pistas para um estudo da corporeidade. Estas
transitando desde o estudo e visualização de imagens-re- pistas aparecerão evidenciadas em meio às reflexões e
presentação do corpo, provenientes dos mapas da anato- posteriormente serão apresentadas separadamente.
mia convencional ocidental (atlas anatômico), até chegar
a experimentação de imagens-sensação6 moventes prove- Diário de Bordo: Relato de experiência a partir de
nientes da vivência do experimentador-pesquisador em uma aula sobre o Sistema Esquelético na formação
acompanhamento dos devires do corpo. Neste processo Profissional em BMC com a profa. Lulla Chourlin,
outras relações espaço-temporais entre corpo habitado e na Cartoucherie, Paris, 2011
ambiente vivido emergem em meio a uma operação de Dia 24 de fevereiro de 2011 - Neste dia realizamos
modulação das sensações da matéria-corpo. O soma per- um trabalho sobre a cintura escapular. Observamos e
formatiza o espaço, performatiza o tempo, e performatiza reconhecemos a cintura escapular no esqueleto, como
a si em meio as alteridades que vivencia. também sua figura representativa no atlas anatômico.
Uma aprendizagem das sensações: relatos de um Em duplas, tocamos e reconhecemos as estruturas ósseas
laboratório de investigação da corporeidade da escápula, espinha escapular, clavícula, axônio, cavi-
dade glenóide e processo coracóide. Após essa primeira
A partir de então, apresentarei três relatos de expe- fase de reconhecimento, Lulla nos propôs uma dinâmica
riência provenientes de um laboratório de investigação em duplas. Uma pessoa devia pousar as duas mãos nas
da corporeidade realizado durante o desenvolvimento de escápulas do parceiro. O parceiro deveria mobilizar os
minha pesquisa de doutorado. Neste laboratório, colo- braços elevando-os e descendo-os. A pessoa que toca e
quei-me como pesquisadora-experimentadora da pesqui- a pessoa que é tocada deveriam sentir o movimento das
sa e, numa atitude receptiva, procurei acompanhar meus escápulas. Elas sobem e abrem para as laterais como
próprios processos de aprendizagem da corporeidade em asas. Finalizada esta experimentação, houve ainda outra
meio à participação em oficinas e nas aulas da forma- proposição em duplas. Deveríamos reconhecer as linhas
ção profissional de BMC.7 Através de diários de bordo de força entre os dedos da mão e partes da escápula e
procurei observar e compreender minhas próprias expe- clavícula. Neste reconhecimento tocávamos cada dedo
riências.8 Numa etapa seguinte, por meio da realização de cada vez e procurávamos sentir a conexão da linha de
de entrevistas, pude confrontar minhas experimentações força com a parte correspondente na escápula e clavícula.
com as de outros participantes na formação profissional
Quando fui tocada sentia a conexão na área correspon-
de BMC, onde busquei compreender este processo de
dente, a presença, os micro-movimentos, os rearranjos dos
aprendizagem de si e do mundo pela via das sensações.
tecidos em torno. Minha parceira começou tocando meus
Por meio destes três relatos apresentarei um recorte deste
dedos com muita pressão. Havia muita força no toque e
laboratório. isso não me ajudava a sentir as linhas de força. Precisava
Ao valorizar a experimentação da corporeidade no de menos pressão, mais sutileza, mais leveza para conectar
processo de construção do conhecimento, procurei reco- as linhas de força. Se eu sentia demais a pressão havia um
nhecer a dimensão intensiva do corpo, seus momentos certo incômodo que apagava as outras sensações mais
moleculares e desestabilizantes, suas mutações e noma- sutis. Desconcentrava- me. Por vezes ela puxava o dedo
para fora de meu corpo e isso me trazia para uma conexão
5
 Ainda segundo Cohen (2010, p. 78), “cada célula é única. Uma grande variedade ósseo-muscular. Não era essa conexão que queria acessar.
de células comunica entre si. As células de estrutura parecida formam entidades
que funcionam como tecidos. Esses tecidos reagrupam-se em entidades mais Precisava de uma conexão invisível, micro, granular. Pedi
vastas que funcionam como sistemas”. As células compõem a dimensão micro para ela diminuir a pressão e aí sim, eu comecei a sentir
do corpo, os sistemas corporais compõem a dimensão macro. A base desta abor-
dagem somática pressupõe uma aprendizagem no nível micro-celular, tendo em a tal conexão que desejava. Depois, ao me mover pelo
vista que, “as células do corpo informam o cérebro tanto quanto o cérebro infor- espaço, foi muito interessante! A conexão braços-escápulas
ma as células” (COHEN, 2008, p. 37).
e a realidade presente desta região eram poderosíssimas.
6
 Os termos imagem-representação e imagem-sensação serão desenvolvidos mais
adiante, no subtítulo “Pistas para um Estudo da Corporeidade”. Maior do que qualquer outra região de meu corpo neste
7
 Formação em Educador Somático pelo Movimento (Somatic Movement Educa- momento. Essa região começou a me mover. Ela me
tor - SME), credenciada pela The School for Body Mind Centering. suspendeu do chão até a posição de pé. Não havia força
8
 Tornei-me, portanto, sujeito e objeto da pesquisa, o que justifica a partir deste muscular, nem intenção nas pernas, pés e bacia. Era real-
momento do texto, esta escrita em primeira pessoa.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 168-176, 2017
Pistas somáticas para um estudo da corporeidade: uma aprendizagem das sensações

mente o osso esterno, as escápulas e os braços que me sus- Figura 1 - Imagem-Sensação Esterno e Asas ou Avanços e Espirais. No original
30 x 42 cm. Giz de cera sobre papel.
pendiam. Depois, eu me movia pelo espaço e só havia essa
região no meu corpo. Eu era toda “asas”, “enormes asas
horizontais”. Por vezes me sentia apoiada num espaço que
se criava atrás de minhas escápulas. As escápulas pousa-
vam neste espaço e eu flutuava neste suporte, enquanto o
osso esterno apresentava a sua presença totalmente aberta
ao espaço à sua frente-alta. Havia uma força que o puxava
para cima. Por vezes, o esterno se deslocava com uma in-
tencionalidade poderosa de avanço. Os braços mantinham-
-se o tempo todo sustentados no espaço, ora horizontal,
ora vertical-alta, no entanto nunca pendiam para baixo.
Havia uma força conectiva que vinha das escápulas e os
sustentava neste imenso espaço ao redor de meu tronco e
cabeça. Um espaço que se criava. Meus braços eram enor-
mes. Meus braços, escápulas e esterno eram uma só grande
presença viva, com suas autonomias. Eles jogavam entre si,
Figura 2 - Imagem-Sensação Esterno e Asas II ou Escápulas de Águia. No
funcionavam em íntima conexão. Os braços desenhavam original 30 x 42 cm. Giz de cera sobre papel.
enormes espirais de dentro para fora. As espirais tinham
vida própria e me levavam pelo espaço. Eu não conseguia
parar, sentia vertigem e por vezes náuseas. As espirais plai-
navam no espaço como asas enormes de uma águia branca.
Assim eu as via, sentia e percebia. Meus braços, esterno
e escápulas plainavam no espaço. Meu esterno avançava!
Era como uma proa no ar! Minhas pernas praticamente
não existiam, elas acompanhavam a unidade superior do
corpo, viva! Imponente! Soberana! Não conseguia parar.
Sentia náuseas. Precisei ficar um tempo no chão sentindo
o fluxo no corpo. Depois, caminhei um pouco pelo espaço,
mas ainda assim as espirais vieram fazendo meu corpo gi-
rar em vertigem. Pensei: preciso parar. Caminhei e relaxei
os braços ao chão. Eles queriam ficar de novo suspensos
no ar. Sentia o osso esterno em posição de avanço! Era
enorme! Preciso desenhar!!
Neste relato é possível reconhecer que o toque com in-
tenção de “querer fazer” impedia uma conexão mais fina
com a dimensão intensiva das forças. Para além da cone-
xão ósseo-muscular, havia ainda as linhas de forças entre
os dedos das mãos e regiões específicas das escápulas e
clavículas. Era preciso um toque com escuta que permitis-
se uma “atenção introspectivo-receptiva”, ou ainda, uma
escuta aos fluxos e micromovimentos do corpo. A partir
do momento em que foi possível estabelecer uma conexão
com as matérias do corpo em questão (procurando ouvir
as relações entre dedos das mãos, escápulas e clavículas),
suas presenças expressivas puderam advir. Eis que a “in-
tencionalidade da matéria”, - neste caso, matéria-cintura
escapular, matéria-braços e matéria-mãos - suspendia o
-
Entrevista com C. N.9 Relatos de experiência a
partir de duas aulas, uma sobre o Sistema dos Órgãos
corpo do nível baixo ao alto do espaço. Ao experimentar
e outra sobre o Sistema Endócrino na formação
a alteridade destas matérias, o “corpo-alteridade” se apre-
Profissional em BMC, na Cartoucherie, Paris, 2010
sentava enquanto devir-asas que plainavam no suporte do
espaço. Um espaço-suporte criava-se juntamente às asas. C.N. afirma que a partir dos procedimentos do BMC
Havia ainda uma “intencionalidade da matéria-esterno” ela tem a oportunidade de colocar uma luz em lugares
que impulsionava o peito em avanço fazendo-o deslocar- do corpo que ela não teria como fazer sozinha. Então, ao
-se à frente e ao alto. Eis que um “estado do corpo” modi- conectar a respiração celular10 nestes lugares, ela pode
ficado se apresentava em meio a espirais dos braços, estas 9
 C. N. é dançarina profissional e coreógrafa. Reside na França e participou da
eclodiam numa dinâmica de fluxo vertiginoso ininterrup- Formação Profissional em BMC (Somatic Movement Educator).
 Em BMC, a respiração celular consiste no primeiro esquema orgânico de movimen-
to. Um “imaginário encarnado” em ação fazia emergir
10

to das células vivas. Ela designa a troca gasosa realizada graças ao vai e vem dos
imagens-sensação: escápulas e braços como asas enormes líquidos através das membranas. Aparece primeiro nos oceanos terrestres e se perpe-
tua em cada uma de nossas células mergulhadas no mar interior do corpo. A Respira-
de uma águia branca em espiral, ou ainda, esterno como ção Celular é um procedimento prático realizado nas aulas de BMC. A integração de
proa que avança (vide figuras 1 e 2). uma experiência (embodiment) no nível celular repousa sobre a respiração.

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 168-176, 2017                               171


Patricia de Lima Caetano

observar o que modifica no corpo. Ela traz dois exemplos Em exercício de “atenção introspectivo-receptiva” C.N.
de experimentação de uma modificação intensa do corpo habita um lugar muito profundo e tem dificuldades de
a partir das explorações do BMC. ouvir a voz da facilitadora. Ao relatar uma experiência
Por exemplo, durante o sistema dos órgãos, nós começa- passada que se atualiza no instante da fala, passado e pre-
mos com Frederica, nós trabalhamos sobre o tubo diges- sente se misturam. Por vezes, C.N. tem dificuldade de
tivo, e então ela começou a falar da língua, da boca, e de nomear tais sensações. Ao adentrar os estados do corpo
fato, na medida em que ela falava, eu estava em contato provenientes da matéria-tubo digestivo, na falta de uma
com esse tubo digestivo. E agora como eu estou falando so- palavra que as nomeie, C.N. emite sons encarnados em-
bre o tubo digestivo o estado de meu corpo... eu quero dizer balados pela “modulação das sensações”. Neste mergulho
que há alguma coisa que ralenta em mim verdadeiramente, profundo nos umbrais da carne, C.N. presencia desloca-
e que faz que num momento dado eu tenha me fundido no mentos do corpo iniciados por uma “intencionalidade da
solo por que enfim.... matéria”. Uma intencionalidade do tubo digestivo leva as
Neste momento, enquanto C.N. descreve a experiên- demais estruturas do corpo tais como, musculaturas e es-
cia, a sua fala se modifica e ganha outra textura, o gestual trutura esquelética, a um deslocamento sequencial no es-
de seu corpo e toda a sua postura se transforma ganhando paço. Ao presenciar C.N. sendo tomada pelas sensações
uma qualidade densa, mole e escorregadia para baixo, provenientes da matéria enquanto relata sua experiência,
na direção do solo. Um corpo-alteridade se apresenta evidenciou-se aqui a realização de uma capacidade de
em meio à conversa. É importante esclarecer que C.N. acesso à matéria-tubo digestivo e suas qualidades sensí-
se encontrava sentada em uma cadeira no momento em veis. Tal evidência pôde nos apontar para a possibilidade
que faz seu relato. A modulação das sensações se põe em de constituição de uma “cartografia do corpo afetivo”. A
ação na medida em que ela fala. Ao falar C.N. reconecta partir das experimentações em BMC, C.N. despertou a
e acessa novamente estas matérias. Nota-se então que, ao potência de afetar e ser afetada pelo tubo digestivo. Ao
percorrer a geografia interior do tubo digestivo repleta de percorrer sua geografia interna sensível, uma ferramenta
texturas e densidades específicas, C.N. é lançada em um afetiva de acesso à matéria-tubo digestivo foi então de-
estado do corpo embalado pelas sensações ralentadas. senvolvida. Esta matéria poderá ser acessada a qualquer
momento e se tornou uma ferramenta de conexão.
E em relação à mesma experiência:
C.N. continuou descrevendo um segundo exemplo
Há alguma coisa, você vê? Eu não posso, eu não posso de experimentação intensa de uma modificação corpórea
permanecer sentada normal... e como eu me encontrava
que lhe trouxe sensações diferenciadas.
no chão, de fato eu ouvia, mas era... ela estava longe, era
como se eu estivesse num lugar muito longe no meu corpo, Nós trabalhamos muito com o som ao nível das glândulas
muito profundo e eu me encontrava realmente sobre o chão no módulo do sistema endócrino. Um dia nós trabalhamos
com essa noção de peso de todo o sistema do tubo digesti- com um ponto reflexo da glândula pituitária que se situa na
vo, e você vê? Falar me reconecta diretamente a essa ex- cabeça, mais no interior. Então nós fizemos uma experiên-
periência em termos de sensação no corpo que faz com que cia onde nós colocamos cabeça apoiada com cabeça e nós
eu não fique sentada. fizemos sons com a pessoa. Quando nós nos separamos, de
fato eu senti todo meu campo magnético em torno do corpo.
E ela continua, Eu te situo aqui dois extremos de exploração guiada que
Então eu permaneci um momento sobre o chão sem me me trouxeram sensações diferentes em relação à focos di-
mover, e verdadeiramente numa respiração muito, muito ferentes, porque aqui nós estávamos sobre as glândulas e a
lenta sentindo isso que sinto agora, esse peso em tudo, glândula se relaciona com a energia e o campo magnético.
alguma coisa, você vê? Que se dispersa, mas que não é Aqui era realmente aahahaahhhhh..., eu sentia como se eu
o líquido, é mais uma matéria boooooaaaaarrrrrr..., en- pudesse tocar o campo que estava em volta de minha cabe-
fim....como isso. E num momento dado meu corpo se vira, ça com minhas mãos. De fato foi muito forte. A sensação do
eu fico de cócoras, e num outro momento meu corpo se campo é uma vibração muito fina que se difunde em torno
vira e eu me encontrei deitada, mas o modo como eu me de si, que se difundiu em torno de minha cabeça. E era
virei, eu senti que a iniciação do movimento vinha desse realmente palpável para mim, eu te falo: foi forte!
lugar do tubo digestivo e então quando eu me virei.. mas
Diante destes dois exemplos, C.N. afirma que o seu es-
era uma sensação.... todo o resto seguia, todos os mús-
tado de presença corpórea (“estado do corpo”), quando ela
culos, toda a estrutura do esqueleto, eles seguiam de fato
contatou o tubo digestivo, era completamente diferente do
e aaaaaaahhhhhhaaaa... uma espécie de relaxamento
estado de presença corpórea proporcionado pelo contato
uuuhhhhhoooooaaaaa... agora eu o encontro, você sabe,
eu não estou no chão mas eu sinto verdadeiramente. Foi
ao campo magnético difundido pela glândula pituitária.
interessante para mim contatar todas essas sensações e o Neste relato, presencia-se, mais uma vez, uma ex-
que isso induz no meu corpo em termos de movimento, de perimentação ao nível da “modulação das sensações”,
qualidade, de gosto no corpo. no entanto, completamente diferente da primeira. Para
Nesta continuidade de seu relato, presencia-se uma fi- acessar a glândula no interior da cabeça uma “atenção
neza perceptiva e sensitiva. C.N. discrimina as sensações introspectivo-receptiva” foi estabelecida no âmbito de
provenientes de uma matéria que se dispersa e que, no uma dinâmica de contato ao outro. Tal experiência com a
entanto, possui uma qualidade mais densa que o líquido. glândula pituitária desencadeou sensações de um campo
magnético: uma vibração muito fina que se difundia em

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Pistas somáticas para um estudo da corporeidade: uma aprendizagem das sensações

torno da cinesfera. Através do trabalho das sensações, primeiramente identifica-se e diferencia-se o território
C.N. pôde então reconhecer a localização deste campo estável do corpo organizado, reconhece-se suas estrutu-
em torno de sua cabeça e poderia inclusive tocá-lo com ras, suas localizações, suas formas, suas inter-relações, e
suas próprias mãos. A sensação encarnada se tornou inclusive, suas funções a nível biológico e orgânico. No
concreta posto que vivida pela própria matéria-corpo. entanto, estes marcos anátomo-fisiológicos têm por fun-
A “cartografia do corpo afetivo” pôde ser então ampli- ção demarcar os distintos territórios corpóreos para, em
ficada a partir de mais uma experimentação sensível e seguida, possibilitar um mergulho em suas dinâmicas di-
corporificada no nível das glândulas endócrinas. ferenciadas de fluxos, vibrações, densidades, rarefações,
Segundo C.N., quase todas as explorações guiadas nas ritmos e velocidades.
proposições do BMC a levam a abrir portas desconheci- A segunda pista é a “Modulação das Sensações”. A
das no corpo e, a partir do momento em que isso ocorre, partir da configuração desta geografia demarcada por re-
o corpo responde. Nestes momentos ela pode vivenciar ferências anatômicas, fisiológicas, orgânicas, como tam-
experiências com o movimento que não são voluntárias. bém arquitetônicas,11 põe-se em movimento um território
Não se trata então de dizer “agora eu faço três passos, e vital, múltiplo e vibrátil. A partir de então, o corpo é ex-
ando, e giro o tronco”. Segundo C.N., cada sistema ou perimentado em sua potência performativa por meio de
tecido permitirá o acesso a uma porta específica: “efeti- processos de modulações e variações no nível das ma-
vamente, se você está numa exploração guiada sobre o térias qualitativas. A segunda pista consiste então numa
tubo digestivo, não é a mesma porta que se você estiver operação de modulação das matérias do corpo por meio
trabalhando sobre o ponto reflexo ao nível das glândulas do trabalho das sensações, estas podendo ser cinestési-
da cabeça”. Cada sistema vai trazer um colorido diferen- cas, táteis, motoras, entre outras.
te, pois como ela diz “se eu estou no tubo digestivo, eu Tal operação de modulação ocorre numa zona instável
estou num peso que verdadeiramente transborda, se der- da matéria. Ao atingir esta zona, a matéria pode se eviden-
rama e até o continente do corpo é embarcado por isso”. ciar em seus traços de singularidade e expressão. O aces-
Pistas Somáticas para Um Estudo da Corporeidade so a esta zona instável da matéria só se dará a partir do
momento em que se desfaz minimamente a dimensão or-
Trouxemos aqui três relatos de experimentações e re-
ganismo da matéria, promovendo interconexões entre as
flexões no âmbito da corporeidade. Estes relatos compu-
dimensões extensiva e intensiva do corpo. Todo um traba-
seram um campo de pesquisa e investigação muito mais
lho somático ao nível dos pré-movimentos, pré-sentidos
amplo. Os exemplos de experiências concretas que foram
e pré-percepções auxiliará na desconstrução de represen-
descritos tanto nos diários de bordo quanto nas entrevistas
tações cristalizadas do corpo, como também nas pré-con-
constituíram informações relevantes no reconhecimento
cepções de hábitos perceptivos, sensitivos e motores.
de algumas pistas somáticas para um estudo da corporei-
dade que se configurou através de uma aprendizagem das O pesquisador e dançarino Hubert Godard (1998)
sensações. Ao longo destes relatos foi possível perceber a afirma que há alguma coisa que antecipa todo e qualquer
existência de experiências comuns e informações que se movimento ou gesto no espaço. Segundo ele o esquema
cruzavam, como também, modos singulares de apreen- corporal12 consiste então numa primeira fase fundamen-
são e experimentação da corporeidade. A partir de então, tal a toda percepção e todo gesto, já que a maneira como
apresentaremos algumas destas pistas. nos orientamos no espaço definirá a qualidade de nos-
sos gestos e modos perceptivos. Portanto, anteriormente
Nomeamos a primeira pista para um estudo da cor-
a execução de um gesto ou iniciação de um movimento
poreidade de “Prudência Somática”. Esta diz respeito às
há toda uma multiplicidade de movimentos internos do
operações de interconexão e diálogo entre uma dimensão
corpo chamados por ele de pré-movimento. O pré-mo-
orgânica das formas e uma dimensão inorgânica das for-
vimento apóia-se sobre o esquema corporal e antecipa
ças em meio à exploração somática. Trata-se, como bem
tanto nossas ações como nossas percepções. Ele age por
nos evidenciou Deleuze e Guattari (1999) , de abrir a
meio dos músculos tônicos posturais, também chamados
dimensão do corpo-organismo ao plano das forças afeti-
músculos gravitacionais, responsáveis pelos modos de
vas e sensíveis sem o anular ou destruir. A metodologia
orientação do corpo no espaço. O pré-movimento atua
somática do BMC propõe uma experimentação do corpo
conjuntamente às pré-concepções, já que o pré-movimen-
tomando-o como um território organizado por meio das
to, compreendido como microajustamentos anteriores ao
estruturas orgânicas e arquitetônicas de músculos, ossos,
líquidos, órgãos, pele, em suma, sistemas e tecidos. Nesta 11
 Na abordagem somática Bartenieff Fundamentals, é possível reconhecer (como
prática recorre-se às representações correntes do corpo em Rudolf Laban) o relacionamento do corpo com o espaço, na medida em que
o corpo é percebido como uma arquitetura tridimensional, onde é possível notar
presentes em atlas anatômicos, protótipos de esqueleto e as tensões diagonais e as relações contralaterais do corpo. A “arquitetura do
esquemas que evidenciam localizações e correlações pos- corpo interno” é evidenciada por meio dos princípios de movimento que subli-
nham os exercícios propostos por Bartenieff, como por exemplo, as Conexões
síveis entre partes do corpo em sua arquitetura interna. Ósseas. Estas consistem nas relações entre os marcos ósseos do corpo que criam
verdadeiras formas geométricas internas. Como afirma Fernandes (2006), com
Estas representações concernentes a dados biológi- base nesta arquitetura interna é possível ir para o espaço externo.
cos, fisiológicos e arquitetônicos funcionam como alicer- 12
 Segundo Godard (2006) o esquema corporal, ou ainda esquema postural, repou-
ces para as experimentações do corpo e a consequente sa sobre um sistema de funções motoras que operam de modo pré-reflexivo, sem
a atuação de uma intenção ou representação consciente, gerando nossos movi-
emergência de sensações cinestésicas, táteis e motoras mentos no espaço de modo automático sem a necessidade do monitoramento da
além da eclosão de um imaginário encarnado. Assim, consciência. O esquema corporal serve de tela de fundo às coordenações dos
gestos e movimentos, às percepções e à expressividade.

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Patricia de Lima Caetano

ato de se mover, encontra-se intimamente relacionado a Nesta pausa é possível adentrar as diversas paisagens
hábitos perceptivos e posturais. Faz-se importante escla- da matéria-corpo. Trata-se de um verdadeiro convite à al-
recer que estes microajustamentos dizem respeito a uma teridade da matéria. Esta ganha força de expressão guian-
composição plástica de verdadeiros “coletivos de unida- do o movimento no espaço exterior. Portanto, ao diminuir
des motoras”, os músculos tônicos gravitacionais, que a a intencionalidade objetiva, uma intencionalidade da ma-
partir dos hábitos e rotinas de movimento e percepção téria advém. Segundo Godard (1994), toda modificação
podem cristalizar sua atuação e perder sua plasticidade produzida na relação proprioceptiva, exteroceptiva, e in-
tornando-se repetitivos e automatizados. cluo aqui também, interoceptiva modifica imediatamente
Assim, uma vez desorganizados estes condicionamen- a função tônica de organização dos gestos. Por sua vez,
tos perceptivos, sensitivos e motores torna-se possível a a modificação tônica transforma imediatamente o estado
eclosão de uma zona de contágio com uma materialidade do corpo, ou vice versa. Segundo Godard, a função tôni-
energética, vital e instável – campo de forças e fluxos. ca é contagiosa. Ao afirmar a mesma enquanto “função
Ao atingir o regime inventivo das matérias pode-se ex- tônico-expressiva” e “tônico-afetiva” poder-se-ia então
perimentar devires sensíveis do corpo em deformações pensar que ela produz contágios em sua potência afetiva.
intensivas. Por meio deste processo as formas sensíveis Desse modo, é possível também afirmar que ao di-
eclodem como composição de forças nos materiais. minuir a intencionalidade de um Eu-indivíduo e mer-
A terceira pista é o “Imaginário Encarnado”. Este nada gulhar nas qualidades afetivas e energéticas da matéria,
mais é do que um acoplamento matéria-sensação-imagem. toda uma modificação da função tônica ocorre, gerando
Ao atingir a zona instável da matéria evidencia-se uma mudanças no estado de presença do corpo. É possível re-
potência sensitivo-imagética da própria matéria-corpo. conhecer que, em geral, os movimentos guiados por uma
Assim, por meio dos procedimentos práticos somáticos, intencionalidade qualitativa da matéria vêm acompanha-
num esforço de acessar a matéria-corpo, (seja ela, linhas dos de modificações do estado geral de presença do cor-
ósseas, glândulas, fluidos ou órgãos) parte-se de imagens po, ou, se preferirmos, um “estado do corpo modificado”.
representativas das estruturas corpóreas. Estas imagens A quinta pista chamamos “Atenção Introspectivo-
funcionam como trampolim para o mergulho na matéria- -Receptiva”. Constitui o desenvolvimento de uma atitude
-corpo. Ao mergulhar na materialidade corpórea e fazer introspectiva ao corpo sem, no entanto, perder a conexão
contato com suas sensações, tem-se a chance de experi- com o meio externo. A realização dos procedimentos so-
mentar imagens vividas em meio à exploração somática. máticos em torno da propriocepção, exterocepção e inte-
É possível aqui diferenciar duas qualidades de imagem: rocepção são realizados por meio do foco interno numa
uma imagem-representação e uma imagem-sensação. atitude receptiva aos estímulos provenientes tanto do meio
As imagens-representação constituem imagens abs- interno quanto externo. Portanto, ainda que o foco seja in-
tratas e mentais exteriores à experiência corpórea. Estas terno, desenvolve-se uma atitude perceptiva às informa-
estão relacionadas ao plano transcendente de organi- ções sensíveis que entram e saem. Além das informações
zação. As imagens vividas em meio à experiência são sensíveis é possível reconhecer as relações espaciais entre
chamadas aqui de imagens-sensação. Diferentemente partes do corpo, suas conexões, como também, suas re-
da imagem-representação, a imagem-sensação não é lações (crescendo/abrindo/desdobrando e/ou encolhendo/
relegada ao plano das representações como um suporte fechando/dobrando). A partir desta atenção pode-se então
abstrato, mas antes ela possui em si mesma uma realida- perceber e acompanhar as variações dos estados do corpo.
de material. Ela está relacionada ao plano imanente dos Uma verdadeira capacidade de escuta se desenvolve, além
afetos e das forças. Estas imagens-sensação eclodem jun- de uma capacidade de mergulho aos estados nascentes da
tamente ou posteriormente à modulação das sensações. matéria enquanto campo de forças e fluxos.
São imagens que surgem em meio às afecções do cor- A sexta pista, o “Corpo-Alteridade”, diz respeito às
po. Desse modo, na prática somática, é possível partir de experimentações de um corpo-outro para além do corpo
imagens-representação e chegar às imagens-sensação. O identitário e habitual, ou ainda, a produção da alteridade
imaginário encarnado é essa potência imaginativa ativa no próprio corpo. Trata- se então de acessar uma dimen-
presente no nível micro celular do corpo como também são inventiva e criativa da própria materialidade corpórea.
no nível macro dos órgãos, tecidos e sistemas. Corpo e espaço em dinâmica relacional mútua de co-
Nomeamos aqui a quarta pista, a “Intencionalidade -criação se apresentam como territórios plásticos de uma
da Matéria e Estados do Corpo Modificado”. Trata-se da geografia mutante. Eis que, a partir das experimentações
iniciação do movimento no espaço a partir da motivação sensíveis, o corpo objetivo cede lugar a uma materialida-
interna das próprias matérias expressivas desprendidas de corpórea em constante processo de metamorfose.
da intencionalidade voluntária de um Eu-indivíduo. As A partir dos procedimentos de toque e movimento no
dinâmicas de toque ou movimento podem levar a um nível do pré-movimento, pré-sentidos e pré-percepção é
acesso direto às qualidades energéticas materiais do cor- possível atingir um corpo aberto em comunicação com
po. A partir do trabalho somático no nível dos pré-mo- outros corpos e o meio. Na medida em que as fronteiras
vimentos, pré- sentidos e pré-percepções, abre-se uma porosas do corpo se alargam, a possibilidade de encontro
pausa na intencionalidade objetiva de um Eu, permitindo direto com o outro se faz presente evidenciando uma zona
o desmontar de esquemas sensório-motores habituais e de contágio. Nesta zona, vale ressaltar as potências do cor-
suas funções tônicas. po de afetar e ser afetado, através das quais as qualidades

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Pistas somáticas para um estudo da corporeidade: uma aprendizagem das sensações

intensivas entre as matérias se misturam. Por meio destas Portanto, as informações e imagens de cunho aná-
misturas o corpo se põe em devir: devir-animal, devir-ve- tomo-fisiológico têm por função demarcar territórios,
getal, devir-mineral, devires-imperceptíveis, e outros. pondo-os em ação, em circunstâncias de modulação e
Os procedimentos somáticos (toque celular13 e mo- variação intensiva da matéria corpórea. Desse modo,
vimento) possibilitam um encontro intensivo do corpo quanto mais tem-se a chance de mergulhar nos umbrais
com suas próprias materialidades. O corpo então final- intensivos da matéria, mais e mais é possível enriquecer
mente atinge uma zona de contágio afectivo com os e ampliar o mapa afetivo. Este funcionará como uma fer-
tecidos, líquidos, órgãos e sistemas que o compõem. ramenta de acesso às entradas e saídas na matéria-corpo
Um devir-alteridade do próprio corpo se faz possível na possibilitando o manejo das qualidades expressivas de
medida em que um modo organizativo e representativo cada matéria específica (sistema, tecido, órgãos, fluidos,
habitual de suas matérias (tecidos, órgãos, sistemas) se células). Uma vez acessadas, cada matéria específica fun-
desfaz. Eis que um devir-alteridade da matéria pode es- cionará como uma ferramenta de acesso ao experimenta-
timular outros devires do corpo. dor. Este poderá modular estas diferentes qualidades em
formas, gestos, movimentos e estados modificados do
E finalmente, a sétima pista, a “Cartografia do Corpo
corpo em sua relação com o espaço.
Afetivo” nada mais é do que a construção de um mapa
afetivo do corpo a partir da possibilidade de habitação Conforme afirmamos no início deste texto, as pistas
da sua geografia interna. Esta geografia interna corpó- somáticas para um estudo da corporeidade não intencio-
rea é feita de paisagens qualitativas: texturas, densida- nam apresentar um modelo mas sim, compartilhar refle-
des, rarefações, pesos, velocidades, lentidões, vibrações xões advindas de um campo investigativo norteado pelas
energéticas, sonoridades, imensidões, espaços ínfimos. buscas do corpo em experimentação de si. Tal busca
Ao explorar o ambiente corpo, a cada novo percurso esteve ancorada na convicção de que era preciso, ainda
pela geografia interna, uma nova paisagem qualitativa e nos dias atuais, dar continuidade à redescoberta do corpo
mutante se apresenta. Na medida em que o corpo se ex- iniciada desde meados do século XIX pelas inquietações
perimenta em suas qualidades sensíveis e energéticas, à de pensadores, filósofos, artistas e educadores somáticos.
medida que um novo esquema sensório-motor é incorpo- Por sua vez, tal convicção se encontra baseada no reco-
rado, um novo mapa afetivo se desenha e se integra. Esse nhecimento de que as representações reducionistas em
mapa afetivo do corpo é também intitulado cartografia. torno do corpo objetivo, pragmático e homogêneo ain-
da se fazem presentes e atuantes nos diversos planos da
Trata-se da compreensão do corpo enquanto território
vida, em meio a um sistema de poder e controle social
flexível feito de paisagens materiais qualitativas que en-
perverso, narcisista e massificante. Assim, a partir destas
cerram em si a potência de afetar e ser afetado. A partir
convicções procuramos buscar o corpo em sua vitalidade
dos procedimentos somáticos de experimentação de um
irredutível e desprendida dos protocolos, das verdades
corpo sensível e em movimento constante, é possível en-
pré-estabelecidas e das compreensões absolutas.
tão percorrer este território plástico e, a cada percurso,
desenvolver uma nova cartografia do corpo. Esta nova Referências
cartografia pode significar a ampliação de uma cartogra- BERNARD, M. De la creation choregraphique. Paris:
fia já existente. De fato, nunca se chega ao fim de uma Recherches – Centre National de la Danse, 2001.
cartografia do corpo. Esta consiste num processo de
CAETANO, P. L. O corpo intenso nas Artes Cênicas:
composição ético-estético-político constante e infinito.
procedimentos para o Corpo sem Órgãos a partir dos Bartenieff
Portanto, pode-se diferenciar aqui a cartografia do corpo Fundamentals e do Body Mind Centering. 2012. Tese
afetivo do mapa anatômico. (Doutorado)-Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012.
O mapa anatômico é o mapa das representações for- COHEN, B. B. Uma Introdução ao Body Mind Centering.
mais do corpo enquanto topologia extensiva. Ele é estável Cadernos do Gipe-Cit, - UFBA, Salvador, n. 18, p. 36-49, abr.
e exterior à própria experiência. Já a cartografia do corpo 2008.
afetivo é um mapa dos campos de forças e fluxos energé-
COHEN, B. B. Le processus d’incorporation. In: ______. De
ticos da matéria-corpo enquanto topologia extensivo-in-
l’une à l’autre. Bruxelles: Contredanse, 2010. p. 66-67.
tensiva. Ele é instável e imanente à própria experiência,
ou seja, ele se atualiza na experiência vivida. Cada um DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e
cria para si a sua própria cartografia do corpo afetivo. esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. v. 3.
Nos procedimentos somáticos, recorre-se frequentemen- FERNANDES, C. O corpo em movimento: o sistema Laban/
te ao mapa anatômico no intuito de acessar esta realidade Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo:
intensiva da matéria. No entanto, o apoio em um discur- Annablume, 2006.
so organicista acompanhado de um imaginário biológico, FORTIN, S. Educação somática: novo ingrediente da formação
longe de buscar uma garantia cientificista de verdade, prática em dança. Cadernos do Gipe-Cit - UFBA, Salvador, n.
opera a constituição de um plano de experimentação do 2, p. 42-57, fev. 1999.
corpo no qual o mesmo se constitui por uma substância
GIL, J. Movimento total: o corpo e a dança. São Paulo:
aberta, plural e em ontogênese constante. Iluminuras, 2004.
GODARD, H. Le geste manquant. Revue Internationalle de
13
 O Toque Celular é um procedimento prático realizado nas aulas de BMC. Uma Psychanalyse, Paris, n. 5, p. 63-75, jun. 1994.
qualidade de toque receptiva e acolhedora, uma escuta tátil.

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Patricia de Lima Caetano

GODARD, H. Le geste et sa perception. In: ______. La danse


au XXeme Siècle. Paris: Bordas, 1998. p. 224-229.
GODARD, H. Des trous noirs. Nouvelles de Danse -
Contredanse, Bruxelles, n. 53. p. 56-75. 2006.
HANNA, T. The field of somatics. SOMATICS: Magazine-
Journal of the Bodily Arts and Sciences, v. I, n. 1, Autumn
1976. Disponível em: <https://somatics.org/library/htl-
fieldofsomatics>. Acesso em: 2 set. 2016.
Recebido em: 11 de janeiro de 2017
Aceito em: 2 de junho de 2017

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Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 177-182, maio.-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2298
Dossiê Corporeidade

Transversalidades corporais: o corpo entre clínica, educação e saúde


Fernando Yonezawa, Fabio Hebert da SilvaH
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
Resumo
Este texto de cunho conceitual objetiva apresentar um estudo acerca das concepções de corpo presentes nas obras de Kele-
man e de Deleuze/Guattari, realizando um diálogo crítico que seja capaz de estabelecer uma linha de transversalidade entre
os campos da clínica, da educação e da saúde. Apresentando conceituações destes autores e trazendo ainda alguns elementos
nietzschianos e spinozanos para a discussão, pretendemos mostrar que um corporalismo capaz de transversalizar clínica,
saúde e educação irá implicar-se eticamente em produzir alegria, porém, tomando-a como afeto que norteia o exercício
educacional e promotor de saúde de ampliar a capacidade de agir e ser afetado.
Palavras-chave: corpo; clínica; educação; saúde; transversalidade.

Body Transversalities: body between clinic, education and health


Abstract
This conceptual text aims to present a study about the conceptions of body present in the works of Keleman and Deleuze /
Guattari, accomplishing a critical dialogue that could be able to establish a line of transversality between the fields of clinic,
education and health. Presenting the conceptualizations of these authors and bringing some elements from Nietzsche and
Spinoza to the discussion, we intend to show that a corporalism capable of transversalizing clinical, health and education
will be involved ethically in producing joy, but taking it as affection that guides the educational and health promoter exercise
of expanding the ability to act and being afected.
Keywords: body; clinic; education; heath; transversality.

O corpo, em que consiste? comunidade de desiguais. Daí a importância da palavra


Neste estudo conceitual, gostaríamos de encontrar ‘irredutível’ presente no trecho citado acima: nenhuma
uma linha de transversalidade que passe pelos campos da força esgota o corpo ou o essencializa na forma de uma
clínica, saúde e educação, a partir do corporalismo que substância. “Quando olhamos os corpos, percebemos que
encontramos em Deleuze/Guattari e Keleman. Para isso, não estamos somente diante de uma multidão de corpos,
também iremos trazer alguns elementos do pensamento mas compreendemos que cada corpo é uma multidão”
spinozano e nietzschiano. Ressaltamos que nossa inten- (NEGRI, 2003, p. 170).
ção aqui não é fazer uma crítica a Keleman ou a Deleu- Mas, se é assim, como é que estas inúmeras forças se
ze/Guattari, mas destacar possíveis pontos de diálogo, mantém juntas, ou seja, como o corpo consegue formar
apontando também diferenças nas concepções de corpo. esta unidade que conhecemos? Novamente é preciso des-
É necessário, então, que apresentemos a conceituação de tacar a importância da palavra irredutível: o corpo só pode
corpo que deverá nos nortear numa incursão corporalista. formar uma unidade coesa mantendo a irredutibilidade da
Baseando-nos primeiramente em Deleuze e Nietzs- multiplicidade que o constitui. O problema passa a ser:
che, sabemos que um corpo é um composto heterócli- “como o diferente, o heterogêneo se mantém junto?”
to de forças. “Qualquer relação de forças constitui um (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 138). Nesta passagem
corpo: químico, biológico, social, político” (DELEUZE, do volume 4 de Mil platôs, Guattari e Deleuze buscam
2001, p. 62). Quer dizer, o corpo, ao ser constituído por uma forma de compreender o que faz manterem-se jun-
diferenças, forma “quantidades de força ‘em relação de tos inúmeros componentes distintos, sem que, contudo,
tensão’ umas com as outras”, forma uma multiplicidade. se explique essa “soldagem” através de um modelo arbo-
Por isso, para formar um corpo, só havendo uma combi- rescente, o qual remeta a coesão das forças a um eixo de
nação complexa; sendo a complexidade não só a quali- equivalência para todos os elementos. Por isso é que estes
dade daquilo que é feito de muitas partes diferentes, mas autores lançam o conceito de consistência. As forças se
também por ser feita de relações tensas, em estado de soldam na medida em que acontecem entre elas, “densi-
desequilíbrio. “O princípio da tensão dá liga às singulari- ficações, intensificações, reforços, injeções, recheaduras,
dades fenomenais da vida, afirma a processualidade ener- como outros tantos atos intercalares (‘não há crescimento
gética do universo [...]” (BAIOCCHI; PANNEK, 2007, senão por intercalação’); [...]. [E vejamos, ainda que para
p. 53). É a diferença a função que liga as forças existen- haver preenchimento] “é preciso que haja acomodação
tes no corpo. “O corpo é um fenômeno múltiplo, sendo de intervalos, repartição de desigualdades” (DELEUZE;
composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; a GUATTARI, 1997, p. 140). Então, o encontro de forças
sua unidade é a de um fenômeno múltiplo [...]” (DE- consolida um corpo, cria uma consistência. Enfim, se um
LEUZE, 2001, p. 63). O corpo é imediatamente vários, corpo é relação tensa de forças heterogêneas, a qualidade
de um corpo é dada pela consistência das relações de for-
4
 Endereço para correspondência: Universidade Federal do Espírito Santo, De- ça que o criam, isto é, pela quantidade de diferença que
partamento de Psicologia. Goiabeiras - Vitória, ES – Brasil. CEP: 29075910. ele suporta, sustenta, comporta. Tanto mais consistente
E-mail: fefoyo@yahoo.com.br, fabiohebert@gmail.com
Fernando Yonezawa; Fabio Hebert da Silva

um corpo, quanto possua mais quantidade de diferença. ligaria, ao longo do desenvolvimento de cada sujeito, ao
“O que torna o material cada vez mais rico é aquilo que modo como este foi tratado, em primeira instância, dentro
faz com que heterogêneos mantenham-se juntos sem dei- de sua família, como ele revela quando fala dos padrões
xar de ser heterogêneos; [...]” (DELEUZE; GUATTARI, de agressão à forma corporal (KELEMAN, 1992b). Desta
1997, p. 141). A unidade corporal é diferença e embate. maneira, o que o autor chama de trabalho formativo obje-
Então, ao convocarmos Keleman (1992a, p. 15) para tivaria alcançar um modo pessoal de constituição corporal
este debate, poderíamos dizer que também para o autor pulsátil: os aspectos imediatamente políticos, históricos,
o corpo é a própria materialização de um composto de ecológicos, econômicos de um tal processo parecem sem-
forças, pois é próprio do processo da vida ser conduzida pre vir depois ou ser quase ignorados.
por um “impulso para a organização”. Tais forças, para Contudo, também é verdade que este autor, o tempo
este autor, são sempre ondulantes, pulsantes, peristálti- todo, nos faz redescobrir um novo corpo, que não o da
cas, elásticas e móveis. Por isso, com Keleman, ao invés identidade, mas o do movimento da vida se materializan-
de falarmos em termos de qualidades tensivas, diríamos do em nós. É a partir de Keleman que compreendemos
que a singularidade de cada corpo está na sua pulsação que cada onda pulsátil que nos atravessa constitui em nós
própria. “A pulsação é altamente flexível e adaptável às um novo corpo, o qual pulsa de uma nova maneira.
forças” (KELEMAN, 1992a, p. 26), ou seja, a maneira Assim, vemos que as pulsações sempre correspon-
própria de um corpo pulsar tem relação com as forças que dem a ondas emocionais, afetos que passam por nosso
o atravessam. A pulsação seria, pois, a expressão ime- corpo, ainda que muito sutis. “O projeto do corpo, em sua
diata das maneiras como as forças tensionam o corpo. forma simples, é construir espaços e estruturas para man-
Poderíamos dizer que tanto a qualidade da tensão quanto ter a pulsação, de modo a possibilitar atividades espe-
a pulsação são o que dizem da consistência de um corpo. cializadas” (KELEMAN, 1992a, p. 41). Dizemos, pois,
Para Keleman, sendo corpos, estamos organizados em que os tecidos do corpo são constituições que, em nosso
camadas, bolsas, tubos e válvulas, os quais justamente processo de formação, vão sendo tecidas para dar conta
irão dar passagem às qualidades pulsáteis. O processo de das forças que nos passam. Voltemos, então, a Deleuze e
constituição de tais camadas forma um contínuo que dá Guattari para circunscrevermos filosoficamente uma con-
expressão às forças da vida. E esta natureza pulsátil já cepção de afeto e estudemos também a importância do
existe em nós muito antes que cada um seja um corpo afeto de alegria para a presente discussão.
inteiramente individuado, pois na primeira célula em-
brionária já se encontra esta qualidade pulsátil e rítmica. Alegria: educação, saúde e clínica pelo aumento da
capacidade de agir
No processo de nos tornarmos um corpo, esta primei-
ra e mais elementar pulsação vai se complexificando, até Da obra de Deleuze e Guattari (1997), já é bastante
ganhar múltiplos ritmos e pulsações simultâneas e entre- conhecida a afirmação - inspirada em Spinoza - de que
laçadas. “Essa é a nossa metamorfose: de células ritmica- um corpo se define pelos afetos de que é capaz. Mas,
mente pulsantes para um organismo multirritmicamente é preciso lembrar que os afetos são sempre complexos
pulsante. Esse organismo pode funcionar com padrões e irredutíveis: envolvem uma miríade de linhas afetivas
dissonantes e assimétricos” (KELEMAN, 1992a, p. 19), menores, infinitamente decomponíveis. Deleuze destaca,
ou seja, a vida do corpo não está efetivamente assenta- pois, esta irredutibilidade do afeto às ideias que temos,
da sobre uma harmonia branda. Embora Keleman diga o ou seja, ao trabalho intelectual. O afeto é uma variação
tempo todo que nosso padrão pulsátil forma um senso de em nós, relativa a uma realidade, é uma variação que
identidade, é preciso lembrar que a imensa parte de vida compreende o aumento ou diminuição da capacidade de
do corpo acontece fora de uma constância ou igualdade. agir e da força de existir. Os afetos podem, assim, ser
A simultaneidade com que os processos acontecem no alegres ou tristes, conforme sejam capazes de, respec-
corpo diz do quanto sua inteireza se traça a partir de uma tivamente, aumentar ou diminuir nossa capacidade de
beleza minuciosamente esquizofrênica. agir. Se os afetos são irredutíveis às ideias que temos é
justamente porque são ligados às variações de estados
Para Keleman, por outro lado, até mesmo “a célula
corporais, são passagens, não podendo ser identificados
tem um senso de interioridade” (KELEMAN, 1992a, p.
a um estado dado ou a outro, nem a uma ideia ou ima-
24), com o qual ela dialoga com o meio externo; há toda
gem que se faça mentalmente.
uma inteligência do corpo que norteia nossa vida e esta
inteligência nos forma, nos dá um contorno, uma carne, Acontece que, no encontro entre corpos, estes são
sensações de movimento, de pressão, de crescimento e, afetados seguidamente, ou seja, têm ideias umas depois
especialmente, nos traz emoções. “O metabolismo inter- das outras, sem que necessariamente sejam compreendi-
no é uma forma de pensamento” (KELEMAN, 1992a, dos em sua singularidade ou em sua potência e também
p. 42). Com efeito, encontramos traços de identitarismo, sem que uma delas seja capaz de conjugar o complexo
familialismo e individualismo em Keleman. O senso de de afetos circulantes. Portanto, se tratamos dos corpos a
interioridade atribuído às células seria uma “auto-identi- partir de suas relações e encontros, também envolvemos
dade” destas, derivada da resistência interna feita por cada aí a alma como aquilo que deve apreender tão velozmen-
célula à pressão que vem do meio externo (KELEMAN, te quanto possível aquilo que se passa nestes encontros,
1992a). Com efeito, o autor compreende que a motilidade compreender o corpo em que nos transformamos em um
corporal parte de um senso inicial de identidade, a qual se encontro. Para Spinoza, tanto existe um pensamento li-

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Transversalidades corporais: o corpo entre clínica, educação e saúde

gado ao corpo, quanto ‘um pensamento do próprio cor- 2007, p. 43). O aumento de potência, nos apresenta a for-
po’, uma lógica específica do nível dos corpos que se dá ça da multiplicidade, diríamos, a força de alegria de um
a ser conhecida para o pensamento. Esta lógica própria encontro. Ora, desta forma, quanto mais um corpo tem
é regida por leis de composição e decomposição. Com relações potentes com outros corpos, tanto mais maneiras
efeito, na presença de outro corpo, por leis de composi- de se afetar ele faz existir em sua própria composição,
ção e decomposição, este corpo pode convir ao outro. Se, isto é, mais potente ele se torna, mais sensível ele devém.
num encontro com outro corpo, sinto que ele convém ao O conhecimento aí produzido é um conhecimento in-
meu corpo, estabelece-se com ele uma alegria, há uma tenso, pois não se trata mais apenas de consumir formas
potencialização dos corpos, e o composto formado se tor- prontas de alegria, senão de tornar-se um corpo capaz de
na outro corpo, duas vezes mais forte. produzir e organizar encontros aptos a fornecer aumen-
Cabe, então, apontar o rigor ligado ao conceito de tos de realidade e de capacidade de ação. Neste sentido,
alegria: alegria é uma potência e, como tal, consiste vemos ser a alegria uma espécie de disparate-dispara-
numa quantidade de realidade e, mais profundamente, dor, que nos impulsiona a um conhecimento duplo: o
no aumento da capacidade de agir. “Podemos dizer que conhecimento dos encontros que nos potencializam e
a alegria aumenta nossa potência de agir, e a tristeza a o conhecimento de nossa própria potência de conhecer.
diminui” (DELEUZE, 2002, p. 106, grifo do autor). Com Por isso é que, quando filosoficamente discutimos o cor-
efeito, a alegria é mais uma potência do corpo do que ape- po, necessariamente estamos colocando em pauta aquilo
nas um sentimento psicológico, ela implica na ampliação que ele pode e, principalmente, o quão distante podem
de uma capacidade do corpo e num aumento de quantida- estar os corpos de sua potência afetiva, dependendo do
de de realidade pela qual ele é capaz de ser afetado. modo de vida no qual estão sendo fabricados. A partir do
Trata-se, então, de tomar o afeto de alegria como ma- esforço diferenciante desencadeado com a tentativa de
terial de aprendizagem. Novamente, precisamos ser mi- compreensão dos afetos faz-se a produção das alegrias
nuciosos. É que, nos encontros, os corpos nunca sentem ativas, e aí temos, enfim, posse formal de nossas potên-
um só afeto e mesmo um único afeto é já composto e cias de agir, pensar e conhecer.
complicado, ou seja, quando de um encontro, os corpos Questionamo-nos, pois, o quanto não deveria ser esta
têm sua sensibilidade e pensamento encrespados e, num a verdadeira tarefa de uma educação: proporcionar-nos
primeiro momento, podemos ser afetados de alegria sem a posse formal sobre nossa potência de conhecer, ofere-
que sejamos capazes de compreender esta alegria, sem cendo-nos um conhecimento efetivamente voltado para
que ela nos leve a conhecer os outros corpos e os nos- a vida e para as relações que produzimos. Em lugar de
sos pela sua diferença, sua singularidade. Assim, pode- uma educação paralogística, que nos priva do conheci-
mos apenas consumir passivamente a alegria, sem que mento ao nos empanturrar de informações, poderíamos
ela multiplique nossos afetos ou amplie nossa realidade e ter uma educação afetiva e ética, capaz de nos causar
sem, principalmente, aumentar nossa capacidade de agir. vertigem, porém, infinitamente mais rica e efetivamente
Ora, o que entra em jogo aí é o modo de vida ligado à potencializadora. Além disso, a partir desta interpreta-
maneira como se conhece os encontros. Deleuze, aliás, ção que Deleuze faz de Spinoza, podemos conceber um
lança a ideia de que os modos de conhecimento são tam- processo de aprendizagem que não está mais centrado
bém formas de vida, “porque o conhecer prolonga-se nos na racionalidade de um sujeito, mas se basearia na cons-
tipos de consciência e de afetos que lhe correspondem” trução lenta e experimental de uma sensibilidade afeita
(DELEUZE, 2002, p. 64). à diferença e à multiplicidade. Então, a aprendizagem
Desta forma, quando se vive afetos apenas ao acaso, seria inseparável da ética, isto é, de um questionamento
sem toma-los pela diferença que produzem na capacida- sobre as potências dos corpos e de sua capacidade de
de de agir, se diz que as alegrias aí conseguidas são passi- agir e alegrar-se. Ao invés de uma suposta neutralidade
vas. Mas, se ao contrário, se pode conhecer os encontros da racionalidade, se estaria voltando a potência de co-
pela sua força heterogênica, pela singularidade, aí então nhecer em direção a um posicionamento claro em favor
se constitui sempre um novo conhecimento, uma nova da potencialização dos corpos.
aprendizagem. Ora, o encadeamento de afetos e encon- Além disso, dentro destas conceituações, encontra-
tros produz um modo de vida e, se este encadeamento mos importantes apontamentos críticos para a saúde. Ora,
fica restrito a alegrias passivas, o modo de vida daí decor- se por um lado mostramos que o problema da educação
rente é igualmente passivo e limitado. passa pela construção de modos de conhecer, por outro,
Portanto, o modo de vida passivo é também capaz de fica também claro que na discussão crítica destes modos
alegrias, mas estas estagnam a capacidade de agir. Assim, estão sempre implicados, ao mesmo tempo, as condições
somente a partir do momento em que se dá o salto para se em que se colocam os corpos e suas sensibilidades. Nos
pensar e conhecer os encontros a partir da diferença é que modos de conhecer sempre está envolvida uma condição
se desencadeia uma outra forma de alegria, aquela capaz de tristeza ou alegria, de passividade ou atividade e, por-
de multiplicar ativamente os encontros, organizando-os e tanto, de saúde ou adoecimento.
selecionando-os. “Além disso, quanto mais coisas a men- Lembremos que os signos indicativos da força dos
te conhecer, tanto melhor compreenderá suas forças [...]; encontros são sempre os afetos do corpo. No modo de
quanto melhor compreender suas forças, tanto mais facil- vida passivo vive-se como num brinquedo de carrinho
mente poderá se distinguir a si mesma [...]” (SPINOZA, de bate-bate, determinado por puro caos, numa condição

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que, no limite, se torna clausura. Poder-se-ia dizer, ainda, encontros. Então, o trabalho clínico se inicia na produção
que se vive tal como uma pedra que rola montanha abai- deste contato entre corpo e pensamento. “O importante é
xo: as afecções se colocam em nós, assim como a pedra reconhecer como cada um de nós permite que a excitação
é tomada pela inelutável lei da gravidade e pelos obstá- estimule seu corpo e de que forma: como deixa que a ex-
culos do caminho. Sendo passiva diante destas forças, a citação o percorra [...]” (KELEMAN, 1994, p.30).
pedra só pode ir se decompondo e diminuindo. Note-se Desta maneira, Keleman não se preocupa com as mo-
que não se trata de um problema moral, mas de um ques- tivações que justificariam as posturas afetivas e corporais,
tionamento afetivo e, por isso mesmo, ligado à saúde dos mas o modo como estas vivências, tomadas como com-
corpos. É o poder de afetar e ser afetado, é a potência de posição de forças, organizaram e constituíram um corpo,
agir mais ou menos, de sentir mais quantidade de realida- um modo de usar e posicionar os músculos, os tendões e
de ou menos, que estão em jogo. esqueleto, um modo de fazer fluir as emoções, líquidos e
Ora, o problema da saúde se encontra justamente aí: oxigênio. Ora, se o corpo não consegue se transformar, é
aprender a selecionar os encontros de maneira a produzir porque também as emoções estão estagnadas numa for-
um segundo tipo de alegria, a alegria ativa, é o que é ne- ma, como Keleman diz, estereotipada. Isso quer dizer,
cessário para que os afetos não desemboquem numa vida em outras palavras, que Keleman trabalha num campo
cativa e povoada de impotências. Então, na incapacidade estético e expressivo, preocupando-se com os processos
de conhecer e selecionar os encontros, segundo Spinoza de geração e gestação de maneiras de produzir os corpos.
(2007), se passa facilmente a depender de superstições Esta gestação estética de modos corporais, novamente,
e crenças místicas. Portanto, a saúde se definiria etica- implica sempre um aspecto educacional e, mais além,
mente pelo modo de viver capaz de desenvolver critérios também tem caráter político.
de seleção dos encontros para obter o maior número de Para aprofundarmos um pouco mais a discussão a esse
alegrias possíveis. Este trabalho de seleção, passa pela respeito, recorreremos brevemente a Nietzsche. O filóso-
capacidade de conhecer a si enquanto grau de potência fo alemão nos traz a educação, em primeiro lugar, como
singular e, ainda, conhecer o mundo, enquanto campo de um dos meios pelos quais a humanidade, isto é, a espécie
relações distintas e também singulares. mais do que o indivíduo, acumula grandes quantidades
Então, a partir daqui é possível trazermos mais algu- de forças para que as gerações jovens possam continuar
mas contribuições de Keleman para esta discussão trans- o trabalho dos antepassados, de maneira “que não somen-
versal entre educação e saúde. Será ele que nos permitirá te externamente, mas internamente, organicamente, elas
fazer a deriva em direção à clínica, pois sua concepção de saem mais fortes [...]” (NIETZSCHE, 2011, p. 347). As-
corporificação nos parece ser a descrição minuciosa do sim, este é um primeiro aspecto do conceito nietzschiano
trabalho de sensibilidade e de pensamento que é a produ- de educação que nos é útil para pensarmos as práticas
ção de conhecimento dos encontros. corporais como práticas educacionais: a educação para
Assim como para a leitura deleuzeana de Spinoza, a Nietzsche tem a ver com fortalecimento orgânico e este
questão de Keleman acerca da relação entre vida e corpo termo pode muito bem ser entendido como processo cor-
parece ser a seguinte: como fazer do viver um exercício poral. Além desse sentido, há mais um que nos interessa
de construção e realização de potências, a partir da dife- para relacionarmos os corporalismos e a educação. Para
rença gestada nos encontros e dos afetos aí gerados sem Nietzsche, a educação caminha no sentido da formação
nos perdermos passivamente neles? Esta é uma pergunta dos indivíduos. Assim, diz ele, os poucos educadores
ética e, como tal, também uma pergunta clínica, pois tan- que de fato formam um indivíduo são aqueles os quais
to na clínica como na ética, a problemática se coloca em possibilitam ao indivíduo encontrar aquilo que realmente
torno dos modos de vida e suas respectivas potências. Por é, “o sentido original e a substância fundamental da tua
isso, diz Keleman (1992b), que é preciso descobrir como essência”, a qual, estranhamente, diz Nietzsche (2011, p.
queremos organizar a vida, com sua máxima capacidade. 165), “não está oculta dentro de ti, mas colocada infini-
tamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que tomas
Tão logo, é preciso dizer que, assim como para De-
comumente como sendo teu eu”. Portanto, a educação
leuze, para Keleman há uma conexão direta entre o modo
deve ser um processo formativo, em que os indivíduos
como se vive e o modo pelo qual se produzem os corpos.
possam tornar-se o que são, mas compreendendo que este
Os estados emocionais são afetos das pulsações corpo-
“o que são” não está dado, todo feito como quisto per-
rais, as quais fluem pelo corpo, pelas suas câmaras, ca-
dido em um interior. Pelo contrário, aquilo que é a mais
madas de tecido, tubos e líquidos, formando correntes
forte potência de cada indivíduo é encontrado através de
contínuas excitatórias; “a excitação é a base da experiên-
um processo formativo, é construído, porque está além,
cia. É conhecimento, informação” (KELEMAN, 1992b,
na superação de si, no devir de uma força insuspeita e na
p. 94). O ponto crucial para este autor é que, no caminho
desconstrução do que se supõe ser “o Eu”.
da existência, as forças que se imprimem sobre o corpo e
o constituem exigem sempre uma mudança de sua forma. Destaquemos, então, que em Keleman, também en-
Só que esta desenvoltura da materialidade corporal não contramos noções que dialogam com esta concepção
acontece se não vem acompanhada de uma respectiva nietzschiana de formação-educação. Ora, a chamada
alteração nos modos de sentir, pensar e agir nas experi- “jornada formativa” (KELEMAN, 1995, p. 97) não é ou-
ências. Em termos spinozanos, seria dizer que a mudança tra coisa senão um processo contínuo de auto-atualização
corporal precisa ser imanente ao pensamento acerca dos e realização do próprio potencial, no qual cada um de

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Transversalidades corporais: o corpo entre clínica, educação e saúde

nós está implicado enquanto parte do processo das forças ritorialização generalizada do campo social. As proprie-
da vida ela mesma. O processo formativo é um processo dades se desconstroem, os trabalhadores se descolam das
educacional, em que os indivíduos aprendem modos de propriedades e são tornados livres para vender sua força
organizar seu corpo para desenvolverem suas potências. de trabalho, fluem por toda parte elementos desterritoria-
É nisto que reside alguma aproximação entre as concep- lizados. Mas, a principal desterritorialização é a da moe-
ções de formação em Nietzsche e Keleman. Enquanto da, que no capitalismo se torna “equivalente geral” com
para Nietzsche educar é formar, para Keleman, formar é “valor particular qualquer” (DELEUZE; GUATTARI,
educar; mas, para ambos, o processo formativo pode es- 1976, p. 287). A moeda se torna dinheiro e passa a portar
tar diretamente ligado ao estabelecimento de uma força, um valor abstrato axiomatizante, ou seja, qualquer fluxo
ou seja, à produção de um corpo. ou coisa pode ganhar um valor, porque o valor dos valo-
Porém, para Keleman a formação se dá como um res dentro do capitalismo é um signo sem conteúdo, uma
contínuo de experiências corporais que se relacionam imensa superfície que engancha tudo sobre seu tecido. O
com um tipo específico de força, as emoções. Por isso é capitalismo opera uma paradoxal lógica: ele é uma for-
que Keleman (1992a, p. 166) também chama o seu tra- mação de natureza esquizofrênica, não homogênea, que,
balho clínico de “educação somática”, entendido como ao fim, constitui uma única e mesma lógica, um único e
um modo de agir junto às vidas das pessoas, no senti- mesmo processo de produção e economia (DELEUZE;
do de auxiliá-las em seu processo de auto-organização GUATTARI, 1976). E como o capitalismo se torna capaz
e aprendizagem de “critérios que o indivíduo usa para de tal paradoxo? Ora, se consideramos que nossa contem-
se autoadministrar”. A jornada formativa é um caminho poraneidade funciona sob a égide do “capitalismo mundial
de práticas e aprendizagens de modos de compor e de- integrado” (CMI), cuja “existência semiótica insere-se
compor formas de vida emocional, a partir da experiên- sistematicamente no conjunto dos movimentos locais de
cia corporal. Então, por um lado, o processo formativo desterritorialização técnicos e sociais que ele ‘diagrama-
clínico é necessariamente educacional e, por outro, esta tiza’ e reterritorializa nas formas de poder dominantes”
educação se ancora primeiramente na construção de ex- (GUATTARI, 1981, p. 198), se vivemos assentados hoje
periências e experimentações corporais. Assim, a forma- sobre a fragmentação e ruina das referências, acompanha-
ção pode ser entendida como um trabalho clínico, sendo da de uma velocidade cada vez mais vertiginosa de re-
simultaneamente educacional e promotor de saúde. colocação de formas anacrônicas, fica fácil compreender
como, no CMI, estamos modulados por uma lógica que,
Corpolítica: capitalismo e questões para um simultaneamente, nos impele todos a uma exterioridade
corporalismo ético-estético aniquilante e nos impinge pacotes pré-fabricados de ma-
Contudo, é preciso politizarmos e complexificarmos neiras de viver, sentir e agir. Acerca desta vertigem vivida
tais concepções, destacando que esta jornada formativa é no CMI, Favre (2010) nos alerta para o perigo constante
tecida num campo social, sendo atravessada por poderes de nos tornarmos consumidores de fast forms, imagens e
e forças de diversas ordens: culturais, midiáticas, histó- formas prontas de estilos de vida e de corporificação, que
ricas, tecnológicas, econômicas, biológicas etc. Reich são oferecidas pelo mercado como socorro à desagrega-
(2001) mostrava, por exemplo, que existia, no momento ção que somos passíveis de sofrer repentinamente. Daí a
de ascensão do nazismo, um caráter narcisista na modu- importância de adotarmos uma postura crítica quanto a
lação corporal e afetiva da massa alemã como um todo, estereotipias no modo de corporificação.
o que possibilitava o sentimento nacionalista através da Assim, Keleman, destaca sempre a importância de
identificação com a ideia de grandeza da nação. Seria nos perguntamos sobre “Como?” as experiências se cor-
em função de terem ignorado as profundas raízes neuró- porificam em nós. A importância de nos perguntarmos
ticas da sociedade que as tentativas revolucionárias dos “Como?” o corpo se produz nas experiências está no fato
partidos esquerdistas teriam falhado. Acontece que, para de que, a partir das descobertas desta estilística da plasti-
Reich, em uma sociedade que se sustenta sobre valores cidade corporal, se pode acessar passo a passo as ordens
repressores à sexualidade, se constroem Estados necessa- dentro dos eventos e, dessa maneira, romper com estere-
riamente autoritários, porque os indivíduos, não podendo otipias (KELEMAN, 1994). A pergunta “Como?” inau-
encontrar satisfação de sua libido, não conseguem tam- gura um processo de auto-afetação e autogestão, abre-se
bém ter uma regulação natural de seus afetos. Esta pe- a sensibilidade para estar presente aos próprios processos
quena passagem por Reich nos interessa para mostrarmos corporais. Ademais, o estudo do como, envolvendo os
que, originalmente, há uma preocupação política muito afetos corporais, nos dá a exata percepção de que a vida é
presente no corporalismo, a qual foi bastante esquecida um processo, um contínuo de intensidades, algo que, com
pelo olhar exclusivamente clínico dos posteriores tera- Spinoza chamaríamos de encadeamento. Todo encontro
peutas corporalistas, incluindo-se aí Keleman. gera o que Keleman chama de imagem somática, isto é,
Baseando-nos nas concepções políticas de Deleuze e uma composição e forma que o corpo encarna através de
Guattari, entendemos que, em primeiro lugar, o elemento seus músculos, órgãos, nervos e vasos, naquela experiên-
político do trabalho junto ao corpo se encontra em en- cia. Segundo o autor, esta imagem corporal tem aspectos
frentarmos o modo de produção de vida do capitalismo. externos (sociais) e internos (KELEMAN, 1995), os quais,
Dizem Deleuze e Guattari (1976) que o capitalismo opera diríamos em linguagem spinozana, afetam os outros cor-
necessariamente a partir de uma descodificação e dester- pos e também geram uma auto-afetação do corpo consigo

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Fernando Yonezawa; Fabio Hebert da Silva

mesmo. O mais importante no trabalho clínico é, pois, que Referências


os corpos possam contatar este afeto de si, ou seja, clini- BAIOCCHI, M.; PANNEK, W. Taanteatro: teatro coreográfico
car consiste em refletir como o corpo se afeta a si próprio de tensões. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.
nos encontros, conhecer a natureza destes afetos e em que
constituição corporal estes afetos nos colocam. O enca- DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Porto: Rés-Editora,
2001.
deamento de diversos modos de composição corporal, ou
a produção contínua de corporificações é que perfaz um DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta,
modo de vida. Segundo o autor, não há respostas para este 2002.
exercício, há apenas novas maneiras de corporificar nos- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo: capitalismo e
sas experiências. Trata-se de um trabalho ativo que liga esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
os afetos que passam por nós com o corpo que podemos
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e
nos tornar – devir – em cada encontro. Nesta ação clínica, esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4.
se estaria, portanto, também realizando uma intervenção
político-estética, na medida em que, ao se desconstruírem FAVRE, R. Trabalhando pela biodiversidade subjetiva.
Cadernos de Subjetividade, São Paulo, p. 108-123, 2010.
estereotipias nos modos de expressão e corporificação, se
Disponível em: <http://www.atelierpaulista.com/wp-content/
estaria também desarranjando as formas prontas impostas
uploads/2011/01/Cadernos-de-Subjetividade-2010-Nucleo-de-
no capitalismo e abrindo espaço para a singularização dos Estudos-da-Subjetividade.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2017.
corpos e respectivos modos de viver.
GUATTARI, F. Revolução molecular: pulsações políticas do
É preciso destacarmos, pois, que a pergunta “Como?” desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
se refere a modos, maneiras, e subentende o movimen-
to do tornar-se, do devir; “Como?” não tem por resposta KELEMAN, S. Anatomia emocional. São Paulo: Summus,
a descoberta de essências e substâncias, para as quais a 1992a.
pergunta seria “O que?” e o verbo seria o “ser”. Ao ques- KELEMAN, S. Padrões de distresse. São Paulo: Summus,
tionarmos os modos, através da pergunta “Como?” temos 1992b.
por resposta, então, o desenvolvimento de estéticas e es- KELEMAN, S. Realidade somática. São Paulo: Summus,
tilos. Portanto, para Keleman, como para a interpretação 1994.
deleuzeana de Spinoza, conhecer os afetos do corpo é um
KELEMAN, S. Corporificando a experiência: construindo uma
trabalho do pensamento sobre si próprio, afinal, facil-
vida pessoal. São Paulo: Summus, 1995.
mente percebemos que se trata de um processo afetivo,
no qual se mexe com ondas nervosas e com a sensibili- NEGRI, T. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A,
dade que se volta para si própria para compreender-se, 2003.
aprender sobre si. Clínica é, pois, o processo de singulari- NIETZSCHE, F. Escritos sobre Educação. São Paulo: Loyola,
zar os corpos em sua potência de afetar e ser afetado, em 2011.
sua potência de alegrar-se e agir: processo ético, estético REICH, W. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo:
e político, mas também educacional e promotor de saúde. Martins Fontes, 2001.
Ora, se a alegria é mais o aumento da capacidade de SPINOZA, B. Tratado da Reforma do Entendimento. São
agir do que um sentimento psicológico, se ela também Paulo: Escala, 2007.
implica em mais realidade, então o trabalho clínico é
compromisso ético com a produção de modos de vida Recebido em: 16 de março de 2017
ativos, tarefa educacional de fabricar conhecimento para Aceito em: 9 de junho de 2017
que os corpos possam ser expressos em mais quantidade
de realidade e exercício de promoção de saúde, esta en-
tendida como construção e seleção de alegrias.
Enfim, um corporalismo que transversalize clínica,
saúde e educação não pode se furtar nunca de pensar-
-se como prática política a qual, na tessitura de estéticas
singularizantes, se desafie a desviar-se das estereotipias,
especialmente as secretadas pelo modo de produção de
vida do capitalismo. Uma tal prática tenderá, pois, a as-
sumir a alegria como afeto norteador e referência ética,
porém, compreendendo-a como aumento da capacidade
de agir e ampliação dos afetos de que um corpo é capaz.

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 177-182, 2017
Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 183-190, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2312
Dossiê Corporeidade

Corpo, metamorfoses, cuidados:


uma formação possível com profissionais de saúde
Thiago de Sousa Freitas Lima,I Tulio Alberto Martins de Figueiredo,II Marcia Oliveira MoraesI, H
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
I

II
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
Resumo
Este artigo apresenta proposta de intervenção no campo da formação em saúde denominada “clínica da metamorfose”. O campo
para o estudo foi um grupo de pesquisa em saúde, vinculado a um Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, de uma uni-
versidade pública. Os participantes eram profissionais, estudantes e pesquisadores de diversas áreas da saúde. Foram utilizadas
experimentações com movimentos de consciência corporal, diário de campo e relatos escritos pelos participantes após a vivência.
O cultivo do material se deu a partir de uma política narrativa que articulou o diário de campo dos movimentos vivenciados com
as falas e relatos dos participantes. A intervenção propiciou um espaço de reflexão que levou os participantes a relataram maior
capacidade de atenção às suas relações cotidianas e de trabalho, aumento de sensibilidades e transformação de comportamentos
padronizados em novas formas de se articular.
Palavras-chave: formação em saúde; corpo; cuidado.

Body, metamorphoses and care:


a possible formation with health professionals
Abstract
This article presents an intervention proposal titled “metamorphosis clinic”, fulfilled in the realm of health education. The field
for the study was a health research group, linked to a Post-Graduate Program in Collective Health, of a public university. Partici-
pants were professionals, students and researchers from various health areas. Experimentations were used with movements of body
awareness, field diary and reports written by the participants after the experience. The cultivation of the material was based on a
narrative policy that articulated the field diary of the movements experienced with the speeches and reports of the participants. The
intervention provided a space for reflection that led the participants to report greater capacity for attention to their daily and work
relationships, increase of sensitivities and transformation of standardized behaviors into new ways of living.
Keywords: health formation; body; care.

Introdução industriais e históricos. Logo, o modelo pedagógico deve


O presente artigo visa atravessar algumas questões ampliar o conceito de saúde com inovações politico-pe-
que colocam em relação corpo, cuidado e a problemática dagógicas, fugindo da concepção informativa e represen-
da formação em saúde. Para tanto, como fio condutor, tacional. (CARVALHO; CECCIM, 2009).
será relatada uma intervenção1 realizada em um grupo de A formação em saúde se encontra, não raras vezes,
pesquisa de um Programa de Pós-Graduação em Saúde impregnada de pressupostos representacionais que se
Coletiva, frequentado por profissionais e estudantes da espelham no pensamento moderno2 de uma reprodução
área da saúde. Trata-se de abordar o tema da formação da realidade que se dá a priori. Trata-se, nesse caso, de
em saúde a partir de sua dimensão sensível. Tentamos, supor que a formação ocorre, exclusivamente, através da
assim, tencionar a emergência de estudos e dispositivos transmissão de informações que representam, em última
que apontem para promoção e problematização das tec- instância, uma realidade dada de antemão. A relação en-
nologias relacionais como parte constitutiva das políticas sino-aprendizagem segue uma lógica unilateral na qual
e formações de profissionais em saúde. a avaliação baseia-se na capacidade de absorção e de re-
Sabe-se que a educação em saúde é um campo mul- produção do conteúdo (CARVALHO; CECCIM, 2009).
tifacetado, para o qual convergem diversas concepções, Tais concepções cognitivas influenciam diretamente nas
das áreas tanto da educação, quanto da saúde. O conceito práticas em saúde. Acumulam uma tradição caracteriza-
de saúde, por sua vez, lida com problemas complexos, da por um formato centrado em conteúdos herméticos e
que se referem ao modo de viver, sofrer, adoecer e morrer numa pedagogia de transmissão de informações descone-
da população, superando os limites do enfoque orgânico/ xas entre as disciplinas. Conforme discutem Carvalho e
biológico (ALMEIDA FILHO, 2000). Em nossa perspec- Ceccim (2009, p. 143):
tiva, o conceito de saúde alcança dimensões mais amplas Os fatores de exposição às aprendizagens estão centrados
com interseções de fatores sociopolíticos, econômicos, no professor, no livro de texto e nos estágios supervisiona-
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Departa- dos e não na produção de experiência de si e de apropriação
mento de Psicologia. Campus do Gragoatá, s/nº Bloco O, sala 310 - São Domin- dos entornos da vida; os currículos são organizados em
gos. Niterói, RJ – Brasil. CEP: 24210-350. E-mail: lima.thiagosousa@hotmail.
com, tulioamf.ufes@gmail.com, mmoraes@vm.uff.br
1
 Tal intervenção é parte integrante do trabalho de pesquisa: “Por uma clínica
dos poros: conhecimento e práticas em saúde a partir do exercício de um corpo 2
 Definimos pensamento moderno no sentido proposto por Bruno Latour (1994):
sensível” (LIMA, 2014). como um conjunto de práticas que separam natureza de um lado, sociedade de outro.
Thiago de Sousa Freitas Lima; Tulio Alberto Martins de Figueiredo; Marcia Oliveira Moraes

unidades disciplinares conteudistas e não em unidades de de um estado de saúde idealizado, mas antes uma certa
produção pedagógicas [...]. reorganização possível do que conta ou não conta como
Por meio destas discussões, revela-se a importância saúde possível naquele cenário (MANSO, 2015).
da investigação de dispositivos que possam promover O direcionamento do cuidar opera no campo da mi-
um processo formativo compromissado com a garantia cropolítica, no exame da relação entre as nuances afetivas
das condições sociais necessárias à saúde da comunidade do encontro. Em seu sentido prático, trata-se de suportar
(CARVALHO; CECCIM, 2009). um diálogo mais interessado possível com problemas
Nesse sentido, Paim (2008), nos alerta para a necessi- complexos, que se referem ao modo de viver, sofrer, ado-
dade de problematização do objeto das práticas de saúde ecer e morrer da população.
coletiva e a reflexão sobre o conceito de saúde, impondo A dimensão do cuidado caminha com desestruturas
redefinições na formação básica dos profissionais em saú- - implica em mutações corporais tanto dos profissionais
de. Seguindo sua análise, o autor menciona a urgência na quanto dos usuários para compor vínculo e direção eman-
criação de novas estratégias que superem o “modo esco- cipatória (PIRES, 2005). Instaura-se no jogo de corpos a
lar” e a hegemonia individualista de encarar a saúde. No- principal ferramenta disponível para efetivar este vínculo.
vas abordagens formativas que instrumentalizem o sujeito Considerar outros elementos que participem da for-
para o atendimento das coletividades. Nesse caminho, tal mação de um corpo permite pensá-lo como plano onde se
escrita busca conhecer novas apostas que podem ser alia- agenciam forças que o hierarquizam, segmentam e tende-
das na formação de um profissional em saúde coletiva. mos a naturalizá-las.
Nesse contexto, segundo Ayres (2004), presenciamos É nessa perspectiva que o construto “cuidado de si” é
o surgimento de uma série de novos discursos no campo definido, referindo-se às ocupações e técnicas corporais
da saúde coletiva, tais como a promoção da saúde, vigi- que ativam a construção, a manutenção e a transforma-
lância da saúde, saúde da família, redução de vulnerabi- ção de si. O cuidado opera como uma categoria que mais
lidade, entre outros. Contudo, uma efetiva consolidação expressivamente consegue nos colocar em sintonia com
dessas propostas tenciona por transformações bastante esse plano de fluxos e forças, sem começo nem fim, no
radicais no nosso modo de saber e agir em saúde, espe- qual o ser do humano resulta de sua ocupação de si como
cialmente no que diz respeito às suas caixas de ferramen- resultado de si (AYRES, 2004).
tas conceituais (MERHY, 2002).
Neste artigo, apresentamos alguns efeitos de uma in-
Fazer a discussão da formação em saúde longe de tervenção realizada com profissionais de saúde, seguin-
uma perspectiva conteudista ou representacional, nos do inspirações cartográficas. De acordo com Passos,
leva a repensar também as práticas de cuidado em saúde. Kastrup e Escóssia (2010) e Rolnik (2006), a carto-
Nesse ponto, esse artigo segue as pistas abertas por Man- grafia como método, não pressupõe uma orientação do
so (2015) quando afirma que o cuidado é prática coletiva, trabalho do pesquisador de modo prescritivo. Há uma
distribuída e localizada. A autora propõe que o campo inseparabilidade entre conhecer e fazer, intervir e pes-
da saúde coletiva, instruído pelos pilares do SUS, abre quisar. Considera-se que sujeito, objeto e conhecimento
a possibilidade de se redesenhar os sentidos do cuidado são efeitos coemergentes do processo de pesquisar. Tal
na direção de uma prática que envolve articular humanos processo de coemergência se dá pelos agenciamentos
e não humanos, de forma situada e distribuída. Citando instalados na experiência enquanto campo intensivo da
Mol, Manso menciona que na prática do cuidado produção de realidades. O método que embasou a inter-
[...] não se pretende definir de antemão como será o cuidado venção que ora apresentamos afirma este conceito em
e os seus efeitos. Esse é entendido como um processo e, sua radicalidade ao ativar corpos em movimento, ali-
por isso, não tem fronteiras claras, é aberto […] O cuidado mentando desassossegos e perturbações. Movimentos
é uma questão de tempo. Ele não é um produto que passa que trabalham na quebra de formas instituídas para dar
de mão em mão, mas sim é uma questão onde várias mãos expressão aos processos de institucionalização e gera-
trabalham juntas, ao longo do tempo em busca de um resul- dores de um conhecimento sensível.
tado [...] Cuidado é [...] uma interação que retorna e retorna
Para além de interpretações, esta manobra metodo-
em um processo continuo [...] O processo de cuidado en-
lógica permite pôr em discussão a relação do corpo com
volve um time, profissional, maquina, medicação, corpos,
suas mobilizações. Treinar modos de expressão coletivos
pacientes e muitas outras coisas relevantes e as tarefas são
de um corpo atravessado por questões institucionais e
divididas entre os membros desse time sempre em constan-
te mutação (MOL apud MANSO, 2015, p. 161).
científicas e que ganha mais corpo ao descrever o que
lhes é proposto: como é ser afetado por uma experiência.
Por definir-se como prática coletiva, relacional, o Buscamos por dispositivos que não fracionassem corpo
cuidado se qualifica por um conhecimento que não cria – consciência; interior – exterior, mas que se voltassem
produtos, não gera procedimentos metódicos, não cria para a experiência e seus rastros de cuidado.
generalizações, posto que só cabe como prática local, te-
Optou-se por trabalhar com o conceito de interven-
cida no e com o território. Mais do que tratar de um obje-
ção como um difuso de teorias, pragmáticas, estratégias,
to, a intervenção em saúde se articula com cuidar quando
táticas e técnicas que se baseiam na participação ativa
o sentido da intervenção passa a ser não apenas o alcance
e inventiva dos sujeitos por meio de técnicas artísticas,
pedagógicas e psicoterápicas. A finalidade de tais proce-

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Corpo, metamorfoses, cuidados: uma formação possível com profissionais de saúde

dimentos consiste em fazê-las proliferar e conceber ou- tuídos. Aparelhos que demarcam espaços e constrangem
tras formas de existir, sempre singulares e performativas agitações para formar corpos/alunos.6 Não se trata ape-
(BAREMBLITT, 2010). nas de ganhar espaço, mas retirar para multiplicar.
Assim, entendemos que colocar o corpo em movimen- É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
to é performar um tipo de conhecimento como aliado na dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples,
produção de saberes que deem conta das singularidades com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se
vividas no cotidiano dos processos de trabalho em saúde. dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do
A montagem dessa intervenção consistiu em diversos múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o úni-
exercícios afetivos e dinâmicas corporais a serem narra- co da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1 (DE-
das, que se intercruzaram em um processo de continuum LEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).
movimento. Retirar as carteiras vistas como a única possibilidade
Para acompanhar os efeitos gerados por tais experi- de ser sala de aula para multiplicar gestos. Retirar o que
mentações foi pedido aos participantes, após a vivência, enche para deixar caber a diferença. Uma sala de aula
que mandassem relatos das experiências3 por e-mail. se desfigura. As carteiras dão lugar para balões, muitos
Além disso, nos valemos de anotações em um diário de balões, um tapete de balões que parecem convidar outros
campo com inspirações cartográficas. movimentos. O cenário também muda com novos nuan-
ces de luz e imagens.
A sistematização do cultivo e da análise dos dados se
deu em forma de narrativa. A narrativa tentou se colocar Escuro
ao lado do sujeito, desta forma todos os modos expressi-
A luz apenas de uma foto de barata projetada na pare-
vos dos participantes foram alocados junto com a elabo-
de, inspiração da obra A metamorfose (KAFKA, 1994),
ração do diário de campo. Não se distanciou para análise
músicas instrumentais circulam pelas paredes atravessan-
os textos e as falas dos sujeitos. Ao contrário elas parti-
do órgãos. Braços e barrigas começam a entrar na sala,
ciparam de todo o texto científico impondo outro sentido
porém algumas cabeças parecem ficar paradas na porta até
para o rigor metodológico, efetivando um método coleti-
compreenderem este novo cenário. As novas tonalidades e
vo e participativo em todas as etapas.
texturas parecem aos poucos acolher os participantes.
Todos os participantes foram convidados à realiza-
ção de trabalhos e vivências corporais descritas como Quando as luzes se apagaram senti que já era hora de me
investigação proposta, não havendo critérios de inclusão deixar levar, o escuro da sala passava uma sensação de
e exclusão. O encontro foi denominado de “clínica da conforto e logo no aquecimento fiquei bem, o corpo já es-
metamorfose”4 e seguiram uma proposta de experiência tava aberto para a experimentação. Os balões deixavam a
sala bem interessante e pareciam se misturar com a gente,
corporal e mobilização de cargas afetivas.5
já eram parte de mim (GLABELA, 2013).
Clínica da metamorfose
O grupo inicia o encontro pisando em bolas de tênis.
E hoje, como foi? Minhas mãos estavam fazendo carinho Um lado por vez, os participantes transferem o peso do
no papel para poder aproximar e deixar aqui algo do corpo para o pé. Pisando sobre a bola de tênis e deixando
que foi sentido. Porque é mais que as palavras expostas a mesma percorrer por toda sola, lentamente os ossos do
(LÚNULA, 2013). pé se abrem, os músculos centralizam e relaxam, o dese-
Dentro de um Programa de Pós-Graduação em Saú- quilíbrio desperta concentração no movimento. Aumen-
de Coletiva as carteiras são cuidadosamente remanejadas ta-se o espaço interno - é preciso descobrir brechas em
para o corredor. Na intenção de conscientizar a mecani- corpos que já se conhecem travados.
zação dos gestos, lubrificar as articulações do corpo e Muita dificuldade em me inserir e me expressar, sou muito
para deixar o que cabe no invisível transbordar em nossa travado. Dito isso, passada a primeira dificuldade de rea-
pele, foi preciso “empurrar” alguns equipamentos insti- lizar a tarefa, fui me permitindo sentir meu corpo e meus
sentimentos que aproveitavam a “brecha” vir a tona (PTE-
RIGÓIDEO, 2013).
3
 Trechos dos relatos de experiências que nos foram enviados por e-mail serão Não confrontamos as relações que nos travam de forma
apresentados a seguir, sempre em itálico, a fim de destacá-los do texto. direta, trata-se de liberar novas áreas (BEY, 2011). Nesse
4
 A escolha do nome “clínica da metamorfose” para a intervenção proposta deveu-
-se à afirmação de que a prática de experimentação corporal possui efeitos clí- sentido a estratégia não está em intervir em um corpo que
nicos transformadores, engendrando mudanças corporais-subjetivas importantes trava para produzir um corpo destravado, essa é uma lógi-
nos participantes. Deixaremos para outra oportunidade a discussão acerca das
relações entre prática clínica e pesquisa porque consideramos que essa temática ca de sobreposição de poder, alternância de estados conhe-
foge ao escopo desse artigo. cidos. Apostamos no exercício de um corpo articulado, na
5
 Como uma das considerações éticas, o projeto foi encaminhado ao grupo de pes- intensificação das potências em estados de devir.
quisa Rizoma - Saúde Coletiva e Instituições do Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva da UFES para anuência. Em seguida o projeto foi submetido à Pla-  Ao trabalhar na perspectiva do corpo como objeto e alvo do poder Foucault
6

taforma Brasil e obteve sua aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) do (1997) disserta a respeito da disciplina como um diagrama de forças na produção
Centro de Ciências da Saúde desta Universidade sob Certificado de Apresentação de corpos dóceis. A disciplina opera controlando a distribuição dos corpos no
para Apreciação Ética (CAAE) número: 5762113.6.0000.5060. De acordo com o tempo, espaço, gestos e composição de suas forças. A sala de aula se utilizaria de
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os nomes dos sujeitos não equipamentos como as carteiras e os arranjos em filas para determinar o lugar que
serão revelados em nenhum momento do artigo. Com vias a esta preservação e sus- se ocupa e a distância que separa cada aluno no intuito de hierarquizar, individua-
tentando a intenção de experimentar formas de acesso ao corpo utilizamos nomes lizar e organizar um trabalho simultâneo para todos. A sala de aula seria um gran-
não usuais de acidentes anatômicos para representar cada participante. de quadro único com corpos talhados por toda uma anatomia política do detalhe.

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Thiago de Sousa Freitas Lima; Tulio Alberto Martins de Figueiredo; Marcia Oliveira Moraes

Ao permitir sentir o corpo e os sentimentos, aprovei- do quadril, o corpo ensaia uma possibilidade de ser um
tando as brechas, cultivamos uma disponibilidade aos canal de passagem, deixar o ar passar sem obstruções,
afetos que passam a ocupar territórios ainda não registra- experimentar fluxos aéreos e todas as trocas que a respi-
dos. Ou seja, rastreamos sensações que incidem desper- ração pode ativar.
cebidas pelo controle da consciência. Trabalhamos com O corpo é tão-somente um conjunto de válvulas, represas,
atenção ao momento presente, sentir a lógica do trabalho comportas, taças ou vasos comunicantes: um nome próprio
em ato é experimentar a duração, para além do que sou para cada um, povoamento do CsO, Metrópoles, que é pre-
ou do que posso ser, os afetos habitam a duração enquan- ciso manejar com o chicote. O que povoa, o que passa e o
to multiplicidade qualitativa (BERGSON, [1988]). que bloqueia? (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 13).
Entendemos multiplicidade qualitativa como um A partir daí os balões se integram aos movimentos.
campo de forças que, ao se agenciarem, nunca nos tocam Utilizando os mesmos realizamos massagens em todas as
da mesma forma - o tempo vivido não seria uma sucessão camadas do corpo. Iniciando com as camadas dos órgãos
de instantes idênticos, “a duração é o que difere de si” internos, músculos e ossos um barulho toma conta da
(DELEUZE, 1999, p. 103). sala. Apertando contra si os balões iniciam um ranger es-
Por alguns momentos me desloquei dos movimentos es- tridente e afloram uma imagem de objetos enferrujados.
tereotipados, conhecidos e senti a criação brotar de den- Parecia que os balões estavam abrindo dobras corroídas,
tro de mim. Foi um momento singular, único, e ao mesmo portas antigas de lugares mórbidos.
tempo que parecia durar alguns poucos minutos, acho eu! Silêncio e sutileza.
(GRÁCIL, 2013).
A bola parece fazer carinho, aparecem rostos sere-
Portanto, operamos com a estratégia de liberar novas nos, não trabalham mais com uma raspagem bruta. Os
áreas para variarmos de nós mesmos, não brigar espe- movimentos ganham tom de espontaneidade e leveza.
cificamente com um músculo tenso, mas experimentar Parecem intuir que o desejo habita a periferia. “O mais
movimentos que escapam da serialização. Movimentos profundo é a pele” (DELEUZE, 2009, p. 106). Delicada-
estranhos que produzem consciências de pequenos acon- mente corpos mudam em forma de suspiro e a mudança
tecimentos capazes de romper com categorias e expecta- não grita, sussurra.
tivas pré-estipuladas. Tais experiências constroem pontes
Outro exercício proposto é de explorar os movimentos
de sentidos que nos surpreendem com novos ritmos, sua-
das articulações com a bola. Descobrir movimentos com a
vidades e formas de agir.
bola de levantar e deitar. Em seguida estender esses gestos
Tivemos muitas produções e ao mesmo tempo me sentia um com a bola no mais alto e no mais baixo possível. Investir
pouco esgotada com tudo se resolvendo ao mesmo tempo, nas recombinações das dobras do corpo repetindo os pla-
uma espécie de “stress” de satisfação. E enfim chegou a nos (alto - baixo) diferindo nos gestos. A única repetição
sexta e fui aberta para a experimentação. Senti que preci- possível é a repetição da diferença (DELEUZE, 2006).
sava me “libertar” (ou tentar pelo menos). Fui bem tran-
quila e disposta para a experimentação, e também não Movimentos de ondulação7 invadiam a sala produ-
tentei prever o que poderia acontecer. Deixei rolar. Sai da zindo quebras de rigidez e gestos robóticos. Trazemos
experimentação com a sensação de estar mais leve e mais um clima leve e agradável aos gestos. Além disso, os
consciente do meu corpo. De onde doí e onde não doí. Do movimentos de ondulações que surgiam aparecem como
que preciso trabalhar mais e até onde posso ir ou ir além. formas de resistir aos movimentos retilíneos que a cida-
As experimentações no geral me ajudam a trabalhar me- de impõe. Com seus caminhos, estradas, escadas, eleva-
lhor com meu corpo, entender meu espaço e meus limites. dores sempre retos e diretos. A partir do passeio que a
Também consigo perceber o outro e todos ao meu redor bola fazia pelas curvas dos ombros, cotovelos e joelhos,
porque amplia meu campo de contato (GLABELA, 2013). construíram-se desenhos e contornos que desbloqueavam
Dando sequência aos exercícios fizemos contato com com leveza e alegria as formas enrijecidas pelas retas da
a terra, grounding (LOWEN, A.; LOWEN, L., 1985), cidade. Após brincar com as bolas nas articulações, tra-
enraizamento, estabelecer relação entre os movimentos balhamos com o lançamento. Jogar a bola para cima e
voluntários, semi-voluntários e involuntários a partir da inventar um movimento enquanto ela cai. Dançar com a
percepção de como nos sustentamos. gravidade agindo sutilmente na bola. Deixar que o quase
sem peso disparasse novas coreografias. O que mais me
Alongamentos, boca sugando, língua fora, estica pes-
tocou foi estabelecer um outro tipo de relação com o ba-
coço, enrola o corpo para um grounding invertido, fazer
lão que até então não tinha ocorrido nem em pensamento
contato com quadril e pernas. É difícil lembrar-se das
(TRÓCLEA, 2013).
pernas quando se vive constantemente em salas de tra-
balho, estudos, carros, aparelhos que nos mantêm sempre Dançar com os balões foi lindo, ver quantos movimentos
sentados com a cabeça sustentada por pensamentos abs- novos fiz junto com o balão. E fiz sem medo de que estou-
tratos, longe da sala, do presente, longe até do pescoço. rassem, e não me preocupei com isso, até achei que eles
nunca estourariam (GLABELA, 2013).
Os balões espalhados pela sala são convidados a
participar da respiração, atentamos para experiência do  A bioenergia, segundo Reich, flui em movimentos ondulatórios e sua caracterís-
7

tica dinâmica básica é a pulsação (CAPRA, 1995). Quanto mais dissolvidas as


troc-ar. Com a bola de assoprar no sexo, respiramos mo- couraças musculares Reich observou que suaves movimentos ondulatórios in-
vendo a pélvis, enquanto se libera os condicionamentos voluntários surgiam rompendo com imobilidades musculares e tensões crônicas
desenvolvidas por nossa história emocional.

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Corpo, metamorfoses, cuidados: uma formação possível com profissionais de saúde

Após uma série de lançamentos e danças um momen- as formas organizadas. Abandonando os automatismos
to para cair junto com a bola, ir ao solo, despencar um inauguravam-se encontros que, em cada perturbação,
corpo que já se aproximou de diversas provocações nos geravam uma novidade.
sentidos. Ao deitar, um convite a encontrar-se com algo Uma possibilidade para pensar uma produção de
repugnante que o constitui. Dar forma e depois movimen- conhecimento que surge por encontros e perturbações
to a isso – cada vez mais intenso. Começam a surgir uma mútuas conforme uma máquina autopoiética (MATU-
complexidade de caretas. Caretas que assumiam formas RANA; VARELA, 2002). Tal máquina agencia uma
de estranhamento, nojo, medo e sustos em poder parecer cognição autopoiética (KASTRUP, 1999) um processo
com o que se sente. Os corpos se fecharam, travaram. Dar de incorporação das mútuas perturbações que engendra-
intensidade a essas forças era importante para fazer conta- vam respostas criativas.
to com a repugnância em nós, se retrair, se encolher para
Quais as formas pelas quais um indivíduo se pensa e se
assimilar a experiência de repugnância - sentir para devir.
reconhece como sujeito? Através de que modalidades sai
E neste abalo tudo se entorta e revira. Nesta noite com em busca de si mesmo? Que experiências realiza para dar
o grupo Rizoma a Metamorfose... Me senti o avesso e pude sentido à sua existência? Estas são as questões levantadas
me metamorfosear com os outros corpos (GRÁCIL, 2013). por mim após a experiência que vivenciei junto ao grupo
Depois de intensificar ao máximo uma forma repug- Rizoma. A experiência foi fantástica, pois através dela pu-
nante, adicionamos a bola como parte da repugnância, der me redescobrir/remodelar através do contato com ou-
um dispositivo para iniciar exercícios de fusão. “O pro- tro e com os balões. (HELICOTREMA, 2013).
blema não é mais aquele do Uno e do Múltiplo, mas o Nestes encontros, a alegria enquanto vontade de agir
da multiplicidade de fusão, que transborda efetivamen- e se mexer ia se expandindo. Ganhava a sala e fragili-
te toda oposição do uno e do múltiplo” (DELEUZE; zava as formas duras e grossas da repugnância. Alegria
GUATTARI, 1996 p. 15). de celebrar um novo encontro e o desprendimento para
Vamos ao repugnante. Um sentimento que fez meu corpo mover-se sem medo ou restrições.
travar, se fechar e quando parei pra ver eu estava totalmen- O que mais me pegou realmente foi a metamorfose do que
te contida em mim. Numa posição trancada. Nem os olhos era repugnante em mim [...] Ao me deparar com outros cor-
poderiam ver, pois estava pra dentro. Intensificar, intensi- pos, outras coisas e muitos balões, me desprendi do meu eu
ficar até não caber mais naquele espaço que fiz pra mim. repugnante e cai no desapego de tudo!!!
Se mostra um movimento forte dos pés que mexe sentindo o
que é repugnante, a ponto de doer. Não sei como entra em Sem falar da liberdade que senti me envolvendo em anda-
cena o balão. E viramos um, com o mesmo movimento de res, coreografias, afetos [...] (PALATINA, 2013).
sensação (LÚNULA, 2013). Aprender sobre as aberturas do corpo e as modula-
Após muitas torções, estouros de balão, raivas e re- ções do aproximar ampliou um campo de consistência
púdios um novo cenário se monta. A proposta é se deixar aos desejos que se misturavam em outras superfícies e
atrair por outros estímulos e movimentos presentes à nos- produziam linhas de fuga - uma metamorfose.
sa volta. Se encontrar e compor com outros corpos esta O momento onde foi pedido para imaginar e pensar sobre
repugnância. Este outro corpo que não necessariamente é o que era de mais repugnante em nós foi terrível. Era para
outra pessoa, mas os corpos disponíveis na sala – parede, ser assim mesmo, afinal, não é fácil lidar com o que há de
chão, outras bolas, ar, luz... mais horrível em nós, porém ainda assim foi uma surpresa
Se unir aos novos encontros para que a repugnância as coisas que senti, pensava: Isso não acaba! Passa logo
outros comandos! Aí os próximos foram em torno de uma
seja povoada. Construir zonas de povoamento com os
forma para essa repugnância, só acabou com tudo, angús-
“enementos”8 que circulam em nossos contornos. Per- tia sem tamanho. Apesar disso a sequência foi salvando a
ceber que a produção de encontros estabelece zonas de situação, a angústia se dissipando e o corpo relaxando as
passagem para que novos fluxos remontem novos corpos. tensões (PTERIGÓIDEO, 2013).
Movimento trabalhado, trabalhado, até derreter e virar
outro movimento. Ufa, agora suave (LÚNULA, 2013). Uma delícia andar, me arrastar entre as bolas, ou sentir
com força, ora sentir tão suave, como uma brisa. Que coisa
A repugnância some – a coreografia se sintoniza com boa. Ter sensações gostosas com as coisas, com a sala, com
toques delicados quase que assentando o ar dentro dos a luz do datashow. Um corpo aberto, com olhos em tudo.
poros, inflando a pele com movimentos sutis. Enten- Pele que sente. Formar com o outro e tentar ser e dar o
demos que o desejo se faz enquanto agenciamento, um melhor naquele momento. Bom momento. Relaxante. Sentir
desejo é sempre coletivo, uma força conectiva que se ali- a bola, a sala, o chão, a mão gelada do Manguito rotador.
menta de entorno e persiste em acontecer. Para tanto, se Vivo (LÚNULA, 2013).
instigava como incluir cada vez mais elementos aos cor-
Desta forma acredita-se construir uma política do
pos e, com isso, intensificar as tensões para criar zonas
sensível. Dramatizar a potência de um corpo enquanto
de variação. Estas inclusões agitavam a sala espalhando
produção de territórios, potências e coletivos (DELEU-
as bolas e misturando os corpos. Neste sentido, os en-
ZE; GUATTARI, 1996). Um corpo praticado de tal
contros se davam constantemente e sempre abalavam
maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por inten-
sidades. Ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria
8
 Neologismo proveniente de n=infinito (BAREMBLITT, 2008).

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Thiago de Sousa Freitas Lima; Tulio Alberto Martins de Figueiredo; Marcia Oliveira Moraes

de contato e composição, um corpo que responde às afe- sua materialidade. Aprender a existir entre tonalidades,
tações, conhece e se alia ao sutil - guerrilha do movimen- toques e ritmos que nos invadem constantemente - cuida-
to agenciando novas realidades. Corpo que se define não do como uma trilha se abrindo para novos povos.
como algo que se tem, mas antes, como corpo que se faz Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o
(MOL; LAW, 2004) num processo contínuo de agenciar, corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, cir-
conectar elementos díspares e heterogêneos: a alegria, o cuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e
gesto, o balão, o som. Corpo que se define como conexão distribuições de intensidade, territórios e desterritorializa-
a fazer: quanto mais conexões, mais porções de mundo ções medidas à maneira de um agrimensor (DELEUZE;
se inauguram, mais diferenciações se abrem à experiên- GUATTARI, 1996, p. 22).
cia (LATOUR, 2004). Desse modo, a formação em saúde
Por fim, nesta intervenção, alegria e múltiplos encon-
é prática que incide também sobre cuidar de quem cui-
tros aparecem como pistas no exercício da metamorfose.
da, mobilizar o corpo de quem cuida, ampliar suas redes
Redimensionar as formas a partir das bordas. Provocar e
de ação, suas possibilidades de afetar e ser afetado pelo
incorporar cada toque. Um esforço para dar conta do sen-
mundo. Fazer um corpo é um processo dinâmico, con-
sível das coisas, de tudo que elas não dizem. Perseguir
tínuo, vital para produzir uma formação em saúde, para
aquilo que escapa à expressão ordinária e se deparar com
articular cuidado e formação.
a infinita variedade de ser das coisas mais singelas.
Travei um pouco quando falamos das coisas ruins, mas
Tal é a formação que desejamos produzir. Um espaço
acho que é porque as coisas ruins “travam” mesmo a gente,
que investe na possibilidade de exercitar um corpo-traba-
ou me travam. Quando tive que intensificar fiquei inquieta,
lho poroso. Ou seja, corpos sensíveis e atentos aos encon-
mas intensifiquei com a ajuda dos balões. E a partir daí as
tros, corpos que possam considerar o diálogo por meio
coisas foram melhorando porque passou a ser outra coisa e
uma outra coisa mais alegre e colorida (GLABELA, 2013).
de suas diversas formas de comunicação, corpos que se
apresentam abertos ao acolhimento, levando em conta os
Ao final em duplas propomos cada um perguntar ao saberes, as crenças, as expectativas e as necessidades do
outro o que ele gostaria de receber, uma forma de cuidar encontro. Aprender sobre a experiência de um corpo em
atentamente do outro. movimento e suas metamorfoses podem ser formas de
Depois durante a massagem com o outro me senti nova- se perceber fazendo saúde e refletir sobre esse processo.
mente muito bem, é bom cuidar do outro e da mesma forma Conclusão
me deixei ser cuidada. Foi uma forma de tirar o que tinha
sobrado de tensão no corpo, tanto meu quanto do meu par- Ao considerar a dimensão porosa do corpo, conside-
ceiro. Nos permitimos (GLABELA, 2013). ra-se, então, o corpo enquanto uma substância capaz de
afetar e ser afetada, um território de perturbações e impul-
Naquela “sessão de descarrego” no final entrei mais no sos que, em constante movimento, desenha organizações,
clima tentando descarregar todas aquelas sensações ruins,
modos de funcionamento, modos de agir, sentir e estar no
e depois o que veio foi só alivio e tranquilidade. Uma mon-
mundo. Tem-se o corpo como efeito das composições e
tanha russa de sensações! Acho que isso que descreve a
decomposições provocadas nos encontros, dando textu-
experiência, e acho que metamorfose tem muito haver com
ra à cada experiência. O corpo tecido no emaranhado de
isso, pois, não necessariamente, o processo é linear ou es-
tável (PTERIGÓIDEO, 2013).
conexões locais e situadas. O corpo que não está dado.
Há que se fazê-lo, dia após dia. Mais articulações, mais
Repugnante em mim, só consegui pensar no meu jeito con- porções de mundo que se abrem, mais sensível e poroso
trolador de viver a vida...e assim me enrijeci mais ainda. se torna o corpo. O corpo tem a potência de se contrair e
Sempre que começo a vivenciar, a primeira coisa que sin- expandir, provocando fechamento e abertura às trocas de
to é como estou rígida, com os músculos doloridos e vou experiências. O corpo se apresenta como um campo de
sentindo cada vez mais a medida que a vivencia progride. batalha, com marcas de lutas históricas, e pulsa em sua
Depois à medida que vou tomando contato com meu corpo
instância criadora. O desafio é tornar visível caminhos
vou relaxando e começo a sentir prazer e alegria. Ontem,
que partem do pressuposto de que a vida é inseparável do
quando Grácil me tocou na hora troca de “do que você pre-
corpo que adoeceu - não segue um fluxo ordenado, mas
cisa?”, ela tomou um susto quando começou a massagem
faz conexão com o que se permite passar pelos poros.
nos meus ombros, tamanha tensão que havia neles (ima-
gina se ela tivesse me tocado no começo, quando a tensão A partir do que já foi exposto, para compreender os
era muito maior?). Então, ao final, senti que consegui ter modelos tecnológicos e assistenciais é preciso ver a atua-
consciência da forma que estava, comecei a me “mexer”, lização das tecnologias de cuidado e sua relação com
sair da forma, mas não completamente (ÍNIO, 2013). os corpos, para tanto é preciso criar espaços em que um
O cuidado então aparece como um elemento invisível corpo se expresse enquanto campo de conexões e con-
que estica as bocas em sorrisos e lubrifica os quadris em tágios. A utilização do mesmo como dispositivo impli-
danças cada vez mais soltas. Cuidar na dimensão de estar ca em experiências de raspagens. A raspagem consiste
junto e se deixar alterar pelos múltiplos encontros parece em uma desobstrução dos corpos cheios de registros e
uma forma de dar consistência às conexões do desejo e controles, ativando campos de passagens, diferenciação
e movimento: corpos sensíveis. Ou seja, a liberação das
reações automáticas, movimentos estereotipados e con-
dicionamentos orgânicos fabricados por instituições. Ao

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Corpo, metamorfoses, cuidados: uma formação possível com profissionais de saúde

lado das tecnologias disciplinares sobre o corpo – busca- Um treinamento dos poros - corpo de combinações e à
-se habitar o lugar da desconstrução do organismo produ- espreita. Criar campos imanentes, consistentes e atentos à
zido por essas disciplinas (QUILICI, 2004). produção de comum – dar voz a sensibilidades que circu-
Não é apenas nas grandes crises, na doença e na lam à flor da pele. Retomar o corpo na sua dor e no encon-
morte, que o corpo se instabiliza. Produzir momentos de tro com a multidão da exterioridade, condição de corpo
instabilidade enquanto práticas de si permite um aguça- afetado. Ampliar a capacidade de acontecer e celebrar as
mento da percepção. A apreensão dos movimentos mi- surpresas do cuidado. Por isso, o cuidado é a referência
croscópicos dos estados físicos pode deixar pistas por dos serviços de saúde e a estratégia radical para defesa da
novos modos de apreensão do corpo. A experiência da vida (MERHY; FEUERWECKER; GOMES, 2010).
raspagem e produção de um movimento de recomposição Agenciar um encontro dançante entre corpo, cuidado
do corpo permite experimentar um estado de presença – e formação inventa uma coreografia sempre em deriva,
caber na própria pele sem medo dos inconscientes que capaz de produzir vínculos e relações acolhedoras ao
nela habitam e protestam. som de diversas ações integrais à saúde.
Através desta geografia afetiva, a figura do sujeito in- Trata-se de um posicionamento de luta para que as po-
dividualizado se dissolve, abrindo espaço para corporificar líticas públicas se efetivem por meio de “corpos políticos”:
e atender demandas das coletividades. Neste trabalho de implicados com processos coletivos de construção de
desfiguração pressente-se o ensaio de um novo corpo, per- mundo; “corpos éticos”: trazendo nas relações uma atitude
meável às forças naturais, perdido no rastro dos arrepios, vi- de acolher a diferença; e “corpos estéticos”: comprome-
vendo a integração antes impensável entre sujeito e objeto. tidos a experimentações e atentos a um regime de afetos,
Um conhecimento implicado no plano concreto da experi- para que nos diversos encontros do cotidiano novas co-
ência (PASSOS; BARROS, 2010). Uma atitude que provo- reografias possam ser geradas. Posicionamentos estes que
ca e captura tudo aquilo que não é, mas poderia ter sido. interferem diretamente na invenção de ofertas que poten-
Entende-se que o cuidado se efetiva quando cria co- cializem a atenção e formação em saúde para a população.
nhecimento, não impõe formulações. Para tanto é preciso A bola é bola. Cansou. Virou mão que massageai, e agora
fazer escolhas por inversões metodológicas, pois qual- já é vento com forma e cor. Bola que é palavras. Mas an-
quer critério de validação dado a priori não é capaz de tes foi pele. E pode ser um monte de coisa. É só dar bola
construir conhecimento, no máximo se atribui valores de (LÚNULA, 2013).
certo/errado, se julga. Não é preciso conhecer para julgar
Referências
e reproduzir. Não é possível preparar o conhecimento e
torná-lo possível (DELEUZE, 2002). Este deve ser culti- ALMEIDA FILHO, N. A ciência da saúde. São Paulo: Hucitec,
vado com os jogos de corpos e suas marcas, uma escolha 2000.
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A partir do compromisso com a participação dos
descartveis-acerca-do.html>. Acesso em: 25 jun. 2013.
sujeitos, seus relatos não se distanciam do processo, ao
contrário. Para além de análises decalcadas que excluem BAREMBLITT, G. Introdução à Esquizoanálise. 3. ed. Belo
a dinâmica dos sujeitos nas cenas experimentais, suas Horizonte, FGB/IFG, 2010.
narrativas devem compor os relatórios por entre a cons- BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência.
trução dos procedimentos. Os relatos dos sujeitos funcio- Lisboa: Edições 70, [1988].
nam como ferramentas que abrem passagens e encontram BEY, H. TAZ: zona autônoma temporária. 3. ed. São Paulo:
brechas para uma escrita em conjunto, para a elaboração Conrad, 2011.
conjunta de processos formativos. Retalhos costurados
que pintam os afetos emergentes. CAPRA, F. O ponto de mutação. 10. ed. São Paulo: Cultrix,
1995.
Nesse sentido, a porosidade do corpo não se apre-
senta como um conceito, mas um conjunto de práticas CARVALHO, Y. M.; CECCIM, R. B. Formação e educação
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a serem cartografadas, destinadas à dissolução de orga-
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práticas experimentais, com prudência e ousadia bem do- DELEUZE, G. Bergsonismo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.
sadas, que permitam desfazer automatismos e produzir DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta,
um corpo poroso a outros corpos que nos circulam por 2002.
contatos, fluxos e intensidades. É nessa proximidade, DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2. ed. rev. e atual. São
nesses limites territoriais que a saúde experimenta outras Paulo: Graal, 2006.
dimensões do real, implicando seus atores a assumir uma
nova atitude diante a existência.

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Dossiê Corporeidade

Modulações do existir: entre luzes e sombras


Helia BorgesH
Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
A partir de um sentido crítico sobre abordagens somáticas, pesquisadores contemporâneos apresentam sintonia com uma clínica
que se constitui nos intervalos da comunicação linguageira. A brincadeira de esconde-esconde do infans que faz desaparecimento
na ausência conectiva do olhar – o contato olho a olho como lugar de deslizamento para o Fora – aponta para o universo das
pequenas percepções que habitam a comunicação intensiva. Ao buscar no conceito de Natureza uma aliança para ampliar o
conhecimento sobre o sofrimento humano, Winnicott instaura uma distância crítica ao modelo psicanalítico clássico, restituindo
ao pensamento sua dimensão problemática e aproximando-se, desta forma, de clínicos, pesquisadores e filósofos atuais que se
posicionam na contramão da condição, cada vez mais violenta, de práticas de assujeitamento.
Palavras-chave: pequenas percepções; coemergência; autismo; Winnicott.

Modulations of existing: between lights and shadows


Abstract
From a critical viewpoint on somatic approaches, contemporary researchers are attuned to a clinic built in the intervals of lan-
guage communication. The infantile hide-and-seek play that makes disappearance in the connective absence of the look –the eye-
to-eye contact as a slippery place to the Outside –points to the universe of small perceptions that inhabit intensive communication.
In seeking the concept of Nature as an alliance to expand knowledge about human suffering, Winnicott establishes a critical
distance from the classical psychoanalytic model, restoring to thought its problematic dimension and thus approaching current
clinicians, researchers and philosophers who stand against the increasingly violent condition of subjection practices.
Keywords: small perceptions; co-emergence; autism; Winnicott.

“Havia muito pouca diferença de significado”, diz Autis- Rompendo com a lógica cientificista que transforma
tic Daina Krumins, “entre as crianças ao lado do lago com a condição trágica da existência em argumentações de
quem eu estava brincando e a tartaruga sentada no tronco. seriedade, Winnicott restaura o trágico ao refletir sobre
Parece,” continua ela, “que quando a maioria das pessoas os paradoxos na constituição do sujeito, e ao evidenciar
pensa em algo que está vivo eles realmente querem dizer: as torções que sofre o pensamento do homem moderno
humanos.” (MILLER, 2003, p. 23-89 apud MANNIN- na alienação pela primazia da racionalidade. Evidencia
GAND; MASSUMI, 2014, p. 3, tradução nossa).1 também aqui sua recusa aos dogmas nos quais, por tantas
No seu livro A Natureza Humana, de publicação póstu- vezes, a própria psicanálise se vê envolvida.
ma, Winnicott (1990, p. 29) nos aponta sua perspectiva do Em A Natureza Humana, o autor nos diz que habita-
humano: “o ser humano é uma amostra-no-tempo da nature- mos “um mundo não desejado” (WINNICOTT, 1990, p.
za humana”. Uma proposição enigmática, paradoxal, como 26), o que nos retira, de imediato, de toda uma concep-
são seus escritos que portam a complexidade característica ção de mundo mergulhada na negatividade. Negatividade
da vida, em toda sua potência de perene transformação. que se sustenta em uma visão de mundo definida pela an-
Esse autor nos lembra, já de saída, a crítica que faz tecipação, que imprime sentido para a vida. Para Winni-
Deleuze, ao trabalhar com a inseparabilidade entre ho- cott, o ser emerge “para” a vida, num enfrentamento com
mem e natureza, trazendo de volta para a experiência da um mundo que não desejou e essa condição lhe permitirá
vida a inseparabilidade entre a cultura e a natureza, que se constituir como força de enfrentamento, positivando
se manifesta nos corpos em sua receptividade ao mundo. a existência. Segundo ele, “a partir da interação com o
[...] não existe também distinção homem-natureza: a essência ambiente, surge um emergente, o indivíduo que procura
humana da natureza: a essência humana da natureza e a essên- fazer os seus direitos, tornando-se capaz de existir num
cia natural do homem identificam-se na natureza [...]. Não o mundo não desejado” (WINNICOTT, 1990, p. 26).
homem enquanto rei da criação, mas aquele que é tocado pela Ser “uma amostra-no-tempo” da natureza humana é a
vida profunda de todas as formas ou de todos os gêneros, que afirmação que nos restaura a dimensão de alteridade ins-
é carregado de estrelas e mesmo de animais [...]. Homem e crita na própria lógica da existência. Implicado na crítica
natureza não são como dois termos [...], mas uma só e mesma à dualidade entre psíquico e somático, o autor faz ver a
realidade (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 18-19). condição da vida como positividade: “nature e nurture:
hereditariedade e criação” (WINNICOTT, 1990, p. 29).
A psique não é outra coisa que a invenção a partir de uma
H
 Endereço para correspondência: Faculdade Angel Vianna. Rua Jornalista Or- relação ao soma; as experiências vividas no corpo como
lando Dantas, 2. Rio de Janeiro, RJ – Brasil. CEP: 22231-010. E-mail: borges. objeto ou matéria da alma. O corpo se inscreve na alma.
helia@gmail.com
1
 “There was very little difference in meaning,” says autistic Daina Krumins, “be- A natureza, para Winnicott, é ao mesmo tempo uma
tween the children next to the lake that I was playing with and the turtle sitting
on the log. It seems,” she continues, “that when most people think of something
potência final de realização e a necessidade de afirmar o
being alive they really mean, human” existente. Podemos afirmar que a natureza humana “para
Helia Borges

Winnicott se aproxima da ideia de condição humana no- Devir-infância como na criança pequena que ainda não
meada por Hanna Arendt e que poderíamos talvez tra- domina a palavra e que, na brincadeira de esconde-escon-
duzir pela: condição do humano” (DAVID-MÉNARD, de, ao vendar os olhos revela sua condição de engate com
2006, p. 161). Ou ainda, do “mais-que-humano”, como o meio ambiente através da imersão, a partir sua coexis-
nos dizem Manningand e Massumi (2014), ao proble- tência: o outro desaparece quando não há conectividade
matizarem, a partir de pesquisas com autistas, a perda através da visão háptica. É o campo intensivo, o experi-
perceptiva de mundo dos neuropáticos2 (conf. MAN- mentado na brincadeira onde o outro desaparece ou reapa-
NINGAND; MASSUMI, 2014). Essa assertiva convoca rece pelo olhar desconectado ou conectado a outro olhar.
a questão fundamental e ética sobre a imersão do ser no O interesse é pelos começos e não pelas origens. Tal
ambiente no movimento realizado em direção à vida. deslocamento incessante da existência enquanto campo
Por “homem-que-somos” e “mais-que-o-huma- de criação aponta para a vida em uma interminável va-
no”, evidencia-se o estado de ultrapassagem do que se riação, intensa germinação de mundos, dentro de uma
constituiu a partir do pensamento dissociado do corpo, lógica de continuidade. É, portanto, atributo de cada
em ruptura com o homem identitário, o homem inte- existente, ser um aprendiz de seu próprio plasma germi-
riorizado, colonizado. nativo, segundo aportes de vários estudiosos e ativistas
da causa dos autistas, que colaboram, significativamente,
“Formato-homem” foi termo utilizado por Estamira,
para as ideias trazidas por Winnicott.
personagem do filme Estamira (2004), para falar de si:
formato homem par (mulher), decorrente dos processos Essas contribuições colocam em cena a condição de
de subjetivação, não só em relação ao gênero, mas ao marginalização que se sustenta em determinado modo de
que tem sido considerado humano, tem como resultante existir que não se configura nos padrões do que é consi-
a alienação da capacidade de captação de uma ambiência derado um comportamento normal (neuropático). Assim,
no ato de conhecimento, de modo que exclui a perspecti- podemos tomar contato com alguns aportes descritos a
va ética da existência que se expressa na diversidade, na seguir, no intuito de construir pensamento, a partir da fra-
diferença, no desvio. se winnicottiana “o ser humano é uma amostra-no-tempo
da natureza humana”, sobre o que parece apontar para a
Ao contrário desse formato homem, são os trajetos
característica imanente da própria vida.
de errância experienciados que nos permitem mergulhar
em novos planos e, pelo eclipse do eu, acessar um mundo Segundo esses pesquisadores, a maior parte das pesso-
prévio ao discurso, retirando o conhecimento de um vetor as (neuropáticos) percebe o mundo através de uma valo-
que parte do sujeito para o objetivo e rendimento, liberan- rização do expresso humano (por exemplo: escutar a voz
do o conhecimento para um campo de afetabilidade, pos- destacadamente em um todo percebido) em detrimento de
sibilitando a multiplicação dos vetores e pontos de vista. outras manifestações que se apresentam no campo percep-
tivo, colocando as coisas do ambiente em segundo plano
Ao colocar em cena a Natureza como parte do Hu-
(vide a epígrafe deste texto). Para alguns destes pesquisa-
mano, Winnicott parece querer devolver para vida do
dores, o autismo é visto como portador do que se denomi-
homem o que dela foi retirado; devolver ao homem da
na uma “cegueira mental”, definida como uma inabilidade
razão, propriamente, uma lógica que não se pautaria no
em desenvolver a consciência da existência do outro, uma
privilégio da racionalidade. Evidencia através da experi-
incapacidade de estabelecer uma comunicação sutil.
ência do infans o tateio, a visão háptica que pressupõe as
sensorialidades na captação do conhecimento, a geogra- Porém, para os pesquisadores, o autista não rejeita o
fia de um campo no seu processo de vir a ser. humano nem foge do relacionar-se. Pelo contrário, o que
se testemunha no autista é um engajamento com o “mais-
E é ainda esse autor, em sintonia com a experiên-
-que-humano”, um engajamento à vida. Manningand e
cia do existir, quem ressalta que o nascimento e a mor-
Massumi (2014) nos trazem o texto de Miller, em que
te atravessam todas as atividades humanas como suas
este evoca a comunicação da autista Daina Krumins:
condições, apontando a condição política da existência
(WINNICOTT, 1990). “Observo tudo da mesma maneira sem discriminação, de
modo que o grasnado do corvo na árvore é tão claro e im-
Para Hanna Arendt, “agir, em nossa sociedade de ho-
portante como a voz da pessoa com quem ando” [...] E num
mens guarda a característica do que começa como uma
envolvimento com um estilo mais relacionado a texturas:
criança que inaugura vida” (DAVID-MÉNARD, 2006,
“Meu mundo está organizado em torno de texturas [...] To-
p. 163). Neste sentido, a natureza humana de Winni-
das as emoções, percepções, meu mundo inteiro [...] [foi]
cott nos fala de que o existente, ao ser atravessado pelo influenciado por texturas” (MANNINGAND; MASSUMI,
mundo, pode conquistar a possibilidade de sustentar a 2014, p. 3, tradução nossa).3
vulnerabilidade, condição necessária para ser receptivo
à diferença. A condição humana estaria aí, nesta capa- Texturas são padrões, são contrastes, luzes e sombras,
citação para vida a partir de um devir-infância, que nos movimentos, gradientes e transições; aquilo que se colo-
colocaria em um campo comum, descentralizando a ló- ca fora de uma percepção linear, sem intervalos, focada,
gica narcísica fundada no Eu. característica do pensamento racionalizado. Uma disper-
 “I attend to everything the same way with no discrimination, so that the caw
3

of the crow in the tree is as clear and important as the voice of the person I’m
 Termo utilizado pelos pesquisadores que trabalham com autistas para diferenciar
2
walking with” [...] And an engagement with a more textured relating: “My world
a qualidade de percepção entre autistas e os “normais” sustentados no senso is organized around textures[...] All emotions, perceptions, my whole world [...]
comum e no bom senso (MANNINGAND; MASSUMI, 2014). [has]been influenced by textures”

192                               Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 191-195, 2017


Modulações do existir: entre luzes e sombras

são do foco, não uma falta de atenção com a vida, com Para o autista, a flor e o ambiente não são separados,
o escopo da vida em sua complexidade. Nos intervalos, mas constituídos juntamente, como ritmos do ambiente,
nos vazios que se abrem na percepção não linear, a vida ritmos corpo e ambiente constituídos coativamente, em
se expressa de modo não hierarquizado entre o orgânico que os modos dos existentes não se definem previamente
e o inorgânico, as cores, os sons, os cheiros, os ritmos – à experiência, não materializando o ser através do que já
percepções e emoções se inter-relacionam, o que permite está constituído. Envolvem, portanto, em sua emergência
experimentar em plenitude o que Manningand e Massu- os eventos singulares em que o objeto está sendo consti-
mi (2014) chamam de “a dança da atenção”. tuído: o modo compõe o ser.
A “dança da atenção” nos fala da característica per- Esta leitura do modo autista de ver o mundo expressa
ceptiva em que o ato perceptivo está em uma imersivi- a riqueza perdida pela diferença que caracteriza o ato per-
dade; ela não está focando algo, não está se dirigindo ceptivo do formato homem – como nos diz a personagem
para algo, e sim tateando uma posição. O ato perceptivo Estamira, aponta para a prisão a que fomos assujeitados
contempla o movimento inscrito no próprio ato de perce- nos processos racionalistas que priorizam o humano, dis-
ber. Este modo de captar mundo da “dança da atenção” sociando-o no entorno.
é poder entrar num modo de consciência do ambiente, E é nestes termos que Winnicott nos chama atenção,
em que perceber é sentir que a percepção consiste em através da comunicação sutil da díade mãe-bebê, instau-
uma ação que é guiada através de estruturas cognitivas radas pela mutualidade; não são apenas os cuidados mais
que emergem da experiência da senso-motricidade na re- evidentes que serão alvo de atenção, mas aspectos dis-
lação corpo-ambiente. Uma ação mútua, co-movimento, cretos da comunicação sutil que apontam as necessidades
co-moção, percepção sustentada num campo de imedia- específicas de um ser emergente. Pelas conexões empáti-
ticidade característica da percepção emergencial. Uma cas, pelas conexões estésicas, vividas no encontro, seria
emergência contínua, uma germinação florescendo. possível acessar os modos de existência, em seus ritmos,
Nesta perspectiva, não há separação entre o objeto via pequenas percepções, nas modulações, gradientes,
percebido e o meio no qual este se vê inserido, mas em entre luzes e sombras.
co-atividade, de modo diverso como é para o “neurotí- Neste pequeno trecho do livro A Natureza Humana,
pico”, em que a percepção está tomada por pré-juízos Winnicott (1990, p. 147-148) se questiona se haveria, para
e fechada à infiltração das interferências sutis, como o bebê, um conhecimento prévio antes do nascimento:
modulações, cheiros, luzes e sombras, gradientes do
Devemos presumir que antes do parto, o bebê já seja capaz
percebido. Em oposição a esta perspectiva, no autista
de reter memórias corporais, pois existe uma certa quanti-
a percepção se dá na imersão, no engajamento com o
dade de evidências de que a partir de uma data anterior ao
ambiente em uma mutualidade:
nascimento, nada daquilo que o ser humano vivencia é per-
Um florecimento da dança da atenção como o acontecimen- dido. Sabemos que, no útero os bebês realizam movimentos
to desta imersão. O jasmim reúne o jogo de cor e sombra natatórios de um peixe. As mães dão intenso valor à ativida-
em torno de si mesmo, transmutado em uma interação de de de seus bebes [...] é possível a existência de uma organi-
umidade e luz. Luz e umidade, em co-movimento com um zação central que seja capaz de perceber essas experiências.
cheiro. A fragrância do jasmim - em sua interação com a
Existem, portanto, traços mnêmicos que estarão atra-
umidade e a luz, leva a retransmissão das sombras colori-
vessando a vida em formação. Para Winnicott, a mãe co-
das como a qualidade predominante do campo de compo-
sição como um todo. Esta retransmissão traz o campo para
meça a sentir a existência da vida em seu útero quando o
o limiar de uma expressão determinada (MANNINGAND; bebê desencadeia as articulações e as movimentações. A
MASSUMI, 2014, p. 5, tradução nossa).4 questão que aqui se coloca não é, absolutamente, decidir
sobre a existência, necessária ou não (e seus resultantes)
Desde a perspectiva da percepção de um jasmim flo- de uma mãe biológica para captar este universo do in-
rescendo no jardim, a fragrância se co-move com a lumi- fans, mas buscar ampliar um saber sobre como se daria
nosidade no interjogo de luz e sombra como transmissão tal percepção que se realiza através destes movimentos
do sinal em um campo dinâmico, um circuito de comuni- característicos “e por que/para que” Winnicott nos chama
cação-transdução, onde a qualidade colorida, como qua- atenção para esse fato.
lidade predominante do campo como um todo, emerge.
O que parece estar em jogo aqui, desse ponto de vista,
Porém, no “neurotípico”, o apelo é para perceber o cheiro
seria a possibilidade de conceituar a experiência de comu-
antes da flor, pois já está pré-formada a ideia de que a flor
nicabilidade de modo ampliado, partindo do modo redutor
é para cheirar, fechando o tempo de experiência na medi-
em que está constituída – através do eixo lógico-racional
da em que este já está misturado com as informações que
–, para nos permitir uma aproximação da comunicação
definem as experiências.
sustentada na experimentação, nos ritmos, desvios e deslo-
camentos no corpo. Tomando Leibniz em Deleuze (2000),
voltamo-nos para o campo das pequenas percepções, as
4
 A flowering dances to attention as the event of this ingression. Jasmine gath-
micropercepções, no sentido de favorecer uma ponte para
ers the play of color and shadow around itself, transmuted into an interplay of mergulhar nas provocações winnicottianas.
moisture and light. Light and moisture, in co-motion with a smell. The fragrance
of jasmine, in its interplay with moisture and light, takes the relay from colored
shadow as the predominant quality of the compositional field as a whole. This
relay brings the field to the verge of determinate expression.

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 191-195, 2017                                193


Helia Borges

Segundo Deleuze, Leibniz nos diz que há um obscuro modo tal que o ambiente (função mãe) será capaz de pro-
em nós, não só porque temos um corpo, mas temos um ver, de dar um retorno ao bebê para que o processo de dar
corpo porque há um obscuro em nós que exige um cor- sentido possa se desdobrar.
po, um fundo sombrio do espírito. Contrapondo a ideia Seja a fome: é preciso a falta de açúcar, que a falta de gor-
cartesiana do cogito, produz uma existência atravessada dura, etc. entrem em relações diferenciais que determinem
pelo modo sombrio de ser, afirmando que existe uma a fome como algo relevante ou notável. Seja o ruído do
zona clara que necessita percorrer o sombrio e que este mar: é preciso que pelo menos duas vagas sejam um pouco
percurso se dá através do corpo. E esse obscuro captado percebidas como nascentes e heterogêneas para que entrem
pelo corpo são as micropercepções. numa relação capaz de determinar a percepção de uma ter-
Assim, pergunta Deleuze (2000, p. 147): “como ceira, da que excele sobre as outras e torna-se consciente.
o que expresso clara e distintamente pode ter relação (DELEUZE, 2000, p. 150).
com meu corpo, cujos movimentos são todos conheci- É preciso, portanto, que ocorram relações diferenciais
dos obscuramente?”. entre os elementos, ou seja, que se estes se articulem em
Partindo da afirmativa de Winnicott, podemos dizer suas diferenças, nas suas pequenas percepções, para que
que, quando o bebê está dentro do útero, a mãe con- haja percepção do movimento, para que ocorram as ma-
templa a atividade dele pela experiência, pelo ritmo dos cropercepções.
movimentos que se desdobram pelos micromovimentos. O campo intensivo, campo das forças, molecular, se
Existe um movimento propulsor no bebê que faz com dá a perceber implicado num estado de ser-com-o-mun-
que se realizem movimentos a partir dos micromovimen- do, não simbiótico, mas extenso, num deslocamento
tos, uma produção de movimentos que são produção de constante entre o dentro e o fora, através do qual as expe-
vida e que está inscrita no corpo a partir de sua trajetória riências seriam vividas como uma experiência globaliza-
de constituição espaço-temporal. da, em que o percebido seria apreendido de forma única e
São relações diferenciais, são qualidades expressivas, singular, de modo a captar o que se coloca assemiotizado:
são gradações, são modulações que vão sendo captadas experiências estéticas que se realizam pelo deslocamen-
e formam as singularidades. O ser puxa para si o que faz to, presentes nos gestos e na força poética rítmica dos
sentido para ele. Os organismos se reorganizam sempre, discursos do outro.
desarticulando um ponto estático, centro gravitacional O que se abre, portanto, não é o sentido como sen-
para ocupar novo território. A articulação que se paralisa so (sensação), mas aquilo que nos possibilita, a partir do
gera um ponto de parada para pulsionar o corpo em uma empírico, captar o concreto, a coisa em si, para criar ou-
nova direção. O acontecimento é composição com o cor- tros sentidos. É através das pequenas percepções que De-
po e é uma dobra: um crivo que sai do caos, que modifica leuze vai operar o campo de afetação no qual nos vemos
o modo de estar na vida. inscritos, propondo-nos uma aproximação do ínfimo no
As micropercepções, ou os representantes do mundo, são encontro que evidencia a redução operada na percepção
estas pequenas dobras em todos os sentidos [...] São estas do senso comum.
pequenas percepções obscuras confusas, que compõem [...] o percebido assemelha-se alguma coisa na qual ele nos
nossas macropercepções, nossas percepções conscientes, força pensar. Tenho uma percepção branca percebo bran-
claras e distintas: uma percepção consciente jamais aconte- co: esse percebido assemelha-se a espuma, e isto é, há uma
ceria se ela não integrasse um conjunto infinito de pequenas infinidade pequenos espelhos que refletiriam sobre nossos
percepções [...] Como uma fome sucederia a uma saciedade olhos um raio de luz. Sinto uma dor: esta dor se assemelha
se mil pequenas-fomes elementares (de sais, de açúcar, de ao movimento de alguma coisa pontiaguda que nos escava
gordura etc.) não se desencadeassem de acordo com ritmos carne em círculos centrífugos (DELEUZE, 2000, p. 161).
diversos, desapercebidos? (DELEUZE, 2000, p. 147-148).
Assim, podemos afirmar – como já descrito neste ar-
Evidencia-se aqui esse campo de comunicabilidade, tigo, na experiência do autista, ou na mutualidade ínti-
sutil, em que a lógica semiotizada do signo linguageiro do ma vivida entre a mãe e o bebê –, que se evidencia que
discurso não comunica. Então como a mãe, ou aquele que o percebido se dá para além do objeto – o alfinete, no
se dispõe ao cuidado, consegue ter uma luz de consciência caso da citação acima. Há um modo de conhecimento,
a partir das micropercepções, como se passa das pequenas no encontro com o objeto, que não se restringe ao
percepções às percepções conscientes? O problema que objeto separado da experimentação vivida, na estesia, na
se coloca, portanto, é como dar forma às forças? experiência estética vivida no “como” das intensidades
É ainda em Leibniz, segundo Deleuze (2000), que en- que o alfinete produz ao se conectar com o corpo.
contramos uma possibilidade de responder a esta questão Partindo desta perspectiva, perguntamo-nos se não se-
que se encontra, justamente, no ultrapassamento do senso ria vital reivindicar a fisicalidade da voz na palavra: como
comum, do que já está significado e convoca a potência a criança que antes de pronunciar um sentido experimenta
de criação adormecida. A comunicação do bebê com a o prazer com suas ecolalias, balbucios, buscando o corpo
mãe, que consegue ter uma luz de consciência oriunda sonoro da infralíngua,5 aí onde o sentido é secundário.
a partir dos movimentos do bebê, estaria no campo das
articulações diferenciais entre as micropercepções de
5  Segundo Gil (1980), a infralíngua diz daquilo que ainda não se atualizou, lugar
assignificante, assemiotizado, força que turbilhona os significados.

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Modulações do existir: entre luzes e sombras

Para se comunicar a partir das afecções, é preciso


liberar o pensamento de suas amarras conceituais, de
modo a poder forçar o pensamento a pensar. Pensar é
criar, fazer nascer o que o que já existe, mas que, invi-
sível, não pode ser percebido desde um modo de pensar
que se exclui do mundo, da vida; vida em que bailam
os existentes orgânicos e inorgânicos em suas múltiplas
diferenças, seres aberrantes.
Tanto na fala do autista, como no olhar do infans (an-
tes da fala) que brinca de desaparecer, a experiência de
estar submerso, mergulhado, nos retira do parto da sub-
jetividade assujeitada, desliza na imanência da vida... Se
aqui nos referimos a esta condição da existência que res-
gata as modulações nos trajetos percorridos, é para res-
saltar que, para além das prisões conceituais, intelectuais,
as experimentações com a existência nos fortalecem para
atravessar a colonização que nos habita.
Virilio (2015) nos fala da perspectiva do cinema,
onde a lentificação do tempo permite que algo novo se
instaure. Não uma invenção de algo que não exista, mas
um modo de apreender o que antes não poderia ser vi-
sível. Assim como observar uma flor na experiência do
autista – por não estar submetido à ordem do foco, é dar
a ver um campo que se constitui na abertura para o acon-
tecimental de cada evento, a flor não é vista como uma
individualidade, mas como um campo de ressonâncias
onde a luz, o odor, a temperatura, os fluxos de tempo e
espaço se fazem presentes. Estados emergentes... são es-
tes que inoculam ninhos de criação.
Referências
DAVID-MÉNARD, M. Human nature ou human condition. In:
CYSSAU, C.; VILLA, F. (Org.). La nature humaine à l’epreuve
de Winnicott. Paris: PUF, 2006. p. 159-164.
DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o Barroco. São Paulo:
Papirus, 2000.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro:
Imago, 1972.
ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: José Padilha
e Marcos Prado. Rio de Janeiro: Riofilme, 2004. 1 DVD (127
min).
GIL, J. Metamorfose do corpo. Lisboa: Relógio d’Água, 1980.
MANNINGAND, E.; MASSUMI, B. Thought in the act:
passages in the ecology of experience. Minneapolis: University
of Minnesota, 2014.
VIRILIO, P. Estética da desaparição. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2015.
WINNICOTT, D. A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago,
1990.
Recebido em: 4 de abril de 2017
Aceito em: 9 de junho de 2017

Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 191-195, 2017                                195


Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 196-202, maio-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2332
Dossiê Corporeidade

Performers sem Fronteiras, uma plataforma clínico-performativa de


ações em arte relacional
Diogo Rezende, Tânia AliceH
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
O artigo aborda o trabalho da plataforma clínico-performativa Performers sem Fronteiras (PsF), que trabalha em contextos de
pessoas em situação de trauma pontual ou crônico, bem como em ações de cultivo e promoção de saúde. Vamos abordar a interface
arte/cura a partir do conceito de PARC (Performances de Arte Relacional como prática de Cura), desenvolvido por Tania Alice,
em algumas ações clínico-performáticas realizadas pelo conjunto da plataforma, em volta de três eixos norteadores do trabalho
do coletivo: 1. O movimento livre como prática clínica pela criação de plataformas pontuais de livre expressão do corpo. 2. O
empoderamento dos participantes, pensado a partir de um trabalho realizado por dois integrantes do PsF junto a usuários da rede
de saúde mental do Rio de Janeiro intitulado “Todo sonho bem sonhado pode um dia virar realidade”. 3. A potencialização dos
afetos dentro da performance “Correio de abraços Brasil/Nepal” de Tania Alice.
Palavras-chave: performance; arte relacional; clínica.

Performers without borders, a clinical-performative platform of


actions in relational art
Abstract
The article discusses the work of the clinical-performative platform Performers without Borders (PsF), which works in contexts
of people with punctual or chronic trauma, as well as in actions that cultivate and promote health. We will aproach the art/healing
interface based on the concept of PARC (Performances of Relational Art as Cure practice), developed by Tania Alice, in some clini-
cal-performative actions performed by the platform, set around three axes guiding the work of the collective: 1. The free movement
as therapeutic practice by the creation of punctual platforms of free expression of the body. 2. The empowerment of the participants,
based on work done by two members of the PsF together with users of the mental health network in Rio de Janeiro entitled “Every
dream well dreamed can one day become a reality”. 3. The potentialization of the affections within the performance “The hug
Project Brazil/Nepal” of Tania Alice.
Keywords: performance; relational art; clinic.

1. Introdução A performance expande as noções que se tem sobre a


A arte da performance se tornou tema corrente em di- “artisticidade” de uma ação. A ação em arte ganha uma
versas mídias, grupos, instituições de arte, universidades, outra amplitude, outros fôlegos, passa a construir outros
comunidades. Muito se fala sobre performance, opiniões territórios de apreciação. Muitas vezes vemos a perfor-
são proferidas, polêmicas são geradas. Porém, é impor- mance causar choque, desconforto, desentendimento,
tante destacar que quando se fala de performance, temos estranhamento, e por conta disso, fazendo uma análise
um amplo espectro de possibilidades dentro de um mes- apressada, corre-se o risco de adjetivar a performance
mo campo temático. A performance não é uma só, tra- pejorativamente, desqualificá-la antes mesmo de tentar
ta-se de uma arte extremamente heterogênea, pluralista, compreendê-la. Podemos compreender essas reações
híbrida e com diversas modulações em termos de história diante da performance por conta de um hermetismo ine-
e processos culturais. rente a alguns trabalhos, mas sobre isso, pode-se dizer
que a performance está justamente rompendo com um
Suas origens remontam às vanguardas do século XX,
campo de significação e representação, e tal como Gum-
com destaque para alguns movimentos artísticos ocor-
brecht (2010) propõe, a arte contemporânea se preocupa
ridos em meados da década de 60, tais como body art,
mais em produzir presença do que produzir sentido, e
situacionismo, arte conceitual, dentre outras influências.
dessa maneira, os performers acabam sendo uma espécie
Vemos um modo de produzir arte que não se encontra
de importantes e imprescindíveis “complicadores cultu-
mais necessariamente atrelado a instituições tradicio-
rais” (FABIÃO, 2008).
nalmente associadas a representação, tais como museus,
teatros, galerias. Observa-se uma diluição de frontei- A própria definição de performance se torna difícil de
ras entre linguagens artísticas e coloca-se em cheque o ser debatida, pois dizer que a performance “é”, nos reme-
próprio lugar do artista, fazendo-nos repensar o distan- te a um ideário modernista que categoriza e define esteti-
ciamento entre público e obra, e assim, mais do que es- camente cada movimento de arte no decorrer da história
pectador, as pessoas que se relacionam com os produtos (ALICE, 2013). Assim sendo, quando Austin propõe em
e ações performáticas, podem ser também participantes e seus estudos sobre linguagem, que cada fala realiza uma
co-criadores dessas produções. ação ao mesmo tempo em que é falada, a performance
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal do Estado do Rio de Ja- também se constitui como um processo que se faz em seu
neiro, Escola de Teatro. Av. Pasteur, 296 – URCA. Rio de Janeiro, RJ – Brasil. próprio percurso. Mais do que definir, pensar a performan-
CEP: 22290-040. E-mail: diogoreze@gmail.com, taniaalice@hotmail.com
Performers sem Fronteiras, uma plataforma clínico-performativa de ações em arte relacional

ce enquanto processo cartográfico que deve ser analisado clareza. Ou seja, trata-se de uma temporalidade muito di-
no contágio de cada contexto em que se efetiva, nos parece ferente daquela do espetáculo, do ensaio, da coreografia
ser o caminho mais potente para balizar essas discussões. ou da improvisação, onde o que importa é muito mais o
Por se tratar de uma arte que coloca em curto-circui- exercício de uma presença aguçada naquilo que a perfor-
to vários paradigmas artísticos, inclusive o de uma arte mance evoca em termos de acontecimento. Para ilustrar
galerista e facilmente capturada por um modelo de circu- o conceito de programa performativo Fabião (2013) cita
lação mercantilista e fetichizado, a performance também o exemplo do performer americano Willian Pope L., que
se forja através de uma estética imediatamente política, elaborou o seguinte programa para uma de suas perfor-
social, cultural. Um exemplo disso é o modo como a per- mances: sobre a bandeira americana esticada na calça-
formance pode criar uma dramaturgia na cidade através da, comer o Wall Street Journal (“Eating the Wall Street
de intervenções urbanas que jogam, criam, produzem e Journal”, 1991). Temos aí um programa claro, conciso
brincam com o que a própria cidade faz emergir em sua e direto, que dispara uma enunciação que simplesmente
tessitura de acontecimentos. Vemos então um modo de possibilita, norteia e move a ação.
produção em arte que coloca em relação direta corpo, es- 2. A dimensão relacional da performance
tética e política, desinstitucionalizando a arte, quebrando
Dada essa breve introdução sobre a performance, fica
a quarta parede dos museus, teatros e galerias, dissolven-
claro que estamos tratando de um dispositivo amplo e
do relações de poder entre artista e público, questionando
heterogêneo, com uma multiplicidade de dimensões que
a virtuose e a técnica.
abarcam ações que interferem de diferentes modos junto
Desse modo o performer não está interessado em as relações sociais. As performances passam por dimen-
simplesmente acumular inúmeras técnicas, formações, sões autobiográficas, relacionais, políticas, espirituais,
currículos, mas sim poder dar vazão a aquilo que ele já ritualísticas, culturais, cênicas, dentre tantas outras, sen-
tem de força em si, e a performance se forja como o cul- do que essas dimensões podem ou não se cruzarem e se
tivo daquilo que o artista pode fazer exprimir de potente efetivarem em concomitância.
em si e em relação com os outros. Não há mais tanto
Nos interessa aqui discorrer sobre a dimensão relacio-
interesse em explorar situações ficcionais, e começamos
nal da performance. E para isso torna-se imprescindível
a ver trabalhos que se criam em contextos coletivos, gru-
pensar as políticas de participação e relação entre públi-
pais, étnicos, antropológicos, autobiográficos.
co, obra, artista e espaços de fruição. Para ilustrar essas
Os modos de ação em performance são amplos, va- diferentes camadas relacionais, Pablo Helguera (2011),
riados, com uma liberdade de ação incalculável. Francis artista, performer e diretor dos programas acadêmicos do
Alys, performer belga, convocou quinhentas pessoas de MoMA em New York, pode nos ajudar a disparar algu-
uma comunidade em Lima no Peru, para mover em dez mas discussões. Ele propõe quatro tipos de participação
centímetros uma duna de areia, sem motivo especifico, a na relação público-obra:
não ser estabelecer uma rede de solidariedade. Tehching
1. Participação Nominal: o espectador participa de
Hsieh, performer taiwanês, se trancou em uma cela em
maneira passiva da obra, vendo os quadros ou as-
seu estúdio por um ano, ficando ali sem falar, sem ler,
sistindo a uma peça, o que já requer um tipo de
sem escrever, sem escutar música, sem ver televisão,
participação.
contratando alguém para levar-lhe comida e um advoga-
do para testemunhar a ação e guardar a chave. Esses são 2. Participação Direcionada: o espectador executa
exemplos de como a performance, a partir de proposições uma tarefa simples, decidida anteriormente pelo ar-
simples e diretas, podem fazer disparar toda uma política tista. Exemplo: a obra “Wish tree” (1996) de Yoko
de afetos extremamente intensa e complexa. Ono, onde o participante escreve um desejo em um
pedaço de papel e o pendura em uma árvore.
Fabião (2013) irá chamar de “programa performati-
vo” o procedimento composicional do performer. Partin- 3. Participação Criativa: o participante produz con-
do do clássico texto de Deleuze e Guattari (1996), “28 de teúdos para compor o trabalho dentro de uma
novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem estrutura previamente estabelecida pelo artista.
órgãos”, de onde o conceito de programa é o motor para Exemplo: feiras de trocas performativas, onde
a experimentação intensiva de algo, Fabião (2013, p. 4, é estabelecido que não haverá circulação de
grifo do autor) propõe que: dinheiro, mas cada um é convidado a propor
e trocar aquilo que deseja, tal como o coletivo
[O] programa é motor de experimentação porque a prática
“Quandonde – intervenções urbanas” realiza em
do programa cria corpo e relações entre corpos; deflagra
Curitiba (PR).
negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas
impensáveis antes da formulação e execução do programa. 4. Participação Colaborativa: O participante cola-
Programa é motor de experimentação psicofísica e política. bora no desenvolvimento da estrutura e do conte-
Ou, para citar palavra cara ao projeto político e teórico de údo do trabalho em colaboração e diálogo direto
Hanna Arendt, programas são iniciativas. com o artista, como é o caso do trabalho do per-
former Marcelo Asth, que trabalha com pessoas
O programa então é o que enuncia a performance a
idosas dentro do projeto “Performanciã”, no qual
partir de um plano composicional simples, direto e preci-
os participantes elaboram suas ações.
so, com ações previamente estipuladas e articuladas com

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Diogo Rezende; Tânia Alice

Helguera problematiza os modos de participação lan- acontecimentos de sociabilidade, ou objetos que produzem
çando alguns questionamentos: Eu participo de uma obra sociabilidade, enfocando um primado da relação muito mais
simplesmente entrando em uma galeria de arte? Ou eu só do que do produto estético pronto e acabado.
participo quando eu ativamente me envolvo na produção Porém a criação de relações se situa dentro de uma
de um trabalho? São questões complexas, e a proposta de esfera extremamente complexa, e por isso, ainda assim
pensar essas quatro camadas de participação de Helgue- corre-se o perigo de reiterar relações que reproduzem for-
ra, tal como ele pontua, devem ser vistas sem hierarquia mas de subjetividade capturadas pelas estruturas de poder.
em termos de menos ou mais bem-sucedida ao afetar o Claire Bishop (2004), em “Antagonism and relational aes-
público. Ele aponta que essas distinções servem apenas thetics”, critica as práticas relacionais que não empode-
para ajudar a clarear toda uma ampla gama de possibili- ram os participantes mas reiteram relações de poder ou de
dades que envolve a participação em arte. consumo já presentes na sociedade. Bélenguer e Melendo
Porém é sempre importante problematizar esses li- (2012) em “El presente de la Estética Relacional: hacia
miares que fazem com que as políticas de participação una crítica de la crítica” também ressaltam a fragilidade
em arte se modulem, assim como questionar quais são de algumas práticas sociais, quando estas não estabelecem
os modos de ação em arte que ainda mantém uma certa relações críticas diante das relações de poder vigentes.
hierarquização e distanciamento entre artista e público e, Diante dessa complexa rede de afetos que envolvem
visando problematizar um pouco esses limiares e experi- as relações entre as pessoas e as coisas, torna-se impres-
mentando borrar essas fronteiras, iremos discutir o con- cindível pensar de maneira prática quais seriam as possi-
ceito de arte relacional. bilidades de construção dessas propostas relacionais, por
Nicolas Bourriaud (1998), em seu livro Estética rela- isso lançaremos mão do trabalho realizado na plataforma
cional, propõe que a possibilidade de uma arte relacional, de performances “Performers sem Fronteiras”.
que tem como horizonte a esfera das relações e interações 3. Performance de Arte Relacional como
humanas e seu contexto social, faz com que ocorra uma in- prática de Cura (PARC) e a plataforma
versão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos “Performers sem Fronteiras” (PsF)
propostos pela arte moderna, justamente por não afirmar a
arte a partir de um espaço simbólico autônomo e privado. A partir dessas reflexões a respeito das possíveis re-
Já não se considera a obra contemporânea a partir de um lações e sociabilidades disparadas pela performance,
espaço a ser percorrido, e sim como uma duração a ser focamos aqui em um recorte específico que diz respeito
experimentada em uma abertura de sensações ilimitadas. as práticas de performance que possuem algum grau ou
atravessamento clínico/terapêutico. Denominamos estas
Bourriaud relembra o termo “interstício” usado por
experiências fronteiriças de PARC (Performances de Arte
Karl Marx e que designa comunidades de troca que esca-
Relacional como prática de Cura), conceito desenvolvido
pam ao quadro da economia capitalista por não obedece-
por Tania Alice (2015) e operador para auxiliar o enten-
rem à lei do lucro. O interstício seria então um espaço das
dimento destas experiências que abordam a performance
relações humanas que, mesmo mais ou menos inseridas
como uma possível prática de cura por meio de disposi-
no sistema global, fazem passar outras possibilidades de
tivos relacionais acionados por um performer/terapeuta.
trocas além das trocas capturadas e vigentes nesse sistema.
Uma ação em arte relacional que habita esse interstício A ideia aqui é pensar as PARC naquilo que há de atra-
cria espaços de liberdade, gerando durações com ritmos vessamentos clínicos e terapêuticos na performance. Não
contrários ao das durações que ordenam nossas vidas, fa- queremos aqui simplesmente atrelar o viés clínico como
vorecendo intercâmbios sensíveis diferentes das zonas de algo inerente a performance, mas sim pensar quais as
comunicação das grandes narrativas de poder e controle. possibilidades clínicas podem ser ativadas na efetivação
de dispositivos de arte relacional. Nesse sentido, é impor-
Desse modo, vemos uma possibilidade de trabalho
tante destacar a discussão sobre transdisciplinaridade da
em arte onde mais importante que a produção de uma
clínica proposta por Passos e Barros (2000), onde vemos
obra final, será o que acontece no âmbito intersticial, ou
uma problematização em cima das disciplinas que mar-
mais precisamente, no relacional, no que há de potente
cam fronteiras rígidas nas definições de seus objetivos
entre as pessoas envolvidas nessa produção. Podemos
de pesquisa e ação. Ao analisar o esforço realizado nas
dizer que a arte relacional se configura então como um
últimas décadas para flexibilizar tais fronteiras, vemos
dispositivo de produção de relações entre as pessoas, e
que essa flexibilização se dá em diferentes movimentos:
entrando nessa camada relacional, a produção se torna
mais importante que o produto, a troca de afetos e a par- O movimento de disciplinas que se somam na tarefa de
tilha de um campo sensível entre as pessoas se torna a dar conta de um objeto que, pela sua natureza multifa-
força motriz de produção em arte. cetada, exigiria diferentes olhares (multidisciplinaridade),
ou, de outra forma, o movimento de criação de uma zona
Isso quebra radicalmente um distanciamento entre artis- de interseção entre elas, para a qual um objeto específico
ta e público apreciador, e talvez o artista atue aqui - usando seria designado (interdisciplinaridade). Mas o que vemos
um termo caro para os trabalhos finais de Hélio Oiticica e como efeito, seja da multidisciplinaridade, seja da inter-
Lygia Clark - como um propositor muito mais do que um disciplinaridade, é a manutenção das fronteiras discipli-
autor de determinada obra, trata-se então da proposição de nares, dos objetos e, especialmente, dos sujeitos desses
saberes (PASSOS; BARROS, 2000, p. 74).

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Performers sem Fronteiras, uma plataforma clínico-performativa de ações em arte relacional

Nesse sentido, a produção de uma transdisciplinarida- relacional, construtivista, transdisciplinar, complexo e


de da clínica seria realizada em um plano onde sujeito e sistêmico a partir de procedimentos cartográficos e so-
objeto simultaneamente se adviriam, ressaltando o prima- máticos, que visam a: estabelecer cartografias do que
do da relação entre esses termos, e assim seria possível emerge “no” e “a partir do” corpo; a pesquisa de procedi-
problematizar de fato os limites de cada disciplina em seus mentos somático-performativos de atuação no mundo; o
pontos de congelamento e universalidade, tornando essas estudo e a mobilização dos recursos oferecidos pela co-
fronteiras instáveis e fazendo passar sempre o que emerge municação como mediadora relacional; a reflexão sobre
enquanto singularidade, ou o que produz uma diferença, o papel do artista em contextos de emergência; a reflexão
nessa política dos encontros entre os termos de uma rela- sobre a formação possível para este artista. O espaço de
ção. E aqui nossa discussão ganha outro corpo, pois borrar encontro se apresenta como um espaço para instrumen-
as fronteiras entre arte, performance, clínica, terapias, prá- talizações cruzadas e potencializações mútuas, dentro da
ticas de cura, passa a ser nosso principal mote de trabalho. construção de um universo seguro para a troca de expe-
Além disso, outro conceito importante de ser destaca- riências, questões e dúvidas, o que inclusive facilita os
do nessa discussão sobre as PARC é o conceito de cura, processos de orientação artística-interventiva individual
pois também não é objetivo nosso dizer em tom salva- de cada membro do grupo.
cionista que a performance promove por si só a cura de Neste momento a plataforma é composta de forma
traumas ou de outros sintomas em trabalhos realizados. permanente por Diego Baffi (ator - intervenção e palha-
Talvez pensar o conceito de cura a partir de práticas de çaria - dançarino, professor da Faculdade de Artes do Pa-
saúde tais como a Medicina Tradicional Chinesa, a Me- raná/ Universidade Estadual do Paraná (FAP/UNESPAR)
dicina Ayurvedica ou o Yoga, que apontam a cura muito e doutorando da Universidade Federal do Estado do Rio
mais como toda e qualquer prática que cultiva uma saúde de Janeiro (UNIRIO), Diogo Rezende (performer, dança-
e alimenta aquilo que o ser humano possui de potente, rino, terapeuta e Doutorando da UNIRIO), Marcelo Asth
pode nos servir muito mais de intercessor do que o con- (performer, idealizador do projeto Performanciã e Douto-
ceito senso comum de cura como mera cessação de sin- rando da UNIRIO), Gilson Moraes Motta (diretor teatral
tomas. Ou seja, em nossos trabalhos vemos o trabalho e professor da Escola de Belas-Artes da Universidade Fe-
de cura muito mais como o cultivo de uma saúde, ou o deral do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernanda Paixão (palha-
cultivo de práticas que podem gerar saúde por contágio a ça e pesquisadora formada pela UNIRIO) e Tania Alice
partir da própria experiência relacional. (performer, terapeuta de experiência somática, professo-
Podemos então agora ilustrar melhor esse conceito ra coordenadora deste projeto de pesquisa da UNIRIO),
de PARC, e para isso partiremos do trabalho da pla- Laurie Freychet (artista e terapeuta de Reiki), Gabriel
taforma Performers sem Fronteiras, uma plataforma José e Augusto Semensatti (monitores da disciplina de
composta por performers/interventores que possuem o Performance ministrada por Tania Alice na UNIRIO).
interesse mútuo na elaboração de ações que atuem na 4. Ações recentes do Performers sem
zona de contaminação entre projetos artísticos e so- Fronteiras
ciais, clínico/terapêuticos, ecológicos e espirituais. Ao
Neste ponto, mais do que realizar uma lista das ações
unir artistas que pesquisam e realizam intervenções ar-
performáticas realizadas pela plataforma, pretendemos
tísticas participativas dentro do conceito de PARC, o
tomar como ponto de partida três eixos transversais das
Performers sem Fronteiras (PsF) se propõe a atuar em
ações realizadas: o movimento livre, a potencialização
situações onde haja abertura a ações colaborativas de
dos afetos nas artes relacionais e o empoderamento dos
trabalho com base no respeito à diferença e a identidade
participantes em ações de arte relacional.
cultural, propondo intervenções artísticas que atuam de
forma construtiva na gestão individual ou coletiva de 4.1 - O movimento livre
traumas e na construção de processos de paz. Fazem Um dos eixos comuns das ações realizadas pela pla-
parte do espectro de atuação do PsF situações geradoras taforma consiste em propor espaços onde a escuta de si
de trauma como conflitos armados, catástrofes naturais, e do corpo e a expressão do que dele emerge se consti-
ambientais e sociais, bem como situações do dia-a-dia tui como uma pratica reguladora. A primeira experiên-
em ações de cultivo e promoção de saúde. Dentro da cia neste sentido foi o desenvolvimento da performance
plataforma, os artistas elaboram suas propostas de ação “Dança livre para todos”, realizada no “Festival Interna-
junto a colaboradores inseridos dentro das realidades cional da Republica Dominicana” em 2013, no “Festival
visadas, estabelecendo conexões e parcerias pelo forta- Internacional 1000 em 1” (2013) no Rio de Janeiro e em
lecimento do pensamento e da ação coletiva, dentro de seguida em parceria com Diego Baffi, de Curitiba, que
um processo que, mergulhando na experiência, busca vinha realizando a performance “Espaço disponível para
agenciar sujeito e objeto, teoria e prática dentro de um dançar” na “Mostra p.Arte” de Curitiba com curadoria
mesmo plano de co-emergência. de Fernando Ribeiro. Nesta performance, é oferecida
Atualmente a plataforma se reúne de forma presen- primeiro uma oficina e depois é realizada uma perfor-
cial quinzenalmente na casa de uma das integrantes do mance de dança livre em espaços públicos, onde apenas
grupo, e se abre periodicamente para novos participantes. é disponibilizado um espaço livre e aberto para a dança,
O processo de construção desta plataforma tem se desen- deixando o convite a qualquer pessoa interessada a poder
volvido na linha de um pensamento coletivo, ecosófico, partilhar a experiência de dançar juntos.

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Diogo Rezende; Tânia Alice

Inspirada na dança contemporânea dos 5Rhythms de o abraço era destinado. Às vezes, podia ser uma visão
Gabrielle Roth, durante duas horas, conduzidos por mú- que ela tinha tido durante o abraço (“eu vi um menino
sicas que marcam esses 5 ritmos, o corpo passa por um de sete anos com roupa verde”), às vezes era uma esco-
processo de regulação através de preparação, ativação e lha racional (“quero que meu abraço seja entregue para
integração. Não há regras para essa dança, senão escu- uma senhora de 70 anos, uma criança, uma mãe, etc.).
tar o corpo, não se preocupar com o modo como dança, Desta forma, durante o mês de maio e junho de 2015, a
abaixar os filtros de julgamento e adjetivação. “Dançar performer coletou 605 minutos de abraços de brasileiros
feio e babar muito” é uma espécie de lema motivador para 124 destinatários moradores do Nepal. No dia 5 de
para esse trabalho. A dança nesse sentido se constitui julho, junto a outros profissionais da saúde, terapeutas e
como uma meditação em movimento, durante a qual o artistas, Tania Alice embarcou para o Nepal, com as fo-
corpo pode se expressar de forma espontânea. Confor- tos impressas dos remetentes dentro de envelopes para os
me aponta Gabrielle Roth (2016, online, tradução nos- seus destinatários. No Nepal, com a ajuda de um artista/
sa), criadora dos 5Rhythms: tradutor local, ela foi a pé, de ônibus, van ou scooter pro-
Quando praticamos os 5Rhythms, aprendemos a expressar curar os 124 destinatários. Encontrou as crianças, grupos,
emoções de agressividade, e vulnerabilidade, dificuldades idosos, adultos nas mais diversas regiões do país e em di-
e ansiedade de forma criativa. A prática nos reconecta com versas situações sócio-econômicas, sanitárias e de saúde.
os ciclos de nascimento e morte e nos conduz à humanida- Alguns abraços também foram destinados a plantas e ani-
de e ao espírito de todos os seres vivos. [...] Os 5Rhythms mais. A cada abraço entregue, foi enviada uma foto para
transcendem a dança. O movimento é a medicina, a medi- o remetente confirmando a entrega. A performer voltou
tação e a metáfora. Juntos, deixamos as mentiras para trás, para o Brasil em 5 de agosto de 2015. Os 124 abraços
deixamos as máscaras caírem e dançamos até desaparecer.1 tinham chegado aos seus destinatários. Essa performance
A junção dessa pratica com os recursos do SE2 foi está registrada em um jogo de memórias feito a partir dos
analisada por Tania Alice e por Diego Baffi (2016) em pares de abraços entre Brasil e Nepal e que foi lançado
“Traga seus problemas para a arte! Performances de arte em dezembro de 2016 no Rio de Janeiro.
relacional como cura”, que mostra como as diferentes 4.3 - O empoderamento dos participantes em ações de
fases dos 5Rhythms (flow, staccato, caos, lírico e a quie- arte relacional
tude) correspondem a curva do sistema nervoso em pro- Durante o segundo semestre de 2015, Diogo Rezende
cesso de regulação. Esse trabalho foi realizado em outras e Tania Alice, em articulação com a terapeuta ocupacio-
ocasiões por Tania Alice e seguiu acontecendo de manei- nal Roberta Carvalho do Centro Psiquiátrico do Rio de
ra semanal com um grupo sempre aberto e gratuito na Janeiro (CPRJ), participaram regularmente das oficinas
Unirio entre os anos de 2014 e 2016. de criação em arte e corpo facilitada pela própria Roberta
4.2 - A potencialização dos afetos nas artes relacionais junto aos usuários deste serviço de saúde mental.
A performance “Correio de abraços Brasil / Nepal” A partir deste trabalho, foi sendo articulada junto a
foi idealizada por Tania Alice após os terremotos que esses usuários a criação de uma performance relacional
ocorreram no Nepal nos dias 25 de abril e 2 de maio de construída de maneira coletiva e que posteriormente se-
2015. Essa ação se deu a partir de um sentimento de im- ria apresentada no 10º Seminário de Medicina Social do
potência diante dos acontecimentos e das alarmantes no- Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
tícias de que doações internacionais de ajuda para o país do Rio de Janeiro (UERJ).
estavam sendo desviadas pelo governo nepalês. Nesse Os usuários do CPRJ que frequentavam este grupo
sentido ressoava na performer a seguinte questão: O que possuíam longas histórias de tratamento em saúde men-
era possível de ser feito e que manifestasse essa solida- tal, alguns deles com longos períodos de internação e
riedade vista nas doações internacionais, e que ao mesmo todos eles com certa cronicidade em seus tratamentos.
tempo, não fosse passível de desvio e corrupção por parte Dessa maneira foi sendo realizado um trabalho de vincu-
do governo nepalês? lação a partir do que os próprios usuários manifestavam
“Escolha um abraço de 5, 10 ou 15 minutos. Venha de interesse nas propostas artísticas trabalhadas no grupo
me entregar o seu abraço. Dia 5 de julho, estarei embar- facilitado por Roberta. E após participar semanalmente
cando para o Nepal e irei entregar pessoalmente o abraço desses grupos, Diogo e Tania propuseram a criação de
para o destinatário que você escolheu ou visualizou du- uma performance coletiva realizada pelos próprios usu-
rante o abraço”. Estes foram os dizeres de um cartaz que ários. O grupo era grande, com cerca de 25 usuários, e
a performer carregou com ela por 5 semanas seguidas. desses, quatro deles manifestaram interesse em construir
Sentada em praças, salas de espera, transportes públicos, uma performance coletiva.
em festivais e em reuniões diversas, dia após dia, ela foi A partir daí começamos um trabalho semanal de cria-
coletando esses longos abraços. Após cada abraço, quem ção com esses quatro usuários, clareando a proposta de re-
tinha entregue o abraço podia escolher a pessoa a quem alizar essa ação para os profissionais de saúde participantes
do 10º Seminário de Medicina Social da UERJ, o que os
 Para mais informações sobre os 5rhythms, ver Roth (1997).
1
deixou muito motivados. Em nossos encontros cada um
 Somatic Experiencing (Experiência Somática), técnica somática para a resolução
2

e cura de traumas, criada e fundamentada por Peter Levine (1999, 2005) e da


qual a performer Tania Alice se utiliza em algumas de suas ações em perfor-
mance.

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Performers sem Fronteiras, uma plataforma clínico-performativa de ações em arte relacional

dos quatro foi manifestando aquilo que mais gostavam de Tendo em vista os trabalhos da plataforma PsF aqui
fazer e o que mais gostariam de compartilhar com os pro- expostos, percebemos que de maneira geral, há três con-
fissionais de saúde que participariam do evento na UERJ. ceitos atravessadores comuns entre todos eles, a saber: a
No final chegamos a ação coletiva “Todo sonho bem clínica, o somático e a performatividade. A partir desses
sonhado pode um dia virar realidade”, nome criado por três conceitos, Diogo Rezende vem elaborando em seu
um dos usuários para a performance onde cada um deles, processo de doutoramento em Artes Cênicas na UNIRIO,
durante uma tarde inteira do evento na UERJ, pôde par- o conceito de clínica somático-performativa. Trata-se de
tilhar com os profissionais de saúde presentes no evento, um trabalho prático e conceitual que alia a transdisciplina-
aquilo que mais gostavam de fazer: uma mesa de criação ridade da clínica com algumas perspectivas de educação
conjunta de poesias, um bate-papo sobre a situação po- somática e o paradigma performativo na arte contemporâ-
lítica do país, uma mesa sobre dispositivos eletrônicos nea para pensar o corpo e as relações entre corpos suscita-
e informática e um convite a lavar louças com uma boa das por diferentes trabalhos de arte relacional.
conversa para passar o tempo. No contágio desses trabalhos, é importante destacar o
Os desafios do trabalho em saúde mental são imensu- artigo indefinido “uma”. Tratamos aqui de uma clínica so-
ráveis, e a desinstitucionalização é algo a ser feito coti- mático-performativa, pois não se trata de uma proposta ou
dianamente, mas ali, durante toda a tarde de um evento modelo clínico definido e acabado. Trata-se de uma propos-
acadêmico com palestras e apresentações de trabalhos, ta experimental que se faz em seu próprio processo de acon-
uma outra política de trocas entre profissionais de saúde e tecimento e nesse sentido podemos dizer que os trabalhos
usuários da saúde mental pôde ser estabelecida. E assim, empreendidos pela plataforma PsF nos coloca no lugar do
o protagonismo dessa performance é assumido por essa cultivo e da promoção de uma saúde, uma saúde que seja
complexa, rica e, muitas vezes sofrida, paisagem subjeti- amparada por perspectivas relacionais e que fomentem a so-
va desses quatro performers. ciabilidade e as partilhas sensíveis entre as pessoas.
5. Conclusão Referências

Muito além do tão enfatizado “corpo do performer”, “corpo ALICE, T. Diluição das Fronteiras entre linguagens artísticas: a
do dançarino” e “corpo do artista”, o espaçotempo expan- performance como (r)evolução dos afetos. Catálogo Nacional,
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lidade coerciva (mascarada em realidade de consumo) em
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formativa (PSP), e com essa proposta temos um tipo de
Revolução dos Afetos. São Paulo: Annablume, 2016. p. 177-194.
pesquisa onde a prática não é tomada mais como um ob-
jeto de estudo, ao invés disso a prática é em si mesma o BELENGUER, M. C.; MELENDO, M. J. El presente de la
método de pesquisa, ou seja, temos um tipo de pesquisa estética relacional: hacia una crítica de la crítica. Calle 14:
Revista de investigacion en el campo del arte, Colômbia, v. 6,
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n. 8, p. 88-100, 2012. Disponível em: <http://revistas.udistrital.
experiência de pesquisa. Porém, para além desse viés prá-
edu.co/ojs/index.php/c14/article/view/3789>. Acesso em: 23
tico, há também o viés somático dessa proposta de pes- mar. 2017.
quisa. Trata-se de tomar uma concepção somática dessas
práticas, uma concepção somática que tem como eixo a BISHOP, C. Antagonism and Relational Aesthetics.
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imagens), bem como todas as conexões que se faz entre cgi?article=1095&context=gc_pubs>. Aceito em: 21 mar. 2017.
interno e externo, mobilidade e estabilidade etc. Além de
uma integração dos níveis físicos, emocionais, cognitivos, BOURRIAUD, N. Esthétique relationnelle. Paris: Les Presses
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Ciane Fernandes ressalta, porém, que não se trata de DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 28 de novembro de 1947
necessariamente aplicar técnicas de educação somática – Como criar para si um corpo sem órgãos. In: ______. Mil
platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34,
e nem de estudar performance para ser considerada uma
1996. v. 3, p. 9-30.
PSP, pois o fundamental é que se tome a corporeidade
como um todo somático, autônomo e relacional. O mo- FABIÃO, E. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena
dus operandi desse tipo de pesquisa tomará as conexões contemporânea. Sala Preta, São Paulo, v. 8, p. 235-246, nov.
somáticas criativas como seu eixo norteador. Temos aí 2008. CrossRef.
uma concepção ampliada acerca de uma experiência so-
mática, temos uma perspectiva somático-performativa
que leva a experiência de pesquisa para a amplitude da
prática vivida no/com o todo do espaço-tempo.

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Diogo Rezende; Tânia Alice

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 196-202, 2017
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Dossiê Corporeidade

Por uma política do co-passionamento:


comunidade e corporeidade no Modo Operativo AND
Fernanda EugenioH
AND Lab (Centro de Investigação em Arte-Pensamento e Políticas da Convivência), Lisboa, Portugal
Resumo
Através de uma conversa situada com a prática do commoning e as questões do comum e da comunidade, este texto procura
re-visitar a trajetória de pesquisa e o campo de inquietações do Modo Operativo AND – uma investigação praticada e de aplica-
bilidade transversal, acerca das políticas da convivência e dos funcionamentos do Acontecimento, que venho desdobrando desde
2005 numa interlocução entre o fazer etnográfico e outros campos (em particular o da dança/performance e, mais recentemente,
o da psicologia). Apresenta-se aqui, ainda, a mais nova ferramenta-conceito formulada no âmbito desta investigação – o co-pas-
sionamento – explorando as consequências que tomam (e fazem) corpo através da sua frequentação.
Palavras-chave: Modo Operativo AND; comum; comunidade.

Towards a politics of “co(m)passionment”:


community and corporeality in Modus Operandi AND
Abstract
Through a situated conversation alongside the practice of commoning and the issues of the common and the community, this text
re-visits the trajectory of research and the inherent concerns of Modus Operandi AND - a transversal and practice-based approach
to the politics of togetherness and the operative modes of the Event that I’ve been investigating since 2005. MO_AND rests in the
interchange between the ethnographical ways of doing I’ve been practicing as an anthropologist and procedures coming from other
fields (mainly dance/performance and, most recently, psychology). The newest tool-concept formulated within the framework of this
research, “co(m)passionment”, is also presented here and the embodied consequences that may emerge out of its practice explored.
Keywords: Modus Operandi AND; common; community.

A compaixão ocupou e ocupa um lugar de certo modo faltante – e que atua por perpetuação da falta, de modo a
periférico na cosmovisão ocidental moderna, possivel- permitir que um Eu hierarquicamente superior possa, em
mente como corolário da operação de “cisão” pela qual loop, exercer a sua bondade e expiar a sua culpa.
emergiram os valores fundantes do modo operativo da Isso diz muito sobre o funcionamento do Estado –
modernidade: a laicidade, o cientificismo, a objetividade um Estado que, entre nós, se funda por invenção gemi-
e, sobretudo, o racionalismo. Esta operação cuidou em nada com o individualismo (VIVEIROS DE CASTRO;
atribuir um lugar garantido porém apartado, em termos ARAÚJO, 1977). Funda-se porque, em havendo um
de legitimidade discursiva, à religião nas suas mais diver- indivíduo que doravante desprende-se do coletivo para
sas formas, e a restringir o alcance e a transversalidade se apaixonar  por  si mesmo (sendo até o apaixonamen-
daquelas que seriam as suas práticas. Sendo a compaixão to pelo outro um modo sobretudo de fazer identidade),
uma delas, sua inteligibilidade e sensibilidade tenderam este passa a desejar cuidar tão somente de si, abando-
a ser englobadas (e reduzidas) às molduras do discurso nando a coisa pública e aquilo que poderia ser o co-
religioso, sobretudo aquele de tradição judaico-cristã. mum, delegando o “entre-nós” a ser legislado a partir
Modulados pelos mecanismos religiosos do assistencia- de fora por uma máquina de Estado. Ou seja, o mesmo
lismo, da caridade e da tutela, o falar e o fazer da compai- movimento que reduz a compaixão a um gesto com-
xão não raro restringiram-se à chave “culpa-desculpa”. pulsório (para o crente) e dispensável (para o indivíduo
A compaixão, que poderia ser, muito mais vastamente, moderno) é o que faz da paixão um gesto fundamental
experimentada enquanto “sintonia forte” – um “sentir- para a identitarização do eu. E ambos estes gestos, juntos,
-com” que não para de abrir brechas para a sintonização operam a indiferença como modo de estar em coletivo,
entre estranhos, alheios e díspares –, tendeu, ao contrário, confiscando-nos uma imensa força vital que poderia ser
a exercer-se como parte de jogos de poder destinados a força de “autogoverno” e de gestão coletiva dos nossos
continuadamente separar sujeitos e sujeitados, distintos acontecimentos comuns. Força relacional que, por vita-
e dependentes. Assim, o lugar possível para o exercício lismo e propagação, já tenderia a priorizar inevitavel-
da relação de “sintonia forte” da compaixão foi conse- mente o comum e o acontecimento, a operar em “modo
cutivamente confiscado por uma lógica moralista, “edu- default” por simpatia e solidariedade. A força do “passio-
cativa” e “salvadora” – lógica que salva sob a condição namento” que só poderia, não fosse o instaurar da cisão
de colonizar; que consente em incluir sob a condição de moderna, ser “co-passionamento”.
civilizar; que enxerga o outro sob a condição de vê-lo
A pesquisa do Modo Operativo AND vem se
dedicando a perceber sensivelmente como operar,
H
 Endereço para correspondência: AND Lab, Centro de Investigação em Arte- no corpo do dia-a-dia, práticas na direção de uma
-Pensamento e Políticas da Convivência. Travessa das Almas, 2, 2º. Esq. – Es-
trela. Lisboa – Portugal. CEP: 1350-003. E-mail: info.andlab@gmail.com
Fernanda Eugenio

“des-cisão”: 1 de um desfazer da cisão moderna atra- de um conjunto de decisões entre certo e errado, bom e
vés de modos de entrar em relação que permitam mau, justo e injusto, animado e inanimado, humano e não-
reencontrar, nas nossas “decisões” mais cotidianas, -humano, homem e mulher, homens e animais, adultos e
um “inter-isso” enquanto afetação recíproca e situ- crianças, normal e patológico, opressores e oprimidos,
ada. “Inter-isso”, questão entre-nós, inquietação do objetos e sujeitos, sujeitos e sujeitados etc. Assume-se que
juntos, capaz de, ao mesmo tempo, não se confun- este mapa de oposições binárias e duras seria apenas um
dir com o mero “interesse” e fazer frente ao “intei- modo de dizer a verdade de uma essência ou substância
riço” compacto da indiferença (ou da identidade), que preexistiria às relações, e daria o corpo dos entes e
para encontrar a cada vez a multiplicidade do “in- dos termos. Neste sistema, trabalha-se por cancelar o des-
teiro” que é o comum. Comum enquanto diferença conhecido e o inesperado, por controlá-los tornando-os
conseqüente da relação. Relação que é viva enquan- previsíveis, enfeixando-os num conjunto de cisões que,
to segue diferindo, “des-cindindo” e “dissentindo”. doravante, passam a servir de modelo: todos os movi-
Frequentar o Modo Operativo AND convoca, assim, mentos que acontecem passam, assim, a ser precedidos
a revolver os modos pelos quais a compaixão foi so- pela sua autorização, por um saber que já os decifra de
cial e politicamente confinada dentro de um quadro antemão e já prescreve a conduta apropriada. A tendência
moral, reencontrando-a, enquanto ética de cuidado deste funcionamento é a de consecutivamente dar lugar
situado, enquanto força de moção comum – “co-mo- à reprodução e à representação. E estas só se interrom-
ção”. A proposta, com o Modo Operativo AND, é pem quando colidem com um acidente de proporções tais
estudar e praticar meios possíveis para sintonizar que inviabilizam esta (pós-)moderna “mobilização infini-
o “co-passionamento” enquanto potência de víncu- ta” (SLOTERDIJK, 2000) de avançar com o saber, dan-
lo entre diferentes, capaz, quem sabe, de prescindir do notícias do (até então) impossível e impensável. Não
tanto do gesto normativizador da identificação e da há recursos, neste sistema, para se lidar com o acidente
identitarização, quanto do gesto normalizador da ‘inanexável’ à lógica da explicação, da interpretação, da
compassividade e da complacência. atribuição de valências e sentidos que esquadrinham, re-
É nesta “altura” – aqui tomada simultaneamente gulam e hierarquizam – a lógica do saber. Daí que, quan-
como espaço e tempo – que gostaria de propor um en- do eles acontecem, o sistema paralise, traumatize.
contro entre o Modo Operativo AND e as ferramentas A não ser que tenha havido também o treino da aten-
conceituais desdobradas no plano dos estudos e reflexões ção e da sensibilidade para outras faixas de frequência
sobre comunidade e corporeidade. – aquelas que operam no intervalo, “entre” e “ao longo”
O Modo Operativo AND: nem supor, nem impor; das linhas do encontro: no E. E isto porque, à revelia da
compor, com-pôr, pôr com pretensão de controle totalitário das diversas variações
do Modo Operativo É que regulam de modo mais ou
O funcionamento social dominante ou encompassador menos espraiado, contemporaneamente, o socius global,
no mundo em que vivemos – não necessariamente por ser há sempre, na multiplicidade dos encontros, um outro
maior do que nós, mas por ser reiteradamente ativado à modo operativo a fazer vida constantemente na surdina:
nossa escala – é o de assumir a existência prévia do ideal, o Modo Operativo E (AND). Porque os eventos estão
ou da ideia, ou do modelo, qualquer coisa que legisla o sempre a incidir aquém ou além das prescrições e regula-
que é ou deve ser o “jogo da vida”, por pré-determinação ções; daquilo que supõe ou impõe o funcionamento É: no
 A noção de “Des-cisão” – em relação de triangulação com “cisão e decisão”
1 limite, não há outra coisa senão acidentes. O Modo Ope-
– é parte do conjunto de ferramentas-conceito AND, que venho desdobrando rativo É até pode desejar a (e trabalhar pela) supressão de
na pesquisa da etnografia enquanto performance situada do encontro, ou Modo
Operativo AND, a partir de um esforço de exploração da plasticidade das pa- tudo o que escapa aos seus moldes, mas não sendo esta
lavras para fazê-las dizer e performar outros mundos possíveis. São também de fato possível – é da “diferencialidade da diferença”
ferramentas-conceito AND, muitas das quais serão mencionadas ao longo deste
texto: o “re-parar” (parte da tripla modulação “parar”, “re-parar” e “reparar” – como processo vital que o funcionamento E dá notícias,
síntese do Modo Operativo AND enquanto trabalho de “reparagem” ou treino de microscopicamente, a cada vez –, o que o sistema É aca-
“desfragmentação”); a “re-existência” (em tensão com “existência”, “desistên-
cia” e “resistência”); a “posição-com” (em tensão com “composição” e “impo- ba por fazer mais eficazmente é assegurar a nossa insen-
sição”); além do neologismo “secalharidade” (em tensão com a “modernidade” sibilização (ou imunização, como veremos mais adiante)
e a “pós-modernidade”); a formulação dos Modos Operativos É-OU-E, o jogo
das perguntas QUE-COMO-QUANDO-ONDE; o jogo de descrição-circunscri- a este murmúrio de acidente-e-improviso, tentativa-e-
ção/formulação-performação ISTO-ISSO-ISTO; o Diagrama de Posicionamento -erro, que vai sendo a matéria e fazendo a consistência
Aberto-Explícito (em continuum com as zonas extremas do “implícito” e do “fe-
chado”) e as duplas saber/“sabor”, coerência/“consistência”, eficiência/“sufici- das nossas relações nos mais variados planos, dos mais
ência”, explicação/“implicação”, representação/“presentação”, relevância/“rele- infinitesimais, diminutos ou íntimos aos mais alargados,
vo”, rigidez/“rigor”, justiça/“justeza”, fragmento/“fractal”, (in)dependência/“au-
tonomia” etc. Para outros textos nos quais estas ferramentas são exploradas em mundiais, cósmicos, num fazer constante e invisível de
mais detalhe, Eugenio (2010, 2012, 2017), Eugenio e Fiadeiro (2013) e Duenha, “re-mediação”: de “des-cisão” das proclamadas cisões
Eugenio e Dinger (2016). Fazer (com) conceitos, tornando-os em ferramentas
para a tomada de posição através de dispositivos de jogo performativo, tem sido (ou oposições binárias) modernas.
a tônica de minha trajetória de pesquisa, primeiro estritamente no campo da an-
tropologia, a seguir numa interlocução com o campo das artes performativas e da Daí que o trabalho a fazer, para desviar do É sistêmi-
presença. Este trabalho continuado adotou diferentes nomenclaturas desde 2005 co – e da sua impossibilidade congênita de acolher o aci-
(Sistema É-Ou-E e Modo de Vida E, entre 2005 e 2006; Etnografia Recíproca e
Etnografia como Performance Situada, mais fortes entre 2006 e 2008, mas ainda dente – não seja negá-lo ou confrontá-lo, mas, sobretudo,
hoje utilizadas; Re-programa, Reparagem e Pensação, mais fortes entre 2009 e consista num sintonizar com a faixa de frequência menos
2011, mas ainda hoje utilizadas), até ser sintetizado no formato hoje conhecido
como Modo Operativo AND – síntese para a qual foi de grande importância ruidosa do E, que está sempre lá. Trabalho de sensibiliza-
o período de colaboração intensiva com o coreógrafo português João Fiadeiro ção e fractalização da atenção: esforço por distribuí-la na
(2011-2013), no âmbito do qual o AND Lab foi fundado em Lisboa.

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Por uma política do co-passionamento: comunidade e corporeidade no Modo Operativo AND

multidirecionalidade sem significado do acontecimento, Tocar nesta matéria inefável, dizê-la consecutiva-
por distrair-se das intencionalidades do “Eu” através da mente ao mesmo tempo em que se trabalha por preser-
“co-operação” com o desdobrar das relações. Fazer da vá-la indizível, é uma possibilidade que se mantém viva
atenção um gesto de cuidado e sustentação daquilo que na medida da nossa capacidade de fazer do encontro um
se vai (re)conhecendo conforme se vai deixando de sa- encontro sustentado, dando espaço para a emergência
ber: o alinhamento intensivo dos corpos e dos afetos, ao lenta e gradual de um plano comum descritivo e circuns-
longo dos quais a malha da vida se tece ilimitadamente. critivo, “sem pressa de saber”. Esta possibilidade “dá-se
Este cuidado enquanto “atenção distributiva” permite mas não é dada”: é preciso trabalhar por ela, através da
prescindir tanto da suposição quanto da imposição, abrin- clarificação e da potenciação da dimensão “performati-
do brecha para que a tomada de posição se faça, a cada va” do encontro etnográfico, feita sobretudo de um esfor-
vez, com a matéria da posição que já lá está, se manifes- ço de sintonização com modos alheios de perguntar (e,
tando enquanto “com-posição” – ou, ainda mais preci- com isso, de formular o acontecimento) – um trabalho de
samente, “posição-com”. Um lidar situadamente com os “correspondência”, nos termos de Ingold (2012), ou de
problemas; um diluir dos contornos do “problema meu” “co-passionamento”, como o tenho formulado.
no “problema situado”. Frequentar o Modo Operativo Esta dimensão da prática etnográfica não é aquela que
AND envolve, por isso, conter o automatismo do saber, e se habita preferencialmente na prática antropológica de
a tentação reiterativa de ativar as regras de um jogo pre- produção de conhecimento acadêmico. Sintonizar com
viamente estabelecido, para percorrer e mapear as con- ela foi, por isso, suscitando lentamente um campo de
dições que se apresentam, para manuseá-las e deixar-se Fora – que colidiu num primeiro momento com o campo
manusear dando lugar ao encontro do jogo justo: aque- da dança e da performance e, nos anos mais recentes, tem
le que se propiciar. Envolve desviar tanto do vitimismo feito Fora numa entrada em conversação com as práticas
quanto do controladorismo que poderiam levar a acatar de mediação e clínica transdisciplinar da psicologia, com
enquanto “condicionantes” as “condições” de possibili- as práticas alterotópicas na arquitetura e no urbanismo,
dade que suportam o encontro – e envolve, sobretudo, com as pedagogias radicais exploradas no campo da edu-
fazê-lo sem, entretanto, confundir esta disponibilidade de cação, com os estudos de informática dedicados à intera-
aceitação, não-julgamento e reconhecimento que habili- ção humano-computador etc.
tam para a luta (“lutar é fazer com o que se tem”) com a O Modo Operativo AND, enquanto filosofia habita-
resignação, o conformismo ou a desistência que resultam da, envolve um comprometimento por colocar no mesmo
do entrincheiramento no juízo e na opinião. Por fim, en- plano o pensar e o fazer, conjugando, por um lado um
volve ainda trabalhar para que o mapa (o mapa do que “esforço do formular” – gerar em ato o vocabulário justo
há, e do que este possibilita) se desdobre reciprocamente, para dizer os modos operativos do acontecimento – e, por
atmosfericamente, “des-cindindo” as fronteiras entre su- outro lado, um “esforço do concretizar” – materializar
jeito e objeto, eu e entorno, para disseminar o olhar em a formulação em gesto e tomada de posição, efetuando
“reparagem” filigranar: aquela que fará de tudo – meu, os conceitos como ferramentas. A conjugação desses es-
teu, delu(s) ou nosso – matéria de commoning (STAVRI- forços – “dar palavra ao corpo e dar corpo à palavra”,
DES, 2016) e emaranhado de vida. recursivamente – tem a ver com a possibilidade de ga-
A sensibilidade etnográfica e a prática do co- nhar intimidade infinitesimal com o fenômeno da relação
passionamento: sintonia, commoning e strangership e do relacionar-se, e em especial com o seu disparador:
a afetação recíproca, o “co-passionamento”. Habitar uma
O Modo Operativo AND emerge, inicialmente, das
certa inflexão diminuta do pensamento investigativo, em
questões que cercam o encontro etnográfico e da opor-
que este se investe de franqueza, disponibilizando todos
tunidade de invenção recíproca que este porta consigo.
os seus recursos para acompanhar “de perto em perto”,
Esta oportunidade, sendo inerente à situação-encontro,
e com precisão, a própria imprecisão do viver junto – na
não é inerente a toda e qualquer forma de praticar a et-
sua incongruência e incoerência vivas, desviando o des-
nografia; algumas delas, ao contrário, podem se construir
tino habitual dos conceitos de servirem para consertar
justamente a partir do seu cancelamento sistemático pela
e “coerentizar” a imprecisão, fazendo-os seguir, dizer e
via da interpretação e da produção de diagnóstico sobre
fazer a “malha” multidirecional e multicentrada da vida
o outro. O Modo Operativo AND, portanto, frequen-
(INGOLD, 2012). Deixar de interpretar, em suma, para
ta uma modulação singular da etnografia – aquela que
dar lugar a um “mapa trajetivo” (DELEUZE, 2000) que
se compromete de modo radical com a sustentação do
vai se desenhando conforme se assiste (no sentido de
não-saber, com o trabalho pela re-materialização do pos-
prestar assistência, não de “espectar”) o encontro em seu
sível, do pensável e do praticável através da afinação sin-
desenrolar “indefinido” e “impessoal”.
tônica com a “força-questão” e/ou a “forma-problema”
performada(s) no encontro com o outro. Trata-se de um Este pensamento-em-ato do Modo Operativo AND –
trabalho com a matéria daquilo que se “desobvia” quan- que chamei de “pensação” – foi aos poucos vazando e
do reconhecemos e nos dispomos a habitar um território transbordando do campo de problemas contra o qual se
“alterotópico” (PETCOU; PETRESCU, 2007): a matéria formulou (o campo da antropologia). Propagando-se de
inominável do “Isso” (JULLIEN, 2000). modo não planejado, assistemático e acidental, tem encon-
trado nos últimos anos outros e cada vez mais variados in-
terlocutores e usos, assim ganhando corpo como pesquisa

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Fernanda Eugenio

transversal dos modos de transmutação da “síndrome do mum, esvaziando-o do seu caráter político para tentar
dar-resposta” numa “força-tarefa de dar-pergunta”. Foi se fundi-lo ao “conceito fraco” da semelhança, ou fazer
tornando numa ética – a “ética da suficiência” – e num dele mero sinônimo de noções puramente lógicas, como
modo de vida: o do fazer comunidade prescindindo do a de “universal”, ou eminentemente econômicas, como
mecanismo identitário da pertença e da reprodução (seja a da “igualdade/uniformidade” (JULLIEN, 2010). En-
pela filiação direta – kinship – ou, no máximo, por afini- tretanto, ao invés de assentar a sua manutenção num es-
dade eletiva, friendship) para frequentar o mecanismo do forço por levantar trincheiras físicas e/ou imaginárias, na
impróprio e do comum – aquele disposto a fazer, a cada reivindicação de supostas purezas originárias, essências
vez, strangership (HORGAN, 2012). autênticas ou pertencimentos ditos mais legítimos do que
Ao sublinhar uma disposição por fazer no “dissenso” outros, o comum faz-se possível, a cada vez, justamente
(RANCIÈRE, 2005) – ou seja, por, mais do que “falar na “impossibilidade da conciliação e da pacificação”, e
com estranhos”, “(dis)sentir com” eles, prescindindo num esforço deliberado (e inevitavelmente político) por
da identificação como motor de solidariedade, e fazen- “fazer co-operar” diferenças em encaixes situados, provi-
do desta sobretudo um compromisso de afinação com sórios, heterogêneos e desiguais.
o problema alheio por “frequentação” – dispomo-nos a “Fazer (n)o difícil”, nas palavras de Nancy (2014)
explorar outras modulações da comunidade. Esta deixa para descrever o trabalho minucioso e diligente da “escu-
de ser um fechar-se sobre si ou “os seus” para tornar-se ta”: e não seria numa escuta mútua que habitaria a hipó-
numa disposição e num gesto: o do commoning, do fazer- tese de uma compreensão capaz de desviar da sinonímia
-com (potencialmente) qualquer um ou quaisquer muitos. privilegiada com o entendimento, para assentar sobretudo
Saímos, assim, da esfera de um pensamento entitário da num dos seus sentidos menos empregados cotidianamen-
comunidade, que tende a encará-la como substância par- te, mas eventualmente mais potente – o de compreensão
tilhada de antemão (por sangue ou solo, por exemplo) como “abarcamento”? Sim, o comum envolve mesmo
ou como instância de respaldo à (re)afirmação identitária isto: ser capaz de “abarcar sem entender, considerar sem
dos indivíduos, para adentrar num modo de formular e julgar, incluir sem classificar”. E isto porque não é pos-
praticar a comunidade enquanto experiência sobretudo sível associar o comum, senão abstratamente, a modelos
de “dessubjetivação coletiva” – e, portanto, como pro- tais como o de um fundo originário – uma dita natureza
cesso de “vinculação” sempre (em) aberto. partilhada, sobre a qual teria se adicionado a roupagem da
Ativar este outro modo de abordar e praticar a co- diferença, ideia-chave do relativismo cultural – ou o de
munidade envolve sintonizar com um comum que não é uma síntese ou denominador comum, minima moralia ou
nem essencial nem substancial, mas potência. Algo que “bom senso” – ideias-chave do pensamento universalista.
já lá está, desde sempre, mas enquanto virtualidade a ser Diante dos choques concretos e situados da convivência,
realizada, e não enquanto essência ou verdade original. É nenhum desses dois recursos é suficiente para efetuar o
virtualmente possível virmos a ter um comum justamente encontro de modo justo, já que não se chega ao comum
porque somos irremediavelmente diferentes e outros: é por média: “o comum não é meio termo, mas meio am-
do fato de que há distância entre nós que emerge a pos- biente” – “justo meio”, na expressão de Jullien (2000).
sibilidade de ligá-la, de maneiras ilimitadas, que estão Não é possível fazer comum por “pressuposição”,
sempre por inventar a cada vez. Se já estivéssemos pró- assentando-o na alegação de fundos (naturezas) ou su-
ximos, se já fossemos o mesmo, não haveria nem hipó- perfícies (consensos); tampouco se pode fazer comum
tese nem necessidade de fazer comum: o comum não se por “imposição”, via pela qual se pode, quando muito,
manifesta, portanto, na identidade nem na identificação, fabricar uniformidade por terraplanagem. Como diz La-
mas na possibilidade de ligar os díspares, os discordan- tour (2011), “não existe mundo comum; é preciso com-
tes, os diferentes. Mas, porque é possível, mas nem por pô-lo”: o fazer comum tem como caminho possível a
isso garantido, “o comum custa”, dá trabalho: o trabalho “composição”, e como modo operativo o transformar do
de “passar do comum (virtual) à comunidade (que se re- gesto compositivo numa arte política da reciprocidade,
aliza)”, da potência à posição, e da posição à com-posi- num trabalho de “posição-com”. “Tomar posição com a
ção, percorrendo “de perto em perto” as distâncias que posição do que já lá está” envolve disposição para re-
nos juntam e separam ao mesmo tempo. A comunidade é, começar a cada issue – a cada acidente e problema dele
desta perspectiva, a consequência de uma “ética da com- emergente –, pois “não há nada que possamos transportar
posição”, como já sinalizara Deleuze (1981): o plano de tal e qual de uma situação a outra; a cada vez será preciso
consistência ou de imanência ao mesmo já está lá e preci- ajustar e não aplicar, descobrir e não deduzir, especificar
sa de ser composto, da mesma maneira que um corpo se e não normalizar, descrever – antes de tudo, descrever”
define pelo que ele pode, mas não há como saber de an- (LATOUR, 2011, p. 40, tradução nossa). E, acrescentaria
temão o que pode um corpo, sendo preciso equilibrar-se ainda: chegar, por esta via da descrição-manuseamento, à
entre o risco e a prudência para, em relação, corporificar. “circunscrição”, à enunciação das relações-tensão que se
Esta “comunidade dos que não têm comunidade” cruzam e fazem a superfície de contato entre os proble-
(para usar a expressão torta, e por isso mesmo tão pre- mas, este lugar-situação que “se dá” ao encontro, mas por
cisa, de BATAILLE, 1992) nada tem a ver com o igual, si só não o garante: reconhecer e “aceitar” a sua matéria,
o homogêneo ou o consensual – formas nas quais a cos-
movisão ocidental moderna procurou fazer caber o co-

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Por uma política do co-passionamento: comunidade e corporeidade no Modo Operativo AND

inventariar o que ela pode e o que podemos nós com ela, novamente e a cada vez, desviando sucessivamente e sem
tornando então o lugar-situação em lugar-comum, per- fórmulas prontas dos mecanismos de captura capitalistas
formando o “retribuir”. cada vez mais conexionistas e rizomáticos.
Valerá, assim, voltar a atenção à própria palavra co- Se o comum tem-se tornado apto, hoje, a aparecer
munidade para ver como se poderia fazê-la passar de con- com a sua máxima força de afetação de maneira imanen-
ceito à ferramenta para este trabalho diminuto e situado, te, é preciso não se esquecer que é porque isto convém ao
o de “posicionar-se com a posição do que se apresenta”. próprio sistema na sua feição pós-fordista e se coaduna
Recuperando a etimologia da palavra latina communitas ao contexto biopolítico atual, que encontra no trabalho
– contração dos radicais cum (o outro, o “além de mim”) imaterial a sua nova fonte de riqueza privilegiada. A con-
e munus (o dom, simultaneamente dádiva e dever) – Es- temporânea tendência a uma passagem cada vez mais
pósito (2007) faz um sensível trabalho de re-enunciação, extensiva dos espaços fechados disciplinares aos espaços
que permite voltar a explicitar a operação de reciproci- abertos (mas controlados e rastreados) das sociedades
dade que move as relações sociais. O clássico “Ensaio de controle (DELEUZE, 1992) dá-se sobretudo porque
sobre a dádiva” de Marcel Mauss (2003), por outra via, as faculdades inventivas tornaram-se commodities. En-
também formula o ciclo da dádiva – “dar-receber-retri- tretanto, para capturá-las é preciso liberá-las, e aí está a
buir” – como “liga” do “viver juntos”. O mesmo emerge, brecha que sinaliza a potência de limiar do momento his-
ainda, da formulação de Nancy (2000) da comunidade tórico em que vivemos: inteligência, cognição, memória,
enquanto “ser-em-comum”, experiência do risco e do en- inventividade, imaginação, cooperação, colaboração são
frentamento recíprocos, como ele diz. Trata-se do risco ao mesmo tempo as capacidades solicitadas pelo merca-
da exposição ao acidente, diria: o risco implicado na tare- do competitivo de alta performance e as faculdades que
fa de manuseamento atento da metaestabilidade entre as nos permitem engajar no performar coletivo do comum,
doses de saque e dádiva de cada relação, re-mediando-as se as frequentarmos como vias para a afetação recíproca,
através de um constante investimento no “aprender a re- para a invenção de novas crenças e desejos e para o de-
ceber”, trabalho minucioso de ajuste e sustentação que senho de novas formas de vida suficientes. Dissemina-se
vai, aos poucos, fazendo com o que o “dar seja já um a clareza infinitesimal desta potência inventiva – que é a
retribuir, e o retribuir seja ainda um dar”. Não se trata de do “qualquer” e a dos “muitos” – e despontam, um pouco
uma conta que se fecha, produzindo “coerência”: ao con- por toda a parte, comunidades temporárias e experimen-
trário, é de “consistência” por tentativa-e-erro que se tra- tais, ocupações e ensaios de outros mundos possíveis,
ta, pois não há jamais um “suprir da falta”, a não ser sob experiências de gestão coletiva do (im)próprio coletivo,
pena de extinguir a relação. Como evidencia a aborda- redes de solidariedade não-identitárias e que vão ligando
gem de Blanchot (2013) à comunidade, esta não se cons- os precários que somos todos, em elos vivos: eis a stran-
titui como instância de “ressarcimento do faltante”, mas gership a sinalizar os seus múltiplos modos de materiali-
como lugar de conflito, luta e contestação – se o comum zação possível em “zonas autônomas temporárias” (BEY,
assegura qualquer coisa, é que não haverá jamais “Eu 2006), “micro-utópicas” (BOURRIAUD, 2009) ou “alte-
acabado”, uma vez que será na oportunidade constante rotópicas” (PETCOU; PETRESCU, 2007).
de se ver não reconhecido, mas contestado ou mesmo ne- Mas “é preciso estar atento e forte”, pois paradoxal-
gado pelo Outro, que o Eu ancora a sua “consciência”, mente isto se tem feito acompanhar pelo agravamento
um “si-mesmo” sem hipótese de totalização, que vai se dos esquemas conservadores de apreensão das subjeti-
clarificando justamente na impossibilidade de “ser em vidades. Se vivemos a aparição dessas micro-formas de
separado”. O commoning não se orienta, portanto, pelo encontro sustentado a se experimentarem de um modo
aplacamento ou pela resolução, mas pelo desdobrar ili- cada vez mais disseminado e a emergirem justo do des-
mitado do “problema do juntos” em um sem-número de gaste das formas habituais de sustentação dos vínculos
arranjos contingentes, que vão dando corpo – consistên- sociais, também vivemos o enfraquecimento do compa-
cia – a vidas singulares ou “quaisquer”. recimento coletivo nas esferas públicas, o desmonte e
A singularidade “qualquer” – impessoal, pré-subjeti- a desfuncionalização cada vez mais ostensivos das for-
va, incapturável pela lógica identitária do pertencimento, mas de associação, e, sobretudo, uma nova onda gene-
uma vez que tem em comum com as outras singulari- ralizante de recrudescimento dos esquemas ideológicos
dades quaisquer apenas o fato de serem todas diferentes reconhecíveis. Isto, a que Pélbart (2003) chama de “se-
– é justo o modo encontrado por Agamben (1993) para questro do comum”, toma corpo em sucessivas manobras
dizer a força motriz daquilo que chama de “comunidade de incitação do medo e do ódio, através da disseminação
que vem”, e que profetiza ao mesmo tempo a urgência de pseudo-consensos pré-fabricados, espetacularizados e
e a eventual emergência de formas de vida coletiva sem transcendentalizados pelas grandes corporações de mídia
nome e sem rosto, sem classe e sem partido, sem gênero e pela encenação política mundial.
e sem gosto, na esteira da falência já ostensiva da mo- A tomada de posição é, assim, cada vez mais limitada
derna política representacional, e nas zonas de sombra e a um plano retórico e confinada à adesão veloz a ideias
fissura abertas pelas mutações contemporâneas do capi- prontas. Estas, defendidas e discutidas num plano mera-
tal. É a liberação da potência de vida da “multidão”, na mente opinativo, se reproduzem praticamente em “modo
formulação de teóricos como Hardt e Negri (2004): bre- metástase”: como “decalques do empírico” (PÉLBART,
cha possível, mas que precisa de ser habitada e disparada 2003) cada vez mais distorcidos, formam uma massa rui-

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dosa em que todos falam e ninguém se escuta, e em que de papéis hierárquicos e pré-determinados. O comum –
se diz cada vez mais o mesmo e para o mesmo, em ilhas na já mencionada acepção deleuziana ou espinosista de
e mais ilhas de opinião “pós-fato” impermeabilizadas fundo virtual, vitalidade social pré-individual, ilimitada e
umas às outras e, sobretudo, ao múltiplo e ao dissonante. portanto apta às mais diversas e contingentes individua-
É, por isso mesmo, particularmente crítico e premen- ções – manifesta-se enquanto potência justamente nesta
te não apenas falar ou saber das formulações conceituais colisão com aquilo “não” somos e “não” temos. Uma coli-
acerca do comum e da comunidade, mas encontrar os são que, por isso mesmo, reabre o que podemos “vir a ser
funcionamentos justos que permitam efetuá-las em to- e vir a poder”. É com a matéria desta vulnerabilidade ao
mada de posição consistente e “sem ideias” (EUGENIO; impróprio que poderá se construir o plano de imanência
FIADEIRO, 2013), alinhando em ato o fazer do comum de “uma” comunidade enquanto co-existência de distân-
ao fazer do “impróprio”. E o impróprio não é outra coisa cias e contemporaneidade de ritmos: combate diligente e
senão o acontecimento que se (des)dobra a partir da sus- atento da imagem ilusória da comunidade fusional, dando
tentação do encontro, espaço-tempo dissensual e situado lugar a um franco compartilhamento da separação e à co-
que está por emergir, a cada vez, não apenas entre o Eu -operação de singularidades que não se anulam.
e o Outro, mas a partir da “expropriação” de ambos, que Comunidade “idiorrítmica”, como na fantasia de Bar-
virá a instaurar uma “dissimetria insuperável” (BLAN- thes (2003), somente possível se concedermos estar co-
CHOT, 2013) com a qual se poderá fazer o juntos. Como -munes uns com os outros, expondo-nos e arriscando-nos
na formulação de Gabriel Tarde (2007), que nas últimas à contaminação recíproca, mas também experimentando
décadas vem sendo redescoberta em todas as suas impli- e investigando na prática o que podemos ou não juntos.
cações, e que descreve a sociedade como fenômeno de Jogar, assim, aos undercommons (HARNEY; MOTEN,
“possessão recíproca, de formas infinitamente variadas, 2013): “jogo do incompletarmo-nos uns aos outros”, no
de todos por cada um”. Eis um modo de dizer a sociedade qual o encontro liberta-se do espectro da simbiose ou da
que, se efetivamente praticado, não apenas teria efeitos de miragem do encaixe perfeito, para assumir-se enquanto
maior precisão conceitual se comparada à noção durkhei- oportunidade para “multiplicarmos as nuances da nossa
miana de sociedade como super-indivíduo coercitivo, própria incompletude”. Um jogo que só poderá ser ético,
anterior e exterior às relações, mas, sobretudo, abriria a consistindo a ética justamente neste “estudo praticado e
hipótese de se constituir e habitar uma forma-sociedade situado das possibilidades imanentes de composição”.
já não mais oposta à forma-comunidade, permitindo, si- Ou ainda, como a pensou certa vez Foucault (2004), num
multaneamente, reajustar a definição e o experienciar de cuidar de si e do outro num só gesto, dando lugar a uma
ambas – des-reificando uma, des-romantizando a outra. “prática refletida da liberdade”.
Como nos alerta Nancy (2000), a comunidade tem “Des-imunização” e corporeidade: a malha vital do
sido ativada, no mundo moderno ocidental, sobretudo en- encontro
quanto ideia: imagem mítica e nostálgica de um passado
Talvez se possa dizer que uma das incidências mais
imaginário no qual o vínculo teria sido genuíno, puro ou
cerradas do Modo Operativo É se operacionalize num
originário, caracterizado por uma comunhão integral, in-
insistente e reiterado trabalho de “imunização” ao outro,
gênua e desinteressada, antes de que a entrada no contrato
ao entorno, ao Fora. Isto seria apenas uma maneira di-
social nos apartasse definitivamente. Tanto esta nostalgia
versa de dizer como o individualismo, enquanto subjeti-
do que nunca houve, quanto a pretensão de restauração
vidade característica dos funcionamentos capitalísticos,
prospectiva desse ideal, além de perigosamente poderem
se cumpre e faz cumprir a cosmovisão (pós-)moderna,
(como já o fizeram) justificar cruzadas puristas ou refor-
desativando o “co-passionamento” em passionamento
çar fragmentações identitárias, têm-se prestado sobretudo
narcísico e distorcendo os processos vinculativos espira-
a desviar-nos, tal e qual uma armadilha mental, do desafio
lados do dar-receber-retribuir em ciclos infinitos e insaci-
ético concreto e cotidiano de fazer “com o que se tem”
áveis de saque-consumo-descarte.
(e não com o que se gostaria de ter): e o que temos é a
disparidade, a desigualdade, a incoerência, o desencontro, Se a subjetividade individualista emerge, como já
a diferença, a distância. A hipótese do comum não foi in- mencionado no início deste texto, como duplo da forma-
terrompida pelo surgimento da sociedade, mas, como su- -Estado, será preciso encontrar na prática – e adensar por
blinha Nancy, emerge enquanto possibilidade justamente frequentação comprometida – as muitas zonas de sombra
por nos confrontarmos com ela: a comunidade é aquilo desse funcionamento. São as brechas, territórios intersti-
que “pode nos acontecer” justamente por estarmos imer- ciais ou liminares, nos quais o tecido da convivência se
sos num socius no qual escancara-se a dissimetria incon- faz por conjuração dos mecanismos de Estado, expondo
tornável introduzida pelo Outro, pelos tantos Outros que valências “contra o Estado” – no sentido tão bem catali-
interrompem, interceptam e desestabilizam o Eu pleno de sado na análise de Clastres (1978) sobre as “sociedades
certezas e supostamente seguro de seus contornos. primitivas”. Passar não só a dizer, mas a viver o mais as-
siduamente possível um socius que é “têxtil e não texto”,
Um Outro que “objeta” o sujeito, como formula-
vai abrindo caminho para re-materializar uma outra corpo-
ria Whitehead (1933/1967): se faz obstáculo, acidente,
reidade e uma outra subjetividade, assentes explicitamente
ferida, fissurando a inteireza do sujeito e instaurando a
no co-munus: no reconhecimento de que “somos feitos de
hipótese de um jogo recíproco, no qual sujeito e objeto
outros”. No reconhecimento, em suma, de que esta coisa
passam a ser funcionamentos intercambiáveis, ao invés

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Por uma política do co-passionamento: comunidade e corporeidade no Modo Operativo AND

que chamamos de “Eu” seria muito mais justamente des- do um modo de saber tátil, exploratório, atmosférico
crita através de um inventário (que só pode ser constan- e comprometido. Um “modo que faz do saber, sabor”.
te) daquilo que se propaga entre o que fica e o que parte; Instauram-se aí as condições para que possamos entrar
dos modos e modulações destes atravessamentos; dos em contato com uma certa sabedoria da “liminaridade”
sedimentos, restos, rastros, traços e resíduos (com doses, (como no clássico sentido atribuído por Turner a commu-
ritmos e durações os mais diversos) que estes deixam ou nitas), a partir da qual reencontrar o “jogo” como espaço
levam. Não há nada a defender, não há de quem ganhar ou de “re-existência” e de invenção vital, resgatando-o do
perder; não é de todo possível viver “imune” quando exis- lugar domesticado e estéril no qual foi sucessivamente
tir é contaminar e ser contaminado. Não vale a pena de- alocado como lazer regulado ou mero entretenimento.
sistir, mas tampouco resistir, quando existir é “re-existir”. Reativando, aliás, o sentido forte do “entre-ter” enquanto
O Modo Operativo AND enquanto prática de “re- sustentação recíproca – “só temos uns aos outros” – que
paragem” – feita de uma tripla modulação: o “re-parar” vai fazendo um meio, o “plano comum”.
(voltar a parar), o “reparar” (notar, desfragmentar, frac- Perguntar no que consiste a corporeidade “co-passio-
talizar) e a “reparação” (re-materializar e reabilitar para nada”, então, poderá ser ir tornando pensável, sensível e
o uso) – convida justamente a trabalhar no desfazimento habitável um “corpo desperto na medida em que des-es-
da imunização – seja aquela vivida como desistência ou perto”, hábil em não se fixar e fechar em “expertises”.
aquela vivida como resistência. Convida a fazer da prática Poderá ser, ainda, ir abrindo espaço para uma descoloni-
da atenção uma prática de “des-imunização” – de fran- zação não apenas do pensamento, mas da presença. Não
ca sensibilização ao outro, ao acidente, ao encontro, ao o corpo que sabe, mas “um” corpo que “sabe a”. “Sabe
imponderável –, criando as condições concretas para a a” viver só, e por isso consegue viver junto. Corpo frac-
emergência da forma relacional aberta da strangership, a tal e não fragmento: não parte de um código que lhe dê
partir do manuseamento situado e consequente do que te- sentido, pauta ou script, mas já ele próprio um mundo,
mos e do que nos têm, do que podemos ou não a cada vez, um “inter-isso” nunca inteiriço, em constante “re-per-
e de como isto tudo ganha corpo nas nossas tomadas de guntar-se”. Corpo-envelope, invólucro circunstancial,
posição. Explicita-se assim a precariedade e a transitorie- “zona de transferência” e intercessão de afetos, lugar de
dade de qualquer “próprio”, no reconhecimento concreto enunciação e maquinação de outros mundos possíveis –
e situado de que este, a emergir, tomará a forma de um que saltam como consequência da sua “responsabiliza-
plano comum de contornos porosos, circunstanciais e pro- ção”. Dizer deste corpo que é responsável é dizer que
visórios, comunidade “inoperante” (no sentido atribuído responde, mas é também re-encontrar o responder na sua
por NANCY, 2000) e por isso mesmo autônoma enquanto dimensão de comparecimento e não de acerto ou solução.
durar, associação pronta a dissociar-se, que será sempre Aqui convém afinar com o conceito chinês de gang ying,
consequência – e não causa – da entrada em relação. tal como explicitado por Jullien (2010), que ajuda a per-
Sintonizar com esse funcionamento vital que acon- ceber a responsabilidade enquanto responsividade, e esta
tece desenhando e entrelaçando linhas numa malha (IN- enquanto disponibilidade: constante esvaziar-se de solu-
GOLD, 2007) ou numa rede-teia (DELIGNY, 2015), será ções, para que a resposta possa ser re-pergunta, para que
algo como tocar num plano ao mesmo tempo anterior o responder possa ser “metadialogar”, para que o corpo
e posterior àquilo que Deligny denuncia como “projeto possa ser o efeito da reciprocidade.
pensado”. Será algo como ativar diligentemente uma Referências
sensibilidade à ecologia das nossas próprias práticas – o
AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Lisboa: Presença,
que geram e produzem os nossos gestos, e quê gestos 1993.
efetivamente manifestamos, a despeito das intenções.
Transferir o foco, em resumo, das “intenções” para as AGAMBEN, G. Nudez. Lisboa: Autêntica, 2014.
“inclinações”. Frequentar o Fora das redes de certeza e BARTHES, R. Como viver junto: simulações romanescas de
das relações de mesmidade, acionando a confiança como alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
método. Sim, pois as malhas do mundo com estranhos BATAILLE, G. A experiência interior. São Paulo: Ática, 1992.
são tecidas “com-fiança”.
BATESON, G. Metadiálogos. Lisboa: Gradiva, 1996.
E depois, desapegar: perdoar (forgive) “para dar” (for
give) – ou “retribuir”, que não é senão um voltar a dar. BEY, H. Zona autônoma temporária. Porto Alegre: Deriva,
E depois, desaprender: esquecer (forget) “para ter” (for 2006.
get) ao invés de ser; para conseguir “receber”. Desorga- BLANCHOT, M. A comunidade inconfessável. Brasília: UNB,
nizar o corpo que sabe e identifica para ir fazendo situada 2013.
e contingentemente o corpo que saboreia e “co-passio-
BOURRIAUD, N. Estética Relacional. São Paulo: Martins
na”. “Desertar-se” (DELEUZE, 2006), a fim de atingir o Fontes, 2009.
limiar não apenas da potência, mas sobretudo da impo-
tência, daquilo que “podemos não fazer” (AGAMBEN, CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro:
2014). Transferir o dizer de si do monólogo aguerrido Francisco Alves, 1978.
ou do diálogo relativizante para o “metálogo” (BATE- DELEUZE, G. Spinoza: philosophie pratique. Paris: Minuit,
SON, 1996): uma disposição para ficar no problema que 1981.
se apresentar, para sentir-pensar-fazer junto, consuman-

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Dossiê Corporeidade

Corporeidade e violações de direitos humanos: saúde e testemunho


Eduardo Passos,H Cristina Rauter
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Resumo
Uma reflexão a partir da experiência profissional dos autores como coterapeutas de um grupo, realizado enquanto membros
da Equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Partindo de uma abordagem na qual a corporeidade é
tomada como dimensão fundamental da experiência da violência, abordamos a especificidade da violência praticada por
agentes do Estado em suas dimensões ético-estético-políticas. Os efeitos singulares da violência praticada pelo Estado são
analisados, construindo-se uma certa concepção de saúde que corresponde à reconexão com o coletivo e com o resgate
histórico das lutas de um povo. Na construção dessa abordagem trabalhamos com conceitos das filosofias de Spinoza,
Bergson e Merleau-Ponty numa perspectiva transdisciplinar.
Palavras-chave: corporeidade; violência do Estado; clínica transdisciplinar.

Corporeity and human rights violations: health and testimony


Abstract
A reflection on the professional experience of the authors as cotherapists of a group while members of the Tortura Nunca Mais of
Rio de Janeiro Clinical Staff. Departing from Corporeity as a fundamental dimension of the experience of violence, we focus upon
the specific character of violence when perpetrated by the State in its ethical-esthetical-political dimensions. The singular effects
of the violence practiced by the State are analyzed, building a certain conception of health which corresponds to reconnection
with collective experience and with the historical rescue of the struggle of a people. In the construction of this perspective, we
have worked with concepts of the philosophies of Spinoza, Bergson and Merleau-Ponty in a transdisciplinary perspective.
Keywords: corporeity; State violence; transdisciplinary clinics.

A experiência clínica que adquirimos ao longo de o Brasil está atrasado em relação a outros países do mundo
mais de uma década atendendo aos atingidos pela tortura e até em relação a países latino-americanos no tocante ao
e outras violações de direitos humanos como membros da esclarecimento oficial desses crimes.
Equipe Clínico Grupal Tortura Nunca Mais-RJ (GTNM) Queremos problematizar nossa experiência como
é objeto de nossa reflexão neste artigo. terapeutas de um grupo realizado pelo Projeto Clínico-
A luta pelo esclarecimento e responsabilização por Grupal Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro do qual
crimes de lesa humanidade praticados durante a ditadura éramos integrantes. O grupo era formado por atingidos
militar brasileira ainda continua no Brasil. O mesmo ocorre direta ou indiretamente pela violência do Estado durante a
em relação aos assassinatos de jovens negros praticados ditadura civil-militar iniciada em 1964. São considerados
por agentes do Estado diariamente. Recentemente atingidos indiretos os familiares dos que foram presos,
soubemos da anulação do processo que pedia a torturados, mortos ou desaparecidos por ação do Estado.
condenação dos responsáveis pelo conhecido Massacre Embora houvesse a especificidade desse pertencimento
do Carandiru, no qual mais de 100 presos desarmados ao projeto do GTNM, não se tratava propriamente de um
foram exterminados por policiais há mais de uma década. grupo terapêutico temático. Não pautávamos a discussão
As justificativas para seguir lutando pelo esclarecimento do tema da violência, tampouco incitávamos ao exercício
e responsabilização por esses crimes dizem respeito a da memória daqueles anos sombrios da história pessoal
razões éticas e políticas. É preciso retomar Guattari em e coletiva dos integrantes. Como coterapeutas atentos
sua insistência na construção de um paradigma ético- à dimensão clínico-política do sofrimento psíquico,
estético-político para a clínica (GUATTARI, 1990), desse acolhíamos igualmente os relatos que expressavam
modo incluindo e enfatizando neste artigo um ponto de dificuldades atuais, associadas ou não aos impasses
vista clínico-político para essa luta. experimentados numa trajetória de vida marcada pela
Para muitos, a punição pela pena de prisão dos culpados violência institucional e, mais especificamente, pela
é o objetivo do esclarecimento desses crimes. Afinados violência realizada por agentes do Estado.
com o abolicionismo penal, custa-nos propor a prisão A violação dos direitos realizada por agentes do
como solução, até mesmo nesse caso, ainda que a definição Estado não é uma experiência que possa ser pensada sob
final desse tema não dependa de nossa decisão, mas dos a designação geral de violência. Há uma especificidade
anseios coletivos de toda a sociedade e de providências dessas práticas de violação que nos obriga a tomá-
no âmbito institucional e governamental a serem tomadas. las como vetores de subjetivação muito singulares e
De qualquer modo, apesar do empenho e dos avanços da singularizantes, o que pudemos constatar nos anos de
Comissão da Verdade durante o governo Dilma Rousseff, trabalho clínico-político com esta população que direta e
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Departa- indiretamente sofreu a força violadora do Estado.
mento de Psicologia Campus do Gragoatá - Bloco O - sala 310 – Gragoatá.
Rio de Janeiro, RJ – Brasil. CEP: 24000-000. E-mail: e.passos@superig.com.
br, rautercristinamair02@gmail.com
Eduardo Passos; Cristina Rauter

Vivemos, certamente, num mundo muito violento, A violência realizada durante a ditadura civil-militar
no entanto, não é justo considerarmos esse fenômeno no Brasil não só torturou, matou, fez desaparecer, mas
sob uma designação genérica que não considere as também objetivou produzir um corpo mortificado ao
especificidades das práticas de violação dos direitos transformar a rebeldia dos revoltosos em culpa ou
humanos. Se há violência por toda parte, há efeitos remorso, a resistência política em resistência à vida, a
subjetivos singulares que derivam de formas específicas utopia ativa dos militantes em uma estranha sensação de
de violação. Dentre as práticas de violência, aquela falta de lugar, de perda de território existencial. Essa é
realizada por agentes do Estado possui características a mortificação de uma experiência corpórea, isto é, não
que não podemos negligenciar em nosso trabalho de necessariamente marcas físicas como queloides na pele
atendimento clínico com os atingidos. A violência ou órgãos danificados, mas a expressão de corporeidades
institucionalizada pelo Estado gera um exponencial do atingidas pelo absurdo da violência.
abuso intrínseco a toda forma de violação dos direitos Entendemos corporeidade como esta dimensão mais
humanos realizada por homens contra homens. O intensiva do que extensiva do corpo. O corpo orgânico,
desrespeito ou mesmo a eliminação da diferença entre definido por seus esquemas sensório-motores, delimitado
os homens, a banalização da vida e, sobretudo, a força pelos seus limites físicos não diz tudo da experiência de
antidemocrática atinge em seu cerne um povo. É sempre ter e ser um corpo que experimenta as forças que sobre
um povo que é ameaçado pelas forças antidemocráticas ele incidem e que dele advêm. O corpo intensivo é a
das práticas da violência que se poderia supor atingir um experiência da corporeidade, isto é, do corpo lançado no
só indivíduo. Se a violência é um ato contra a democracia mundo como nave de uma aventura existencial. Merleau-
e se a democracia é o poder de um povo, é sempre absurdo Ponty (1971) o designou corpo próprio, horizonte
o ato de violência realizado pelo povo contra o povo. existencial sem o qual as figuras do mundo e o fundo
Se o povo é o conjunto de nós mesmos, o coletivo das do qual essas se destacam para a nossa percepção não
pessoas que compõem determinado território, é absurdo podem ser concebidos. Bergson (1964, p. 51) na Evolução
que um povo seja atingido pelo ato de violência do povo. criadora chamou de corpo vivo esta individualidade cujas
Eis o paradoxo da violência que se agrava quando os propriedades vitais nunca estão inteiramente realizadas,
representantes do povo são agentes do Estado. “estão sempre em vias de realização; são menos estados
A violência realizada por uma instituição encarregada do que tendências”. Tal corpo é, portanto, aberto ao tempo
de promover e garantir o bem comum e a salvaguardar como experiência criadora do espírito humano que segue
a nação produz um efeito de acirramento do absurdo da seu caminho “a par e passo do ato que o percorria, não
experiência de ser violentado. O Estado violento atinge sendo senão esse mesmo ato” (BERGSON, 1964, p. 83).
violando direitos ao mesmo tempo em que produzindo Corpo em ato que atua um mundo, mais do que atua num
efeitos de subjetivação que precisam ser avaliados. mundo. Corpo autopoiético (MATURANA; VARELA,
Verificamos em nossa prática clínico-política que 1995) ou enativo, como prefere Varela (VARELA;
a violência do Estado produz marcas de sofrimento THOMPSON; ROSCH, 2003).
não só quando mata ou deixa sequelas físicas. Muito Interessa-nos discutir a relação entre corporeidade
frequentemente o niilismo, a depressão, a impotência e subjetividade no caso dos atingidos pela violência
e a culpa são expressões subjetivas do que, na falta de do Estado. Por corporeidade dos atingidos estamos
outro sentido, se apresenta como o trauma da tortura, designando a experiência que nos chegou à clínica em um
da prisão, do exílio ou insílio, do desaparecimento ou grupo terapêutico que acolhia sujeitos que, de diferentes
assassinato de quem se ama. maneiras, mantiveram silenciada a vivência da violência.
A prática de violação – e é este o foco de nossa Como clínicos, pudemos acompanhar os efeitos
discussão neste texto – sempre implica o corpo do terapêuticos do testemunho público finalmente dado
atingido. Não nos parece apropriado dizer que o por uma de nossas pacientes, Maria de Fátima de
fenômeno da violência de Estado possa ser considerado Oliveira Setúbal,1 atendida por cerca de uma década
a partir da distinção entre tortura física e tortura por nós, enquanto membros da Equipe Clínico-
psicológica, como se pudéssemos supor uma forma de Grupal do GTNM/RJ.
violência que incidisse diretamente sobre a alma dos
Fátima, mais recentemente, passou a frequentar as
atingidos sem comprometer necessariamente seu corpo.
reuniões do projeto Clínicas do Testemunho, ligado
Toda tortura é sobre um corpo. Toda violência incide
à comissão Nacional da Verdade, visando prepará-
sobre uma experiência corpórea. A experiência de ser
la para prestar este depoimento, ao mesmo tempo em
violentado é uma experiência corpórea de tal maneira
que permanecia em atendimento individual com um de
que precisamos falar de uma corporeidade atingida.
nós (Cristina) depois de um logo período em que fora
Corroborando essa ideia, sigamos o pressuposto da
atendida no grupo terapêutico do GTNM em que nós
filosofia de Spinoza, que aponta para a concomitância
dois éramos coterapeutas.
necessária dos fenômenos da mente e do corpo, de tal
forma que tudo o que afeta a mente afeta o corpo e Escrever o relato de sua experiência de tortura com
vice-versa, sendo essas duas dimensões da experiência essa finalidade - a de prestar um depoimento no âmbito
expressões da substância única que nos constitui. da Comissão Nacional da Verdade - foi uma experiência
 O conteúdo desse texto foi discutido com Fátima Setúbal que autorizou que a
1

identificássemos.

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Corporeidade e violações de direitos humanos: saúde e testemunho

perturbadora para a paciente, mesmo que ela estivesse espécie de ritual, no qual buscava salvar seus irmãos
acostumada a relatar as memórias desses fatos nas do esquecimento. Que todos conhecessem Marcus e
muitas sessões de psicoterapia grupal e individual a Janu,4 sua história, suas lutas. Ela contava e recontava
que se submetera ao longo de sua vida e também em suas histórias quase com as mesmas palavras, enquanto
reuniões de militância de direitos humanos. Enquanto se sua vida pessoal permanecia rodando em círculos.
preparava para fazer seu testemunho, ela participou da Reconstituir o passado, nos diz Nietzsche, pode nos levar
reconstituição da morte de um de seus irmãos, promovida a criticar o presente encontrando forças para construir o
pela Comissão da Verdade e ocorrida numa vila do bairro futuro, mas pode também nos levar a cultivar a doença do
carioca do Meier, 41 anos depois. Na reconstituição ficou ressentimento, a culpa e a mortificação, o que acaba nos
finalmente esclarecido, com participação de moradores levando à incapacidade de agir.
que prestaram depoimento, que não houve qualquer
Fátima relatava a tortura que sofrera, e como
resistência por parte dos jovens que realizavam uma
sobrevivera, mediante um artifício no qual promete,
reunião da organização de esquerda Var-Palmares no
durante as sessões de tortura, revelar “o ponto” no qual
interior de uma das casas. Além do irmão de Fátima,
estaria um de seus irmãos. O local era a casa de um
outras duas militantes2 foram executadas a tiros pela militar de alta patente que ela conhecia através de sua
polícia, uma delas grávida, apesar de ter saído da casa família. Levada no camburão à frente da casa, ela grita
de mãos para o alto. Foram momentos de muita emoção por socorro desesperadamente. Mediante essa estratégia,
para Fátima, pois era a primeira vez que estava no local que demonstra sua coragem e lucidez apesar de ser tão
onde seu irmão morrera. Além disso, a própria escrita jovem, ela acaba por ser transferida por seus algozes para
do depoimento a perturbava, e ela se lembra das razões o Hospital Central do Exército a pedido desse militar,
que tinha para isso. Quando de sua prisão pelos órgãos o que acabou salvando sua vida. No grupo terapêutico,
da repressão, lhe foi também exigido que escrevesse um no entanto, ela não se apresenta como militante. Era
depoimento sobre o paradeiro de seus irmãos. Ela fora apenas a “igualzinha entre os iguais”, uma expressão
torturada para escrever e agora devia também escrever, criada por um amigo que dizia respeito à impressionante
dessa vez para denunciar publicamente, através de seu semelhança entre ela e os irmãos mortos.
depoimento à comissão da verdade, as atrocidades de que
Este fora um tema que abordamos muitas vezes em
fora vítima ao ser torturada aos 18 anos de idade.3 nossas sessões de terapia de grupo. As mulheres do grupo
Contrariando e subvertendo essa proibição, ela con- em geral não se descreviam como militantes. Por que não
segue escrever o depoimento, com ajuda do projeto clí- se viam como tal, preferindo falar dos irmãos, mortos ou
nicas do testemunho. No mesmo período, é convidada vivos, ou de um pai ou marido militante? Parecia-nos
pelo canal GNT, a participar de uma série na televisão, o que para elaborar suas vivências traumáticas, deveriam
seriado “Mulheres em Luta”, exibido em 2014. Em cada preferencialmente assumir que aquelas lutas de que
um dos episódios, mulheres-militantes tinham suas histó- participaram ao lado de seus familiares e cônjuges eram
rias retratadas. Modificando inteiramente sua rotina, que também suas. Mas geralmente as mulheres se viam como
consistia ultimamente em trabalhar na biblioteca de uma participantes secundárias, colaboradoras, simpatizantes
escola pública, ela está neste momento cheia de compro- ao mesmo tempo em que seu desejo e envolvimento na
missos sociais ligados à militância e à organização desses luta era negado. Para Françoise Sironi (1999) esse é um
testemunhos públicos, assim como à gravação da série ponto central em sua clínica: a militância é um caminho
televisiva. Nessa efervescência, ela conhece um escritor para a elaboração e para cura. Seria preciso dizer: sim,
e também militante por quem se apaixona. Nossas ses- eu estava na militância, tinha esse projeto, lutava por
sões finais, em que preparávamos sua alta, discutíamos isso e por isso fora presa e torturada! Nossa paciente fora
essa paixão, e alegria de sair pela primeira vez do Brasil, torturada principalmente para revelar o paradeiro dos
em viagem à Argentina, para receber um prêmio que fora irmãos, isso é certo, mas foi presa quando estava atuando
concedido ao episódio da série do qual fora protagonista. pela mesma organização que eles, alfabetizando crianças
Em que esse período é diferente dos anteriores, em um subúrbio do Rio. No entanto, esse reconhecimento,
nos quais ela relatava monotonamente sua história aos de que também ela era uma militante e não apenas irmã
diferentes terapeutas que teve? No grupo terapêutico, dos militantes, igualzinha entre os iguais, só foi possível
a repetição das histórias de seu passado, da tortura que a partir de seu tratamento.
sofrera, vista a partir de um ângulo queixoso, tornava-se Nossa experiência indica que a melhora no tratamento
por vezes enfadonha para o grupo, que lhe cobrava que é dificultada se a pessoa atingida pela violência
saísse dessa postura, e realizasse mudanças em sua vida, institucionalizada sente como se o que sofreu fosse obra
que se encontrava, sob diversos aspectos, paralisada. do acaso, do azar, do fato de estar junto com um familiar
Sua fala no grupo podia ser vista também como uma mais importante ou com um líder, ele sim, o militante, ou
ainda negando inteiramente tudo o que fez naquela época,
2
 Marcus Pinto de Oliveira, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo e Ligia Maria alegando ter esquecido o que se passou ou desvalorizando
Salgado Nóbrega. Estes foram os três militantes executados pela polícia no
episódio que ficou conhecido como a “chacina do Meier”, sendo que Ligia estava a própria luta. Como dissemos, verificamos que com
grávida de dois meses. frequência as mulheres se veem como uma espécie de
 Fátima, como todas as mulheres presas políticas neste período, foi torturada
dublê, como alguém que apenas fez de conta que era
3

nua. Foi colocada no pau de arara, sofreu choques, afogamento e enforcamento


simulado (SETÚBAL, 2013). 4
 Januário Pinto de Oliveira

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Eduardo Passos; Cristina Rauter

militante. Isso pode dizer respeito não apenas à militância, do conatus, que possui nela mesma uma sabedoria que
mas a uma posição geral diante da vida, na qual se veem, orienta, do interior da própria luta, a construção das
não como donas de suas vidas, mas como coadjuvantes. melhores estratégias para sua afirmação (BOVE, 2012).
Mais difícil a resolução de dificuldades nesses casos, em No percurso desse grupo terapêutico do qual tratamos
que a vida não é vivida em sua própria autoria. De que neste artigo, a publicação de um livro foi uma importante
autoria estamos falando? Não se trata de uma autoria ferramenta para que outra de nossas pacientes pudesse ter
que diga respeito a um eu, mas à autonomia, numa certa acesso à autoria de sua vida. Ela tivera vários casamentos
concepção spinozista que aqui desenvolveremos. durante sua juventude, casamentos com homens famosos
Spinoza (2008, E III, 6, p. 173) utiliza a expressão e admirados. Apesar dela própria também ter tido uma
“estar em si”: “cada coisa esforça-se, tanto quanto carreira profissional que poderia lhe conferir também
está em si, por perseverar em seu ser” para se referir a esse lugar de “mulher admirada”, não se sentia como tal.
um estado em que somos capazes de agir e de pensar Sentia-se como já suficientemente contemplada pela sorte
melhor, em que somos mais potentes. Spinoza só usa ao ser admitida como companheira daquele homem ilustre
a palavra agir quando essa ação decorre da “essência e admirado, ou como participante do grupo de amigos do
atual”, como expressão da potência singular de cada pai, todos eles militantes comunistas veteranos. Já era
indivíduo. Por outro lado, Spinoza utiliza a palavra muita sorte… e essa posição a levava, não raro, a suportar
paixão para se referir ao que fazemos quando estamos situações em que era desprezada, tratada como subalterna,
dominados por causas exteriores. Mas esses processos não merecedora das mesmas regalias que só os seres
não são binários e excludentes, mas dizem respeito a importantes (geralmente homens) merecem.
uma correlação complexa de forças – a expressão “tanto Uma terceira paciente fora particularmente marcada
quanto possível” aparecerá no texto de Spinoza para pelas experiências traumáticas que viveu quando estava
designar essas condições. Agimos, tanto quanto possível, atuando numa organização no Chile, nos momentos
a partir de nossa essência atual, ou seja, apesar das forças que precederam a queda de Salvador Allende. As
externas contrárias que quase sempre agem sobre nós. experiências que viveram ainda estavam presentes, não
No Tratado Político (SPINOZA, 2009, cap. II, 9, p. 91), eram passado para ela, pois ainda se conduzia como
o filósofo utiliza a expressão “estar sob a jurisdição de clandestina, a deslizar pela vida diária de modo furtivo,
si mesmo” que tem um significado análogo, dessa vez desaparecendo o mais rapidamente possível, como se
mais referido à luta política. Mas para Spinoza não há corresse para um esconderijo. Anos depois, de volta ao
diferença significativa entre a luta individual e a luta Brasil depois de longo exílio, seu marido se tornara um
política: ambas dizem respeito à afirmação do conatus, bem-sucedido profissional, apesar das sequelas físicas
que implica sempre em resistir a potências exteriores, da tortura que sofrera no temido Estádio Nacional em
que se forem maiores do que as nossas, podem sempre até Santiago do Chile. Um fato ocorrido numa das sessões do
mesmo nos destruir. Tanto os indivíduos quanto os povos grupo terapêutico nos ensinou que para ela, o tempo não
podem ser dominados a partir do exterior, deixando de passara. Foi perguntada por um companheiro de grupo
estar “sob a jurisdição de si próprios”, quando se tornam o nome da organização a que pertencera e a pergunta
escravos e passam a “ser do vencedor” (SPINOZA, 2009, foi sentida por ela como invasiva o suficiente ao ponto
cap. V, 6, p. 45). Porém quando estão sob a jurisdição de preferir deixar o grupo. Havia segredos relativos
de si próprios, podem repelir os invasores e reconquistar à ação política que realizara há mais de quarenta anos
sua autonomia. Estar em si, estar sob a jurisdição de si que ela iria levar para o túmulo, mesmo depois do fim
mesmo, são, portanto, expressões que dizem respeito da ditadura militar e mesmo naquele grupo, no qual
a um agir ativo e autônomo pelo qual deveremos lutar. todos tinham tido algum tipo de experiência direta com a
Uma luta na qual não há uma vitória definitiva e para repressão naquele período. A partir da pergunta fatídica,
a qual estamos mais preparados se estamos no coletivo. o grupo foi sentido por ela como um grupo de estranhos e
Na afirmação de nossa autonomia, estamos sempre nos possíveis delatores. Seguindo com um de nós em terapia
defrontando com forças que, agindo do exterior ou que individual, essa dinâmica de “deslizar e desaparecer o
se tornaram interiores, agem como forças contrárias, mais rapidamente possível” seguiu se atualizando, apesar
dificultando ou atrapalhando esse processo. Contra elas de aos poucos se permitir falar bem mais de sua vida
não há vitória garantida, apenas um embate constante e passada e de sua militância. Ocupada em escapar, ela
sem tréguas. Lutar, de forma independente do resultado, não conseguia se posicionar em relação a vários aspectos
uma vez que o conatus não tem em si mesmo finalidade, de sua vida – no trabalho, geralmente desempenhava
mas lutar com prudência. funções subalternas e aquém de sua capacidade. Também
Detenhamo-nos um pouco na noção de prudência não conseguia questionar o afastamento do marido.
desenvolvida por Spinoza: uma prudência pensada Ultimamente viviam como estranhos, se falavam pouco,
a partir da potência e não a partir da obediência ou do ele dedicava todo o tempo disponível ao trabalho.
medo. A prudência assim concebida não diz respeito ao Aceitava passiva e burocraticamente sua vida tal como ela
medo, ou apenas à calculada espreita dos perigos que nos se desenrolava, talvez por não querer fazer barulho e com
ameaçam, buscando antecipá-los, mas à própria potência isso atrair a polícia que rondava as ruas. Esse foi o tipo
de sobrevivência que conseguira ter, depois das torturas
e perseguições que sofrera, antes de seguir para o exílio.

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Corporeidade e violações de direitos humanos: saúde e testemunho

Para ela, vir às sessões semanais conversar já era muito, nossos pacientes, justamente porque deixava encoberta
no sentido de interromper por uma hora esse estado de a luta política por eles travada. A palavra vítima talvez
fuga. Experimentava a constante ameaça de um passado caiba para designar alguém que sofre uma lesão num
que não passava como que inscrito definitivamente em acidente de trânsito ou numa catástrofe natural, mas não
seu corpo que revivia mais do que vivia. Embora em é cabível para designar um guerrilheiro, um militante, um
seu corpo físico não pudéssemos identificar as marcas membro de um partido político, alguém engajado numa
desse passado, sua experiência corporal a mantinha em luta política e que em consequência da mesma sofreu
contínua atitude de fuga – uma fuga que não a levava a repressão por parte do Estado. Preferimos a palavra
deixar passar o que se passara. “atingidos” pela violência do Estado, que nos parece
A percepção de que a prisão e a tortura foram apontar para a história dessas lutas, que eram as lutas
consequência da luta política em que os participantes do povo brasileiro por uma sociedade mais justa e mais
do grupo estiveram engajados foi, em muitos casos, livre e que tornavam seus sofrimentos consequência do
uma conquista do processo terapêutico. Embora pareça modo como o Estado brasileiro daquele período reprimiu
óbvio, tal elo fora perdido por eles. Em alguns casos, e pretendeu extinguir essas lutas e seus protagonistas,
aquele período fora vivido como obra do acaso, do azar. Estado esse dissociado dos anseios de seu povo e servindo
As lutas empreendidas por eles tinham sua importância a interesses alheios a muitos brasileiros.
negada, ou tinham sido relegadas ao esquecimento por Podemos nos perguntar se essa percepção – a de
eles próprios, sendo as experiências de violência vividas estar ou ter estado numa luta – é suficiente para produzir
no período da repressão as que com mais frequência elaboração psíquica. Seria preciso ter sido vitorioso? Para
permaneciam vivas na memória. alguns participantes do nosso grupo terapêutico, a vitória
Quando passaram a ser concedidas pelo governo traria saúde, enquanto a derrota faria naufragar na doença.
indenizações aos familiares de mortos e desaparecidos, Questionamos, no grupo, este ponto de vista, considerando
pela lei 9140 de 4 de dezembro de 1995 (GRECO, que perceber a derrota pode estar ligado à saúde. Tomar o
2003, p. 397) há um fato insólito que merece uma ponto de vista da luta, independente do seu resultado, isso
reflexão clínica: para obter as indenizações, os familiares nos parecia ser o mais importante. Neste sentido, podia
deveriam, eles próprios, fazer prova de que o familiar ser importante reconhecer a derrota. Quando lutamos por
estava morto, ou desaparecido. Quase duas décadas algo, corremos o risco da vitória, da derrota, de nossa
antes, na chamada “anistia parcial de 1979”, chegou a destruição total, e de todos graus intermediários entre
ser criada uma “declaração de ausência” (GRECO, 2003, essas duas situações: derrotas parciais, vitórias parciais,
p. 299) a ser fornecida também pelo familiar, documento que podemos deixar de perceber.
que significativamente assinalava outra ausência: a de Em nosso grupo terapêutico, uma discussão sobre
qualquer esclarecimento oficial por parte do Estado sobre reconhecer a derrota foi importante. Permitiu ultrapassar
o paradeiro de seu ente querido. O Estado brasileiro um sentimento de fragilidade, de covardia, de fracasso,
recusava-se a admitir que havia torturado e matado, em que costumava atacar mais aos homens, segundo pudemos
muitos casos criando versões inteiramente fantasiosas, de perceber somente agora, ao escrever esse artigo. Um de
que que teria havido confrontos armados, omitindo-se o nossos pacientes era alguém cuja vida fora marcada por ter
fato de que tais confrontos, mesmo quando acontecidos, sido o “causador” indireto da morte de seu pai. Ele estava
se davam em total desproporção de forças. Ao fazer isso, respondendo a um processo na justiça militar e o pai viera
implicitamente, o Estado considerava que os mortos e de carro para o julgamento, de uma cidade distante. Na
desparecidos ou os militantes eram únicos responsáveis estrada, morrera num acidente. A saída para esse paciente,
por aqueles episódios e igualmente os únicos culpados por que só nos trouxe essa história quando perguntado no
suas consequências, prevalecendo a lógica da Segurança grupo sobre o período de sua militância, fora negar que
Nacional que estes haviam supostamente ameaçado. Não algum dia tivesse sido um militante. Costumava dizer
havia documentos oficiais que pudessem comprovar os que nunca fora um militante, que era jovem demais … É
atos de lesa humanidade praticados pelo Estado brasileiro. como se dissesse: “eu hem? Não tenho nada com isso”.
Os fatos violentos ocorridos estavam referidos apenas Ele não queria ser acusado pela morte do pai, embora
a eles, suas “vítimas”. Não é de se estranhar que o elo deva ter sido, por ele próprio e por outras pessoas de sua
entre as lutas políticas e suas consequências (a repressão família. Os detalhes dessa história, os sentimentos por
sofrida) tenha se perdido para muitos militantes, uma ele vividos ele nunca os trouxe para discussão no grupo,
vez que o que se procurava encobrir era a existência o qual deixou abruptamente pouco depois de nos contar
mesma de uma luta política e as razões dessa luta, com esse episódio dramático da morte do pai.
pelo menos dois protagonistas, sendo um deles o Estado. Pensávamos que mais interessante, mais útil do ponto
O Estado violador se volta contra seu próprio povo, ao de vista de uma vida potente, seria não negar a militância
invés de defender seus interesses e anseios. O Estado que um dia praticara. De fato, esse paciente tinha uma
buscava encobrir as razões dessa luta, que expressavam vida despotencializada, ao nosso ver. Participava
justamente a capacidade de resistência de um povo. de uma seita religiosa com características sectárias e
Utilizamos a palavra vítima, colocando-a entre aspas, levava uma vida solitária. O grupo discutiu longamente,
já que essa não era para nós da equipe Clínico-Grupal na última sessão de terapia da qual participou, sobre
Tortura Nunca Mais uma boa palavra para designar a derrota que a esquerda sofrera nos anos da ditadura.

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Eduardo Passos; Cristina Rauter

Ser derrotado numa batalha é um sentimento diferente substituta se ampliaram. Ela acompanhava as sessões
de ser humilhado, desautorizado, de se considerar e ser num choro silencioso, lágrimas escorrendo pela face.
considerado um covarde, um fracassado, ou culpado, Por que chora? Não sabe dizer. Chora por tudo! Pelas
ou ainda de ser inconsequente e infantil. A derrota não experiências narradas no grupo, semelhantes às suas. Por
estingue a possibilidade de vitórias futuras, enquanto tudo o que não chorou em sua infância, no tempo em que
o sentimento de impotência, de fracasso, de covardia talvez isso lhe fosse franqueado de direito. Afinal, criança
pode nos incapacitar para seguir lutando. No entanto, chora! Mas ela não pôde - teve que viver momentos de
esse paciente insistia na recusa da derrota. Defender tensão cuidando dos irmãos menores, sempre usando
que não havia sido derrotado o afastava daquela luta, o um sobrenome falso na escola, se mudando de cidade,
afastava dos companheiros de luta, o afastava do grupo sempre mudando de casa e tendo que aprender a fugir
terapêutico. A corporeidade em fuga se mostrou como pulando o muro. Era difícil ter uma vida de criança que
um fenômeno clínico-político importante na experiência pode chorar. A clandestinidade dos militantes e suas
desse grupo terapêutico. famílias se inscrevia no corpo vivo como um órgão do
Outro paciente nosso vivia intensamente um silêncio. O corpo biomecânico é capaz de falar, mas a
sentimento de ter perdido sua capacidade de trabalho e corporeidade em fuga deve se manter no silêncio. No
liderança. Desvalorizava o que conseguia realizar em caso dessa paciente que desde menina apreendera, na
seu trabalho atual, ao qual se dedicava muito, no serviço intensidade da luta cotidiana, a não falar quem era, o
público, com um sentimento de que nada valia à pena. Com silenciamento se mantinha como uma barreira corpórea.
o fracasso de um empreendimento anterior, em sociedade Aprendera a pular o muro assim como a silenciar:
com a ex-esposa, contraíra muitas dívidas e teve que formas complementares dessa fuga para lugar nenhum,
baixar muito seu padrão de vida, indo morar depois de fuga que a mantém presa no território de medo do qual
separado com uma irmã idosa. Esse paciente pertencera tenta escapar. Escapa indefinidamente sem que chegue a
a uma organização de esquerda e fora preso e torturado. traçar uma linha de fuga que lhe permita perspectivar de
Ao sair da prisão, a orientação política do partido mudara outra maneira sua vida. No grupo terapêutico ela chorava
e ele se viu sozinho, com um sentimento de que lutara a cada vez que era convocada a dizer mesmo a mais
inutilmente, já que aquelas lutas, no momento de sua simples trivialidade de sua vida. Qualquer relato íntimo,
saída da prisão, tinham sido abandonadas pela própria mesmo uma banalidade de seu cotidiano, disparava
organização. Esse sentimento de solidão ele carregava nela esse choro que reagia à experiência de abertura,
em tudo o que fazia, e tinha dificuldade de construir de quebra do silêncio. Em sua corporeidade persistia o
estratégias de trabalho coletivas, o que o deixava muito imperativo de resistir e não abrir: eis a palavra de ordem
sobrecarregado no trabalho. Essa sobrecarga afetava sua que se incorporava naquelas existências. No vocabulário
saúde. Com o trabalho terapêutico do grupo, ele parece da militância contra a ditadura no Brasil, abrir significava
ter encontrado o fio que ligava seu trabalho atual com as trair, delatar, comprometer a integridade não só do
lutas políticas em que sempre se envolvera. Essas lutas movimento de resistência à ditadura, como também, e
não se esgotavam na organização que o decepcionara, sobretudo, a integridade física dos companheiros. Não
pois não tinham deixado de existir nele. E ele pode se podia abrir. Um dos elementos que nossa clínica nos
retomá-las de outra forma, dessa vez construindo uma ensinou foi que a vida na clandestinidade, a perseguição
vida bastante singular, na qual o trabalho-militante que política e o fato de ter que viver tudo na solidão e em
realizava se fortaleceu, assim como sua vida amorosa, segredo constituem, como poderíamos designar, um
apesar dos muitos problemas diários que a falta de “agente patogênico” importante. Esse caso extremo,
dinheiro lhe trazia, pois destinava grande parte do seu a que acabamos de nos referir, dizia respeito a várias
salário ao pagamento de dívidas. Durante o processo proibições e limitações em relação ao contato social
terapêutico, ele reencontrara uma antiga paixão pela que eram impostas à nossa paciente, quando criança:
internet, uma namorada que tivera quando morara nos a proibição de usar seu próprio sobrenome, o fato de
Estados Unidos no final dos anos sessenta, em plena se mudar sempre e isso dificultar fazer amizades com
efervescência contracultural das lutas por direitos civis e outras crianças na localidade em que vivia, tudo isso
contra a guerra do Vietnam. Ao reconectar-se com o fio justificado pelo fato de que o pai realizava uma atividade
que o ligava a essas lutas do passado, pode reconectar-se importante junto a uma organização clandestina que
também com o sentido se sua militância de hoje, daquela deveria ser mantida em segredo.
que empreendeu durante a ditadura miliar, e com os Desde Freud, sabemos que as proibições produzem
diversos modos de ser militante que povoaram sua vida. efeitos traumáticos, mas esse tipo de proibição é
Outra de nossas clientes era uma jovem, filha de um diferente daquela imposta à sexualidade, vista por Freud
militante. Ela viveu sua infância quando seus pais se como determinante da neurose. A palavra proibição aqui
encontravam na clandestinidade. Enquanto o pai e mãe se aplica a outros conteúdos: a manter em segredo a
militavam, ela cuidava dos irmãos menores, chegando identidade da família, e a sua própria, a estar sofrendo
a ser treinada sobre como pular o muro das diferentes uma perseguição, a não saber se será levado preso, ou se
casas em que viveram, caso fosse necessário fugir da irá sobreviver. Talvez a palavra silenciamento seja mais
polícia. Mais tarde os pais se separam e a dependência adequada para descrever as circunstâncias vividas por
dos irmãos para com ela e suas responsabilidades de mãe muitos militantes em situação de clandestinidade. Talvez

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Corporeidade e violações de direitos humanos: saúde e testemunho

ela descreva melhor a sensação de ameaça permanente, coletivo não pode ser tomada como oposta ou separada
e de não ter a quem recorrer, frequentemente associada da dimensão subjetiva, constituindo, de nosso ponto de
ao sentimento de que esse seu drama não importa ou vista, o plano de produção de efeitos de subjetividade.
não é compreendido pelas outras pessoas. Silenciamento Acessar este plano é tarefa da clínica, sendo o grupo um
talvez seja uma palavra mais adequada para descrever dispositivo potente para tal. Na experiência com o grupo
a percepção de que a sociedade não se importa com o terapêutico do GTNM/RJ, verificamos o movimento
que acontece consigo próprio e com sua família, que não de retraimento subjetivo expresso na corporeidade dos
consegue compreender as razões de sua luta, que aliás, é participantes, seja na forma do enclausuramento nos
a luta de um povo. Corporeidade em silenciamento. espaços privados, seja no esvaziamento dos espaços
As mortes, os desaparecimentos, ou no caso dos públicos, o que vinha relacionado a uma sintomática
atuais assassinatos de jovens pretos, pardos e pobres marcada pelo pânico, pela depressão. O enfraquecimento
perpetrados por policiais – as famílias das vítimas das experiências do coletivo marcava corporalmente
desse tipo de violência percebem que não há interesse aquelas pessoas, exigindo um esforço da clínica para
da sociedade com relação com o que se passou com acompanhar as modulações subjetivas resultantes tanto
eles, e essa percepção produz fortes sentimentos de da experiência da violência do Estado quanto do processo
menos valia, entre outros afetos tristes, que implicam de contração de grupalidade no dispositivo terapêutico.
em despotencialização subjetiva. Podemos, portanto, A tortura visa muito mais fazer calar do que faze falar,
ampliar nossa concepção de trauma, incluindo outros e principalmente, individualizar, reduzir, desconectar
tipos de acontecimento para além do sexual entre os que a luta daquele indivíduo das lutas coletivas ou da
podem ser agentes traumáticos. Abrindo mão de “ideias grupalidade. Terrorista, subversivo e mais recentemente,
gerais”5 na definição do traumático, podemos incluir, na vândalo, são categorias disseminadas para produzir essa
compreensão desses processos, a vida vivida em fuga, dissociação. Por outro lado, produzindo medo e dor a
em silêncio, no isolamento, em segredo, a vida na qual partir dos espancamentos arbitrários, das tecnologias
as relações com o coletivo estão restritas a um mínimo. para causar sofrimento, das execuções sumárias, o Estado
Para Spinoza, a solidão caminha no sentido inverso ao autoritário pretende desencorajar a adesão de outros,
da saúde, razão pela qual ele considera a democracia da apesar de que a luta seja de todos os que vivem as mesmas
multidão como saúde. Há todo um elogio do coletivo condições de opressão, e por essa razão os afetos comuns
na obra de Spinoza (2008, IV, 35, corolário I), ao dizer estão sempre se dando. Os mecanismos de multiplicação
que nada há de mais valioso para um homem do que um por imitação e contágio têm sua ação reduzida a partir
outro homem. Na solidão experimentamos um grau de do medo produzido pela tortura e pelas mortes praticadas
potência, mas ele se torna inoperante ao tornamo-nos por agentes do Estado. No entanto, na multidão, ou nos
com mais facilidade tristes. Na tristeza experimentamos grupos, é mais possível experimentar, por contágio, outros
graus menores de nossa potência, o que quer dizer que afetos que não os afetos negativos que contribuem para a
pensamos e agimos pior do que se estivéssemos no despotencialização e para a desistência da luta. Eis uma
coletivo. Eis uma das razões para fazermos também, das razões para acreditarmos nos grupos.
enquanto terapeutas, um elogio do grupo terapêutico, Por razões análogas, acreditamos que o esclarecimento
ou do quão terapêutico pode ser um grupo, uma vez dos crimes praticados durante a ditadura civil militar está
que todo indivíduo é uma multidão, pois é composto também ligado a essa saúde que faria reconectar o Estado
de múltiplos indivíduos. No grupo terapêutico que com seu povo e restituir o significado de suas lutas passadas
realizamos éramos uma multidão, cada um de nós e presentes. Pudemos verificar a importância clínica da
era uma multiplicidade, e nessa multiplicidade de experiência de coletivização do sofrimento seja no grupo
agenciamentos que ali se estabeleceram repousou seu terapêutico seja no depoimento à Comissão da Verdade
caráter terapêutico. Isso não quer dizer que tenhamos quando este pode se realizar, por ultrapassar o silenciamento
podido acionar toda a potência de transformação e possibilitar a reconexão com as lutas empreendidas por
existente no grupo em todos os momentos, embora essa geração num passado não tão distante.
em alguns, sem dúvida, isso tenha se dado. Na clínica Referências
grupal de inspiração spinozista, nada está garantido,
mas também, nada está perdido, pois é sempre possível BARROS, R. B de. Grupo: afirmação de um simulacro. Porto
acionar a potência da multidão ou a “grupalidade”, no Alegre: Sulina, 2007.
sentido dado por Antônio Lancetti (1993). BERGSON, H. Evolução criadora. Rio de Janeiro: Delta,
Um desafio da clínica no contemporâneo é o de 1964.
realizar a desprivatização e desintimização de seus BOVE, L. Spinoza et la question éthico-social du désir: études
dispositivos de intervenção. Neste sentido, o dispositivo comparatives avec Épicure-Lucrece et Machiavel. Fractal:
grupal intensifica a interface entre a clínica e a política, Revista de Psicologia, Niterói, v. 24, n. 3, p. 443-472, dez.
problematizando o modo indivíduo de subjetivação 2012. CrossRef.
na nossa sociedade (BARROS, 2007). A dimensão do GRECO, H. A. Dimensões fundacionais da luta pela anistia.
5
 Aqui nos referimos à crítica das ideias gerais ou universais feita por Spinoza, 2003. Tese (Doutorado)-Universidade Federal de Minas
para quem não existem “o bem” ou “o mal”, estendendo tal crítica à concepção Gerais, Belo Horizonte, 2003.
genérica de trauma sexual. Já nos referimos a essa questão no livro Clínica do
esquecimento (RAUTER, 2012).

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LANCETTI, A. (Org.). Grupo terapêutico com psicóticos: a
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Recebido em: 17 de janeiro de 2017
Aceito em: 29 de agosto de 2017

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 211-218, 2017
Fractal: Revista de Psicologia, v. 29, n. 2, p. 219-222, maio.-ago. 2017. doi: https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i2/2493
Dossiê Corporeidade - Depoimento

Conversas precisamente incertas com Kuniichi Uno


Joana CamelierH
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
Resumo
O artigo trata de conversas com o filósofo japonês Kuniichi Uno a respeito de seu trabalho e de sua pesquisa sobre as delineações
do corpo na dança e na filosofia. As conversas foram feitas presencialmente e por mensagens eletrônicas, de modo que sua apre-
sentação abrange temporalidades e meios de comunicação distintos. Isto faz delas antes uma experiência que propriamente uma
entrevista. São levantadas sobretudo questões referentes à força de gênese do corpo, tema que Uno trabalha em seu livro A gênese
de um corpo desconhecido, publicado no Brasil em 2012.
Palavras-chave: corpo; força; tempo; corpo-sem-órgãos.

Precisely uncertain conversations with Kuniichi Uno


Abstract
The article is about conversations with the Japanese philosopher Kuniichi Uno regarding his work and his research on the delinea-
tions of the body in dance and philosophy. The conversations were made in person and by electronic messages, so its presentation
encompasses different temporalities and means of communication. This makes them an experience rather than an interview. The
questions raised are particularly referred to the force of genesis of the body, a theme that Uno works on in his book The genesis of
an unknown body, published in Brazil in 2012.
Keywords: body; force; time; body without organs.

Kuniichi Uno nasceu no Japão em 1948 e é professor 2016. Estas só podem ser descritas desse modo, como o/a
na Universidade de Rikkyo, em Tóquio. Fez seu douto- leitor/a verá, envolvendo uma profusão de tempos e de
rado na França, sob a orientação de Gilles Deleuze, com meios, porque se trata antes de uma experiência do que
uma tese sobre Antonin Artaud. Esse e outros entrelaça- de um diálogo direto. Experiência esta, que deve levar em
mentos do pensador – que tem uma vasta pesquisa sobre conta uma brasileira e um japonês, comunicando-se numa
dançarinos de butô (notadamente Min Tanaka e Tatsumi língua terceira, o francês. Kuniichi tem o tom de voz bai-
Hijikata) – evidenciam sua sensibilidade e interesse pelo xo, polido, e às perguntas feitas por mim ele tomava um
tema do corpo. Em português, temos a compilação de tempo antes de responder. Parecia-me que seu pensamen-
alguns preciosos artigos seus reunidos no livro A gêne- to vagava entre milhares de possíveis antes que ele se ar-
se de um corpo desconhecido (UNO, 2012), que é uma riscasse a traçar um caminho plausível de ser enunciado.
inspiração para tantos de nós pesquisadores do Laborató- Houve pausas e frases inconclusas, porque – imagino eu
rio de Subjetividade e Corporeidade – Corporeilabs. Foi – ele de fato se aventurava a pensar algo diferente, ou ao
tocada por essa inspiração, que vi a possibilidade de ter menos a dizer de forma diferente. O dia a dia na clínica
uma conversa com Kuniichi, quando ele esteve no Bra- confere essa capacidade de perceber um pensamento efe-
sil em outubro de 2016. No Rio de Janeiro, ele deu uma tivamente em vias de criação e enunciação, e foi exata-
palestra no Ciclo “O ato criador”, no Oi Futuro Ipanema; mente isso o que vi acontecer em um de nossos encontros,
e em São Paulo, fez o lançamento do livro de entrevis- que se deu no jardim do Palácio do Catete, onde fica o
tas Guattari confrontações (UNO, 2016) no qual cons- Museu da República. Fizemos um passeio e pude contar
tam duas entrevistas suas e uma de Laymert Garcia dos um pouco sobre este local que tem uma importância his-
Santos com Félix Guattari. Kuniichi Uno é ainda tradutor tórica para nós, brasileiros, pois foi sede de nosso poder
para o japonês das principais obras de Deleuze e Guatta- executivo de 1897 a 1960 (ele voltou sozinho novamente
ri, de Foucault, de Artaud e de Becket, o que faz dele um ao jardim, no dia seguinte, para tomar um café).
interlocutor próximo às questões que na UFF chamamos Enfatizo outra vez que essas conversas são mais da
de transdisciplinares à clínica. Na direção apontada por ordem de uma experiência, porque me evocaram empi-
tal proposta, trabalhar os domínios transdisciplinarmente ricamente algo que li em Roland Barthes há anos atrás a
vai além da colaboração entre eles, pois acaba por ge- respeito do Japão e dos japoneses em seu livro O impé-
rar um pensamento organizador que os ultrapassa. Dessa rio dos signos:
forma, outros campos de saber como a filosofia, a políti-
Não é a voz (com a qual identificamos os “direitos” da pes-
ca, a arte, etc. são convocados à composição com a clíni-
soa) que comunica (comunicar o quê? nossa alma – for-
ca (PASSOS; BARROS, 2000, 2003; RAUTER, 2013).
çosamente bela – nossa sinceridade, nosso prestígio?), é o
Essas conversas com Kuniichi aconteceram presen- corpo todo (os olhos, o sorriso, a mecha, o gesto, a roupa)
cialmente e por trocas de mensagens eletrônicas, que que mantém conosco uma espécie de balbucio, ao qual o
temos mantido desde que nos conhecemos no Rio em perfeito domínio dos códigos tira todo caráter regressivo,
H
 Endereço para correspondência: Universidade Federal Fluminense, Instituto de infantil. Marcar um encontro (por gestos, desenhos, nomes
Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Campus do Gragoatá - próprios) leva de fato uma hora, mas durante essa hora, para
Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, Bloco N, Sala 413 Gragoatá
- Niterói – RJ - Brasil. CEP: 24210-201. E-mail: joanacamelier@gmail.com
uma mensagem que se teria abolido num instante se tivesse
Joana Camelier

sido falada (ao mesmo tempo essencial e insignificante), é o O teatro da crueldade (Artaud) coloca precisa-
corpo todo do outro que é conhecido, degustado, recebido, mente esse problema: como acessar essas forças cruéis,
e que desenvolveu (sem verdadeira finalidade) sua própria porque o desafio do teatro é a crueldade da força - como
narrativa, seu próprio texto (BARTHES, 2007, p. 18). acolhê-la e se defender dela também.
Deste modo, só se pode conceber essas trocas que fiz É no livro Lógica da sensação2 que Deleuze fala
com Kuniichi sob uma perspectiva sensível: há de se in- exatamente como “pintar a força” e coloca a questão da for-
vocar a porosidade do corpo e também a do pensamento ça como aquela que ultrapassa a dimensão da fenomenologia.
para perceber nuances que estão aquém e além do que é
Eu gostaria de me explicar de maneira mais con-
dito - estão no modo como é dito, mas também naquilo creta e nuançada, sobretudo sobre Artaud, citando seus
que não é dito (e aqui a proximidade com o tema do Dossiê textos poéticos, mas em outra ocasião. Eu tive uma visão
Corporeidade e com as pesquisas do Corporeilabs é evi- concreta do problema da força lendo os textos de Artaud,
dente). Silêncios, pausas, hesitações, pequenos sorrisos e aquilo que se encontra no Pesa-nervos,3 etc.
um mundo de sentidos que os povoam. Guattari1 já entre- Volto aos registros de nosso encontro no Rio, quando
vera uma espécie de afinidade inconsciente e secreta entre havia feito a mesma pergunta a ele, para resgatar seus co-
o Brasil e o Japão e talvez seja disso mesmo que se trata. mentários naquela ocasião. Eis seu pensamento se fazendo:
Uma das questões que mais me chamou a atenção no
Isso é complicado... O que é essa força? Antes de tudo eu
livro A gênese de um corpo desconhecido está contida em
pensaria que é a força da vida. A vida é uma força, para vi-
apenas um parágrafo, do qual retiro uma frase para come- ver deve haver uma força, mas para ter a força deve haver
çar minha conversa com Kuniichi: “no fundo, a vida e o uma vida também. A vida é uma energia. Qual é a diferença
corpo nada mais são que a mesma coisa, mas, para que entre a energia e a força? Pode-se definir em termos cientí-
sejam verdadeiramente o mesmo e o corpo seja digno da ficos, mas não estou certo de que seria o caminho...
vida, será preciso descobri-lo em sua própria força de
gênese, em seu tempo próprio” (UNO, 2012, p. 66). Per- Quando eu falo de força, nesse contexto, penso
gunto-lhe: do que se trata essa força? Quais são os meios a vida sendo igual talvez a certo tipo de força. E depois,
pelos quais podemos acessá-la ou evocá-la? bom, por que o problema da força é tão complicado?
Porque a questão da força envolve todo um sistema de
Kuniichi me escreve: disfarce, de desvio.
A questão da força, ou das forças (como ela é sempre múl-
Quando se fala de poder, estamos já num lugar
tipla), eu a coloco sempre de partida junto àquela da dife-
político. O poder é um sistema de forças, uma forma de
rença da força natural e da força humana, social, que se
forças sistematizadas, são forças formalizadas. Enquanto
define mais como “poder”. A força ou a violência natural
a força da vida, para mim, biologicamente, não tem nada
do vulcão, da tempestade, pode ser terrível, mas no fundo,
de misterioso. Contudo, a força é qualquer coisa de inde-
a força da vida, da vitalidade, é da mesma natureza, pode
finível, de desconhecida. E o poder já é uma espécie de
ser esplêndida, terrível, mas inquietante.
organização, uma codificação das forças. Um processo de
Quando a força (natural) é manipulada, dirigida, fechamento e de cerceamento das forças.
disfarçada pela humanidade, o governo, o rei, o exército,
A diferença entre a força e o poder é algo muito
etc. ela pode se tornar uma violência brutal insuportável.
importante e complicado. Nietzsche coloca o problema da
Isso todo mundo sabe.
vontade de poder, que é naturalmente um problema da von-
Porém, o que complica o problema da força, é tade de força. Então há uma sociedade, há todas as formas
que ela vai para toda parte e sem forma, frequentemente de poder e de forças deformadas e desviadas. Deleuze e
invisível, imensurável. O corpo é um solo importante sobre Nietzsche colocam o problema da diferença entre a força
o qual as forças se centram, se entrecruzam, se transbor- ativa e a força reativa. A força reativa cria ou fabrica ou-
dam... Sem dúvida há sempre técnicas do corpo para con- tra dimensão da força para a humanidade, o que concerne
trolar todos esses movimentos de forças que podem ser ter- também qualquer coisa de psicológico. Porque na psicolo-
rivelmente perigosos, mas criadores e eufóricos também. gia existe todo um sistema ou um modo de desvio da força,
o que tem a ver com todas as formas de ressentimento e
A força é sem forma. As máquinas artificiais po-
reação. Em um sentido é quase uma criação ou invenção
dem controlar as forças de maneiras muito sofisticadas,
em si mesma: o ciúme, a tristeza, a cólera, há um drama e
mas a força humana, social, mental, emocional, não se
uma teatralização da psyché.
sabe nunca como totalmente controlá-la. Spinoza parece
muito sensível a esse problema... nossa razão não é sufi- Nietzsche vindo à conversa me lembrou da surpresa
ciente para controlá-la porque a razão é ela mesma funda- que tive ao ler na entrevista de Kuniichi com Guattari4 que
da sobre as forças. este último não gostava das ideias do filósofo alemão e
Aí há verdadeiramente a questão: como aces- rejeita o conceito de força. Kuniichi o interpela a respei-
sar essa força. Uma arte é uma possibilidade de operar to do trabalho realizado com Deleuze em O Anti-Édipo e
o que não é operável, uma análise (filosófica, ou psicoló- Mil platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, 1995b, 1996,
gica no sentido global) pode ser também um dispositivo 1997a, 1997b, 2010), nos quais enxerga um tipo de filo-
para operar as forças. 2
 Deleuze (2007).
3
 Artaud (1995).
 Entrevista a Kuniichi Uno em 20 janeiro de 1992 (cf. UNO, 2016, p. 101-140).
1 4
 Entrevista a Kuniichi Uno em 30 de março de 1984 (UNO, 2016, p. 43-98).

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Conversas precisamente incertas com Kuniichi Uno

sofia da força e filosofia do corpo. A questão lhe é cara, Se não há nunca o problema da força pura, “em si”, só
uma vez que o conceito de “corpo-sem-órgãos” advém de podemos percebê-la no encontro (ou mesmo no embate)
Artaud e traz a questão das intensidades que ultrapassam o com outras forças. Existem, então, as coisas que escapam
corpo orgânico – tema que aparece diversas vezes em seus ao bloqueio que se exerce sobre a vida, não?
escritos sobre os dançarinos de butô. Contudo, Guattari é Dentro de um conjunto há sempre um sistema majoritário,
enfático ao afirmar que falar de forças é problemático, pois também um poder majoritário, que codifica, que ordena to-
levanta uma questão dialética e conflituosa da subjetivida- das as forças e as relações de força. E há sempre as fugas ao
de determinada por instâncias topicamente distintas. Seria sistema. Por exemplo, uma criança antes de ser codificada,
preciso, segundo este último, inventar um modo novo de antes de ser desviada. Em relação ao sistema masculino, a
falar para escapar à herança semântica já fortemente cons- feminilidade é em qualquer parte uma linha de fuga. Essas
tituída de tudo o que envolve o termo “força” (sentidos formas bastante variadas mostram que a força da vida se
dinâmicos, energéticos, físicos, temporais, etc.). exprime sempre ao longo de um atraso deste sistema.
Minha curiosidade se volta então para Kuniichi: “para Os entremeios dos jogos de forças estão sempre se
mim foi uma surpresa saber o que Guattari pensava sobre dando...
a filosofia da força. Neste caso, que ele não gostava desse
Bom, já falamos da força, a força é a vida. É o problema
termo e que não estava de acordo com seu uso. Você com- da vida, da vitalidade. E é a vida também que cria esses
preende o que ele quis dizer? Porque eu faço uma leitura desvios. A vida deve ser desviada, a vida deve até mesmo
dessa questão das forças que, penso, é similar à sua...” ser diminuída. É como se tivéssemos ao mesmo tempo ne-
Você faz bem em evocar o que Guattari disse na nossa con- cessidade da vida e de qualquer coisa que impeça a vida,
versa sobre o problema da força: ele exprimiu uma espécie que a bloqueie. Tem sempre esse jogo na nossa sociedade e
de desconfiança profunda no termo da “força” e é verdade mesmo na nossa psicologia.
que isso também me surpreendeu durante a entrevista. Nas conversas que estamos mantendo por correio eletrô-
Sobretudo o problema da força na dimensão polí- nico, conto um pouco para Kuniichi como a tarefa da escrita
tica. Há qualquer coisa de embaraçoso na maneira em que da tese tem sido difícil, para não dizer impossível, o que
colocamos o problema da força, principalmente quando di- me causa muita angústia. Pensar e escrever na fronteira em
zemos que tudo gira em torno das forças como se fosse uma que o corpo força o pensamento ao limite, longe o suficiente
realidade absoluta, inegável. Sobre o plano político, toda para que ainda seja pensamento, mas nunca o bastante para
força se efetua com a fala, as palavras de ordem. As forças que possamos afirmar que é o mesmo que o corpo.
ou as violências mais temíveis são realizadas e mobilizadas
Ele diz que “é preciso achar e afirmar um modo de
por decisões ou instruções verbais, que não são, em si mes-
falar daquilo que é ‘precisamente incerto’”. Eis que fi-
mas, nem a força nem a violência.
nalmente tenho nomeado, através de um paradoxo (como
Guattari fala de Alice no país das maravilhas, poderia ser diferente?), o meu objeto de estudo.
Alice só existe em uma pura dimensão de linguagem, de E como bom paradoxo, no final somos devolvidos ao
fala, de “sentido”. É curioso que Guattari seja tão favorá-
ponto de partida com o retorno do tema. “Coisas que são
vel à Lógica do Sentido5 nesse ponto de vista. Ele insistiu
‘precisamente incertas’ e que nos atravessam, as intensi-
bastante, em seu pensamento após o período de sua co-
dades, as multiplicidades, não seriam a força de gênese, o
laboração com Deleuze, sobre as partículas-signos ou o
tempo próprio do corpo, dos quais você fala em A gênese
incorporal como qualquer coisa que pode provocar uma
profunda mutação das coisas.
de um corpo desconhecido?”
Você me evoca o problema “o tempo próprio do corpo”.
De todo modo, o problema da força e das naturezas
diferentes da força existe, mas não há nunca o problema puro Eu refleti recentemente de novo sobre o que é
da força, porque o pensamento e o corpo são já trabalhados o gesto, os gestos. Deleuze fala em A imagem-tempo6 do
pelas forças múltiplas em variação - e assim, forças já afeta- “gestus” (termo proposto por Brecht). Nesse contexto, os
das pelas dimensões sociais, psicológicas, linguageiras, etc. gestos são quaisquer coisas que injetam o tempo no corpo.
Uma vez que se começa a pensar o tempo, deve-se neces-
O que Kuniichi explica ainda sobre esta questão é que
sariamente pensar o tempo vivido pelo corpo, não somente
não há sujeito, e menos ainda um sujeito que “tenha” a
pela mente, mas sobretudo pelo corpo.
força. Existe, sim, uma posição de desejo que muda a
todo o tempo e que muda de relação também. Pensar o tempo nos incita a pensar o corpo no
tempo, o que complica logo de saída todas as visões orgâ-
Não há nada de substancial... Os termos, as palavras...
nicas do corpo espacializado.
Por exemplo, a diferença de um cachorro-cachorro, de um
cachorro-gato, de um cachorro-tigre, cavalo, etc. é que Multiplicidade e intensidade são conceitos ab-
não há cavalo, gato, para o cachorro. Há apenas a dife- solutamente necessários para elucidar esse tempo e esse
rença, então a questão é somente a distribuição de termos corpo, não é? E isso não é tudo... Nós somos sempre obri-
e a relação entre eles que conta. Não existe um cachorro gados a reinventar os termos e conceitos para exprimir e
que tenha uma força especial. tornar sensíveis os aspectos sempre móveis desse tempo e
desse corpo.

5
 Deleuze (1988). 6
 Deleuze (2005).

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Joana Camelier

Relendo certos textos de Kafka e de Beckett, re-


vejo a que ponto esses autores são atentos a todos os signos
de diferenças captadas nos gestos, suas velocidades e len-
tidões, suas pequenas flexões, coagulações, hesitações, ra-
chaduras e dobras, impossibilidade de fazer e dizer o que
quer que seja, em suma, falhamos em tudo, não alcançamos
nada de definitivo...
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Recebido em: 19 de agosto de 2017
Aceito em: 25 de agosto de 2017

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Fractal, Rev. Psicol., v. 29 – n. 2, p. 219-222, 2017

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