Sie sind auf Seite 1von 13

) ,VI. '''';''A 'J, ,> -J; l" .".

"~J'
,.-' ":) S~-00';::'-;-)
K.- );t-:.ç" ...::./.() '.:'\ U'

.:t
'"
'-. \~9·q

Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão


inicial das favelas do Rio de Janeiro'
Meuticio de Almeida Abreu

A imagem de que o Rio de Janeiro é um lugar de reflexões sobre o seu papel no conjunto da estrutura
contrastes tem acompanhado a cidade há bastante urbana carioca. 3
tempo. Os viajantes dos séculos XVIII e XIX, por
A favela se constirui. hoje. na forma de habitação
exemplo. foram unânimes em destacar a diferença
popular mais difundida no Rio de Janeiro. Em 1991,
gritante que se verificava. àquela época. entre o
existiam. na cidade. 545 favelas. que abrigavam
magnífico quadro natural que envolvia a cidade e o
cerca de 1.100.000 habitantes ...\Trata-se. evidente-
acanhamento e feiura do seu quadro construído.
mente. de um número considerável, que revela bem
Alfred Agache. que elaborou o primeiro plano urba-
a importância dessa solução habitacional. que já
rusuco da cidade, declarava. por sua vez. em 1930.
está completando cem anos de existência.
que atrás de uma opulenta fachada. o que se escon-
dia mesmo era uma cidade de província.' Já uma Apesar de sua longa presença no cenário carioca.
publicação recente. dedicada ao Rio. indica que essa pouco se sabe. entretanto. da origem e do processo
imazern ainda se mantém. Encamando ao mesmo de expansão inicial da favela. Esse desconheci-
tempo a fartura e a carência. o belo e o feio. a alegria mento pode ser atribuído a dois fatores: de um
e a tristeza. a cidade é vista como refletindo. nada lado. à dificuldade de obtenção de informações: de
mais nada menos. do que a "beleza do diabo"." outro. à grande difusão que tiveram dois irnoortan-
tes trabalhos publicados' nos anos sessenta.5 e que
Essa imagem de "terra dos contrastes" não é falsa.
sustentaram. equivocadamente. que só a partir de
O Rio de Janeiro reflete. na sua economia e na sua
1940 é que 3. favela teria passado a . 'chamar a
cultura. a diversidade e as disparidades caracterís-
atenção". isto é. teria se tornado um elemento im-
ticas da sociedade brasileira como um todo. Fato-
portante da estrutura urbana carioca.
res históricos e naturais. entretanto. tornam esses
contrastes mais acentuados no Rio. o que contribui O erro acima oode ser explicado. Até 1930. 3. ra-

I
para alimentar a imagem de "lugar exótico" que a vela existe de lacro mas não de Jure. Está. portanto,
cidade também possui. presente no tecido urbano. mas ausente das estatís-
ticas e dos mapas da cidade: não é individualizada
:-\.favela talvez não seja o elemento mais importante
pelos recenseamentos. E considerada como uma
desse quadro de contrastes. Por ser. entretanto. um
de seus exemplos mais visíveis. da vem ocupando.
solução habitacionai provisória e ilegal. razão pela
qual não faz sentido descrevê-Ia. estudá-Ia.
f
já há bastante tempo, um lugar de destaque na pauta
mensurá-la.? Para os poderes públicos. as favelas
de debates sobre a cidade. Não se deve pensar.
simplesmente não existiam.
entretanto. que ela participa dessas discussões de
forma consensual. Ao contrário. à favela também A mudança de regime político, em 1930. não mu-
podem ser associadas várias imagens contrastantes, dou muito essa situação. Embora os habitantes das
que reproduzem, em escala localizada. a imagem favelas cariocas tenham sido beneficiados pela le-
principal do Rio. gislação trabalhista e social implantada pelo gover-
no de Getúlio V argas, 7 a verdade é que, embora
Abrigo da marginalidade urbana. mas também resi-
crescentes em número. as favelas continuaram a
dência do trabalhador honesto: .'chasa da cidade. ser consideradas como habitar urbano temporário,
mas igualmente "berço do samba": solução urba-
razão pela qual mantiveram-se ausentes das estatís-
nística desprezada e. ao mesmo tempo. elogiada: as
ticas e dos documentos oficiais da cidade.
Imagens da favela impuseram-se no decorrer do
século XX e já se incorporaram ao imaginário cole- :\ partir de 1940. entretanto, essa situação começa
:1VO da cidade. Deram ensejo. também. a inúmeras :1 mudar. Decidido 3. . ':-êSOl\'er problemas de higie-

= Trabalho tesiizsdo com spoto do C:VPq e Q2 RNEP. O auror agradece aos oaiticuxunes do Projeto Evolução Utbene do Rio de
lsaciro pela valiosa ajuda que ptestsrzm à elaboração deste ertigo. e a Lia Osóno Mscheao c Robeno Lobato Corrêa pelas sugestões criticss.
Reconstruindo ur.la história esquecida: origem e exoansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

i
:.':1
mzação". o governo rnurucioal dá início a uma série .iava as chamadas .. causas populares". I~ Compie-
íI
1 de levantamento sisiemaucos das favelas." Com rnentando essa Investigação sisrernáuc., o estudo
isso. objetivava-se cadastrar os seus habitantes. vj- contou também com informações provenientes de
sando a transferí-los das áreas valorizadas que ocu- fontes arquivísticas e de ouuos órgãos da imprensa.
pavam para peroues prolecuios a serem construidos
pelo governo.

O fracasso dessa política bem conhecido." Dela


é
o Rio de Janeiro no final do século XIX
resultaram. entretanto. as primeiras estatísticas deta- o final do século XIX constitui um período de
lhadas sobre as favelas da cidade. e é esta a razão transição importante na história brasileira, Extinta
pela qual os trabalhos que as esrudam tendem a a escravidão em 1888 e proclamada a República
concentrar sua atenção 00 período pós-1940. em 1889. o pais vivenciará. no decorrer da última
:\ grande acolhida que teve o Partido Comunista década do século. uma série de transformações eco-
nas favelas. nas eleições unes de 1947. também nórnicas, politicas e sociais, que embora traurnáti-
contribuiu para isso. Preocupado com a "demago- cas em muitos sentidos.'? viabilizarão a sua inte-
gia comunista". 11) o governo municipal fez reali- gração efetiva à nova ordem internacionai surgida
zar. logo a seguir. o primeiro recenseamento das com o advento da segunda revolução industrial.
favelas. de qualidade reconhecidamente deficiente. Capital do pais e principal ponto de articulação do
mas que indicou a existência no Rio. naquela oca- território brasileiro com os centros nervosos do
sião, de 119 favelas. 70.605 casebres e 283.390 capitalismo mundial nessa época. o Rio de Janeiro
moradores. ou seja. 149c da população da cidade. i I será o palco privilegiado onde se materializarão as
Dai para a frente. a favela passaria também a pressões que envolviam a República nascente. Ci-
existir de jure. ainda que as estatísticas a seu res- dade antiga. ela acrescentará. entretanto. a essas
peito sejam falhas até hoje. novas tensões, todo um rol de contradições que já
O presente trabalho pretende estudar os primeiros lhe eram próprias e que vinham se acumulando há
anos da favela no Rio de ] aneiro. Concentrará sua bastante tempo.
atenção no período que se estende do final do sé- Essas contradiçôes não eram de pouca monta. Elas
culo XIX a 1930. época em que a favela se afirma eram evidenciadas principalmente pela ausência de
corno solução habitacional e se difunde pelo cená- um porto moderno. necessário à agilização de todo
no urbano. O pnncipal objetivo do trabalho é res- o processo de importação/exportação de mercado-
gatar do esquecimento toda uma história de luta rias e pela permanência de uma trama urbana ainda
pelo direito à cidade. ocorrida no início do século remanescente dos tempos coloniais, que dificultava
XX. e que ainda permanece obscura. Na busca a circulação interna e que dava à cidade. segundo
dessa história esquecida. e dadas as carências de críticos da época. um ar de ., grande vila portuguesa".
informação citadas acima. o trabalho utilizará a
única fonte que acompanhou. ainda que de forma Apesar de sua importância populacional. eviden-
imperreita. o processo ce expansão da favela pela ciada nos 522.651 habitantes regi suados em 1890.
cidade: a imprensa periódica. a cidade sofria também baixas demográficas consi-
deráveis. Epidemias diversas. notadarnente de fe-
..\ utilização da imprensacomo fonte principal do bre amarela. assolavam anualmente o Rio. E ao
estudo traz alguns problemas. Os órgãos de comu- incidirem com maior violência sobre as habitações
nicação da época. exaltadores da ordem burguesa coletivas. acabavam por matar. a cada ano. uma
recém-instalada. sempre apresentam uma visão ten- parcela considerável da força de trabalho.
denciosa da favela, que e vista, via de regra. como
3. negação da ordem e do progresso. Não há. entre- Para resolver essas contradições. o que não falta-
tanto. como fugir deles .. -\ imprensa operária. em- vam eram propostas. Todas apontavam para a ne-
s oora diversificada e cornbativa durante o período cessidade de intervenção direta sobre o meio am-
estudado. nunca deu atenção às favelas. Os regis- biente. tanto o natural coma o consrruído: havia
tros de histórias orais. por sua vez. ou não foram que drenar os pântanos. que arrasar os morros. que
'a feitos ou não são conhecidos. Contamos. portanto. elevar o solo, que construir um porto moderno. que
a com uma única fome. que embora problemática em alargar as ruas. que construir casas higiênicas. To-
). alguns aspectos. é. por outro iado. bastante rica e das essas propostas esbarravam. entretanto. na falta
s- rouco explorada. de capitais ou na ausência de determinação política.

'-:abusca de inrormaçóe s sobre favelas na impren- Se não era possível chegar à forma urbana que se
ça sa. este trabalho nrivile siou a ieirura do Correio de desejava. era preciso. entretanto. que se atacasse de
ie- \fanhã. cujos numeres -foram pesquisados desde o frente a cuesrão sanitária. e disso vinha se incum-
seu surgimenro (em 1901) até .31/1211930. A opção bindo a política higienista do governo central já há
. de cor este jornal foi determinada por um pré-teste . algum tempo. Tratava-se. com efeito, de uma ques-
cilS-
Que indicou ser ele o periódico que mais atenção tão nacional. O problema da insalubridade do Rio

35
Es.paço & Debates nll 37 - 1994

não se restringia à queda da produtividade do tra- Apesar dessa campanha contra os cortiços. a forma
balho urbano ou ao comprometimento da imagem urbana (13. cidade permanecia inaiierada. As turbu-
da cidade: ele também solapava a política imigra- lências políticas e econômicas vindas com a Repú-
tória e reduzia o fluxo de capitais para o país. blica inviabilizavarn qualquer projeto de reforma
urbana. Ademais. para isso seria necessária a con-
corrência de \lJ..hOSOS capitais externos, que não se
o combate às habitações coletivas sentiam nada atraídos pelo clima de instabilidade
reinante na capital do país. No final da década,
o exemplo mais significativo da intervenção do go- entretanto. retomado o poder político pela oligar-
quia cafeeira. esta logo restaurou a credibilidade
verno brasileiro no campo da higiene pública no
século XIX foi. sem dúvida. a política de combate às financeira do país e abriu o caminho para a chegada 1
habitações coletivas do Rio de Janeiro. Iniciada ain- dos capitais externos necessários à remodelação da
da nos tempos do Império. essa política envolveu cidade. No penado 1903-1906. a cidade teve então
uma série de interesses e projetou-se para muito a sua forma urbana radicalmente transformada.'? .~.

além dos Limites do higienismo.

Decidida a eliminar os "rniasmas". que a seu ver A origem da favela


eram os responsáveis pela insalubridade da cidade.
a Inspetoria de Higiene Pública encetou. nas últi- A favela é anterior à reforma urbana. Ela tem a sua
mas décadas do século XIX. uma batalha implacá- origem ligada a dois focos de tensão que afetaram o
vel contra as habitações coletivas. que eram conhe- Rio de Janeiro no final do século XIX: a crise habi-
cidas como estslegetis ou cortiços." contando para tacional. que se agravou muito. e as crises políticas
isso com a ajuda da Academia de Medicina. Para advindas com a República. Dentre essas últimas,
essas duas instituições. os cortiços eram os grandes duas tiveram importância capital: a Revolta da Ar-
vilões da cidade e, por essa razão. defendiam a sua mada. ocorrida em 1893-1894. e a campanha militar
erradicação. As autoridades policiais também apoia- de Canudos, que se prolongou de 1896 a 1897.20
vam essa decisão. A elas preocupava a explosivi-
dade potencial de um centro bastante denso e a Desde a Revolta da Armada que o Governo vinha
dificuldade lcaística de controlá-Ia em caso de con- enfrentando o problema do alojamento de solda-
flito. race à estreiteza do plano viário ainda existente." dos no Rio de Janeiro. Para resolver essa situação,
ordens foram expedidas autorizando a ocupação
Numa cidade pré-industrial como o Rio de Janeiro. a do convento de Santo Antônio (localizado no mor-
lógica rentista entretanto prevalecia." Os cortiços ro do mesmo nome) por militares. Não tendo sido
podiam ser insalubres, mas eram também uma enor- as acomodações suficientes. permitiu então o co-
me fonte de extração de renda. sendo inúmeros os ronel Moreira César (que acabaria morrendo na
indivíduos que se dedicavam a explorá-los. A Câma- campanha de Canudos) a construção, numa das
ra Municipal. por sua vez. representante dos interes- encostas desse mesmo morro. de diversos barra-
ses comerciais e reruistas da cidade. pouco fazia para cões de madeira. Para tanto. concorreram a exis-
mudar essa siruação. Embora promulgasse. sob pres- tência "de grande número de praças casados neste
são dos órgãos de higiene, posturas severas de com- batalhão e a deficiência de casas nas proximida-
bate aos cortiços. fazia vistas grossas quanto ao seu des deste quartel.' '21
cumprimento. Por outro lado. o rápido crescimento
demográfico da cidade só fazia aumentar o poder de Em abril de 1897, antes mesmo do fim da campa-
barganha dos chamados corticeiros. nha de Canudos. a Prefeitura já tentava. entretanto.
resolver esta irregularidade. Informando que havia
Preocupado com essa situação. o Inspetor Geral no morro de Santo Antônio vários "galpões de
de Higiene informava, em 1890. que a população madeira ... construídos por ocasião da Revolta. por
dorniciliada nos cortiços já representava "0 dobro ordem do governo e outros por conta própria" . um
da recenseada em 1888, isto é. mais de 100.000 agente municipal solicitava o envio de uma comis-
habitantes." 17 Esse grande aumento populacional. são de engenheiros para vistoriá-los.F Essa comis-
certamente ligado à abolição da. escravatura. coin- são, por sua vez. informava, em dezembro do mes-
cidiu. entretanto. com o recrudescimento das epi- mo ano, que havia ali "41 barracões de macieira
demias. o que levou à intensificação da campanha cobertos de zinco. construídos ilegalmente em ter-
contra os cortiços. Sob pressão direta da Inspeto- renos do governo". 23
ria de Higiene. vários cortiços roram então fecha-
dos ou demolidos a partir de 1890. inclusive o Há indícios de que, também em 1893/1894, come-
':m10S0 Cabeça de Porco. o maior deles. que abri- çaram a ser construídos barracões no morro da
'!aV3 mais de 2.000 pessoas e que foi demolido Providência. L. Vaz aiirma que. logo após a ces-
~m j 893.18 O combate aos cortiços continuou pe- truição do Cabeça de Porco. que se situava exata-
io restante da década, agravando ainda mais a mente no sopé desse morro, um de seus proprietá-
situação habitacional. rios. dono também de terrenos na encosta. autorizou

35
,)
Reconstruindo uma história esouecida: origem e exoansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

:: ocuoacão da mesma. cobrancio dos anugos incui- aue construía o Dono do Rio de Janeiro e seus eixos
linos 'o direito de ali construirem caseores. ~~ viários cornpiernentares e movia imensa campanha
de controle do mosquito transmissor da febre amare-
Não há ainda prova que indique que uma autoriza- la. investindo com furor sobre as habitações coleti-
do militar tenha sido dada a soldados retomados
vas). a cidade viu desaparecer, em curto espaço de
de Canudos, em fins de 1897, para que também
tempo. boa parcela do seu parque construído.
eles pudessem ocupar as encostas do morro da
Providência. localizado nas proximidades do quar- Em relatório escrito por comissão designada pelo
te: zeneral do Exército. Independente dessa confir- Ministério da Justiça para elaborar um projeto de
mação, não há dúvida. entretanto. de que não mais lei de construção de habitações operárias, o enge-
procede a afirmação, hoje generalizada. de que fo- nheiro Everardo Backheuser.P um de seus autores.
ram esses soldados que deram origem J. favela na fornecia números alarmantes:
cidade. Como visto, ela surgiu um pouco antes.
Esta comissão .., verificou que estava muito além de
Esta constatação não invalida. entretanto. a afirma-
toda expectativa o número de casas demolidas ... S6
cão de que foi realmente a partir do morro da
a Saúde Pública ... fez fechar para mais de 600 habi-
I rovidência que o termo favela+ incorporou-se ao tações coletivas que davam alojamento a mais de
c.iotidiano da cidade, conforme será discutido adiante. 13.000 pessoas.ê"
~::'2 há muitos documentos sobre o início do pro-
cesso de favelização da cidade. Sabe-se entretanto A imprensa diária também fornece um quadro dra-
que. de 1898 a 1901, um comissário de higiene mático dessa situação. As ordens de despejo eram
~ertou insistentemente para o crescimento de- bar- geralmente afixadas nos ponões dos prédios a se-
racões no morro de Santo Antônio. não tendo rece- rem demolidos e definiam prazos extremamente
bido. entretanto, qualquer resposta para as suas curtos para a sua total evacuação. Expulsa de suas
inquietações.i" Foi necessário que a imprensa de- residências, a população tinha que resolver rapi-
nunciasse. em 1901, que estava surgindo ai "um damente o problema da moradia. Para alguns. mais
bairro novíssimo, construído sem licença nem au- abonados. a saída para os subúrbios foi a solução."
torização das autoridades municipais e em terrenos Para muitos outros. entretanto, que não podiam
do Estado ... perfazendo um total de 1 SO casebres ... arcar com os gastos de transporte, a permanência
e cerca de 632 habitantes" Y para que a favela no centro. ou em suas proximidades, tornou-se
finalmente atingisse o domínio público.P ainda mais fundamental. Por essa razão, passaram
a se apinhar nas habitações coletivas restantes,
O impacto da denúncia foi imediato. O prefeito
pagando altos aluguéis.
Xavier da Silveira dirigiu-se imediatamente ao lo-
ca! e descobriu a existência. não de 150. mas de A este quadro social. já bastante dramático. soma-
cerca de 400 casinhas que. segundo ele. "eram va-se o impacto das migrações:
verdadeiros chiqueiros. não podendo nelas habitar
pe ssoa alguma" 29 Surpreendeu-se também ao COTIS- ,-\ situação da classe pobre era. pois. das mais precá-
12.:::':- que. embora os primeiros casebres tivessem nas. apesar de haver no Rio atualmente muito traba-
lho bem remunerado. Mas, por isso mesmo. de todos
Sido construidos por militares. eram esses morado-
os lugares circunvizinhos chegavam diariamente cam-
res agora francamente rrunoritários: segundo ouviu
poneses. que trocavam o seu serviço na roça pelas
no local. "essas casinhas. outrora feitas por solda-
ocupações de operário ,.. A. população pobre aumen-
dos. foram por estes vendidas a paisanos". 30
tava sem que aumentasse o número de casas.36
Começavam a ser divulgados. assim. os dramas da
favela na cidade. Ainda que ocupando terrenos que Escritos em plena "era das demolições", os relatos
n2.2 eram seus. já os primeiros habitantes das fave- acima constituem-se em fonte de valor inestimável
las buscavam extrair delas uma renda fundiária/i- para a recuperação da dimensão social ~a reforma
me oiliária. processo esse que só tenderia a se in- urbana carioca do início do século XX. E surpreen-
tensificar com o tempo.' I Complemento dessa his- dente, entretanto. que os documentos da época não
teria de ocupação ilegal de terras. a ação repressora façam qualquer vinculação entre o agravamento do
do poder público também logo se fez sentir de problema habitacional e o crescimento das favelas."
imediato: o prefeito ordenou a imediata destruição Embora o morro da F:1Ve!a seja citado por Backheu-
de todos os casebres.F ser como o exemplo mais agudo do problema habita-
cional. o engenheiro lhe dá, na realidade. pouca
atenção. Isto se deve. com certeza. ao caráter inex-
A era das demolições pressivo que essa forma de habitação ainda assumia
TIa época. De fato. frente à multidão de pessoas que
Com o advento da reforma urbana. o déficit habita- se aglomerava nos caniços. as soluções habitacio-
CIOGal.que já era grande na cidade. aumentou ainda nais encontradas por aqueles que ocupavam o morro
rna.s. Sob a ação conjunta da Prefeitura (que alarga- da Favela só mereciam mesmo a atenção de Bac-
\2. ruas e abria novas avenidas) e do governo federal kheuser .. pela originaiidade e pelo inesperado". 38

37
'Espaço & Debates nQ 37 - '1994

A "caridade da Terra:': 3 expansão j i tomando ímneto na orirneira década do século.


inicial das favelas c. entretanto. a' partir de J 910 que o processo de
tavelização ganha ímpeto. Em 1912. publica-se
A exnansão da favela pelo tecido urbano carioca que .. a encosta do morro do Andaraí está quase
teve início durante a reforma urbana, t:
interessan- toda edificada de ranchos. tugúrios e choupanas
te nOL1T.entretanto. que também os jornais diários de todos os feuíos"." Já outro artigo indicava
não se aperceberam disso. Terrrunada a reforma. que. na recém-aberta Copacabana, havia' 'uma po-
entretanto. os jornais dão-se conta que a nova fi- pulação inteira que se abriga na Vila Rica. em
sionomia do Rio não se resumia apenas às amplas casebres piores que os do morro da Favela e ali
avenidas que surgiram ou aos novos edifícios. em vivem na mais completa imundície" .45 Outros in-
estilo eclético. que agora ernbelezavam a área cen- formes confmnam ainda a existência de inúmeros
tral. Não muito longe desses .. símbolos do pro- barracões no morro do Leme .:~6
gresso". uma quantidade apreciável de barracos,
A favela de São Carlos surge em fins de 1912 ..n
verdadeiras negações da modernização urbana. tam-
Em 1913. o diretor da Saúde Pública denuncia que
bém havia se incorporado à paisagem da cidade.
já existem 219 casebres no morro da Favela e -+50
Surpreendida pela expansão rápida de uma forma no mOITa de Santo Antônio. "vivendo em ambos
urbana inusitada. que se contrapunha a todo o es- uma população de peno de 5.000 almas", Informa.
forço empreendido de aburguesarnento da cidade. ademais. que em sete distritos sanitários urbanos já
a imprensa começa então a se ocupar desse novo são 2.564 os barracões e 13.601 as pessoas que
habitar urbano. e é através dela que se pode recu- neles vivem.:" Em 1915. já há indícios da existên-
perar. ainda que parciaimente. o processo de difu- cia de uma favela no morro dos Cabritos. em Co-
são espacial da favela. pacabana. e confirmação de outra em Botarogo. no
morro do Pasmado ..~9 Logo depois, a favela passa
Já em 1907, esse processo era claramente identifi- a ocupar os morros do Caturnbi.ê" e chega também
cado pelo Correio da Manhã. que afirmava que. J. Ipanerna. à Lagoa e ao Leblon.?' Atinge. inclusi-
para a .. grande leva de banidos" da cidade. ou ve, os subúrbios. 5~ (Ver mapa).
seja.. para aqueles que haviam sido expulsos da
área central pelas obras da reforma, ou que eram No curto espaço de dez anos. surgem, pois. diver-
agora expelidos dali pelo grande aumento do valor sas favelas na paisagem carioca. Em comum. elas
dos aluguéis. só restavam mesrno ras montanhas apresentam não apenas a localização nas encostas
agasalhadoras .. (isto é) .. quase todos os morros dos morros da cidade. mas também a proximidade
que rormarn a cinta da cidade" .]0 E dizia mais: de importantes fontes de emprego. tanto no centro
como nos bairros residenciais. A partir da década
O êxodo não cessa. Diariamente passara carrocinhas
de 1920, a expansão das favelas tomar-se-ia multi-
carregando trastes desconjuntados. latas. vasilhas de
direcional e incontrolável.
barro. gaiolas. baús arcaicos. e vão pelas estradas dos
subúrbios. param nas fraldas das morna..nnas. Os bos-
ques alpestres e os das planícies abrerr; ..se acolhedo-
res e entre as árvores aboletam-se os expulsos. sen- Da favela às favelas
tam-se nas pedras. nas grossas raizes. cenduram os
fardos aos ramos e. enquanto os homens. à pressa. Barracões siruados em morros não eram incomuns
\'30 levantando os ranchos. as mulhere s instalam 3 no Rio de Janeiro do século XIX. A sua presença
cozinha ao tempo ... A montanha povoa-se. É 3 cari- é assinalada. por exemplo. em relatórios escritos
dade da Terra ... assim vai a pobreza recuando para as em 1865 e em 1881. 5~ Tratava-se, entretanto. de
errunências. abrigando-se nos cerros. reoeuda pela Gran-
uma exceção à regra da habitação popular. que
deu. pelo fausto arrasador das casas aumildes. pelo
era o caniço. Ademais. nunca formavam esses
Progresso que não consente na permanência de um
barracões qualquer aglomeração de vulto.
pardieiro no coração da cidade. A montanha abre o
seu manto verde e acolhe os pobrezinnos como os Ao concentrarem-se nos morros de Santo Antônio
santos no tempo suave dos eremitas ..\{'
e da Providência na virada do século, entretanto.
os barracos que ai surgiram passaram a consuruir
Não foi possivel identificar a data exata em que os uma exceção de peso. Somente a chancela da au-
diversos morros do Rio passaram 2. se favelizar. torização militar e o caráter provisório atribuído a
Notícias esparsas. entretanto. muitas vezes vindas esses alojamentos parecem explicar a ausência de
da crônica policial. permitem que recuperemos. ain- uma condenação imediata da Saúde Pública. de
da que imperfeitamente. esse processo. Em 1907. resto tão empenhada na demolição das habitações
já há indicações precisas da presenca de diversos insalubres. A retomada da ação punitiva. eviden-
barracões no morro da Babilónia, r.; zona sul da ciada pela remoção da favela do morro de Santo
cidade."! Em 1909. tem-se como certa a existência Antônio antes mesmo da reforma urbana. indica-
da favela do Salgueiro.F Em 1910. por sua vez. va. entretanto, que o controle do espaço urbano
surge a favela da Mangueira. no morro do Telégrafo." voltaria ao comando do Estado.

38
Reconstruindo urna história esauecida: origem e exoansão inicial das iavelas do Rio de Janeiro

~ um Tato. entretanto. que isto não aconteceu. Tendo "-;lITUaanterior. e J. associação do termc "favela"
sido poupado da remoção {orçada que atingira o às imagens de .. perigo": de .. crime" e de "des-
morro de Santo Antônio. talvez por sua localização controle" generalizou-se pela imprensa.
mais afastada do centro nervoso da cidade. o mOITO
da Providência não só permaneceu como exemplo Na difusão dessa imagem leve também papel funda-
notável de um contra-movimento que se instalava mental a Revolta da Vacina. uma violenta manifes-
na cidade. e que desafiava 3. ordem que lhe era tação popular ocorrida em novembro de 1904. e que
imposta pelas classes dirigentes. como assumiu um foi causada por um acúmulo de insatisfações popu-
papel de destaque na crônica policial carioca, lares (reação contra o projeto de vacinação obriga-
tória. contra as demolições que aumentavam a crise
~ que logo começaram a ocorrer aí urna série de habitacional etc.). habilmente manipuladas por gru-
crimes. em nada diferentes daqueles que aconte- pos políticos interessados na destituição do governo. 50
~iill1 nos densos bairros populares da cidade. mas Como roi no sopé do morro da Providência que os
que se distinguiam dos demais por duas razões: distúrbios mais sérios aconteceram. muitos dos que
crimeiro. pela localização exótica do aglomerado deles participaram acabaram se refugiando no mor-
= pela inexistência. ai. do aparato de repressão ro. ou moravam mesmo aí. contribuindo assim para
preventivo que percorria as demais áreas: segun- aumentar a sua má fama perante a imprensa.
-::0. porque em função das características do local
.acesso difícil, possibilidade de emboscada). a ida À exceção desses acontecimentos. entretanto. o pe-
ca polícia ao morro geralmente se revestia de um ríodo da reforma urbana tirou o mOITO da Favela
~J..ráter verdadeiramente militar. temporariamente cio noticiário. Com tantas modifi-
cações afetando a forma da cidade. havia muitas
:::n 1902. o morro da Providência já é visto pela outras coisas a informar. No que diz respeito à
:..rnprensa como . 'uma vergonha para uma capital questão da habitação popular. a imprensa tratava
:ivilizada". 5~ como "o peri goso sítio. que a voz agora de chamar a atenção para o agravamento do
:'Opular denominou mOITO da Favela". 55 Não há problema da moradia e para a necessidade urgente
.orno saber se foi mesmo a "voz popular" ou. o de o governo adotar uma política de construção de
oue é mais provável. a "YOZ burguesa". que aca- casas operárias.
oou dando a esse morro a imagem de "perigoso
.uio" ...\ verdade. entretanto. é que a alcunha "rnor- Esta política nunca surgiu. Conseqüentemente. 3-
~o da Favela" rapidamente tomou o lugar da topo- solução habitacional iniciada nos mOITOSde Santo

I
::>RIMEIRAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO
0rRIC;::O ;::E PUBLlCACi,O DAS INFOR",ACCES /<IAI5 A~IGAS)

• '891 -1900 ~a..r


~
~ 'SCI-1910
• 1911 -.9Z0
<) 192 ·,930
pspaçc & Debates nQ 37 - 1994

.-'-.ntônio e da Providência. como já visto. espalhou- uma suave viracão que sopra continuamente dulci- ~
se pela cidade. Ela não foi acompanhada. entretan- ficando a rudeza cia habitação" .c4 I
to. nessa fase inicial, pela difusão do nome genéri-
Lugar de criminosos. mas também lugar de traba-
co de favela, Durante toda a década de 1910, a
lhadores: lugar onde se mora mal, mas onde se
imprensa utiliza essa palavra sempre com F maiús-
mora barato: lugar insalubre. mas que é mais sau-
culo. indicando tratar-se de nome próprio, de um
dável do que as opções que se oferecem aos pobres
lugar específico da cidade. Isto não impede que as
na cidade legal: a favela vai assumindo assim as
descricões do morro da Favela sejam sempre car-
suas imagens contraditórias. e vai permanecendo
regadas de significados negativos e de alusões pe-
também na paisagem carioca.
jorativas. tais como' 'o fantástico morro da Favela" ,57
"a terrível Favela" ,58 a "já tristemente famosa A manifestação dessa dualidade de imagens na im-
Favela" .59 o "célebre morro da Favela".60 prensa é constante. Em artigo de 1909, a Careta
revela o "Rio desconhecido" e informa que as
Embora ainda não chamadas de favelas, era inevi- casas existentes na Favela, "laboriosamente cons-
tável. entretanto. que as aglomerações de barracos truídas sobre rocha ... abrigam numerosas famílias,
que surgiam em OUITOS morros da cidade logo pas- operários, lavadeiras e até facínoras". Conclui. en-
sassem a ser comparadas ao "modelo original", de tretanto, que "apesar de possuir elementos hones- .
F maiúsculo Ao comentar o surgimento de barra- tos. a Favela é um antro de facínoras e deve ser
cos no Andaraí. por exemplo, o Correio da Manhã arrasado para decência e higiene da Capital Federal."6.5
reclamava oue . 'esse bairro, outrora tão pacato, vai
se traDsfo~ando em morro da Favela" .61 Outra No mesmo ano, o Correio da Manhã descreve o
reportagem. sobre crimes que vinham ocorrendo morro da Favela como "o lugar onde reside a
no morro da ~1angueira. permitia ao repórter con- maior pane dos valemes da nossa terra ... o escon-
cluir que' 'já não temos dúvidas em afirmar que se derijo da gente disposta a matar por qualquer mo-
trata mesmo de uma Favela" .62 tivo, ou até mesmo sem motivo algum ... "66 Dois
anos depois. entretanto, quando seus habitantes so-
A partir da década de 1920, e em função da sua friam ameaça de remoção por ordem da Saúde
enorme difusão pelo espaço urbano, o termo favela Pública, o mesmo jornal assim se posicionava:
se zeneralizou E adotando uma nova forma, subs-
Tanto na Favela como no morro de Santo Antônio
tantivada e com f minúsculo. passou a designar
moram centenas de trabalhadores. gente honesta. dig-
todas as aglomerações de habitações toscas que
na de consideração dos poderes públicos, e que só se
surgiam na cidade. geralmente nos morros. e que
foi meter nos tão malsinados casebres porque não
eram construirias em terrenos de terceiros e sem encontrou outras habitações ... Cuidado. Calma, Pru-
aprovação do poder público.v' dência são de bom conselho nessas conjunturas aper-
tadas. em que o pobre tem o direito de exigir que se
lhe respeite a própria miséria. causada principalmente
As imagens da favela pela incúria dos poderosos.P"

Como visto. :: imagem de ,. terra sem lei", atri- Essa duplicidade de imagens é compreensível. Con-
buída ao morro da Favela no inicio do século. forme indicou N. Sevcenko, a linha que separava o
100e0 acabou enzlobando
_ também as outras favelas legal do ilegal era extremamente tênue nesse perío-
que se formavam. Numa sociedade recém-saída do. Por um lado. a lei mandava considerar vaga-
da escravidão. era inevitável, entretanto, que as bundo todo indivíduo que não tivesse domicílio
favelas. e SU2 maioria de população negra, fossem certo, sem considerar se ele tinha ou não a proba-
também iden:..:rlcadas como símbolos de "atraso". bilidade de arranjar qualquer domicílio. Por outro,
Referências ::. .. persistência da África no meio da quem não trabalhasse deveria ser considerado va-
civilização" e 3 "ralé de cor preta" são constan- gabundo, mas o alto índice de desemprego estrutu-
tes nessa época. Principal responsável pela difu- ral existente na cidade reduzia grande parte da po-
são dessa imagem negativa. a imprensa da época pulação à condição de ., vadios compulsórios", o
. \fi'

apresenta também, contraditoriamente, uma série que os obrigava, para sobreviver. a revezarem-se
de evidências que mostram que a favela - ao con- permanentemente entre o subemprego, os expedien-
trário do que se queria difundir - também tinha tes eventuais e incertos. a mendicância, e até mes-
faces bastan:e positivas. mo a crirninalidade.f"
Backheuser. cor exemplo, embora assombrado com Ora. era nas favelas que todos esses processos se
a precariedade das habitações encontradas no mo r- faziam sentir com mais imensidade. Aí estavam o
:0 cL1Favela. .::i informava. em 1905. que' .ali não trabalhador honesto (ainda aue subernpregado), o
moram apenas os desordeiros e os facínoras ... biscateiro. o mendigo. o vagabundo. Todos, entre-
moram também operários laboriosos. que a falta ou tanto. moravam em habitações que não eram con-
a carestia dos cômodos atiram para esses lugares sideradas pela lei como permanentes, não fazendo
altos onde ~:: goza de uma barateza relativa e de jus, portanto. ao starus de terem "domicílio cer-
Beconstrulndo urna história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

to". Por essa razão. e em funcão de a.e gados inte- :: derrotas. que revelam que as tensões criadas pela
resses da segurança pública. eram os habitantes das .ua presença eram munas.
favelas periodicamente imporrunados pela polícia.
que não raro alegava razões de vadiagem para le- Bom exemplo disso é. sem dúvida. a história da
vá-los presos. mesmo que não houvesse prova disso. favela do morro de Santo Antônio. Primeira favela
da cidade. ela foi removida ainda em 1901. mas
retomou o seu antigo 1u gar durante a reforma urbana. T3
A "dança" das favelas Em 1910. muitos barracos foram novamente remo-
vidos, consentindo entretanto o governo que seus
No relatório que escreveu no auge da . 'era das de- moradores construíssem outros no morro do Telé-
molições", Backheuser afirmava que 2. política de grafo, afastado da área central.I" Pouco tempo de-
habitação popular a ser adotada pelo governo deve- pois. já estavam novamente os barracos de volta
ria dar resposta imediata a três questões: a salubrida- àquela colina, para serem novamente ameaçados de
de, a barateza e a proximidade do trabalho. Em não despejo em abril de 1916.75 Tendo os moradores
fazendo isso. não haveria outra saída senão' 'jugular consezuido, em maio. um adiamento da execucão da
uma rebelião francamente popular. causada pela ca- ordem judicial. 76 foram todos eles surpreendidos no
rência e carestia das casas". Ao encerrar o relatório. mês seguinte por violento incêndio. certamente de
o autor afirmava que já havia percebido. inclusive. natureza criminosa. que destruiu grande parte dos
"os primeiros rugidos da tempestade próxima" .69 casebres ali existentes." Qual fênix renasci da. en-
tretanto. já ocupava a favela novamente o seu antigo
Escrito logo após a Revolta da Vacina, esse relató-
lugar em 1919. para horror da imprensa burguesa. 78
rio apenas alertava para uma prováve: e ampliada
repetição da crise de 190-+. que havia sido estanca-
Alegados interesses de segurança militar exigiram.
da por meio de brutal repressão policial.
por seu lado, em 1917, a remoção (ao que parece.
Apesar dessas advertências. as três questões cita- parcial) da favela existente no morro da Babilônia.??
das no relatório foram ignoradas: o govemo não Já a programação de passeios planejada para a visita
adotou qualquer política de construção de casas do rei da Bélgica, em 1920, determinou a erradica-
populares. alegando ver nisso uma .. perigosa in- cão de uma favela que vinha se formando na encosta
vestida do socialismo" e a iniciativa privada ja- do morro Dois Irmãos. no Leblon.ê? Várias famílias
mais demonstrou interesse em participar desse mer- que habitavam o morro do Telégrafo foram. por sua
cado. ainda que alguns incentivos tenham sido apro- vez. violentamente expulsas daí em 1926. em cum-
vados para atraí-Ia."? E embora a população cario- primento de ordem judicial de reintegração de posse. 81
ca tenha crescido rapidamente no inicio do século.
atingindo 811,443 habitantes em 1906 e 1.157.873 Cada revés. entretanto , resultava numa reação ne-
em 1920. as previsões sombrias de pndes revol- cessária. Expulsos de um local. os favelados logo
tas sociais também não se confirmaram. dirigiam-se a outro lugar e. ali. davam início a
uma nova favela. Essa "migração" ou "dança"
Para explicar esse aparente paradoxo. algumas ra-
das favelas é claramente apontada por Manos Pi-
zões têm sido ultimamente encaminhadas e apontam
menta que. a partir de 1926. escreveu uma série
para a permanência da favela no cenário urbano
de artigos sobre as favelas do Rio. Liderando uma
como um fator de estabilidade importan:e. Segundo
campanha iniciada pelo Rotary Club. Manos Pi-
essas mterpreiações. após a reforma urbana. e atin-
menta visava. com seus artigos. sensibilizar as au-
gida a meta de controle das epidemias. o governo
toridades federais para a necessidade de construir
transferiu à força de trabalho grande pane dos cus-
habitações proletarias.P Segundo ele. destruir bar-
tos da sua reprodução. mas foi obrigado a aceitar.
racões não resolveria nada: o problema seria ape-
ainda que jamais tenha admitido isso explicitamen-
nas transferido de Iugar.P
te, a permanência da favela na cidade. Garantia-se
assim o mínimo de estabilidade social necessário ao
A verdade é que a situação havia se tornado in-
processo de acumulação. -, Ademais. tudo indica
controlável. Segundo Mattos Pimenta. já habita-
que a permanência das favelas não esbarrava nos
vam as favelas. em meados da década de 1920.
interesses do capital. Este. ao contrário. delas podia
mais de 100.000 pessoas.ê" O crescimento econô-
se beneficiar. já que representavam ur-a importante
mico da cidade, por seu lado. continuava a atrair
reserva de mão-de-obra para a indústria. para as
migrantes. e esses davam origem a novas favelas.
atividades de construção civil e para 2. prestação de
serviços. inclusive domésticos." sempre situadas nas proximidades das fontes de
emprego. A inevitável invasão de terrenos de ter-
Embora coerentes teoricamente. essas Interpreta- ceiros dava ensejo. por sua vez. a inúmeros pro-
ções náo devem levar a crer que a oermanéncia e cessos de despejo, alimentando a . 'dança das fa-
expansão da favela constituiu-se em orocesso tran- velas pelo espaço urbano. lniciada a década de
qüilo. Ao contrário. a afirmação da ['avela na pai- 1930. a situação em nada havia se modificado.
sagem carioca foi pontilhada por inúmeras vitórias Conforme registrou a imprensa:

41
~spaço & Debates nQ 37 - l' 994

i) tempo e o intenso desenvoi virnenro da cidade de- Um marco imoortante dessa mudanca no tratamen-
rnonstrararn que mesmo os morros. LleOOlS de benefi- to da favela é uma reportagem publicada em 1923.
ciados. eram um excelente negócio cara a venda de um ano depois da realização da Semana de Arte
terrenos em lotes. E. tangidas pela inumaçâo de mu- Moderna em São Paulo e que descreve. de forma
dança. centenas e centenas de criaturas. cujo único totalmente nova. uma das favelas da cidade:
mal é serem pobres na cidade mais iinda do mundo.
do sendo periodicamente privadas do teto misérrimo Os subúrbios tiveram em Lima Barreto o intérprete
que ~ força do hábito já as levara a considerar como fiel de sua monótona existência. Os nossos morros.
seu ... L'ns se dispersam: outros \::0 ÍOITn:lr novos porém. ainda não encontraram quem Ihes sentisse a
núcleos em terras de outros donos - casos futuros de rude e brutal poesia. em cuja beleza selvagem se
ruído e de escándalo.P misturam os refrões nostálzicos dos 'sambas' e o
drama sangrento dos 'bam-b~-bans' .87

Os exemplos acima são significauvos. Eles indi-


cam que. mais do que um processo que se explica E quem eram os personagens que davam conteúdo
apenas pelos interesses do Estado ou do capital. a a essa rude e brutal poesia dos morros? Descreven-
permanência e difusão da favela no cenário carioca do os "tipos" que podiam ser encontrados na fa-
deve ser entendida também como a materializaçâo vela e que eram agora devidamente apresentados
de uma verdadeira luta que os grupos mais pobres aos leitores a partir da pena do pintor modernista
do Rio de Janeiro travaram no Inicio do século Di Cavalcanti. prosseguia então o repórter:
pelo direito à cidade. uma luta que. na realidade. O 'bamba' ' .. é uma reprodução mais original. mais
mantem-se até hoje. perfeita e mais interessante do famoso 'taita' ar genti-
no. ... É um misto do valentão e do malandro. É
negaceador. é sestroso e herdou. ao mesmo tempo.
todas as belas qualidades do capoeira. corajoso e des-
As novas faces da favela
temido. e todos os graves defeitos do 'tungador', tra-
pacista e ladrão ....
.-\ década de 1920 pode ser considerada como a
década da afirmação definitiva das favelas na pai- A dançadeira de 'sambas' .... ;J. Salomé crioula ... tem o
sagem carioca. Apesar da instabilidade que ainda seu encanto perfumado e sua graça incbriante e seduto-
rondava essas aglomerações. constantemente sujei- ra. Os seus olhos são quebrados ... os seus seios são
tas a despejos coletivos. o fato e que. estimuladas bamboleantes: o seu colo é morno: a sua boca é lasciva.
pelo crescimento demográfico da cidade e pela au- Ela simboliza a perdição daquele mundo infecto, onde
sência de uma política habitacional oficial. as fave- os homens se esfaqueiam com a calma e a simplicidade
Ias não só se multiplicaram como adensaram-se. E com que nós. do lado de cá. nos abraçarnos.P
ao fazerem isso. tornaram cada vez mais difícil a
sua erradicação. Lugar de homens valentes. de mulheres sensuais e
da melodia inebriante dos violões. a favela. ainda
.-\gindo igualmente nessa direção. as mudanças cul-
que sem perder a característica de "mundo infec-
turais que sacudiram o pais nessa década. eviden- to" e de "local de assassinos", passa agora a ser
ciadas pela eclosão do movimento modernista. tam-
exaltada por poetas. a ser retratada por pintores.
bém contribuíram para a permanência da favela.
Seus personagens. que só atingiam o domínio pú-
.-\0 promover a experimentação artística e ao pre- blico a partir da crônica policial. invadem agora o
gar a busca de novas possibilidades culturais, o repertório dos sambas que exaltam a "cabrocha".
modernismo não apenas defendia a adoção de uma a "casinha pequenina'", o "malandro", sambas
estética nova. que afrontava os padrões culturais esses que se popularizam rapidamente. atingindo
vigentes, como enfatizava a necessidade de liberta- todas as camadas sociais.
ção da dominação cultural estrangeira.' Resultado Tendo assumido essa nova imagem. a favela inse-
desse movimento. as "ternaticas nativas". as "es- re-se então de forma diferente no imaginário cario-
téticas brasileiras" passaram a ser valorizadas e é ca. Deixa de ser apenas sinônimo de desordem e
nesse contexto que a imagem da favela passa então de crime e passa a assumir também o papel de
por um processo de transformação. Onde antes só .. criadora de sonhos". imagem essa que se crista-
havia feiura e pobreza. passa-se agora a ver tam-
lizará definitivamente em meados da década de
bém beleza e lirismo:' Onde antes só habitavam 1930 através da música 'Chão de estrelas'. de Ores-
marginais e proletários. descobre-se agora que tam- tes Barbosa. que retrata. de forma idílica, o cotidia-
bém havia poetas e musas. E descobre-se também no da favela."
que essas categorias não eram mutuamente exclu-
.ivas ' De antítese do moderno. a favela. enquanto eleição da favela como "coisa nossa" logo atrai
,.l,.

imagem global. passa então a ser uma das suas também a atenção de personalidades estrangeiras
expressões. confirmando a afirmação de Durnont que visitam a cidade. Foi o que aconteceu. por
de que uma das capacidades da modernidade é a de exemplo. em 1916. Em visita ao Rio, o escritor
integrar o seu contrário.ê" fascista Filippo Marinerti - o "papa do futurismo"

42
Reconstruindo urria história esauecida: origem e exoansão inicial das favelas do Rio de Janeiro

segundo a imprensa - acolheu conselhos de intelec- Não. Aos intelectuais extravagantes que fazem a apo-
;UaJScariocas e resolveu fazer urna . '''lsna noturna .ogia 03. malandragem e JJ SUJIdade. que exaltam o
ao morro da Favela. para buscar aí" emoções rortes .. capadócio e 3. sordideza. que celebram as senzalas e
as fedentinas. e proclamam que isto é brasileiro. que
O relato dessa excursão é de grande importância isto é carioca. oporemos nós 3 voz do bom senso.
histórica. E isto se deve não tanto pela visita em si. as regras incorrupuveis 03. verdadeira Arte. os pre-
mas pela descrição detalhada que o repórter faz da ceitos legúirnos da verdadeira Ciência. salvando do
nova relação que se estabelecera entre a polícia e os desmantelo futurista esta obra prima da Natureza que
habitantes da Favela. uma relação que era agora é o Rio de Janeiro.'?
intermediada por dois chefões locais. que haviam
dividido o morro em áreas de influência distintas. o final da década de 1920 mantem aceso um gran-
Vivendo do aluguel de barracos e dos ganhos obti- de debate sobre a favela. Se a glorificação do sam-
dos na exploração de botequins. esses indivíduos ba e de seus personagens. que então tomava ímpe-
chegaram mesmo a enviar representantes à Delega- to. contribuiu para dar às favelas um status poético
cia Policial mais próxima. para ali receberem Mari- que se tornaria definitivo logo depois, os debates
netti e sua enrourage e guiá-Ias, por volta da meia- urbanísticos sobre a inconveniência de sua presen-
noite. pelos caminhos íngremes da Favela. Sobre ça também mantiveram-se fortes. Por um lado, Mat-
essa nova relação de poder informava então o jornalista: tos Pimenta dá continuidade à sua campanha de
A policia não poderia permanecer em pelotões no erradicação das favelas. mas não consegue conven-
morro. Veio uma perfeita situação de entemc-cordisle cer o governo a adotar uma política habitacional.
com os mais prestigiosos dungas. As autoridades da Alfred Agache. por outro lado. que agora coorde-
zona tacuamente delegavam poderes a esses obedeci- nava a elaboração do Plano da Cidade. tenta impor
dos homens fones. que passaram oficiosamente :l agir no espaço urbano todos os ideais estéticos e fun-
como representantes do comissário. Só assim se re- cionais pelos quais batalhava Manos Pimenta. mas
solveu o problema da pacificação lenta da Favela. reconhece que, sem a construção de novos "bair-
Dentro em pouco. com tais 'olhos' de autoridade. ros operários" nos subúrbios, não será possível
foram as providências preventivas sendo adoradas. Os extirpar as favelas da cidade.
botequins. as bodegas foram sendo fechados cedo. As
pendengas foram sendo resolvidas com o prestigio A Revolução de 1930 acabará por redefinir O pa-
dos chefes amigos das autoridades. Hoje :1 Favela. já pel da favela no cenário da cidade. Tendo no ur-
às 8 horas. quase toda dorme ...
bano um de seus maiores focos de sustentação, o
novo regime. embora não justificando a sua pre-
Essa nO\3 face da Favela. de espaço tornado terri- sença na cidade. vai deixar a favela relativamente
tório, era também exaltada por um dos guias da em paz. Em algumas instâncias, vai até mesmo
excursão: socorrer os seus habitantes. defendendo-os contra
a ação dos proprietários de terras. contribuindo
Se os senhores pensam que vêm buscar aqUI sensa-
assim para forjar :1 imagem de Getúlio Vargas
ções nO\35 para cescnçóes de faros. onde aparecem
como o .. pai dos pobres". Essa situação perma-
os nossos homens como elementos perigosos. terrí-
veis facínoras escorraçados pela oolícia. e aqui abri- necerá relativamente estável até a década de 1960.
gados a sombra da nossa proteção. iludem-se. Vê-se quando o jogo de forças será então mudado. For-
aqui a pobreza da cidade. a rruséria mesmo. mas de talecidos agora pela mudança do regime político.
gente que trabalha ... Aqui há discipuna, há ordem .. 9! decorrente do golpe militar de 1964, os interesses
imobiliários da cidade acabarão por impor uma
mudança radical 'no comportamento do governo.
:-;ão se pense. entretanto. que essas novas imagens
que patrocinará então uma campanha maciça de
da Favela, retratadas por artistas e chefões locais.
erradicação de diversas favelas da cidade. notada-
haviam feito desaparecer o preconceito generaliza-
mente daquelas que se localizavam em suas zonas
do contra elas. lnconformado com o que julgava
mais privilegiadas.
ser uma total inversão de valores. assim se indig-
nava Manos Pimenta:
Senhores. deplorável e incompreensível. nefasto e pe-
rigoso. é o vezo que adquiriram alguns de nossos
Para concluir
intelectuais. de glorificarem as favelas. descobrindo
A favela está fazendo cem anos. Seu aparecimento
poesia e beleza. por uma inorninavel perversão do
gosto. nestes aglomerados triplamente abjetos como
na cidade. ocorrido em 189311894. está intima-
antiestéucos. anti-sociais e anti-hisiénicos. Ridícula e mente ligado à cnse habitacional que afetava o Rio
revoltante e 3 tendência que se vai acenruando entre de Janeiro àquela época. Sua expansão pelo tecido
nós. 30 bafejo de certos espíritos boérruos. de aceitar urbano carioca. entretanto. só começou na década
as favelas como uma característica nossa. uma insti- seguinte. e pode ser expiicada pela não resolução
ruição feliz e interessante. digna de ser legaria aos das contradições engendradas pela reforma urbana
ilOSSOSpósteros como tradição nacional. que transformou a cidade no início do século XX.

43
fi:..,paço & Debates n 37 - 1994
Q

Com efeito. a rápida expansão horizontal e o incre- Conjunturas recentes. entretanto, têm alterado bas-
mento CÍ3.S atividades econômicas do Rio de Janeiro. tante essa situação. Se os ganhos políticos dos mo-
que a reforma urbana facilitou. resultaram não ape- radores das favelas têm sido os maiores de todos
nas num aumento substancial da oferta de emprego os tempos (adoção de programas de melhoramen-
urbano. como também na sua de scenrralização. Em tos pelo Estado: conquista do direito de proprieda-
decorrência disso. intensificaram-se os fluxos mi- de em muitas favelas etc), por outro lado a longa
gratórios para a cidade. o que não foi contrabalança- recessão que atinge o país desde o início da década
do. entretanto. pela adoção de qualquer política de de 1980 tem resultado numa nova onda de faveli-
construção de casas operárias. Agravou-se, portan- zação do Rio, que reproduz. no final do século XX,
to, o déficit habitacional da cidade. já bastante com- muitas das situações aqui estudadas. A transforma-
prometido pela política de destruição das antigas ção de muitas das favelas da cidade em verdadeiro
habitações coletivas. Este problema foi realçado ain- feudos do crime organizado e do tráfico de drogas,
da mais pela adoção de uma rígida legislação edilí- por sua vez, tem despertado reações as mais diver-
cia que. aplicando-se a toda a cidade e exigindo a sas, revelando que a inserção da favela no cenário
utilização de materiais de construção de alta quali- urbano ainda continua a ser um processo complexo
dade. inviabilizcu a ocupação dos subúrbios pela e controvertido. detonador de opiniões divergentes
população mais pobre. Some-se a este quadro. final- e. muitas vezes. irreconciliáveis.
mente. a não adoção de qualquer política de trans-
porte destinada a facilitar o deslocamento fácil e Como sempre foi!
rápido da força de trabalho para os novos locais de
emprego e estará completo o conjunto de situações Maurício de Almeida Abreu é professor adjunto do
que tornou irreversívei o processo de permanência e Departamento de Geografia da UFRJ.
expansão da favela no cenário carioca.
Nobs
Como bem disseram outros autores que estudaram
o assunto. só a partir dos anos 19.+0 é que a favela I. PDF (Prefeitura do Distrito Federal). Cidsde do Rio
"começa a chamar a atenção". Há que se explici- de Janeiro. Remodelação. extensão, embclezsmento.
tar bem. entretanto. o que quer dizer esta frase. Paris. Foyer Brésilien. 1930.
Pelo que pôde ser reconstruído da história da fave- 2. Graciela Schneier e Ana Maria Montenezro (orzani-
la neste trabalho. é possível afirmar que não foi a zadoras ). "Rio de Janeiro. La beauté du diable".
partir dessa data que a favela se tornou visível ou Autremenc Revise. Série Monde! HS n° 42.janvier 1990.
incornodativa para o governo. Isto aconteceu muito 3. Ver. por exemplo. Janice Perlman. O miro da merei-
antes. E a partir de 19-+0. entretanto, que os pode- nelidsde. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 19"77: Anthony
res públicos parecem reconhecer que a favela che- Leeds e Elizabeth Leeds, A socioloeie do Brasil ur-
bano. Rio de Janeiro. Zahar. 1978: Carlos Nelson F.
gou para ficar. ou seja. que uma nova geopolítica
dos Santos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro,
urbana havia se instaurado de Facto na cidade. Não Rio de Janeiro. Zahar. 1981.
é de surpreender. portanto, que sei a partir de então
.f. I Planrio. Cadsstro de favelas. 1991.
é que a favela tenha sido "oficializada", passando
a fazer pane dos planos e preocupações oficiais. 5. Sagmacs (Sociedade de Análises Gráficas e Mecano-
gráficas Aplicadas aos Complexos Sociais l. .. Aspec-
tos humanos da favela carioca". Suplemento especial
É também a partir desse momento que tem início do Estado de São Paulo. 13 e 15 de abril de 1960:
um processo que se prolonga até hoje. e que vin- Lucien Parisse. Favelas do Rio de Janeiro - evolução,
cula o poder de barganha dos moradores de favelas sentido. Rio de Janeiro. CENPHA. 1969.
ao grau de liberdade política existente no país. 6. A exceção à regra é dada pelo Plano Agache. que
Com efeito, a história recente das favelas demons- propõe entretanto a sua erradicação. Ver PDR. op. cito
tra que. nos últimos cinqüenta anos, estabeleceu-se 7. H. Dias da Cruz. Os morros cariocas no novo regime.
uma nítida correlação entre a vigência do regime Rio d~ Janeiro. s/ed., 1941.
democrático e a aceitação da permanência da fave- 8. Lucien Parisse, op. cit., p. 68.
la nas áreas .alorizadas da cidade. Em tempos de
9. Ver Lucien Parisse, op. cit.. capítulo 2.
"fechamento político". como ocorreu, por exem-
plo, em alguns momentos da ditadura de Getúlio 10. Idem. p. 88.
Vargas 11937-1945) e no período de vigência dos 11. Idem. p. 9'. Note-se que 3.S primeiras estatísticas
I
governos militares (196-+-1985). o combate às fa- oficiais da favela não coincidem. Outro censo reali-
zado nas favelas. em 1948. assim como o Recensea-
velas mostrou-se bastante forte. resultando. daí. a
mento Geral de 1950. ao definirem favela de maneira
erradicação forçada de muitas deias. Ü advento das
diversa. chegarão a resultados diferentes. inferiores
fases de liberdade política (19'+6-1964 e 1985 até àcueles que são aqui apresentados. Cf. Lucien Paris-
hoje) deram ensejo. entretanto. às lutas peia perma- se. op. cii.. pp. 97-112.
nência e melhoria dessas áreas da cidade. e valori- 12. O pré-teste incluiu a leitura do Correio da .\1anhã do
zaram a principal arma com que contam os favela- Iomei do Brasil. de O País, do Jornal do Comércio e
dos para melhorar a sua sorte: o voto. da Gazeta de Notícias.

44
~
I r. Reconstrumdc uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro
~
j
j
r
J
'3. Ver Nicolau Sevcenko. Lueretum como rrussão. Ten-
t ões sociais e crisciio cuiturei JJ3 Prirneir: l<-eoubiic:J..
32. 0.1. 2211 lI! 901.
.. Backneuser. rccern-iormaoo. pertencia então JO qua-
São Paulo. Brasiliense. 1985. capitulo 1. dro tecruco da Prefeitura. Mais tarde. acabaria se
l-i. A diferença entre cortiço e estalagem é suui. A esta- interessando por questões de geologia. de geografia
lagem era um imóvel que tinha. nos fundos do terre- humana e de geopolítica, produzindo uma extensa
no. uma sucessão de quanos ou casinhas de porta e obra. nem sempre tão bem acolhida quanto dá a en-
Janela. As instalações sanitárias. quando existiam. eram tender um seu biógrafo recente. Ver Sydney Santos.
poucas e coletivas. Quando as condições gerais de .-\ cultum opulenta de Everurdo Backheuser. Rio de
moradia da estalagem deterioravam. chamavam-na de Janeiro. Ed. Carioca de Engenharia. 1989.
cortiço. que era.. pois. uma estalagem de qualidade ,)..f. Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI).
inferior. Ver Lilian Vaz, Contribuição 30 escudo dE Relatório apresentado ao Presidente da República dos
produção e rransfonnação do espaço ds habitação Estados Unidos do Brasil pelo dr. 1. 1. Scebts. Minis-
popular: as habitações coletivas no Rio anrigo. Rio de tro de Estudo da Jusriça e Negócios Interiores. em
Janeiro. UFRJ. Dissertação de rnestrado. capo 4. março de 1906. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional,
15. Ver Mauricio A. Abreu. "Da habitação ao habitar: a 1906. volume Ill. p. 308.
questão da habitação popular no Rio de Janeiro e sua ,)5. Ver Mauricio A. Abreu, "A periferia de ontem: o
evolução". Reviste do Rio de Iiuieiro. 2.1986. pp. 47-58. processo de construção do espaço suburbano no Rio
16. Luiz Cesar Q. Ribeiro .. 'Formação do capital imobiliá- de Janeiro. 1870-1930". Espaço & Debates. Ano 7.
rio e a produção do espaço construido no Rio de Janeiro- n° 21. 1987. p. 12-38.
1870/1930". Espaço &: Debtues. 5 (15). 1985. pp. 5-32. 36. \UNI. op. cit.. p. 300.
17. Relatório dos trabalhos da Inspetoria Geral de Higie- 37. Um artigo. provavelmente de autoria de Ferreira da
ne. 1892. Apud Jaime Benchimol. Pereira Passos. um Rosa. dá. entretanto. algumas pistas iniciais sobre a
Haussmann tropicel. Rio de Janeiro. Secretaria Muni- vinculacão da favela do Morro de Santo Antônio com
cipal de Cultura.. 1990. p. 181. as demolições então sendo realizadas na cidade. Ver
18. Ver Lilian F. Vaz. "Notas sobre o Cabeça de F,,- O Commencario. Série 3. n° 8. dezembro de 1905.
co ": Revista do Rio de Janeiro. 2. 1986. pp. 29-35 38. Idem. p. 304.
19. Sobre a reforma urbana.. ver Jaime Benchimol. op. cit.: 39. CM. 216/1907.
Mauricio A. Abreu. Evolução urbiuui do Rio de Janei-
-iDoIdem.
ro. Rio de Janeiro. I Planrio I Jorge Zahar Editor. 1987.
..fI. CM. 216/1907.
20. Canudos foi um movimento de caráter religioso. ocor-
rido no interior do Estado da Bahia na última década "+2. CM. 30/3/1909. Tudo indica que essa favela já vinha
do século XIX e liderado por um penitente fanático. se formando há algum tempo. Ver Lilian Vazo "Con-
Considerado pelo recém-implantado governo republi- tribuição ..... , op. cic.
cano. infundadamente. como um movimento de res- -i3. AGCRJ. Códice 25-3-33.
tauração monárquica. para lá foram de slocadas inú- .g. eM. 29/~/1912.
meras tropas. que acabaram por arrasar o povoado -i5. O Copecubtuui. ano VI. n° 75.2117/1912.
em outubro de 1897. matando milhares de pessoas.
46. CM. 3/3/1912.
21. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ).
-i7. Cv\. 15!2Ii913.
Códice 46-3-55.
-i3. ic. 11.'12/19l3.
~2. AGCRJ. Códice 61-1-25.
23. Idem .. -i9. Cv1.. 19/12/191 5: Revisui da Semana. ano X\ 11. n° -i9.
151111916.
:-i. Lilian V:J.Z Notas op. cit.. p. 35.
50. CM. 2317/1923.
25. Favela é um arbusto típico da caatinga nordestina e
muito abundante no senão de Canudos. Li havia In- 51. 18. 1218/1920. Ver também Gv1. 15/1211 926.
clusive um morro com esse nome. Seja porque o 52. CM. 7/1/1916.
morro da Providência se assemelhava ao morro exis- 53. Mauricio A. Abreu e Lilian F. Vaz. "Sobre as ori-
tente em Canudos. seja porque os soldados ali encon- gens da favela". In Anais do IV Encontro .YacionaJ
traram (ou construíram, algo que lhes recordava Ca- ds Anpur. Salvador. A..'\IPUR. 1993. p. 481-+92.
nudos. a verdade é que o morro da Providência logo 5..f. CM . ..f/l11902.
passou a ser conhecido na cidade como morro da Favela.
55. eM. 17/9/1902.
26. AGCRJ. Códice 32-+-6
56. Ver Nicolau Sevcenko. A Revolta da Vacina. São
27. Jornal do Comércio !JC). l-i/1011901 Paulo. Brasiliense. 1984.
28. E é interessante notar que foi novamente a partir do 57. CM. 1511/1909.
Morro de Santo Antônio. e não do Morro da Provi-
58. C\1.. 7/5/1909.
dência - que é normalmente citado como a "favela
original" - que ISto aconteceu. 59. C\1. 2311/1911.
29. Correio da Manhã (C\l). 17110/1901. 60. C\1. 20/6/1911.
30. Idem. 61. C,L 29/-i/1912.
3\. A constatacão de cue havia um mercado imobiliário 62. C\1. 3/6/1914.
bastante cruei nas raveias. explorado Dor alguns dos C.2'. Indicacão de que o nome já havia se generalizado é
seus moradores ou Dor .. proprietários absenteístas", encontrada. por exemplo, no Jornal do Comercio de
é uma constante em iodo o período estudado, esten- 1213/1926: "Estas povoações que por ai já foram
cendo-se. na reahdade. até hoje. batizadas de favelas constituem além de grave ameaça

45
·_-~.~aço & Debates nQ 37 - 19.94
>

à salubridade oublica '" um eiernento extremamente -3. GM. 20/4/1916.


anuesierico aue
. mais se reaica. na moidura das be le- - 6. C~1. 9/5/1916.
zas naturais desta capital": E interessante notar. por
-;7. C\1. 26/5/1916. É interessante notar que. apos o in-
OUITO lado. que o termo ravelado. de natureza clara-
cêndio. os moradores do Morro de Santo Antônio
mente pejorati va, não era utilizaào nessa época. Re-
tiveram novamente permissão para se transferir para
portagem do Correio ds .\fanhã.':e 16/11/1922. faz
o Morro do Telégrafo. o que faz com que a Favela da
alusões ao .. meio favelano". Por sua vez. falando
Mangueira seja, talvez. a única das favelas cariocas
sobre sua administração. o prefeito Hennque Dods-
que contou com a aprovação do poder público. Ver
worth declarava. no final de sua gestão, que havia
Correio da .\lanhã. 11/9/1916. c Henrique Dias da
ajudado u "milhares de ia\"eieiros" L-\ Noite.
Cruz. op. cit.. p. 57.
i7/10/l945. Apud Parisse. op. eH.. p. 82). O termo
favelense também aparece nos jamais. 78. Reviste da Semana. 5/4/1919. Esta favela só desapa-
receria do cenário carioca na década de 1950. quando
64. Everardo Backheuser. "Onde moram os pobres". Re-
o morro foi finalmente arrasado.
nascença. .2 (13). 1905. p. 94.
79. Cv1. 17/5/1917; 22/4/1918.
65. Careca. n° 79. '+/l2/1909. p. 23.
30. JB. 1~8/l920.
66. C~1. 51711909.
31. C:-L 17/4/1926.
67. C\L 23/111911.
82. Tudo indica que essa campanha não se fazia por
68. Nicolau Sevcenko. op. cit.. p. 59.
desejos puramente humanitários ou estéticos. Em 1940.
69. \UNL op. cit.. pp. 210. 315. Manos Pimenta já era presidente da Bolsa de Imóveis
70. C\1. 23/1/1911. do Rio de Janeiro. Ver Rio ilustrsdo. setembro de
71. Mauricio A.. Abreu, "Da habitação .. ". op. cit. 1940,p.15L
72. Centro de Memória Social (C},1S I. Assistência médi- 83. Ver. por exernnlo. Jornal do Comércio. 12.13/l926: O
C:1 no Rio de Janeiro: uma conmbuição para a sua Globo. 11/3/1927: A Noticie. 11/3/l927: A Ers Fer-
história no período 1870-19'+5. Relaiono de pesquisa registe. abril 1927: O Globo. 15/8/1927.
não publicado. 1980: Mauricio .c... Abreu. Evolução 3.+. O Globo, 15/8/1927.
urbana .... op. cit. 85. Revista da Semana. ano 37. n° 36, 15/8/1936, p. 36.
73. A contribuição da reforma urbana para o aumento de 86. Louis Durnont. Ensaios sobre o individualismo. Uma
barracões neste último morro foi assim descrita al- perspectiva sruropologica sobre a ideologia moderna.
guns anos depois: "O desenvob irnento das constru- Lisboa. Ed. D. Quixote. 1992 (original de 1983).
ções no morro de Santo Antônio acentuou-se no go-
87. CM. 22n/l923. A imprensa da época usa o lermo
vemo passado. durante as dernohcôes oara a abertura
barn-bam-bam para designar o valentão.
da avenida Central. À noite. de'sci~ as ingremes
veredas. para a cidade. bandos de homens. crianças e 88. Idem.
mulheres. Insinuando-se pelos escombros. pelas mi- 89. Publicação recente sobre o Morro da Favela. à qual
nas das velhas ruas que desabavam para nascer a só tivemos acesso quando este trabalho já estava ter-
avenida. e ali. com cautela. desentranhavam paus. minado. aponta também para essa estreita correlação
vigores. tábuas. velhas folhas de zinco. tudo quanto entre a popularização do samba no Rio de Janeiro e
mais a mão demorava. para voltar. a horas mortas. a mudança da imagem da favela nos anos 20. Ver
organizando a triste caravana da miséria. :\'0 dia irne- Sonia Zylberoerg t Coord.r. Morro da Providência:
diato. ao romper o sol. J3. mourejavarn no desbasta- Memórias da Fevclls. Rio de Janeiro. Secretaria \1u-
mente do terreno. para assentar os aiicerces de uma nicipal de Cultura. 1992.
nova habitação". O morro de Santo Antonio. Leitura 90. Cv1. 19/5/1926.
para todos. ano 4. n° '+0. Junho J", 1909. p. 26.
91. Idem.
;-+ AGCRJ. Códicc 25-3-33.
92. C~1. 13íl 1,'1926.

46

Das könnte Ihnen auch gefallen