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Brotéria 2

VOL. 170

Fevereiro 2010

Série Mensal

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Brotéria
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Brotéria 2
VOL. 170

ÍNDICE

111 António Vaz Pinto, S.J.


A crise e os valores

113 Senra Coelho


Pio XII e os judeus

135 Cristina Osswald


Jesuítas no Brasil – séc. XVI

147 Elton Ribeiro


Charles Taylor e a secularização

157 Inês Lage Pinto Basto


J. D. Salinger – À Espera do Centeio

165 Roque Cabral, S.J.


Direitos e deveres

175 António Reis, S.J.


Personagem – O “Santo” P. Cruz

181 Nicolau Belina-Podgaetsky


Revisitando a Brotéria – A imprensa soviética
e os problemas cruciais da Ásia e da Europa

195 Recensões

203 Obras recebidas na redacção


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Editorial
A crise e os valores António Vaz Pinto, SI

É um lugar comum dizer que estamos em crise. Crise inter‑


nacional e crise nacional, na área financeira, económica e
consequentemente social. Os sintomas, inegáveis, aí estão,
para quem os quiser ver: o desemprego galopante, a falência
de empresas, a emigração acelerada (sobretudo de quadros
qualificados, ao contrário da emigração da década de 60) a
pobreza crescente, vergonhosa e envergonhada…
Perante esta situação inquestionável em Portugal, já de há
muito anunciada, há que responder, rapidamente e em força,
pois a omissão é o pior pecado, também na «política»… com
o deficit sempre a crescer.
É o tempo do Orçamento, do PEC (Plano de Estabilidade
e Crescimento) e de outras medidas cujos efeitos se irão reper‑
cutir sobre o nosso quotidiano colectivo. É o tempo da política
e dos políticos. Mas uma coisa é certa: há já muito anos e
não faltaram vozes para o denunciar, Portugal vive acima das
suas possibilidades, consome mais do que produz. Não há
que fugir daqui: temos de produzir mais e de gastar menos
e tendo em conta os custos sociais e as possibilidades reais
– é esta avaliação a área dos políticos – quanto mais tarde, pior
e quanto mais fundo, melhor. Numa palavra, são necessárias
medidas urgentes e corajosas.
É tudo? Não, não é. Não basta olhar, é preciso ver,
compreender o que se passa e se os frutos começam agora
a ser amargos, há que olhar para as raízes… Por trás desta
realíssima crise, repetimos, financeira, económica e social,
esconde‑se uma outra crise mais profunda, a crise de valores
e para responder a esta crise, não bastam leis e maiorias…
É preciso a colaboração do Estado, das Igrejas, dos partidos,
das empresas, das famílias, etc. Colaboração e exemplo!...

111
A matéria é boa, é necessário produzir e consumir, mas
isso é bem diferente de «montar» toda uma sociedade em torno
do materialismo, do consumismo imediatista, esquecendo
os que estão ao lado (solidariedade) e os que virão depois
(futuro), para pensar apenas no presente, meu e dos «meus»…
A crise de valores é assim também crise de mentalidades e de
cultura. Sem re-orientarmos as nossas bússolas e sem adop‑
tarmos um estilo de vida mais sóbrio, mais solidário e mais
aberto aos valores, não há nem haverá soluções legislativas P
duradouras nem dignas. A longo prazo, a superação da crise c
passa por aqui: uma nova mentalidade, uma nova cultura, para o
gerar um novo humanismo. é
——— q
Na rubrica «Revisitando a Brotéria», dentre muitas
h
possibilidades, escolhemos o artigo do fecundo colaborador
c
Nicolau Belina-Podgaetsky, sobre «a imprensa soviética e os
n
problemas cruciais da Ásia e da Europa», um artigo de 1951,

que nos mostra, nas várias regiões do globo, o clima de
«guerra fria» em que se viveu. Como tudo isto nos parece agora e
tão distante e noutros casos, Formosa, Tibete, tão próximo… d
——— s
Faz agora 150 anos que nasceu o famoso P. Francisco
da Cruz, popularmente chamado «P. Cruz» e «o Santo Padre
Cruz», cujo processo de canonização está mais do que intro‑
duzido. Acompanhando a história de Portugal, dos finais do
séc. XIX até meados do séc. XX, vale a pena conhecê-lo mais
de perto, reflectindo sobre a sua história. Aproveitamos para
isso a homilia proferida na Igreja de S. Roque, em Lisboa, c
no dia 28 de Fevereiro de 2010, pelo P. António Reis, S.J., vice- r
‑postulador da Causa da Canonização do P. Cruz, a quem muito g
agradecemos a cedência do texto. É o nosso «Personagem»
o
deste mês.
t
———
t
Correcção – No passado número de Janeiro de 2010, para
a
escândalo de alguns cultores da língua pátria, repetidamente
escrevemos rúbricas com acento no u, quando deveríamos P
escrever rubricas, sem acento. Embora mal informados por P
quem devia saber… assumimos totalmente o erro e a culpa e
pedimos desculpa aos nossos leitores.

112
Pio XII e os judeus Senra Coelho *

Pio XI (06.02.1922 a 10.02.1939) publicou a famosa encí‑ 1


No dia 16 de Fevereiro
de 2009 Bento XVI prestou
clica Mit Brennender Sorge quando era Secretário de Estado homenagem ao trabalho de
o Cardeal Eugénio Pacelli, futuro Pio XII1. Este documento oposição ao nazismo e aos
totalitarismos que Pio XI
é a definição clara da Igreja face aos totalitarismos, entre os desempenhou na década
de 30, afirmando: «Os estu‑
quais e de modo explícito, se encontra o Nazismo 2. Sabe-se, dos históricos que conti‑
nuam acontecendo sobre o
hoje, com meridiana clareza histórica, que Pacelli participou e seu pontificado fazem-nos
perceber cada vez mais a
colaborou na elaboração da Mit Brennender Sorge de Pio XI, grandeza do Papa Ratti,
que guiou a Igreja nos
na qual se denuncia o nazismo apresentado pelos nacional- difíceis anos entre as duas
‑socialistas alemães. Como legado papal, Pacelli pronunciou guerras mundiais. Durante
o seu pontificado, aquele
em Lourdes, no dia 28 de Abril de 1935, quatro anos antes Papa «teve de enfrentar as
dificuldades e as persegui‑
da Segunda Guerra Mundial, perante 250.000 peregrinos, as ções que a Igreja sofria em
países como o México e a
seguintes palavras: Espanha, e a confrontação
a que os totalitarismos leva‑
Esses (os Nazistas) na realidade são somente mesquinhos plagia- ram – nacional socialismo e
fascismo – surgidos e con‑
dores que revestem velhos erros em novas vestes. Não faz nenhuma solidados naqueles anos».
diferença se eles se juntam sob a bandeira da revolução socialista, «Na Alemanha, não se es-
se são guiados por uma falsa concepção do mundo e da vida, ou se queceu a sua encíclica «Mit
brennender Sorge», como si-
estão embebidos pela superstição do culto da raça e do sangue3. nal forte contra o nazismo».
2
O impacto da encíclica na
O pensamento anti-fascista e anti-nazista era tão bem Alemanha foi tão evidente
que Adolf Hitler ordenou a
conhecido e assumido no Cardeal Pacelli que, perante os Reinhard Heydrich, chefe da
Gestapo, que encontrasse e
rumores de ele vir a ser Papa e assim substituir Pio XI, os destruísse todas as cópias.
governos de Itália e da Alemanha manifestaram prontamente Os historiadores constata‑
ram recentemente, graças à
o seu repúdio, isto apesar de Pacelli ter sido Núncio Apos‑ abertura do Arquivo Secreto
do Vaticano, que antes de
tólico na Alemanha de 1917 a 1929 e aí ter exercido impor‑ morrer, Pio XII pensou redi‑
gir um novo documento
tante influência mediadora na assinatura da Concordata entre para denunciar com reno‑
vado vigor o anti-semitismo
a Alemanha e a Santa Sé. Assim, no dia seguinte à sua eleição do regime nazista.
Papal, o Jornal de Berlim Morgenpost diz «A eleição do Cardeal 3 
Cf. Frankfurter Allgemeine
Pacelli não é acolhida favoravelmente na Alemanha, porque Zeitung, 4 de Março de 1963,
cit. in Lichten, Joseph L.,
Pio XII e gli Ebrei, Bologna,
Centro Editoriali Dehoniano,
* Professor de História da Igreja no I.S.T.E. 1988, p. 37.

Brotéria 170 (2010) 113-134 113


ele foi um contínuo opositor do Nazismo e determinou a polí- R
4
  Cf. Morgenpost, Berlim, 3 tica do Vaticano sobre o seu predecessor».4 v
de Março de 1939.
Eugénio Pacelli (02.03.1876 - 09.10.1958) foi eleito Papa a d
2 de Março de 1939, assumindo o nome de Pio XII (02.03.1939 - d
- 09.10.1958). Acerca dele, há um autor que nos dá um escla‑ 1
recimento decisivo sobre a sua personalidade: «Pio XII era, s
por origem, natureza, auto-compreensão e experiência, um s
acérrimo homem da paz, ainda que não ao preço de cobar‑ c
5
  D’Damesson, W., Pio XII tel des compromissos».5 Assim, perante o novo conflito mundial i
que je l’ai connu, in R.H.D.
82 (1968), 21. (1939-1945), Pio XII afirmou que a Igreja «não pretende intervir d
nem tomar partido em controvérsias sobre matérias exclusiva‑
mente terrenas. Ela é Mãe. Não é legítimo pedir a nenhuma r
Mãe que favoreça ou se oponha parcialmente a qualquer um g
6
  Discurso de Junho de dos seus filhos».6 d
1939, ADSS 1, 163, repe‑
tido na mensagem de Natal Esta posição do Romano Pontífice é definida, juridica‑ n
de 1946, AAS/39, 1947,
pp. 7-17. mente, como de «neutralidade».7 Porém, Pio XII, homem c
7
  Acerca da posição de Pio acostumado a um pensamento e a uma linguagem matizadas d
XII sobre «Neutralidade» e
«imparcialidade», cf. Repgen, e  diferenciadas, preferiu designar a posição da Igreja face à a
K., «La Politica Exterior Vati‑
cana em la Época de las
Segunda Guerra Mundial como de «imparcialidade».8 Queria e
Guerras Mundiales», in Jedin, deste modo distinguir entre a situação política e o conteúdo R
H. y Repgen, K., Manual de
História de la Iglesia, vol. moral. Neutralidade, explicava Pio XII ao Cardeal de Munich, d
IX, Barcelona, Herder, 1984,
pp. 77-80. «poderia entender-se no sentido de indiferença passiva» o que, d
8
  Posição assumida na Men- numa época de guerra como aquela, não seria uma posição c
sagem de Natal de 1942, digna do pastor supremo da Igreja. Esclarecia ainda Pio XII: d
cf. Nota 12.
«Imparcialidade significa para nós uma valorização das coisas a
conforme à verdade e à justiça.» Pio XII, assume, portanto, f
uma posição no conflito, sem todavia perder a sua neutrali‑
dade, mas sublinhando a coragem face à defesa da justiça e da t
verdade, sempre com imparcialidade. Manter esta imparcia‑ C
lidade foi tarefa muito mais difícil do que foi na Primeira n
Guerra Mundial para Bento XV. Diz-nos B. Schneider que e
a imparcialidade exigiu «esforços quase sobre-humanos para p
9
  Schneider, B., Piusbriefe, manter a Santa Sé por cima das discussões dos partidos».9
3 de Março 1944, p. 280.
Até 10 de Junho de 1940 a Itália não participou na guerra; f
porém, a partir desta data, na campanha da Alemanha contra t
a França, a Itália de Mussolini tomou o partido germânico e a n
voz da Igreja, «Rádio Vaticano», e o seu jornal «L’Osservatore P

114
Romano» passaram a ter dificuldades em fazer ouvir a sua
voz, quer na defesa dos direitos humanos, quer na denúncia
das diversas e frequentes violações da liberdade religiosa e
de consciência operadas pela Alemanha. Nos finais de Abril de
1941, a Rádio Vaticano foi mesmo obrigada a interromper as
suas emissões sobre a situação da Igreja na Alemanha. Nesta
situação, a coragem de Pio XII manifestou-se também nos
contactos que o Vaticano continuava a manter com grande
intensidade a nível diplomático com os governos não alinha‑
dos com a Alemanha.
A par destas atitudes de imparcialidade, sempre a exigi-
rem grande coragem e valentia, Pio XII desencadeou uma
gigantesca onda de solidariedade humana para com as vítimas
da guerra, salvando cerca de 860 mil judeus das mãos dos
nazis. Recentemente, apareceu um estudo bastante esclare‑
cedor de Pinchos Lapide, Cônsul Geral de Israel em Milão
durante a Segunda Guerra Mundial. Como ele conclui, logo
após a guerra o reconhecimento dado a Pio XII foi absoluto
e unânime. Homens como o Prémio Nobel Alberto Einstein, o
Rabino-Chefe de Israel, Isaac Herzog, os Primeiros Ministros
de Israel, Golda Meir e Moshe Sharrett, o Presidente da União
das Comunidades Judaicas Italianas, Raffaele Contoni, agrade‑
ceram publicamente a Pio XII o seu heróico esforço a favor
da Paz e dos hebreus. Só posteriormente e de modo estranho,
a opinião histórica se virou contra Pio XII face à sua actuação
frente aos judeus.
L. Salvatorelli afirmou que «nunca, desde 1848, o Papado
10
teve tanto sucesso na imprensa internacional como hoje».10 Cf. Chiesa e Stato, della
rivoluzine francese ad oggi,
Confirmando esta opinião, foram os enormes elogios surgidos Florencia, 1955, p. 139.

na imprensa internacional por ocasião da morte de Pio XII


em 1958, que desempenhou «brilhantemente» o seu ministério
petrino.
Em todo o seu Pontificado, Eugénio Pacelli continuou
fiel aos seus princípios acerca dos fundamentos filosóficos e
teológicos que motivaram a desaprovação do fascismo e do
nazismo. Aconteceu que no dia 11 de Março de 1940, quando
Pio XII era Papa ainda há pouco mais de que um ano, recebeu

115
em audiência o alemão nazista von Ribbentrop que, em d
audiência formal, tentou convencer o Papa da inevitável vitória S
de Hitler e da invencibilidade do terceiro Reich. Sugeriu assim e
que, para bem do futuro da Igreja, o Papa devia alinhar com a S
Alemanha, sendo contraproducente alinhar a política diplomá‑ a
tica do Vaticano com os adversários do Führer. Pio XII ouviu H
com cortesia e de modo impassível von Ribbentrop; porém, t
no final da sua exposição, retirou dum enorme envelope colo‑ d
cado sob a escrivaninha um vasto relatório e, no seu alemão F
perfeito, recitou a lista de todas as perseguições infligidas pelo
terceiro Reich na Polónia, precisando datas, lugares e detalhes d
precisos de cada crime. A audiência terminou e a posição do d
Papa estava claramente assumida. p
Esta posição de Pio XII, declarada perante von Ribbentrop, O
veio no seguimento da sua primeira encíclica, na qual tinha f
atacado publicamente com violência doutrinas do totalita‑ a
rismo, do racismo e do materialismo. Neste documento afirma
Pio XII: q
d
O primeiro destes erros perigosos, hoje muito difundidos, é o
desprezo por aquela lei da solidariedade humana e da caridade J
ditada e imposta pela comum origem de todos os homens e da sua m
igualdade na sua natureza racional, independentemente do Povo P
11
Cf. Pio XII, Summi Pon‑ ao qual pertencem.11
tificatus, 20 de Outubro de r
1939, n.º 15.
Na véspera do Natal de 1942, durante a radiomensagem j
12
Radiomensagem de Natal, natalícia12 e depois, no dia 2 de Junho de 1943, Pio XII afir‑
24 de Dezembro de 1942;
«Este voto devo-o à huma‑ mou que g
nidade, às centenas de mi-
lhares de pessoas que sem
c
culpa nenhuma da sua par- centenas de milhares de pessoas, que sem serem responsáveis por
te, às vezes só por motivos culpa alguma e unicamente por causa da sua nacionalidade ou raça, n
de nacionalidade ou raça, se foram condenadas à morte ou à gradual extinção... É consolador c
vêem destinadas à morte ou
a um extermínio progres‑ para nós o facto que, através da assistência moral e espiritual forne‑ é
sivo.» Cit. in Comby, Jean, cida pelos nossos representantes e através da nossa ajuda financeira,
Para Ler a História da Igre- tenhamos conseguido confortar um grande número de prófugos, e
ja, Porto, Perpétuo Socorro,
Outubro de 1989, vol. III, desalojados, emigrantes entre os quais também os não-arianos. l
p. 121. d
Esta radiomensagem não passou despercebida, chegou à a
13
  Cf. Frankforter Allgemeine Alemanha e foi transcrita pela comunicação social.13 j
Zeitung, 4 de Março de 1963,
cit. in Lichten, Joseph L., op. A acusação contra Pio XII, face à questão dos judeus na P
cit., p. 41.
Segunda Guerra Mundial, surgiu cinco anos depois, através

116
do jovem dramaturgo alemão, Rolf Hochhuth, cuja obra Der
Stellvertreter, O Vigário, foi levada à cena pela primeira vez
em Berlim, a 20 de Fevereiro de 1963 e em Londres a 25 de
Setembro do mesmo ano. Para provar os fundamentos da sua
acusação, Rolf Hochhuth juntou ao texto teatral um Dossier
Histórico com 46 páginas, na edição alemã. Nesta documen‑
tação, em apêndice, surgiram duas citações extrapoladas de
dois notáveis pensadores contemporâneos católicos, o francês
François Mauriac e o hebreu Leon Poliakov.
As graves acusações de Hochhuth, personagem até então
desconhecida, desencadearam um singular e apaixonado
debate no mundo ocidental com inumeráveis discussões, como
por exemplo a movimentação de 75.000 cartas de leitores.
O elevado prestígio de Pio XII, até então predominante, trans‑
formou-se, em muitas pessoas, no extremo contrário, chegando
até ao ódio e ao desprezo.
À luz da actual investigação histórica apercebemo-nos
que a última palavra sobre a relação de Pio XII com os judeus,
durante a Segunda Guerra Mundial, não será a acusação de
14
John Cornwell,14 mas surgirá uma nova historiografia, certa‑ Cornwell, John, Il Papa
di Hitler – La storia segreta
mente mais justa e mais serena. Perceber-se-á então que o di Pio XII, Itália, Garzanti,
2004.
Papa Pacelli foi um justo entre as nações, a quem é necessário
reconhecer a protecção e salvação de centenas de milhares de
judeus naqueles tempos tão difíceis.
Não poderemos ignorar o silêncio e a covardia de muitos
grupos intelectuais que hoje acusam Pio XII, em nome de
certos vanguardismos, que na ocasião nada denunciaram nem
nada fizeram a favor dos hebreus. Onde estão afinal as denún‑
cias dos anti-fascistas italianos e dos comunistas russos dessa
época, a favor dos hebreus? Quem ignora as diversas traições
e denúncias feitas por judeus contra judeus, o que muito faci‑
litou a descoberta e prisão de outros judeus? Porquê fazer
de Pio XII o «bode expiatório» da história que nos interpela
a todos nós? Quem poderá dizer que fez tudo a favor dos
judeus, nessa ocasião? Quem fez mais pelos judeus do que
Pio XII e a Igreja?

117
Estas perguntas têm ainda mais força se percebermos que C
foram formuladas pelo Rabino e historiador de Nova Iorque, h
David Dalin, ao exigir uma revisão das historiografias pouco d
isentas acerca de Pio XII, reclamando que se coloque Pacelli l
no lugar de mérito humano que por direito e verdade histórica t
lhe pertence e lhe devemos. S
O
Pio XII e os hebreus s

Logo que os alemães ocuparam a Itália, as S.S. iniciaram de l


imediato as perseguições contra os hebreus. A 27 de Setembro n
de 1943, um dos comandantes nazis exigiu da comunidade de i
Roma 100 libras de ouro em apenas 36 horas, sob ameaça de a
prender 300 hebreus, se as 100 libras de ouro não chegassem n
dentro do prazo imposto. O Conselho da comunidade hebraica d
trabalhou desesperadamente, mas somente conseguiu angariar m
70 libras do metal precioso. Era grande a preocupação... d
Nas suas memórias, o Rabino-Mor de Roma, Eugénio r
Maria Zolli, conta que foi enviado ao Vaticano, tendo entrado c
camufladamente como um engenheiro civil pseudo-perito em t
obras, que iria supervisionar um problema relacionado com m
um dito edifício. Deste modo, os nazis de vigilância ao Vati‑ R
cano permitiram, inadvertidamente, a entrada do Rabino-Mor t
da Cidade Eterna. Uma vez no interior do Vaticano, encontrou- G
‑se com o Tesoureiro Pontifício e com o Secretário de Estado, c
os quais lhe comunicaram que o Santo Padre, pessoalmente, c
decidiu fornecer a quantia que faltava, através da entrega de
15
Cf. Zolli, Eugénio Maria,
Auto-biographical Reflections,
vasos de ouro do tesouro da Santa Sé.15 s
New York, Sheed and Ward, Desde os primeiros dias da guerra, o Papa Pio XII desti‑ d
1954, pp. 159-161.
nou avultadas somas de dinheiro para ajuda aos hebreus em s
toda a Europa. O gabinete para os prófugos, do Vaticano e a v
instituição S. Rafael Verein, ofereceram ajudas materiais e finan- e
ceiras de enorme e incalculável valor para salvar situações f
de primeira emergência. Pio XII administrava pessoalmente d
a recolha de fundos oferecidos por pessoas singulares e por g
grupos de solidariedade da Europa e da América, entre os quais e
o Catholic Refugee Commitee of the United States (Comité t

118
Católico dos Estados Unidos para os Prófugos). Também os
hebreus americanos confiaram ao Papa grandes somas de
dinheiro, que Pio XII distribuiu com grande prudência e habi‑
lidade, apesar dos grandes riscos que comportava, naquele
tempo, apoiar as comunidades judaicas. Nesta missão, a Santa
Sé seguiu sempre as vontades apresentadas pelos doadores.
O Padre Leiber avalia que Pio XII recebeu 2,5 milhões de liras,
só dos hebreus dos E.U.A., até 1945.16
16
Cf. Leiber, S.J., R., «Pio XII
e gli ebrei di Roma 1943-
Pio XII preocupou-se igualmente com os problemas fami‑ ‑1944», Civiltà Cattolica 112
(1961), I, 452.
liares dos hebreus. Assim, entre os muitos serviços que criou
no Vaticano a favor dos prófugos, nenhum trabalhou mais
intensamente do que o Secretário de Informações do Vaticano,
ao qual Pio XII atribuiu como tarefa a difícil missão de recolher
notícias dos familiares dos hebreus de Itália que tivessem sido
deslocados ou feitos prisioneiros noutros países. Se pensar‑
mos nos riscos que comportava procurar judeus no interior
da Alemanha, controladíssima pelos nazis, e a possibilidade
reduzida de utilização de canais oficiais em tempo de guerra,
concluiremos como foi importante e bem sistematizado este
trabalho humanitário da Santa Sé, que solicitou 800.000 infor‑
mações, que permitiram localizar com vida 66.000 pessoas.17
17
Cf. Repgen, K., «La Poli‑
tica Exterior Vaticana em la
Recordamos que os números apresentados, os únicos a que Época de las Guerras Mun‑
diales», in op. cit., p. 82.
tivemos acesso, dizem apenas respeito à secção alemã do
Gabinete de Informações do Vaticano, pois as outras secções
comportam também trabalho impressionante de contactos
conseguidos com hebreus espalhados pelo mundo.
Quando os nazis proibiram aos hebreus a realização dos
seus ritos, o Papa fez vir os chamados «shohetim», matadores
de animais, ao Vaticano, a fim de ali poderem cumprir as
suas tradições, recolhendo também todos os alimentos possí‑
veis para depois serem levados aos hebreus refugiados. Por
esta ocasião, muitos cidadãos italianos de origem hebraica,
foram removidos das funções que exerciam, sendo afastados
das posições de governo, das funções de ensino e dos encar‑
gos científicos, tudo isto pelos filonazistas italianos. Perante
esta situação, a Santa Sé, por orientação de Pio XII, recolheu
todas estas personalidades judaicas nos serviços da Igreja. Por

119
exemplo: o presidente e dois professores da Universidade de l
Roma, para além de um famoso geógrafo e vários hebreus h
expulsos pelos «fascistas» de outras funções importantes, foram f
recebidos no Vaticano e ocuparam importantes posições s
naquele pequeno Estado. Também o famoso judeu Bernard R
Beerenson cumpriu o seu exílio numa propriedade situada S
nos arredores de Florença, pertencente ao representante diplo‑ p
mático da Santa Sé junto da República de São Marino. Deste
modo, Beerenson pôde continuar a trabalhar nas suas obras e p
a viver na Europa sob a bandeira e a imunidade diplomática q
do Vaticano. Ali permaneceu com a sua família até à chegada d
das tropas anglo-americanas, nos finais do Verão de 1944. d
Do mesmo modo, Humbert Jidin, grande historiador da Igreja, p
responsável pela maior obra histórica sobre o Concílio de J
Trento e coordenador da mais conhecida e actualizada história S
da Igreja, foi recolhido no Vaticano como judeu refugiado e o
aí produziu as suas importantes investigações sobre a História f
do Concílio de Trento. c
18
Leiber, S.J., R., «Pio XII e Um biógrafo de Pio XII, Lieber,18 conta-nos que a impor‑ s
gli ebrei di Roma, 1943-
‑1944», La Civiltà Cattolica tante organização hebraica, Delegação para a Assistência aos
112 (1961) I, 452-453.
Emigrantes Hebreus (DESALEM), estabelecida em Génova a p
partir de 1939, foi obrigada a viver na situação de clandesti‑ r
nidade desde que os alemães ocuparam aquela cidade. Nesta d
situação de clandestinidade, a DELASEM decidiu entregar o seu d
tesouro ao Padre Giuseppe Rafetto, secretário do Arcebispo de o
Génova, ou seja, 5 milhões de liras. Um quinto deste tesouro d
judaico foi entregue a um tal Padre Benedetto, nomeado de a
urgência presidente da DELASEM para a proteger à sombra b
da Santa Sé. O Padre Benedetto levou esta soma de dinheiro d
para o Vaticano a 20 de Abril de 1944. A DELASEM continuou c
assim as suas funções através do Padre Benedetto, que residia
no Colégio Internacional dos Capuchinhos em Roma. d
O Padre Benedetto apoiou-se em muitos dos sacerdotes v
capuchinhos italianos e de outras nacionalidades, espalhados a
pelo mundo, para contactar com a Cruz Vermelha Interna- p
cional, com a Pontifícia Comissão de Assistência, com a Polícia c
Italiana e com os próprios nazis ocupantes, tudo com a fina‑ p

120
lidade de poupar ao máximo a vida dos hebreus ao terrível
holocausto. Nesta missão encontramos muitos contactos com
funcionários favoráveis à causa dos judeus, situados em diver‑
sos pontos da Europa como Itália, Suíça, Hungria, França,
Roménia e Portugal. Nesta luta para salvar judeus, a DELA‑
SEM, perante a situação de clandestinidade de muitos hebreus,
produziu inúmeros documentos falsos, para lhes salvar a vida.
E quem era de facto o padre Benedetto ? Trata-se de um
pseudónimo para designar o Padre Benoît-Marie di Monsíglia
que transformou o seu convento de Marselha numa verda‑
deira fábrica de salvação, produzindo aí passaportes, bilhetes
de identidade, certidões de baptismo, cartas de recomendação
para salvar hebreus. Frei Benoît-Marie apresentou, a 16 de
Julho de 1943, em Roma, ao Papa Pio XII, um plano que o
Sumo Pontífice conheceu em pormenor e abençoou. Quando
os alemães ocuparam o sudoeste de França Frei Benoît-Marie
foi refugiar-se em Itália, tendo sido aí aproveitado nos seus
conhecimentos e na sua experiência, para dirigir a DELASEM,
sempre com o real conhecimento e apoio de Pio XII.
Como dissémos, com a chegada dos alemães a Itália a
população judaica sentiu-se naturalmente ameaçada. Os temo‑
res dos judeus não eram infundados, pois nesse mesmo ano
de 1943 começaram as prisões em força. Perante a situação
difícil de desrespeito pelos direitos humanos do povo hebreu,
o Papa Pio XII interveio energicamente, ordenando ao Jornal
da Santa Sé, L’Osservatore Romano, que publicasse um artigo
a denunciar o «internamento» dos judeus nos «Campos de Tra-
balho» e a confiscação dos seus bens. Foi tal a frontalidade
do órgão oficial da Santa Sé, que a imprensa italiana «fascista»
19
Cf. American Jewish Year-
chegou a chamar ao jornal do Papa «Porta Voz dos hebreus».19 book, 1940-1941, Philadel‑
No sector da ajuda material aos prófugos, o programa phia, Jewish Publication
Society, pp. 384-385.
de Pio XII, sob a direcção do Padre Anton Weber, foi prova‑
velmente a operação de maiores proporções e de mais longo
alcance, entre todas as acções humanitárias desenvolvidas
pela Santa Sé a favor dos judeus perseguidos. O Padre Weber
conseguiu, com o apoio de Pacelli, 3000 vistos de entrada
para o Brasil, destinados aos judeus. Foi neste contexto que

121
também Portugal entrou na acção da diplomacia Vaticana, e
enquanto ponto de passagem para o Brasil. d
Naquela ocasião era difícil um visto no passaporte para se p
poder entrar no nosso país, pois era exigido a cada emigrante r
o bilhete de viagem previamente pago. Só assim se poderia n
entrar em Portugal. O P.e Weber criou em Lisboa um serviço i
de especial apoio para tratar da compra prévia de bilhetes de 1
retorno dos judeus às suas pátrias de origem, nomeadamente f
ao Brasil. Frequentemente, este apoio a dar aos mais neces‑ q
sitados, exigia ajuda económica. O financiamento de muitos S
desses bilhetes de retorno foi, frequentemente, da respon- e
sabilidade da Santa Sé. No ano de 1945, o Padre Weber orga‑
nizou a fuga de muitos judeus; porém, o aproveitamento das P
circunstâncias, pelos vendedores de viagens, provocou a espe‑
O
culação, fazendo com que cada viagem chegasse a custar 800
t
dólares. Muitos judeus partiram com financiamento, mais uma
d
vez assumido pelo Vaticano, de Pio XII. Pode-se mesmo afirmar,
j
à luz dos acontecimentos históricos, que a primeira fonte de
e
financiamento destas viagens era a Santa Sé.
c
Até aos finais de 1945, a organização do Padre Weber
e
forneceu assistência a 25.000 hebreus, dos quais 4000 conse‑
N
guiram pôr-se em fuga e assim salvarem as suas vidas.20
20
Cf. Boston Globe, 27
de Janeiro de 1963, cit. in o
Lichten, Joseph L., «Pio XII Neste drama italiano, Pio XII decidiu que os edifícios
e Gli Ebrei», op. cit., p. 65. o
religiosos daquele país deveriam servir para oferecer refúgio a
aos hebreus. Pio XII, chegou mesmo a isentar os mosteiros o
e os conventos de clausura, permitindo-lhes o acolhimento l
dos judeus. Calcula-se entre 4000 a 7000 o número de judeus e
que encontraram acolhimento, alimentação e vestuário nos a
imóveis eclesiásticos, tais como Basílicas, Igrejas, Seminários, t
Conventos, Mosteiros, Colégios, Escolas, edifícios de adminis‑ n
tração eclesiástica, casas paroquiais e até o palácio de Castel
Gandolfo serviu para acolher os perseguidos, pela razão t
simples de pertencerem à raça hebraica. h
Ao nível frio das estatísticas e dos números, poderemos c
dizer que em 1939, no início da guerra, existiam cerca de o
50.000 hebreus em Itália; em 1946 contavam-se já só 46.000 c
hebreus em Itália, dos quais 30.000 eram italianos e 16.000 P

122
eram prófugos vindos da Alemanha, da Polónia, da Holanda,
da Jugoslávia e da França. Destes, cerca de 8000 foram presos
pela Gestapo. Cifra horrenda, sem dúvida, mas muito infe‑
rior aos números de todas as outras nações ocupadas pelos
nazis. Para além destes números oficiais, a Itália recebeu
inúmeros refugiados judeus em clandestinidade. Cerca de
16.000, certamente recorreram a Itália, não pelo conforto dos
fascistas filonazis, mas pela autoridade geradora de segurança
que significa a pessoa do Papa Pio XII e os serviços da Santa
Sé. Segundo o biógrafo, deve-se a Pio XII a relativa paz que
experimentaram os hebreus em Itália.21 21
Leiber, S.J., R., «Pio XII e
gli ebrei di Roma, 1943-
1944», Civiltà Cattolica 112
Pio XII e os hebreus nos campos de extermínio (1961), I, 450.

O Papa Pio XII tentou usar todos os recursos possíveis e exis‑


tentes no Estado do Vaticano e na Santa Sé com a finalidade
de ajudar os oprimidos pela miséria dos campos de extermínio
judeus. Os meios por ele adoptados foram ditados pela grande
experiência milenar da diplomacia eclesiástica. Pio XII sabia
com quanta força o nazismo reprimiria a Igreja Católica, se
esta interferisse de modo directo, na política internacional.
Na  melhor das hipóteses, qualquer interferência do Vaticano
originaria uma vingança imediata contra a vida de católicos,
ou na pior das hipóteses, uma perseguição aberta contra toda
a Igreja Católica. Assim, Pio XII, estrategicamente, silenciou os
organismos da Santa Sé e o Vaticano e serviu-se das Igrejas
locais, para fazer a denúncia do que se estava a passar. O Papa
enviou mensagens aos Bispos das dioceses europeias, onde
a questão hebreia se colocava, com a orientação de «fazer
todo o possível para fornecer ajuda, até aos limites possíveis
nas condições locais».
No mês de Junho de 1943, a Rádio Vaticano, apesar de
todo o perigo e risco, advertiu: «Quem faz distinção entre os
hebreus e os outros homens, é infiel a Deus e está em contraste
22
com os mandamentos de Deus».22 Com este apoio da Santa Sé, Cf. American Jewish Year-
book, 1943-1944, Philadel‑
os Bispos iniciaram as denúncias em nome da Igreja Católica, phia, Jewish Publication
Society, p. 292.
contando sempre com todo o apoio pessoal e estratégico de
Pio XII.

123
A Santa Sé saiu em defesa dos hebreus da Eslováquia
através de uma longa nota da Secretaria de Estado do Vati‑
cano, com data de 12 de Novembro de 1941, a qual tinha
como destinatário Karl Sidor, representante diplomático eslo‑
vaco junto da Santa Sé. Este importante documento do Ponti-
ficado de Pio XII surgiu como denúncia da Igreja Católica
face à aprovação do chamado «Códice Hebraico» com data de
9 de Setembro daquele ano, o qual se apresentava como um m
mandato governativo sem originalidade, repetindo as normas d
anti-semitas do terceiro Reich. m
Diz o referido documento: c
Com a dor mais profunda, a Santa Sé foi levada ao conhecimento d
que também na Eslováquia, nação na qual o povo quase totalmente e
honra a melhor tradição católica, foi emanada uma «ordem gover‑ a
nativa» que institui uma especial «legislação social» e contém várias
normas em aberto contraste com os princípios católicos. De facto, e
a Igreja Universal, por vontade do seu Divino Fundador, acolhe
no seu seio homens de todas as raças e vê toda a humanidade
com natural solicitude, a fim de criar e desenvolver entre todos os
homens, sentimentos de fraternidade e de amor, segundo o ensina‑
23
Cf. Cavalli, F., «La Santa mento explícito e categórico do Evangelho (...).23
Sede contra le deportazioni
degli ebrei della Slovachia
durante la seconda guerra Esta posição mostrava o apoio do Bispo de Roma ao Epis‑
mondiale», Civiltà Cattolica
112 (1961) III, 7; Lettrich, J., copado Eslovaco, pois cinco semanas antes os Bispos daquela
History of Modern Slovakia,
New York, Praeger, 1955, nação tinham publicado uma nota de protesto contra as atitu‑
p. 187.
des do Presidente do Estado – Josef Tiso:

A um atento leitor não passa despercebido que a concepção filosó‑


fica que sustenta a textura da presente ordem é a ideologia racista.
Não desejamos elencar aqui todos os perigos e erros que esta
doutrina guardava em si. Desejamos só recordar, que a teoria natu‑
ralista do racismo contradiz abertamente o ensinamento da Igreja
Católica acerca da comum origem de todos os homens de um único
criador e Pai, acerca da fundamental igualdade dos homens diante
de Deus... O chamado «Códice Hebraico» viola as leis naturais e a V
24
Ibidem, p. 8. liberdade de consciência individual.24 a

Foi tal o sofrimento das Igrejas locais, que Pio XII teve A
que enviar aos Bispos uma orientação para discernirem qual o
o «mal menor»:

Deixamos aos Bispos locais avaliar as circunstâncias e decidirem se


mantêm o silêncio, ou não, «ad maiora mala vitanda», para assim

124
se evitar males maiores. Isto seria evidente, se em caso de declara‑
ções públicas da parte dos Bispos, se apresentasse como iminente
o perigo das medidas de distorção ou coação por parte dos Nazis.
Esta é uma das razões pelas quais nós mesmos limitamos as nossas
intervenções públicas. A experiência de 1942, quando publicámos
os documentos para distribuir aos fiéis, justifica a nossa posição,
porquanto conseguimos entender a situação actual.25 25
Cf. Tablet, Londres, 16 de
Março de 1963, cit. in
Lichten, Joseph L., «Pio XII
Pio XII percebeu que a Europa precisava da Igreja, naquele e gli Ebrei», op. cit., p. 57.
momento duro de guerra, junto aos grandes sofredores. Seria
de fácil evidência perceber que não era hora de discursos,
mas de acção. Os discursos piorariam a possibilidade de acção,
colocando a Igreja em situação também de perseguida, retiran-
do-lhe por consequência todas as possibilidades de actuação
em favor dos direitos humanos. A Igreja contava já com muitas
afirmações doutrinárias sobre os princípios éticos e humanos,
em abundância e com clareza.
A este propósito afirmou Pio XII:

[…] O Nosso coração responde com uma solicitude previdente e


comovida aos pedidos daqueles que voltam para Nós um olhar de
ansiosa imploração, atormentados como estão, por causa da sua
nacionalidade ou da sua raça, pelas maiores desgraças, pelas dores
mais penetrantes e pesadas, e entregues, mesmo sem culpa da sua
parte, a medidas de extermínio […]. Não esperais, certamente, que
vos exponha agora aqui, mesmo que parcialmente, tudo o que temos
tentado e experimentado fazer para diminuir os seus sofrimentos,
para suavizar a sua situação moral e jurídica, para defender os seus
direitos religiosos imprescindíveis, para socorrer a sua angústia e
as suas necessidades. Toda a palavra da Nossa parte, dirigida a
este propósito às autoridades competentes, toda a alusão pública
deviam, da Nossa parte, ser seriamente pesadas e medidas, no
próprio interesse daqueles que sofrem, para não lhes tornar, contra 26
Alocução de Pio XII no
a Nossa vontade, a situação ainda mais grave e insuportável.26 Colégio cardinalício, 2 de
Junho de 1943.

Vários gestos de reconhecimento ao Papa pela sua


actuação perante o sofrimento dos Judeus

A 4 de Junho de 1944, quando os Aliados entraram em Roma,


o Jewish News Bulletin da 8.ª Armada Inglesa afirmou:

Tornar-se-á honra eterna do povo de Roma e da Igreja Católica


Romana o facto de a sorte dos Hebreus ter sido aliviada, graças às
suas ofertas de ajuda e de refúgio, sinal de verdadeiro cristianismo.

125
Ainda hoje, são muitos aqueles que permanecem nos lugares que
abriram as suas portas para os esconder e salvar (os Judeus) de uma
devastação em direcção a uma morte certa... a História completa da
ajuda oferecida pela Igreja ao nosso povo não pode ser contada,
27
Cf. Lichten, Joseph L., por óbvias razões, até ao termo da guerra.27
«Pio XII e gli Ebrei», op. cit.,
p. 73. G
Já, após a libertação da Itália face aos nazis, um relator
hebreu declarou, numa das reuniões do Comité Nacional de
A
Libertação, o seguinte:
i
Foi em nome do mais sincero sentimento de fraternidade que a a
Igreja fez o máximo por salvar da destruição o nosso povo amea- d
çado. À suprema autoridade eclesiástica e a todos aqueles sacer-
dotes que sofreram por nós nas prisões, ou nos campos de concen‑ p
28
Ibidem. tração vai a nossa eterna gratidão.28 t

O Rabino-Mor de Roma, Elio Toaff, depois da morte de


Pio XII, disse:

Mais do que quaisquer outros, nós tivemos a possibilidade de apre‑


ciar a grande gentileza, cheia de compaixão e magnanimidade, que
o Papa demonstrou durante aqueles anos terríveis de perseguição
e de terror, quando parecia não existir para nós mais esperança
29
Cf. Furter Allgeneine Zer- alguma.29
tung, 4 de Março de 1963.
c
Por ocasião do falecimento de Pio XII, o Rabino de Roma a
Zolli, escreveu acerca do Papa e da Igreja Católica o seguinte: p
c
Aquilo que o Vaticano fez será esculpido de modo indelével e para
a eternidade nos nossos corações... Sacerdotes e outros Prelados t
cumpriram acções que serão para sempre uma honra para o Cris‑ c
30
Cf. American Jewish Year- tianismo.30 f
book, 1940-1945, p. 233.
P
Ao tomarem conhecimento da morte de Pio XII, os Rabinos-
a
-Mor do Egipto, de Londres, e de França pronunciaram pala‑
vras equivalentes de gratidão. Reparemos nas palavras de
T
Golda Meir, na altura Ministra dos Negócios Estrangeiros de
«
Israel, pronunciadas por ocasião da morte de Pio XII, no areó-
I
pago das Nações Unidas:
t
Condividimos a dor do mundo pela morte de Sua Santidade Pio XII. M
Durante uma geração de guerra e de contrastes, Sua Santidade m
afirmou ideias de paz e de compaixão. Durante os dez anos de terror
nazi, quando o nosso Povo atravessou os horrores do martírio, o F
Papa levantou a sua voz para condenar os perseguidores e exprimir m

126
solidariedade pelas vítimas. A vida do nosso tempo foi enriquecida
por uma voz que exprimiu as grandes verdades morais, colocando-
‑se acima dos tumultos dos conflitos quotidianos. Exprimimos uma
grande dor pela perda de um grande defensor da Paz.31 31
Cf. Civiltà Cattolica 109
(1958), III, 323.

Gratidão do Rabino-Mor de Jerusalém, Isaac Herzog

Após a libertação de Roma, num momento ainda cheio de


incertezas sobre o futuro dos judeus na Itália, pois alguns
ainda estavam em mãos nazis, espreitando o possível perigo
de uma vingança total do lado alemão em situação de deses‑
pero pelo início da perda das posições militares, neste con‑
texto, Pio XII declarou desassombradamente:
Desde há séculos, que os Hebreus vêm sendo tratados com toda a
injustiça e desprezo. É chegado agora o tempo em que eles serão
tratados com Justiça e Humanidade. Deus o quer e a Igreja o quer.
São Paulo diz-nos que os Hebreus são nossos irmãos; em vez
de serem tratados como estrangeiros, devem ser acolhidos como
irmãos.32 32
Cit. in ADL Bulletin, Outu-
bro de 1958; Lichten, J. L.,
Pope Pius XII and the Jews,
Parece que, para além destas afirmações de Pio XII, tão National Catholic Welfore
Conference, 1963, p. 71.
claras e esclarecedoras do seu próprio pensamento, ou seja,
a prova evidente da índole autêntica de Pio XII, no seu amor
por todos e da sua particular preocupação com a justiça e
com a Humanidade a dar aos judeus, está o facto que, durante
todo o tempo da guerra, vieram junto dele, pedir a sua ajuda,
chefes hebreus de todo o mundo. Um dos mais importantes
foi o Rabino-Mor de Jerusalém, Isaac Herzog, a quem o Papa
Pio XII confiou a mensagem de que faria tudo o que estivesse
ao seu alcance para ajudar os hebreus.
O Rabino Herzog deslocou-se à cidade de Istambul, na
Turquia, com o intuito de recolher apoio financeiro para o
«Jewish Aid Fund» (Fundo de Ajuda aos Hebreus). Chegado a
Istambul, Herzog encontrou, tal como lhe prometeu Pio XII,
todo o apoio e ajuda no Delegado Apostólico daquela cidade,
Mons. Ângelo Roncalli, que foi um colaborador exímio na dina-
mização da operação de salvamento dos hebreus Balcânicos.33 33
Tablet, Brooklin, 21 de
Março 1963.
Foi nesta ocasião que Mons. Ângelo Roncalli comunicou textual-
mente a gratidão de Herzog, escrevendo:

127
O Rabino-Mor de Jerusalém, Herzog (…) apresentou-se pessoal- r
mente na Delegação Apostólica com a finalidade de agradecer
p
oficialmente ao Santo Padre e à Santa Sé, pelas muitas formas de
34
Martini, S.J., A., «La Santa caridade expressas aos Hebreus nestes últimos anos...34 P
Sede de egli ebrei della
Romaria durante la seconda e
guerra mondiale», Civiltà Depois da guerra, o Rabino-Mor de Jerusalém enviou ao
Cattolica 112 (1961) III, I
p. 461. Papa Pio XII «uma especial bênção pelos seus esforços com a q
finalidade de salvar vidas Humanas entre os Hebreus, durante d
a ocupação nazi em Itália». Quem levou esta mensagem, m
pessoalmente a Pio XII, foi o Judeu Harry Greenstein, depois 1
director executivo da «Associated Jewish Charities of Baltimor» v
(Associação Judaica de Caridade de Baltimor) nos E.U.A. s
Greenstein declarou em entrevista ao Tablet o seguinte: «Recordo t
muitíssimo bem a luz que brilhava nos seus olhos. Ele, Pio XII,
respondeu que a sua única dor era a de não ter conseguido d
35
Tablet, Brooklin, 21 de
Março de 1963, cit. in salvar um número ainda mais elevado de Hebreus».35 d
Lichten, Joseph L., «Pio XII Ao tomarem conhecimento da morte de Pio XII, os Rabi‑
e gli Ebrei», op. cit. p. 72.
j
nos-Mor do Egipto, de Londres, e de França pronunciaram v
palavras equivalentes de gratidão. p
s
Testemunho da Família Zolli e
r
No Yom Kipur de 1944, o Rabino-Mor de Roma, Israel Zolli, n
sabia que presidia aos serviços da sinagoga da Cidade Eterna P
pela última vez, pois no seu íntimo ardia já a luz da Fé, em q
resposta ao chamamento do Rabi da Galileia, que o queria d
cristão. De facto, poucas semanas depois, Israel Zolli e a sua
esposa foram baptizados na Igreja Católica Romana e Zolli p
tomava o nome de Eugénio, em honra de Pio XII, cuja santi‑ u
dade e dedicação para salvar os judeus das mãos dos nazis, o d
Rabino-Mor de Roma bem conhecia e admirava profundamente. A
Israel Zolli era um proeminente professor de Sagrada E
Escritura, com grande prestígio intelectual entre os hebreus e C
por isso, em 1939, passou a ser Rabino-Mor de Roma. Quando
os nazis se preparavam para ocupar a cidade do Papa, Zolli r
insistiu com a comunidade hebraica para se dispersar, porém e
poucos seguiram o seu conselho. Logo que os «Nazis» chega- p
ram a Roma, Zolli que tinha a sua cabeça a prémio, pediu c

128
refúgio ao Vaticano, procurando obter do Santo Padre Pio XII
protecção para ele e para toda a comunidade judaica. Eugénio
Pacelli acolheu com autêntico amor cristão a família Zolli
e providenciou para que se abrissem mosteiros, conventos,
Igrejas Romanas, e até a própria Cidade do Vaticano, a fim de
que se tornassem santuários de acolhimento para os judeus
36
Um documento com data
daquela grande metrópole.36 Quando os nazis iniciaram os de Novembro de 1943, arqui-
massacres contra os judeus de Roma, conseguiram capturar vado no Memorial das Reli‑
giosas Agostinianas do Mos‑
1600 judeus dos 9500 que viviam na cidade. Os restantes esta‑ teiro dos Santíssimos Quatro
Coroados, em Roma afirma:
vam escondidos, sobretudo pela Igreja Católica, a pedido e «O Papa quer salvar os seus
filhos, incluindo judeus, e
sob a orientação de Pio XII. Entre os que escaparam encon‑ ordenou que os mosteiros
ofereçam hospitalidade aos
trava-se o Rabino Israel Zolli e a sua esposa. perseguidos…». O documen-
O baptismo dos Zolli aconteceu no dia 13 de Fevereiro to indica também uma lista
de 24 nomes, referentes aos
de 1945 e realizou-se na Igreja Romana de Nossa Senhora Judeus que foram trazido
para junto das freiras de
dos Anjos. O facto encheu de títulos as primeiras páginas dos acordo com o desejo de
Pio XII.
jornais de então, embora alguns tivessem atribuído a sua con‑
versão a razões de conveniência e estratégia pessoal. O pró‑
prio Zolli insistiu sempre que a sua conversão ao cristianismo
se prendia com um desejo ardente em pertencer a Jesus Cristo
e que o ligou à profissão de fé católica a compaixão e o espí‑
rito de unidade que viu em Pio XII. Esta experiência de Zolli,
na dor e no sofrimento dos seus irmãos e na solidariedade de
Pio XII conjuntamente com os católicos, levaram-no ao gesto
que há muito se insinuava como desejo no seu espírito e no
da sua esposa.
Pouco tempo após a sua conversão, os Zolli viajaram
para os Estados Unidos da América do Norte a fim de darem
uma série de conferências e lições bíblicas na Universidade
de Notre Dame, em Washington DC. Aí, Zolli confidenciou ao
Arcebispo Cicognani, Delegado Apostólico da Santa Sé nos
E.U.A,, que não foi a ciência ou a erudição que o atraíram ao
Catolicismo, mas sim a compaixão e a caridade.
Apesar do drama da sua conversão, a transformação
rápida do mundo no pós-guerra, colocou os Zolli em desgraça
económica e material. Em 1956, Zolli morreu em absoluta
pobreza, porém a sua visão e a sua coragem, o seu profundo
conhecimento bíblico, a sua espiritualidade penetrante e a

129
sua Fé profunda, fizeram dele uma das grandes figuras cató- o
licas do século XX. Zolli publicou o famoso livro O Nazareno, S
baseado no Evangelho da S. Mateus e enriquecido pelo pro‑ p
fundo conhecimento das línguas antigas e da cultura semita, o
que guardava como ex-Rabino Judeu.
q
Avaliação da acção de Pio XII em favor do Povo Hebreu f
p
Em Novembro de 1950, no periódico «Commentarg», Léon
Poliakov escreveu: A
c
É doloroso dever afirmar que, num tempo em que as câmaras de f
gás e os fornos crematórios funcionavam noite e dia, a alta auto‑
ridade do Vaticano não achou necessário pronunciar uma clara e l
solene condenação, da qual o eco faria soar e se difundiria em todo c
o mundo; e todavia não se pode dizer que não existissem motiva‑
ções pertinentes e válidas para este silêncio.
s
Este juízo histórico de Léon Poliakov sintetiza bem a ques‑ t
tão com que se confrontam os historiadores ao abordarem a S
questão de Pio XII e o holocausto dos hebreus. Este juízo de f
Poliakov, de forma muito inteligente e criteriosa, é reafirmado s
por Paulo VI, logo após a sua eleição papal e publicada no
The Tablet; diz Paulo VI: r
a
Pio XII desejou imergir-se plenamente na história do seu tempo, tão f
complexo: com a consciência profunda de ser mesmo parte daquela
história, desejou tomar parte nela totalmente, condividindo os sofri‑ o
37
Cf. Tablet, Londres, 29 de mentos no próprio coração e na própria alma.37 d
Junho de 1963.
I
De facto, Pio XII viveu momentos absolutamente dramá- f
ticos, em que de consciência assumida teve de escolher e optar a
entre caminhos diversos, mas todos eles complexos e cheios de
dor humana. Será fácil, à distância e fora dos dramas vividos a
por Eugénio Pacelli, fazer um juízo da sua pessoa e opinar por 1
aquilo que teria sido melhor, porém, só a vivência dos aconte‑
cimentos pode dar plenitude de entendimento para perceber, C
tanto quanto possível, por dentro Pio XII.
Acerca da personalidade de Pacelli chegou-nos um teste- N
munho de Sir D’Arcy Osborne, representante diplomático r
da Inglaterra junto da Santa Sé, o qual enquanto os alemães d

130
ocuparam Roma, foi obrigado a viver no Vaticano; escreveu
Sir Osborne: «Pio XII foi a pessoa de calor humano maior, a
pessoa mais cortês, generosa e disponível e santa que eu tive
o privilégio de conhecer ao longo da minha vida».38
38
In The Times, Londres, 20
de Maio de 1950.
É muito difícil avaliar com precisão e rigor os resultados
que o Papa Pio XII obteve, com as suas diversas acções a
favor do povo hebreu, perante o drama do Holocausto deste
povo às mãos dos «nazis».
Aceita-se, como cifra aproximada, milhões de vítimas.
A  cifra dos que conseguiram sobreviver às perseguições cal‑
cula-se em cerca de 950.000. Destes sobreviventes, 70% a 90%
foram salvos pelas diversas medidas adoptadas pelos cató-
licos. O resultado destes cálculos é globalmente aceite como
correcto.39 39
Repgen, K., «La Politica Ex-
terire Vaticana en La Época
Perante o número dos assassinados, o número dos salvos de Las Guerras», in op. cit.,
pp. 77-80.
surge aparentemente reduzido; porém, este pequeno resul‑
tado aponta a vontade da Igreja Católica, sob a orientação do
Sumo Pontífice Pio XII. De facto, os católicos entraram em
favor da vida de todos e de cada um dos seres humanos e este
sinal não é um dado minimizável.
O êxito das medidas concretas propostas pela Igreja varia‑
ram de país para país e foram-se modificando ao longo dos
anos. Pode-se afirmar que os êxitos dos esforços pontifícios
foram mais eficazes onde a influência da Santa Sé era maior e
onde eram menores as possibilidades de intervenção directa
de Hitler. Assim, na Eslováquia, Hungria, Roménia, Croácia e
Itália foi grande o êxito conseguido pela Igreja Católica em
favor do povo hebreu, sempre dentro dos limites relativos que
40
as cifras apresentadas nos sugerem.40 ADSS 9, 32-34.

Na cidade de Roma, pode comprovar-se factualmente que


a rápida interrupção da famosa «razzia» de 16 de Outubro de
1943, se deveu a uma iniciativa pessoal de Pio XII.41 41
ADSS 9, 509 e 510, nota 2;
Chadwick, O.; Weizascker,
«The Vatican and Jewis of
Conclusão Rome», Journal of eccle-
siastical history, 28 (1977),
pp. 790-199; Grahar, R. A.,
«La strana condotta di E. Von
No passado dia 19 de Dezembro de 2009, o Papa Bento XVI Weizsäeker, Ambasciatore del
Reich in Vaticano», CC 121,
recebeu em audiência privada Dom Angelo Amato, Perfeito 2 (1970), 455-474.
da Congregação da Causa dos Santos. Durante a audiência o

131
Santo Padre autorizou a Congregação a promulgar os decretos
referentes às Virtudes Heróicas de Pio XII, João Paulo II e mais v
21 Religiosos de diversas nacionalidades: Espanhóis, Italianos, d
Australianos, Polacos, Ingleses, um Canadiano e outro origi‑ c
nário de Dalmácia. Entre os polacos conta-se o Padre Jerzy C
Popieluszko. Permanecem porém independentes as causas de r
Pio XII e João Paulo II, nada fazendo concluir que as Beatifi‑
cações sejam em simultâneo. d
Diversas sensibilidades, conhecidas pelas suas alega‑
das acusações a Pio XII de filo-nazismo, ou pelo menos de
silêncio cúmplice, reacenderam-se perante a recente decisão
de Bento XVI. Assim, várias agencias noticiosas anunciaram,
dia 2 de Fevereiro, que um documento apresentado como
suposta prova de indiferença de Pio XII frente ao sofrimento
dos judeus de Roma contém um grave erro de datação da
parte dos pesquisadores que o apresentaram: o texto é ante‑
rior ao início dos terríveis ataques nazistas contra a comuni‑
dade judaica na capital italiana.
Conforme explica, Ronald Rychlak, professor da Universi‑
dade do Mississipi e autor de vários estudos sobre Pio XII, os
pesquisadores teriam cometido um grave erro na datação do
documento: «A mensagem enviada a Washington por Harold
Tittmann é datada de 19 de Outubro, mas há um erro. Os rela‑
tórios do Vaticano mostram que a reunião entre Tittmann e o
Papa ocorreu na verdade em 14 de Outubro», afirma.
De facto, a edição do L’Osservatore Romano de 15 de
Outubro de 1943 noticiava, na primeira página, que Tittmann n
havia sido recebido por Pio XII em audiência privada no dia t
14 de Outubro, enquanto que os ataques contra a comuni‑ P
dade judaica se iniciariam em 16 de Outubro daquele ano. R
Ao que parece, um ‘14’ foi lido por engano com ‘19’, observou r
Rychlak. «O Papa não mencionou os ataques à comunidade judaica a
em sua conversa com Tittmann porque ainda não haviam ocor‑ o
42
Resposta de Ronald
rido! (…) Sua preocupação no momento era com possíveis acções
Rychlak, às acusações violentas por parte dos grupos comunistas – o que, como se sabe,
apresentadas por Giuseppe acabou por ocorrer na primavera seguinte,
Casarrubea e Mário Cere‑
ghinmo, A.N.S.A., 2 de Fe-
vereiro de 2010. disse o professor Rychlak.42

132
No referido estudo figura ainda outro erro grave, uma
vez que os documentos apresentados são considerados iné‑
ditos pelos autores. Na verdade, o documento é amplamente
conhecido pelos historiadores, tendo sido publicado em 1964.
Consta na série «Foreign Relations of United States», no volume
referente ao ano de 1943.
Recentemente, Dom Manuel Clemente teve oportunidade
de recordar em síntese histórica muito feliz que

Pio XII conhecia a Alemanha, onde estivera como Núncio Apostó‑


lico. Enquanto secretário de Pio XI, papa de 1922 a 1939, ajudara
muito o pontífice na compreensão do que se passava e na conde-
nação do nazismo. Depois, coube-lhe a ele salvar quanto possível
as vítimas da guerra e das perseguições, entre 1939 e 1945.
Podia ter deixado Roma e sobrevivido à guerra em local mais
sossegado e neutro, não lhe faltando ofertas e sugestões nesse
sentido. Mas preferiu ficar na Cidade Eterna, resumido aos quarenta
hectares do Vaticano e sempre sujeito a um golpe de mão de fas‑
cistas ou nazis, ou ao contra-ataque dos «Aliados», quando por sua
vez lá chegassem. Pio XII ficou em Roma e criou no Vaticano e em
várias casas religiosas outros tantos abrigos para os judeus perse‑
guidos. Podemos dizer que arriscou tudo e finalmente venceu, no
campo da humanidade e da consciência.
Tanto mais que estendeu esta mesma acção a outros países
em que os judeus eram perseguidos. Se não podia fazer grandes
denúncias escritas ou radiofónicas, para que os judeus e os cató‑
licos não fossem ainda mais perseguidos nos países controlados
pelos nazis, deu um testemunho incessante de solicitude prática
pelos que sofriam, escondendo uns e proporcionando a fuga de 43
Clemente, Manuel, «Apre‑
muitos outros.43 sentação» in Coelho, Senra,
Pio XII e os Judeus, Apela‑
ção, Paulus, 2009.
Até 2008, um Rabino americano teve dúvidas sobre a ido‑
neidade de Pio XII para sua beatificação; todavia, ao encon‑
trar-se com os testemunhos histórico do Fundo Arquivístico de
Pio XII do Arquivo Vaticano, mudou a sua opinião. Trata-se do
Rabino Erioh A. Silver, do Templo Belh David, em Cheshire,
responsável pela melhoria das relações entre o judaísmo e
a Igreja Católica. Explicando as causas da sua mudança de
opinião diz:

Eu achava que ele poderia ter feito mais. (…) Eu queria saber se
realmente havia um colaborador, um anti-semita passivo, enquanto
milhões eram assassinados, alguns à vista do Vaticano. Então em
Setembro de 2008, vim a Roma, convidado por Gary Krupp, para

133
participar de um simpósio organizado por Pave The Way Founda‑
tion, no qual se estudaria o papel de Pio XII durante o Holocausto.
(…) As provas que eu vi me convenceram de que a única moti-
vação de Pio XII foi salvar todos os judeus que pudesse. Espero que
a canonização de Pio XII possa acontecer sem problemas, para que
não somente os católicos, mas o mundo inteiro possa conhecer o
bem realizado por esse homem de Deus. Depois de tudo, Eugénio
Pacelli é um amigo especial de Deus, um santo; cabe-nos a nós
44
Marchione, Sor Marghe‑ reconhecer este facto.44
rita, Papa Pio XII, Uma Anto-
logia di Testinal 70 Anni-
versario dell’incoronazione, C
Livraria Editora Vaticana, A autora do livro que apresenta o testemunho do rabino
2009.
Erich A. Silver é Margherita Marchione que, depois de 15 livros
A
publicados sobre Pio XII, conclui que este Papa é a maior
2
personalidade da época da Segunda Guerra Mundial, afirmando
e
«Este Papa, no silêncio e no sofrimento, sem armas nem exér-
t
cito, conseguiu salvar muitas vidas humanas e aliviar muitas
p
penas: esta é a verdade histórica». Sor Margherita demonstrou
que Pio XII foi inimigo acérrimo do nazismo e do comu‑
n
nismo. Sobre a sua relação com os judeus, Sor Margherita
a
pôde demonstrar que
e
Pio XII salvou mais judeus que qualquer outra pessoa, inclusive a
Oskar Schindler e Raul Wallenberg. Durante a guerra, Pio XII fez
e
mais que qualquer outro chefe de Estado, como os presidentes
dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt ou Winston Churchill, que b
podiam servir-se de meios militares. O único chefe de Estado que v
salvou milhares de judeus foi Pio XII, que não tinha meios militares:
Por este motivo, Pio XII merece ser reconhecido como beato.
o
n
n

B
r
h
p
i
u
t
s

134
Jesuítas no Brasil – séc. XVI Cristina Osswald  *

Contextualização

A missão brasileira da Companhia de Jesus iniciou-se em


29 de Março de 1549 com a chegada de Manuel da Nóbrega
e mais cinco jesuítas à Baía. Esta data corresponde, em simul‑
tâneo, ao início da evangelização e da sistemática colonização
portuguesa deste território.
Durante a sua permanência de duzentos e dez anos
no Brasil até à sua expulsão em 1759, os jesuítas foram um
agente importante na exploração geográfica e na colonização
europeia. Por um lado, eles foram, muitas vezes, os primeiros
a desbravar o sertão e a floresta. Por outro lado, os colégios
e outras casas constituíram o núcleo inicial de vilas e cidades
brasileiras. Destaca-se a cidade de São Paulo que se desen‑
volveu a partir do colégio jesuíta de São Paulo. Tiveram ainda
os jesuítas um papel importante não só na missionação como
na colonização, dado se ter tratado do corpo missionário mais
numeroso e mais espalhado no Brasil.1
1
O número de jesuítas
no Brasil aumentou rapida‑
À semelhança de todas as províncias jesuítas, os jesuítas do mente. Treze jesuítas viviam
no Brasil em 1553, tendo
Brasil viviam numa panóplia de diferentes instituições: casas, o seu número ascendido
a trinta e seis em 1556.
residências, colégios, noviciados, hospícios, recolhimentos, (Hoornhaert, E., «As rela‑
ções entre Igreja e Estado»,
hospitais e seminários. No que se refere às residências, estas Revista Eclesiástica Brasi-
podiam ser habitações fixas ou temporárias. Os colégios mais leira 32 (1972), 298).

importantes, ao reunirem uma série de funções e albergarem


uma grande variedade de habitantes ou ao serem visitados
também por muitos externos, reuniam no mesmo local uma
série de edifícios. Parte destes edifícios ou aposentos tinha

* Universidade do Minho (Braga) e Universidad Nacional de Educación à Distancia


(Madrid).

Brotéria 170 (2010) 135-146 135


uma função distinta das funções mais comuns nos colégios e
europeus. Por exemplo, o Colégio do Rio de Janeiro incluía s
uma série de aposentos, que serviam para os governadores
2
Dentro e fora de Portu‑ se hospedarem. No extremo oposto, na parte subterrânea do m
gal, algumas destas cercas
desenvolveram-se em autên‑ colégio, localizavam-se as casas dos escravos. v
ticos potentados agro‑pecuá-
rios com capacidade para Determinavam as prescrições internas da Companhia que o
abastecer cidades inteiras, todas as províncias tivessem áreas rurais, ou seja, hortas (na
como aconteceu durante o A
cerco de S. Salvador da Baía linguagem da época cercas) localizadas fora dos aglomerados n
pelos holandeses em 1635.
(Alden, D., The making of urbanos, e que deviam servir não apenas como áreas de lazer, v
an enterprise: The Society of
Jesus in Portugal, its Empire, como também enquanto principais fontes de abastecimento N
and beyond 1540-‑1750,
Stanford, University Press, para as comunidades jesuítas nas cidades.2 Na Baía, os jesuítas s
1996, 211).
chegaram a ter mesmo duas cercas: uma para o assueto (dia d
3
Leite, S., Suma Histórica de repouso semanal) e outra à beira-mar para as férias.3
da Companhia de Jesus no
Brasil: assistência de Por-
tugal, 1549-1760, Lisboa, d
Junta de Investigações do
Ultramar, 1965, p. 95. p
A vida em missão: Do Inferno ao Paraíso
(
d
Os relatos jesuítas abundam com referências às inúmeras
c
dificuldades caracterizando o quotidiano dos «companheiros»
n
sobretudo nos primeiros anos da sua presença no Brasil e
o
ainda durante as suas viagens. No que se refere à habitação,
v
por norma, as primeiras casas jesuítas eram casas provisórias
p
e construídas pelos próprios jesuítas. Tratava-se de cabanas
c
semelhantes às casas índias, pois eram construídas em barro
e/ou madeira, e cobertas de ramos e palha. c
Entre outros, o cronista do Brasil Simão de Vasconcelos des‑
creve, como se segue, os difíceis começos da casa jesuíta p
de Piratininga, S. Paulo. Teriam vivido os primeiros jesuítas a
em uma «casinha» de palha com uma divisão única onde se D
encontravam a escola, a enfermaria, o dormitório, a cozinha e L
a dispensa. Manuel da Nóbrega descreveu situação idêntica na e
Baía em 1557. Por falta de cobertores, os jesuítas aqueciam-se q
durante a noite acendendo fogueiras. O seu vestuário de algo‑ o
dão era muito pobre. Não tinham nem calças nem sapatos. f
Apesar do frio, muitas vezes, os jesuítas liam as lições fora de O
casa devido ao incómodo causado pelo fumo das fogueiras o
acesas no interior. A sua alimentação estava reduzida a farinha c

136
4
e mais raramente a peixe do rio e caça do mato, servidos Vasconcelos, S., Chronica
da Companhia de Jesu do
sobre folhas largas de árvores, pois não tinham mesas.4 Estado do Brasil e do que
obraram seus filhos n’esta
De igual modo, muitas vezes a penúria que grassava em parte do mundo, Lisboa,
Fernandes Lopes, 1865, I,
muitas regiões significou que os padres fossem obrigados a p.  133 e «Carta de Manuel
da Nóbrega a Miguel Torres,
vestir-se com roupa de má qualidade ou roupa velha. Em 1553 Baía, 2 de Setembro de
1557», Monumenta Brasilae,
os padres da Baía vestiam ainda a roupa trazida de Portugal. Roma, Monumenta Histo‑
Anos mais tarde, mais concretamente em 1569, os irmãos rica Societatis Iesu, 1956, II,
p. 408.
noviços viviam mais pobremente que em Portugal. Não toma‑
vam vinho e dormiam em leitos sem lençóis por falta de pano.
No Rio de Janeiro, os jesuítas vestiam inicialmente sobretudo
sotainas de cânhamo tingidas de preto e feitas com as velas
5
«Carta de Manuel da
das naus.5 Nóbrega a Simão Rodrigues,
S. Vicente, 22 Março 1553,
Acontecia os jesuítas andarem sozinhos durante períodos Monumenta Brasilae, op. cit.,
1958, III, p. 458; Leite, S.,
de seis ou sete meses. Eram viagens marcadas pela doença, História da Companhia de
pela fadiga, pelo sofrimento, devido aos rigores climáticos Jesus no Brasil, Lisboa e Rio
de Janeiro, Portugália/Civi‑
(chuvas tropicais, temperaturas extremas) e outras adversi- lização Brasileira, 1938, II,
p. 400 e Biblioteca Nacional
dades da Natureza (florestas densas, desertos sinistros, rios do Rio de Janeiro, Historia
de la Fundacion del Colle-
caudalosos, e ainda ataques de insectos, cobras, plantas vene‑ gio del Rio de Enero y de sus
residencias, f. 47v.
nosas), à escassez alimentar e ainda ataques de tribos índias
ou mesmo europeus. Com frequência, os missionários passa-
vam frio. Pois, eram obrigados a atravessar rios a nado ou a
pé. Também era costume dormirem ao relento, ao frio e à
chuva com a roupa molhada no chão ou nas redes índias,
cobertos com ramos de árvores.
Em viagem ou em casa, as queixas mais comuns por
parte dos missionários no que se referia à alimentação eram
a falta de pão de trigo, de sal, de azeite, e ainda de vinho.
De acordo com uma carta escrita pelo jesuíta português Brás
Lourenço aos padres e irmãos de Coimbra (1554), durante uma
expedição, ele e os seus companheiros, quando não tinham
que comer, que era a maior parte do tempo, comiam abóboras
oferecidas pelos índios e cozidas sem sal e sem azeite, com
farinha de guerra (farinha feita com mandioca) já podre.
Os missionários comiam de alguidares e recipientes, nos quais
os índios tinham cozinhado antes carne humana. Tal facto
criava asco entre os europeus, asco, ao qual, todavia, rapida-

137
6
«Carta de Brás Lourenço mente se sobrepunha a fome. A falta crónica de vinho levava d
aos Jesuítas de Coimbra,
Espírito Santo, 26 de Março a que se não celebrasse sempre a missa.6 p
de 1554», Monumenta Brasi-
liae, op. cit., II, pp. 45 e 48. Em 1577, Belchior Coelho considerava que a falta de N
alimentos era uma das duas principais causas (a segunda causa t
era o excessivo número de missionários) para as «desinquieta‑ o
ções» que se verificavam no Brasil. Nas suas palavras, em todo e
o Brasil os padres e irmãos bebiam vinho aguado. Apenas se b
comia pão no Pernambuco e, com excepção da Baía, a carne
era escassa. Queixava-se ainda Belchior Coelho não apenas da r
quantidade, como da insipidez da comida no Brasil. De facto, s
como observado por Belchior Coelho, a carestia alimentar g
atingia mesmo as comunidades residindo de modo estável. Em n
especial, as guerras ou os ataques militares e as dificuldades e
económicas foram dois importantes factores contribuindo para c
a escassez alimentar que afectou várias comunidades jesuítas
durante a segunda metade do século XVI.7
7
«Enformação dalgumas
cousas do Brasil» [por
t
Cordeiro, Belchior, 1577]», Com excepção do Colégio de São Paulo, os principais g
ed. Serafim Leite, Anais da
Academia Portuguesa da colégios jesuítas foram construídos em zonas litorais, seguindo b
História 16 (1965), 194-195.
assim o movimento colonizador. Localizava-se a maior parte d
destas casas em zonas descritas pelos jesuítas como os melho‑ g
res sítios das cidades. Por norma, na escolha dos lugares para
a sua edificação, os responsáveis jesuítas optavam por loca‑
8
Por exemplo, o Colégio lizações em pontos altos e com vista para o mar, com bom
de Salvador da Baía loca‑
lizava-se em uma zona de
ar, água potável (fontes, poços, rios próximos), beneficiando
grandes bosques e arvore‑ assim dum clima sadio e temperado.8
dos, sendo, por isso, muito
fresco. («Narrativa Epistolar Compreensivelmente, as cercas dos colégios onde os
de uma viagem e missão
jesuítica, pela Baía, Ilhéus, padres, irmãos e noviços iam passar as férias e o assueto
Porto Seguro, Pernam‑
buco, Espírito Santo, Rio de semanal, que calhava à quarta-feira ou à quinta-feira, eram m
Janeiro, São Vicente (São
Paulo), etc., desde o ano de
muito aprazíveis. Estas cercas que se encontravam, muitas t
1583 ao de 1590, indo por vezes, junto ao mar ou ainda em ilhas (Baía e Rio de Janeiro) r
visitador ou Informação da
Missão do Padre Cristóvão eram conhecidas pelas frutas variadas (desde as frutas locais d
de Gouveia às partes do
Brasil – ano de 83 escrita às laranjas da China) e ervas cheirosas. j
em duas cartas ao Padre
Provincial em Portugal», Desde o início da presença jesuíta fora da Europa, a acomo- r
Tratados da terra e gente do
Brasil, transcrição, introdu‑ dação gastronómica foi uma constante. Muitos missionários r
ção e notas por Ana Maria jesuítas aprenderam rapidamente a apreciar, assim como a P
Azevedo, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemo‑ valorizar os produtos locais na sua alimentação. Por outras f
rações dos Descobrimentos
Portugueses, 2000, p. 217. palavras, também no Brasil, os jesuítas foram pioneiros ao a

138
descobrir e apreciar novos produtos capazes de substituir os
produtos europeus. Apenas chegado ao Brasil, Manuel da
Nóbrega afirmou em 1549 que o pão de mistura de milho e
trigo feito na Baía escusava o pão de trigo português. A mesma
opinião era partilhada por Baltasar Fernandes, que escreveu,
em 1567, que «o pão de Piratininga era tão bom que não alem‑
brava o pão do Reino».9
9
Nóbrega, M. da, «Infor‑
mação das Terras do Brasil
Para colmatar a crónica escassez de vinho, no Brasil, para os padres e irmãos de
Coimbra (1549)», Monumen-
recorria-se a vinho «baptizado» com água ou com mel (o con‑ ta Brasiliae, II, 1956, p. 148
e «Carta de Baltasar Fernan‑
sumo desta mistura era também bastante difundido em Portu‑ des aos padres e irmãos de
Portugal, Piratininga, 5 de
gal), assim como a bebidas locais. Mais precisamente, quando Dezembro de 1567», Monu-
não havia vinho, os jesuítas consumiam bebidas alcoólicas menta Brasiliae, op. cit.,
1960, IV, p. 424.
extraídas do caju (o «cavim») ou do ananás, ou água cozida
com milho e misturada com mel.10 10
Cardim, F., «Narrativa
Epistolar de uma viagem e
Os relatos mostram uma percepção cada vez mais posi‑ missão jesuítica, pela Bahia,
Ilhéus, Porto Seguro, Per‑
tiva dos produtos locais. Na visão jesuíta, os produtos locais nambuco, Espírito Santo,
Rio de Janeiro, São Vicente
ganhavam, com frequência, a melhor, nas comparações esta‑ (São Paulo), op. cit., p. 85.
belecidas com os produtos europeus, tanto do ponto de vista
da saúde, como do gosto. Citando uma carta do jesuíta portu‑
guês Rui Pereira escrita em 1560

Se houvesse paraíso na terra, eu diria que agora o havia no Brasil.


Saude nao ha mais no mundo: ares frescos, terra alegre (…). Muitas
galinhas e mais baratas que em Portugal. Carneiros caçando nos
matos e de boa carne, vinho, água, pão fresco, farinha da terra
mais saudável que o pão de Portugal. Produtos muito abundantes e
dando-se todo o ano sem se plantarem.11 11
«Carta de Rui Pereira aos
Padres e Irmãos de Portu‑
gal, Baía, 15 de Setembro
Em especial, conhecemos várias descrições do modo de 1560», Monumenta Bra-
siliae, III, p. 272.
magnificente como eram muitas vezes recebidos os jesuítas
tanto por leigos como por religiosos. Neste contexto, gosta-
ríamos de tomar como exemplo o relato de Fernão Cardim
descrevendo a sua viagem pelo Brasil em 1590. Em Santa Cruz,
junto a Porto Seguro, Cardim e os seus companheiros foram
recebidos por um sacerdote com uma refeição de várias igua‑
rias servidas em nada menos que porcelana da Índia e prata.
Posteriormente, numa fazenda do colégio, os missionários
foram agraciados com aves, manjar branco e muitos outros
acepipes antes de se deitarem em camas luxuosas. Refere

139
ainda o mesmo texto a organização de festas com jogos, lutas, o
corridas de touros à chegada deste grupo de jesuítas e a oferta c
de animais como bugios (espécie de macacos) ou papagaios f
12
«Carta de Fernão Cardim aos mesmos.12 c
ao Geral, 1 Maio de 1590»,
Tratados da terra e gente do n
Brasil, op. cit., p. 244.
Vestindo-se no Brasil à
e
Preferencialmente, os padres, irmãos e noviços deviam ves‑ a
tir-se o mais parecido possível com os seus congéneres em r
Portugal. No que se refere aos sacerdotes, o seu vestuário
incluía roupeta preta, manto de pano preto, calças, gibão, s
camisa, ceroulas, barrete, meias em saragoça (tecido de lã A
fabricado em Saragoça) e sapatos ou botas. Os irmãos coadju- j
tores andavam de batina ou roupeta e capa negra como a capa c
dos irmãos escolásticos e padres, sendo, todavia, a roupeta
dos coadjutores meio palmo mais curta. Também vestiam algu‑ A
mas roupetas pardas, quando iam trabalhar. O vestitum, tanto
dos sacerdotes como dos noviços, durante as viagens, incluía O
ainda chapéu, lenço, escófia (coifa de cabeça), livros de horas, r
rosário, breviários, mantéos ou capas, sombrinhas, bordões e
e cabaças às costas. Em 1592 o Visitador P. Cristóvão tornou J
ainda obrigatório o uso do manto entre os jesuítas durante as p
13
Nóbrega, M. da, «Infor‑ idas à igreja e na altura de comungar.13 d
mação das Terras do Brasil
para os padres e irmãos de Por a terra ser quente e rica em algodão, o vestuário dos s
Coimbra (1549)», op. cit.,
p. 427. membros das comunidades jesuítas era sobretudo executado t
no mesmo material. Era ainda comum vestuário em panos ç
importados da Europa, entre eles, veludos, damascos, tafetás, c
panos finos ou grossos, e linho. Na opinião de Belchior s
Coelho, «o grandíssimo calor» recomendava vestuário em sarja
italiana. As meias deviam ser de sarja e os calções em linho d
bocaxim (pano de linho semelhante a lã). Considerava ainda u
absolutamente necessário que fossem dadas camisas limpas s
14
«Enformação dalgumas
cousas do Brasil» [por Bel‑
aos padres à quarta-feira e ao sábado.14 Pela mesma razão, o t
chior Cordeiro, 1577]», op. Visitador Gouveia recomendava o uso de escarpins (calçado d
cit., p. 195.
de pano que se colocava debaixo das meias) e chinelos. A
A aspereza das selvas e a necessidade de se passar pelo meio d
de água durante as viagens levava a que os missionários c

140
optassem pelas «alpercatas» locais, espécie de chinelos feitos
com fios de cânhamo curtido. Em 1594, o uso das alpercatas
foi limitado aos que delas necessitassem por razão de ofício,
como os pedreiros, carpinteiros, e ainda aos que trabalhavam
no campo e com gado. Encontramos igualmente referência
à importação de «borrachas boas para caminhar» numa carta
escrita por um jesuíta em 1565.15 Finalmente, alguns jesuítas
15
Cabral, L. Gonzaga, Jesuí-
tas no Brasil no séc. XVI,
andavam descalços (tratava-se aliás dum costume dos homens São Paulo [etc.], Ca Melho‑
ramentos de S. Paulo, 1925,
ricos e honrados da terra). p. 210.
Esta acomodação no vestido e no calçado foi mesmo con‑
siderada excessiva pela hierarquia romana. Em 1589, Claudio
Acquaviva proibiu o costume dos padres no Brasil vestirem
jaquetas ou coletes vermelhos, a não ser em caso de pres-
16
crição médica e devido a grave enfermidade.16 Leite, S., História da Com-
panhia de Jesus no Brasil,
op. cit., III, p. 423.

A diversidade das actividades jesuítas

Os jesuítas eram os únicos religiosos presentes em muitas


regiões brasileiras. Devido à escassez de clérigos seculares
e regulares, mesmo em cidades importantes como o Rio de
Janeiro, os jesuítas pregavam e confessavam a maior parte dos
portugueses e restantes fiéis. Como lemos numa carta de José
de Anchieta de 1564, a escassez de sacerdotes obrigava os
17
Anchieta, José de, «Carta
seus companheiros a um intenso programa religioso, consis- quadrimestral de Maio a Se-
tindo na celebração de duas missas diárias, fazer duas prega‑ tembro de 1564», Anchieta, J.,
Cartas, informações, frag-
ções ao Domingo e visitar algumas aldeias.17 Os jesuítas dos mentos históricos e sermões,
Rio de Janeiro, Civilização
colégios costeiros eram ainda requisitados para distribuírem os Brasileira, 1933, p. 36.
sacramentos aos marinheiros e passageiros dos barcos.18 18
Leite, S., História da Com-
panhia de Jesus no Brasil,
A catequização era naturalmente uma actividade primor‑ op. cit., I, p. 19.
dial entre as actividades religiosas dos jesuítas. Nesse sentido,
uma das obrigações dos professos era darem quarenta dias
seguidos de catequese aos meninos e aos «incultos».19 Os jesuí- 19
Idem, op. cit., III, p. 402.
tas davam a doutrina aos escravos e aos meninos, à tarde, nos
dias de festa e aos domingos. Curiosamente, na opinião de
20
Amaro Gonçalves, muitos escravos frequentavam a catequese «Carta de Amaro Gonçal‑
ves a Francisco de Borja,
durante os dias de semana para fugirem às suas tarefas em Baía, 16 Janeiro 1568», Mo-
numenta Brasilia, op. cit.,
casa dos senhores.20 IV, p. 440.

141
Para além da realização de actividades meramente reli‑ c
giosas, os jesuítas desempenharam um sem número de outras P
actividades, destacando-se a sua actividade assistencial de o
atendimento aos doentes. Como nos informa Amaro Gon- p
çalves na mesma missiva supra, os padres da Companhia não n
só visitavam doentes, como faziam as camas destes e traziam
21
Ibidem. água, lenha e comida para os mesmos.21 m
Gostaríamos sobretudo de destacar que os jesuítas se n
distinguiram como enfermeiros e farmacêuticos. Para além das d
celebérrimas boticas dos colégios, todos os aldeamentos jesuí‑ E
ticos deviam ter enfermaria, existindo ainda enfermarias femi‑ m
ninas e masculinas em muitos engenhos e muitas fazendas e
22
Leite, S., «Serviços de saúde
da Companhia de Jesus no em posse da Companhia.22 De igual modo, introduziu-se o c
Brasil de 1549‑1760», Bro- costume dos jesuítas visitarem e auxiliarem os presos nas à
téria 54 (1952), 386-387.
suas tarefas diárias, tais como lavar vasos ou carregar água. h
Na prisão de S. Salvador da Baía, os jesuítas asseguravam a n
alimentação dos presos um dia por semana. Esta actividade foi t
aliás considerada tão importante, que levou mesmo à criação
nos principais colégios, de oficiais com estas duas funções, c
23
Leite, S., Suma Histórica o procurador dos pobres e o procurador dos encarcerados.23 d
da Companhia de Jesus no
Brasil, op. cit., p. 168. De facto, a legislação da Companhia de Jesus determi‑ l
nava que todos os membros tivessem que se ocupar, embora e
em escala diferente, com tarefas manuais. Como demonstra e
exemplarmente a destituição de Ambrósio Pires em 1547 p
que de reitor passou a cozinheiro por ordem de Nóbrega d
ou a transmissão de poder do Provincial Marçal Beliarte ao a
seu sucessor Pero Rodrigues em 1584, durante a qual ambos o
lavaram louça e serviram à mesa, a realização deste tipo de
tarefas era considerada prova importante da virtude da humil‑
dade necessária aos jesuítas, incluindo os jesuítas ocupando A
24
Leite, S., História da Com- cargos hierárquicos importantes.24
panhia de Jesus no Brasil,
III, p. 403. Aliás, convém recordar que nas Constituições da Compa- O
nhia de Jesus está escrito que parte dos seus membros, os a
assim chamados coadjutores temporais se devem dedicar à c
realização de tarefas manuais. De acordo com os primeiros p
e segundos catálogos [por primeiros e segundos catálogos p
entende-se listas com informação biográfica básica acerca de e

142
cada um dos membros duma casa ou instituição jesuíta] da
Província do Brasil consultados, destacavam-se os enfermeiros,
os dispenseiros, os porteiros de carro, os carpinteiros, os
pedreiros, os alfaiates ou roupeiros, os porteiros, os cozi-
nheiros, os sapateiros e os hortelãos.25
25
Leite, S., «Os jesuítas e os
primeiros passos da indús‑
No entanto, foi sobretudo a necessidade que obrigou tria no Brasil (século XVI)»,
Brotéria 24 (1937), 193.
muitos jesuítas, inclusive padres ocupando importantes lugares
na hierarquia da Companhia, a ocuparem-se com a realização
de utensílios para a agricultura, a tecelagem, e a ferragem.
Em períodos de carestia alimentar, os jesuítas trocavam os
mesmos objectos por alimentos, com os índios. Por exemplo,
em São Paulo, o trabalho do irmão ferreiro constituía a prin‑
cipal moeda de troca para os géneros alimentares necessários
26
«Carta de Manuel da Nó-
à comunidade.26 Em simultâneo, em especial, os irmãos com brega a Luís Gonçalves da
Câmara, S. Vicente, 15 de
habilidades manuais, dedicavam parte do seu dia-a-dia a ensi‑ Junho de 1553», Monumenta
nar estes ofícios aos índios locais, não só nos colégios, como Brasilae, 1956, I, p. 503.

também no sertão e nas aldeias.


Dado os jesuítas do Brasil se terem distinguido pelo seu
conhecimento das culturas e das línguas locais, assim como
das línguas africanas, para além da celebração da missa nas
línguas locais, serviam eles, com frequência, de intérpretes
entre os colonizadores europeus e os povos locais ou os
escravos. De igual modo, notabilizaram-se membros da Com‑
panhia de Jesus em alguns dos mais importantes trabalhos
de engenharia de estradas, hidráulica e militar, assim como
acompanhantes espirituais dos bandeirantes em busca de
ouro, prata e pedras preciosas.27 27
Leite, S., História da Com-
panhia de Jesus no Brasil,
op. cit., III, p. 590.

Alguns dados relativos à organização do quotidiano

O quotidiano dos jesuítas no Brasil era bastante variado, dadas


as suas muitas actividades. Antes de mais, tem que ser tido em
consideração o facto de muitos destes jesuítas passarem uma
parte considerável do tempo em viagem. Para dar um exem‑
plo, o P. João Azpilcueta escreveu em 1550, que, às segundas
e terças feiras visitava três ou quatro aldeias, às quartas e

143
28
«Carta de João de Azpil‑ quintas feiras visitava duas ou três aldeias.28 De facto, muitas v
cueta aos padres e irmãos
de Coimbra, Baía, 28 de vezes, os padres eram obrigados a dormir em casas de leigos, c
Março de 1550», Monumen-
ta Brasilia, vol. I, p. 183. ou pelo menos a comer fora de casa, práticas aliás também
condenadas pela hierarquia. B
Inicialmente, no Verão, os jesuítas, que se encontravam D
no interior de comunidades estáveis, levantavam-se às 4h, a
jantavam às 10h, ceavam às 18h e deitavam-se às 20h45. n
No Inverno, o horário era atrasado uma hora. Todavia, este
horário foi alterado pelo Visitador Cristóvão Gouveia em 1586. p
De acordo com um documento das autoridades romanas, R
confirmando as ordens do mesmo visitador, entre o primeiro c
dia da Quaresma e 30 de Abril, os jesuítas deveriam levantar‑se p
às 4.30h da manhã, jantar às 11h, cear às 19h e deitar-se às r
21.15h. Entre 1 de Maio e 31 de Agosto foi determinado que q
os jesuítas se levantassem às 5h da manhã, jantassem às 11h, d
ceassem às 19h e se deitassem às 21.45h. Entre 1 de Setembro c
e o primeiro dia da Quaresma, os jesuítas deviam ser desper‑ r
tados às 4h da manhã, jantar às 10h, cear às 18h e deitar-se d
às 20.45h. Em 1592, a Congregação Provincial alcançou que
fossem introduzidos horários diferentes segundo o clima. Nos p
colégios e nas residências do Pernambuco e da Baía, todos os t
membros das comunidades jesuítas deviam levantar-se às 4h l
da manhã, com excepção da Quaresma. No Colégio do Rio de f
Janeiro e na respectiva residência a campainha para o levantar e
tangia às 4h da manhã entre Setembro e a Quaresma, e um p
29
Leite, S., História da Com-
panhia de Jesus no Brasil, hora mais tarde entre a Quaresma e Setembro.29 e
op. cit., III, pp. 418-419. Gradualmente, foram introduzidos a oração, o exame à d
noite e as ladainhas diárias. Desde o início, fazia-se uma hora d
de oração na parte da manhã, sendo o exame de consciência a
realizado de manhã às 10h30 e à noite. A Eucaristia era obri‑ j
gatória aos Domingos e nos dias santos. Sabemos igualmente
que no Brasil a duração das aulas variava entre duas horas na C
manhã e duas horas à tarde e duas horas e meia de manhã
e duas horas e meia à tarde. Constituía excepção o Colégio S
de S. Paulo de Piratininga, pois para permitir que os meninos m
locais fossem pescar para as suas famílias, os padres davam u
as quatro horas de aula, em bloco, durante a tarde. Por sua q

144
vez, o Sábado era o dia destinado às disputas estudantis nos
colégios jesuítas do Brasil.30
30
Dallabrida, N., «O colégio
jesuítico da Vila do Desterro
O quotidiano dos membros das comunidades jesuítas do e a expansão portuguesa no
Atlântico Sul e Aldeamentos
Brasil era naturalmente marcado por práticas de mortificação. portugueses: jesuítas e cari‑
jós», Brotéria 157 (2003),
Devia-se proceder à disciplina todas as sextas-feiras. Durante 290.
as festividades, os padres, irmãos, leigos e meninos discipli-
31
navam-se em público.31 Carta de Manuel da Nó-
brega a Simão Rodrigues,
Em 1585, o P. Gouveia determinou a leitura dum livro de Baía, finais de Julho de
1552, Monumenta Brasiliae,
piedade, por exemplo, a Imitação de Cristo ou o Martirológio I, p. 371.

Romano antes das refeições serem servidas. Sempre que as


condições económicas o permitiam, as casas jesuítas optavam
por um regime gastronómico equilibrado. As duas principais
refeições – o jantar e a ceia – eram antecedidas pelo antipasto,
que era uma espécie de aperitivo, de fruta fresca. O pão era
de mandioca, não faltando ainda nos cardápios peixe fresco e
carne de vaca fina ou tenra. A galinha e porco eram conside‑
rados géneros alimentares particularmente adequados para os
32
doentes, assim como o vinho.32 Osswald, C., «Hábitos ali-
mentares dos Jesuítas em
Como demonstram as cercas aprazíveis com inúmeras Portugal, na Índia e no
Brasil (sécs. XVI-XVIII)»,
plantas, muita água, porventura tanques com peixes, os jesuí- Portas Adentro: comer, vestir
e habitar na Península
tas do Brasil reconheciam a importância da recreação e do Ibérica (séculos XVI-XVIII),
ed. Isabel dos Guimarães
lazer para melhor ajudar à conservação da saúde. Durante as Sá e Máximo Garcia Fer‑
férias e períodos de recreação difundiu-se a prática de jogos, nández, Coimbra-Valladolid,
Imprensa de Coimbra-Im-
entre eles, o jogo do taco, uma espécie de jogo de bilhar. Esta prensa de la Universidad de
Valladolid, 2010.
prática foi mesmo considerada perniciosa por Roma. Isto é,
em 1564, Juan de Polanco, por comissão do Geral Francisco
de Borja, proibiu o jogo do bilhar em dias de festa ou aos
domingos. Os responsáveis brasileiros deviam tomar especial
atenção a que os padres não trocassem as confissões pelo
jogo do taco.33 33
«Carta de Manuel de Juan
de Polanco, Roma, 22 de
Julho de 1564», Monumenta
Brasiliae, op. cit., 1945, V,
Conclusões p. 369.

Sem dúvida, o quotidiano jesuíta no Brasil teve um carácter


muito próprio. Antes de mais, parte dos edifícios jesuítas tinha
uma função distinta dos colégios europeus. De igual modo, o
quarto voto de ir em missão ad majorem Dei gloriam assumiu

145
no Brasil um relevo especial, pois os jesuítas passavam grande
parte da sua vida em viagem.
Em viagem e sobretudo no início da sua presença no
Brasil, os jesuítas encontraram inúmeras dificuldades. Todavia,
a sua conhecida estratégia de acomodação rapidamente tornou
a vida em missão do inferno em paraíso. Os colégios e cercas
encontravam-se, por norma, em sítios aprazíveis, adaptando‑se
e aproveitando os jesuítas ao máximo as potencialidades N
do Brasil no que se referia à alimentação (fruta fresca) e ao c
vestuário (algodão). s
Os jesuítas eram a ordem missionária mais numerosa, h
com boa formação e mais espalhada pelo Brasil. A juntar a l
estas razões, a necessidade obrigava os jesuítas a desempe‑ q
nhar uma enorme variedade de actividades religiosas e outras, s
de diferente carácter. A enorme variedade de tarefas significou r
que os vários membros da Companhia tivessem quotidianos p
bastante diferentes entre si. t

T
s
e
o
t
d
e
a
p
s
h
s
r

t
b
A

146
Charles Taylor
e a secularização Elton Ribeiro *

No ano de 2007, Charles Taylor (filósfofo canadiano, nas‑


cido em 1931) venceu o prémio Templeton Prize 2007 1, pela 1
Sobre o prémio: http://
www.templetonprize.org
sua contribuição filosófica para a dimensão espiritual do ser (visitado em 21.01.2010).
humano numa uma época secularizada, marcada pela vio‑
lência e pela intolerância. Contra estes problemas e outros
que advêm de uma sociedade cada vez mais fragmentada em
sectores independentes, Taylor afirmou que apenas uma
reflexão atenta à dimensão espiritual da vida humana pode
produzir um discurso sensato sobre a grandiosidade da exis‑
tência humana no mundo.
Autor de importantes trabalhos em filosofia, Charles
Taylor tem-se destacado também pelo seu empenho político e
social em favor de um mundo melhor. Fruto deste empenho 2
Taylor, Charles, A Secular
e da sua reflexão, lançou, também no ano de 2007, a sua Age, Cambridge, Harvard
University Press, 2007.
obra monumental A Secular Age 2, que, actualmente, está a ser
traduzida para português 3. A abrangência e a profundidade 3
A tradução da obra está
a ser realizada pela Editora
de A Secular Age, fez com que fosse classificada por muitos Unisinos, Universidade
UNISINOS, São Leopoldo
estudiosos como um trabalho fundamental para quem deseja – Brasil. O lançamento está
previsto para Abril de 2010.
aprofundar a sua própria reflexão sobre a sociedade contem‑
porânea e a religião. A relevância cultural da reflexão apre‑
sentada por Taylor pode ser observada na releitura que faz da
história da secularização, na diversidade dos exemplos apre‑
sentados e na profundidade filosófica de suas análises sobre a
religião e sua incidência prática na vida das pessoas.
Um filósofo que não esconde a sua fé cristã, mas que
tenta compreendê-la em relação ao tempo que vive, é uma
boa apresentação de Charles Taylor 4 e do seu último trabalho 4
Taylor, Charles, A Catholic
Modernity?, Oxford, Oxford
A Secular Age. Isto não quer dizer que o seu trabalho filosó‑ University Press, 1999.

* Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana – Roma.

Brotéria 170 (2010) 147-156 147


fico seja uma defesa da fé cristã ou que falte ao rigor cientí‑
fico necessário a toda a investigação filosófica. Na verdade, t
em A Secular Age, Taylor procura compreender melhor este c
processo cultural chamado secularização e seu influxo na vida n
das pessoas e da sociedade ocidental. É esta investigação e os e
seus resultados que pretendo discutir aqui em grandes linhas. c
f
c
1. Uma narrativa da secularização c
t
Taylor inicia a primeira parte de seu trabalho com uma t
pergunta: «porque era virtualmente impossível na sociedade e
ocidental não crer em Deus, por exemplo, em 1500, enquanto d
em 2000, para muitos de nós, esta escolha aparece não apenas a
5
Idem, A Secular Age, 27. fácil, mas inevitável?» 5. Para responder a esta questão aponta t
três motivos, ou como ele chama, três muralhas que susten‑ e
tavam a crença em Deus em 1500. Primeiramente, o mundo u
natural era entendido como um cosmos ordenado que funcio‑ p
nava sob as ordens de Deus. A intervenção divina era reconhe- d
cida nos grandes eventos naturais como tempestades, epide-
mias, mas também em grandes momentos de fertilidade e r
prosperidade. Em segundo lugar, Deus era necessário para a o
existência da própria sociedade. Não apenas no sentido óbvio s
de Criador. A própria vida das várias associações que forma‑ v
vam a sociedade estava intrinsecamente associada aos ritos p
e aos actos de devoção com os quais as pessoas e a socie‑ a
dade expressavam as suas crenças. Finalmente, vivia-se num v
mundo encantado, povoado por espíritos e demónios. No i
mundo encantado dos nossos antepassados estavam presentes r
espíritos bons que actuavam ajudando as pessoas e espíritos c
maus que as prejudicavam. No imaginário social, estes espí‑ i
ritos tinham o poder, por exemplo, de curar enfermidades,
evitar desastres e ajudar na boa colheita. Esta mentalidade R
mágica era difusa também em objectos especiais que gozavam e
de uma força milagrosa, como as relíquias e as velas abençoa‑ o
das. Numa sociedade assim era absurdo duvidar da existência I
de Deus. m

148
Evidentemente, esta estrutura rígida gerava na sociedade
tensões entre um estilo de vida voltado para os valores trans‑
cendentes e um estilo de vida dirigido a realizações huma‑
nas quotidianas. Para Taylor, no cristianismo esta tensão era
equilibrada na constituição de duas classes de pessoas que se
completavam: os clérigos e os leigos. Cada classe possuía uma
função específica na sociedade. Cuidar das coisas sagradas ou
cuidar das coisas profanas. Esta estruturação hierarquizada,
com a sua lógica, os seus códigos e as suas instituições rígidas,
tinha momentos de descanso. Taylor chama-lhe anti‑estru-
tura, como por exemplo, o carnaval, como momento de festa
e de subversão das normas vigentes. Também a concepção
do tempo, fortemente marcada pelas celebrações religiosas e
as festas litúrgicas, gerava uma certa ordem e estrutura no
tempo vivido. A Semana Santa, com a comemoração da paixão
e morte de Jesus; a vida dos santos: tudo isso fazia do tempo
uma realização da ordem sagrada que organizava a vida das
pessoas. Tudo muito diferente do tempo uniforme e secular
da modernidade, fruto da revolução científica.
Segundo Taylor, o progressivo desaparecimento destas
razões anteriores deve ser compreendido juntamente com
outra razão importante, a saber, uma crescente confiança do
ser humano em si próprio. Enquanto anteriormente o indi-
víduo tinha uma personalidade porosa às influências, uma
personalidade permeável e em continuidade com o cosmos e
a transcendência, na modernidade o indivíduo torna-se cada
vez mais confiante na capacidade de definir a sua própria
identidade, mesmo que em descontinuidade com o resto da
realidade. Tem-se, assim, uma nova concepção de indivíduo,
confiante na própria capacidade de criar uma ordem moral
imanente, sem referências a uma ordem externa.
Este cenário anterior constitui uma preparação para a
Reforma, que para Taylor é a mais importante causa de toda
esta transformação da sociedade. A história da Reforma possui
os seus antecedentes em pequenas reformas no interior da
Igreja, onde muitos cristãos procuravam uma espiritualidade
mais pessoal e interior, menos reduzida simplesmente a práticas

149
devocionais, que na maioria das vezes eram frutos de uma d
mentalidade mágica e que tinha como intenção controlar a d
acção de Deus. Além disso, estas pequenas reformas lutavam c
contra uma pastoral do medo, assente no pecado e na conde‑ r
nação eterna, produzindo, na maioria dos casos, ansiedade e a
angústia, mais do que conversão e vida nova. r
Com esta descrição anterior é mais fácil de perceber o
o sucesso de Lutero com sua teologia da salvação pela fé.
A soberania é de Deus e todos estão em igual situação. Deus, d
o sagrado, não pode ser controlado e subjugado por pessoas, d
lugares, objectos e ritos. A tentativa é a de viver a vida cristã h
no ordinário, no quotidiano que é acessível a todos e não p
apenas a alguns poucos iluminados. Para Taylor, a Reforma p
ataca o cosmos encantado, oferecendo um humanismo, e pro‑
c
move um tipo de sociedade onde o objectivo é a realização
r
humana.
p
Mas também há outros elementos que são postos em
r
questão nesta história. Por exemplo, o Nominalismo que
d
defendia a vontade absoluta de Deus, ou o Renascimento que
l
procurava ordenar o mundo, seja através da razão, nas ciên‑
d
cias ou através da imaginação, nas artes. Surge ainda uma
e
sociedade disciplinadora que, fruto do pessimismo de alguns
f
reformadores em relação à situação do pecado e da existência
s
do ser humano, promovia menos a fé e mais um forte deísmo,
entendido dentro de um horizonte jurídico-penal, fortemente p
repressor. n
Todo este complexo conjunto de situações e aconteci‑
mentos irá produzir aquilo que Taylor chama de imaginário d
6
Idem, Modern Social social moderno 6. Taylor descreve este imaginário como uma a
Imaginaries, London, Duke
University Press, 2004. ordem moral entre os indivíduos que emerge do resultado de D
uma espécie de acordo social, o qual anula as hierarquias e b
promove uma harmonia de interesses. Um imaginário já não P
fundado em estruturas religiosas, mas no consenso entre as c
pessoas. Evidentemente, este imaginário produz não apenas v
uma nova ordem moral para a vida social, mas uma nova f
consciência do divino e da vida humana quotidiana. O ser m
humano passa a definir-se, já não a partir de uma dependência s

150
de uma ordem superior, mas pela sua autonomia e capacidade
de autocontrole. Assim, vão surgindo novas práticas sociais,
como, por exemplo, a objectivação da economia, com a sua
racionalidade instrumental; a promoção da esfera pública e a
auto-regulação democrática. Surge, então, um novo imaginá‑
rio social secular, que já não tem o seu fundamento em Deus
ou em alguma antiga tradição, mas, sim, na razão.
Não é difícil imaginar um quadro imanente como lugar
de realização concreta deste novo imaginário social. A perda
do sentido da ideia de Deus como necessária para a ordem
humana social e a redução do projecto humano à realização
pessoal do indivíduo, configuram parte desta viragem antro‑
pológica. A noção tradicional de providência divina, o ideal
cristão de ascética, os ideais de honra e heroísmo, o fervor
religioso, sofrem uma profunda diminuição de valor para as
pessoas que passam a exaltar a razão e a disciplina, a tole‑
rância e a benevolência. Cada vez mais ganha força a ideia
de que a natureza humana pode florescer melhor quando
liberta das crenças e das práticas tradicionais que na maioria
das vezes ofuscam e bloqueiam as fontes mais genuínas de
expressão humana. É o ideal de auto-realização que ganha
forças e que funda uma ordem moral autónoma, não neces‑
sitando de reforços transcendentes. Tudo isso ajudado pelo
potencial cognitivo promovido pelas ciências modernas que
nesta transição ganham cada vez mais força7.
7
Idem, The Ethic of Authen-
ticity, Cambridge, Harvard
Esta ordem impessoal onde Deus é visto como o arquitecto University Press, 1992.

do universo, actuante apenas nas leis imutáveis da natureza,


ajuda a criar este clima de desencantamento. Evidentemente
Deus ainda permanece como o criador, ou seja, o maior
benfeitor ao qual os seres humanos devem toda a gratidão.
Porém, a vida quotidiana é cada vez mais marcada pelo papel
crescente da economia e da racionalidade instrumental. Deus
vai tornando-se uma realidade secundária. A ordem social é
fruto do trabalho humano, que juntamente com a realização
moral, é resultado do esforço humano que se empenha respon-
savelmente numa realidade concreta e imanente.

151
2. Uma explosão de efeitos a
p
Este tipo de humanismo, que se vai formando a partir da q
narração que Taylor compõe, acaba por gerar aquilo que ele r
chama de efeito nova. A comparação usada por Taylor é a de d
um tipo de explosão estrelar que se diversifica em várias ten‑ É
dências. Ou seja, este novo tipo de humanismo irá produzir c
uma série de efeitos que atingirá toda a população. Taylor d
8
Idem, Sources of the Self: já tinha desenvolvido esta reflexão em Sources of the Self 8. T
The Making of the Modern
Identity, Cambridge, Harvard Parte de sua tese é a de que depois do século XVIII e durante m
University Press, 1985.
o século XIX surgiram nas sociedades modernas ocidentais, m
vários ideais alternativos que apontavam na direcção de um
movimento romântico que tinha no ideal de autenticidade, na m
expressão dos sentimentos e no esteticismo os seus principais a
efeitos. e
Todo este movimento não poderia deixar de produzir um a
novo horizonte de sentido onde o ideal romântico de beleza, a
uma atitude de proximidade com a natureza e a surpresa O
diante das novas e surpreendentes descrições da ciência são e
importantes. Este novo horizonte, para Taylor, fica a meio da b
estrada entre o ateísmo e o teísmo. É um espaço interme- u
diário de uma espiritualidade indefinida e de uma nova atitude b
diante da moral que passa cada vez mais a aceitar os limites f
da condição humana descritos pela ciência. Ora, confrontado d
com o ideal moderno anteriormente descrito de educação, p
autodisciplina, respeito das leis, civilidade, acontece aquilo p
que Taylor várias vezes descreveu como mal-estar da moder‑ b
nidade. Mal-estar ocasionado por um mundo plano e vazio, a
onde cada pessoa deve encontrar o seu próprio caminho. Um
mundo desencantado, onde um tipo de humanismo imanente t
desperta a questão do sentido da vida, mas não permite solu‑ t
ções que não sejam também elas apenas imanentes. s
Neste complexo processo de transformação, para Taylor, v
a melhor forma de compreender a secularização não é a de m
investigar a passagem de uma cultura crente para uma cultura v
secular. A melhor forma é fazer atenção aos novos horizontes n
de compreensão do sagrado que vão surgindo. Isto porque, t

152
a tese de Taylor é a de que a secularização não significa sim‑
plesmente declínio da religião. Na verdade, é mesmo possível
questionar o passado como sendo uma era de ouro para a
religião. A secularização comporta uma mudança na forma
das pessoas se confrontarem com a religião e com o sagrado.
É verdade que em muitos países é possível constatar um cres‑
cente declínio nas práticas e crenças religiosas, e mesmo um
desaparecimento de Deus do espaço público. Mas, segundo
Taylor, toda esta transformação da sociedade descrita anterior‑
mente comporta não um questionamento absoluto da religião,
mas das suas formas arcaicas de realização.
A transformação pela qual a sociedade passa pode ser
mais bem compreendida a partir de uma delimitação temporal,
a que Taylor chama época da mobilização. Datada entre 1800
e 1950, Taylor encontra um movimento onde muitas formas de
antigas religiosidades decaem ou mesmo desaparecem. Mas,
ao mesmo tempo, neste período, novas formas vão surgindo.
O que caracteriza estas novas formas é a dificuldade inicial
em ter um carácter institucional forte. Na verdade, mesmo que
busquem antigas formas religiosas, são estruturadas dentro de
uma nova sensibilidade de valorização da autenticidade e da
busca pessoal. Por autenticidade deve-se compreender uma
forma de interpretação da própria existência, onde cada um
deve buscar e seguir o seu próprio modo de vida, visando a
própria felicidade, e não se submetendo a modelos sociais
pré-fixados, seja pela tradição, seja pela religião. Não que esta
busca não existisse no passado, mas apenas que agora ela
assume um carácter mais individual, intransferível e único.
Neste percurso interpretado por Taylor, o sagrado assume
três distintas caracterizações, que por sua vez, correspondem a
três distintas épocas. Primeiramente, o elo do indivíduo com o
sagrado acontecia através da Igreja. Num segundo momento,
vai surgindo uma maior liberdade de escolha acerca da deno‑
minação religiosa a seguir-se. Finalmente, o indivíduo não se
vincula mais a uma igreja ou a uma doutrina, mas a um cami‑
nho, a uma proposta de busca espiritual. A intuição pessoal
torna-se o guia mais seguro e a fonte espiritual mais confiável.

153
Para Taylor, isto é visível na juventude contemporânea. A juven- s
tude valoriza a espontaneidade e a busca pessoal. Busca uma s
experiência directa e pessoal com o sagrado. É uma luta contra a
uma vida pequena e enclausurada numa ordem simplesmente v
imanente. Mas, ao mesmo tempo, uma luta contra formas T
moralistas, jurídicas e institucionalizadas, que não valorizam o a
indivíduo e a experiência. a
A intuição de Taylor é que a cultura da secularização d
não gera necessariamente uma crise total, nem uma negação p
absoluta da religião. Isto acontece porque, segundo Taylor, e
para muitos, a sede da transcendência continua a ser presente l
como uma forma de religião mínima. Daí a tese de Taylor
de que a religião deve caracterizar-se pela fé numa reali‑ C
dade transcendente e na aspiração a uma transformação que
ultrapasse a mera realização humana ordinária. Perante esta A
caracterização, para Taylor, a cultura actual vive uma crise não p
da religiosidade, mas de certa configuração histórica: a cristan‑ m
dade. Ao mesmo tempo, é possível constatar o aparecimento a
de novas modalidades de vivência religiosa. Novas formas d
de oração e meditação. O crescimento de obras de caridade. d
Grupos de estudo e aprofundamento da fé. Peregrinações.
Modalidades diversas de grupos de partilha e vida espiritual. T
É a sobrevivência da religiosidade, da transcendência, numa n
sociedade secularizada. Então, uma possível tendência seria a T
de postular que o futuro do cristianismo, por exemplo, estaria a
menos na força das instituições e mais nas intuições daqueles p
que vivem a fé cristã e são, com as suas próprias vidas, porta- d
dores da mensagem evangélica a outros. Isto porque, para i
Taylor, vivemos numa época de profundas transformações e o
de busca espiritual. c
Diante de toda esta narrativa que conduzi até aqui, O
através do pensamento de Taylor, fica claro a sua tese de que, z
na situação actual da sociedade contemporânea, a fé religiosa à
deve constantemente confrontar-se com opções seculares e q
imanentes que tendem a produzir um horizonte fechado, mar‑ q
cado fortemente pelo individualismo moderno, pela razão
instrumental, pela compreensão do tempo de forma linear e d

154
secularizada. Este horizonte tende a suprimir todo o tipo de
soluções seguras e definitivas. Cada pessoa, conforme a sua
atitude crítica, acolhe mais ou menos tal horizonte na própria
vida. Ao acolher este horizonte, cada um enfrenta dilemas que
Taylor diz encontrar na situação actual como, por exemplo,
as leituras meramente psicológicas do mal e do pecado ou
as acusações de que a religião prejudica, ou, pelo menos,
dificulta a realização pessoal. Para Taylor, hoje a maioria das
pessoas encontram-se numa posição intermediária entre os
extremos de uma religião transcendental e de um materia‑
lismo redutor da vida humana.

Conclusão

Ao terminar este breve comentário sobre a obra de Taylor,


poderia usar as próprias palavras dele e afirmar: «é claro que
meu mapa é excessivamente esquemático» 9. Ora, o que tentei
9
Ibidem, p. 496.

apresentar aqui foi um pequeno mapa da discussão em torno


da secularização, tal como Taylor a entende. Assim, gostaria
de terminar fazendo duas breves considerações.
Em primeiro lugar, a principal ideia presente na obra de
Taylor é a interpretação das mudanças presentes no imagi-
nário social da sociedade ocidental. Por imaginário social
Taylor entende o modo pelo qual os indivíduos imaginam
a própria existência social e compõe um horizonte de com-
preensão da realidade. É a partir de um determinado horizonte
de compreensão, de um determinado imaginário social que os
indivíduos estruturam as suas expectativas, os seus desejos,
os seus valores, as suas crenças, as suas acções no mundo
concreto, as suas auto-interpretações, as suas relações sociais.
Ora, na sociedade contemporânea, o processo de seculari-
zação produz neste imaginário social a desconfiança quanto
à possibilidade de uma visão unitária da religião, a certeza de
que a pluralidade é um dado de facto, e a interpretação de
que a secularização é uma via sem retorno.
Uma segunda consideração deve ser procurada na tese
de Taylor de que, apesar das discussões sobre o declínio da

155
prática religiosa, a sociedade contemporânea não pode ser
entendida simplesmente como irreligiosa. Na medida em que,
enquanto as antigas formas de religiosidade vão enfraque‑
cendo, novas formas vão surgindo e ganhando força. Estas
novas formas são tentativas de viver a fé e a espiritualidade
numa nova situação, onde a religião já não é algo partilhado
por todos. Assim, a secularização não implica a ausência da
religião ou o fim das exigências espirituais do ser humano.
Pelo contrário, implica o desenvolvimento de novos impulsos
espirituais, porém muito mais fraccionados do que no passado.
A
g
O enfraquecimento social das instituições religiosas repre‑ t
senta a crise de certa configuração histórica. Para Taylor, o ser T
humano ainda leva dentro de si um desejo de plenitude que
ultrapassa a realização humana no mundo histórico. O perigo u
da secularização é justamente o de construir um imaginário 6
social pequeno e fechado, não levando em consideração as n
questões postas ao ser humano pela religião. d
Finalmente, penso que o trabalho de Taylor é uma impor‑
tante oportunidade para a reflexão acerca do tema da seculari- e
zação na sociedade ocidental contemporânea. É uma discussão p
sobre as causas e as consequências da secularização, abando‑ d
nando diagnósticos simplistas sobre a crise religiosa actual e e
seus possíveis culpados. Na verdade, o trabalho de Taylor o
é  uma busca corajosa de uma reflexão serena. Uma busca f
que Taylor entende também ser uma melhor compreensão –
daquilo que ele chama pedagogia de Deus. Uma pedagogia C
que vai educando lentamente a humanidade, convertendo-a e I
transformando-a internamente. a
(
r
n
c

156
J. D. Salinger,
À Espera do Centeio Inês Lage Pinto Basto *

A morte de J. D. Salinger, no dia 27 de Janeiro último, che‑


gou-nos pelos jornais portugueses em excertos quase sempre
transladados das seis páginas de obituário que o New York
Times dedicou ao «eremita mais famoso das letras americanas».
The Catcher in the Rye, o livro que conferiu a Salinger
uma popularidade imediata e duradoura, já vendeu mais de
65 milhões de exemplares em todo o mundo e continua a sair
nos Estados Unidos a uma média de 250 mil cópias por ano,
desde a sua publicação em 1951.
Em Portugal, o impacto directo da obra nunca foi grande,
embora quem por cá procurasse Uma agulha no palheiro a
pudesse encontrar na tradução de João Palma Ferreira (Livros
do Brasil, 1962) e o livro chegasse a fazer parte do curriculum
escolar para a disciplina de Inglês, no princípio dos anos
oitenta. Quanto às restantes obras de Salinger, a Bertrand
foi-as publicando também ao longo da década de sessenta
– Franney e Zooey, em 1962 (Franney and Zooey, 1961),
Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira e Seymour: uma
Introdução, em 1964 (Raise High the Roof Beam, Carpenters
and Seymour: an Introduction, 1963) e Nove Contos, em 1966
(Nine Stories, 1953). A Difel voltou a traduzi-las e a editá-las
recentemente (entre 2005 e 2006) e saiu, em 2005, com uma
nova versão portuguesa de The Catcher in the Rye, desta vez
com um título mais literal e consentâneo: À Espera no Centeio.
Na América, o desmesurado campo de centeio nativo de
J. D. Salinger, as histórias do livro e do autor foram outras.

* Doutorada em Literaturas Comparadas pela Faculdade de Letras da Universidade


de Coimbra.

Brotéria 170 (2010) 157-164 157


À espera d
p
Jerome David Salinger nasceu em Manhattan no dia 1 de o
Janeiro de 1919, de pai judeu e mãe irlandesa. Eram só dois
filhos: ele e a irmã mais velha. O pai, filho de um rabi, esta‑ O
belecera-se como importador de queijos e fiambres; o negócio
correu-lhe bem e os Salinger, que tinham começado por viver E
no Harlem, foram galgando quarteirões até à Park Avenue. p
J. D. nunca fora grande aluno. Depois de uma breve m
passagem pela Universidade de Nova Iorque, o pai resolvera f
levá-lo até à Alemanha e à Polónia para o iniciar no mundo i
dos queijos e dos fiambres e nos enredos da sua importação. e
Mas Salinger, que já escrevia em segredo, não demonstrou g
grande interesse pelo negócio. c
Quando regressou aos Estados Unidos, vagueou por um r
ou dois cursos soltos e foi espalhando que se preparava para q
escrever «o grande romance americano». Começou por publicar
histórias no Saturday Evening Post, na Collier’s e na Esquire e, q
em 1941, depois de várias tentativas frustradas, conseguiu que u
a New Yorker lhe ficasse com um conto – um esboço ainda o
cru e pouco revelador do que viria a ser The Catcher in the d
Rye – que acabaria por esperar cinco anos na gaveta até que a
os editores se decidissem a publicá-lo. t
Entretanto, fora chamado para a tropa. Nos serviços de H
Contra-Espionagem da Quarta Divisão de Infantaria entre‑ t
vistou desertores e simpatizantes nazis e, a 6 de Junho de t
1944, o Dia D, desembarcou em Utah Beach, na Normandia. d
Em Dezembro, esteve na Batalha do Bulge, nas Ardenas, e g
há quem se lembre de o ver, debaixo de fogo, agarrado à
máquina de escrever. c
No ano seguinte, dava baixa ao hospital militar por esgo‑ d
tamento. Finda a guerra e já recuperado, andou pela Europa c
em serviço e casou com uma médica alemã, mas o enlace d
durou pouco. g
De volta a Nova Iorque e ao apartamento dos pais, reto‑ f
mou a actividade literária. Em 1948, a New Yorker já se tornara
a sua casa: «A Perfect Day for Bananafish», a prova acabada d

158
de que crescera como escritor, trouxera-lhe o reconhecimento
por que tanto esperara. Mas o romance que o empurraria para
o precipício da fama estava ainda para vir.

O eremita

Em Julho de 1951, The Catcher in the Rye entrava directamente


para o top dos livros mais vendidos do New York Times e dois
meses depois já ia na oitava edição. O livro impressionou
favoravelmente grande parte da crítica, que o considerou
inovador e invulgarmente conseguido para primeiro romance;
entediou outra, pela estreiteza de vocabulário e pela lingua‑
gem monótona e desinteressante do narrador-protagonista; e
chocou os que então o viram como o estranho registo «lite-
rário» da linguagem blasfema e das deambulações inconse‑
quentes de um rapazola perverso.
Tudo isto contribuiu para que, em finais dos anos cin‑
quenta, o romance de Salinger estivesse já estabelecido como
um «livro de culto», um misto de passaporte e manual para todo
o «adolescente» – essa nova espécie em vias de identificação e
de ascensão, outrora displicente e indecisamente situada entre
a criança e o aprendiz de adulto, mas agora dotada de iden‑
tidade própria. Em 1956, com Rocking through the Rye, Bill
Halley acrescentava-lhe a música, a partir do poema setecen‑
tista de Robert Burns que inspirara Salinger, Coming through
the Rye, mas também na senda da popularidade do livro junto
de um nicho de mercado que se agigantara e a que pertencia
grande parte do público do Rockabilly.
Os pedidos de cedência de direitos para a adaptação ao
cinema de Catcher in the Rye começaram a chegar bem antes
de James Dean, na pele de um outro rebelde perdido e sem
causa, ter incendiado os ecrãs com a sua procura de identi‑
dade, autenticidade e sentido, num mundo que era já «de outra
geração» (Fúria de Viver – Rebel without a cause, 1955). Salinger
foi-os persistentemente recusando, ao longo dos anos.
A fama, por que outrora esperara mas que agora consi‑
derava nociva e mortífera, e a invasão de privacidade, que

159
lhe era intolerável, começaram cedo a incomodá-lo – a ponto u
de mandar retirar a sua fotografia da capa do livro, pedir que d
lhe fossem queimando as cartas dos fãs e se afastar definitiva‑ e
mente para o campo. s
Em 1953, tinha já deixado Manhattan para se refugiar em n
Cornish, New Hampshire, onde iria passar o resto da vida no d
que parecia ser o estrito cumprimento do sonho do seu prota‑ d
gonista, Holden Caulfield: fingir-se de surdo-mudo para evitar p
toda e qualquer conversa «estúpida e inútil» com quem quer
que fosse, e construir uma cabana algures, não no meio do c
arvoredo, mas perto de um bosque, para poder estar sempre M
debaixo de «um sol infernal». A última história que publicou, u
«Hapworth 16, 1924», saiu na New Yorker de 19 de Junho de 1965. o
A partir daí e até à sua morte aos 91 anos, optou pelo 1
silêncio e pela reclusão e tornou-se «famoso por não querer e
ser famoso». Chamaram-lhe «o recluso literário» e «o eremita das t
letras americanas», e quando a revista Ler, em Abril de 2008, d
publicou «Os 50 autores mais influentes do séc. XX e o que r
aprendemos – ou devíamos ter aprendido – com eles», esco‑ m
lheu «a retórica da invisibilidade» como a lição que Salinger c
nos teria ensinado, inscrevendo-o na dupla categoria de autor
de um romance de culto e de protótipo do autor recluso. m
O «mundo privado de amor e morte» de J. D. Salinger i
chegara a ser capa da revista Time, em 1961. No desenho, os o
olhos grandes e a cara sombria do «eremita» tinham por cenário d
um grande campo de centeio a culminar num precipício, junto i
ao qual esperava, vigilante, uma figura preparada para evitar a –
queda dos inocentes – um «catcher» tal como Holden Caulfield e
se sonhara.
A luta por um vislumbre da casa de Salinger tornara-se n
um desporto nacional e a Time descreve o habitat do esquivo d
criador de Holden a partir da indiscrição de uns vizinhos que, J
vencidos pela curiosidade, se tinham conseguido empoleirar C
a custo nos muros altos que defendiam o mundo do recluso D
e o recluso do mundo. l
Afastada de uma casa térrea, estilo Nova Inglaterra, e da d
pequena horta que a servia, via-se uma cela de cimento onde p

160
uma clarabóia deixava entrar «o sol infernal» ou a fria clari‑
dade. Lá dentro, uma mesa comprida com uma máquina de
escrever, livros, um arquivo e uma lareira. Era ali, diziam, que
se sentava o homem pálido que ora escrevia à máquina como
num delírio, fazendo intermináveis listas de palavras, ora
deitava achas para a fogueira. Mas a fogueira não precisava
de mais achas: Salinger tornara-se mais irreal do que as suas
próprias personagens.
Ou tão real como elas. Em 1966, Claire Douglas, a mulher
com quem casara em 1953 e de quem tivera dois filhos,
Margareth e Matthew, saía litigiosamente do que dizia ser uma
união de alto risco para a sua saúde física e mental. E entre
o livro de Joyce Mayard, que com ele viveu um romance em
1973, e o da sua filha Margareth (publicados respectivamente
em 1998 e 2000), ficava-nos o retrato de um homem prepo‑
tente e manipulador, patologicamente centrado em si mesmo,
doentiamente obcecado pela saúde, entregue a acupuncturas,
remédios homeopáticos e dietas excêntricas e abraçando inter‑
mitentemente uma amálgama de crenças – budista, hinduísta,
cientologista, cristo-cientista.
Era como se estivéssemos perante um Holden Caulfield
mal envelhecido. Exposto como vítima suprema de uma
inquietação incurável, Salinger parecia carregar pessoalmente
o jugo de trevas e brilho das suas personagens. Em demanda
de uma pureza impossível e paralisados por uma sensibilidade
intransigente e inconformista, também os heróis de Salinger
– argumenta Michael Greenberg – se viam «afastados do mundo
e soterrados numa reclusão perigosa e auto-destrutiva».
Os perigos encerrados nesta demanda quase religiosa,
nesta sensibilidade comovente e sofrida, nesta intransigência
de clausura, iriam brutalmente desfechar-se sobre o corpo de
John Lennon, no dia 8 de Dezembro de 1980. Mark David
Chapman, o autor dos disparos, esperara a vítima à porta do
Dakota building, junto ao Central Park, com uma arma e um
livro na mão. O livro era tudo o que tinha para dizer em sua
defesa: «This is my statement», insistia, brandindo um exem‑
plar de The Catcher in the Rye. Lennon, que pregara o amor

161
e imaginara um mundo melhor, vendera-se ao mundo e ao
dinheiro, corrompera-se ante os olhos e os corações puros i
dos seus admiradores, que, entretanto, continuavam inocen‑ q
temente a brincar à beira do precipício, no campo de centeio ‑
– onde Chapman diligentemente esperava, para os salvar do
corruptor com as suas balas assassinas. d
Talvez por isso «o eremita», que desde 1965 passara a p
gozar a tempo inteiro «a paz de não publicar», continuasse h
a ver o sucesso, o seu sucesso, como um mancha moral, e r
a temer a exposição prolongada à idolatria e à interpretação
desvairada – empurrão fatal para um abismo de cegueira e de e
engano. r
g
a
No centeio a
c
À espera no Centeio é um romance iniciático, a história de um n
longo fim-de-semana de demandas e errâncias narrada na pri‑ s
meira pessoa por Holden Caulfield, um adolescente da classe v
média-alta nova-iorquina. Holden tem dezassete anos, é um t
aluno medíocre (excepto a Inglês) e no princípio da história l
está prestes a ser expulso por mau aproveitamento escolar de
mais um dos muitos Colégios por onde já passou. Os pais só c
o esperam na quarta-feira, nas férias de Natal, mas Holden a
resolve antecipar para Sábado a saída. a
Foge do colégio, apanha o comboio e parte para uma c
desenganada odisseia por Nova Iorque. Instala-se num hotel i
barato, recebe no quarto uma prostituta mas não lhe toca e m
paga-lhe para que vá embora, telefona a velhos conhecidos, a
sai com uma antiga namorada que o desilude, assiste sozinho d
ao espectáculo de Natal do Radio City Music Hall, vai ao a
cinema, embebeda-se e vagueia pelos sítios conhecidos. Vai
a casa para ver a irmã de dez anos, aproveitando a ausência p
dos pais, e sai quando eles chegam, sem que dêem por isso. s
Pede depois guarida a um velho professor mas acaba por se ú
vir embora a meio da noite, perturbado perante uma suspeita c
demonstração física de afecto. a

162
Preparava-se para partir para o Oeste, onde contava viver
isolado numa cabana, perto de um bosque, mas a irmã, com
quem volta a encontra-se no Jardim Zoológico na segunda-
‑feira de manhã, pede-lhe que fique e que regresse a casa.
Caulfield acabaria mesmo por regressar a casa e por partir
depois para o Oeste – não para a sua cabana de sonho, mas
para a clínica psiquiátrica, na Califórnia, de onde nos conta a
história, já quase recuperado do esgotamento e pronto para
regressar a um qualquer outro Colégio.
James Joyce tinha já reencenado em Dublin uma sublime
e copiosa odisseia de um só dia, mas o seu Ulisses, também
refrescantemente atento, desafectado e dotado de uma lin‑
guagem livre e directa, era um homem maduro, quotidiano,
aberto à mudança e com uma capacidade infinita de lidar com
as contradições e as impurezas das pessoas, do mundo e das
circunstâncias. O herói de Salinger, mais trágico que enge‑
nhoso, era um adolescente contraditório, perdido numa odis‑
seia de fim-de-semana: blasfemo mas profundamente moral,
vacilante e irónico mas atormentado pela recta intenção, men‑
tiroso confesso mas com um ouvido apurado para tudo o que
lhe soasse a falso.
Obcecado pela pureza, pela autenticidade e pela inocên‑
cia, Holden parecia determinado a preservá-las a todo o custo,
ainda que artificialmente ou só em sonhos – num qualquer
aquário secreto, como o peixe do seu irmão D.B., num eterno
carrossel, como o de Phoebe, surdo e mudo numa cabana
isolada, ou no extremo de um campo de centeio, onde ele
mesmo, só e contra o mundo, pessoalmente se encarregaria de
as vigiar e de as proteger da corrupção e da queda. «A tragédia
de Holden – disse Faulkner – foi que quando quis entrar para
a raça humana, não havia ali raça humana alguma».
R. W. B. Lewis (The American Adam, 1955) inscreve o
protagonista de Salinger na mais americana de todas as odis-
seias: a longa tradição do novo mundo como segunda e
última oportunidade para humanidade – derradeiro campo de
centeio onde inúmeros Adões americanos continuam até hoje
a tentar evitar a queda, ora comoventemente iludidos, ora

163
ironicamente desajustados e mal equipados para a tarefa, mas
sempre solitários e sempre justificados por uma qualquer aura
de prioridade moral.
A carga de capital simbólico utilizada na sua concepção
não impedira que Holden nos chegasse sobretudo como um
adolescente real e plausível, evocativo mas único, como que
dotado de vida própria e livre das peias da representação lite‑
rária. Em Holden Caulfield, dissera um dos primeiros críticos D
do livro, dera-se o raro milagre da ficção: da tinta, do papel a
e da imaginação fora criado um ser humano. o
Quantos mais «seres humanos» estarão agora ainda fecha‑ d
dos na cela do escritor, à espera da publicação ou da fogueira?
Obstinado em preservar-se dos malefícios da fama presente, «
estaria D. J. Salinger a antegozar as delícias, eventualmente c
mais inócuas, de uma qualquer fama futura, ou pura e simples- p
mente «a escrever para si mesmo», como chegara a afirmar? m
«Comecei a escrever e a inventar personagens porque d
nada ou quase nada fora do raio de acção da minha máquina n
de escrever me chegava ao coração», tinha dito a Lilian Ross, p
uma velha amiga da New Yorker.
Fala-se em cofres pejados de livros, centenas de manus‑ o
critos e toda uma saga da família Glass, mas a declaração de F
óbito dos seus representantes legais omite qualquer referência
à publicação póstuma ou sequer à existência do que quer que v
seja – embora seja eloquente quanto à vida após a morte do p
autor: «Dizia que estava neste mundo mas que não era deste t
mundo. O corpo desapareceu mas a família espera que Salinger o
continue com aqueles que ama, quer sejam figuras religiosas h
ou históricas, amigos pessoais ou personagens de ficção».
e
m
q
m
d
l

164
Direitos e deveres Roque Cabral, S.J. *

Direitos, deveres… temática de todos os dias, mas de modo 1


Acerca da origem etimo-
lógica (e não só) da pala‑
algum trivial, ainda que a sua importância não ressalte a todo vra Direito, ainda não foi
o momento, mas apenas em situações em que direitos ou ultrapassado o estudo de
Sebastião Cruz intitulado Ius.
deveres sofrem qualquer tipo de invectiva ou confronto. Decretum, Coimbra, 1971.

Três principais sentidos andam hoje associados à palavra 2


Quer se trate de uma jus‑
tiça de origem positiva ou
«direito»1: ele designa por um lado uma ordem objectiva que se «natural».
considera justa 2, o que é como deve ser, o correcto 3; designa 3
A ligação entre direito e
justiça é muito íntima, pelo
por outro lado as normas ou conjunto normativo 4, que expri‑ que se tornou tradicional,
mem (no caso do direito natural) ou constituem (no caso do sobretudo na Segunda
Escolástica, estudá-los jun‑
direito positivo) essa ordem objectiva; significa, finalmente, tamente, nos tratados De
iustitia et iure.
na acepção mais popular do termo, o poder moral que uma
4
O qual também pode ser
pessoa tem de exigir ou fazer algo. positivo ou natural.
No primeiro caso temos o direito objectivo, no segundo
o  direito normativo e no terceiro o direito subjectivo, que
Francisco Suárez chamou dominativo.
Julgo importante recordar que estes três sentidos da pala‑
vra direito não têm a mesma «idade», não foram reconhecidos
pelos humanos todos ao mesmo tempo, mas sim em momen‑
tos diferidos, com intervalos de vários séculos. Como tudo
o que é humano, também o direito e os direitos têm a sua
história.
O primeiro a ser patente ao espírito humano, e a aparecer
expressado pelos autores, foi o direito objectivo. De diferentes
maneiras foram os homens manifestando a sua convicção de
que reinava no mundo, e não apenas no mundo das pessoas
mas no inteiro cosmos, uma ordem, normalmente considerada
de origem divina, à qual estavam sujeitos todos os seres. Baste
lembrar, entre os gregos, as deusas Dike e Themis.

* Professor Jubilado da UCP Braga.

Brotéria 170 (2010) 165-174 165


A atitude vivida pelos homens dessas gerações pode e
condensar-se na frase «men have the right to do what is right d
for them to do». Mais do que pensar nos direitos subjectivos, a
o ambiente cultural dessas eras levava-os a atender mais ao p
dever que cada um tinha de respeitar a ordem objectiva do c
direito, a ordem do que era correcto, a qual para muitos d
se  identificava com aquilo que era querido pela divindade. n
Terrível privilégio da liberdade dos homens e mulheres o
era a possibilidade de violar, consciente ou inconscientemente,
esse direito objectivo universal. O que não acontecia, porém, –
sem funestas consequências, de que as tragédias gregas nos e
falam eloquentemente. a
Bastante cedo se foi afirmando o segundo sentido da (
palavra direito: as normas, consuetudinárias ou estabelecidas d
pela autoridade, que regulavam a convivência nos agregados s
humanos. Normas que poderiam entrar em conflito com outras, q
consideradas mais fundamentais e normalmente julgadas de h
origem divina: de tais conflitos ficou para sempre como para‑
digma o caso de Antígona. a
Em todo esse tempo, que se desenrolou ao longo de b
muitos séculos, não encontramos menção do direito no sentido d
subjectivo. Refiro-me à sua menção explícita, já que podemos (
descortinar a sua presença implícita, como acontece espe‑ d
cialmente na tradição judaica e, depois, na cristã. Não que A
aí se fale dos direitos destes ou daqueles, mas ao falar de
certos deveres vemos perfilarem-se especularmente os direitos U
daqueles. Assim, incessantemente fustigaram os profetas todos U
aqueles que espezinham ou prejudicam os mais desamparados r
da sociedade – tipificados nas viúvas, órfãos e estrangeiros – o «
que pressupõe, implicitamente, que eles têm direitos que estão d
a ser violados. Mas a insistência é claramente nos deveres e
que os demais têm para com eles. Não significa isto que os p
direitos das viúvas, órfãos e estrangeiros resultem dos deveres d
que os demais membros do povo têm relativamente a eles,
pois é o contrário que se verifica, como adiante diremos. d
Seja como for, volto a recordar que a explicitação do T
direito no seu sentido subjectivo – aquele que mais presente e

166
está hoje na consciência comum – só veio a verificar-se em
data relativamente recente. Mais concretamente, no Ocidente,
a partir do tempo da Renascença, com o seu marcado antro‑
pocentrismo. Muito ajudou também para essa evolução a
consciência progressivamente mais clara e sentida, por parte
das vítimas da violação de direitos, consciência que foi origi‑
nando, cada vez com maior frequência, a luta para conseguir
o respeito desses mesmo direitos.
Recuando alguns séculos, podemos ver na Magna Carta
– que os barões ingleses obrigaram João Sem Terra a aceitar
em 1215 – um primeiro documento ou declaração de direitos,
a que se seguiram a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus
(1679) e sobretudo o Bill of Rights (1689), a seguir à revolução
de 1688. Mas é sabido que temos de esperar pelo final do
século dezoito para encontrarmos os primeiros documentos
que se apresentam expressamente como elencos de direitos
humanos.
O mais antigo é a Declaração de Filadélfia, de 1776, que
assinala a independência dos Estados Unidos contra a Coroa
britânica, declaração retomada na Constituição de 1789, cujos
dez primeiros Amendments são conhecidos como Bill of Rights
(1791). Segue-se-lhe pouco depois a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789).
5
A partir daí são numerosas as declarações de direitos 5. Aulard, A. e Mirkine-Gut-
zévitch, B., em Les déclara-
Até que chegamos ao século vinte, com a Declaração tions des droits de l’homme,
Payot, Paris, 1929, recolhe‑
Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações ram 140 declarações, sem
terem sido exaustivos.
Unidas em Paris, a 2 de Outubro de 1948. A esta declaração se
referiu João Paulo II, também a 2 de Outubro de 1979, como
«marco miliário no caminho do progresso moral da humani‑
dade». Muitos países, entre os quais Portugal, têm integrado
esta Declaração nas respectivas constituições. Em 1950 foi
publicada pelo Conselho da Europa a Convenção Europeia
dos Direitos do Homem.
Nenhuma das declarações que referi surgiu obviamente
do nada, qual Atena brotando já equipada da cabeça de Zeus.
Tiveram os seus antecedentes, fontes, influências. Ao estudar
este ponto, encontramo-nos com a tradição cristã ocidental

167
e, mais concretamente, com os mestres da chamada Segunda «
Escolástica 6: Vitória (Salamanca), Suárez (Coimbra), Molina
6
Para uma primeira infor‑ a
mação, pode consultar‑se o
artigo de Giacon, C. «Segun- (Évora), Belarmino (Roma), etc. Neles foram buscar inspiração
da Escolástica» in Enciclopé-
dia Verbo, Lisboa, S. Paulo, os autores, remotos ou imediatos, da Declaração de Filadélfia. c
Verbo, vol. 7, 1968, cols.
915-916. Questão de decisiva importância é a seguinte: as declara‑ s
ções a que nos vimos referindo limitam-se a exprimir, positi‑ c
vando-o, o que independentemente delas já existe, ou criam e
7
Em terminologia analítica, os direitos que formulam? 7. Parece indiscutível que, na mente e
dir-se-ia serem actos de fala
performativos. dos que foram formulando as várias declarações universais «
de direitos, os seus textos exprimiam direitos que existiam s
e deviam ser reconhecidos, independentemente de serem s
«declarados». Esses direitos não passavam a existir por serem g
declarados, eram declarados porque se admitia a sua exis- s
tência. O que levanta obviamente a questão da origem ou r
fundamentação última desses direitos. d
A esta questão respondem mais ou menos explicitamente s
os textos de algumas declarações. Assim, no preâmbulo da «
Declaração americana encontramos a afirmação de que «all a
men are created equal and endowed by their Creator with o
certain rights». E no preâmbulo da Declaração dos Direitos do
8
Athayde propôs que no Homem e do Cidadão está dito que é «en présence et sous les d
art.º 1 se dissesse que os
homens «criados à imagem auspices de l’Être Suprême» que se enunciam os direitos. a
e semelhança de Deus» são
«por natureza» iguais, etc. Na Declaração de 1948 não encontramos nenhuma indi‑ e
9
Beufort propôs que no cação clara a respeito do fundamento dos direitos nela enume- s
preâmbulo se afirmasse que rados, não obstante ter havido quem o pretendesse, nomea‑
os direitos humanos eram
«fundados na origem divina damente aquele que é com razão considerado o «pai» desse t
e no destino imortal do
homem». texto, o francês René Cassin. O assunto foi longamente deba‑ e
10
Ideia que se encontra na tido. Por três vezes foi proposta – pela delegação do Líbano p
Constituição da URSS, muito
especialmente na de 1977, (Malik), do Brasil (Austregésio de Athayde) 8 e da Bélgica d
ainda mais radical a este
respeito do que a de Esta‑
(Beaufort) 9 a afirmação explícita da fundamentação transcen‑ o
line. Acerca da concepção dente dos direitos humanos. A irredutível oposição da URSS d
soviética dos direitos pode
ver-se Kernig, «Derechos e dos países comunistas, para os quais os cidadãos têm só e E
Fundamentales», na Enciclo‑
pédia Marxismo y Democra- apenas aqueles direitos que o Estado lhes outorga10 – países g
cia, série Política, 2, 68-86.
Em favor dos delegados que finalmente se abstiveram de votar a Declaração – tal não c
dos países comunistas deve permitiu. O mais que René Cassin conseguiu foi introduzir
mencionar-se a insistência
com que pretenderam que subtilmente, na redacção do artigo 1.º, a ideia da fraternidade o
a Declaração falasse tam‑
bém dos deveres. universal e, consequentemente, de uma paternidade comum: t

168
«Todos os seres humanos (...) devem proceder, uns em relação
aos outros, em espírito de fraternidade».
Voltamo-nos agora para a consideração do dever, termo
com que exprimimos a exigência ou apelo a que o ser humano
se experimenta vinculado no seu agir. Muitas vezes usadas
como sinónimos, as palavras ‘dever’ e ‘obrigação’ podem ser
empregues em sentidos diferentes (aliás comutáveis), que
exprimem dois aspectos da realidade total: enquanto a palavra
«obrigação» designaria a necessidade moral que vincula o
sujeito a proceder de determinado modo, a palavra «dever»
significaria o procedimento determinado a que ele está obri‑
gado, significaria o objecto da obrigação. Ou seja: «obrigação»
seria o aspecto formal e subjectivo e «dever» o aspecto mate‑
rial e objectivo da mesma realidade global, indiferentemente
designada por qualquer dos termos, obrigação ou dever. Tanto
se diz «fulano tem o dever de cumprir a sua obrigação» como
«fulano tem a obrigação de cumprir o seu dever». De notar,
ainda, que se usa frequentemente o plural – os deveres, as
obrigações – no caso do significado material, objectivo.
O dever é pois a necessidade moral que vincula a liber‑
dade. Não suprime a liberdade psicológica, a capacidade de
autodeterminação, antes a pressupõe essencialmente; o que
ele tira é a liberdade moral de proceder de outro modo. Apre‑
senta-se com carácter irrecusável e absoluto, «categórico».
Somos espontaneamente levados a pensar que realidades
tão fundamentais da existência humana, como são os direitos
e os deveres, alguma relação terão entre si. Com razão assim
pensamos e é importante perceber como se relacionam ou
devem relacionar entre si os direitos e os deveres. Fundarão
os direitos os deveres, ou serão antes os deveres a fundar os
direitos? Se existir uma prioridade, a qual deles atribuí-la?
E se não se dá tal prioridade, segundo que critérios devemos
gerir o nosso comportamento a respeito dos direitos e deveres
concretos com que nos deparamos diariamente?
A pergunta sobre a eventual prioridade dos deveres sobre
os direitos, ou vice-versa, sendo de inegável importância, não
tem resposta possível, enquanto se mantiver nesta formulação

169
geral. E a razão por que não pode ter resposta está em que d
nesta única pergunta se incluem duas situações muito dife‑ d
rentes, que dão origem a duas interrogações distintas, para d
cada uma das quais a resposta acerca da prioridade ou funda‑ a
mentação será diferente, oposta até. As duas situações a que «
me refiro são as seguintes: direitos e deveres de uma mesma n
pessoa ou direitos e deveres de pessoas diferentes. m
Começo por esta última questão, a mais fácil e a que
menos longe nos leva na clarificação da temática geral dos d
direitos e deveres. Neste caso – direitos de uma pessoa (A) p
e deveres de outra (B) – são os direitos de A que fundam o
os deveres de B, e não ao contrário. Assim, porque A tem s
direito à vida, ao bom nome, etc., é que B tem o dever de p
lhe respeitar a vida e o bom nome. Noto de passagem que o a
v
«respeitar» de que aqui se fala não é algo apenas «platónico»
q
ou simplesmente negativo – abster-se de violar ou interferir
o
nos direitos alheios –, mas que poderá ter de assumir formas
ú
de empenhada intervenção por parte de quem deve respeitar
este ou aquele direito deste ou daquele sujeito. O que pode
d
levar muito longe…
e
Seja como for, entre pessoas diferentes, são os direitos de
d
11
Vimos atrás os profetas umas que fundamentam os deveres de outras11.
a verberarem o desrespeito d
pelos direitos das viúvas, Aqui chegados, poderia alguém perguntar se será deste
órfãos e imigrantes. f
modo que se fundam os deveres que indiscutivelmente temos s
relativamente aos animais: afirmar tais deveres não nos levará l
a admitir que os animais têm verdadeiros direitos? Não falta –
quem o afirme12; e se os animais tiverem direitos, é óbvio
12
Bentham, J., Introduction
to the Principles of Moral e
and Legislation, c. xvii, que  temos o dever de os respeitar. Na realidade, nós temos t
sec. 1; Daggett, Hermann,
«The Rights of Animals», dis‑ deveres acerca dos animais, embora estes não tenham nenhuns é
curso no Providence College
de Yale, 1791; Singer, P., direitos. c
Animal Liberation, 1975;
UNESCO, Declaração Uni‑ Que temos deveres relativamente aos animais está fora m
versal dos Direitos dos Ani‑ de dúvida.
mais (27.01.78); Regan, T., n
P. Singer (eds.), Animal Mas convirá apurar a formulação relativa aos deveres, ç
Rights and Human Obliga-
tions, 1989; Singer, P. (ed.) distinguindo deveres que temos «para com» alguém e deveres t
In difesa degli animali,
1987. «acerca de», ou «relativamente a» algo. Para maior clareza, s
comecemos por aplicar a distinção ao caso de objectos: temos m
vários deveres «relativamente a» ou «acerca de» muitos objectos: p

170
devemos respeitar a eventual propriedade alheia a seu respeito,
devemos não estragar mesmo os objectos que são nossos,
devemos mantê-los limpos e, se são perigosos, longe do
alcance de crianças, etc. Mas esses nossos deveres não são
«para com» os objectos – aos quais não devemos nada, pois
não têm direito algum – são deveres «acerca de» ou «relativa‑
mente a» eles, objectos.
Algo parecido se dá com os animais. Não temos nenhum
dever «para com» eles, pois tais deveres só se dão para com
pessoas; mas temos múltiplos deveres «acerca deles»: respeitar
o direito de propriedade dos donos, respeitar as normas de
segurança impostas pelas autoridades, não os magoar nem
prejudicar sem motivo justificado, etc. Deveres que temos
acerca ou relativamente aos animais e não para com eles, uma
vez que não são seres pessoais, a quem se devam reconhecer
quaisquer direitos. Facilmente vemos que todos estes deveres
os temos para com pessoas – os outros, nós próprios ou, em
última análise, Deus13. 13
Em última análise, os de-
veres que temos para con‑
Depois deste parêntese acerca dos inexistentes direitos nosco – proceder razoavel-
mente, etc. – são, ultima‑
dos animais, regressemos à questão da prioridade relativa mente, deveres para com o
entre direitos e deveres, examinando agora a relação entre Criador. O carácter absoluto
com que todo e qualquer
direitos e deveres de uma mesma pessoa. Neste caso, em vez dever se nos apresenta
aponta, em última análise,
de serem os direitos a fundarem os deveres, são estes que para uma ligação com o
Absoluto, que aqui me
fundamentam aqueles. E a razão geral é a seguinte: quem é limito a afirmar. Em todos
sujeito de determinado dever, tem direito a tudo aquilo que os deveres particulares, cate-
goriais, está presente o
lhe é necessário para poder cumprir cabalmente esse dever Dever geral, ou trans‑
cendental, de cumprir os
– sob pena de não poder haver verdadeiro dever. Assim por deveres. Ou seja: a um
nível diferente, e de uma
exemplo: para que o polícia de trânsito possa assegurar o natureza diferente da dos
deveres particulares que
tráfego mais favorável para os transeuntes e motorizados – tal possamos ter, há o Dever-
é o seu dever – é óbvio que lhe têm de estar asseguradas ‑de-cumprir-os-deveres,
sem o qual nenhum dever
certas condições, sem as quais lhe seria impossível o cumpri‑ teria força vinculante.
mento do seu dever de agente de tráfego. Pois como lembrei
nunca será verdadeiro dever aquele que, por falta de condi‑
ções, não é possível cumprir. No caso do nosso polícia de
trânsito, as condições de possibilidade de cumprimento do
seu dever são constituídas pelos seus vários direitos relativa‑
mente às deslocações de peões e veículos: orientar, mandar
parar, autuar infracções, etc.

171
Talvez o leitor tenha reparado que, ao passar da conside‑ e
ração da relação entre direitos e deveres de pessoas diferentes s
para o caso de essa relação quando se trata de uma mesma q
pessoa, se deu uma profunda alteração, com importantes con‑ e
sequências: a relação entre direitos de uns e deveres de outros «
jogava-se num mesmo plano horizontal, no qual se situavam
os dois protagonistas, igualmente sujeitos; mas quando tudo s
se passa numa mesma pessoa, e se trata de averiguar a relação a
entre os seus direitos e os deveres também igualmente seus, a
a relação entre ambos é vertical, os deveres fundamentam os l
direitos, estão, por assim dizer por debaixo dos direitos, como d
seus alicerces. Como já o encontrámos no exemplo do polícia d
de viação, e reencontraríamos numa infinidade de casos. o
Assim, porque têm o indeclinável dever de educar os filhos c
que trouxeram ao mundo, têm os pais todos os direitos neces‑ d
sários para o cumprimento desse seu dever educativo. Numa l
palavra, têm de dispor da necessária autoridade – que tal é e
o direito de mandar – a que corresponde, nos filhos, o dever
de obediência, e, noutros, nomeadamente nos governantes, o p
dever de respeitar esse direito. v
Antes de passar adiante, chamo a atenção para o facto q
de que a autoridade educativa dos pais vai progressivamente h
diminuindo, à medida que o educando vai sendo educado, até h
chegar à visada autonomia, ao direito de dispor de si. Cessa m
nessa altura a autoridade educativa dos pais – coisa a que estes f
muitas vezes não atendem. A um filho/a maior, não têm os a
14
Muito diferente é o que se pais o direito de impedir opções profissionais e outras14. Uma r
refere à autoridade domés-
tica, dos pais: sendo deles vez que os filhos já são «maiores», adultos, não há o direito r
a casa em que o/a filho/a
ainda vive, deve este/a de os tratar como ainda crianças educandas. Aconselhá-los, h
respeitar as suas decisões
acerca da vida caseira: horas sem dúvida, mas respeitando a sua autonomia. A educação h
das refeições, da entrada
em casa, etc. Se com elas
acabou, ao surgir o educado. P
não concordar, resta ao É no interior de uma mesma pessoa que, originando-se c
filho o recurso de estabe‑
lecer-se por sua conta; mas num determinado dever, surgem para essa mesma pessoa, a
enquanto viver em casa dos
pais deve submeter-se à sua relativamente aos demais, os direitos a tudo aquilo que se p
autoridade doméstica. Por
mais anos que tenha. revela necessário para que esse dever possa ser cumprido. e
Como já sugeri, no interior da mesma pessoa os deveres e os
direitos situam-se numa relação vertical; ao longo desta vertical d

172
encontramos a direcção «para cima» e a «para baixo». Até agora,
só falámos desta: de um determinado dever derivam, como
que «descem»15, os direitos que sejam indispensáveis para que 15
Acima, numa perspectiva
diferente, comparei os de-
esse dever possa ser cumprido. Que se passa com a direcção veres aos alicerces ou fun‑
damentos dos direitos, que
«para cima»? sobre eles se edificam.
Subindo, começamos por ir encontrando deveres progres-
sivamente mais amplos, nos quais vão sendo subsumidos os
anteriores: o polícia de trânsito, já nosso conhecido, está a
aplicar uma multa, cumprindo o seu dever no caso de tal vio‑
lação das regras de trânsito; este dever faz parte do conjunto
dos seus deveres de punição; conjunto este que é uma parte
do conjunto mais amplo de todos os seus deveres de polícia;
os quais constituem apenas uma parte dos seus deveres de
cidadão… Até que chegamos a que qualquer polícia, além
de membro de determinada família e cidadão de determinada
localidade, província, nação – com os correspondentes deveres
e direitos – é uma pessoa humana.
Que direitos – comecemos pelos direitos – tem uma
pessoa precisamente por ser pessoa humana? Na linha do que
vimos dizendo, a resposta global é fácil: tem todos os direitos
que são necessários para viver uma existência autenticamente
humana – porque este é o dever radical de toda a criatura
humana. Pensamos que esta é a verdadeira e inabalável funda-
mentação dos verdadeiros Direitos Humanos, a que acima
fizemos referência. Os direitos verdadeiramente «humanos»,
aqueles que pertencem a cada pessoa pelo facto de o ser,
resultarão do «dever de viver», de viver de maneira verdadei‑
ramente humana, a maneira querida por Quem, criando o ser
humano, o quis assim: humano16. No interior de cada pessoa,
16
Prescindo de encarar aqui
o destino sobrenatural das
habita o dever de viver, próprio da sua condição de criatura. criaturas humanas, conhe‑
cido pela Revelação.
Perante o Criador, de quem recebe continuamente o influxo
criador – sem o qual nada seria – deve cada um viver de
acordo com o que Deus quer a seu respeito: que seja tal
pessoa humana, vivendo de maneira verdadeiramente pessoal
e humana.
Este é o dever que engloba e fundamenta todos os outros
deveres, por mais amplos que sejam, e do qual derivam todos

173
17
os correlativos direitos. Descobrir quais vão sendo esses deve‑
Notar que este desígnio
de Deus acerca da pessoa res – qual é vontade de Deus acerca de cada pessoa17 – apre‑
integra as livres opções váli‑
das da mesma. senta-se para cada um como exigência fundamental, só termi‑
nada com a morte. Preparar a pessoa para encontrar e estar
em condições de cumprir a vontade divina a seu respeito, tal
é a ajuda que Inácio de Loyola pretendeu oferecer a quem se
18
Cf. Pedroso, Dário, Orde- apresenta a fazer os Exercícios Espirituais, por ele elaborados
nar a Vida, Braga, A.O.,
2002. com base na própria experiência espiritual18. E
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174
Personagem
O «Santo» P. Cruz 1 P. António Reis, S.J.  *
1
  Homilia proferida na Igre-
ja de S. Roque, em Lisboa,
no dia 28 de Fevereiro de
2010.

Esta nossa celebração tem como finalidade venerar a memó‑


ria dos 150 do nascimento do Padre Francisco Rodrigues
da Cruz, da Companhia de Jesus e pedir a Deus a graça da
sua beatificação.
Esta celebração do nascimento do Padre Cruz, em Alco‑
chete a 29 de Julho de 1859, pretende ainda reforçar o dina‑
mismo da renovação sacerdotal que a graça da sua beati-
ficação pode alcançar de Deus para todos os sacerdotes,
aumentando a alegria e o entusiasmo na vivência da vocação
a que Deus os chamou.
As leituras deste domingo convidam-nos a reflectir sobre
a nossa «transfiguração», a nossa conversão à vida nova de
Deus. O Evangelho apresenta-nos Jesus, o Filho amado do
Pai, cujo êxodo (que é a sua morte na cruz) concretiza a nossa
libertação. O projecto libertador de Deus em Jesus não se
realiza através de esquemas de poder e de triunfo, mas através
da entrega da vida e do amor que se dá todo até à morte.
É este o caminho que nos conduz, a nós também, à transfigu‑
ração em Homens Novos, como conduziu aquele a quem o
povo há muitos anos canonizou e continua a chamar o «santo
Padre Cruz».
Não houve figura mais popular e que mais tivesse impres‑
sionado durante estes últimos cento e cinquenta anos a gente
de Portugal, que o «Santo» P. Cruz, como lhe chamavam ainda
em vida, já aos 35 anos.
Todos estavam habituados a vê-lo percorrer as ruas, de
batina e breviário debaixo do braço, o Terço entrelaçado nos
dedos, a cabeça inclinada sobre a direita, balbuciando jacula-

* Vice-Postulador da Causa da Canonização do P. Cruz.

Brotéria 170 (2010) 175-179 175


tórias, sorrindo, abençoando e consolando a todos. Nas d
igrejas, nos hospitais, nas cadeias, a sua presença era como d
uma sombra de Deus a acompanhar-nos por toda a parte.
Falava com grandes e pequenos, gente da rua e senhores da a
vida social, santos e pecadores. Todos tinham nele a palavra p
oportuna e muitas vezes o momento da conversão. Foi ele o d
caminho de Damasco para muitas almas. O
Onde quer que chegasse, a multidão acotovelava-se, m
discutia lugares e fazia silêncio para ouvir o «Santo». P
Donde lhe viria este prestígio sobrenatural que todos, e
crentes e descrentes se viam obrigados a aceitar? – Eviden‑ p
temente que da sua santidade. Não era a ciência, não era a d
política, não era a interferência na economia do país que fazia O
p
deste sacerdote, humilde e apagado na sua pessoa, o ídolo da
P
veneração colectiva.
n
Na verdade, Deus não queria o P. Cruz para sábio e doutor
r
das ciências deste Mundo.
n
Em Outubro de 1886 vamos encontrar o P. Cruz Director
d
do Colégio dos Órfãos em Braga. Podemos surpreendê-lo no
contacto com os seus pupilos, percorrendo os recreios, falando
a
com todos. Ensinava-os a serem bons, a não se esquecerem da
l
SSma. Virgem e a dizerem durante o dia algumas jaculatórias.
e
Ao ouvirmos hoje estas coisas, podíamos ser tentados a supor
g
que a piedade do P. Cruz era qualquer coisa de efeminado, n
menos própria para rapazes. Seria um erro. O P. Cruz era viril
e sabia bem que as grandes forças da vida espiritual repousam d
afinal sobre bem pouca coisa: um espírito constante de união q
com Deus e o reconhecimento a cada momento da nossa f
própria fragilidade. Para isso adiantam estas pequeninas c
coisas. Falava todos os dias de manhã e à noite aos seus alunos,
mas com tal unção, que a memória lhes ficou pela vida fora. f
Ao entrar ali em Braga em 1886 já o seu antigo ideal tinha m
amadurecido até à consistência e sabor dum voto, mas Deus i
parecia antes comprazer-se com a luz e as chamas dum desejo,
do que com a realização imediata duma obra. O P. Cruz fizera c
voto em 1886 de entrar na Companhia de Jesus se Deus lhe m

176
desse saúde, mas por agora é tempo de ficar ainda peregrino
do seu sonho…
A 3 de Outubro de 1910 um decreto ministerial dissolvia
a comunidade dos Jesuítas de Lisboa, e no dia 8 um decreto
publicado no «Diário do Governo» expulsava os Jesuítas e
dissolvia todas as outras Comunidades Religiosas no país.
O P. Cruz estava ausente da Capital durante estes aconteci‑
mentos e as notícias que chegavam não eram esclarecedoras.
Pôs-se a caminho de Lisboa. Queria também unir-se aos que
ele chamava já seus Irmãos, os Jesuítas, que esperavam na
prisão de Caxias a hora da partida, alegres como os Apóstolos
de serem dignos de sofrer alguma coisa pelo Nome de Cristo.
O P. Cruz escreve ao Superior da Residência da Covilhã,
pedindo-lhe a graça de o deixar partir com eles, mas o antigo
Provincial responde negativamente, dando a razão que era
necessário que fique, precisamente no momento em que o
rebanho corria o perigo de ser disperso na tormenta. Mas
nem por isso ficou privado da glória da perseguição o bom
do P. Cruz.
Um dia vai pregar a uma aldeia e encontra uns homens
a trabalhar num cemitério. «É atirar-lhe, como quem atira a
lobos!» – bradou um deles. Mas os outros ergueram a voz
e  desta vez defenderam-no. Mais adiante depara com um
grupo armado em tom de ameaça. Desta vez imaginou que
não escaparia.
Há atitudes de cães raivosos, dispostos a lamber o sangue
das suas vítimas. O P. Cruz baixa a cabeça e pede ao Senhor
que o livre. Como paralisados por uma força mágica, as duas
fileiras de homens conservam-se hirtos e silenciosos, deixando
cair aos pés as pedras que tinham nas mãos.
Podia-se agora perguntar onde é que o P. Cruz ia buscar
força para tanta irradiação espiritual e apostólica. Evidente‑
mente que a ninguém faz mistério que à sua intensa vida
interior.
O poder da oração era tal, que o trazia em contínua união
com Deus. Fiel a um horário de vida, quase de inspiração
monástica, levantava-se e deitava-se a hora certa. Muitas vezes

177
levantava-se de noite para rezar. Nos comboios, nos eléctricos, S
nas ruas, rezava sempre. Muitas vezes a própria conversa era E
interrompida por um balbuciar de lábios, com que suspendia T
o dinamismo exterior, para se renovar nas fontes da energia d
espiritual do contacto íntimo com Deus. Não faltava quem C
tivesse de esperar à sua roda o momento de o ver descer do G
Tabor da sua elevação para o vale desta Vida.
A Sagrada Eucaristia era para ele uma devoção espe‑ a
cial. Ao entrar e sair duma terra, a primeira e última visita era 1
ao SS. Sacramento. O silêncio das igrejas diante do Sacrário a
exercia uma atracção mística sobre a sua alma. A alguém que c
lhe perguntava onde vivia, respondia: «Eu não tenho morada; c
ando pelas igrejas onde há Lausperenes. Quem quiser, busque-
‑me lá.» E rematava com certo sorriso: «onde está o Pai, aí B
está o filho…». d
Esta união com Deus não era, porém, para o P. Cruz
estática, nem ociosa. Traduzia-se num amor efectivo e sincero n
para com o próximo. d
Amava singularmente os pobres, como imagens de Cristo, d
que eram para ele uma obsessão. Dava tudo quanto tinha e
não sem episódios amenizantes.
À esmola unia outras obras de misericórdia. Os doentes
e os presos da cadeia ocupavam um lugar de predilecção.
Quantas confidências íntimas! Quantas almas que se lhe
abriram já dependuradas sobre a boca do abismo! As cartas
dos arrependidos choviam. Se não fosse a inconfidência dos
segredos do coração, que pertencem só a Deus, teríamos aqui
riquíssimos instrumentos de trabalho para sondar os mistérios
da vida humana.
Os pecadores tinham nele uma confiança extraordinária,
porque ele pregava-lhes como ninguém as misericórdias do
Senhor. A todos aconselhava para alcançar a paz uma con-
fissão geral muito bem feita. E às vezes, num tom imperativo,
mandava logo ali ajoelhar pessoas que vinham desabafar, sem
disposições e intenções nenhumas de se confessarem.
Os anos foram passando, e o nosso P. Cruz, infatigável
caminheiro do bem, ia amadurecendo nos caminhos do

178
Senhor. Na alma já estava gigante aquela semente lançada nos
Exercícios inacianos de fim de curso: queria-se fazer jesuíta.
Tentara-o; fizera voto. Até que a 3 de Dezembro de 1940,
dia de S. Francisco Xavier, faz os seus votos de religioso da
Companhia de Jesus na Casa de Noviciado da Costa, em
Guimarães.
Durante oito anos vive a vida de religioso. Mas os anos
avançam e a saúde vai-se ressentindo. A 1 de Outubro de
1948, depois de ligeiras crises, adormece no Senhor, acabava
a acção de graças após a comunhão. Ainda nesse dia morrera
como vivera, santamente, sem barulho, e quase sem ser aper‑
cebido de ninguém.
Desde esse dia nunca mais o seu jazigo no cemitério de
Benfica onde se encontra sepultado, por sua vontade expressa,
deixou de ser visitado. Inúmeras graças lhe são atribuídas.
Não queremos, nem devemos antecipar-nos ao juízo defi‑
nitivo da Igreja. Mas supomos não ser temerário crer que um
dia vamos venerar sobre os altares aquele a quem o povo já
desde há muito havia canonizado «O SANTO PADRE CRUZ».

179
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«Revisitando a Brotéria» (De 1951…)

A imprensa soviética e os problemas Nicolau


cruciais da Ásia e da Europa Belina-Podgaetsky *

situação trágica do mundo que, pouco mais de cinco


anos após a segunda guerra mundial, se vê em
risco de presenciar mais um terceiro conflito, por
certo muito mais terrível que os precedentes, não pode deixar
de preocupar os governos e os povos. A imprensa de todo o
mundo, nas suas formas mais variadas, não deixa também de
tratar destes problemas angustiosos. A imprensa soviética não
faz excepção, e tanto os diários como os semanários e outras
publicações periódicas, se vêm ocupando do assunto sob
os mais diversos aspectos. Não será desprovido de interesse
indicar brevemente, o modo como os principais problemas do
mundo actual são encarados por essa imprensa.
Comecemos pela China e Coreia. É evidente que toda
a imprensa sob a inspiração do governo soviético, quer na
Rússia quer nos países para lá da cortina de ferro, se encontra
repleta de notícias sobre a guerra da Coreia. A intervenção
chinesa no conflito é apresentada sempre como obra exclusiva
de «voluntários», que lutam contra os «agressores americanos»,
para defender a sua pátria, ameaçada com a presença de
tropas dos Estados Unidos, tão perto das próprias fronteiras.
Evidentemente não se diz, nem uma palavra sequer, sobre o
auxílio russo, quer em técnicos e especialistas militares, quer
em material de guerra, aviões, etc.
Só de vez em quando aparece uma mal disfarçada, ou
melhor muito propositada, ameaça, como a seguinte: «Os
coreanos do Norte têm um tratado de aliança com a China
vermelha; e esta por sua vez, também possui um tratado de

* Exilado russo, colaborador da Brotéria de 1947 a 1962, especialista nas relações


oeste-este.

Brotéria 170 (2010) 181-193 181


aliança com a Rússia soviética». Logo – a conclusão é evidente – e
se rebentasse a guerra entre a China e os Estados Unidos, o r
último tratado entraria certamente em vigor, e a Rússia podia c
ser obrigada a intervir. Portanto, se sobrevier a terceira guerra t
mundial «a culpa será dos imperialistas americanos». s
Por outro lado, a imprensa moscovita dos meses de p
Novembro e Dezembro passados, comprazia-se em apresentar
como bastante próspera a situação económica da China, muito n
melhor, segundo afirma, que no tempo do governo naciona‑ d
lista, graças sobretudo ao auxílio e aos técnicos russos que fi
para ali foram enviados. É sabido como o governo de Moscovo e
procura explorar os territórios que se encontram sob a sua
dependência, não tanto em favor das próprias populações, d
como em vista das novas conquistas que pretende efectuar f
até conseguir o domínio universal. Estando a preparar desde P
há tempos a campanha da Coreia e da Indochina e outros t
empreendimentos militares futuros no Extremo Oriente, como C
já tivemos ocasião de mostrar na Brotéria, era natural que pro‑ l
curasse desenvolver ao máximo sobretudo as indústrias chine‑ c
sas mais directamente relacionadas com a guerra. p
Curiosa é também a atitude da imprensa soviética acerca q
da invasão do Tibete. A tese defendida desde o primeiro l
momento é a seguinte: não há invasão de nenhum território à
estrangeiro, visto que o Tibete deve considerar-se terra chinesa. t
É portanto um assunto puramente interno da China; trata-se a
apenas de «libertar» um território chinês «caído nas mãos de c
uma camarilha ao serviço do imperialismo americano». É igual‑ m
mente a tese do governo comunista chinês. Valeria a pena
recordar esta coincidência, se não soubéssemos há muito que d
o Kremlin se encontra por detrás de todas agressões perpe- l
tradas nos últimos tempos, por todo o mundo. r
O «Pravda» publicou recentemente uma extensa crónica do e
seu correspondente especial em Pequim, que dizia: «O governo
chinês decidiu regular o futuro das relações sino-tibetanas (
de modo radical, isto é, incorporando o Tibete na República v
Chinesa como província fronteiriça. Os membros do governo p
de Lhassa são considerados em Pequim meros usurpadores s

182
e separatistas, que procuram desmembrar da China territó‑
rios historicamente chineses. Por isso, a marcha dos exércitos
chineses sobre o Tibete têm carácter nítida e estritamente liber‑
tador». (Evidentemente o Kremlin e o governo de Pequim não
se preocupam muito de que os factos desmintam em grande
parte as suas afirmações).
E mais adiante, o mesmo correspondente especial conti‑
nuava: «O segundo exército das Forças Chinesas de Libertação
do Povo, recebeu ordens de marchar para o Tibete com o
fim de libertar esta última parte da China continental que se
encontra ainda sob o jugo do imperialismo ·estrangeiro».
Por sua vez o «Izvestia», poucos dias depois do começo
da invasão, afirmava que a ordem de marcha para o Tibete
fora assinada conjuntamente pela Comissão do Sudoeste do
Partido Comunista chinês, pelo Comandante da Região mili‑
tar do Sudoeste e pelo Comandante do segundo Exército de
Campanha, com o fim de «libertar o Tibete do jugo imperia‑
lista», e que «a acção libertadora será conduzida com o tradi‑
cional heroísmo chinês e vencerá todas as dificuldades que
possam surgir-lhe pela frente». E acrescenta ainda o «Izvestia»
que no decurso do avanço em território tibetano «o exército
libertador cumprirá a sua missão com o máximo de fidelidade
à causa da Revolução», e que, ao mesmo tempo, procederá ao
trabalho de propaganda entre o povo do Tibete, «estudando
a sua língua, costumes e tradições» (o que não parece muito
conforme com a afirmação de o Tibete ser «terra historica‑
mente chinesa»).
E o mesmo jornal acrescentava ainda: «A organização
do Novo Tibete será trabalho da mais alta importância e que
levará muito tempo... Quando terminarem as operações milita‑
res, começará a obra do desenvolvimento político, económico
e cultural do Novo Tibete».
Por sua vez o semanário soviético «Rousskiya Novosti»
(Novidades Russas) publicado em Paris, e que serve de porta
voz do Kremlin no estrangeiro, publicou em 3 de Novembro
passado um artigo intitulado «O país dos 300.000 lamas». Nele
se expõe a versão soviética da história do Tibete. O autor

183
procura por todas as formas provar que o Tibete faz parte da
China, e portanto deve submeter-se à autoridade do governo e
comunista chinês. Depois continua: o
«O exército tibetano, organizado há muito pouco tempo n
pelas autoridades de Lhassa, conta 20.000 homens. Tecnica-
mente é muito fraco, ainda que possua armas e munições a
enviadas do Ocidente ou fabricadas no país, segundo os t
modelos americanos e europeus... O governo de Lhassa decla‑ M
rou recentemente que o Tibete se desprendia dos laços com o
Estado Chinês, e enviou à Europa e aos Estados Unidos uma c
missão, chamada «de boa vontade», que devia propagar a ideia d
da independência total do Tibete. Ao mesmo tempo, mandou v
também a Pequim uma missão encarregada de entabular nego‑ o
t
ciações com a China acerca das relações entre as duas nações.
Mas esta missão não pôde chegar a Pequim, e ficou bloqueada
n
na Índia, por os ingleses lhe terem recusado os vistos de trân‑
a
sito por Hong-Kong».
q
O artigo terminava desta forma: «A agência oficial noti‑
ciosa de Pequim recordou, há meses, que o Tibete é território
i
da China e que o Exército Chinês de Libertação do Povo, não
«
deixará nenhuma parcela do território chinês fora do poder da
d
República Popular da China. Hoje essas declarações oficiais
d
encontram-se transformadas em actos». e
Passemos ao problema da Formosa. É curioso notar que d
a imprensa soviética do interior da Rússia e dos países por R
esta dominados, praticamente não se tem referido ao caso da t
Formosa. Contenta-se apenas com reproduzir, de tempos a E
tempos, algum telegrama das agências noticiosas estrangeiras, g
sem comentários. Pelo contrário nas publicações soviéticas r
editadas fora da Rússia, tanto em russo como em outras
línguas, têm aparecido recentemente numerosos artigos sobre c
o assunto. Dir-se-ia que são balões de ensaio, lançados cons‑ N
tantemente, para experimentar as reacções dos países ociden‑ t
tais. Por outro lado mostram à evidência, o interesse que o v
Kremlin tem por essa ilha de tanta importância estratégica. a

184
Assim o semanário soviético «Rousskiya Novosti», editado
em Paris, e de que o Kremlin se costuma servir para tentear a
opinião pública do mundo ocidental, em todos os seus últimos
números tem consagrado longos artigos à Formosa.
Por exemplo, num editorial intitulado «A diplomacia
americana num beco sem saída», o semanário vermelho acen‑
tuava, e até mesmo exagerava, as divergências entre Truman e
Mac Arthur a propósito da Formosa, e sublinhava a hesitação
dos Estados Unidos em entrarem em conflito com a China
comunista e acender de novo a guerra civil chinesa, por causa
daquela ilha. Nesse mesmo artigo afirmava-se que a China
vermelha se prepara activamente para invadir, no momento
oportuno, a Ilha Formosa. Da parte de um semanário sovié‑
tico, tal afirmação não deixa de ser significativa.
No número seguinte, insistia-se nas mesmas ideias, e subli‑
nhava-se com visível satisfação as divergências entre a política
americana e inglesa a respeito da Formosa, acrescentando-se
que a Inglaterra nunca entrará na guerra por causa dessa ilha.
Na semana seguinte, novamente o «Rousskiya Novosti» se
inquieta com o problema formosano. Num artigo intitulado
«A diplomacia e o bom senso», afirma com veemência que os
direitos da China vermelha sobre a Formosa são indiscutíveis,
do mesmo modo que sobre Hong-Kong (nova reivindicação!),
e que foram reconhecidos pelo Presidente Roosevelt. O governo
de Pequim, acrescenta o mesmo artigo, foi reconhecido pela
Rússia e pela Inglaterra. Este facto, tira ao governo de Taipei
todo o direito de se considerar representante legal da China.
Em todo o artigo, como nos precedentes, o autor tenta exa‑
gerar as divergências das políticas inglesa e americana com
relação ao caso da Formosa.
Enfim, no último número do mesmo semanário que nos
chegou às mãos, insiste-se no mesmo assunto em dois artigos.
No editorial intitulado: «A política externa de Truman», repe‑
tem-se as mesmas alegações acerca dos direitos da China
vermelha, das divergências entre Truman e Mac Arthur, e entre
a política inglesa e americana.

185
O segundo artigo encara o problema sob outro aspecto. «
Primeiramente recorda a declaração de Truman segundo a r
qual os Estados Unidos não tinham nenhuma reivindicação e
a formular com respeito à Formosa. E acrescenta: «Nos meios c
políticos de Moscovo, frisa-se que a União Soviética e a Repú‑
blica Chinesa estão ligadas por um tratado de amizade, e que m
ambas realizam uma política de paz. Como prova desta soli‑ A
dariedade total, a U.R.S.S. apoia a China em todas as ques‑ p
tões internacionais que lhe interessam. Em particular, a União d
Soviética compartilha o ponto de vista da República Chinesa t
no que respeita à Formosa, e nunca admitirá a «neutralização» p
dessa ilha, parte integrante do território chinês. Se os Estados d
Unidos continuarem a insistir no projecto de «neutralização»,
a República Chinesa responderá a este atentado contra a sua a
soberania. E qualquer que seja a atitude da China neste caso, g
a U.R.S.S. apoiá-la-á inteiramente. A União Soviética e a Repú‑ S
blica Chinesa, demonstraram já suficientemente que desejam e
com sinceridade evitar um novo conflito. Se os Estados Unidos «
derem provas do mesmo desejo, a paz ainda poderá ser f
mantida!» d
Não nos devemos admirar desta identidade absoluta de d
vistas entre os governos da Rússia e da China. Pequim não
dará nenhum passo neste particular que não seja comandado e
de Moscovo. t
Como comentário a estas notícias vindas da capital sovié- a
tica, o articulista acrescenta que Truman se esforça por per‑ «
turbar o entendimento completo existente entre Moscovo e l
Pequim, e a esse fim se dirigia a citada declaração do Presi‑ E
dente americano. Mas essas tentativas encontram-se de ante‑ «
mão votadas ao insucesso. «Os esforços dos Estados Unidos l
para encontrar uma base de discussão comum com a República m
Chinesa, podem melhorar as relações entre os dois países, com R
a condição que não visem o fim de perturbar o entendimento h
cordial soviético-chinês». a
Por sua vez os «Études soviétiques», publicação mensal
editada em Paris, mas redigida em Moscovo, também tem tra‑ d
tado ultimamente do mesmo assunto. Num artigo, intitulado o

186
«Formosa, terra chinesa», V. Ivanov começa por descrever a
riqueza da ilha (arroz, cana de açúcar, bananas, ananases, etc.)
e a sua beleza (por isso os nossos portugueses antigos lhe
chamaram Ilha Formosa), e acrescenta:
«Esta paisagem encantadora encontra-se hoje transfor‑
mada: dia e noite vigiam nas praias as tropas do Kuomintang.
As metralhadoras encontram-se aperradas, e as sentinelas a
postos. A todo o momento podem surgir no mar os navios
do Exército popular chinês, e milhares de soldados corajosos
tentarão desembarcar nas suas praias, para libertar esta última
parte da China do jugo dos traidores do Kuomintang e do
domínio dos imperialistas americanos».
Logo abaixo V. Ivanov acrescenta: «Sob a direcção dos
americanos, os falidos do Kuomintang, gizam agora planos de
grande envergadura para intervenções militares na China livre.
Segundo o jornal «Sunsunmanbao», existe um acordo secreto
entre o Kuomintang e a camarilha belicista americana, para as
«operações militares futuras da China», que se desenrolarão da
forma seguinte: as tropas japonesas atacarão no nordeste
da China, as forças americanas na parte central e os exércitos
do Kuomintang no sul».
Os americanos, segundo o mesmo articulista, possuem
em Taipei um destacamento «internacional», formado sobre‑
tudo por japoneses, chefiado pelo general Hiroshi Nemoto,
antigo comandante do exército expedicionário na China. Esta
«guarda da Wall Street» exacerba-se sobretudo contra a popu‑
lação local que julga pouco dócil e demasiado democrática.
E conclui o seu longo artigo com estas palavras ameaçadoras:
«A libertação da Formosa é uma das missões do Exército popu‑
lar da China. Todo o povo do nosso país, declarou recente‑
mente Tchou En Lai, Ministro dos Negócios Estrangeiros da
República popular da China, lutará certamente como um só
homem, para desembaraçar Taiwan (Formosa) dos agressores
americanos».
Por sua vez, o general Tchou Deh, comandante supremo
do Exército popular chinês, no discurso pronunciado por
ocasião do terceiro aniversário da insurreição de 1947, pro-

187
feriu estas breves, mas elucidativas, palavras: «A libertação da
Formosa não é empresa fácil; mas o Exército popular tomou a s
firme resolução de a realizar». à
Esta preocupação do Kremlin pelo caso da Formosa expli- d
ca-se, em grande parte, porque é fora de dúvida que a situação E
militar e económica da ilha melhorou notavelmente nos últi‑
mos tempos. A este propósito, o jornal anticomunista «Rous‑ p
siya» (Rússia) que se publica em Nova Iorque, publicou recen‑ e
temente dois longos artigos do seu colaborador K. Stoyanov, c
que reside há longo tempo na Formosa. Nesses artigos, o autor f
apresenta numerosos dados correctos sobre a situação na ilha, d
que vamos resumir.
As tropas chinesas que se encontram na Formosa estão m
equipadas com armamento moderno, predominantemente p
americano, sobretudo espingardas e outras armas ligeiras. t
O fardamento é americano; mas as divisas são chinesas. m
Na Formosa existe actualmente uma boa Escola Naval, g
montada pelos americanos. Dispõe de aparelhos moderníssi‑ d
mos de radar e outros instrumentos que permitem aos futuros c
oficiais de marinha exercitarem-se convenientemente. Além m
disso há uma Academia Naval para aperfeiçoamento dos conhe‑ p
cimentos técnicos, em que só se aceitam os oficiais chineses c
que falem o inglês, pois todas as aulas são nesta língua. c
Os pilotos da aviação exercitam-se com aparelhos q
«Mustang» e de outras marcas americanas, e adoptam intei‑ g
ramente a técnica das forças aéreas dos Estados Unidos. No É
outono passado não possuíam mais de 150 aparelhos para o
exercícios, número manifestamente insuficiente. o
A frota é composta por antigos barcos de guerra chineses t
e japoneses; mas a maior parte das unidades de guerra e de
transporte são navios americanos vendidos ou cedidos pelos u
Estados Unidos. v
Em geral a disciplina é boa, e o moral das tropas tinha t
melhorado consideravelmente, ao menos antes dos recentes q
sucessos da Coreia. Esta melhoria era devida sobretudo a a
decisão do Presidente Truman de defender a Formosa no caso T
de um assalto dos comunistas chineses. E

188
Quanto às possibilidades de defesa da ilha, Stoyanov apre‑
senta-as antes da recente declaração de Truman com respeito
à participação da 7.a esquadra dos Estados Unidos no caso
de um ataque à ilha, o que veio melhorar muito a situação.
Eis como a descreve o citado autor.
O bombardeamento em grande escala não deixa de ser
possível. Mas a aviação da ilha poderá opor-se-lhe com certa
eficácia, sobretudo depois que recebeu recentemente 100
caças de propulsão por jacto. A inquietação provocada pela
falta de aviões de treino e por conseguinte de pilotos, será sem
dúvida acalmada com algum auxílio americano oportuno.
Quanto ao desembarque em pára-quedas de tropas e
material, atrás das linhas de defesa da ilha, as autoridades não
parecem muito preocupadas com essa hipótese. Julgam que
tal projecto estaria de antemão votado ao malogro. Evidente‑
mente não seria impossível fazer desembarcar em pára-quedas
grupos de tropas, sobretudo destinadas a praticarem actos
de sabotagem, ou algumas armas e outros materiais para os
comunistas locais. Mas o transporte aéreo de unidades inteiras,
maiores ou menores, acompanhadas do material pesado indis‑
pensável (canhões, tanques ligeiros, etc.) oferece grandes difi‑
culdades, não só em razão da distância bastante considerável,
como sobretudo por causa das condições do terreno. Três
quartas partes da ilha estão cobertas de altas montanhas, com
grandes precipícios, e de cumes sempre cobertos de neve.
É verdade que a parte ocidental da ilha é menos abrupta; mas
os arrozais sempre cobertos de água, constituem um sério
obstáculo para a descida em pára-quedas de homens e sobre‑
tudo de material pesado, que facilmente se atolaria na lama.
Por todas estas e outras razões parece unicamente de temer
um ataque frontal, que evidentemente poderia ser coadju‑
vado pelos pára-quedistas. Mas esse ataque depende sobre‑
tudo da quantidade de barcos de guerra e de transporte de
que possam dispor os comunistas chineses. É evidente que
a Formosa, só por si, não poderia resistir por muito tempo.
Tudo depende, pois, do auxílio que possa receber dos
Estados Unidos, e sobretudo da presença da esquadra ameri-

189
cana naquelas paragens, e do auxílio que esta e a aviação ‑
prestem aos defensores da ilha. Só o futuro nos poderá mos‑ n
trar se os Estados Unidos e outras nações quererão e poderão l
defender eficazmente a Formosa. é
Stoyanov, porém, sublinha que o perigo principal será t
provavelmente do interior da ilha. Este perigo reveste dois c
aspectos. n
Primeiramente, é um facto reconhecido que os formo- d
sanos, em geral, não são afectos aos chineses. O largo tempo t
que estiveram sob o domínio japonês acabou de quebrar, quase
por completo, os laços que os prendiam à China. Por isso, a e
maioria da população inclina-se para a independência. Estes n
separatistas lutariam talvez contra os invasores comunistas; u
mas não para ficarem sob o domínio dos nacionalistas, também p
chineses. Nesta ordem de ideias é curioso mencionar que têm
reaparecido ultimamente certos sentimentos pró-japoneses na E
Formosa. Recentemente falou-se ali muito de 10.000 soldados o
e oficiais japoneses que se teriam refugiado nas altas monta‑ t
nhas por ocasião do armistício de 1945, e que no momento do A
ataque vermelho participariam na defesa da ilha. Ainda que, d
segundo parece, este boato não tem fundamento, revela con‑ p
tudo, segundo o mesmo Stoyanov, o sentimento de hostilidade q
de parte da população contra a China (quer nacionalista quer d
comunista), e certa confiança e esperança no Japão. Os sepa‑
ratistas formosanos esperam que os Estados Unidos secundem o
o seu movimento, e mais tarde ou mais cedo, a sua pátria f
goze de certa independência, sob a tutela dos Estados Unidos d
ou da O.N.U. a
Depois da recente declaração de Truman, com relação d
à defesa da Formosa, o perigo da acção destes separatistas d
atenuou-se, e tudo leva a crer que, no caso dum ataque f
vermelho, participariam na defesa da ilha, visto que nesse q
caso combateriam ao lado dos americanos, em favor da sua S
independência, e não ao lado e em favor dos nacionalistas e
chineses bastante suspeitos aos seus olhos. t
O segundo aspecto do perigo interior consiste no seguinte:
Boa parte dos homens que rodeiam Chang-Kai-Chek, compõe- d

190
‑se de pessoas que só pensam em refugiar-se no estrangeiro
no momento do perigo, levando consigo as riquezas acumu‑
ladas, abandonando toda a actividade patriótica. Outra parte
é formada por pessoas - o que é pior ainda, que desde já
trabalham secretamente em favor dos comunistas, ou pro-
curam acomodar-se com os vermelhos e trair Chang-Kai-Chek
no momento oportuno. As autoridades nacionalistas chinesas
da Formosa têm procedido a algumas depurações. Mas estas
terão sido suficientes?
Tal situação, junto com a actividade dos espiões soviéticos
e dos comunistas chineses, que trabalham clandestinamente
no interior da ilha, representam, segundo o mesmo Stoyanov,
um problema grave para a defesa da Formosa, provavelmente
perigo maior ainda que a ameaça exterior.
Se do Extremo Oriente voltarmos os olhos para a velha
Europa, o mais grave problema é sem dúvida, actualmente,
o da defesa do Ocidente contra um possível ataque sovié‑
tico. Nesta defesa do Ocidente deve participar naturalmente a
Alemanha. Que pensa o Kremlin desta participação alemã na
defesa da Europa? É evidente que tentará opor-se-lhe o mais
possível. Mas qual será a táctica para o conseguir? Vejamos o
que a este respeito diz ou insinua a imprensa e outras formas
de propaganda do Kremlin.
A emissora de Moscovo, no dia 7 de Dezembro, difundiu
o texto completo da nota enviada pelo Kremlin ao Governo
francês acerca do projecto de integração das forças armadas
da Alemanha Ocidental no sistema de defesa europeu. Logo
a seguir emitiu extractos de um artigo do «Pravda» do mesmo
dia, em que Joukov, correspondente daquele jornal em Paris,
descrevia em termos sombrios e trágicos «a indignação do povo
francês diante deste projecto dos imperialistas americanos, que
querem de novo entregar a Europa aos assassinos americanos».
Segundo o mesmo correspondente, toda a cidade de Paris
estava quase em revolta aberta, e poder-se-iam esperar graves
tumultos e outras perturbações em todo o território francês.
Esta oposição violenta à participação da Alemanha Oci‑
dental na defesa da Europa, é bem compreensível da parte dos

191
bolchevistas que vêem os seus planos de agressão frustrados m
por aqueles projectos, e manifesta-se nas colunas da imprensa d
moscovita. Eis alguns exemplos. s
O mesmo Joukov, poucos dias antes, escrevia: «Os repre‑ r
sentantes do povo francês apelam para a criação duma frente f
única contra o rearmamento da Alemanha Ocidental... Mas, D
obedecendo às ordens dos seus senhores americanos, a maior o
parte dos parlamentares franceses permanecem surdos a este r
apelo... Os americanos desejam a restauração pura e simples a
do exército alemão, sem nenhum equívoco e sem nenhuma p
restrição. É o plano que imporão aos seus vassalos europeus». I
No «Pravda» de 4 de Dezembro de 1950, Joukov escrevia: d
«As preferências dos generais americanos são para armar as t
antigas tropas fascistas da Alemanha Ocidental».
Dois dias antes, o mesmo jornal consagrava um longo o
artigo de crítica violenta ao livro de John Foster Dulles d
«A guerra ou a Paz». O seu autor Alexandrov declara: «Na sua e
obra, Dulles expõe com toda a franqueza o programa impe‑ m
rialista dos Estados Unidos com respeito à Alemanha. Reclama «
a restauração do imperialismo germânico. Não oculta que o t
fim dos imperialistas americanos é utilizar os alemães como l
carne de canhão, para a realização dos planos agressivos do f
Governo de Truman». e
O «Izvestia» tem afirmado com insistência que os ameri- c
canos, ao organizarem as forças armadas da República de
Bona, já chamaram praticamente às armas numerosos gene‑ s
rais hitlerianos, e que este futuro exército ocidental alemão l
será inevitavelmente um exército hitleriano. O mesmo se vê d
escrito e repetido no semanário soviético de Paris «Rousskiya O
Novosti». O
Enfim a revista bi-semanal «Bolchevik», órgão do Politburo, q
no número de 21 de Novembro passado, publicava um longo A
artigo assinado por D. Kraminov, com o título: «A remilitari- s
zação da Alemanha Ocidental é uma grave ameaça para a paz».
O autor começa por afirmar que a U.R.S.S. há muito eliminou
da sua zona de ocupação na Alemanha todo o militarismo
prussiano. (É claro que se esquece de dizer que criou nesta

192
mesma zona o militarismo soviético, e organizou um verda‑
deiro exército comunista alemão, o qual constitui de facto uma
séria ameaça para a paz). A seguir o autor trava um assalto em
regra contra o «imperialismo americano», e contra a ideia de
fazer participar a Alemanha do Ocidente na defesa da Europa.
Depois de repetir fielmente todas as acusações que se lêem em
outras publicações e a que já aludimos (aliança com os hitle‑
rianos, decisão de utilizar os alemães como carne de canhão,
afirmação de que a remilitarização da Alemanha Ocidental já
principiou há muito, etc.), o autor acusa os Estados Unidos, a
Inglaterra e a França de esquecerem completamente os acordos
de Postdam, e de os dois últimos países terem violado os tra‑
tados de amizade e aliança celebrados com a União Soviética.
Depois acrescenta: «O plano americano de fazer ressurgir
o exército da Alemanha Ocidental, e de transformar o território
da República de Bona numa base para a agressão americana,
executa-se com uma precipitação febril. Está em vias de for-
mação na Alemanha Ocidental um grande exército regular...»
«Os povos pacíficos, como também o povo alemão, não permi-
tirão que os fomentadores da guerra americanos e os seus
lacaios servis alemães, tais como Adenauer e outros, trans-
formem de novo a Alemanha Ocidental num arsenal de guerra,
e que o exército alemão de Oeste, que está em formação, se
converta numa potente arma de agressão na Europa».
Este furor da imprensa soviética – de que poderíamos apre‑
sentar mil outros testemunhos – mostra bem como as nações
livres têm razão de apressar a organização da defesa efectiva
do Ocidente contra a agressão premeditada pelos sovietes.
O  Kremlin indigna-se tanto com a ideia de ver a Alemanha
Ocidental participar na defesa da Europa, porque compreende
que este facto aumenta notavelmente a nossa força defensiva.
A nossa fraqueza, evidentemente, corresponderia melhor aos
seus projectos agressivos.

NICOLAU BELINA-PODGAETSKY

193
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Bíblia Espiritualidade

Evangelho de Jesus Cristo – Bonhoeffer, Dietrich:


Segundo Mateus, Marcos, Lucas e João. Vivre en disciple. Le prix de la grâce.
382 págs. A. O., Braga, 2006. (3,50 �) 330 págs. Labor et Fides, Genève, 2009.
(29 �)
Só para informação aos leitores, refe-
rimos que se trata de texto adaptado da Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), «Teólogo
tradução do P. Matos Soares, com indica‑ precoce» – doutorou-se em teologia com
ção de leituras para cada dia e copyright apenas 21 anos –, deixou uma obra de
2005 de Joaquim Cabral. Não será hoje a
vulto para a reflexão levada a cabo sobre
melhor tradução existente, mas tem intro‑
a fé cristã no século XX. Ao manifestar
dução geral sobre os quatro e (depois) a
prontamente a sua oposição às medidas
cada um dos Evangelhos. Aponta o crité‑
anti-semitas do regime nazi, foi proibido
rio e razão de ser desta apresentação dos
de ensinar e de pregar. Tendo sido preso
textos; os capítulos e versículos são refe‑
pela Gestapo em 1943, acabou por ser
ridos à margem.
executado a 9 de Abril de 1945, no campo
Inovação principal: estabelecer uma
de concentração de Flossenbürg.
divisão que incentiva à leitura e medita‑
A presente obra, aparecida pela primeira
ção contínua, em dois turnos por ano, a
vez em Dezembro de 1937, foi redigida
começar em 1.XII e 1.VI. Dia e ano são
apresentados de modo a percorrer os quando Bonhoeffer era director do Semi‑
quatro «pausadamente, com uma certa nário de formação teológica e pastoral da
disciplina». Para maior clareza e apro‑ Igreja luterana alemã, em Finkenwalde
fundamento, indica também os lugares (1935-1937), representando claramente «o
paralelos ou semelhantes, algumas notas desembocar de uma longa reflexão sobre
esclarecedoras, com insistência na bon‑ a radicalidade evangélica» e inscrevendo-
dade de Deus e na actuação de Maria. ‑se, por aí, «na tradição dos grandes movi‑
Como auxiliares de leitura, vem no mentos de renovação cristãos que jamais
final do volume um índice analítico, a aceitaram que a Igreja fosse uma adapta‑
equivalência de medidas/moedas/ tempo ção ‘religiosa’ à sociedade civil: os prega-
e mapas da Palestina e de Jerusalém. – dores itinerantes, os Padres do deserto,
F. Pires Lopes. Francisco de Assis e as ordens mendican-

195
tes, inúmeras congregações religiosas ou e que, pelo testemunho da Escritura, con‑ «
movimentos de reforma radical …» (7). tinua a falar-nos. Ele está-nos presente, s
Escrito numa situação político-social hoje, corporalmente e com a sua Palavra. c
particularmente dolorosa, Vivre en disci- Se queremos ouvir o seu apelo a segui‑lo, (
ple (Nachfolge) – que se havia tornado um é-nos necessário escutá-lo ali onde ele l
clássico em língua francesa desde o seu próprio se encontra. O apelo de Jesus t
aparecimento, sob o título Le prix de la Cristo ressoa na Igreja pela sua Palavra m
Grâce, nos anos sessenta – constitui, em e pelo seu sacramento. A pregação e o p
síntese, uma meditação sobre o Sermão sacramento são o lugar da presença de B
da Montanha e sobre o apelo de Jesus Jesus Cristo (…). Sim, ele já está aqui t
aos discípulos para O seguirem – «Vem enquanto transfigurado, vencedor, vivo. d
e segue-me»; «Vem após mim» – (I parte): Mais ninguém senão ele pode chamar a –
«No meio da divisão da nossa consciên‑ segui-lo» (183-184). Relativamente à Igreja,
cia e do nosso pecado, eis-nos atingidos crê ter reencontrado o A. uma ideia que
pelo apelo à simplicidade da obediência» tinha sido esquecida: «A Igreja é Cristo
(57): «É portanto preciso que Cristo tenha presente em pessoa. (…). É realmente V
chamado; só sobre a sua palavra se pode preciso pensar a Igreja como uma pessoa C
dar o passo. Este apelo é a sua Graça, viva, uma pessoa evidentemente muito 1
chamando, fora da morte, à nova vida de particular» (200). Em suma. «A Igreja é q
obediência» (46); «Os textos das confis‑ una, Ela é o corpo de Cristo, mas ela é ao
sões de fé luterana reconhecem também mesmo tempo a pluralidade e a comunhão F
de maneira significativa a importância de dos membros» (202). h
um primeiro passo» (45); «Só quem é obe‑ Julgamos dever notar, a concluir, que s
diente crê» (44); «A noção de uma situa‑ a presente tradução francesa da obra em a
ção na qual podemos crer não é mais do referência surge inteiramente renovada, n
que a paráfrase de um estado de facto no além de enriquecida com notas e comen‑ c
qual as duas frases seguintes, ambas igual‑ tários que se apoiam sobre uma nova e
mente exactas, são válidas: só o crente é edição das obras de Bonhoeffer, lançada t
obediente, e só aquele que é obediente crê» na Alemanha. Acerca do novo título adop‑
(43); foi assim que os discípulos «obede- tado para o vol., assim se exprimem os r
ceram à voz do bom pastor porque conhe‑ responsáveis por esta versão francesa de d
ciam a sua voz» ( 82). Vivre en disciple: «restitui uma vida nova p
Simultaneamente, apresenta o livro, na a um texto cuja pertinência teológica e n
secção final A Igreja no seguimento de clareza de desenvolvimento oferecem j
Cristo, uma reflexão sobre a realidade um instrumento determinante para quem a
da Igreja, a partir do legado do apóstolo pretenda sondar os recursos autênticos c
Paulo. Começa Dietrich Bonhoeffer. por da fé e as fontes do seu próprio compro‑ v
varrer decididamente as falsas questões misso», já que Viver como discípulo é um c
que só se nos põem quando nos coloca‑ livro sobre «o extraordinário e inaudito do c
mos fora da presença viva de Jesus: «Todas apelo evangélico, contra o alinhamento
elas recusam contar com o facto de que da Igreja com regime nazi». Por sua vez, A
Jesus não está morto, mas que vive hoje os editores alemães fazem notar que, se n

196
‑ «A interpretação dada por Bonhoeffer do dos na Alemanha onde aos 23 é morto
sermão da montanha força a atenção», tal em campo de concentração, mas depois
como há setenta anos atrás, Nachfolge de boa sementeira de fé entre jovens da
, (Vivre en disciple) não é, todavia, «um mesma idade, na sua terra ou na depor-
e livro separável do seu contexto» – con‑ tação. Beatificado.
texto que eles expõem, aliás, num longo –  Titus Brandsma, filho de campone‑
a mas curioso posfácio (265-287) que «se ses da Holanda, depois monge carmelita
propõe seguir o caminho percorrido por e intelectual devotado às causas mais jus‑
Bonhoeffer antes, durante e depois do tas: «Há sempre um momento decisivo; o
i trabalho sobre este livro, seguindo-se-lhe Senhor não deseja que as coisas fiquem
depois o percurso do próprio livro» (265). sempre na mesma» (81), pois «o mistério
– Isidro Ribeiro da Silva. da Encarnação revelou-nos quão valioso
, é para Deus o Reino» (91). Este espírito
e aberto com os outros e com Deus, o levou
o ao prestígio na Ordem, ao campo de con‑
e Vítimas do nazismo: Edith Stein, Marcel centração, aos altares. «Fez-nos ter uma
a Callo, Titus Brandsma
visão divina em relação à nossa situação
o 120 págs. Fundação AIS (Ajuda à Igreja
de prisioneiros» (103). Beatificado.
que Sofre) e Paulinas, Lisboa, 2007. (5 �)
Os caminhos podem ser vários. Mas a
descoberta é idêntica: «Revelou-se-me uma
o Felizmente, canonizados ou não, ainda
esfera de fenómenos que já não podia
há santos e mártires nos nossos dias. Bom
ignorar» – a ânsia de Verdade é já em si
sinal de autenticidade, a Igreja continua
uma oração, pois a linguagem da alma
a ser Igreja de mártires. Porque «parece
sobrepõe-se aos apelos do corpo» (14-17).
, não ter fim a crueldade do homem para
Uma vida – e cada aniversário – não se
‑ com o próprio homem» (73), a Igreja não
justifica só com a passagem do tempo.
a esquece «as vítimas do mundo». Mártir =
a testemunho. Quando se chega à consciência, temos
‑ Confirmação oportuna e feliz: estes necessidade de valores que lhe dêem sen‑
s resumos de três vidas humanas sacrifica‑ tido. Necessidade, diríamos, de vocação:
das pela esperança de vida maior ou mais exigimos mais qualquer coisa, qualquer
a plenificante que as falidas promessas do ideal que nos chama, que dê sentido à
nazismo. – Edith Stein, a jovem filósofa vida – personalizado e personalizante, por
m judia alemã, aluna de Husserl, convertida hipótese. Para não serem arrastados pelos
ao catolicismo e que se tornou religiosa grandes vendavais da história apareceram
carmelita para seguir Teresa d’Ávila na os mártires (testemunhas) contra o paga‑
‑ vocação de espiritualidade e de santifi- nismo; para que não triunfassem os tota‑
cação, é hoje exemplo para os intelectuais litarismos do século XX, a muitos cristãos
convertidos. Canonizada. foi necessário sacrificar a vida para que
o –  Marcel Callo, o jovem militante da a esperança não morresse incinerada nos
Acção Católica Francesa, tipógrafo e campos de concentração do ódio perse-
e noivo, convocado para trabalhos força‑ cutório. – F. Pires Lopes.

197
Jovens mártires: Maria Goretti, Antónia (consciente) foi nas horas após o martírio. r
Mesina. «A história de Maria é também a de Ales‑ M
96 págs. Fundação AIS (Ajuda à Igreja sandro» (79): a mãe esteve na canonização c
que Sofre) e Paulinas, Lisboa, 2008 (5 �) da filha, e o assassino na da mártir. m
Irradiação desta e igualmente breve h
Sob o amor tão descantado esconde‑se (1919-35) mas diferente, a vida de outra h
uma vaga de desamor que avassala o jovem italiana, também mártir da castidade m
mundo e da qual um poeta diz: «Morre juvenil, Antónia Mesina. A vida familiar e d
o amor ao fim da carne». Esse que triunfa uma precoce Acção Católica introduziram- g
em violações e pedofilias tende a aviltar na na oração e no serviço dos outros. o
os exemplos de castidade que avultam Também beatificada. – F. Pires Lopes. p
como Everestes da terra. O sofrimento que o
inflige às crianças e famílias multiplica os d
mártires em nossos dias. Precedido pelas e
vítimas da perseguição política e religiosa, q
sob os regimes desumanos do nazi-comu‑ Filosofia d
nismo, está-se a multiplicar sem medida n
o número dos ‘novos mártires’ (do amor, t
da caridade, da justiça) que João Paulo II Narbonne, Jean-Marc: v
não deixou esquecer, consciente como Levinas et l’héritage grec; t
estava de que o flagelo que transformou suivi de m
a sua Polónia em nação mártir tende a Hankey, Wayne: d
multiplicar pessoas, famílias, nações em Cent ans de néoplatonisme en France.
Coliseus de martírio – agora atiçados por 268 págs. J. Vrin / Les Presses de L’Univer- m
novos perseguidores, entre os quais figu‑ sité de Laval, Paris/Québec, 2004. (28 �) s
ram marcadamente as tiranias e o capita‑ s
lismo internacional. Para os permanentes Como revela o título, a presente obra é c
desatinos do homem, a única redenção formada por duas partes autónomas, com d
continua a ser a morte e ressurreição do diferentes autorias, mas convergentes na u
Senhor e dos que nele crêem – a ‘força afirmação da existência de um neoplato‑ a
débil’ de Cristo é que reforça a fidelidade nismo simultaneamente actuante e algo s
da Igreja, dos cristãos. negligenciado no seio da cultura contem‑ d
A vida curta de Maria Goretti vindimada porânea. Surpreendentemente, o facto d
em defesa da castidade dá para salientar leva-nos a constatar, por um lado, que um p
a formação familiar e pôr a adolescente pensador tão incomparável e original na a
como protectora da juventude. Na sequên‑ paisagem filosófica francesa, como Emma‑ m
cia dos factos, a positivo também o rasto nuel Levinas, acaba por ser questionado a t
de arrependimento que provocaram. Pela partir de um quadro interpretativo inabi- (
exemplaridade de vida até quase aos doze tual, ou seja, pelo platonismo historica‑ m
anos se adivinhava o que havia de ser: mente relançado e interpretado pelo neo- i
«santa, mesmo que não tivesse sido már‑ ‑platonismo; e, por outro, a verificar, com t
tir» (disse um cardeal). O maior sofrimento igual surpresa, que pensadores tão dife‑ p

198
. rentes como Bergson e Derrida, Bréhier e pelo menos busca no Bem epékeina (para
‑ Marion ou Henry participam de uma ampla lá do ser, República VI, 509 b) de Platão
o corrente intelectual, renovadora mas clara- – ou de Plotino –, é a marca daquilo que
mente marcada com o selo longínquo da transcende a totalidade e lhe permanece
henologia neoplatónica: «Quem não é, exterior, o sinal daquilo que vem como
a hoje, neoplatónico? As tradições árabe e suplemento em relação a tudo o resto,
e medieval são revistas e corrigidas à luz não portanto aquilo que subsume todas
e do neoplatonismo, via de passagem obri‑ as coisas (…): neste suplemento, nesta
- gatória da sabedoria grega clássica para heteronomia radical instaurada pelo Bem,
. o mundo renascente, moderno e contem‑ crê Levinas poder reconquistar a exigên‑
porâneo. (…). Parece-nos, contudo, que cia ética na sua expressão mais pura» (57).
o platonismo de Levinas, mais profundo Daí a feliz e luminosa conclusão com que
do que parece à primeira vista, se afigura deparamos mais adiante: «‘Outrem’ reside
esclarecedor não somente para a obra em já no Bem epékeina de Platão, o Bíblico já
que se refracta, mas para a compreensão no Grego, o que não quer evidentemente
do próprio ponto donde brota o plato‑ dizer que o Bíblico é igual ao Grego, mas
nismo. L’autrement qu’être, por outros mais simplesmente que eles participam de
termos, faz compreender melhor – tal‑ uma certa maneira um do outro e que,
vez o reinterprete, sem dúvida desloca-o em consequência, o primado da ética
também sensivelmente – o que é ou pelo lê-se já em filigrana do projecto platónico,
menos o que pode tornar-se o para além que num sentido, ela o acompanha desde
do ser platónico» (9 e 12). sempre» (121).
Isso poderá, decerto, compreender-se Ao referir os momentos essenciais da
- melhor à luz do seguinte texto levina‑ re-emergência poderosa do neo-plato‑
) siano, extraído de Totalité et infini. Essai nismo em França e no Canadá francês, a
sur l’exteriorité «Mas a metafísica grega visão filosófica de conjunto, que os AA.
é concebe o Bem como separado da totali‑ nos fornecem aqui, atesta o poder regene‑
dade da essência e, por aí, ela entrevê (…) rador e multiforme daquela antiga tradição
uma estrutura tal que a totalidade possa grega bem como a sua influência no pen‑
‑ admitir um para além. O Bem é Bem em samento filosófico, na ética, na teologia e
si e não por relação à necessidade carente na vida religiosa e institucional contem‑
‑ dele. É um luxo em relação às necessi- porâneos. Essa tradição vai sendo agora
o dades. É precisamente por aí que ele está reactivada em força, intuídos que foram
para além do ser (…). O Lugar do Bem os seus recursos até agora insuspeitados:
a acima de toda a essência, é o ensinamento «Os limites que Narbonne assinala à crí‑
‑ mais profundo – o ensinamento defini- tica heideggeriana do neoplatonismo e da
tivo – não da teologia, mas da filosofia» metafísica em geral permitem-lhe reactivar
(cit. p. 57). Tocamos aqui o cerne da o que poderíamos chamar uma metafísica
‑ mensagem levinasiana, magnificamente neoplatónica». É que, por instigação, preci-
- ilustrada por aquela expressão: estrutura samente, dessa crítica heideggeriana à
tal que a totalidade possa admitir um metafísica ocidental, «caiu-se na conta de
‑ para além: «O que Levinas reencontra ou que o neo-platonismo, doravante melhor

199
estudado e compreendido, escapava por que acendia cada palavra no horror da a
numerosos elementos às objecções levan‑ luta que lá vivera, ou (mais tarde) visitei n
tadas por Heidegger relativamente à meta‑ o ‘Valle de los Caídos’, a catacumba onde b
física ocidental, a qual se revelava assim juntaram ossadas recolhidas de ambos os n
ainda mais rica e fecunda do que se pode‑ lados, e hoje também o próprio ‘caudillo’ o
ria julgar» (257). (240). r
Concluindo de modo sumário: «Filo- Agora, ao ler comodamente esta me- e
sofia ou teologia – ou religião – encon‑ mória da guerra vizinha e a quase setenta
tram aqui o seu ponto de convergência anos dos factos, o drama limita-se à recor‑ a
optimal, aí onde o ‘Bem para além do ser’ dação histórica da enorme tragédia que E
helénico, que significa ao mesmo tempo o derramou sangue, sofrimento e morte c
para além de todas as línguas e de todas para lá da fronteira, medo e ameaça de f
as culturas, vale como tradução racioci‑ guerra para o lado de cá. E note-se que i
nada do ‘Tu não matarás’ bíblico» (116). a vizinhança não foi apenas geográfica, b
– Isidro Ribeiro da Silva. foi também e sobretudo de forte parentela c
política. O livro ensina-nos muito sobre
a época e acerca de nós. Reconhecido o p
‘aberto apoio de Portugal’ e de Salazar i
História (101). e
O país estava armadilhado há décadas q
e treinava-se em ‘ginástica revolucionária’ ç
Romero Salvadó, Francisco J.: (79). Divisão tão profunda de uma nação, o
A guerra civil de Espanha – Origens, por força de paixões e ódios que se alicer‑ t
evolução e consequências. çavam para além-fronteiras, deixou rastos E
304 págs. Europa-América, Mem Martins, que mais tarde constituíram a táctica do L
2006. (23,90 �) já velho «divide et impera» que o bloco f
comunista pós-guerra logrou aplicar em d
Reacendida nos períodos de rápida mu- várias nações e os facciosos do Ocidente f
dança económica e cultural, a mentalidade também experimentaram mediante tiranias v
de ‘Reconquista’ dominou a Península opressoras (mas igualmente militares). z
desde antes das actuais nacionalidades. Porque seguimento e véspera da com‑ d
E Covadonga continua ‘lugar simbólico’. plexa avalanche dos grandes conflitos
Mouros, judeus, republicanos, comunistas europeus é que a guerra de Espanha foi a
e outros grupos incompatíveis com o ‘cadinho de romantismos’ opostos, ao ser‑ b
cristianismo e a monarquia tradicionais, viço da ‘grande causa’ que se discutia em d
vinham ensanguentando a arena ibérica. campos adversos e com armas na mão. r
A guerra civil de Espanha era para mim O estudo de Francisco Romero oferece é
de tremenda actualidade desde quando, uma «análise detalhada deste conflito fasci‑ d
aprendiz de leitura na escola, era escolhido nante e dos seus antecedentes» ao exami‑ s
para ler o jornal em família, ou quando nar a polarização político-social ocorrida c
pela primeira vez em Toledo tive como com a monarquia restaurada (1874-1931) n
cicerone do Alcazar um velho nacionalista e com a segunda República (1931-1936) e c

200
a ao classificar a evolução quer da facção Salgado, Anastásia Mestrinho:
i nacionalista quer das forças republicanas Mulheres portuguesas (sécs. XV/XVI) na
e bem como a paralela dimensão internacio‑ Europa do seu tempo.
nal do conflito, e sobretudo ao apresentar 148 págs. Tartaruga, Chaves, 2007. (15 �)
’ o seu desenlace: estabelecimento de um
regime ditatorial cujo objectivo imediato Com medo de esquecer alguma, mas sem
- era a trituração dos vencidos. querer ofender ninguém, talvez nunca
1936 foi o ‘apocalipse de Espanha’ até como nos referidos séculos XV e XVI,
‑ ao desfazer do impasse em 1938. Golpe de tantas mulheres se inclitaram tanto, em
Estado para três dias derivou para guerra proporção ao quantitativo populacional,
e civil de três anos. Tão violenta polarização numa altura em que havia menos euro-
e foi ‘a morte da terceira Espanha’. Síntese peísmo e muito menos feminismo.
e internacional: «ajuda fascista, aquiescência Trata-se de «vidas de mulheres que a
, britânica, paralisia francesa, desespero na- História reconhece»; mas nem só porque
a cionalista» (110). eram da alta nobreza, também porque
Em estilo calmo, equilibrante e desa‑ mereceram ser privilegiadas já no seu
paixonado, próprio da visão global e já tempo e para a sociedade de então. Neste
indiferente; longe de mitos, manipulações panteão de endinheiradas, por mérito
e monolitismos; por ordem cronológica pessoal figuram várias delas envolvidas
que permite apurar o sentido da evolu‑ em sucessões elevadas e conveniências
ção. O original é em inglês (2005) porque dinásticas do tempo. Duas Isabéis, duas
, o autor, como especialista bem documen- Leonores, uma Filipa, uma Beatriz… rai‑
‑ tado em história contemporânea de nhas, imperatrizes, infantas ou simples
s Espanha, é docente na Metropolitana de moeda de troca entre dinastias da época.
Londres. Se «os nacionalistas triunfantes Todas e cada uma a serem exemplo
o fizeram perdurar esse clima de ódio e de como contribuíram com a sua actuação
m divisão durante quarenta anos» (9), hoje para o bem da nação em que se imorta‑
felizmente os espanhóis – uma vez mais lizaram, a par e ao lado de tantos portu‑
vizinhança política – fizeram a sua actuali‑ gueses menos nomeados mas que à uma
zação democrática e até podem dar lições deram fama a Portugal. Por isso, modelos.
‑ de progresso em democracias europeias. – F. Pires Lopes.
s Erradicada portanto como dogmática
a luta da ‘civilização cristã’ contra a ‘bar‑
‑ bárie comunista’. Pelo quê a guerra civil
m de Espanha continua campo não encer‑
. rado para análise e debate. Epílogo certo Teologia
é que «a vitória desembocou num período
‑ de paz» – em prisão ou exílio para os opo‑
‑ sitores, para todos em «submissão silen‑ Hurtado, Larry W.:
a ciosa», até que o progresso na liberdade e Le Seigneur Jésus Christ. La dévotion envers
) no desenvolvimento consolidou a demo‑ Jésus aux premiers temps du christianisme.
cracia. – F. Pires Lopes. 782 págs. Cerf, Paris, 2009. (69 �)

201
Contra todas as aparências de imediato niano’ e ‘helenístico’ (37-39) – influenciou u
sugeridas pelo título, este volumoso tra‑ todos os estudos do século XX sobre o c
balho não é nem uma cristologia do Novo tema, em especial a escola de Bultmann r
Testamento nem uma história das origens com Käseman, Ebeling e Borkmann, e
do Cristianismo nem, muito menos, uma o livro de Larry Hurtado, professor de z
história das primeiras doutrinas cristãs. Novo Testamento e director do Centro de ç
Trata-se, sim, de uma análise das crenças estudos das origens cristãs na universidade d
e das práticas religiosas que constituíram de Edimburgo, é praticamente o primeiro
o culto de Jesus como personagem divino no género, atendendo à focalização sobre n
no cristianismo nascente. Por outras pala‑ o tema em questão e à ampla e circuns- u
vras, concentra-se o A. da presente obra tanciada investigação que lhe subjaz. q
no estudo da função exercida pelo perso- O Senhor Jesus acaba, assim, por constituir, a
nagem Jesus na vida e no pensamento dalgum modo, o coroamento de nume- u
religioso dos cristãos dos primeiros tem‑ rosas publicações em revistas científicas e, r
pos: «O lugar central da figura de Jesus mais concretamente, dos dois livros ante‑ a
na mais antiga devoção cristã é uma riores do A. em referência: One God, one
n
coisa indiscutível, tal é o ponto de par‑ Lord. Early christian devotion and ancient
d
tida deste livro. O meu objectivo é propor, jewish monotheism (1988) e At the origins
s
por novos roteiros, uma descrição e uma of christian worship. The context and
D
análise históricas deste notável fenómeno» character of earliest christian devotion
u
(13). Efectivamente, «a devoção para com (2000). À sua maneira, ambos eles se
t
Jesus manifestou-se com uma novidade e inscrevem também na tese central de
c
uma diversidade de expressões sem equi‑ Hurtado em O Senhor Jesus: todos os vestí‑
s
valente e para as quais não encontramos gios históricos testemunham uma explosão
c
verdadeira analogia no ambiente religioso súbita e fortemente acentuada da devo-
D
da época. (…). Por razões várias, sustento ção a Jesus em meio judaico-cristão.
n
que a devoção para com Cristo é um Contrariamente à opinião geralmente
admitida depois de Bousset, segundo a d
fenómeno perfeitamente notável e é igual‑
qual a devoção a Jesus se desenvolveu q
mente o resultado de um conjunto de
de maneira lenta e evolutiva, e em grande a
forças e de factores históricos (15 e 19).
parte sob a influência da religiosidade p
No termo da leitura do vol., é-nos dado
verificar, realmente, que O Senhor Jesus pagã da época, O Senhor Jesus de Larry c
cumpre cabalmente esse propósito do seu W. Hurtado veio apresentar sólidos argu‑ d
A., de «apresentar uma análise histórica mentos em favor de um ponto de vista t
solidamente fundamentada do apareci‑ radicalmente diferente. Obra magistral e d
mento e dos primeiros desenvolvimentos unanimemente saudada pela crítica, que a
da devoção para com Jesus» (690). viu nela um «momento marcante para i
Depois do enorme impacto registado compreender o cristianismo no contexto D
pela obra clássica de Wilhelm Bousset, da história das religiões», este «fantástico» t
Kyrios Christos (1913), que – apesar de livro em referência, movendo-se nos limi‑ a
operar, de maneira hoje tida como sim‑ tes estritos da disciplina histórica, apre‑ d
plista, «com uma distinção entre ‘palesti‑ senta a estrutura e a diafaneidade de d

202
u um grande manual – simultaneamente Segundo Marc Rastoin, aquilo que Larry
o científico e de fácil leitura. «Estudo histó‑ Hurtado faz com o cristianismo primitivo
rico» impressionante, o livro concentra-se é o mesmo que John P. Meier faz relati‑
, essencialmente na emergência, no enrai‑ vamente à pessoa de Jesus: «Propõe uma
zamento e na afirmação da fé e da devo‑ análise histórica e sociológica dos factores
e ção em Jesus como Cristo e Senhor, no que permitiram a emergência desse novo
e decurso do primeiro período cristão. fenómeno que é o cristianismo a fim de
Como é fácil de ver, não surpreende melhor perceber a natureza desta religião.
ninguém que o profeta Jesus tenha sido Uma das suas convicções mais profundas,
- um mestre para os seus discípulos. Mas decerto justa, é que para compreender o
. que, em tão curto lapso de tempo (de 30 que crê uma religião, não basta debruçar-
até cerca de 170) – são aqui examinados ‑se sobre o seu credo e analisar as disputas
- um a um todos os escritos dos dois primei‑ teológicas; é preciso também mergulhar
ros séculos, desde as Cartas de S.  Paulo na sua liturgia, nas suas orações e na
‑ até à obra de S. Justino – Ele se tenha tor‑ sua devoção. Aí se captará melhor o que
está no coração da fé». Outra conclusão
nado objecto de fé, de culto e de devoção
t ponderosa de Rastoin que, pela sua impor‑
dos primeiros cristãos, reconhecido como
tância, não resistimos a referir aqui, é a
salvador dos homens, elevado à glória de
seguinte: «Ao apresentar de maneira argu‑
Deus e futuro juiz supremo de todos, eis
mentada e histórica as origens bíblicas
um salto de considerável alcance na his‑
e judaicas do movimento cristão, Larry
tória do mundo. Esse jovem movimento
Hurtado vira definitivamente a página
cristão é judaico e afirma ciosamente o
‑ desses exegetas liberais alemães tipo
seu monoteísmo. A questão está em saber
o W.  Bousset, para os quais o cristianismo
como é que, no quadro estrito da fé no
- devia afastar-se o mais possível do judaís-
Deus único da Bíblia, conseguiu o cristia-
mo para ser credível» («Études» (Paris),
nismo nascente gerir e articular um para‑
e Octobre 2009, pp.425-426).
a doxo desse calibre, sabendo, para mais, Atentando bem na importância do cris‑
que a passagem de um cristianismo judaico tianismo no nosso mundo e no impacto
e a uma igreja maioritariamente formada das grandes questões que ele irreprimivel‑
por cristãos oriundos do paganismo e da mente levanta, muito para além do perí‑
cultura greco-romana em nada altera esta metro da fé cristã, podemos concluir com
‑ dialéctica fundamental. É que, como ates‑ o A.: «De facto, num sentido muito real,
a tam os grandes textos e as grandes figuras Jesus é maior do que o cristianismo, sendo
e do cristianismo dos dois primeiros séculos, portador de um apelo que ultrapassa as
e a fé e o culto de Cristo desenvolvem-se fronteiras do perímetro cristão global. No
irrevogavelmente no seio da fidelidade ao nosso tempo como na célebre cena da
o Deus único de Israel e da Sagrada Escri‑ Palestina descrita nos evangelhos, tanto
tura. Mas não só, já que também «a mais para os cristãos como para muitos outros,
‑ antiga fé em Jesus contribuiu para remo‑ a questão de Jesus permanece um debate
‑ delar literalmente o monoteísmo herdado de vivo interesse: ‘E vós, quem dizeis que
da tradição judaica ou bíblica…» (679). eu sou?’. A história da mais antiga devoção

203
a Jesus mostra até que ponto a resposta interesse da Europa – ainda se falava de
a esta questão pode ter profundas ramifi‑ amazonas e eldorado.
cações». Que fazer desse Jesus que, desde Uma peruana atravessa os Andes
muito cedo, pela dinâmica poderosa da e desce o Amazonas para ir ter com o
fé e da forte devoção que suscitou, cons‑ homem que há 20 anos não via: ele fran‑
tituiu a marca central e o rosto distintivo cês, de uma expedição científica para os
do cristianismo? Da resposta que for dada primeiros estudos locais (à custa de todas
a essa questão dependerá a persistência as contrariedades por parte dos homens,
da vitalidade do cristianismo. A encorajar- da fauna, da flora e das iras da natureza);
‑nos a tal, existe um precedente de monta, ela casara com o mais novo dos expedi‑
crucial para todas as épocas. «A história da cionários. Quando ao fim dos trabalhos
devoção a Jesus no período dos alvores pretendem voltar a França, ele parte antes
do cristianismo surgiu como uma erupção e acabam um em cada ponto do conti‑
vulcânica, e isso espantosamente cedo» nente. As muitas dificuldades do objectivo
(681), constituindo, por isso mesmo, «um «adicionam a veneração à ternura» (251).
Com tais ingredientes, a leitura cresce em
papel eminentemente fundador para os
interesse. Entretanto, a Guerra dos Sete
desenvolvimentos doutrinais» posteriores
Anos opusera «três potências europeias
(677). Enfim, «um dos mais importantes
por causa de territórios coloniais» (201).
contributos apresentados neste estudo é o
Documentando-se em factos reais de
de propor uma teoria ou um modelo das
viagens suas e em escritos antigos, o autor
forças e dos factores históricos que con‑
segue o mesmo percurso da peruana
duziram e moldaram a devoção para com
‘mulher do cartógrafo’ e escreve (2004)
Cristo no decurso destes primeiros séculos
«uma fascinante história de amor e de fei‑
decisivos» (40). – Isidro Ribeiro da Silva.
tos históricos e científicos» – obra notável
pela inesperada combinação entre emo‑
ção humana, experiência tropical e drama
histórico. Narrativa entre relato colonial e
Viagens romance histórico moderno, reúne os con‑
trastes e sofrimentos de épocas da coloni‑
zação desbravadora e as sempre difíceis
Whitaker, Robert: relações humanas de pessoas que seguem
A mulher do cartógrafo. os apelos do amor entre dedicações nem
316 págs. Europa-América, Mem Martins, sempre fáceis de compaginar. Pode ainda
2006. (21,90 �) considerar-se tanto um livro de ciência,
como de história ou de costumes.
Uma história verídica que envolve amor, Para melhor compreensão de perso‑
assassínio e sobrevivência no Amazonas nagens e intervenientes, ler a informação
– região propícia a dramas sangrentos – sobre eles nas pp. 267-70. Desenhos e
só que antiga, do século XVIII. Duzentos mapas ilustram o texto. Erros: 1736 (201)
anos depois da conquista, a Espanha é 1763, 1759 (187) é 1750. Sobre a Ama‑
mantinha o boicote a regiões mineiras zónia, claro, tem de aparecer Portugal. –
que, devido ao segredo, despertavam o F. Pires Lopes.

204
o b r a s  r e c e b i d a s  n a  r e d a c ç ã o
s
o

s
s
, OFERTA DOS AUTORES
;
‑ 1) Carvalho, Alfredo de, Dicionário de regência nominal portuguesa, Belo Horizonte,
s Garnier, 2007.
s 2) Mendes, S.J., Carlos Azevedo, Bichos e Deus ali tão perto, Coimbra, Tenacitas, 2009.
‑ 3) Serrão, Daniel, Um saneamento exemplar. Em plena revolução (1974-75), Braga,
o Alêtheia Editores, 2008.
. 4) Idem, Investigação em saúde. Reflexões avulsas, Porto, [s.n.], 2006.
m
e
s
OFERTA DOS EDITORES
.

CajaSur – Obra social y cultural – Av. Ronda de los Tejares 18-24 - 14001 Córdoba,
r
(Espanha):
1) Hernández Palomo, José J.; Rey Fajardo, José Del, S.I. (coords.), Sevilla y la
‑ América en la historia de la Compañia de Jesús. Homenaje al P. Francisco de
Borja Medina Rojas, S.I., 2009.

a Câmara Municipal de Oeiras – Largo Marquês de Pombal - 2784-501 Oeiras:
e 1) Oeiras à frente do seu tempo, 2009.


Cerf – 29, bd. La Tour-Maubourg - 75340 Paris Cedex 07 (França):
1) Beauboeuf, Stéphane, La montée à Jérusalem. Le dernier voyage de Jésus selon
Luc (9,51-19,48), 2010.
2) García, Jaime, L’amitié de Dieu. Saint Thomas de Villeneuve maître de spiritua-
, lité augustinienne, 2010.
3) Jourdan, Christine, Foi, espérance, amour chez saint Paul. Aux sources de
‑ l’identité chrétienne, 2010.
4) Siffer, Nathalie; Fricker, Denis, «Q» ou la source des paroles de Jésus, 2010.
e
)
‑ Gradiva – Rua Almeida e Sousa, 21-r/c Esq. - 1399-041 Lisboa:
– 1) Abreu, Luís Machado de; Franco, José Eduardo (coords.), Ordens e congrega-
ções religiosas no contexto da I República, 2010.

205
Missionários do Verbo Divino – Apartado 2 - 2496-908 Fátima:
1) Cristianismo no Japão. Universalismo cristão e cultura nipónica. Actas do Coló-
quio. Fátima 17 e 18 de Novembro de 2007, Fátima, Lisboa, Missionários do
Verbo Divino, Fundação AIS, 2009.

Présence de Gabriel Marcel – 21 rue de Tournon - 75006 Paris (França):


1) Le sacré à l’âge technique, 2010.

Publicações Europa-América – Apartado 8 - 2726-901 Mem Martins:


1) Cook, Robin, Intervenção, 2010.
2) Fisher, Marc, O milionário preguiçoso, 2010.
3) Prophet, Mark L.; Prophet, Elizabeth Clare, Compreenda-se a si próprio. Uma
viagem espiritual de autodescoberta e de conhecimento da alma, 2010.
4) Stalloni, Yves, Os géneros literários. Narrativa, teatro e poesia, 2010.
5) Templar, Richard, A arte de ter tudo e gastar quase nada, 2010.

Sal Terrae – Apartado 77/39080 - Santander (Espanha):


1) Balthasar, Hans Urs von, Textos de ejercicios espirituales, 2009.

Tartaruga – Rua Dr. Fernão de Magalhães Gonçalves, 37 - 2.º Dt.º - 5400 Chaves:
1) Fortuna, António, Frescos da memória, 2010.

Universidad de Alicante – Departamento de Historia Medieval y Moderna –


Campus de Sant Vicent del Raspeig, Ap. 99 - E-03080 Alicante (Espanha):
1) Conde de Floridablanca, Cartas desde Roma para la extinción de los jesuítas.
Correspondencia julio 1772 - septiembre 1774, 2009.

206

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