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A LARANJA MECÂNICA NA (ANTE) SALA DE MÁQUINAS DO

“SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL”.

Thiago Aguiar de Pádua1


Jefferson Carús Guedes2
“Uma piada explicada é uma piada não
compreendida. Nesse caso, o que pode fazer
alguém rir - embora com uma ironia
dramática - é a audácia ou a arrogância da
tentativa de se escrever uma filosofia do
humor”.3

Resumo: Trata-se de ensaio que busca refletir sobre o déficit democrático do sistema de
justiça criminal através do diálogo com a literatura distópica da obra Laranja Mecânica,
do escritor Anthony Burguess, especialmente a narrativa sobre o sistema Ludovico,
considerado como mecanismo de influência e controle social assemelhado à mídia, num
diálogo com Muniz Sodré e suas notas para uma teoria do acontecimento. Nos interessa
também o diálogo interativo entre a “influência da mídia” e a categoria metafórica da sala
de máquinas, cunhado pelo jurista e sociólogo argentino Roberto Gargarella. Neste
particular, encontramos campo privilegiado para a incursão reflexiva a partir de missiva
escrita em 1924 por Monteiro Lobato ao então presidente da república, Artur Bernardes,
destacando-se o pensamento da época avesso à democracia popular, às vésperas do Golpe
de Estado de 1930 e do Golpe do “Estado Novo de Vargas” de 1937, bem como revisita-
se famoso e esquecido artigo do jurista e então professor da Universidade de São Paulo,
Goffredo da Silva Telles Jr., publicado às vésperas do Golpe de Estado Civil-Militar de
1964, focalizando-se fragmento crítico do pensamento político-jurídico-ideológico sobre
o modelo liberal de democracia. Tais reflexões se destinam à reflexão sobre a sala de
máquinas do sistema de justiça criminal, com a proposição de ajustes.
Palavras-chave: Sistema punitivo. Distopia. Laranja Mecânica. Sala de Máquinas.

Sumário: Introdução; 1. Laranja Mecânica do “Sistema de Justiça Criminal”; 2. Sala de


Máquinas do “Sistema de Justiça Criminal”; 3. Considerações Finais; Referências
Bibliográficas;

1
Mestrando em Direito e Políticas Públicas (PPG/Direito UniCEUB). Pesquisador-Discente do Centro
Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC). Advogado. Bolsista Capes. Pesquisador dos Grupos de
Pesquisa Justiça Processual e Desigualdade (ISO) e Teoria (s) do Direito e Seus Sentidos Contemporâneos.
E-mail: tsapadua@gmail.com
2
Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (PUC/SP), Professor Doutor do PPG/Direito (Mestrado
e Doutorado/UniCEUB). Advogado da União. Líder do Grupo de Pesquisa ISO - Justiça Processual e
Desigualdade. E-mail: professor.carusguedes@gmail.com
3
CRITCHLEY, Simon. On Humor. New York: Routledge, 2002, p. 2.
INTRODUÇÃO
Este artigo, ou seus autores (o que dá no mesmo), assumem a perspectiva
de que o “sistema de justiça criminal brasileiro” é uma espécie de charge ou um cartoon4,
uma caricatura realizada por um cartunista ou chargista a partir de suas observações da
realidade, as vezes a troco de soldo, as vezes pelo prazer de provocar, as vezes movidos
pelo flerte casual de quem camufla um interesse na sedução do outro, ou na imposição de
um ponto de vista, mas sempre produto de um agir preponderantemente isolado e
solitário, que busca imprimir seus próprios traços nos desenhos que produz.5
Diferentemente da charge, possuidora de traços hereditários franceses
tendentes a “uma renovação inusitada e burlesca de reverter os conceitos impostos pela
aristocracia de poder”6, o sistema de justiça criminal atual (e diríamos: desde sempre)
perpetua justamente uma aristocracia de poder, bem entendido: um alto déficit
democrático na seleção e incriminação de condutas, mas assim como a charge, representa
uma poderosa ferramenta de comunicação discursiva, num contexto construtivo da
imbricação entre “o discurso jornalístico, político e artístico”.7
Este quadro pintado ganha tônus de maior sensibilidade e complexidade
quando observamos que a charge e o cartum travam um diálogo entre o humor e a crítica,
numa situação em que o humor acaba se transformando nos dutos pelos quais são
transmitidas determinadas visões sociais8, e portanto, ao menos neste aspecto, as normas
penais incriminadoras representariam não apenas uma poderosa ferramenta de tentativa
de controle social, mas especialmente um grande riso ou sarcasmo que os habitantes da
“sala de máquinas”9 do sistema de justiça criminal transmitem à população,
especialmente porque constatada a utilização de estereótipos na incriminação das

4
Reconhecemos a distinção e as peculiaridades existentes entre “charge” e “cartum”, mas utilizamos as
expressões em contexto específico.
5
A influência inegável aqui são as 4 imagens do direito penal descritas por Winfried Hassemer: 1) o direito
penal mal, 2) o direito penal puro, 3) o direito penal curativo, e, 4) o direito penal protetor, tratados ao longo
do presente texto. Cfr. HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Trad. Regina Greve. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007, p. 67-79.
6
ALBUQUERQUE, Diego Luiz Silva Gomes de; OLIVEIRA, Thiago Azevedo Sá de. A anatomia da
charge numa perspectiva de revolução sociohistórica. 2º Simpósio Hipertexto e Tecnologias na
Educação. Anais Eletrônicos, 1ª ed., Universidade Federal de Pernambuco, 2008.
7
QUADROS, Cynthia Morgana Boos de. ZUCCO, Fabrícia Durieux; MORETTI, Sergio Luiz do Amaral.
Com a Palavra, a Charge: Entre o Jornalismo, a Política e a Arte. Comunicação & Informação, v. 12, n.
2: p. 48-62, jul./dez., 2009.
8
Sobre o diálogo entre o humor e a crítica na charge ou no cartum, confira-se: ROCHA, Paraguassu de
Fátima. Charge e Cartum: Diálogos entre o humor e a crítica. Revista Uniandrade, v. 12, n. 1, 2011.
9
Sobre a metáfora “Sala de Máquinas”, confira-se a discussão sobre sua utilização pelo jurista e sociólogo
argentino Roberto Gargarella.
condutas10, e ainda, as representações que as pessoas e os profissionais do direito fazem
do “bandido”.11
O chamado “sistema de justiça criminal”, assim como a palavra
“democracia”, é uma expressão empolada e aplicada a “alguma coisa inexistente”, não
sendo uma construção coletiva ou democrática, no seu mais estrito sentido de participação
plural.12 Portanto, o título do artigo não precisaria ser explicado, pois assim como a piada
referida na epígrafe, só deveria sê-lo se não fosse compreendido.
Contudo, sempre é possível a existência de um ruído na comunicação. Por
isso, expliquemo-lo, embora sem a audácia e sem a arrogância, pois não se trata de
pretensão de elaboração de uma filosofia do humor, mas de algo mais banal e menos
nobre: algumas reflexões sobre o déficit democrático do sistema de justiça criminal
brasileiro, refletindo a partir da “sala de máquinas” do sistema de justiça criminal, como
observado por Roberto Gargarella13, e a partir de uma incursão nos domínios da literatura
distópica da “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess.14
Neste sentido, a realidade em que vivemos pode ser observada através do
prisma da distopia15, tendo como background a violência diária a que somos submetidos,

10
Confira-se as observações de Eugenio Raul Zaffaroni sobre a utilização de estereótipos na escolha de
condutas criminalizadas: Cfr. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Trad. Vania
Pedrosa e Amir Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246.
11
Neste último aspecto sobre as “representações” sobre os criminosos, a interessante tese de doutorado de
Júlio César Pompeu, investigou as representações sociais relativas “aos criminosos”, em particular aquelas
comuns ao campo social dos juízes, promotores e advogados, que acabou por apontar uma "relação direta
entre feiura, pobreza, poder e atribuição de periculosidade", indicando a existência de mais de uma
representação de crime entre os juristas, com “perfis” de criminosos diferentes entre os crimes e
consequências variadas nos julgamentos criminais, ajudando a compreender melhor os processos de
incriminação judicial: “Os rituais típicos da justiça criminal, que envolvem a atenção a regras
procedimentais que tem por finalidade a garantia da ampla defesa e do contraditório, assim como as
censuras explícitas a julgamentos que violem os princípios procedimentais da impessoalidade e da
imparcialidade, por visarem eliminar a influência de critérios subjetivos do juiz, podem interferir
positivamente no sentido de evitar que as representações sociais dos criminosos interfiram de forma
negativa nos julgamentos criminais, facilitando que se julgue alguém segundo as representações do juiz
sobre o acusado – seja ele um bandido segundo o senso comum ou segundo as representações dos
criminalistas - e não segundo os fatos por este cometidos”. Cfr. POMPEU, Júlio César. Cara de Bandido:
Representações Sociais dos Criminosos para Juristas e Não-Juristas. 222f. Tese de Doutorado
(Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade do Espírito Santo). UFES, Vitoria, 2013, p.
201.
12
Sempre tendo em mente as afirmações de Giovanni Sartori sobre a democracia: “Democracia, de modo
paradoxal, pode ser definida como um termo empolado aplicado a alguma coisa inexistente. Essa
afirmação é, naturalmente, provocante, e seria mais hábil dizer-se que democracia é uma palavra confusa
em relação ao que pretende designar. Conquanto esse modo de situar a questão ainda se mostre de alguma
maneira indevido, creio que isso nos dá uma chave para as dificuldades de nosso problema”. SARTORI,
Giovanni. Teoria Democrática. Trad. Francisco Rocha Filho e Oswaldo Blois. Rio de Janeiro/Lisboa:
Editora Fundo de Cultura Brasil/Portugal, 1965, p. 17.
13
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism: Social Rights and the “Engine Room” of
the Constitution. Notre Dame Journal of International & Comparative Law: Vol. 4: Iss. 1, 2014;
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism (1810-2010) – The Engine Room of the
Constitution. New York: Oxford University Press, 2013.
14
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004.
15
Há uma muito rica possibilidade discursiva nos limites temáticos da chamada “Democracia e Literatura
Distópica do Século XX”, que permite vasta exploração de temas e autores, como H. G. Wells (“A máquina
do Tempo”), Eugene Zamiatin (“Nós”), Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”), George Orwell
permitindo a reflexão sobre hipóteses e categorias a partir do sistema “Ludovico”16,
presente na já referida obra “Laranja Mecânica”, e adaptada para linguagem da 7ª arte por
Stanley Kubrick.
Somos submetidos diuturnamente a um ambiente permeado pelos mais
diferentes tipos de violência17: a fome, a arbitrariedade18, as notícias veiculadas pela
mídia (reais, inventadas ou ampliadas), os crimes19 tipificados (pela ultraseletividade
criminal) ou cometidos (de sangue ou de colarinho branco), a corrupção (privada ou
pública), os discursos dos membros de poder dissociados do liame fático que
efetivamente lhes suportam, a arte, a aplicação da pena20, a impunidade, as condenações
injustas, os jornais e os programas de televisão que exploram a miséria e o punitivismo
ao tempo em que utilizam como pano de fundo a sonoplastia que comove, dentre tantas
outras.
Podemos recordar neste breve ensaio, a título de violência pela arte, dois
episódios do livro “Hannibal”, de Thomas Harris, também adaptado para a linguagem
cinematográfica.21 O primeiro episódio seria a observação de que a fuga e o paradeiro do

(“1984”), Ray Bradbury (“Fahrenheit 451”) e Antony Burgess (“Laranja Mecânica”), entre outros, em
que é possível buscar, em tais obras, as referências à democracia e à sua ausência, na supressão do
individualismo, na supervalorização do Estado e sua força opressora.
16
Tratamento Lodovico, é uma “terapia” fictícia presente na obra “Laranja Mecânica”, cuja palavra
remonta ao “Ludwig” de Beethoven, e a terapia consiste em buscar submeter o paciente (no caso, Alex,
protagonista do livro e do filme), a imagens de ultraviolência, através de mecanismo que mantém seus olhos
permanentemente abertos, associado a ingestão de medicamento que induz a náusea, a paralisia e o medo,
enquanto cenas de enorme violência são reproduzidas com o pano de fundo da sonoridade da Sinfonia n. 9
de Beethoven. O elemento musical é parte importante da narrativa, e está presente também em uma das
cenas mais refinadas em que Alex e sua gangue invadem uma casa, enquanto Alex espanca brutalmente o
dono da residência cantando “Cantando na Chuva”. É ainda marcante a presença da música de Henry
Purcell, “Music for the Funeral of Queen Mary” durante parte significativa do filme dirigido por Stanley
Kubrick.
17
A lógica do xadrez da violência observado por Hanna Arendt permanece válido é aqui invocado: “O jogo
de xadrez ‘apocalíptico’ entre as superpotências, quer dizer, entre aqueles que manobram no mais alto
plano de nossa civilização, está sendo jogado de acordo com a regra de que ‘se alguém vencer’ é o fim
para ambos”. Pensamos que o mesmo tem valido para a política cotidiana, e o enfrentamento da
criminalidade. Cfr. ARENDT, Hanna. Sobre a Violência. Trad. André Duarte. 4ª Ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2013, p.17.
18
A arbitrariedade é um especial elemento da violência, uma vez que a categorização “meio-fim” rege a
substância da ação violenta, e o fim corre o risco de ser suplantado pelos meios que justifica, e, ainda
conforme Hanna Arendt, “a violência abriga em si mesma um elemento adicional de arbitrariedade”. Cfr.
ARENDT, Hanna. Sobre a Violência. Trad. André Duarte. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2013, p.18.
19
Há que se observar, com Alexandre Bizzotto, que tem havido indevida redução do crime à violência:
“Convém salientar que gradativamente tem ocorrido indevido uso do termo crime para identifica-lo com
a violência. Esta é um fenômeno muito mais amplo e complexo do que o crime. O crime representa apenas
uma pequena parcela da violência”. Cfr. BIZZOTTO, Alexandre. A mão invisível do medo: e o
pensamento criminal libertário. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 74.
20
Sobre a aplicação da pena como violência, conforme Alexandre Bizzotto, “há uma provocação de dor,
porquanto ao se selecionar alguém na condição de condenado criminal, move-se a engrenagem da
exclusão social com consequências impagáveis para a vítima do sistema”. BIZZOTTO, Alexandre. A
violência da aplicação da pena a um ser humano: os necessários limites constitucionais. In. SILVA, Denival
Francisco da; et all. Violência... e exclusão social... e mídia... e sistema de justiça... e polícia... e cárcere.
Goiânia: Editora Kelps, 2014, p. 46.
21
O filme Hannibal, de 2001, dirigido por Ridley Scott, é a continuação de “o Silêncio dos Inocentes”.
famoso personagem principal, Dr. Lecter, despertaram uma intensa curiosidade no
submundo do ciberespaço, fazendo crescer um comércio de “souvenires odiosos”, que só
perdiam em popularidade para a execução de Fou-Tchou-Li.22 O segundo episódio seria
a recordação de uma das primeiras vítimas ainda vivas de Dr. Lecter, o pedófilo Mason
Verger. Ambos os episódios, de alguma forma, conectados.
No caso verídico da evocação da morte de Fou-Tchou-Li, uma das últimas
aplicações da pena de morte através do cruel método “Lingchi”, ou “morte por mil
pedaços”, ocorrida em 1905, que representava uma forma de tortura e de execução
utilizada na China, em que o apenado era amarrado a um pedaço de madeira, ao tempo
em que o carrasco removia, com uma lâmina, pedaços bastante pequeninos da carne do
condenado, em uma morte longa e dolorosa, enquanto uma multidão de populares
observava tudo bastante atentamente, não muito diferente da curiosidade e da participação
ativa nos linchamentos públicos ocorridos recentemente no Brasil em que o “Lingchi”23
se converte no não menos bárbaro e cruel “justiçamento” com as próprias mãos, nos
linchamentos de jovens amarrados em postes, Brasil afora.24
De certa forma, tal registro está ligado às recordações de uma das vítimas
do Dr. Lecter, numa relação médico-paciente, em que o personagem Mason Verger
rememora o primeiro contato com seu agressor: o convite até a sua casa, seguido pelo uso
de drogas – uma substância excitante e causadora de suscetibilidade, ocasião em que o
médico psiquiatra lhe entrega um pequeno caco de vidro, pedindo que ele mostrasse o
mesmo sorriso que fazia para conquistar as crianças que vitimava, sugerindo
concomitantemente que Mason cortasse pequenos pedaços de seu próprio rosto e
alimentasse os cachorros, motivando sua deformação permanente.25

22
HARRIS, Thomas. Hannibal. Trad. Alves Calado. 7ª ed. São Paulo: Editora Record, 2001, p. 59.
23
Contemporaneamente, a morte através do “Lingchi” foi recordada no anime japonês “Deadman
Wonderland”, baseado num Mangá de mesmo nome, escrito por Jinsei Kataoka e ilustrado por Kazuma
Kondou, lançado em 2007 (o Mangá) e 2011 (o anime), referente a história de sobrevivência dentro de uma
prisão japonesa futurista, chamada de “O Paraíso dos Mortos”, uma cadeia privada que serve de local
turístico em que os detentos entretém os visitantes, e cujo lucro é utilizado para reformar a cidade, destruída
por um terremoto. Na recordação do macabro “Lingchi”, no 9º episódio do anime, a personagem Hibana
Daida trava o seguinte diálogo com o adversário que sofrerá o despedaçamento: “- Nós vamos praticar o
“Lingchi”. – Que? Mas que diabos é isso? – Você nunca ouvir falar disso antes? (...) – O “Lingchi”, ou
“fatiamento lento”, era um método artístico de execução que os chineses usavam até o final da dinastia
Qing. Eles cortavam pessoas publicamente em pedacinhos, como forma de punição por seus crimes.
Primeiro, eles retalhavam a região do peito. Depois os braços, a barriga, a virilha, as coxas, as nádegas
(...)” (tradução livre). Cfr. Deadman Wonderland, EP. 9.
24
Segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, entre 1980 e 2006
foram cometidos 1179 (mil ce nto e setenta e nove) casos de linchamentos no Brasil, e em números
recentes nos fornece o impressionante número de 1 linchamento por dia no Brasil, país em que o mais
antigo linchamento conhecido foi o do índio XX, e que nos últimos 60 anos, aproximadamente um milhão
de brasileiros já participou um ato de linchamento, tentado ou consumado, segundo o sociólogo José de
Souza Martins. Confira-se, respectivamente: <www.nevusp.org/downloads/linch_brasil.htm>, acesso em
19.10.2015; MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto,
2015; MARTINS, José de Souza. [Entrevista]. Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional.
El País, Maria Martí, 8 de julho de 2015. Disponível em:
<brasil.elpais.com/brasil/2015/07/09/politica/1436398636_252670.html>, acesso em 19.10.2015.
25
A substância entorpecente ministrada foi o denominado “Pó-de-Anjo”, misturada com nitrito de amília,
anfetamina e um pouco de ácido”. HARRIS, Thomas. Hannibal. Trad. Alves Calado. 7ª ed. São Paulo:
Editora Record, 2001, p. 64-81.
O autor da obra de ficção joga com imagens e palavras, explorando
discursivamente o pagamento do mal com o mal, transformando um assassino em série
fictício num dos personagens mais icônicos da cinematografia mundial, explorando (e de
certa forma, estimulando ou alimentando) o amplo desejo público por retribuições cruéis
e reações de violência com violência, que estaria presente nas imagens do “direito penal
mal”, do “direito penal puro”, do “direito penal curativo” e do “direito penal
protetor” descritos26 por Winfried Hassemer.27
A divisão entre o bem e o mal, presente na primeira categoria (direito
penal mal) foi retratada como a característica específica da imagem do “direito penal
mal” encarregado da execução da pena, ligada não à ciência, mas a sua prática, vinculada
ao “aparecimento” da legislação contra terroristas, as doutrinas de retribuição e de culpa
presentes no código penal, cujos traços refletiriam a imagem do direito penal “como
instrumento da reação e da repressão, do desprezo aos seres humanos e da frieza”,
realizando o “trabalho sujo” (dirty work) da sociedade, retribuindo “o mal com o mal”.28
Por outro lado, a segunda imagem (direito penal puro), de certa forma foi
uma amenização contraposta à primeira imagem, trazendo as cores de uma dogmática
penal pura, que estaria presente na parte geral do código penal, e ocorreria “sem o
derramamento de sangue”, num universo em que a “imputação da pena, a execução da
pena, a criminologia, e a política criminal” não eram parte da formação dos juristas
penais, e quase nunca eram objeto da literatura científica penal, na dogmática dos anos
1950 e 1960 que influenciaram a teoria finalista da ação. A naturalização de tal pureza
acabou por fazer com que se perdesse o sentido no questionamento da relação entre o
direito penal e o mal, para que o jurista não precisasse ficar envergonhado.29
Mas a terceira imagem (direito penal curativo), no entanto, propunha a
transformação do direito penal mal, que passaria de carcereiro à médico, apontando-se 5
vantagens desta “apropriação” do “direito penal mal” e sua utilização discursiva de
maneira diferenciada. A primeira vantagem apontada foi a de que esta imagem pintada
teria levado a sério a crítica fundamental e contemporânea do direito penal, numa relação
de apropriação e fortalecimento. A segunda vantagem apontada foi a de que através dessa
imagem se poderia deduzir exigências de reforma, entre outras, mas aponta-se que “o
direito penal curativo é uma ilusão”, e por isso deve ser observado com cautela e
distanciamento crítico, representativo de uma cópia de um modelo utópico, trazendo de

26
HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Trad. Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
p. 67-79.
27
Embora a descrição de Winfried Hassemer esteja ligada ao contexto alemão, até por isso mesmo nos é
bastante importante a partir das reflexões da aula magna proferida por Nilo Batista nos cursos de Direito
da UERJ em 25 de setembro de 2013, a qual denominou de “As Penas de Um Penalista”, evocando famosa
aula de Roberto Lyra publicada em 1957 (Penitencia de um Penitenciarista), em que se confere especial
destaque para antigo escrito de Tobias Barreto sobre os fundamentos do jus puniendi, e sobre a origem
alemã da invenção da dogmática jurídica. Cfr. BATISTA, Nilo. As Penas de um Penalista. In: MACHADO,
Bruno Amaral. Justiça Criminal e Democracia II. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 418-431.
28
Op. Cit. p. 70-72.
29
Op. Cit. p. 73.
negativo o apaziguamento onde a crítica se faça necessária, bem como harmonizar onde
a discussão também seria necessária.30
As três imagens anteriores, afirma Winfried Hassemer, são três imagens
parciais e fragmentadas do direito penal, e a soma de todas as imagens anteriores, com
aproveitamento de seus melhores traços e de suas melhores cores, daria origem a quarta
imagem (direito penal protetor), que não seria composto apenas e tão somente de
ameaças de punição e de proibições, mas também da “segurança nos processos”, e da
“promessa de garantias” para aqueles que nele atuam e para os que estão sujeitos a
ameaças de punição, ao processo penal e à execução da pena31, embora o autor repudie a
pretensão de que “o direito penal tenha que se transformar em um pai”.32
São exemplos, em parte reais e em parte fictícios, que também poderiam
estar presentes na reação a “velha ultraviolência”, como é chamada por Alex, personagem
principal de “Laranja Mecânica”, e que é utilizada como elemento catalizador durante
toda a obra, inicialmente quando Alex e sua gangue agridem, assaltam e estupram suas
vítimas enquanto cantarolam “I sing in the rain”, ou assobiam a Sinfonia n. 9 de
Beethoven.
Depois, quando Alex é preso e transformado em um número, e jogado no
presídio, quando ele se oferece para participar do programa experimental do governo que
era a sua plataforma eleitoral para promover “a lei e a ordem”, consistente em submeter
o paciente, criminoso condenado, a uma máquina extremamente curiosa que grampeia
seus olhos, mantendo-os abertos, enquanto o paciente, utilizando uma camisa de forças,
é obrigado a observar cenas de ultraviolência, ao tempo em que também é submetido a
medicamentos que induzem o mal-estar e a náusea, para que tais sensações sejam
associadas às imagens de violência, numa verdadeira “lavagem cerebral”.
O falecido jurista argentino Carlos Santiago Nino, certa feita, valeu-se de
uma obra da literatura distópica, embora não seja a mesma que estamos utilizando neste
momento, para fundamentar uma reflexão sobre a filosofia do direito penal em um de
seus livros mais importantes: “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley,
comprovando o potencial discursivo da chamada literatura distópica, que possui muitas
contribuições a fornecer ao imaginário jurídico.33

30
Op. Cit. p. 76.
31
Op. Cit. p. 77-79.
32
Ao responder à pergunta sobre o fato de o cidadão desejar um Estado forte a tal ponto de colocar escutas
telefônicas em suas casas, a troco de proteção contra a criminalidade organizada, Winfried Hassemer
respondeu: “As pessoas exigem do Estado proteção em uma amplitude, a qual eu, como cidadão, leitor de
jornais e ouvinte de rádio, jamais havia vivenciado. O Estado se converte, nessa expectativa, em um pai. –
Isso é uma exigência demasiada para ele? De fato, eu acho que é exigir demais”. Op. Cit. p. 238.
33
Carlos Santiago Nino observou, acerca das aspirações que o desenvolvimento do seu livro propunha: “No
fundo de quase todas as discussões sobre a fundamentação filosófica do direito penal se oculta um
enfrentamento entre, por um lado, uma concepção geral que muitas pessoas consideram intrínsecas a um
enfoque liberal e racional da responsabilidade penal, e por outro lado uma série de convicções intuitivas,
compartilhadas pela maioria de todos nós sobre quais são as condições e distinções que um sistema de
responsabilidade penal justo deve tomar em conta. Tais convicções incluem a ideia de que um inocente
jamais deve ser apenado, e que tampouco deve sê-lo quem não podia agir de outra maneira, e que algumas
atitudes subjetivas devem ser requisito da responsabilidade penal, que um ato intencional deve ser mais
severamente apenado que o correspondente ato de negligência, que a tentativa merece menor castigo que
o delito consumado, que um delito com resultado mais danoso deve ser mais severamente apenado que um
A perspectiva deste artigo observa que a força da mídia, no contexto de
indução da criminalização de condutas, pela propagação e disseminação de informações
produzidas por um seleto e reduzido número de “produtores da notícia” é similar ao
“sistema Ludovico”, submetendo a população a uma lavagem cerebral, de modo a realizar
traços caricaturais, que conduziriam ao segundo passo – não necessariamente prévio, qual
seja, da criminalização de determinada conduta pelos agentes que possuem o acesso VIP
à sala de máquinas do sistema de justiça criminal, ou induzindo a população a tomar
determinada reação com relação a determinados fatos ou condutas noticiadas, mesclando
a notícia de um evento com a opinião sobre ele.
É inafastável a observação de que a narrativa jornalística representa apenas
uma das várias atividades do conceito europeu de “esfera pública”, espaço em que a
racionalidade burguesa ou a ideologia se materializava em variadas instituições (como os
clubes, as revistas, os cafés e os jornais), capazes da geração de um discurso político
democrático e crítico, mas a palavra “pública, neste contexto, também é capaz de gerar
equívocos, uma vez que não se cuida de um “mero espaço de comunicação” (que é apenas
a sua superfície imediata), mas sim de uma exterioridade dinâmica, num terreno
conhecido pela presença de “linhas de força”, muitas vezes não visíveis ou públicas,
descentralizadoras das subjetividades sociais, e que provocam seu deslocamento para
além de “suas posições físicas, transformando-as por meio da circulação transitiva de
ideias”.34
O jornalismo, assim considerado, é apenas uma das atividades dentro de
tal esfera, não sendo dotado de homogeneidade no seu percurso europeu, vale dizer, sendo
reconhecíveis períodos em que ele não gozava da boa reputação posteriormente atribuída
pelo espírito liberal, quando Hegel via na leitura matinal do jornal “a prece do homem
moderno”, e Balzac se mostrava muito cáustico com relação à leitura jornalística,
proferindo a célebre frase: “se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la”.35
Tendo emergido historicamente a partir da transição do Estado absolutista
para o Estado de direito, como uma espécie de porta-voz dos direitos-civis, a imprensa
trouxe consigo “a novidade ideológica da liberdade de expressão”, embora sem o
abandono de alguns recursos mitológicos, como uma construção narrativa sobre si
mesma, a “entidade mítica” administradora da verdade dos fatos sociais, bem como a
“retórica encantatória” da narrativa sobre fragmentos da atualidade.36

delito cujas consequências sejam relativamente triviais, etc. Tais intuições não parecem estar justificadas
pela concepção geral que concebe o direito penal como um instrumento para minimizar os danos sociais
e postula que suas operações devem manter certa neutralidade a respeito dos juízos morais acerca da
reprovabilidade dos autores de atos antijurídicos. Ao invés disso, tais convicções intuitivas parecem
corresponder a uma concepção retribucionista e “moralizadora” do direito penal. Frente a este dilema,
alguns pensadores se mantêm fiéis a suas intuições, recusando a aceitar uma concepção geral que apesar
de seu atrativo inicial, parece nos aproximar de um Admirável Mundo Novo”. (Tradução Livre). Cfr.
NINO, Carlos Santiago. Los límites de la responsabilidad penal: Una teoría liberal de delito. Buenos
Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1980, p. 31.
34
SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes,
2009, p. 11.
35
Op. Cit., Loc. Cit.
36
Op. Cit., p. 12.
Tal narrativa, estofada pelo compromisso histórico com a ética liberal,
acaba por repetir o encantamento de que caberia a imprensa realizar o asseguramento da
palavra do cidadão, fundada no pacto implícito entre os meios de comunicação e a sua
comunidade receptora da informação, em que o dever do jornalista é “noticiar” uma
verdade, assim estabelecida pela aceitação do senso comum, quando o enunciado deverá
corresponder a um fato. Assim, se o narrador (jornalista) não se identifica como um
“comentarista” (pois o “coment” é algo distinto de “news”), tal enunciado “noticioso” está
obrigado a explicitar a diferenciação entre o que seria informação e o que seria “opinião”,
vale dizer, a diferença entre um “relato supostamente imparcial, dotado de objetividade,
com relação a um acontecimento noticiado e seguido da tomada de posicionamento
subjetivo acerca da natureza dos fatos.37
Observe-se como singelo exemplo a aprovação da Lei de Crimes
Hediondos, e suas quatro modificações, todas elas profundamente influenciadas pela
cobertura jornalística sobre a ocorrência de crimes, em sua maioria, contra pessoas
política e economicamente influentes. A aprovação da Lei n° 8.072, de 25 de julho de
1990, foi antecedida pelo sequestro do empresário Abílio Diniz, em 11 de dezembro de
1989, e de Roberto Medina, em 6 de junho de 1990.
Conforme rememorado por Aldenor da Silva Pimentel, “sob pressão, o
Senado Federal aprovou o projeto, que tramitava em regime de urgência, em 34 dias,
contados da data de apresentação da matéria. Já a Câmara Federal aprovou um
substitutivo em dois dias”.38 E mais do que isso, embora tenha sido apurado que no caso
do empresário Abílio Diniz o crime teria conotações políticas, praticado para obter fundos
para guerrilha socialista no Chile e em El Salvador pelo grupo guerrilheiro MIR -
Movimento de Izquierda Revolucionária do Chile, a pena aplicada foi a do código penal
(muito maior39), e não a da Lei especial específica de Segurança Nacional, tendo o STF
chancelado a interpretação mais gravosa.40
A imprensa nacional, ou o sistema “Ludovico”, estaria interagindo com à
prévia seletividade criminal, operada por quem efetivamente ocupa os comandos daquilo
que Roberto Gargarella denomina de “a sala de máquinas”, aqui vislumbrada com o

37
Op. Cit., Loc. Cit.
38
PIMENTEL, Aldenor da Silva. Morte Bandida e Cidadania Virtual: circulação discursiva em jornais
on-line sobre a execução sumária de suspeitos, acusados e sentenciados por crimes hediondos. 180f.
Dissertação de Mestrado (Faculdade de Informação e Comunicação - UFG). Goiânia, 2014, p.26;
PIMENTEL, Aldenor da Silva; ALMEIDA, Edileuson Santos. A cobertura jornalística sobre crimes
hediondos e o comportamento violento entre presidiários em Roraima. Intercom – Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação –
Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008.
39
Observe-se que a pena do art. 20 da Lei Federal nº 7170/1983 é variável entre 3 e 10 anos para quem
“Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar,
provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para
obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”, mas
a denúncia e a pena aplicada foram a do art. 159, § 1º, do CP, variável entre 12 a 20 anos. Confira-se no
STJ as discussões ocorridas no âmbito do REsp nº 39734/SP, rel. min. José Cândido, DJ. 21.03.1994, e do
Ag 25684/SP, rel. min. José Cândido, DJ. 11.10.1993.
40
No STF, confiram-se os votos e manifestações dos Ministros Sepúlveda Pertence, Maurício Correia,
Francisco Rezek, Ilmar Galvão, Marco Aurélio e Celso de Mello sobre a discussão da “competência”, cujo
pano de fundo, no caso, era o cometimento (ou não) de crime político no caso do sequestro do empresário
Abílio Diniz, no RE nº 160.841/SP, Rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ 22.09.1995.
complemento do “sistema de justiça criminal”, vale dizer, aqueles que efetivamente
determinam, escolhem, medem, selecionam a criminalização das condutas e determinam
o agir dos agentes oficiais do Estado, num triangulo quase amoroso: mídia, seleção e
criminalização, sob a perspectiva reflexiva permissiva da literatura distópica.
Como observado por Eugenio Raul Zaffaroni, tão interessante é o poder
seletivo do sistema penal que ele acaba elegendo alguns “candidatos à criminalização”,
além de desencadear tal processo, submetendo-o ao poder decisório da “agência judicial”,
que decide se este “carro pomposo” deve prosseguir com a ação criminalizante ou se ela
deve ser suspensa, e o “bom candidato” é escolhido com base em um estereótipo.41
A este propósito, ao traçar as matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro,
Nilo Batista inicia sua trajetória no período da queda do império romano, seguindo uma
trilha muito bem definida, que, dentre outras pegadas, focaliza o “sistema penal contra o
estranho” (direito penal germânico antigo), o “sistema penal contra os servos e judeus”
(direito penal visigótico), e o “sistema penal contra o herege” (direito penal e penitencial
canônico), numa clara demonstração da ultraseletividade criminal.42
Fazendo coro à ácida observação de Zaffaroni, para quem “o” delito não
existiria, vale dizer, tal afirmação seria quase um equívoco linguístico, uma vez que do
ponto de vista ôntico só existiriam conflitos arbitrariamente selecionados em um universo
no qual em muitos países, inclusive no Brasil, a parte especial do código penal reúne uma
vasta quantidade de ações conflitantes absolutamente heterogêneas quanto ao seu
significado social, o que devido a sua disparidade de hipóteses e reações, não poderia dar
lugar a alguma “coisa unitária”, mas tal fato é ignorado pelo discurso jurídico-penal, que
oferece um conceito unitário de delito, geralmente denominado de “teoria do delito”,
numa “complexa elaboração teórica”, que com algumas variantes, geralmente é
concebida como “ação típica, jurídica e culpável”.43
A caricatura da seletividade criminal poderia ser vislumbrada por dois
prismas, um fictício e outro real. Um tipo penal inusitado seria o de “amar alguém”, com
preceito incriminador secundário com pena prevista de 1 à 2 meses de detenção, que em
sua forma qualificada pelo uso de roupas demasiado confortáveis tornariam essa pena um
pouco maior, embora seja possível imaginar também a previsão de haver uma “forma
privilegiada”, que ainda poderia ser mesclada como ações que acabariam legitimadas por
causas exculpantes ou justificantes (como, inexigibilidade de conduta diversa do amor,
exclusão da ilicitude do amor por estado de necessidade, legítima defesa do amor, etc).

41
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Trad. Vania Pedrosa e Amir Conceição.
Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246.
42
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Instituto Carioca
de Criminologia/Freitas Bastos Editora, 2000.
43
Em todo o caso, um conjunto de requisitos, segundo Zaffaroni, não chegaria a constituir um conceito,
pois assim como seria muito atrevimento afirmar-se que o atestado de óbito aliado à condição de
representante da família (requisitos exigidos pela autoridade administrativa para o sepultamento em um
cemitério) seriam o bastante para se extrair um “conceito de morto” apropriado, bem como não se poderia
alegar que a coleira, a vacinação e a focinheira poderiam representar um conceito de cão adequado à
administração municipal. Cfr. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Trad. Vania
Pedrosa e Amir Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246
Assim, quando a mídia, ou o “sistema Ludovico”, providenciam uma
especial relação de ódio contra um determinado crime ou criminoso, ela simbolicamente
criminaliza o amor, agindo por meio da inversão do discurso, que poderia muito bem ser
observado como protótipo nas pregações teóricas do jurista inglês influente nas colônias
americanas: James Fitzjames Stephen, a quem se atribui, ainda hoje, a influência sobre o
ódio ao crime ao criminoso nos Estados Unidos da América.44
Não menos curiosa, embora duplamente real, foi a histórica criminalização
mais gravosa (dobrada) por injurias e calúnias irrogadas à pessoa do Imperador, conforme
previsto no Código Criminal do Império45, em que havia uma tal municia descritiva a
ponto de se estabelecer que “o abuso da liberdade de comunicar o pensamento” atingia
também, criminalmente, “o editor”, “o impressor”, ‘o autor”, “o vendedor”, “o
distribuidor” e “os que comunicassem mais de 15 pessoas os escritos não impressos”.46
Também se recorde a justificação que excluía o crime de “castigo moderado” que os pais
dessem aos seus filhos, ou os senhores aos seus escravos, ou os mestres aos seus
discípulos.47

44
Este autor afirmou que “é moralmente correto odiar os criminosos, sendo altamente desejável que os
criminosos sejam odiados, e que a vingança é empoderada pelo ódio, no sentido de que os criminosos
devem ser odiados, pois senão não haverá pressão forte o bastante para aplicação da lei criminal”. Já se
comparou a figura de James Fitzjames Stephen ao “Grande Inquisidor”, de “Os irmãos Karamazov”, de
Fiódor Dostoiévski, observando-se, ainda, que ele seria o protótipo dos Neoconservadores americanos,
sendo o molde original de Robert Bork e outros autores da direita, e que os juízes deveriam se reconhecer
em sua figura, além de observar que o ódio aos criminosos e a recusa da sociedade americana em aceitar
melhorias de qualidade de vida nos presídios estaria atrelada ao ideário do ódio ao criminoso propugnado
por James. Cfr. MORSE, Stephen J. Thoroughly Modern: Sir James Fitzjames Stephen on Criminal
Responsibility. Ohio State Journal of Criminal Law, vol. 5, 2008; DEGIROLAMI, Marc O. Against
Theories of Punishment: The Thought of Sir James Fitzjames Stephen. Ohio State Journal of Criminal
Law, vol. 9, 2012; POSNER, Richard. The Romance of Force: James Fitzjames Stephen on Criminal Law.
Ohio State Journal of Criminal Law, vol. 10, 2012; POSNER, Richard. The First Neoconservative. In:
Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, p. 259-270; FITZJAMES STEPHEN,
James. A History of the Criminal Law of England, v. 2, 1883, p. 81-82; FITZJAMES STEPHEN, James.
Liberty, Equality, Fraternity and Three Brief Essays, Chicago: University of Chicago Press, 1991, p.
152.
45
Art. 242 do Código Criminal do Império, de 1830: “Art. 242. As calumnias, e as injurias contra o
Imperador, ou contra a Assembléa Geral Legislativa, serão punidas com o dobro das penas estabelecidas
nos artigos duzentos e trinta, e duzentos e trinta e tres”.
46
Art. 7º do Código Criminal do Império, de 1830: “Art. 7º Nos delictos de abuso da liberdade de
communicar os pensamentos, são criminosos, e por isso responsaveis: 1º O impressor, gravador, ou
lithographo, os quaes ficarão isentos de responsabilidade, mostrando por escripto obrigação de
responsabilidade do editor, sendo este pessoa conhecida, residente no Brazil, que esteja no gozo dos
Direitos Politicos; salvo quando escrever em causa propria, caso em que se não exige esta ultima
qualidade. 2º O editor, que se obrigou, o qual ficará isento de responsabilidade, mostrando obrigação,
pela qual o autor se responsabilise, tendo este as mesmas qualidades exigidas no editor, para escusar o
impressor. 3º O autor, que se obrigou. 4º O vendedor, e o que fizer distribuir os impressos, ou gravuras,
quando não constar quem é o impressor, ou este fôr residente em paiz estrangeiro, ou quando os impressos,
e gravuras já tiverem sido condemnados por abuso, e mandados supprimir. 5º Os que communicarem por
mais de quinze pessoas os escriptos não impressos, senão provarem, quem é o autor, e que circularam com
o seu consentimento: provando estes requesitos, será responsavel sómente o autor”.
47
Art. 14, n. 6, do Código Criminal do Império, de 1830: “Art. 14. Será o crime justificavel, e não terá
lugar a punição delle: (...) 6º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos,
os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a
qualidade delle, não seja contraria ás Leis em vigor”.
Feitas tais observações, passemos ao desenvolvimento discursivo referente
a “produção” do mal-estar criminal, através da abordagem do “sistema Ludovico” ou da
reprodução midiática do noticiário criminal, para sequencialmente observarmos o déficit
democrático da produção da legislação criminal conforme raciocinado por Roberto
Gargarella.

1. Laranja Mecânica do “Sistema de Justiça Criminal”


Nossa intenção neste item é tão somente realizar uma reflexão distinta
sobre o sistema Ludovico, presente na obra Laranja Mecânica, de Anthony Burgess,
considerada uma das maiores obras da literatura distópica do século XX, possuindo
grande relevo para o direito penal, conforme afirmado pelo prof. Salo de Carvalho, que
atribuiu a obra o status de ser “praticamente um tratado de criminologia”, e tão
importante quanto o “Vigiar e Punir”, de Foucault.48
Sobre a categoria narratológica (literatura distópica), observamos que a
primeira referência conhecida de uso da expressão distopia, como referida no Oxford
English Dictionary, se deve a John Stuart Mill, quando em 1868 na British House of
Commons criticou a política fundiária irlandesa ao dizer que: “It is, perhaps, too
complimentary to call them Utopians, they ought rather to be called dys-topians, or caco-
topians. What is commonly called Utopian is something too good to be practicable; but
what they appear to favour is too bad to be practicable”.
Desde o princípio a expressão aparece ladeada de outras, mas sempre com
um nítido sentido antônímico à utopia. A escolha pelas expressões Literatura Distópica
e distopia ocorre de maneira deliberada, por encerrarem em uma só expressão (distópica
e distopia) o conceito inteiro, que nas demais denominações compostas vem associado
aos radicais anti, contra, caco ou à expressão auxiliar negativa. Todas elas podem ser
encontradas em autores de diversas línguas, sem que isso seja um ponto de relevo, uma
vez que representam sempre um mesmo objeto.
a) Distopia é a expressão escolhida neste trabalho, pela capacidade de
síntese conceitual e vocabular enquanto antônimo de utopia;49

48
O programa televisivo, Direito e Literatura, transmitido pela UNISINOS, realizou em 08.11.2009 um
programa especial dedicado a análise de “Laranja Mecânica”, apresentado pelo prof. Lenio Streck, tendo
como convidados os professores Salo de Carvalho, e Ricardo Barberena. O prof. Salo de Carvalho afirmou
que o texto “é praticamente um resumo das teorias criminológicas do século passado, transitando da
chamada primeira modernidade penal, baseada nos discursos de retribuição, de intimidação, das funções
da pena, para um novo modelo de punição, que vai reorientar todos os sistemas penais até o final do século
passado, até a grande crise da década de 1980, que são os métodos corretivos, os métodos de tratamento,
que gera, no filme, a maior imagem que se tem quando se lembra do Laranja Mecânica, que é exatamente
o Alex passando por esse processo, esse tratamento Ludovico, sendo condicionado à partir de imagens e a
partir de sons, à não cometer o mal”.
49
COLOMBO, Arrigo. L’utopia, il suo senso, la sua genesi come progetto storico, Utopia e Distopia,
item n. 1, p. 12, onde afirma que essa é a expressão ‘melhor modelada’ e aproximadora do fenômeno
distópico. LÓPEZ KELLER, Estrella, Distopia: outro final de la utopia. Reis: Revista Española de
Investigaciones, n. 55, Jul.-Sep., 1991, p. 7, que argui tratar-se do termo que se vem afiançando.
b) Anti-utopia é a expressão composta, antepondo o prefixo ‘anti’ para
designar a oposição, a contrariedade, o choque, se utiliza como antônimo de utopia,
encontrável em línguas do ramo latino ou germânico;50
c) Contra-utopia é também expressão composta, antepõe o prefixo
‘contra’ para designar a oposição, a antinomia, o choque, que pode ser encontrada em
várias obras e autores, podendo ser encontrada em línguas neolatinas ou germânicas;
d) Cacotopia é expressão de menor uso, mas presente no discurso original
de John Stuart Mill na British House of Commons, em 1868, para significar o mesmo
‘favorecimento ao mal’, presente na política por ele criticada.51
e) Utopias negativas é a expressão também presente na obra As Utopias,
de Jerzi Szachi,52 que descreve o conceito de utopia e a diversidade existentes entre elas,
tais como utopias de tempo, de lugar, a ‘Ordem Eterna, monásticas, políticas e, por fim,
as utopias ditas pelo autor como ‘negativas’.
Há ainda outras denominações de menor curso, tais como ficção
prognóstico, utopia negra54, reveladora da multiplicidade de nomes dados para essa
53

espécie de literatura política.


No que importa para os fins da presente narrativa, observamos que a obra
de Anthony Burgess nos mostra a narrativa em primeira pessoa, realizada pelo
personagem principal, Alex, cujo nome não é inocente – pois utiliza a composição
referente a lei (lex), mas de alguém que seria fora da lei (a-lex), líder de uma gangue de
delinquentes (os groogs), que obtém o prazer através da ultraviolência. Isabella Roberto,
discorrendo sinteticamente sobre a obra, realiza uma excelente compactação da narrativa,
abaixo retratada:
“Alex diverte-se espancando mendigos, lutando com gangues rivais,
roubando automóveis para provocar acidentes nas estradas, invadindo
casas para violentar mulheres e outras práticas reprováveis. O seu
prazer é viver por viver, na filosofia de um dia após o outro,
entremeando a sua rotina de ultraviolência com a paixão pelas músicas
de Beethoven. Na sequência de uma luta interna no grupo, Alex é
atraiçoado pelos companheiros e é preso pela polícia, sendo condenado
a 14 anos de cárcere pelo assassinato de uma mulher. Ao saber que está
a ser ensaiado um novo método de recuperação de prisioneiros
(“Reclamation Treatment”) que garante a sua liberdade imediata, Alex

50
BALASOPOULOS, Antonis. Anti-Utopia and Dystopia: Rethinking the Generic Field, Utopia Project
Archive, 2006-2010; KUMAR, Krishan. Utopia e antiutopia: Wells, Huxley, Orwell. Ravenna: Longo,
1995; GALDÓN RODRÍGUEZ, Ángel. Aparición y desarrollo del género distópico en la literatura inglesa:
Análisis de las principales antiutopías. PROMETEICA - Revista de Filosofía y Ciencias, n. 4.
51
A expressão cacotopia ou aco-topia é mais comum em língua inglesa.
52
SZACHI, Jerzy. As utopias ou a felicidade imaginada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, item n. 8, p.
111.
53
CUNHA, Rafael. Crítica à modernidade nos romances distópicos de Aldous Huxley e George Orwell,
Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da
historiografia: diálogos Brasil-Alemanha,
54
LÓPEZ KELLER, Estrella, Distopia: outro final de la utopia. Reis: Revista Española de
Investigaciones, n. 55, Jul.-Sep., 1991, p. 7.
aceita ser submetido à experiência. A solução proposta é associar a
violência a um extremo desconforto físico, pelo que o resultado final é
a transformação de Alex numa nova versão do cão de Pavlov”.55

A utilização da técnica Ludovico na obra é utilizada como forma de


condicionar a pessoa submetida ao “tratamento”, verdadeira lavagem cerebral realizada,
ligada ao sentido do título, pois o título da obra trilha a mesma lógica do título do
manuscrito do personagem F. Alexander, escritor que tem a mulher assassinada pelo
protagonista Alex. O manuscrito representaria a tese principal e mais controversa do
autor, presente na defesa também realizada pelo personagem do capelão da prisão, qual
seja, a de que “qualquer restrição à liberdade de escolha transforma os humanos em
máquinas, ou, numa análise mais imagética, o lado mais doce e sensível do ser humano
é transformado num mecanismo automático e determinista”.56
Vale dizer, o título remonta a uma expressão “cokney” da East London
(associação social e geográfica com um logradouro de Londres), e gíria “as queer as a
clockwork Orange” (que poderia ser traduzida como “tão bizarro como uma laranja
mecânica”), na sugestão de um ser estruturalmente bizarro, embora com aparência
comum e humana, com aproximação direta à palavra “orangtang” que alude a um ser
quase humano (orangotango), mas que não possuiria totalmente a liberdade de escolha,
razão pela qual seria passível de ser “amestrado ou condicionado”.57 O estranhamento
provocativo começa desde o título.58
Na obra, a técnica Ludovico é descrita como a submissão de Alex a
medicamentos provocadores de náusea e mal-estar quando submetido a imagens de
ultraviolência, num arranjo em que o paciente era submetido a um “horrorshow”,
conforme diálogo entre Alex e um dos enfermeiros, quando seus olhos foram mantidos
abertos com grampos, e ele preso a uma cadeira, atado a fios e sem poder deixar de assistir
aos filmes que eram passados, na assistência obrigatória das imagens. Conforme a
linguagem nadsat, que permeia todo o livro, Alex era obrigado a ficar “videando” as
imagens de horror enquanto seu organismo era levado a náusea por meio do uso de
drogas.59
O presente ensaio utiliza o sistema Ludovico, utilizado para manipular
Alex e amestrá-lo ou condicioná-lo de determinada maneira, para transportar essa

55
ROBERTO, Isabella. Crime e Castigo em ‘A Laranja Mecânica’, de Anthony Burgess: Abordagem
criminológica dos usos da Violência. Via Panorâmica: Revista Eletrônica de Estudos Anglo-
Americanos, vol. 2, S.1, 2008, p. 59.
56
Op. Cit., p. 61.
57
Op. Cit., Loc. Cit.
58
Ao apresentar a obra, o tradutor Fábio Fernandes observa: “O estranhamento em Laranja Mecânica
Começa pelo título (A Clockwork Orange, no original), retirado de uma gíria cockney: “as queer as a
clockwork Orange”, uma expressão que significa algo de muito estranho (quase sempre de cunho sexual:
queer, em inglês, significa ao mesmo tempo estranho e homossexual). Essa sensação de estranheza
continua ao longo de todo o livro por intermédio da linguagem nadsat, a gíria das gangues adolescentes
que Burgess acabou criando para substituir as gírias reais dos Mods e dos Rockers, e que provoca no
leitor, pelos menos nas primeiras páginas, uma certa desorientação que, para Burgess era fundamental”.
FERNANDES, Fábio. Apresentação. In. BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes.
São Paulo: Aleph, 2004, p. 13.
59
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004, p. 144.
categoria para as comuns referências jornalísticas sobre o crime e a corrupção, na
tentativa de manipulação da opinião pública, confundindo-se narrativa da notícia com
opinião, a partir das observações de Muniz Sodré, uma vez que “coment” é diferente de
“news”60, que pode ser exemplificado no caso da cobertura dos fatos que influenciaram
na elaboração da Lei de Crimes Hediondos.61
E isto porque, embora reconhecido historicamente que a liberdade de
imprensa seria a única das liberdades que não poderiam ser suprimidas, por ter sido
construído um discurso de que ela seria “condição de todas as outras liberdades”, a partir
da leitura liberal de Benjamin Constant, esse artifício teria permitido que “a imprensa
livre pudesse ser reconhecida como obra do espírito objetivo e moderno”, construindo
um pano de fundo político e ético “que tornaria escandaloso para a consciência liberal,
em qualquer parte do mundo, o fenômeno do jornalismo sensacionalista”, ou ensejaria a
condenação do falseamento ou o encobrimento da verdade.62
Entretanto, uma vez ultrapassada a chamada fase artesanal e publicista da
imprensa, esta teria passado a oscilar entre os seus próprios interesses empresariais, muito
dificilmente neutros com relação às tentações da corrupção política e da manipulação, e
os fatos inerentes a realidade sociopolítica de seu público consumidor, fazendo com que
a procura pela transparência narrativa ou ideológica, embora suportadas pelas opacidades
de seu próprio mito, caracterizasse a natureza ambivalente do jornalismo.63
De fato, o conceito de notícia hodierno, tal como é entendido e praticado
pelo menos no mundo ocidental (“a narração do acontecimento, racionalizada como uma
commodity”) é produto anglo-saxônico, importado pelo Brasil, e o disfarce de
neutralidade permitiria que esta mercadoria fosse sustentada por pretensão dos
coeficientes de “confiabilidade pública nos relatos”, que pode ser depreendida de uma
breve frase de um editorial jornalístico: “Notícia não tem ideologia nem partido. Ela fala
por si para os verdadeiros profissionais de imprensa e a mídia profissional. Reduzir o
destaque de um fato por conveniências políticas só em diários oficiais, no antigo Pravda
soviético e no Granma cubano” (O Globo, 04.08.2007).64
Conforme observado pela crítica de Moniz Sodré, o texto do editorial
acima recordado finge desconhecer que onde existe discurso, um “produto básico do
mercado simbólico da comunicação”, haverá uma disputa pela produção de sentido, e
portanto, haverá ideologia, um mercado que é composto por diferentes posições, com

60
SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes,
2009, p. 11-12.
61
PIMENTEL, Aldenor da Silva. Morte Bandida e Cidadania Virtual: circulação discursiva em jornais
on-line sobre a execução sumária de suspeitos, acusados e sentenciados por crimes hediondos. 180f.
Dissertação de Mestrado (Faculdade de Informação e Comunicação - UFG). Goiânia, 2014, p.26;
PIMENTEL, Aldenor da Silva; ALMEIDA, Edileuson Santos. A cobertura jornalística sobre crimes
hediondos e o comportamento violento entre presidiários em Roraima. Intercom – Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação –
Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008.
62
SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes,
2009, p. 13.
63
Op. Cit., Locl Cit.
64
Op. Cit. p. 14.
distintos pontos de vista doutrinário e preferências políticas, também carregadas de cargas
ideológicas.65
Neste particular, os programas televisivos cuja linha de atuação é
permeada inteiramente pelo noticiário do cometimento de crimes (como o Cidade Alerta,
da Record, e o Brasil Urgente, da rede Bandeirantes, e.g), que não são “apenas” noticiados
de maneira objetiva, mas caracteristicamente vem acompanhados de pedidos e opiniões
pessoais dos apresentadores, que espetacularizam ao máximo a notícia, clamando pelo
recrudescimento das penas e o endurecimento no tratamento das pessoas que
supostamente teriam cometido os crimes noticiados.
Funciona exatamente como o sistema Ludovico, procurando induzir o mal-
estar e o medo na audiência cativa, buscando influir na maneira como as leis são criadas
ou aplicadas, e de certa forma buscando adestrar ou condicionar o público, uma vez que
a narrativa jornalística está protegida pela aura da objetividade, muito embora seja
inegável que em tais programas esteja mais presente a subjetividade do que a objetividade
da notícia. Também por este motivo Moniz Sodré observa que há a necessidade de
repensarmos a “velha ideologia da objetividade do relato jornalístico”, em termos de uma
objetividade chamada de fraca, acarretando a revisão da pretensão de espelhamento de
uma verdade absoluta “do real histórico”, em detrimento do acolhimento de uma “verdade
meramente probabilística”.66
Estamos diante de uma ação com pretensão de pressão determinada, que
busca impulsionar as pessoas que estão na “antessala” de máquinas, e não na “sala de
máquinas”, propriamente dita. Busca-se com isso, a toda evidência, a produção de efeitos
e construção de modelos, através da caricatura que pinta, causando a replicação e à
reprodução de estereótipos.
A interação entre essa espécie de pretensão, ao menos, de lavagem
cerebral, tal qual o sistema Ludovico, tem destino certo: os donos do acesso à sala de
máquinas do sistema de justiça criminal, denunciando não apenas o joguete com o
público, mas o alto déficit democrático de nosso sistema. No item subsequente realizamos
a incursão por esta última temática.

2. Sala de Máquinas do “Sistema de Justiça Criminal”


Discorrer sobre o déficit democrático do sistema de justiça criminal a partir
das reflexões do jurista e sociólogo argentino Roberto Gargarella parece recomendar que,
antes, recordemos o literato Jorge Luis Borges, que disse que a “democracia é um abuso
da estatística”, por ocasião do discurso que proferiu ao receber uma alta comenda do
governo chileno na década de 1970.67

65
Op. Cit., Locl Cit.
66
Op. Cit. p. 135.
67
Conforme a narrativa de Katherine Singer Kovacs, escritor argentino odiava o presidente militar Juan
Domingo Peron por causa de sua demagogia e pela prática de torturas aliada a supressão das liberdades
civis, além de ter se tornado um convicto apoiador de um regime que não era substancialmente distinto. Na
década se 1970, quando ele esteve no Chile para receber a condecoração mais alta deste país, disse: “Dentro
e fora, a ditadura, propriamente dita, não parece repreensível, e você precisa considerar as circunstâncias
A opinião de Jorge Luis Borges sobre a democracia é similar àquela
expressa por Monteiro Lobato, em termos de repúdio ao suposto mal que a decisão da
maioria poderia conduzir. Este escritor brasileiro expressou toda a sua verve de
desconforto com a possibilidade de todas as pessoas poderem votar, especialmente os
“pobres e menos instruídos”, (e hoje, provavelmente, os representantes majoritários da
audiência de programas “jornalísticos” como “Cidade Alerta” e “Brasil Urgente”) ao
escrever uma missiva ao então presidente Arthur Bernardes, datada de 09 de agosto de
1924.68
Tal missiva é um verdadeiro monumento contra o voto dos “menos
instruídos”. Lobato, escrevendo ao então presidente no dia de seu aniversário, dizia ter
realizado uma “fotografia do estado de espirito do povo brasileiro” em momento
chamado de “doloroso”, afirmando ter “sondado” gente de todas as classes sociais (“ricos
e pobres, patrões e operários, gente de baixo e gente de cima”), tendo atentado ainda para
o fato de que, “como a maior parte dos homens tem duas opiniões, uma de uso social e
outra íntima”), sua narrativa descartou a primeira e ficou com a segunda.69
Afirmou ter constatado o estado de espírito de franca revolta, que segundo
sua mensuração, abrangeria aproximadamente 90% dos entrevistados. A decorrência
desta revolta era o “completo divórcio entre a política e a opinião pública”, num quadro
em que as opiniões mais comuns supostamente refletiriam o horror à política e à classe
política, respectivamente tidos como “a arte de explorar o tesouro” e “usurpadores
indignos”, o que seria a causa do “completo desinteresse da nação pela política”.70
Segundo as afirmações tendenciosamente preconceituosas de Monteiro
Lobato, a elite da nação seria a melhor parte dela, descrita como “rica e culta”, (o cérebro
pensante), e, portanto, segundo afirma, “nobre por excelência”, e, a ojeriza desta classe
pela arte da política seria a razão da perplexidade do escritor, que teriam motivado sua
procura pelas “causas mais profundas” de tal situação.71
Não menos causadoras de perplexidades, hodiernamente, seria o
diagnóstico de Monteiro Lobato, transmitido ao presidente Artur Bernardes. As causas
seriam um “vício tão grave”, que se não fosse corrigido levaria o país a total ruína: seria
o “regime eleitoral de censo baixo”, pois segundo ele, na história da humanidade, a

particulares. Os impérios não parecem errados. O império Romano e o império Britânico fizeram muitas
coisas boas... Por muito tempo eu acreditei na democracia. Agora eu não acredito mais nela; pelo menos
não no meu país. Talvez em outros países a democracia possa ser justificada, mas na República Argentina
eu não penso que podemos confiar nela. A Democracia é um abuso das estatísticas... Ninguém supõe que
uma maioria de pessoas pode possuir opiniões válidas sobre a literatura ou sobre a matemática, mas há a
crença de que qualquer pessoa pode possuir opiniões válidas sobre a política, à qual é muito mais delicada
do que quaisquer outras disciplinas... Sim, parece que para destruir a liberdade, é ruim. Mas a liberdade
tende a permitir que seja abusada de muitas maneiras. Existem certas liberdades que constituem uma forma
de impertinência” (Trad. Livre). Cfr. KOVACS, Katherine Singer. Borges on the Right. Boston Review,
1º de setembro de 1977. Disponível em: <http://bostonreview.net/kovacs-borges-on-the-right>, acesso em
20.10.2015.
68
LOBATO, Monteiro. Carta ao Excelentíssimo Senhor Presidente Artur Bernardes. In: Ferro e o Voto
Secreto. São Paulo: Globo, 2010, p. 84-96.
69
Op. Cit., p. 84-85.
70
Op. Cit., p. 85.
71
Op. Cit., p. 86.
experiência demonstraria que o sistema representativo só traria resultados benéficos se
fosse acompanhado de “censo alto”, uma vez que neste último caso representaria o
“controle da política pela elite da nação”, representada pela metáfora seguinte: “a lei
natural de todos os organismos é a parte cérebro desempenhando suas funções de
cérebro, e a parte músculo (massa bruta, populaça, gente rural sem cultura nem
capacidade de discernimento) subordinada ao cérebro”.72
Monteiro Lobato afirmou ainda que isso causaria a presença de uma
capacidade artificial de voto, pois os votantes de “censo baixo” votariam não por dever
cívico guiado por discernimento, mas pela troca do voto por bugigangas ou dinheiro em
espécie, e aqueles que deveriam votar (a elite e os nobres) acabariam se afastando da
política, trazendo como consequência disso (chamado pelo escritor de “absurdo”) o fato
de que a política acabaria dominada pelos políticos profissionais, que fazem da política
um meio de vida, do qual se afastariam a elite e os nobres com base no seguinte
fragmento: “o raciocínio geral é este: se meu voto, estudado, ponderado, calculado, livre,
tem de ser anulado pelo voto do meu jardineiro, que é um imbecil, sem discernimento
nem cultura, prefiro ficar na moita”, o que acabaria por afastar das urnas “os possuidores
do direito natural de voto”.73
O remédio proposto por Lobato, através de um raciocínio evidentemente
datado e distorcido, foi a sugestão da implementação do voto secreto e não obrigatório,
pois segundo o pensamento deste escritor, eliminaria o voto por pressão e o voto por
dinheiro, os únicos dois motivos que, segundo ele, levavam os eleitores de “censo baixo”
às urnas. No dizer de Monteiro Lobato, não instituir o voto secreto, e, por conseguinte,
afastar o eleitor de “censo baixo”, seria “incubar eternamente o ovo da revolução”.74
Esta carta foi devidamente respondida, em correspondência que Artur
Bernardes enviou à Monteiro Lobato, a 6 de setembro de 1924, em que o então presidente
disse que recebeu “com prazer”, dizendo concordar inteiramente com as observações
sobre a necessidade da adoção de medidas que privilegiassem um “censo alto” dos
eleitores.75 Simplista e antidemocrática a discussão entre o escritor e o presidente, ao
dizerem, em termos claros, que o problema da democracia era o povo que a compunha.
No período que vai da proclamação da república, de 1889 aos dias que se
seguiram até a ditadura do Estado Novo Varguista, em 1937, são turbulentos e nos quais
se presenciou importantes fatos de levante e repressão, como a Guerra de Canudos (1893-
1897), as revoltas dos tenentes (1922, 1924, 1926 e 1930), o levante comunista de 1935,
indicadores de “que com a industrialização e a urbanização, as lutas de classes
aprofundaram-se, adquirindo novas características nas cidades”, num universo em que

72
Op. Cit., p. 86.
73
Op. Cit., p. 87.
74
Op. Cit., p. 88-90.
75
BERNARDES, Artur. Carta do Presidente Artur Bernardes à Monteiro Lobato. In: Ferro e o Voto
Secreto. São Paulo: Globo, 2010, p. 97-98.
a “boa vontade dos políticos” não era suficiente para transformar a massa crescente de
excluídos em cidadãos.76
Convém observar não apenas o fragmento do pensamento da época,
através da análise das trocas de cartas entre Monteiro Lobato e Artur Bernardes, em 1924,
às vésperas do golpe que representou a Revolução de 1930 e da Ditadura do Estado Novo
de Vargas, de 1937. Parece necessário realizar uma digressão sobre a adoção de modelos
de atuação de institutos e instituições que nos influenciaram profundamente, antes de
realizarmos uma incursão sobre o famoso artigo do jurista e então professor da USP
Goffredo Silva Telles Jr, em seu diagnóstico sobre os motivos do golpe de Estado de
1964.
A expressão americana “Split-Ticket Voting” (literalmente: dividir a
cédula eleitoral), tida como efeito do madisonianismo, relaciona-se à justificação da
eleição de governos institucionalmente divididos, segundo o qual o eleitor cidadão
escolhe o candidato de um partido para a Casa Branca e outro (de outro partido) para o
Congresso, sendo constatada sua prática por aproximadamente 20 a 30% dos eleitores
americanos como forma de, em alguma medida, buscar estabelecer o fortalecimento do
sistema de pesos e contrapesos no governo.77
Os “truques” de James Madson para esta concepção institucional, que mais
de duzentos anos depois de elaboradas, estariam influenciando as pessoas a acreditarem
neste sistema e em suas instituições, especialmente naquelas “formulações” constantes
dos Federalist Papers n. 10, 37, 48, 49 e 51, respectivamente sobre a necessidade de
afastar a “paixão das massas” e dos “partidos”, na elaboração do sistema representativo
de caráter central, e a instituição dos famosos “Checks and Balances”.
Um dos maiores conservadores da teoria e ideologia jurídica constitucional
americana, Robert H. Bork, resume um dos problemas centrais que se aponta nas Cortes
Constitucionais: a resolução do dilema madsoniano, pois os Estados Unidos foram
fundados segundo as bases do “madsonian system”, que significa albergar dois princípios
opostos e que necessitariam ser continuamente reconciliados: o autogoverno, segundo o
qual as maiorias governariam simplesmente porque seriam a maioria; e, o respeito pela
liberdade da minoria.78
O dilema madsoniano residiria justamente no fato de que nem a maioria, e
nem tampouco a minoria, poderiam receber a confiança de definir as esferas da autoridade
democrática e da liberdade individual, pois se fosse permitido que qualquer deles (maioria
e minoria) definissem tais casos significaria tanto o risco da tirania da maioria quanto o

76
GUILHERME MOTA, Carlos; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: Uma Interpretação. 2ª ed. São
Paulo: Senac, 2008, p. 605.
77
LEWIS-BECK, Michel. Split-Ticket Voting: The Effects of Cognitive Madsonianism. The Journal of
Politics, vol. 66, n. 1, feb., 2004.
78
BORK, Robert H. The Tempting of America: The Political Seduction of the Law. New York: Free
Press, 1990, p. 139-141.
risco da tirania da minoria79, razão pela qual a liberdade da maioria se autogovernar e a
liberdade dos indivíduos não serem governados permanece em tensão permanente.80
A Constituição Americana teria optado pela solução federalista que
supostamente teria resolvido tal tensão “da melhor maneira”: confiar à conciliação entre
maioria e minoria a uma instituição supostamente “não política”, como o judiciário
federal, especialmente à Suprema Corte dos Estados Unidos da América, bem como com
a limitação dos poderes do governo federal, em arranjo institucional segundo o qual o
Presidente, os senadores e os deputados seriam eleitos por diferentes órgãos em períodos
diferentes, além da instituição de uma Carta de Direitos, que afetaria mais diretamente as
minorias.81
Não obstante, o mesmo autor alega, observando a atuação prática da
Suprema Corte Americana, que ela teria se tornado “um agente do Moderno
Liberalismo”, que, embora não seja a responsável por “tudo que vai mal na cultura
americana”, seria uma das responsáveis por grande parte dos alegados equívocos, como
o declínio da legitimidade democrática das instituições, da anarquia e da licenciosidade
na ordem moral, com o avanço da tirania na ordem social.82 Tal alegação só faz sentido
se reconhecermos que a instituição teria sido pensada apenas para manutenção do status
quo, e preservação dos direitos criados por um grupo de escravistas travestidos de
constituintes.
Uma maneira de observar tais afirmações com certa desconfiança do
modelo madsoniano é a partir da identificação que o jurista e sociólogo argentino Roberto
Gargarella realiza sobre a leitura da engenhosa criação americana deste modelo
representado pela Constituição de 1787 que influenciou boa parte das Constituições da
América Latina no Século XIX, que mereceu especial reflexão crítica em três escritos
importantes e seminais, os dois primeiros deitando raízes na arqueologia factual da
convenção da Filadélfia83, e outro que analisa o modelo de desenvolvimento do
Constitucionalismo Latino-Americano entre 1810 e 2010.84
Identifica-se, de uma maneira geral, a desconfiança sobre as instituições
públicas, aliado ao desinteresse do cidadão em tomar parte da ação política, em
decorrência do modelo político Constitucional desenhado, num quadro geral de “crise de
representação política”, pois tais instituições (oriundas do modelo madsoniano) não
foram arquitetadas para promover a intervenção da cidadania nos assuntos públicos,
antes, em realidade, teria sido desenhadas para promover o seu inverso, pois os chamados

79
Observe-se, entretanto, que James Madson não se preocupava essencialmente com a “tirania das
minorias”, pois estas poderiam ser superadas por simples voto majoritário, conforme consta exposto no
Federalis Paper n. 10.
80
Op. Cit, Loc. Cit.
81
Op. Cit, Loc. Cit.
82
BORK, Robert H. The Supreme Court as an Agent of Modern Liberalism. In: Slouching Towards
Gomorrah: Modern Liberalism and American Decline. New York: Harper, 2003, p. 96-119.
83
GARGARELLA, Roberto. Crisis de la Representación Política. México-DF: Fontamara, 1997;
GARGARELLA, Roberto. Em Nome da Constituição: O legado Federalista dois séculos depois. In:
Atílio Boron, Filosofia Política Moderna: De Hobbes a Marx, São Paulo: Clacso, USP, 2006.
84
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism (1810-2010): The Engine Room of the
Constitution. New York: Oxford, 2013.
“pais Fundadores” do modelo temiam a democracia direta, receavam as assembleias
populares majoritárias e desconfiavam de toda intervenção ativa da cidadania sobre a
política, o que favorecia uma aristocracia de elite.85
As propaladas virtudes dos “Checks and Balances” não passam indenes de
críticas, pois alega-se que elas podem representar justamente o contrário do que
prometem, permitindo “a extorsão” de um dos ramos do poder por outro, ocasionando
ainda o que se chama de “guerra perpétua” entre diferentes setores da sociedade, pois
seria tão factível que os freios e contrapesos favorecessem uma “paulatina depuração”
das decisões públicas, evitando opressões mutuas, quanto permitirem um “bloqueio
mútuo” entre as diferentes esferas de Poder, inclusive com “rupturas institucionais”, tais
como as habituais experiências constitucionais da América Latina.86
Uma das mais duras críticas ao modelo de “freios e contrapesos”,
formuladas pelos Anti-federalistas, residiria no argumento de que se o Poder do Povo
encontrava-se fundamentalmente no Parlamento Legislativo, não seria justificável a
existência de tantas travas e bloqueios tendentes a diluir a vontade pública, e nem se fazia
presente justificativa para presença de tantos “filtros” capazes de “distorcer a voz
pública”, quando se passou a realizar muitas críticas aos controles “endógenos”, como a
propagação da adoção de controles “exógenos” dos cidadãos frente aos representantes.87
No Brasil basta que rememoremos a Carta de Monteiro Lobato ao
presidente Artur Bernardes, em 1924, as vésperas do golpe de 1930 e de 1937, e ainda, a
manifestação realizada pelo jurista Goffredo Silva Telles, então professor da
Universidade de São Paulo, ao publicar um “transtornado artigo” poucos dias antes do
Golpe Civil-Militar de 1964.
O referido artigo certamente influenciou muitos dos resultados, e
inequivocamente reflete o espírito da época relativamente àqueles que eram favoráveis
ao golpe, alegando imprestabilidade do modelo parlamentar de cariz liberal-democrata,
no qual não se fazia presente a identificação entre eleitor e eleito, chamando o voto de
“amassadeira do sufrágio universal”, e por isso vale revisitar o histórico artigo, como
tentativa de compreensão da “sala de máquinas do sistema de justiça criminal”.
Goffredo Telles Junior, professor formador de inúmeras gerações de
juristas que comporiam os quadros do poder paulista e nacional, em texto antigo e
esquecido, admitia o uso da força para resistência a governos ilegítimos em casos raros e
excepcionalíssimos, desde que a reação fosse, concomitantemente: legítima, necessária,
útil e proporcional.88
Em outra manifestação, essa reação seria mais explicitada, no artigo
escrito de 1963 intitulado “Lineamentos de uma democracia autêntica para o Brasil”,
85
GARGARELLA, Roberto. Crisis de la Representación Política. México-DF: Fontamara, 1997, p. 93-
95.
86
GARGARELLA, Roberto. Em Nome da Constituição: O legado Federalista dois séculos depois. In:
Atílio Boron, Filosofia Política Moderna: De Hobbes a Marx. São Paulo: Clacso, USP, 2006, p. 182-
183.
87
Op. Cit. Loc. Cit., p. 182-183.
88
TELLES JUNIOR, Goffredo. Resistência violenta aos governos injustos. Revista de Direito da
Universidade de São Paulo, v. 50, 1955, p. 217.
longo, extenso e revelador do ideário de uma geração inteira de juristas, com uma nota de
rodapé possuidora do seguinte teor: “Este trabalho foi escrito muito antes da Revolução
de Março. A necessidade de recorrer às armas para salvar o Brasil veio confirmar as
críticas feitas nestas páginas”.89
Que críticas foram essas? As de que nenhuma de nossas constituições
tinham o “cheiro de Brasil”, em trocadilho atribuído a Lenin sobre a Revolução Soviética,
criticando o fato de que os ideólogos de nossas instituições e constituições foram se
abeberar das águas europeias de países que estavam em franca transformação e mudança
de paradigmas, o que teria feito, segundo Goffredo, com que adotássemos a “doutrina
burguesa do liberalismo”, e que ao se atrelar a democracia ao liberalismo acabaria por
trazer consequências que iriam caracterizar a democracia como um regime de
pressupostos, preconceitos e ficções, falseando a vontade do povo e confundindo este
com “massa”.90
Há crítica pesada aos partidos na sua impossibilidade de transmitir a real e
concreta vontade do eleitor, bem como formula-se crítica ao sufrágio universal da
democracia indireta, perguntando: “que povo será tão imbecil a ponto de achar que
somente por depositar seu voto na urna já pode se achar soberano?”, e a crítica que se
segue é incisiva:
“Pode o povo, é certo, no dia do pleito, durante algumas horas,
devanear e fantasiar-se de soberano. Mas já no mesmo dia, ao cair da
noite, uma vez fechadas as urnas, que povo será tão imbecil a ponto de
acreditar, que, tendo votado, esteja ele no governo? Poderá o homem
da rua, que retorna à sua casa e a seu reles ramerrão, continuar
envergando sua fantasia de soberano? Poderá ele crer, que o
‘representante do povo’, é de fato, seu representante?” 91

O próprio Goffredo, ele mesmo um ex-parlamentar que critica a atividade


do “representante do povo” de maneira áspera, praticamente “entrepolegares”, alegando
que os deputados, em sua grande maioria, não conhecem a constituição e estão mais
interessados em seus próprios interesses. Vai buscar em Rousseau, no contrato social, a
afirmação de que a “vontade geral não se representa”, e que toda lei deve ser ratificada
pelo povo em pessoa, sob pena de nulidade.92
Os olhos com que se devem ler tais manifestações não são de acusação,
mas de apreensão para compreensão de uma época. Neste sentido, observa-se, tal como
hoje, (e mesmo em 1924) extremado desgaste do Parlamento e dos Parlamentares.
Goffredo recorda que já naquela época o povo votava por favor, por troca, por graça,
como nos casos da eleição de um bode em Pernambuco e de um rinoceronte em São
Paulo, na interpretação de que o povo, achando de pouco valor o Parlamento, tenta

89
TELLES JUNIOR, Goffredo. Lineamentos de uma Democracia autêntica para o Brasil. Revista de
Direito da Universidade de São Paulo, v. 58, 1963, p. 130.
90
Op. Cit, Loc. Cit.
91
Op. Cit, p. 138.
92
Op. Cit, Loc. Cit.
transforma-lo em um “circo”, e o autor reconhece que quem critique o sufrágio universal
será acusado de pecador e de tocar em um “tabu da democracia”.93
O legislador vai ser colocado em um pote etiquetado por Goffredo de
“homens vulgares e ignorantes”, lembrando a manifestação anterior de Monteiro Lobato,
em 1924, demonstrando a baixa conta em que já se tinha o Parlamento, havendo ainda a
dicotomia destacada entre “país real” e “país falso”, bem como acusa-se o legislador de
estar a construir um “império da corrupção”.94
A linguagem de Goffredo é um misto de quase misticismo e simbolismo
radical, com toda a força dos espíritos que convoca. Diz ele que naquele país falso, “como
que por magia do demônio” haveria desabrochado “toda a escória social”, concluindo:
“Animaram-se os desonestos. Estimularam-se os inescrupulosos, os
afoitos, os vigaristas. Incentivaram-se os intrujões, que ostentam
honestidade, mas somente para melhor ludibriar os incautos. E então,
ocupando postos chave, começaram a ser vistas figuras desprezíveis de
ladinos, de safados, de venais”

Mas a que postos-chave Goffredo se referia? Não há uma menção


expressa, mas é possível inferir. Menciona-se que a moralidade teria sido “amortecida”,
e que “o suborno se fez rotina a tal ponto de tudo ter preço, tudo poder ser comprado”,
momento no qual insere nova nota de rodapé com uma segunda advertência, parecida
com a primeira: “repetimos: este trabalho foi escrito muito antes da revolução de março.
A Revolução visou banir, da vida nacional, precisamente os erros calamitosos que aqui
se apontam”.95
Repete-se o discurso de que não mais causava espécie “as torpezas
cometidas às custas da nação”, acusando-se que “negociatas seriam realizadas a sombra
do gabinete presidencial, nas antessalas dos ministérios e nos corredores da câmara”,
invocando a necessidade de se inquirir a “pureza e a sinceridade” das leis, acusando o
Parlamento de formar bancadas suspeitas de interesses alienígenas, e ainda, que o
contrabando estaria sendo praticado escancaradamente, inclusive de armas a interesse de
“grupos subversivos”, e que neste estado de coisas a política não teria um lugar para os
“homens bons” que seriam atropelados pela “amassadeira do sufrágio universal”, pois
os candidatos mais preparados, idôneos e competentes não ganhariam as eleições e a cada
eleição o país estaria piorando.96
Observa-se similaridade entre a carta de 1924, de Monteiro Lobato, e o
discurso de Goffredo Telles Jr, em 1963, culpando-se a “democracia liberal”, com
fundamentos claramente temerosos da democracia, mas nenhum deles propõe
aprimoramento que fortalecesse a força e a participação popular, antes, propõem críticas
à massa, ora como “não detentoras de um direito natural de voto” (1924), e ora como
“amassadeira do sufrágio universal” (1963): o culpado acaba sendo o sufrágio universal.

93
Op. Cit, p. 139.
94
Op. Cit, p. 141.
95
Op. Cit, p. 141-142.
96
Op. Cit, p. 142-143.
Menciona-se, ainda, na pretensão de exprimir um retrato fiel do sentimento
da maioria da nação, que esta assistiria aflita ao retraimento forçado de suas “elites
morais” e de sua “aristocracia intelectual” que estaria sendo substituída por
“aventureiros”, “malandros”, “desavergonhados”, “trapaceiros” e “larápios”.97 Neste
ponto, também há extremada semelhança com relação a missiva de Monteiro Lobato, em
1924, para o presidente Artur Bernardes.
Sustenta-se que reformismo não seria suficiente para mudar o quadro
desenhado, pois um retorno ao parlamentarismo, a delegação de poderes e adoção do
sistema distrital seriam meros paliativos, pois segundo o autor, carregamos “cadáver de
ideias mortas”, uma vez que o “mal seria profundo” a exigir “remédio heroico”. Fala-se
em “reformular a democracia brasileira” que exigiria apenas “ser verdadeiro”, a exigir a
afirmação de que “democracia liberal não é democracia”.98
Neste sentido, Goffredo fala de democracia, fornecendo sobre ela o seu
ideário, ingressando no perigoso terreno da legitimidade. Conceitualmente, a propósito,
diz que democracia seria o regime político que asseguraria a permanente penetração e
influência da vontade dos governados nas decisões legislativas dos governantes. Por outro
lado, menciona que a fórmula democrática nacional perpassa pelo encontro de uma
“autêntica representação política” que afaste mitos constitucionais, uma vez que uma tal
constituição não deve ser inventada, não deve ser imposta de cima para baixo, antes, deve
brotar “espontaneamente” de baixo para cima e assim “refletir a ordem própria das
coisas”.99
Em outra passagem reveladora de uma época e de um ideário, admite-se
pluralismo jurídico, mencionando-se que a Constituição então em vigor (1946) seria a
culpada pelo abismo criado entre o governo e o povo, pois como mencionado, no Brasil
o povo não seria “massa”, e o culpado, mais uma vez seria o sufrágio universal, que não
produziria um verdadeiro regime representativo. Aliás, a expressão metafórica é
recorrente: o sufrágio universal seria uma “amassadeira”, partindo do pressuposto de que
o termo “massa” seria uma das “ficções do liberalismo”.100
Não menos reveladora é a afirmação sobre a “ditadura”, pois segundo
Goffredo, a expressão “vontade dos governados” não significaria a vontade deste ou
daquele especificamente, pois se assim fosse estaríamos diante de uma ditadura, uma vez
que esta se caracterizaria exatamente por ser uma forma de governo que impõe a todos a
vontade de determinados e específicos indivíduos.
Dizendo isso em uma das mais prestigiadas revistas jurídicas do país, a
Revista de Direito da Universidade de São Paulo, às vésperas do golpe de estado (1963-
64) enviava uma mensagem mais ou menos cifrada da necessidade de um golpe de estado,
ao final chancelado, e que estaria anuída pelas duas notas de rodapé mencionadas na qual
chama o golpe de “Revolução” que pegaria em armas para salvar o país.

97
Op. Cit, p. 143.
98
Op. Cit, p. 144-145.
99
Op. Cit, p. 154.
100
Op. Cit, p. 158-159.
Mas o ser humano Goffredo justifica a fama de humanista ao fazer, no
auge da ditadura, alguns anos depois, uma declaração (Pronunciamento) também
publicada pela Revista da Universidade de São Paulo, e lido na congregação dos
professores da faculdade de Direito em fevereiro de 1968, defendendo-se da acusação de
comunista e de marxista, mas dizendo também que não era adepto do capitalismo,
deixando clara a guerra surda que repetia o estado novo de caça às bruxas contra o
comunismo, fazendo uma corajosa manifestação no sentido de que era chegada “a hora
de um cuidadoso exame de consciência”.101
Seria também o mesmo Goffredro quem capitanearia a famosa “Carta aos
Brasileiros”, lida no pátio das arcadas do Largo de São Francisco no dia 8 de agosto de
1977, um documento que pedia a volta do estado de direito, fazendo distinção entre estado
de fato e estado de direito, constrangendo a ditadura e exigindo um retorno à
democracia.102
Muito tempo depois, em 1990, o mesmo Goffredo daria uma intrigante
entrevista para Eugênio Bucci, para a revista “Teoria e Debate” nº 12, na qual falaria de
seu passado integralista como um dos “camisas verdes”, mencionando a ausência de
unidade ideológica entre eles, dizendo que se considerava um socialista e que o
socialismo seria a perfeição da democracia.103
Retornemos brevemente às críticas Anti-federalistas ao modelo
madsoniano, após esse breve “atalho sobre reflexão acerca da Democracia Brasileira”. Os
críticos defendiam sobretudo quatro propostas alternativas: 1) maior frequência nas
eleições, pois quando acabavam as eleições se iniciava a escravidão; 2) possibilidade de
os eleitores darem instruções necessariamente obrigatórias aos seus representantes; 3)
direito de revogação do mandato para aqueles representantes que não cumprissem suas
promessas eleitorais, e, 4) rotação obrigatória nos cargos eletivos, com vistas a impedir a
formação de uma “classe política” que fosse isolada da cidadania, para que políticos
profissionais não ficassem pelo resto da vida nos seus cargos, e que visasse a favorecer a
participação da maior quantidade cidadãos na política.104
O cerne desta discussão sobre a “democracia” foi focalizada também por
José Saramago, ao proferir a conferência denominada “Democracia e Universidade” em
2005, na Universidade Complutense de Madrid, quando recordou Aristóteles e seu tratado
de Política, observando que democracia é uma palavra vazia, e que neste caso vale muito
mais o que ela carrega “por dentro”, e de que “um governo verdadeiramente democrático”
deveria possuir mais pobres do que ricos, pois aqueles formariam a maioria, embora isso
provavelmente jamais venha a acontecer.105

101
TELLES JUNIOR, Goffredo. Pronunciamento. Revista de Direito da Universidade de São Paulo, v.
63, 1969, p. 401-412.
102
TELLES JUNIOR, Goffredo. Goffredo Telles Júnior dá a público a Carta aos brasileiros. Revista de
Direito da Universidade de São Paulo, v. 72, n. 2, 1977, p. 411-425.
103
AZEVEDO, Ricardo de; MAUÉS, Flamarion; (Orgs.). Rememória: Entrevista sobre o Brasil do
Século XX. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 205-222.
104
GARGARELLA, Roberto. Em Nome da Constituição: O legado Federalista dois séculos depois. In:
Atílio Boron, Filosofia Política Moderna: De Hobbes a Marx. São Paulo: Clacso, USP, 2006, p. 186.
105
Saramago complementa suas palavras da maneira seguinte: “Claro que o que estava implícito, ainda
que Aristóteles não o tenha dito, era que devia existir um partido de pobres, mas talvez não tenha falado
Pois bem, o diagnóstico do nosso déficit democrático foi realizado de
maneira minuciosa por Roberto Gargarella, que realizou uma vasta pesquisa sobre o
Constitucionalismo Latino Americano, entre 1810 e 2010, constatando que a grande
maioria dos países Latino-Americanos entraram no século XX com constituições liberais-
conservadoras, para dizer com isso constituições que foram resultado de um acordo
político entre conservadores e liberais.106
No caso brasileiro é particularmente verdadeira esta observação, conforme
recorda José Afonso da Silva, na composição do acordo entre o Partido Liberal e o Partido
Conservador, no Brasil Império, e estas “formações partidárias revezaram-se no poder
durante o Segundo Império”, constatando-se ainda que entre eles havia “pouca distinção
ideológica”.107
A maioria de tais negociações foram firmados na segunda metade do
século XIX, ao tempo em que o liberalismo e o conservadorismo representavam as duas
maiores forças políticas da região, mas seu acordo constitucional, contudo, era inesperado
em razão de que ambos os grupos teriam aparecido como candentes inimigos políticos
durante a primeira metade do século XIX. Com efeito, após muitos anos de duríssima
disputa política, os dois rivais de tais facções políticas uniram às forças para forjar uma
aliança que permaneceria intacta durante as próximas décadas.108
As Constituições forjadas pelo acordo entre liberais e conservadores –
neste período - apareceram “como sínteses imperfeitas de aspirações legais de ambos os
grupos”, vale dizer, essas novas constituições latino americanas refletiram o pacto por um
sistema de pesos e contrapesos e para declarar neutralidade – especialmente referente à
tolerância religiosa - que pareceu caracterizar as aspirações do grupo liberal, embora por
outro lado, tais constituições também tenham representado “o compromisso com um
sistema de autoridade concentrada - centralização regional e perfeccionismo moral - que
caracterizou as aspirações do grupo conservador”, representando a combinação da
Constituição dos Estados Unidos, bastante influente entre os liberais, e a Constituição
Chilena de 1833, que representou a Constituição de maior influência conservadora
durante o século XIX, em modelos constitucionais representativos de tolerância religiosa,
mas sem necessariamente afirmarem neutralidade estatal, e definidoras de um sistema de
freios e contrapesos, que teria sido, entretanto, parcialmente desequilibrado em favor do

disso porque se deu conta de que um partido de pobres não tem muito para prometer, e se não promete
não ganha as eleições. Por outro lado, os partidos ricos sempre encontram uns quantos pobres para que
governem na sua maior glória e proveito; dos ricos, do poder, quero dizer. Estes pobres depois acabam
por cruzar a fronteira e passam para o lado dos ricos, embora tenham chegado ao governo com os votos
dos pobres, como bem sabemos que acontece em todo o mundo”. Cfr. SARAMAGO, José. Democracia e
Universidade. Belém: ed.UFPA, 2013, p. 27-28.
106
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism: Social Rights and the “Engine Room” of
the Constitution. Notre Dame Journal of International & Comparative Law: Vol. 4: Iss. 1, 2014;
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism (1810-2010) – The Engine Room of the
Constitution. New York: Oxford University Press, 2013, p. 34-53.
107
SILVA, José Afonso da. Constitucionalismo Brasileiro: evolução institucional. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 249.
108
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism: Social Rights and the “Engine Room” of
the Constitution. Notre Dame Journal of International & Comparative Law: Vol. 4: Iss. 1, 2014;
GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism (1810-2010) – The Engine Room of the
Constitution. New York: Oxford University Press, 2013, p. 34-53.
presidente, estabelecendo ainda um modelo de federalismo centralizador de
109
organização.
Estas constituições “liberais-conservadoras” teriam ainda rejeitado a
incorporação de cláusulas sociais favorecedoras dos menos avantajados, e também se a
introdução de iniciativas em favor da participação das massas no espaço público,
significando que o pacto “liberal-conservador” teria sido um pacto excludente que
implicava o deslocamento da maioria das iniciativas institucionais então propostas por
grupos radicais - geralmente inspiradas por Anglo-Americanos radicais. Durante esses
anos, de fato, grupos radicais avançaram inúmeras propostas constitucionais, as quais
incluíram eleições anuais, o direito à revogação do mandato (recall), rotatividade do
mandato e instruções obrigatórias. Adicionalmente, grupos radicais promoveram
diferentes reformas objetivando alcançar a “questão social”. Contudo, o triunfo do projeto
liberal-conservador repeliu implicitamente todas essas iniciativas.110
Roberto Gargarella observa que ocorreram muitas e inúmeras mudanças
nas constituições dos países da América Latina, seguidos de períodos relativamente bem
delineados de Constitucionalismo Social (1910-1950), Multiculturalismo e Direitos
Humanos (1950-2010), com inúmeras reformas constitucionais, mas nenhuma delas teria
logrado êxito em permitir a grande camada da população o acesso à chamada “Sala de
Máquinas da Constituição”, metáfora utilizada para dizer que as reformas foram
concessivas de direitos, mas não de acesso aos efetivos mecanismos de controle de poder.
Observou o autor que:
“Exemplos como esses, [de reformas constitucionais por direitos]
demonstram não apenas a importância, mas também as limitações dos
afazeres das reformas constitucionais. Reformadores legais não
podiam, ou não queriam ir longe demais para assegurar que as
constituições reformadas alcançassem as características
transformadoras que proclamavam. (...) Nos últimos anos (embora - e
isso é um problema - apenas nos últimos poucos anos), os países da
América-Latina que tem adotado Constituições socialmente mais
robustas desenvolveram uma interessante e imaginativa prática judicial
de cumprimento dos direitos sociais”.111

No entanto, parece evidente que tais reformas foram, na melhor das


hipóteses, bastante limitadas em seu escopo e também nas suas conquistas, e uma das
principais razões para isso se explicaria pelo fato de que os reformadores pareceram
concentrar suas energias na seção dos direitos, sem levar em conta o impacto que a
organização do poder tende a ter sobre aqueles mesmos direitos que então estavam
protegidos, vale dizer, os reformistas dedicaram a maior parte de seu trabalho criando
“novos direitos”, mas deixou a organização dos poderes basicamente intocada, pois
seguindo o Gargarella:
“Agindo dessa maneira, reformistas legais mantém fechadas as portas
da “sala de máquinas” da Constituição: o núcleo da maquinaria

109
Op. Cit, Loc. Cit.
110
Op. Cit, Loc. Cit.
111
Op. Cit, Loc. Cit.
democrática não é modificado. A máquina da Constituição não se
transforma no objeto de atenção principal dos reformadores. É como se
a sua missão estivesse concluída com o trabalho nas seções dos direitos,
como se os controles principais somente pudessem ser tocados pelos
aliados mais próximos daqueles que estão no poder”. 112

O mesmo vale para o “sistema de justiça criminal”, vale dizer, a grande


população está apenas do lado de fora, na antessala, e sem acesso a sala de máquinas do
controle da instituição e revogação dos tipos penais incriminadores, embora esteja
suscetível ao poder que sobre ela exerce o sistema Ludovico, num arranjo institucional
que manipula a população a apenas fazer pressão sobre seus representantes, ou
justificando um agir incriminador mais duro tomado pelos congressistas à revelia da real
vontade da população.

3. Considerações Finais
Estas breves linhas destinaram-se a realizar algumas reflexões sobre o
sistema de justiça criminal, dialogando com a literatura distópica (laranja mecânica, de
Anthony Burgess) e com a literatura que aponta alto déficit democrático de nossas
instituições (a metáfora da sala de máquinas, de Roberto Gargarella).
Por um lado, observou-se que a mídia realiza tarefa similar ao artefato do
sistema Ludovico, buscando influenciar na seletividade criminal, causando mal-estar com
relação a determinado crime ou acusado. Também foi possível observar que o acesso à
“sala de máquinas” do sistema de justiça criminal é extremamente restritivo, e interage
deliberadamente a partir do “sistema Ludovico” de notícias criminais.
A partir destas constatações, temos como premente o reconhecimento
destes dois fenômenos seletivos, e a partir de então, que seja minimizada a pretensão de
criminalização de condutas ou agir repressivo e punitivista com relação a determinado
crime ou acusado, bem como, por outro lado, que sejam oxigenadas a sala e a antessala
de máquinas do sistema de justiça criminal, com a consulta popular prévia, precedida de
amplo debate público sobre as pretensões de criminalização de condutas, com a
minimização da influência da mídia em todos os debates.
Com tais ações, certamente o cidadão poderá decidir sem a nauseante
presença do mal-estar, bem como poderá ter acesso efetivo a sala de comandos que
decidirá os rumos da embarcação. Tal situação não será fácil, nem rápida e nem indolor,
embora sua prática reiterada provavelmente venha a permitir o amadurecimento
democrático do povo brasileiro, bem como a paulatina desintoxicação de lavagens
cerebrais.
Sem o ódio ao crime, e nem ao criminoso, se permitirá um ambiente de
esfera pública menos hostil e mais saudável para as grandes discussões nacionais, dentro
de plurais ambientes ideológicos e com a necessária liberdade que transcenderá ao
totalitarismo da notícia fabricada e adentrará na efetiva sala de comando da liberdade.

112
Op. Cit, Loc. Cit.
A permanecer como está, urge denunciar que o status quo é violência
naturalizada, e é preciso chamar as coisas pelo nome, ou ao menos descrever a imagem
da caricatura: a cidadania nauseada urrando de dor, com os olhos grampeados na imagem
propositalmente produzida, artificialmente do lado de fora da sala de comandos, e
legitimando que os do lado de dentro tomem as providencias que previamente bem
entenderam.
Roberto Aguiar113 e Amilton Bueno de Carvalho114 denunciam o lado
perverso relacionado à resistência ao novo, ao qual se resiste muitas vezes não por ser
injusto, mas porque “desestabiliza a comodidade das reproduções”. Que aqueles que
resistem a necessária mudança também usem o nome adequado para que o diálogo
prossiga em níveis ideias de cognoscibilidade: medo da democracia e vontade de
manipulação.
E isso é uma piada distópica, que acaba de ser explicada, dentre várias
explicações possíveis, diferente daquela que começa da seguinte maneira: Porque o
pontinho amarelo atravessa a rua e entra dentro da sala de máquinas...

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